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Não precisava que fosse assim - de Marcus Llaneli

Ouve-se música de balada que vai aumentando de volume. Surgem gemidos


que vão se misturando. Os gemidos começam a predominar sobre a música,
até o momento em que ficam só os gemidos. Os gemidos vão diminuindo, a
cena se ilumina, um homem e uma mulher estão lado a lado na cama.

Ele: (dá um beijo na testa dela) O que você quer de café da manhã?
Ela: Você também faz café da manhã? Nada mal pra quem acabou de se
separar.
Ele: Wafle?
Ela: Amo Wafle!
Ele: Você disse ontem. Com geleia de frutas vermelhas, certo?
Ela: Parece que você já deixou tudo pronto.
Ele: Bom, vou lá fazer, então.
Ela: Não. Fica aqui mais um pouco. Seu quarto é tão arrumadinho. E você é
uma delícia.
Ele: Belo elogio. Ainda mais, vindo de uma Virginiana.
Ela: Você também sabe o meu signo?
Ele: Você falou ontem: “Virginiana, compulsiva, das que arrumam as bananas
por ordem de tamanho na fruteira”.
Ela: O que mais te falei?
Ele: Publicitária, mora em Santa Cecília, alucinada por memes de gatos.
Ela: ...
Ele: E você fez um pole dance lindo sobre o balcão ontem à noite. Parecia com
a Salma Hayek, naquele filme de vampiros do Quentin Tarantino.
Ela: Como?

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Ele: Tô brincando.
Ela: Besta. Aquela mulher é linda.
Ele: Você também é. Adoro quando ela derrama tequila na coxa e ele lambe
até a ponta do dedão dela.
Ela: Adoro quando ela vira vampira e bebe todo o sangue dele.
Ele: Você é horrível.
Ela: Pior é você... chegado num dedão.
Ele: ...
Ela: ...
Ela: Preciso te fazer uma pergunta?
Ele: Se sou casado, se tenho filhos? Já te falei que não.
Ela: Uma pergunta um pouco mais básica.
Ele: Mais básica!?
Ela: Sim. Mais básica. Qual é o seu nome?
Ele: Como assim você não sabe meu nome? Você dormiu com um estranho?
Ela: Não completamente estranho. Só não sei o seu nome.
Ele: Dá na mesma.
Ela: Na verdade, não me lembro de muita coisa. Você, por acaso, sabe o meu?
Ele: Anna. Com dois “n´s”.
Ela: Parece que você já me conhecia.
Ele: Talvez.
Ela: ...
Ele: Te vi em uma festa uma vez.
Ela: Festa?
Ele: Sim. Uma festa numa casa enorme. Tinha uma escada que parecia com a
escadaria do Titanic. Acho que era aniversário de um cara.

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Ela: Você conhece o Daniel?
Ele: Não conheço o Daniel. Entrei na festa de penetra.
Ela: É a sua cara!
Ele: Você estava na cozinha, encostada na parede, bem ao lado da geladeira,
conversando com um grandão. Olhei pra você e gostei do jeito que você ria.
Ela: Ria alto?
Ele: Ria gostoso.
Ela: Por que não veio falar comigo?
Ele: Não tive coragem.
Ela: Por quê?
Ele: Porque o cara era muito grande.
Ela: Ah... o Lucas... Inofensivo
Ele: Tenho uma teoria. Você já notou como o ambiente onde a pessoa fica na
festa define a sua personalidade? Acho que as pessoas mais legais sempre
ficam na cozinha. Tenho um amigo. O Ivan. Usa camisa engomada e só fala
sobre o mercado financeiro. Um clássico. Pois, ele não sai da sala. Já o
Emmanuel, é romântico, melancólico. Fica só na varanda. Lá é o único lugar
onde consegue desenvolver uma conversa com as mulheres.
Ela: E se a casa não tiver varanda?
Ele: O Manu só vai a festas que tenham varandas. Senão, nem sai do sofá.
Ela: E se alguém fica metade do tempo na cozinha e a outra metade na sala? A
pessoa é chata ou legal?
Ele: Daí, fica difícil. Acho que é alguém que ainda não se definiu. Talvez, seja
alguém que precise de acompanhamento psicológico.
Ela: ...

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Ela: Você conhece alguma teoria sobre alguém gostar de um estranho, sem
nem, ao menos, saber o nome dele?
Ele: Acho que é química. Gostei de você desde a primeira vez que te vi.
Ela: Você ainda é um estranho.
Ele: O que você quer saber sobre mim para que eu deixe de ser um estranho?
Ela: Algo bem pessoal.
Ele: Quão pessoal?
Ela: De zero a 10?
Ele: De zero a 10.
Ela: De 10 pra cima.
Ele: Bom... eu conto piada bem.
Ela: Isso não é pessoal. É uma habilidade social. Quero saber um segredo que
só contaria a alguém que fosse muito íntimo.
Ele: Hum... Tem que ser bem pessoal, então... Deixe-me ver... Minha mãe era
uma verdadeira nazista. Me deixava muito tempo de castigo. Nada do que eu
fazia era certo. Me lembro de horas e horas de minha infância olhando para o
canto da cozinha. Ficava com os olhos presos numa mancha de gordura no
azulejo. Tinha vontade de removê-la dali, mas, ao mesmo tempo, era a única
coisa com que podia me distrair. Ficava olhando para ela fixamente, esperando
que, uma hora, ela fosse começar a andar. Acho que foi ali que comecei a
desenvolver obsessão com arrumação.
Ela: Você não suporta ver mancha em lugar nenhum. Limpa tudo que vê na
frente, né?
Ele: Sim. Acho que é daí que vem essa mania de arrumar tanto o quarto.
Ela: Hum... nada mal.

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Ele: Quando meu irmão mais novo morreu na piscina, acho que minha mãe
canalizou toda a tristeza dela em mim. Ela me deixava 1 hora de castigo por
dia, todos os dias, durante um ano, para que eu nunca mais me distraísse.
Ela: ...
Ele: Assim que completei 18 anos, saí de casa.
Ela: Você vê sua mãe com frequência?
Ele: Não.
Ele: ...
Ela: Isso é bem pessoal.
Ele: Tenho outro segredo importante pra te contar.
Ela: Estou começando a ficar preocupada.
Ele: ...
Ele: Conheço sua amiga, a Janaína. Ela é minha ex.
Ela: O que? Você é o Antônio, ex da Janaína!? Meu Deus, não acredito!? Transei
com o Antônio!? Você não era o que ficava stalkeando a Jana?
Ele: Não é bem assim...
Ela: Ficava sim! Vocês se cruzavam nos lugares mais improváveis! Aliás, na
festa do Daniel... A Jana me falou que o ex dela estava na festa do Daniel! Você
estava lá! Ela tinha medo de você!
Ele: Não é bem assim. Você ouviu apenas o lado dela. Não sou uma pessoa tão
má como ela me pinta. Temos amigos em comum. E não era tão improvável
assim que a gente se encontrasse em uma festa.
Ela: Mas, ela...
Ele: Aliás... estava brincando... é claro que eu não era penetra. Sou amigo de
infância do Daniel.
Ela: Mas ela fala que você é...

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Ele: Se tinha algum penetra na festa, pois então, era ela.
Ela: Bem, você realmente não parece tão ruim assim... Na verdade, o que ela
fala de você é bem diferente do que vejo.
Ele: ...
Ela: O que você acha dela?
Ele: A Janaína? Ela tem suas dificuldades. Você é amiga dela e sabe disso, mas
não preciso ficar falando mal da minha ex, só para me afirmar diante de você.
O valor de uma pessoa está dentro dela, sem depender de rebaixar os outros.
Ela: ...
Ele: Escutei isso na terapia.
Ela: ...
Ela: Você parece um cara superengraçado, sensível, carinhoso. O oposto do
que ela fala. Talvez, a Janaina não te entendia direito.
Ele: Pois é.
Ela: ...
Ele: ...
Ela: ...
Ele: ...
Ela: Nossa!? Pera aí!? Você... Você já me conhecia da festa... Você... Você veio
conversar comigo no balcão...
Ele: ...
Ela: Você... Você me conheceu de propósito? Só porque sou amiga da Janaína?
Ele: ...
Ela: Nossa conversa começou tão legal. Te achei legal. Te achei engraçado.
Lembro dos seus ombros. Gostei dos seus ombros.
Ele: Dos meus ombros?

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Ela: Sim. Da sua boca. Do seu jeito. Gostei de você. Mas não me lembro de
nada, nem do seu nome, nem mesmo de como vim parar aqui. Eu
simplesmente... simplesmente acordei aqui.
Ele: ...
Ela: Antônio, não precisava que fosse assim.
Marcus Llaneli

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