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AMOR DOENTIO
DARK ROMANCE
SILMARA IZIDORO
Copyright © 2022 Silmara Izidoro
Diagra
mação
Digital:
Autora
Jack A.
F.
Todos
os
direitos
reserva
dos.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de
qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios —
tangível ou intangível — sem o consentimento da autora.
Edição
Digital
ǀ
Criado
no
Brasil
1º
Edição
Janeiro de 2022
Depois de longos anos, finalmente eu
estava curado. Os instintos sombrios
descansavam em paz.
Os desejos obscuros adormeciam em
um sono profundo.
Os pensamentos impróprios pareciam
memórias de outra pessoa.
É pesado. É polêmico
Tem violência (física, psicológica) Tem relacionamento abusivo Tem abuso sexual
Tem traição
Tem muita putari@
Personagens complexos
Comportamentos inadequados Linguajar inapropriado
Cenas narradas detalhadamente
Não recomendado para leitores sensíveis Não recomendado para menores de 18
Pode acionar
gatilhos emocionais
Para você, que se dispôs a ler, espero que tenha uma ótima leitura
e se apaixone por esse livro como eu me apaixonei.
Com carinho,
Silmara Izidoro.
Morada do Sol – Rio Grande do Norte
20 anos antes…
O desgraçado me
denunciaria, se eu não o
impedisse.
Um bom homem.
Riacho Verde – São Paulo
Dias atuais…
Seguro.
— Querido? —
murmura minha
esposa, sonolenta.
— Tem certeza
que está bem?
— Tenho, claro.
— Não demora.
— Não vou.
— Promete?
— Prometo.
— Merda! —
balbucio,
encostado na
parede do
corredor.
NÃO!
Não dela.
— Nem de ninguém, merda! — murmuro, num
grunhido tão colérico quanto o meu desgosto.
Não.
Não.
Um bom homem.
— Outro
pesadelo?
— Sim.
— Quer falar
sobre isso?
— Falou com a
doutora Claudia?
— Ainda não.
— Seria bom se
conversasse com
ela, querido.
Como sempre.
— Você precisa
esquecer o
passado, querido.
— Não posso
fazer isso.
— Claro que
pode, não foi
culpa sua.
— O culto começa em 40
minutos. Afasto sua
calcinha para o lado.
— Só preciso de 10 — sussurro, circulando seu
clitóris com a ponta do polegar.
— Dante… —
murmura meu
nome,
estremecendo
com uma careta
de
dor.
Tudo na minha esposa é
contido, reprimido,
controlado, quando tudo
que eu mais quero era que ela se solte, mostre suas garras,
rasgue minha pele e encontre conforto na minha
promiscuidade.
— Vou tomar um
banho.
— O que ela
esqueceu agora?
— resmungo para
mim mesmo.
— Eu deveria
saber quem você
é?
— João Camargo.
Acho que o
senhor chamava
ele de JC.
As duas últimas letras abrem as portas do meu
passado e libertam a besta que adormecia nas
profundezas do inferno.
— Entra — vocifero, empurrando a garota pelo braço para
dentro de casa, enquanto olho em volta para me certificar de que
nenhum vizinho a viu.
Ela tropeça quando passa por mim, com uma mão segurando a
alça rasgada e a outra arrastando uma mala de viagem preta, mais
velha que a bolsa.
— Eu vi quando
os policiais
encontraram a
caixa.
— Você estava no
presídio?
— Na cela.
Mesmo que os médicos tenham afirmado que as
lesões cerebrais de João Camargo eram tão profundas que
causaram sequelas irreversíveis, e as chances de o autor
do crime brutal que chocou o país recuperasse as
memórias recentes eram nulas, eu deveria ter imaginado
que ele guardaria a carta que lhe entreguei pessoalmente,
na primeira e última visita que lhe fiz, contando a única
versão aceitável do que aconteceu naquela noite: a minha.
Um homem dissimulado,
esse era eu.
— Não sou
mentirosa,
senhor.
— Todo
mentiroso diz a
mesma coisa.
Qual o nome da
sua mãe?
— Lindalva
Soares.
— Como ela
conheceu o JC?
— Minha mãe
morreu, três
meses atrás.
— Quem sabe
que você veio
atrás de mim?
— Ninguém.
— E a sua
família?
— Não tenho
família.
Vergonha? Medo?
Ansiedade?
Não, porra!
— Eu… — Elisa
gagueja,
afastando os
pensamentos
imorais.
— Que tipo de
ajuda você
precisa?
— Você já está na
faculdade?
— Não. Estou no
terceiro ano do
Ensino Médio.
— Quantos anos
você tem?
— Vinte.
— E ainda está
no Ensino
Médio?
— Eu não fui
muito à escola
nos últimos dois
anos.
— Por quê?
— Você cuidava
dela?
— Sim.
— Sozinha?
— Sim.
— Não tinha
ninguém para
ajudar?
— Não. Pode me
explicar, por
favor?
— Isso eu
entendi.
— Isso eu
também sei.
— Minha mãe
deitou com
muitos homens
casados e…
— E?
— Se orgulhava.
— Canteiros.
Sua voz me resgata dos pensamentos lascivos que
invadem minha mente como um sussurro sedutor.
— O quê?
— Nós
morávamos em
Canteiros.
— Fica pertinho
de São Luís do
Maranhão.
Está explicado.
— O que você
sabe fazer?
— Elisa é filha do
seu amigo, não
uma estranha.
Cubro a cabeça com o travesseiro, amaldiçoando o infeliz que esqueceu o dedo preso na
merda do interfone. Deveria ser proibido aparecer na casa das pessoas a essa hora da manhã,
especialmente sem ser convidado.
Desisto de ignorar o som estridente que ecoa pela sala, pois além de me despertar, agora
estou irritado. Uma pontada aguda atinge minha cabeça quando me sento no sofá com os pés
para baixo.
A dor aumenta no segundo em que abro os olhos e me deparo com a bagunça vergonhosa
que representa minha vida.
Latas de cerveja, caixas de pizza, garrafas de vodca e restos de comida competem por
espaço no piso de madeira, com os sapatos, chinelos, tênis e meias de todas as cores.
Ao contrário do som que por pouco não me ensurdece, desvio dos obstáculos que
encontro pelo caminho até a cozinha, ignorando o chiqueiro que um dia eu chamei de lar, e
atendo o interfone.
— Se essa porra não for um defeito, é melhor não estar na gaiola quando eu sair, Mococa
— sibilo para o porteiro, apoiando a testa na parede com os olhos fechados, numa tentativa de
fazer o mundo parar de girar.
— Desculpa, seu Juliano, mas o detetive Fidel estava com uma arma apontada para mim e
ameaçou atirar se eu não acordasse o senhor.
Bufo, sentindo o típico gosto de sola de sapato na
língua ressecada. Não faço ideia da quantidade de álcool
que ingeri ontem à noite. Parei de contar na terceira
garrafa.
Ou foi na quarta?
— Avisa que eu
já vou descer.
— Por quê? —
rosno, a poucos
segundos de
entrar em coma
alcóolico.
De bebedeira, solidão e
esquecimento.
— Se estivesse
sóbrio saberia
que são quase
duas da tarde.
— O que
aconteceu? —
falo sem rodeios.
— Talvez ainda
seja.
— O que eu vou
abrir?
— Ninguém sabe.
— Tem certeza
que essa chave é
dele?
— Uma das
prostitutas?
— O filho da puta
não registrou a
menina — digo o
óbvio.
— Exatamente.
De um jeito ou de outro.
— O cheiro está
bom.
— Seu vinho —
murmurei ao pé
do ouvido.
— Depende.
— Tem certeza?
— Minha
seriedade não a
assustou.
— Absoluta.
— Está me
machucando!
Então a barragem foi
aberta e a lama invadiu o
rio.
— De joelhos.
Os mamilos intumescidos, os lábios entreabertos e a
respiração entrecortada, contradiziam o medo estampado
em seu rosto.
Eu sentia e pronto.
Merda!
Deixo a caixa de
ferramentas no chão e me
abaixo.
— Comprei no
mesmo dia.
— Pode ser
algum problema
na tubulação.
— Graças a Deus,
meu filho.
Preciso gozar.
Preciso matar.
Seu Dante acaba de chegar e pela maneira que me encara, sei que pretende cumprir a
promessa que me fez na lavanderia.
E gostou.
— Querido! Que bom que chegou — dona Laura diz, sai de perto do pai e caminha
elegantemente em direção ao marido.
Quando para ao lado dele, é impossível ignorar a diferença entre os dois, o que
talvez explique a cara feia do pastor.
Seu Humberto não parece feliz com a escolha da filha, ainda que tenha passado a
última hora pregando a importância do ser e a insignificância do ter, enaltecendo que
devemos valorizar a pessoa e não os bens materiais que ela possui.
— O que está acontecendo aqui? — Seu Dante não aceita o toque da esposa, joga a
caixa de ferro que segura no chão e cruza os braços, à espera de uma explicação.
— Vocês podem nos dar licença? Gostaria de falar com meu marido em particular.
Estou pronta para fugir correndo e seu Humberto
pronto para falar alguma coisa, mas a voz autoritária do
melhor amigo do meu pai não permite que nenhum de
nós faça nada.
— Se eu sou o
único que não
sabe, eles podem
ficar e ouvir.
— Querido, por
favor.
— Sim?
— Lembre-se do que conversamos, está bem? —
Faço que sim com a cabeça, embaraçada. — Meu marido
não é uma má pessoa. Ele só precisa de um tempo e tudo
vai ficar bem. Eu prometo.
— Obrigada.
Devo chegar
tarde, então não
me espere
acordada.
— Sim, senhora.
Dessa vez, não me culpo pela desgraça que está para acontecer, pois tentei me livrar de
Elisa para manter minha fachada de bom homem e meu casamento de merda intactos.
Mas Laura não me deu ouvidos, agindo pelas minhas costas, atando meus pulsos e me
castrando na frente do seu pai, como sempre para provar que ele estava errado e seu marido
não é o homem autoritário e abusivo que o pastor tem certeza de que eu sou.
Em outra época, eu teria me vingado curvando minha esposa sobre a mesa de jantar e a
estuprando na frente do velho que a trata como uma princesa, para mostrar quem realmente
está no controle, mas degradar a mulher que deveria me apoiar ainda seria pouco por toda
vergonha que ela me fez passar.
Para as nobres damas da alta sociedade de Riacho Verde não há nada mais humilhante do
que serem traídas com as putinhas do subúrbio que se
recusam a seguir as normas da comunidade cristã e adotar
o pastor como seu guia espiritual.
— Onde você
está?
— Em casa.
— Laura está
com você?
A psicóloga fica em
silêncio por alguns
segundos.
— Você quer
falar sobre isso?
— Não, mas sinto que se não colocar tudo para
fora, vou acabar enlouquecendo.
— Certo, então…
— Claro. Me dê
alguns minutos.
Nenhuma palavra.
— O mesmo que
você.
— Qual o
problema, Dante?
— Não estou
falando de
penetração.
— Do que está
falando?
Não recuso.
Mas não consigo parar de olhar, embasbacada, a moça chamada Claudia chupar o
membro do seu Dante como se a vida dela dependesse daquilo. A visão me provoca
tantos sentimentos ao mesmo tempo, que sou incapaz de definir qual o melhor ou o pior.
No entanto, mesmo sentindo raiva por ele estar traindo a dona Laura; solidariedade
pelo motivo que o levou a traí-la; decepção por ela tratá-lo de forma tão insensível e não
valorizar o amor dele; e ciúme por ele ter procurado em outra o que deixou de encontrar
na esposa, neste exato momento, o sentimento mais intenso que me consome a ponto de
sufocar, é o desejo insuportável de estar no lugar dessa mulher.
Dou uma espiada para ter certeza de que eles não podem me ver e enfio a mão por
baixo da saia que comprei num brechó em Canteiros.
Não é a primeira vez que assisto duas pessoas fazerem sexo, pelo contrário. Passei
minha adolescência inteira abrindo a porta de casa para os clientes da Lindalva, ouvi seus
gemidos, gritos, pedidos e xingamentos, mais vezes do que sou capaz de me lembrar e
presenciei orgias que começaram na sexta à noite e só terminaram no domingo.
Lindalva se deitava com homens, mulheres, jovens, velhos e até com algumas
crianças que estudavam na mesma escola que eu.
Ela era tão viciada em drogas quanto em sexo e
quando não tinha clientes, usava objetos e até animais
para satisfazer seus vícios.
Nojento.
Nunca.
Por dinheiro.
Sei que do jeito que está excitada, ela faria qualquer coisa que eu quisesse e quero que
faça muitas coisas, mas mesmo desesperado para depravá-la de todas as maneiras possíveis,
me contenho.
Quando a ratinha for minha, nada além da sua destruição irá me satisfazer e tão certo
quanto as vinte e quatro horas do dia, eu irei destruir essa garota até não sobrar nada da sua
alma.
Ela levanta o olhar, encontrando minha expressão assassina, porém não é medo que vejo
nele, mas expectativa.
Elisa tem que temer Daniel mais do que teme a Deus e o Diabo, pois preciso da filha de
JC para substituir Tônia e ela só servirá para o meu propósito se souber que posso arruiná-la
a qualquer momento.
Seguro seu queixo com tanta força, que meus dedos afundam em suas bochechas.
— Não mandei você sair do seu quarto, mas me desobedeceu e está aqui escondida
vendo a amiga da Laura me chupar. Gosta de assistir, Elisa? Quer saber como eu fodo uma
vagabunda?
Corroído pela fúria, solto seu queixo apenas para extravasar e acerto um tapa na sua
cara. Sua cabeça tomba para o lado devido ao impacto da minha palma aberta na sua
bochecha.
De frente para o espelho, levo a mão à garganta onde as marcas da mão dele ficaram
gravadas na minha pele, como um lembrete do que acontecerá comigo se não esquecer de vez a
história que o melhor amigo do meu pai me acolheria em sua nova família, e ir tentar a vida em
São Paulo, onde ninguém me conhece, sabe quem eu sou nem de onde eu vim.
Recomeçar. Seguir em frente.
As lágrimas não dão trégua e caem livremente, banhando meu rosto magro, sem vida.
Lindalva era uma péssima mãe, mas era a única que eu tinha e ainda que as nossas
personalidades diferentes em tantos aspectos, tornassem nossa convivência sob o mesmo teto
insuportável, ela foi a única que sempre esteve ao meu lado.
Tiro a roupa e entro no box, esperançosa que o
banho lave a sujeira do meu corpo, mas principalmente
dos meus pensamentos. Em apenas dois dias minha mente
virou um caos e não tenho o direito de culpar ninguém
além de mim mesma.
Ela estava linda na masmorra de luxo. Sua cabeça no círculo central da madeira
pendia para baixo entre as mãos, presas pelos pulsos nos dois círculos menores.
Seu tronco flexionado num ângulo de noventa graus, formava uma mesa com as pernas
estendidas, mais alongadas graças às botas pretas que Tônia comprou em uma de suas
viagens à Nova York, imobilizadas pelas tornozeleiras de couro, me dando livre acesso a sua
boceta e ao seu cuzinho.
— Confessa que você não queria estar no meu lugar — debochei, sem parar de meter.
Nem as quengas profissionais que trabalhavam nos bordéis da região gostavam tanto de
foder como a filha do prefeito. E não havia um cabrunco bom das vistas que não sonhasse
em comer a danada.
Se bem que a maioria se contentava em espreitar sempre que Tônia anunciava que
estava indo tomar banho no rio Saluá.
Todo mundo sabia que ela só nadava pelada e aqueles que não tinham o privilégio de
provar sua boceta, pagavam para ver o monte coberto por uma camada de pelos escuros, os
lábios delicados que escondiam o grelinho que eu adorava prender entre os dentes e a
entrada
brilhante da fenda apertadinha, que em todos aqueles
anos nunca encontrei seca, nem quando ela era
convocada para ficar no altar da igreja durante o
sermão.
Deu até para o tio, irmão mais novo de sua mãe, que
morava no Rio de Janeiro, lá no estacionamento da
prefeitura, enquanto seu pai discursava para meia dúzia
de gato pingado no baile de carnaval para a terceira
idade.
“Eu te perdoo”
Merda!
Eu te perdoo.
De mim e dela.
Elisa.
E calado.
Manipulação emocional.
E eu quero Elisa.
Literalmente.
Complexo Penitenciário de Pedrinhas – São Luís do Maranhão
— Motivo.
— Investigação de assassinato.
— Nome da vítima.
— Confidencial — minto porque não sou idiota,
apesar de sequer parecer um detetive.
— Vou verificar
se ele está
disponível.
— O diretor não é
responsável pela
autorização de
visitas.
— Não pode
entrar armado.
— Não pretendo
entrar, mas como
pode ver ainda
estou aqui fora.
— Espero que
seja mais
inteligente do que
parece.
Dou de ombros.
— As melhores
decisões não são
minha
especialidade.
Assinto, apontando a
cadeira para ele e sento na
minha.
— Não, contanto
que a nossa
conversa morra
dentro dessa sala.
— Não — digo
honestamente. —
Estou por minha
conta e risco.
Ele dá um sorriso de lado,
vitorioso, cruzando os
braços sobre o peito.
— Chefe… — o
da ponta
pigarreia, mas é
cortado
imediatamente.
— Saiam. — Uma palavra dita com convicção dá o
dilema por encerrado. Quando a porta se fecha e ficamos
sozinhos, ele pergunta: — Por que você acha que JC não
matou a garota?
— Eu não acho.
Tenho certeza.
Recosto na cadeira,
esticando as pernas
embaixo da mesa.
— Por quê? —
ele não faz
rodeios.
— Me contando
quem
encomendou a
morte de João
Camargo.
— Obrigado pelo
convite, mas não
estou interessado.
— Já sei, você
não é como eu.
— Está na hora
de se olhar no
espelho.
— Eu me olho
todos os dias.
Desbloqueio o aparelho usando a senha que minha esposa nem imagina que eu sei e leio
todas as suas mensagens de ontem, que enviou e recebeu pelo WhatsApp.
Não me surpreendo ao descobrir que foi ideia de Laura que Humberto a acompanhasse
no evento beneficente para o qual ela foi convidada e aconteceria em Santa Ana, a quinze
quilômetros daqui, promovido pelo candidato a prefeito na cidade vizinha e ex-namorado de
Laura, Silvano Malaquias, em prol das crianças carentes.
Minha esposa nunca falou sobre o seu primeiro relacionamento. Amoroso, porém sei
que teve início na adolescência e durou por alguns anos, até o pai do garoto decidir entrar
para a política e sua decisão criar um conflito de interesses entre as duas famílias que acabou
com quaisquer intenções que Laura tivesse de se casar com o seu amor da adolescência.
A família Malaquias se mudou para Santa Ana depois que Humberto convenceu seus
guiados espirituais que o empresário bem-sucedido estava a serviço do diabo para difamar o
porta-voz de Deus, e liderou uma série de ataques verbais e físicos contra o homem.
A providência inconsequente, tomada pelo pastor num momento de desespero, foi muito
mais prejudicial para ele do que para o pai de Silvano, que não demorou para conquistar a
simpatia dos moradores de Santa Ana, onde foi recebido de braços abertos, nem a confiança
dos comerciantes e fazendeiros, interessados no progresso econômico-social da cidadezinha
com menos de quinze mil habitantes.
Apesar de o convite para o evento ter sido enviado para Laura pela assessoria do
candidato a prefeito, minha intuição me diz que a mudança repentina no comportamento de
Laura está diretamente ligada a ele.
Recosto no sofá, apoiando a parte de trás da cabeça
no alto do encosto e fecho os olhos, buscando na
memória algo que me guie ao ponto de origem enquanto
me distraio, amassando e desamassando o material
fofinho dos compartimentos internos da bolsa importada,
apropriados para guardar objetos delicados e dependendo
do caráter da sua dona, confidenciais.
Eu, nunca.
Grávida!
— Podemos
deixar essa
conversa para
outra hora?
— É muito
importante,
senhora.
Ou muito feliz.
— Só estou tentando ajudar. — Dou de ombros,
coloco o copo na pia e me afasto de Laura, pronto para
sair por onde as duas entraram.
Cerrando a mandíbula,
vocifero asperamente:
Sangrando. Chorando.
Pingando. Só para ele.
Faz mais de uma hora que seu Dante subiu para o quarto e até agora não apareceu,
nem saiu para trabalhar.
Dona Laura me garantiu que ele tem esse jeito grosseirão, mas é uma pessoa
adorável. As vezes tenho a impressão que ela não conhece o marido que tem, e nunca se
preocupou em conhecer.
Se conhecesse, saberia que seu Dante é completamente apaixonado por ela. Tenho
certeza de que ele só a traiu com aquelas mulheres porque é jovem, saudável, viril, e seu
corpo precisava de alívio que a esposa se recusou a lhe dar.
Claro que seu Dante estava zombando da minha cara quando me disse que era para
procurá-lo, se precisasse de alguma coisa.
Ou não estava?
Ele me confunde de um jeito que não sei explicar. Uma hora parece que me odeia, na
outra me olha como se quisesse me devorar todinha. É impossível acompanhar suas
mudanças de humor.
Mordo o cantinho do dedo enquanto espero o arroz secar. Dou uma espiada na
escada, me condenando por querer ir até o quarto dele para avisar que estou indo embora.
O melhor a fazer é pegar minha mala e sair de uma
vez, sem olhar para trás, mas quem disse que é fácil viver
em dúvida, quando tudo que eu mais quero é ter certeza
de que estou fazendo a coisa certa?
— Te peguei,
ratinha.
Eu sabia que ela não resistiria e viria para mim, provando que a
ratinha tem mais coragem que inteligência.
Sorte a minha.
Finjo que estou dormindo, mas ouço seus passos, sua respiração
perto da cama. A garota tola não se contentou em me olhar à
distância e teve que se aproximar para aplacar o desejo que nutre
pelo marido da sua patroa. e pela expiração pesada, aposto que quer
me tocar.
— Uma troca,
ratinha. Você
responde. Eu te
dou o orgasmo.
— Fala, ratinha.
Mentiroso.
— Sim! Sim! —
ela finalmente
fala.
E o meu.
— Quero ser sua
vagabunda, seu
Dante. Só sua e
de mais ninguém.
— Vai me
obedecer? —
Mergulho a
língua no seu
canal estreito.
— Sim!
— Sim, por
favor… sim!
— As vezes eu
gostaria que essa
mulher estivesse
errada.
— Algum
problema,
querido?
— Laura está me
traindo com o
Silvano.
Celeste leva a mão ao peito, com os olhos
arregalados, mas a indignação que deveria sentir ao ouvir
uma acusação como essa contra sua filha, não vem. O que
confirma minhas suspeitas de que ela já sabia.
— Dante…
— Você a ama?
Não.
— Amo. Muito.
— Então
converse com a
sua esposa.
— Não posso e
gostaria de
manter essa
conversa entre
nós.
— Por que,
Dante?
Vivemos em um mundo
machista, onde a traição
tem pesos diferentes.
A mulher, cabe a aceitação. Ao homem, o troco.
A última.
Laurentino recosta na
cadeira, fazendo que não
com a cabeça.
— Alguma
restrição quanto a
localização?
— Não,
nenhuma.
— Obrigado,
Laurentino.
— Disponha,
Dante. Dê
lembranças à
família.
Para tudo.
Não sei o que acontece comigo sempre que esse homem está por perto. Parece que a
presença dele provoca alguma falha no meu cérebro e tudo vira uma grande confusão na
minha cabeça.
Um lado sabe perfeitamente que o que estou fazendo é errado, se culpa por desejar o
marido da minha patroa e se recusa a aceitar as imposições dele. Começando pelos nomes
que seu Dante me chama, iguais aos que os moradores de Canteiros chamavam Lindalva.
Mas o outro lado não se importa com nada disso, nem se esforça para fingir que não
quer que seu Dante faça tudo que quiser com meu corpo, tampouco se sente mal por eu
me deitar com um homem casado na mesma cama que ele se deita todas as noites ao lado
da esposa.
Agora que estou aqui, sozinha, sóbria e consciente, reluto em admitir que o jeito
grosseirão do seu Dante me domina com facilidade.
Que quando ele usa palavras baixas para me humilhar, me desafia a provar que sou
melhor que as outras mulheres que, assim como eu, também não ligam de substituir dona
Laura e dão para o marido dela, o que apenas ela deveria dar, mas se recusa porque não o
ama como ele merece ser amado.
Que só de me encarar com aqueles olhos impenetráveis, fico toda molhada, agoniada
para descobrir como será tê-lo dentro de mim, penetrando, preenchendo, tomando o que
não é dele para tomar.
Mas, sem dúvida, o mais difícil é assumir que sempre que seu Dante me despreza,
como se eu valesse menos que uma moeda de cinquenta centavos, me transformo em uma
vadia da pior espécie, daquelas submissas
que gostam de ser degradadas e submetidas aos caprichos
de um homem rancoroso, insensível, controlador.
— Meu nome é
Kevin, muito
prazer.
— Elisa.
— Há quanto
tempo está
trabalhando para
a Laura? Nunca
vi você por
aqui.
Respondo timidamente,
mas em poucos minutos me
sinto como se
conhecesse os vizinhos há anos e logo estamos falando
sobre a única escola pública da cidade que tem Ensino
Médio, os lugares que Kevin gosta de ir com seus amigos
para paquerar e o brechó que Jurema costuma comprar
roupas quando está sem dinheiro.
— De joelhos —
ordeno, parado ao
lado dela.
É hora de ir me encontrar
com Jurema.
Eu me abaixo na frente de
Elisa, que agora chora
copiosamente.
Acaricio seu cabelo e sussurro:
— Rogério é o
único que não iria
gostar do meu
pau na sua boca.
— Nossa, Dante.
Que delícia.
— Que lugar é
esse, Dante?
Em um momento de paixão
desenfreada, a besta
destruiu Tônia. Agora, sou
o único que pode decidir
quando Elisa será destruída.
Morada do Sol – Rio Grande do Norte
— Coronel Venceslau Junqueira — responde ele, coçando a cabeça por baixo do chapéu
de palha.
— Tudo?
— Sim, senhor.
— Faça as honras.
— Tá aberto.
Avanço em direção ao alpendre, com o homem atrás de mim. Paro diante da porta e abro o
arquivo direto na parte em que estão as fotos tiradas pelos peritos.
A resolução das imagens é uma porcaria, mas consigo visualizar o carro de João Camargo
estacionado na frente do chalé com os pneus
rasgados, as marcas de pneus da caminhonete de Daniel
Bonavides, noivo de Antônia, as pegadas das botas dele
manchadas com o sangue da vítima, até as bitucas de
cigarro.
— Desde quando
o delegado
encerrou o caso e
JC foi preso.
— Nunca mais
entraram aqui? —
Não escondo o
espanto.
— Tá ficando
tarde. É melhor o
senhor entrar.
Autor ou vítima.
Eu sabia, porra!
— Algum
problema? —
pergunta,
estreitando os
olhos.
— Essa é uma
certeza que nós
nunca vamos ter,
meu amigo.
A ação é rápida.
Uma colônia de morcegos voa em círculo, se
chocando uns contra os outros, ensandecidos pela
iluminação da lâmpada de LED.
Graças à Elisa.
Os olhos de Jurema se
enchem de lágrimas.
Encosto na cadeira, estico as pernas, abaixo a cueca
e acaricio meu pau, que engrossa sob o meu toque e o
olhar guloso da safada.
— Dante, por
favor…
— Apoia as mãos
no estofado.
É a dela, de Elisa.
Um mistura de raiva, indignação, mágoa e decepção, me abate com gosto, num sinal
de reprovação do universo por eu ter me colocado nessa situação, mesmo depois de
receber tantos sinais de alerta sobre os perigos que estava correndo ao ceder a essa
atração sem precedentes que sinto pelo marido da dona Laura.
A sensação de impotência que sempre me deu forças para continuar lutando até
contra os obstáculos mais difíceis, agora não passa de uma vaga memória que sequer é
minha.
Sozinha.
Quando as lágrimas secam e param de cair, ignoro o formigamento que alcança cada
centímetro do meu corpo e substituo a testa pela bochecha no carpete de madeira com os
olhos fechados.
— Já disse que
estava em uma
reunião.
— A mentira eu
já ouvi, agora
quero a verdade.
— Quem estava
lá?
— O quê?
Encolho-me quando os pés da enorme poltrona
rangem ao acolherem o peso do corpo que se acomoda
sobre ela, e as pontas dos dedos do seu Dante acariciam
minha perna até onde alcançam.
— Nós estávamos
trabalhando,
Dante.
— Isso é o que
você diz.
— Não me julgue
pelos seus
pecados!
Eu precisava começar
outra vez para corrigir
minha falha. Desde o
início.
E foi isso que eu fiz.
— Chegando
agora? —
Rogério
perguntou,
parecendo
abatido.
— O que eu não
sei?
— Claro. Mas
acho que você
deveria ficar de
olho só por
precaução.
— Por quê?
— Vou te tirar
daqui e cuidar de
você, ratinha.
Procuro a campainha ou qualquer coisa que indique a minha chegada, mas não encontro.
O jeito é recorrer à moda antiga. Bato palmas e dou uma olhada nas casas vizinhas enquanto
espero.
Barraco, chalé, barraco, barraco e barraco. Um ao lado do outro, separados por muros
baixos ou arame farpado. Se estivesse em São Paulo, apostaria que em menos de um ano esse
lugar se tornaria uma comunidade. Em dez, uma nova favela.
A camisa amarelada, que um dia deve ter sido branca está aberta exibindo uma barriga
saliente. Ele afivela o cinto preto e puxa o cós da calça jeans, tão suja quanto a camisa, para
cima. O cigarro apagado se equilibra entre os lábios finos quando ele vem na minha direção.
Os olhos desconfiados me avaliam da cabeça às botas de couro estilo militar e sobem até
encontrar os meus.
Tiro os óculos de sol, em dúvida se deveria ter escolhido uma roupa mais formal, em vez
de a calça preta e a camiseta da equipe de Operações Especiais que peguei emprestada de
Fidel, apenas para impressionar os
policiais da cidade e intimidar homens como o que está
parado à minha frente, me encarando com uma carranca
entediada.
— Bom dia. —
Minha voz é
baixa e meu tom
é seco, porém
educado.
— Estou procurando a senhora Narcisa
Feliciano.
— Quem está
procurando a
minha mulher?
— A vida toda.
Eu era o melhor
amigo do
Claudiomiro,
marido dela.
— Ele coça o queixo e acende o cigarro. — O senhor tá
aqui por causa do processo?
— Que processo?
— Que a Narcisa
entrou pra ganhar
o auxílio-
reclusão?
Faz sentido.
— O juiz negou o
pedido?
— Duas vezes.
— Ela recorreu?
— A mãe do João
nunca conheceu a
neta?
— Ninguém sabe.
— Alguém deve
saber.
— Elisa?
— A filha do JC.
— Simplício
Junqueira. O seu?
— Irmão do
infeliz.
— Não se dão
bem?
— Aquele traste
não vale a merda
que caga.
— Betina Junqueira?
Simplício faz que sim.
— Esposa do
Venceslau, mãe
da Tônia.
Toupeira que só.
— Problema
mental?
— E o pai dele?
— A polícia não
investigou o
desaparecimento
dele?
— Só até a
primeira carta
chegar.
— Que carta?
— Por que o
menino ia
inventar uma
coisa dessas?
— A única coisa
que o menino
pediu foi
emprego.
— Como ele
vivia? Com que
dinheiro?
— Ela era
engenheira da
prefeitura.
Um amor de infância
talvez?
— Posso fazer só
mais uma
pergunta?
— Sorte mesmo.
Poucas pessoas
gostam de mim.
— Ninguém
gosta de
honestidade.
Pulo da cama, me ajoelho ao lado de Elisa e o desespero aumenta. Seus olhos reviram
em órbita, seu corpo chacoalha como um grão de milho prestes a estourar e virar pipoca.
— Calma, ratinha. Estou aqui. Fica calma, por favor — murmuro em seu ouvido, mais
para mim do que para ela.
Do jeito que Elisa se debate, duvido que possa me ouvir. É como se a mente dela tivesse
se desgarrado do corpo e assistisse a tudo de outro lugar, sem saber o que fazer para voltar.
Tenho medo de machucá-la, mas minha necessidade de proteger e cuidar dela é tão
grande, que quase a esmago contra o meu peito.
— Por favor, ratinha, não me abandone. Volta pra mim. — As palavras saltam da minha
boca sem que eu possa freá-las.
As mesmas que repeti por horas a fio, disposto a vender minha alma ao diabo para
voltar no tempo e consertar tudo.
— Quando abri a porta naquele domingo, eu sabia. — Fecho os olhos e embalo Elisa
em meus braços, murmurando: — Eu sabia que seu jeitinho
submisso ia despertar meus demônios. Que seu sorriso
inocente deixaria a besta faminta. Que seu olhar de
putinha inexperiente, bebendo meu corpo sem nem
reparar, me traria de volta, mais impiedoso que antes.
Intragável.
Porra!
Foda-se tudo!
— Cadê sua
empregada,
porra?
A bermuda marrom que vai até a altura dos joelhos, deve ser
uns três números acima do dela e está manchada de cloro em vários
pontos.
— Você é
detetive?
— Sim, senhora.
— Tá investigando o quê?
Dona Narcisa não me
encara.
— Não é uma investigação. Estou preparando um
curso para os novatos do nosso Departamento sobre
crimes passionais. Como acompanhei o caso do João
Camargo, achei que usar algumas questões que não
ficaram muito claras pode agregar ao conteúdo.
É um risco jogar essa isca?
Sim, dos grandes.
— Por quê? —
Minha ansiedade
aumenta.
— Isso.
— Porque o
incêndio
começou no
quarto dele.
— Dentro do
quarto?
— No ventilador.
— Como os
grupos sabiam
onde iam
procurar?
— A cidade
inteira sabia.
Tento abrir os olhos para ver onde estou, mas minhas pálpebras pesam mil quilos e
não tenho força para mantê-las levantadas.
Estou aquecida. Não sinto mais aquele frio que doía em meus ossos, mas meu
estômago continua embrulhado e tenho a impressão de que posso vomitar a qualquer
instante.
Conforme o tempo vai passando, não sei se segundos, minutos ou horas, os sons ao
meu redor ficam mais altos, nítidos, reais.
Quero, ou melhor, preciso descobrir onde estou, o que aconteceu e por que parece
que meu corpo não me pertence mais.
Luto com tudo que tenho e empurro os cílios para cima. Eles batem rápido, subindo
um pouquinho. O pontinho claro que vejo entre eles quando se afastam, me incentiva a
continuar empurrando, até que finalmente vejo a luz amarelada acima da minha cabeça.
Dele.
Seu Dante.
Sigo as instruções,
normalizando a respiração
logo em seguida.
— O senhor não disse o que ela tem. — Meu corpo
retesa sob o trovão em forma de voz que ecoa pelo ar,
feroz, irritado.
— Quem é você
pra garantir
alguma coisa?
— Sou o médico
que está cuidando
dela.
— Exatamente.
Ninguém.
— Não
menospreze
minha
experiência,
rapaz.
— Elisa? — dona
Laura insiste.
Inspiro, expiro. Inspiro,
expiro.
— Eu não sei.
— Não sabe? —
O médico não
esconde a
surpresa.
Eu me sinto, é verdade.
Porém bem menos do que
deveria.
Na frente do médico.
Na minha frente.
Seu Dante fica por último, mas antes de sair olha por
sobre o ombro, dá uma piscadela e manda um beijo para
mim.
— Se ela for ao hospital amanhã de manhã, até o fim da tarde eles estarão no meu
consultório.
— Então é melhor que Elisa descanse hoje para se recuperar. Quando eu chegar do
escritório, vou perguntar outra vez. — Minha esposa olha para mim. — Você checou as
fechaduras?
— Ninguém entrou nessa casa, Laura. — A irritação no tom da minha voz não faz jus a
tormenta que sinto. — A garota estava no quarto dela. Se estava nua ou vestida não é da
nossa conta.
Odeio minha esposa piranha por insinuar que a ratinha pode ter sido vítima de algum
tarado que ela convidou para conhecer sua cama e o pedacinho molhado do céu, que se
esconde no meio de suas coxas.
Elimino a distância e sussurro em seu ouvido, alto o bastante para Gonçalo ouvir:
— Elisa está
doente.
— Obrigada.
— Até mais,
Dante.
Merda!
Eu sabia que a ratinha estava mal, mas não imaginei
que ela fosse dar tanto trabalho. Mais cedo, logo que
desci Laura estava resumindo para Gonçalo que
encontrou Elisa desmaiada no quarto, nua, e acompanhou
o médico até lá para que ele pudesse examiná-la.
— O convite é
tentador, mas
não, obrigado.
Minha marca.
O choramingo é música
para os meus ouvidos.
— Fome? — Não
espero que me
responda.
— Por quê?
— Você está
linda, Celeste.
Celeste se remexe,
encabulada.
— Pensei muito
no que me falou.
Celeste estremece.
— Dante, por
favor…
— Eu sou sua
sogra.
— Dante, eu
estou…
— Sim! Sim,
Dante!
Os demônios dormem
relaxados.
Não lembrar do que aconteceu depois que dormi, deixa uma sensação ruim, um
gosto amargo na boca.
Forço minha memória, busco nas lembranças alguma coisa, o mínimo que seja, mas
nada vem. É como se a noite de ontem nunca tivesse existido.
Tenho certeza de que seu Dante sabe, foi ele quem me desamarrou e me trouxe para
o meu quarto. Só pode ter sido.
Muito.
Preciso sair daqui. Ir embora para São Paulo e começar do zero, como eu tinha
planejado fazer desde Lindalva ficou doente. Não sei por que dei ouvidos ao meu pai e
achei que vir atrás do melhor amigo dele poderia ser uma boa forma de recomeçar.
Estou mais magra, pálida, com olheiras profundas. Meu cabelo parece mais fino,
apesar de ser natural e comprido.
Lindalva dizia que minha beleza só podia ser vista
quando eu abria a boca, porque vinha de dentro, mas por
fora não era marcante e passaria despercebida em
qualquer lugar que eu estivesse.
Chochinha, tosquinha,
mirradinha, tapadinha.
— Isso é muito
sério, Laura.
— Eu sei! Por
que você acha
que estou tão
nervosa?
— Pensei que
tivesse
acontecido
alguma coisa com
o Dante.
Odeio a hipocrisia dessa mulher, mas não estou no
direito de julgá-la porque não sou diferente.
— Aconteceu,
mas não como
está pensando.
— Vocês
brigaram?
— Brigamos.
— Por quê?
— É alguma
piada, Laura?
— Gostaria que
fosse.
— Espera, você
sabia que o Dante
era noivo?
— Sabia.
— Desde
quando?
— Ele me contou
no nosso primeiro
encontro.
— Porque meu
marido não gosta
de falar sobre o
assunto.
— Por assunto
você quer dizer
sobre a noiva?
— Nossa, amiga!
Nunca pensei que
o Dante tivesse
passado por tudo
isso.
— É muito
triste, mas o
pior é que
tudo que ele
enfrentou
sozinho,
sem a ajuda de ninguém, foi pela Tônia. O prefeito não
queria que a filha se envolvesse com um menino órfão,
pobre e sem futuro. Dante nunca o criticou, porque
também achava que ela merecia alguém melhor. Foi por
isso que ele começou a trabalhar cedo, se formou numa
das melhores Universidades de São Paulo e só voltou
para casa quando se achou digno de se casar com o
grande amor da vida dele.
Estou tremendo dos pés à cabeça. Meu pai me disse
que seu melhor amigo amava tanto, tanto a mulher mais
cobiçada de Morada do Sol, que as vezes parecia mais
uma doença do que propriamente amor.
Doentio.
— Por que o
amigo do Dante
matou a noiva
dele?
— O que quer
dizer?
— Nunca se sabe.
— Obrigada.
Sabe que eu te
amo, não sabe?
— Como assim?
— Espero que
esteja certa,
amiga.
— Eu sempre
estou.
Comer um prato de
macarronada, mais ainda.
A voz feminina me desperta do devaneio e aproveito para dar uma conferida no corpo da
loira à minha frente.
— Vocês são obrigadas a decorar essas frases? — provoco, enquanto aguardo ela destacar
o voucher.
A loira não precisa ficar na ponta dos pés para apurar o tamanho da fila atrás de mim, nem
se tem alguém perto o bastante para ouvir nossa interação na porta de embarque do aeroporto,
já que é uns dez centímetros mais baixa que eu, e tenho um e noventa de altura.
— O cliente. — Inclinando-se levemente para frente, sussurra: — Digo apenas o que ele
me faz sentir.
Gosto de mulheres que sabem o que querem e vão atrás sem se importar com a opinião
alheia. Isso mostra que são seguras, experientes, independentes e não precisam da aprovação
masculina para se sentirem bem consigo mesmas.
Beijos, carícias,
sacanagens, penetração,
orgasmo, saco vazio e
tchau.
Cada um para um canto. Vamos para a próxima da fila.
— Tudo isso é
saudade?
— Onde você
está? — A
irritação dele me
alcança rápido.
— Graças a Deus.
Já estava
preocupado.
— Com o quê?
— Estava
ocupado.
— Conseguiu
alguma coisa?
— JC não matou
Antônia.
— Como você
sabe?
— Descobri
quem matou.
— Quem foi?
— O noivo dela,
Daniel
Bonavides.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Provas?
— Físicas, não.
— Não vou
incriminar
ninguém.
— Ficou louco,
porra!?
— Encerrar o
caso.
— Como
pretende encerrar
o caso se não tem
provas?
— Vou encerrar
do meu jeito.
— Não!
— Sim.
— Se fizer isso
vai acabar com a
sua vida.
— Se não fizer
outras mulheres
vão morrer.
— Ainda não
estou voltando
pra casa — falo
sem pausa.
— Para onde
você está indo?
— Não posso
dizer.
— Isso o quê?
Ou ele me matar.
Sou o último a embarcar. Ao meu lado, um homem na faixa dos cinquentas anos, vestindo
terno cinza, camisa branca e gravata vermelha, digita no seu notebook com agilidade.
A movimentação dos seus dedos estimula meu cérebro a trabalhar. Dona Narcisa não
reconheceu a chave dourada que foi encontrada na cela de JC, porém me mostrou com orgulho
as fotos da neta que João enviou para ela.
A imagem era péssima e por ser colorida não dava para ver o rosto de Elisa claramente,
mas fui obrigado a concordar com dona Narcisa. A garota não tem nenhum traço do pai. Nada.
Ela tem a pele clara, quase pálida, grandes olhos castanho-claros, cabelo um tom mais escuro
que os olhos e lábios que se destacam no rosto miúdo por serem muito, muito carnudos.
Agora entendo porque ele assumiu a paternidade sem exigir o exame de DNA. João
Camargo sabia que não era o pai dela, mas queria que ela fosse sua filha.
O que seria de grande valia para Elisa, se ele tivesse ao menos registrado a menina e desse
a ela o direito de herdar seus bens.
De acordo com a rápida pesquisa que fiz antes de ir para o Marechal Cunha Machado,
aeroporto em São Luís do Maranhão, Riacho Verde é a típica cidade do interior de São Paulo
em ascensão.
Pequena, mas bem estruturada e acolhedora. O comércio é variado, a classe média alta é
predominante, oitenta por cento da população é evangélica e a comunidade se encontra
altamente envolvida em ações solidárias, promovidas pela igreja da família de Humberto
Gutierrez, homem por trás dos partidos políticos que lutam pela oportunidade de assumir a
administração da cidade.
O que me diz que se a ordem para Zebra matar JC
partiu de Riacho Verde, o pastor certamente sabe quem
foi o mandante.
É isso.
— Estou pronta
para recebê-lo,
senhor.
É, amigão, finalmente
vamos conhecer a loira do
banheiro.
Estou cansado pra caralho por conta das fodas que acumulei
nos últimos dias e preciso de algumas horas de sono para me
recuperar, ou não irei aguentar a maratona sexual que planejei para
os próximos.
Eu me levanto, equipado
com minha máscara de bom
vizinho.
— Da última vez que vi a Jurema, ela estava no
quintal com o Kevin. Não lembro se foi ontem ou
anteontem. O que aconteceu?
— Tentou o
celular? —
Claudia se
intromete.
— Você ouviu o
Rogério, ela
nunca fez isso.
Estou
preocupada.
Subo para o meu quarto com raiva e magoada. Não entendo por que ele faz essas
coisas, por que me trata desse jeito, e estou muito cansada para tentar entender.
Tiro a roupa e visto uma das camisolas velhas de Lindalva. É preta, transparente e
curta, mas gosto do tecido molinho que não pinica.
Antes de me deitar, abro a janela e olho para o céu estrelado, sentindo um aperto no
peito que não sei explicar. Minha cabeça nunca esteve tão confusa. Meu corpo jamais foi
tão exigente.
Chego à conclusão de que não estava preparada para viver a intensidade dos últimos
dias. Mesmo com todos os problemas que enfrentava em Canteiros, sabia que Lindalva
estaria me esperando quando voltasse para casa.
Ela não me ajudava em nada, só falava comigo quando estava bêbada ou drogada, e
preferia a companhia do seu cliente mais estúpido que a minha.
Hoje não tenho ninguém me esperando, sequer tenho uma casa, e o medo da solidão
só não é maior que o de me acostumar com ela.
Inspiro profundamente com os olhos fechados, antes de fazer o que há muito tempo
não faço.
Amém.
O toque, o abraço, o
carinho.
— Se é assim que
você quer, é
assim que vai
ser…
Giro a fechadura.
A calcinha umedece.
Abro a porta.
Sei que ela quer abrir, mas não abre, e sua recusa transforma minha vontade em
necessidade urgente.
O que eu estava disposto a permitir que ela me desse espontaneamente, agora irei tomar
a qualquer custo. A ratinha acaba de cometer o maior erro da sua vida e vou garantir que seja
o último.
Sussurrando derrotado, finjo desolamento para ofuscar a cólera e fazer Elisa acreditar
que tem o poder. Que a escolha é dela.
— Se é assim que você quer, é assim que vai ser. Vou me afastar e te deixar em paz.
Nem em um milhão de anos essa garota insossa se recusará a ser minha. Ela passou a
me pertencer no momento em que tocou a campainha e se ofereceu para mim.
Até agora.
— Grita! —
Mordo o mamilo
de leve para testá-
la.
— Me abraça
com as pernas. —
Meu tom
autoritário a
assusta.
Por enquanto.
— Quantos já
sentiram o gosto
dela? — Beijo
seu pescoço.
— Nenhum, seu
Dante — Elisa
fala tão baixo que
mal escuto.
Paro de me mover,
memorizando cada traço do
seu rosto jovem. Elisa faz
que não com a cabeça.
Garota tola. Perfeita.
— Não! — falo
alto, claro,
exasperada.
Seu Dante não para de me chupar nem de me
penetrar com seu dedo, mas seus olhos se levantam até os
meus.
— Você me quer
enterrado na sua
boceta, Elisa.
Apoia o outro joelho e se
curva para frente. Meu
coração dispara.
— Você me ama
como eu te amo.
— Você se deu
pra mim quando
apareceu na porta
da minha casa.
— Shh, relaxa.
Vai melhorar,
confia em mim.
— Merda! A
boceta mais
apertada que eu já
comi.
Elisa tem uma boceta que deixaria qualquer cabrunco de Morada do Sol com os quatro
pneus arriados, tombado aos pés da garota cafona.
— Eu sei que está sentindo dor, mas a primeira vez é assim mesmo — falo em seu
ouvido, girando os quadris com meu pau enterrado dentro dela.
— Quando passar, vai me implorar pra te comer como todas as vadias imploram. — Ela
fecha os olhos.
Escorrego para fora e acomodo a grossura entre os lábios da sua boceta, congelando por
alguns segundos ao notar a gosma vermelha encapando meu pau.
Sangue. Dela.
E serei o único.
Nem nunca!
Levanto meu olhar para o da ratinha e acabo golpeado de novo, agora pela tristeza que
vejo nele. Enxoto a merda que está à espreita, aguardando ansiosamente por um mísero
vacilo para atrapalhar meus planos, e foco no que realmente importa.
— Me abraça —
ordeno, roçando
minha rola em
seu clitóris.
— Eu vou… —
Sua voz falha.
— Goza, putinha
— incentivo,
maravilhado com
o seu gosto.
— Não, seu
Dante!
Entro e saio
Forte, fundo.
— Sim! Sim!
Dentro e fora.
— Implora,
putinha.
Rápido, duro.
— Por favor… —
Prendo o grelinho
entre meus dedos.
Empurro e enterro.
— Por favor, o
quê?
Um invejável mentiroso,
esse sou eu.
Já estou acordada encarando o teto quando o despertador
toca.
Sinto uma forte ardência no meio das pernas, assim que me levanto para ir ao
banheiro. Meus seios fritam sob a ducha morna.
A sensação de ter sido usada e descartada após o uso, só não me abate totalmente
por conta do que seu Dante fez depois de ter me penetrado, mesmo sabendo que eu não
queria.
Ele disse a verdade ao afirmar que quando a dor passasse eu iria gostar de tê-lo
dentro de mim, e fez questão de provar na prática que a sua teoria estava correta.
De fato, eu gostei.
Ainda assim, preferir fingir que dormia apenas para não ter que perguntar o motivo
de ele ir embora sem sequer se despedir, com medo de saber a resposta, alimenta a dúvida
que se enraizou na minha cabeça.
Pois nada do que seu Dante fez combinava com o que vi no brilho do seu olhar,
desde que abri a porta do quarto e permiti que ele entrasse. No entanto, não posso
descartar a outra alternativa, mesmo que embrulhe meu estômago.
Será que tudo não passou de uma grande mentira só para me convencer a deitar
com ele?
Saio do quarto me
perguntando onde seu
Dante passou a noite.
Burra!
Seu Dante sabia que dona Laura não nos ouviria e
voltou para o seu quarto para ela não desconfiar de nada,
caso acordasse no meio da noite e não encontrasse o
marido na cama.
Em compensação, Lindalva
amou apenas uma vez na
vida.
Oito e meia.
Ela olha por sobre o ombro de cara feia, mas abre um sorriso
quando me vê. Espero que seja mais simpática que a atendente que
fez meu check- in ontem à noite, e não se importe de compartilhar
algumas informações sobre os moradores de Riacho Verde.
— Juliano, prazer. —
Estendo a mão, que ela
segura sem hesitar.
— Minha mãe é fã da
Marilyn Monroe.
— Combina com
você. — Aponto
para o seu cabelo
loiro.
— Devo me
preocupar? —
Ergo uma
sobrancelha,
preocupado.
Marilyn se inclina para frente, me dando uma bela
visão dos seus peitos. Aprecio como qualquer homem que
gosta de imaginar como eles ficariam ótimos na minha
boca enquanto ela cavalga no meu pau segurando na
cabeceira da cama.
— Só se estiver
escondendo
alguma coisa.
— Então está a
salvo.
— Vou confiar
em você. —
Pisco um olho.
— O que eu vou
ganhar em troca?
— Depende. O
que você quer?
— Eu te ajudo
com a pesquisa e
você me leva para
jantar.
— Fechado —
falo prontamente.
— Posso te
contar um
segredo? — Imito
seu tom de voz.
Ela assente.
— Eu te levaria para jantar mesmo se não me
ajudasse.
— A influência
da fé na vida das
pessoas.
— Você vai
encontrar tudo
que precisa na
igreja Alvorada.
— Não.
— Uau! O que
mais pode me
falar sobre o
pastor?
Tiro meu bloco de notas do bolso traseiro da calça e
faço várias anotações, à medida que Marilyn desembesta
a falar.
— Elisa Soares.
— A senhora agendou?
— Não.
— Só um minuto.
A mal-educada tira o telefone do gancho, disca o número zero e fala baixinho com a
pessoa do outro lado da linha por alguns segundos, antes de desligar.
Fico esperando que se desculpe ou pelo menos me diga se poderei fazer os exames,
mas ela apenas digita depressa, me entrega uma folha que imprimiu e resmunga sem me
encarar:
— Segundo andar, primeira sala à esquerda. A Rô já
está esperando a senhora.
— Ah, caramba!
Não vi você. Me
desculpa.
— Comecei há
pouco tempo.
Estou no período
de experiência.
Kevin gargalha.
— O que você
faz?
— Nada. Bobeira
minha.
— Não está
sabendo?
— Sabendo o
quê? — Franzo a
testa, confusa.
— Amante?
— Um
empreiteiro de
Água Santa cheio
da grana.
— Você acha que
ela fugiu?
Seu Dante.
Envio a segunda mensagem para o meu contato. Novamente ele visualiza, mas não
responde. Decido esperar dez minutos.
Se ele não aparecer, terei que encontrar outra maneira de descobrir mais detalhes sobre a
família e os amigos do pastor.
Não importa quanto tempo demore, dessa vez nada vai me impedir de ir até o fim e fazer
o assassino de Sabrina pagar o preço justo, não apenas por tudo que me tirou quando matou
minha namorada, mas por todas as vidas que ele arruinou.
Quero que ele sofra muito mais do que suas vítimas sofreram.
Destravo a porta para um cara de no máximo vinte anos entrar no carro, afobado.
— Foi mal. Tive um imprevisto quando estava descendo — ele diz, enquanto tira o jaleco
branco. — Cadê a maconha?
— Como eu vou
entrar?
— Meu negócio é
outro, brother.
— É o que todos
dizem antes da
primeira consulta.
— Experiência
própria? —
Arqueio as
sobrancelhas.
— Meu negócio é
outro, brother.
— Já saquei. —
Aponto o
indicador para o
seu pé. — O seu
negócio
está embaixo do banco.
— Minha mãe
morreu. — Meu
divertimento
evapora.
— Sinto muito.
— Foi a
namorada do meu
pai que bordou.
— É batizada!
Garoto esperto.
— Se está dizendo. —
Finjo desentendimento. De
repente ele congela.
— Como você
conseguiu dez
quilos de
maconha
batizada?
— Informação
confidencial.
— Você é
policial?
— Não.
— Tá trabalhando
disfarçado?
— Não.
— Delegado?
— Não.
— Detetive?
— Que diferença
faz o que eu
faço?
— Toda, porra!
— Se eu quisesse
te enquadrar, não
precisava vir até
aqui.
— Por quê?
— Nós
conversamos pelo
chat do site,
esqueceu?
— Você gravou a
conversa?
— Cada palavra.
— Impossível,
até que alguém
faça.
— Nada.
Esquece.
— Tem certeza?
— Tenho. Preciso
ir.
— Aonde você
vai?
— Encontrar meu
pai.
— E o seu
trabalho?
— O diretor sabe
o que está
rolando e me
liberou por duas
horas.
— As minhas
duas horas.
— Quer uma
carona? —
ofereço, quando
Kevin abre a
porta.
— No fim da semana.
— Quer desistir?
— Confio, meu
anjo.
— Dan… —
choramingou,
doida para ser
fodida.
— Vou te dar o
que você quer,
mas do jeito que
eu quero.
Tônia gritou.
Os gritos, as lágrimas, os
pedidos de socorro.
A pele destroçada, o
sangue, a esperança se
esvaindo. Pequenas partes
de um todo, que saudavam
a morte.
Contornei o outro mamilo, fodendo sua xoxota mais
forte. Martelei o segundo prego, perfurando seu peito
ainda mais fundo, e gozei com o corpo da cobaia se
estrebuchando sobre a mesa.
Um garçom da selvageria,
esse era eu.
Porra!
Descartando a roupa
encharcada no cesto, me
encaro no espelho.
Primeiro problema
resolvido.
Segundo problema
resolvido.
A tentação é grande. O
desejo malditamente maior.
Terceiro problema
resolvido.
Só faltam dois.
Como Kevin falou, a recepcionista
preenche a minha ficha.
— A paciente
informou que ela
tinha autorizado?
Mulher arrogante da
porra!
— Informou —
admite a
contragosto.
— Antes ou
depois de você
ligar?
— Antes.
O homem está por um triz de dar uns cascudos nela,
e eu o entendo perfeitamente, já que também estou.
— Mesmo assim
você ligou. — É
uma acusação,
não uma
pergunta.
— Como você
chegou à essa
conclusão?
A postura, o sorriso, as
roupas. Tudo na medida
certa.
Claudia Botelho.
Bingo!
Quando olho para cima, tudo que me vem à cabeça é a única lembrança que tenho de
estar sentada no colo da minha mãe, no alpendre da nossa casa admirando as estrelas.
O mar.
— Você está bem? — O homem pergunta, afrouxando o aperto dos seus braços em
volta de mim.
Sou grata por ele não me soltar, porque minhas pernas estão bambas e certamente
iria cair de bunda, de novo.
— Não parece. Do jeito que quase me atropelou pensei que tinha visto um fantasma.
Arregalo os olhos.
A ginecologista.
Empurro o homem, me viro para fechar a porta o mais rápido que consigo e encosto
as costas nela, com a respiração alterada.
Levo a mão ao peito para me acalmar, mas a
maneira como ele franze a testa e me encara, como se
pudesse ler meus pensamentos, me deixa mais nervosa.
— Você está
fugindo de
alguém?
— Não.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Não minta.
— Se escondendo
de quem?
— Da médica. —
Não me atrevo a
levantar a cabeça.
— Que médica?
— Ginecologista. — Ele dá uma risadinha. Minhas
bochechas esquentam.
A diversão se foi.
— Eu me escondi
antes de ela
forçar — admito,
envergonhada.
— Um exame.
— Elisa?
— Sua sala? — O
homem e eu
falamos ao
mesmo tempo.
O desaparecimento de
Jurema, por exemplo.
Mas então a amiga de Kevin que, por acaso tem o mesmo nome
da filha de João Camargo, diz que precisa falar com a enfermeira e
logo em seguida chama a fulana de Rosângela.
— Tá me
ouvindo, brother?
— Kevin sacode
meu braço.
— O quê? —
Pisco, atordoado.
—
Que papo é esse que a Elisa estavase escondendo da
ginecologista?
Ele dá um sorriso
desdenhoso, cruzando os
braços sobre o peito.
— É sério?
— Ela é
empregada da
minha vizinha.
— Quem é a sua
vizinha?
— Laura
Gutierrez, filha
do pastor
Humberto.
— Qual o
sobrenome da
Elisa?
— Não sei.
Merda!
Coincidência? Improvável.
Elisa não viria justamente para Riacho Verde
semanas após a morte do pai dela.
Destino? Não.
Um comentário de Elisa
vem à minha cabeça.
— Onde fica a
escola que você
indicou pra ela?
Péssima ideia.
— Getúlio! —
Uma mulher
berra, acredito
que seja a mãe.
— Prazer, sou o
Juliano, salvador
de garotinhos
atentados.
— Prazer. Sou a
Elisa.
Ele teria pagado pelo serviço, se soubesse o que está prestes a acontecer com a minha
psicóloga.
Às nove e cinco, Claudia estaciona seu ix-35 ao lado do meu, abaixa o vidro do
passageiro e seu inclina sobre o banco.
— Para onde nós vamos? — Sua expressão é um misto de euforia e medo. A vadia está
eufórica para ser fodida de todas as formas, mas com medo da sua vadiagem ser descoberta.
— Tenho o lugar perfeito esperando por nós. É melhor deixar seu carro aqui e vir
comigo.
— Eu prefiro ir te seguindo.
— Eu prefiro que você chupe meu pau enquanto dirijo até lá. — Dou um sorriso de lado
e pronto.
Dois minutos depois, Claudia está sentada ao meu lado, vestindo um dos terninhos
elegantes que ela usa para atender seus pacientes.
Pego a estrada em direção à Pedra Santa. Não é o caminho mais rápido até o casarão,
porém quero que ela pense que estamos saindo de Riacho Verde.
— Eu amo a
Laura.
— Se eu sou uma
puta, sua esposa
também é.
— Do que está
falando?
— Você não
sabe?
— A Laura me
disse que você
sabia.
— Sabia o quê?
— Vinte e dois.
— Está se
divertindo,
Dante?
O estalo da pancada se
funde ao grito de dor que
ela dá.
Com vida.
Ainda.
Muito menos que quem iria impedir a tragédia seria o homem que há pouco estava
na sala do Kevin.
Os gritos desesperados da mãe me levaram para a rua no exato momento em que ele
saltou no ar e pegou o menino, tirando-o da mira do carro. Os dois caíram no chão e
saíram rolando até o outro lado.
Eu não queria olhar, mas foi impossível desviar os olhos do homem enorme, mais
alto e mais forte que seu Dante, esfolando o corpo no asfalto para proteger o garotinho
como se fosse seu filho.
Mas nada do que senti se compara ao que sinto no momento em que ele se levanta,
creio que para ir embora, e me vê na calçada.
Desafogo, felicidade, gratidão e mais alguma coisa que não sei o que é, tudo ao
mesmo tempo.
Levo a mão ao meu peito, afundada no mar dos seus olhos, tão intensos, sinceros,
tristes, zangados, que suavizam quando ele me oferece a mão como um bote salva-vidas e
eu a seguro com a minha sem titubear.
— Voltar para
casa.
— Não ia nem se despedir? — Seu olhar estreita,
porém sua mão continua no mesmo lugar.
— Só estava
sendo educado.
— Se fosse
comigo, eu
também seria
educada.
Dou risada.
— Não, mas
gostaria se fosse
um bando de
homens.
— Isso não tem
graça. — Ele faz
cara de bravo. Eu
rio ainda mais.
— Tem para
mim.
— Estou, mas se
preferir posso te
obrigar.
— Você tem
namorado?
Digo a verdade:
— Eu tinha. Não
tenho mais.
— Minha mãe
dizia que o amor
é para sempre,
mesmo quando
acaba.
— Forço um sorriso amigável. — Tenho certeza que ela
também é apaixonada por você.
— A influência da fé na
vida das pessoas. Laura
arqueia as sobrancelhas.
— Você já tem
alguma
referência?
— Eu posso
apresentá-lo ao
pastor, se quiser.
Apoio os cotovelos na mesa, parecendo mais
empolgado do que realmente me sinto.
— Seria ótimo! O
que você sabe
sobre ele?
— Tudo.
— Eu ser filha do
pastor?
— Essa pesquisa
é muito
importante pra
você?
— A mais
importante de
todas — digo
sério.
— Desafio profissional?
Nego com a cabeça.
— Realização pessoal — respondo com
determinação e encaro Laura com frieza para que ela
saiba que não é uma brincadeira, porém sua neutralidade
deixa claro que sequer notou.
— O que tem de
diferente agora?
— Seu marido
não fica
enciumado por
você almoçar
comigo?
— Dante não
sente ciúme.
— Ciúme faz
parte do amor.
Meu marido não
me ama.
— Dante gosta de
mim, mas ainda é
apaixonado pela
ex noiva.
— Você se
arrepende de ter
se casado?
— Não. Sempre quis me casar. — Ela olha para os
lados. — Me arrependo de ter me casado com o Dante.
— Já conversou
com o seu
marido?
— O que eu
poderia falar, se
desde o começo
ele foi honesto?
— Me sinto
sozinha,
vulnerável e
cometo erros.
— Que tipo de
erros?
— Eu não sabia
que viria. Alguma
notícia da
Jurema?
— Ele saiu da
cidade e não pôde
me acompanhar.
— Você não
devia ter ido
sozinho. Por que
não me ligou?
— O que vai
fazer hoje à
noite?
— Tenho uma
reunião do
Conselho. — Ele
faz uma careta.
— Alguma coisa
séria?
— A namorada
dele desapareceu.
— Há quanto
tempo ela está
desaparecida?
— Três dias, se
não me engano.
— Por que o
delegado não
acredita nele?
— Não acredito,
mas também não
duvido.
— Você sabe de
alguma coisa que
ninguém sabe?
— Está
perguntando se já
vi a Jurema com
outro homem?
— Viu?
— Não.
Dois trunfos.
Além de foder Celeste no lugar sagrado para o
pastor, vou garantir que minha esposa e meu sogro
saibam que se não fizerem o que eu mandar, o mundo vai
ter uma bela amostra que além de vagabunda, a velha
também é uma cadela submissa e se submete até a
degradação, para purificar a alma com o leite sagrado do
genro.
— Posso ajudá-
lo? — A
vendedora
pergunta ao meu
lado.
— Ainda estou
decidindo —
respondo sem
olhar para ela.
— Quantos quilos
o seu cachorro
pesa?
— Quê?
— Dela — a
corrijo. —
Celeste.
— O senhor sabe
a raça?
— Buldogue
inglês —
respondo,
convicto.
Com certeza a velha seria
um buldogue.
Azul-marinho.
— Está linda,
Celeste. — Meu
elogio suaviza
sua tensão.
— Obrigada,
Dante. — Seus
olhos passeiam
pelo corpo.
Velha tarada.
— Humberto está
preocupado com o Rogério.
Mais um motivo para
providenciar outro vídeo.
— Foi isso que ele disse? — Paro à sua frente,
estendo o braço e torço o bico do seio por cima da roupa.
Celeste ofega.
— Foi.
— Você
acreditou?
— Eu…
— Não minta —
brado
entredentes,
apertando mais
forte.
— Dante…
— Não sei.
— Eu…
— Eu já vi!
— Já viu o quê?
— O que você
falou? —
pergunta, secando
o rosto com a
mão.
— Eu falei pra
vir aqui. —
Desabotoo a
calça,
sustentando seu
olhar.
— De quatro. — Abro o zíper. — Hoje você vai ser
minha cachorra. — Seguro meu pau mole. — Eu serei
seu adestrador.
— Tira a roupa,
sem se levantar
— determino,
frio, autoritário.
— Vamos
passear, sogrinha.
Eu estava lá e vi a
admiração nos olhos dele.
De jeito nenhum.
— Quer me matar
do coração?
— Assim como?
— Chato.
— Sempre, Elisa
— seu Rogério
responde pelo
filho, se
aproximando.
— Uns dias mais, outros menos. Mas a chatice
está no DNA desse garoto.
— Para de
queimar meu
filme, pai.
— Claro, seu
Rogério.
— Avisa a Laura que eu
preciso falar com ela? Meu
sorriso se desfaz.
— Ela não está
em casa.
— Ainda não
chegou?
— Não, senhor.
— O almoço
deve ter sido bom
— fala baixinho.
— Que almoço?
— Kevin
pergunta.
Assinto, em silêncio.
— Até, seu
Rogério.
— Mudando de
assunto, o que a
Ludmila falou pra
você?
— Como a Laura
soube?
— Eu não queria
que ela perdesse
o emprego.
— Não está
chateada?
— O Juliano
também foi lá na
escola atrás você.
— Não gosto
desse cara —
Kevin resmunga
baixinho.
— Por quê?
Afastando-me, dou um
sorriso pequeno para
Kevin.
— Obrigada. Se
tiver notícia da
Jurema, me avisa.
— Boa noite,
Elisa.
— Boa noite,
Kevin.
Dou a volta no quintal para deixar o balde na
lavanderia e guardar os pregadores na cestinha. Estou
desamarrando o avental quando sou arremessada para
frente.
— Eu não quero
ir morar com o
senhor.
— Você me ama,
não ama, Elisa?
— Ele grunhe na
minha boca.
Estou mortificada, sem saber o que fazer ou dizer. A
dor nas costas é surreal de tão intensa, mas não consigo
me soltar. Seu Dante envolve minha garganta com a mão
livre e aperta, aperta, aperta.
Eu engasgo, sufoco.
— Última
chance. Você me
ama?
A luz se apaga.
Saio do terceiro salão da famosa Alvorada atrás de Laura, abobalhado com a grandeza e o
requinte do lugar, que está longe de ser uma igreja. O último espaço que faltava para eu
conhecer é destinado ao encontro de jovens, às quartas, reuniões com a equipe de limpeza, às
sextas, e ensaio do coral infantil, aos sábados.
Por tudo que Laura me contou, chego à conclusão que Alvorada é um comércio religioso
onde pessoas vendem esperança para os que acreditam que estão em dívida com Deus e o
pagamento não precisa ser, exclusivamente, em dinheiro.
Prestação de serviços, lealdade, cumplicidade, troca de favores, tanto faz. O que cada um
tiver a oferecer. Para Humberto Gutierrez, desperdício é o oitavo pecado capital. O maior de
todos.
A filosofia de ajudar o pobre para roubar sua fortuna quando estiver rico, funciona por
aqui para ambos os lados. É admirável e desprezível ao mesmo tempo.
— Vem, vou te mostrar onde ficam os arquivos — Laura fala por sobre o ombro, pisca um
olho e segue rebolando.
Onde eu estava com a cabeça para acreditar que era uma boa ideia passar algumas horas
com essa mulher, ainda é uma incógnita. Desde que chegamos, ela não deu uma trégua. A todo
o momento me tocando, se insinuando, se fingindo de preocupada, se vitimizando.
Tenho que encontrar outro caminho para chegar ao pastor, ou ela vai me meter em uma
grande enrascada.
Caminhamos pelo corredor mal iluminado até uma
porta envernizada. Laura a abre, mas em vez de avançar,
encosta as costas na madeira acenando com a cabeça para
que eu entre primeiro.
Merda!
A investigação. O
assassino.
Elisa.
Pensar na filha de João Camargo é a gota que faltava
para transbordar meu copo de moralista. Eu me afasto
bruscamente de Laura, que arregala os olhos.
— Por que
parou?
— Não estou
mais a fim —
digo sem vacilar.
— Reação física
de qualquer
homem sem
problema de
ereção.
— Oi, Rogério.
— Por que
mentiu?
— Gosto de me
exibir.
— Mentindo?
Laura termina de ajeitar a blusa, pendura a alça da
bolsa no ombro e para à minha frente. Seus olhos
trancados nos meus.
— Não tem o
direito de me
julgar.
— Você disse
desmaiada?
— Elisa foi
estuprada dentro
da sua casa e
você não fez
nada?
— Quem garante
que foi estupro?
— Quem garante
que não foi?
— Sinto cheiro de vagabunda a quilômetros de
distância, Juliano. Elisa se aproveitou da minha confiança
e levou algum vagabundo para dentro da minha casa
enquanto eu estava dormindo.
— Porque não
como comida
estragada.
— Vantagens do interior.
— Dante deve ter saído, o carro dele não está na garagem. A Laura
disse que ia jantar com o amiguinho e não tinha hora para voltar. — Kevin
faz cara de sonso. — Conhece o amiguinho dela?
— E a Elisa?
— O que tem ela?
— Também saiu?
— Várias coisas,
mas nada que seja
da sua conta.
— Ainda bem,
por quê?
Folgado. Babaca.
Provocador. Um tremendo
idiota. Eu sei.
— Só se admitir
que está com
ciúme.
— Fui claro? —
Piso com mais
força.
— Tá bom. Tá
bom. Já entendi.
Estendo a mão para ele, que aceita sem pestanejar e
o ajudo a ficar de pé. Voltamos a nos debruçar no muro,
um ao lado do outro.
— Se você tá a
fim da Elisa, por
que pegou a
Laura?
— Não estou a
fim da Elisa e não
peguei a Laura.
— Aquela mulher
é uma cobra
venenosa.
— O que você
sabe sobre o faz-
tudo?
— Por quê? —
pergunto, certo de
que não vou
gostar da
resposta.
— Porque o pai
dela está vivo.
— Quem te falou
isso. —
Desconfiança
banha cada
palavra.
— A Elisa.
— O que ela
disse? — Franzo
a testa.
— Que o Dante é o melhor amigo do pai dela. —
Kevin completa, antes que eu conteste sua afirmação. —
Se o velho estivesse morto, Elisa teria dito que o Dante
era o melhor amigo do pai.
Dispenso a observação gramatical do garoto, pois
nem sempre falamos tão certinho quanto escrevemos, e
foco na parte relevante da afirmação de Elisa.
“Encontrei a vagabunda
desmaiada, nua, cheirando
a esperma” “Meu marido
odeia aquela menina com
todas as forças”
Noivo da Antônia, capataz
na fazenda do Coronel
Venceslau. Marido da
Laura, faz-tudo da cidade.
Meus olhos recaem sobre a
casa ao lado, escura,
silenciosa.
Ela é mais leve que meu cortador de gramas, mas apoio o outro
joelho no chão para não me cansar. A cabeça tombada para trás, os
braços ao lado do corpo, as pernas abertas.
Elisa é minha.
Preciso foder.
Eu amo a ratinha.
Fecho os olhos, giro os
quadris.
Para sempre.
De todos os tipos.
Seja dormir a ponto de babar, enquanto seu pai prega
o sermão do culto de Natal, no ginásio de esportes para
mais de dois mil fiéis. Cair de cara na entrada de um
evento de gala em Brasília, vomitar durante um jantar na
Câmara Municipal, ou esquecer de deletar o e-mail em
que ela oferece propina ao diretor financeiro da
Construtora, para que ele não denuncie o desvio de
dinheiro que ela mesma havia feito, mas foi descoberta
porque também esqueceu de apagar seus rastros.
Foda-se!
Um homem meticuloso,
esse sou eu.
Estou enjoada, cansada e sem forças, até para abrir os
olhos.
Meu corpo pesa uma tonelada. Alguma coisa se revira no meu estômago, se
impulsiona para cima, sobe pela garganta e alcança a boca.
Vou vomitar.
Minha primeira reação é sentar, mas não consigo. No segundo seguinte, sou
derrotada pela prostração quando tento me virar.
Um líquido quente, denso e fedido, vence o bloqueio dos meus lábios e vaza por
entre eles, molha os cantos da minha boca, meu queixo, pescoço e respinga no colo.
Busco na memória uma explicação para o que está acontecendo comigo, mas tudo
que me lembro é do mar.
Faço uma careta de nojo quando um gosto salgado se mistura ao azedume na minha
língua. O vulcão no meu estômago entra em erupção outra vez, expelindo uma onda ainda
maior do fluido podre.
Minhas mãos formigam para limpar minha pele grudenta, mas nem o dedo mindinho
acata às ordens do meu cérebro. Novamente o sal tempera a crosta amarga que cobre
minha língua, só então reconheço o gosto e entendo que são lágrimas.
Estou chorando.
Ao longe, um ruído estridente e agoniado, que nunca ouvi antes, se infiltra na minha
cabeça através dos tímpanos.
Em algum momento o
ruído cessa e o silêncio
volta a reinar.
— Valeu. — Bebo um longo gole, otimista que a cafeína continue combatendo a exaustão
e mantenha meu foco.
— Cinco.
— Que seja.
— Nada da Elisa?
— Não.
— São quase oito horas, daqui a pouco a Laura deve sair para trabalhar. Por que não fala
com ela?
— Você acredita
nela?
— Como você
sabe que eles
são?
— Caralho! É
igualzinho o
Dante, só que
vinte anos mais
novo.
— É a sua vez de
vigiar. Me avisa
se a Elisa
aparecer.
— Aonde você
vai?
— Seguir a Laura. — Pego a chave do carro e
aponto para Kevin com uma expressão intimidante. —
Cumpra a sua promessa.
— Pode confiar,
brother. Seu
segredo está
seguro comigo.
— Eu confio —
falo com
sinceridade.
Ou a minha.
A minha vingança.
Merda.
— Hora de
brincar, vadia. —
Minha voz a
desperta.
Traiçoeiro, perverso.
— Sou um
homem
antiquado. Onde
nasci, até o
progresso é
atrasado.
— Desabotoo a calça e abro o zíper. — A modernidade
em Morada do Sol é antiguidade nas grandes capitais. —
Abaixo o jeans, a cueca vai junto. — Mas eu gosto do
trabalho manual, do rústico. — Chuto as duas peças para
o lado. — Quero criar meu filho como eu fui criado, mas
não tenho experiência com criança, principalmente com
bebê de colo. — Tiro os alfinetes da boca dela, com meu
pau duro roçando seu clitóris de couve-flor estragada. —
Estou disposto a me preparar para ser pai, mas não vou
conseguir fazer isso sem você.
Envolvo a mão na sua nuca, abraço sua cintura e
colo o corpo pendurado da vadia no meu. Lambo seu
pescoço, chupo sua orelha, deposito beijos molhados em
seu queixo.
É impossível segurar a
gargalhada, porque porra!
Um presente da besta, em
agradecimento pelo serviço
prestado. Finalmente posso
dormir.
— Alô.
— Onde você
está?
— Não interessa.
— Precisamos
conversar.
— Qual o
problema?
— A Elisa não
dormiu em casa.
— Eu sei.
— Sei. — Meus
olhos disparam
para a garota
miúda na cama.
— Onde, Dante?
— Estou olhando
pra ela.
— O quê? —
Dou risada do seu
alarde.
Desligo o telefone,
sorrindo.
— Porque você
só faz o que quer,
independente do
que eu quero.
— Não.
Acorda, porra!
— Ela é a
próxima? —
Claudia
murmura.
— Não. Ela é
minha.
— Sua o quê?
— Nenhuma! —
ela brada,
entredentes.
— Última
chance.
Em um segundo, o bico
rosado está grudado ao
corpo da Claudia. No outro,
ele está na minha mão.
E no seguinte, atochado na
boceta dela.
Daniel Bonavides, o
primeiro, único e último
amor da sua vida.
Engulo seco quando seu Dante abaixa a boxer até o chão, a chuta para o lado e
abraça seu membro com a mão, dando início a uma carícia lenta para cima e para baixo.
— Seu pai te mostrou alguma foto da Tônia? — Sua voz é grossa e autoritária, mas
não tem mais aquele tom hostil que ele falava comigo.
Nego com a cabeça, me empenhando para manter meu foco nos seus olhos, não nos
dedos que apertam a carne grossa com força.
— Você já viu alguma foto dela? — Seu Dante murmura sem fôlego, apoiando a
mão livre ao lado do quadril, e relaxa os ombros.
Nego novamente, apertando minhas coxas. Não quero que ele saiba que está me
afetando, no entanto, pelo sorriso divertido nos seus lábios, é óbvio que sabe. E gosta de
saber.
— Tônia era a mulher mais linda da cidade. — Inclina a cabeça, com os olhos
fechados e prende o lábio inferior entre os dentes. Sua mão trabalha mais rápido.
Falho vergonhosamente.
— Ainda não
entendeu,
ratinha?
Crueldade.
Daniel Bonavides. O
melhor amigo do meu pai.
Claudia.
Por enquanto.
— Quer que eu
prove? —
Arqueio as
sobrancelhas.
— Preciso que
me dê um
parâmetro.
Ele enruga o cenho. Meu
sorriso se alarga.
— Parâmetro
para quê?
— Para eu decidir
quanto vou
cobrar pelo vídeo.
— Como quiser.
— Eu me levanto
e sigo para fora
do escritório.
— Seis? — ele
repete, chocado.
— Você dormiu
com a
empregada! —
Laura acusa.
Velho pilantra.
— Eu fiz essa
cópia para vocês.
O original está
muito bem
guardado.
— Aumento o volume, coloco o telefone na frente dele e
encosto na cadeira.
Laura se revolta.
Humberto acata.
— Eu sei. Estava esperando a Laura sair de uma casa na rua Olavo Bilac e ele apareceu
lá.
— Beleza.
— Você não comeu nada o dia todo? — pergunta o garoto, me entregando duas sacolas
de supermercado cheias.
— Comi dois sanduíches no shopping, enquanto a
Laura estava almoçando.
Acabo sorrindo.
— Aonde você
vai?
— Motivo
especial —
murmuro entre
uma mastigada e
outra.
— O quê? —
Kevin faz uma
careta engraçada.
— Não quero
falar sobre isso.
— Sobre a
preocupação da
namorada do
Rogério?
— Sobre a
namorada do meu
pai.
— Você gosta dela, é normal se preocupar com as
pessoas que gostamos.
— Não estou
preocupado. —
Ele dá de ombros
e se afasta da
janela.
— A Jurema que fique com o amante. Foda-se.
Suco de laranja.
— Não.
— Toma cuidado.
Não deixa ele
perceber que
você está
vigiando.
— Beleza. Se
precisar de mais
alguma coisa, dá
um toque.
— Obrigado.
— Me avisa se a
Elisa aparecer.
O reconhecimento me
atinge como uma granada.
Elisa.
Caio de joelhos ao lado dela e a viro com cuidado,
segurando seus ombros. Não vejo ferimentos em seu
rosto ou tronco, mas está congelando. Eu a puxo para
mim, acolhendo seu corpo com o meu numa tentativa de
aquecê-la.
Sangue.
— Dan…
— Daniel?
Se eu fosse adiante,
encontraria o esconderijo
do desgraçado.
Seria a minha grande chance de matar Daniel
Bonavides, mas a vida de Elisa é infinitamente mais
importante que a morte dele, e para protegê- la, abro mão
da minha vingança. Sem pensar duas vezes.
Meus olhos ardem, minha garganta seca, meu coração
comprime.
Mas não paro de correr.
Gravetos afiados perfuram meus pés, câimbras entortam os músculos das minhas
pernas, galhos de árvores arranham meus braços, seios e barriga. Mas não paro de
correr.
Não encontro uma trilha dentro da mata. Não sei onde estou, nem para onde estou
indo. A escuridão da noite, que antes me assustava, agora é minha confidente e sabe que
não posso parar de correr. Não olho para trás.
Põe e tira. Ela se debate, chora, implora. Põe e tira. Seu corpo convulsiona sobre a
mesa. A dor da mulher é minha. Põe e tira. O sangue que escorre dela decora o membro
dele.
Põe e tira…
A lâmina paira no ar, apontada para baixo, e desce sobre o peito da mulher se
estrebuchando, perfurando sua carne, quebrando seus ossos, roubando sua vida. A mão
do monstro invade o corpo e arranca o coração que não lhe pertence.
Mas não é o coração dela que ele exibe, pomposo, como um troféu. É o meu.
— Shi… — Sou
imobilizada por
uma camisa de
força quente e
macia.
— Calma, pequena. Acabou. Eu estou aqui e não vou
deixar ninguém te machucar.
Juliano.
— Posso usar o
banheiro? — falo
sem qualquer
emoção.
— Claro, fique à
vontade.
Sem Elisa.
Qualquer um.
— Claro. — Ele passa por mim e abre uma mala que está no chão. — Já está quase
na hora do almoço e você nem tomou café. Quando terminar de comer, vou sair pra
comprar algumas roupas pra você.
— Não precisa se preocupar com isso. — Sua voz é tranquila, mas seu olhar é
agitado.
— Faço questão. — Tiro a toalha da cabeça e pego a camisa preta que ele me
entrega, antes de entrar no banheiro para pendurá-la.
Não me importo se Juliano repara que estou fugindo. O jeito que seus olhos
admiram meu corpo mexe comigo e me faz acreditar que realmente me deseja, mas não
vou permitir que me engane novamente.
— Onde estão suas coisas? — Ele para em frente a porta aberta, me observando
enquanto desembaraço o cabelo com os dedos.
— Tenho a impressão de ter visto minha bolsa em cima de uma cômoda, mas não
sei se… — Me calo e fecho os olhos.
— Se o quê, pequena?
— Pequena?
Inspiro profundamente, e
confirmo com um meneio
de cabeça.
— Você é
pequena — Seu
tom divertido me
deixa pior.
— Aqui. — Ele
joga a peça preta,
que cai dentro da
pia.
— Não é seguro
ir até a casa da
Laura.
Franzo a testa, despejando
pasta de dente no dedo.
— Não é você
que decide. —
Esfrego a pasta
nos dentes.
— Se não tiver
medo de altura,
tenta a sorte pela
janela.
— Não pode me
prender aqui! —
Ponho as mãos na
cintura.
— Não estou te
prendendo. Estou
te protegendo.
— Eu sei. Mas
vou garantir que
o futuro dele não
seja no presídio.
— O quê?
— Daniel é um
assunto meu.
— Do que você
está falando?
— Senta. Vou te
contar tudo
enquanto você
toma café.
Órgãos ensacados.
— Vem, deixa eu
te ajudar.
— Acho
— Como você
descobriu?
— O que não
fazia sentido?
Juliano endireita os
ombros.
— O que você
está pensando,
Elisa?
— Nada.
— Mas essa é a
única, não existe
outra.
O mar é um misto de
tristeza, mágoa, dor e,
sobretudo, raiva.
Meu coração discorda de Elisa e se recusa a acreditar que Sabrina estava me traindo com
Daniel. Minha mente, no entanto, concorda com ela, pois na época considerei essa hipótese
mais vezes do que gosto de admitir.
Sabrina era doce, carinhosa e apaixonada por mim quando deixou Paraíso. Apesar da
distância, os primeiros finais de semana que passamos no apartamento foram maravilhosos.
Fazíamos tudo juntos, desde que acordávamos até a hora que íamos dormir.
Ela mudou.
Passava o tempo todo com o celular na mão, pouco falava, não prestava atenção no que eu
dizia e não perguntava nada da minha vida. Por medo, fingi não notar seu desinteresse e até sua
irritação gratuita, como se não estivesse feliz com minha presença. Como se ficar comigo fosse
uma obrigação.
Sabrina e eu tínhamos dezoito anos. Daniel é um pouco mais velho, devia ter uns vinte e
um, ou vinte e dois. Pode não parecer, mas nessa fase a diferença de idade fez toda diferença,
principalmente entre um garoto de
família e apaixonado como eu, e um homem manipulador
e doente como ele.
Porra!
— E aí, brother?
— Onde você
está? — Seu tom
sério me coloca
em alerta.
— No hotel.
— Elisa acordou?
— Acordou.
— Ela já comeu?
— Estava
comendo, mas
vomitou. Por
quê?
— Encontrou
alguma coisa?
— Encontrei, mas
não sobre ela.
— Como assim?
— Muitas
pessoas têm
anemia.
— Errado.
A maioria
das pessoas
está com
anemia. A
Elisa tem
anemia.
— Qual a
diferença?
— Como você
sabe?
— Meu professor
me ensinou.
— Que
professor?
— Dr.
Google.com.br
— A gente
quem?
— O Rogério, até
entendo. Mas por
que ele te
convidaria?
— Já confirmei
presença.
— Você contou
isso pra alguém?
— brado,
entredentes.
Porra! Porra!
— Escuta bem o
que eu vou te
falar…
Em cima dele.
— O banho
estava bom?
— Não —
respondo e me
sento na cadeira.
— Está com
medo?
— Sou ruim de
adivinhação. —
Brinco com a
colher.
— Conversar
sobre o quê?
— Meu pai.
— Por quê?
A compreensão me invade,
antes de Juliano responder:
— Daniel matou
— balbucio.
— Talvez.
— Como vamos
descobrir?
— Perguntando
pra ela.
A resposta direta me
atordoa.
— O quê?
— Fica quietinha
e escuta tudo que
eu vou te falar.
— O que quer
dizer?
— Quantos anos
você tinha?
— A primeira vez
que ela me levou,
eu tinha três.
— Talvez ele
tenha transtorno
de personalidade
múltipla.
— Lindalva não mudou de nome, mas virou outra
mulher depois que o marido dela morreu. Uma que não
amava ninguém, nem ela mesma. Se eu tivesse matado o
menino que eu amava desde a infância e visto minha
melhor amiga passar vinte anos na cadeia por minha
culpa, também ia preferir fingir que não era eu. Talvez,
pessoas como a minha mãe e o Daniel não sejam doentes.
Apenas egoístas.
— Obrigado. — Tento fechar a porta, mas ela põe o pé embaixo e a mão em cima,
impedindo o fechamento.
— Não acha esquisito o dono do hotel transferir todos os hóspedes deste andar para
outros quartos por causa de uma praga de baratas, menos você?
— Nenhuma barata passou por aqui, mas se a preocupação do seu patrão com os clientes
que pagam o seu salário está te incomodando de alguma forma, acho que deveria falar
diretamente com ele.
Marylin estica o pescoço para dentro, confirmando que não estou mentindo. Nada de
insetos.
— Você tem razão, gato. — Ela desliza a mão para baixo do decote, mostrando mais dos
peitos. — Já terminou sua pesquisa? Estou ansiosa para o nosso encontro.
Meus ombros caem em desânimo quando olho de relance na direção do banheiro e vejo a
porta entreaberta.
Merda!
A recepcionista joga o cabelo para o lado, arranha meu peito com sua unha comprida e
sorri, prendendo o lábio inferior entre os dentes.
— Não vai
comer? Está uma
delícia!
— O quê? —
Realmente não
sei do que está
falando.
— Promete?
— Prometo.
— Sobre a minha
conversa com a
Marylin…
— Não precisa
falar nada,
Juliano.
— Eu quero falar.
— Loiras
peitudas?
— Me corrija se
eu estiver
enganada.
— Não se
importa? — Ergo
uma sobrancelha.
Ela estreita os
olhos.
— Estou
satisfeita com os
meus peitos,
obrigada.
— Não, Juliano.
Não me importo.
— Porque eu
precisava de
informações
sobre o pai dela.
Ele enviou uma mensagem para ela, marcando um encontro no seu quarto de hotel
para falar sobre a identidade falsa de Dante Boaventura e a morte encomendada de João
Camargo. A resposta confirmando sua presença não demorou para ser enviada.
Laura sabia que eu estava aqui. O que minha ex patroa não sabia é que a Elisa que
chegou ao cativeiro do monstro, que ela chama de marido, não é a mesma que fugiu de
lá.
Quando Juliano se levanta para abrir a porta, fico de pé no meio do quarto. Laura
sequer o cumprimenta e marcha na minha direção.
— Isso é por transar com o meu marido! — Ela me dá um tapa na cara. Minha
cabeça vira para o lado. — Vagabunda!
Não penso na ardência que sinto na pele, na acusação dela, ou na aversão que tenho
à violência. A única coisa que vem à minha cabeça é a promessa que fiz quando acordei.
O impacto da palma da minha mão contra a face dela é tão forte, que tira Laura do
seu eixo central. Ela tomba para o lado, tropeça nos próprios pés e se desequilibra, caindo
em cima da cama.
Juliano solta um “Caralho, pequena!”. Laura apoia
as mãos no colchão, e olha para mim, descabelada,
vermelha, perplexa.
— Além de
vagabunda é
mentirosa.
— O nome dele é
Daniel, e eu fugi
do cativeiro.
— Que cativeiro?
— O que mesmo
que ele matou a
Claudia, na
minha frente.
— Me enforcou
até eu desmaiar.
— Onde você
estava quando
acordou?
— No mesmo
quarto que a
Claudia.
— Deitada na
cama?
— Sentada no
chão.
— Vocês
transaram?
— Desgraçado!
— ele brada,
passando as mãos
pelo cabelo.
— Não, pequena.
— Juliano me
abraça. — Não
pensa nisso.
— Daniel me
estuprou… —
balbucio, atônita,
enojada.
— Você vai
ajudar, Laura? —
ele pergunta num
rosnado colérico.
— Essa merda é
alguma piada pra
você? — Juliano
brada.
— Que condição?
— falo, me
afastando para
encará-la.
O meu cativeiro.
São sete da noite e Laura ainda não
voltou.
Faz mais de uma hora que piranha disse que precisava comprar
alguma merda para temperar não sei o que, e saiu quando eu estava
tomando banho.
Ciúme.
Laura chegou.
Sinto uma fisgada na nuca e esfrego a mão no local
com a mandíbula cerrada. Vou esquartejar essa piranha,
se ela estiver armando para cima de mim.
Aprendeu rápido.
— Elisa, olha pra mim. — Juliano segura minha cintura e me vira de frente para ele,
mas não consigo encarar o mar em seus olhos.
Tenho vergonha do que aquele monstro fez comigo. Ódio por ele ter feito. Medo de
ver a repulsa que sinto de mim, no olhar de Juliano.
— Por favor, pequena. — O tom apreensivo em sua voz comprime meu coração,
deixando-o ainda menor.
Abro os olhos. Uma lágrima rascunha uma trilha molhada pelo meu rosto, que
Juliano seca com o polegar.
— Bota pra fora. Fala o que está sentindo. Grita, xinga, me bate, põe esse quarto
abaixo, mas reage de alguma forma. Não guarda essa merda dentro de você. Eu tô aqui e
quero que divida seu sofrimento comigo.
Como vou dizer que estou com nojo de mim? Que me sinto imunda e não sei se
algum dia me sentirei limpa novamente?
Que quero mergulhar numa banheira com cloro, sabão, álcool e desinfetante, e só
emergir quando minha pele não tiver um único vestígio do toque do monstro?
Que odeio aquele desgraçado por ter se aproveitado da minha inconsciência, mas me
odeio mais por não perceber que havia sido drogada, por meu corpo não me alertar que
Daniel tocou onde não tinha o direito de tocar, por não acordar antes para impedir sua
violação, e ainda acreditar que ele não me machucaria?
Nego com a cabeça, passo por Juliano e vou para o
banheiro, em silêncio.
— Agradeço por
ele acreditar que
te ama.
— O que você
precisa, Elisa?
Que o seu toque limpe o dele. Que a sua boca me
faça esquecer o que ele fez. É isso que eu quero. É tudo
que eu quero.
— O que você
precisa, Elisa?
Até na minha fase mais rebelde, depois que meu pai morreu, nunca deixei de acreditar,
mesmo que não quisesse ou dissesse que não acreditava.
Não me orgulho das merdas que fiz, mas no auge dos meus quarenta anos, sei que é
totalmente compreensível um cara jovem se revoltar por ver o homem que ele mais ama e
admira, preparando ovos mexidos num minuto, e caído no chão sem respirar no outro.
Meu pai morreu na minha frente sem que eu pudesse fazer nada para salvar a vida dele, e
o resultado foram alguns anos de atitudes inconsequentes que geraram mais dor e sofrimento
que qualquer outra coisa. Tanto para mim, quanto para minha mãe e irmã.
Quando Elisa entrou na sala do Kevin, não entendi o que senti, tampouco me preocupei
em entender. Mas estava lá, fazendo meu sangue correr mais rápido, meu coração bater mais
forte.
Na porta da escola foi ainda mais intenso, mais real. Então Laura chegou e o meu desejo
de vingança falou mais alto. Fiz merda e poderia ter feito muito mais, se não fosse a vozinha na
minha cabeça, alertando que o prazer passageiro não valeria a pena no final.
Quando segui Daniel e encontrei Elisa no meio do mato, acabou para mim. Eu sabia que
tinha perdido a batalha, e o motivo que me manteve vivo nos últimos vinte anos, deixou de ser
a minha prioridade.
Óbvio que ainda quero matar o filho da puta, agora até mais do que antes, mas não para
vingar a morte da minha ex-namorada, e sim, para proteger a vida da Elisa.
No instante em que a Laura entrou no quarto e partiu para cima dela como se fosse a dona
do mundo, tive um pequeno vislumbre da mulher que
eu não conhecia, nem acreditei que existisse por trás da
aparência pequena e frágil, da que estava fugindo da
ginecologista.
— Sim!
— Chamou meu
nome?
— Sim! — Sua
voz é uma
mistura de
súplica e
lamentação.
— Quer montar
no meu pau?
— Sim.
— Me põe onde
você quer.
— É muito
grande, Juliano.
— Porra,
pequena!
— Não.
— Tem certeza?
O jantar, a provocação, o
vinho, a água.
E muito mais.
Encosto as costas na
parede, ao lado da porta.
— Grand Royale,
boa tarde. Em
que posso servi-
lo?
— Vocês têm
quartos
disponíveis?
— Solteiro, duplo
ou triplo?
— Solteiro.
— Um minuto,
por gentileza.
— Sim, mas se o
senhor…
Encerro a ligação,
esmagando o celular entre
meus dedos.
Juliano dorme ao meu lado de barriga para cima. Apoio os cotovelos para apreciar o
homem lindo, carinhoso, generoso e grande.
Muito grande.
Lindalva reclamava dos homens com membros avantajados que não sabiam usá-los
e dizia que preferia os menores com habilidades manuais e linguísticas.
Eu não entendia o que ela queria dizer, mas agora entendo e torço para que minha
mãe tenha visto o que Juliano fez com sua língua, seus dedos e seu… pau.
O lençol branco e fino, cobre apenas uma parte do corpo dele da cintura para baixo.
A ponta do joelho dobrado toca a minha perna, a coxa grossa, as duas bolas e o membro
flácido, descansando sobre os pelos pretos me assanham.
Quando Juliano tirou a roupa e começou a se masturbar, não consegui tirar os olhos
dele, acompanhando os movimentos da sua mão subindo e descendo em torno da carne
tão dura e, ao mesmo tempo, tão macia.
Pensei que fosse me machucar, mas fiz o que Juliano mandou e desci devagarzinho.
Conforme escorregava, ele me alargava, preenchia, me completava. Não sou capaz de
descrever o prazer que senti ao ter seu membro inteiro dentro de mim.
Juliano tinha razão, naquele momento tudo que eu queria era que ele nunca mais
saísse.
— Gosta do que vê? — A voz rouca e sonolenta faz
minhas bochechas esquentarem. Ele joga o lençol para o
chão, coloca uma mão embaixo da cabeça e acaricia
minhas costas com a outra. — Não precisa ter vergonha
de me tocar, se é isso que você quer fazer. Sou todo seu,
pequena.
— Tem certeza?
É intimidade, confiança.
— Não.
— Estou louco
pra gozar,
pequena. Mas
quero que venha
comigo.
— Vou gozar —
murmuro,
desorientada.
— Sua boceta tá
me
estrangulando!
Que delícia,
porra!
— Juliano…
— Elisa…
— Isso foi…
— Perfeito — Juliano
completa, ofegante. Eu
sorrio, penteando seu
cabelo para trás.
— Perfeito pra
caramba.
— O que ela fez?
— pergunto e me
sento para tomar
café.
— Não é
perigoso ele ficar
lá?
— A Laura garantiu que colocou remédio suficiente
pro Daniel dormir por dois dias.
— E agora?
— E a Claudia?
Franzo a testa.
— Meus exames?
— Sentiu
saudade, ratinha?
Crueldade.
Foi o que vi no seu olhar no cativeiro, é o que vejo
nesse exato momento. Crueldade em sua essência mais
crua e impiedosa.
Um monstro cruel.
Arregalo os olhos,
impossibilitada de gritar,
sequer de falar.
— Minha! Você.
É. Minha. —
Pontua, com o
olhar negro fixo
no
meu.
Ele solta meus braços e com um único movimento,
desce rasgando a camisa de Juliano até a altura da
barriga.
— Cadê o
desgraçado que
quer pegar o que
é meu?
— Se quiser que
eu saia, vai ter
que me tirar.
Fiquei encarando os números separados por barras, sem acreditar que havia me esquecido
que dia é hoje, menos ainda na coincidência inacreditável que tornava aquela merda surreal de
tão macabra.
A diferença é que vinte e anos atrás, nessa mesma data, Maria Antônia Junqueira foi
encontrada morta na fazenda da sua família, e João Camargo conduzido ao hospital entre a vida
e a morte.
Justo hoje!
É o que me vem à cabeça quando entro correndo no hotel, depois que Kevin me ligou para
avisar que Daniel saiu de casa e deixou Laura caída em uma poça de sangue, toda deformada,
na sala de estar.
Ele não agrediria a esposa daquela forma se não tivesse descoberto que Elisa está
escondida a menos de dois quilômetros da sua casa. Justo hoje.
Mandei Kevin ir atrás de Humberto, com recomendações específicas para ele dar um jeito
de convencer o dono do hotel a restringir o acesso ao andar do meu quarto, e enviar alguém da
sua confiança para limpar a bagunça que o marido da sua filha iria deixar, sem mencionar o
nome da Elisa ou o meu.
Caso contrário, os vídeos da esposa dele estarão na internet até o fim do dia. Justo hoje.
Como o pastor irá resolver, quantos bolsos ele terá que encher ou quantos favores ficará
devendo, pouco me importa.
Quero apenas ter certeza de que quando eu acabar
com Daniel Bonavides, o mistério acerca da morte do faz-
tudo de Riacho Verde não se torne outro remendo mal
costurado do passado.
— Estou aqui,
seu filho da puta!
Vítima, testemunha ou
criminoso.
Justo hoje.
Destino de merda!
Justo hoje.
E nunca mais.
Morada do Sol – Rio Grande do Norte
Uma semana depois…
— Confio.
— É impossível
não gostar de
você, pequena.
— Eu volto mais
tarde pra me
despedir de
vocês.
— O senhor sabe
me dizer se é da
Antônia?
— Por quê?
— O senhor sabia
quem ele era. —
Não é uma
pergunta.
— O senhor não
fez nada?
— Matou e
enganou todo
mundo. Ele tinha
quinze anos.
— O senhor
contou pra sua
filha?
— Quem você
acha que mandou
eu ir até lá falar
com o homem?
— Antônia sabia?
— Desde o
começo.
— Mesmo assim
ela ficou com
ele?
Eu ri do seu conselho,
claro. Mas aceitei sem nem
pestanejar.