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Catarse (purificação ou purgação da alma)

Segundo Aristóteles, a catarse possibilitava que os


temores pudessem ser transferidos ao herói da tragédia,
ideia que, muito mais tarde, veio formar uma das teses
da psicanálise e da terapia do jogo

O conceito de catarse é central para a arte, pois talvez ele seja um divisor de
águas entre o que seja arte e o que seja puro entretenimento. Aquilo que é
catártico mexe com o espectador, transforma-o, e por isso mesmo permanece
além do seu tempo e ultrapassa seu espaço. As tragédias de Shakespeare, por
exemplo, são referências até hoje pela capacidade que elas têm de emocionar,
de criar essa purificação.

Por definição, catarse refere-se à purificação das almas por meio de uma
descarga emocional provocada por um drama. É aquele choro - por vezes
convulsivo, em outras represado - que você tem no final de uma história, o
grito em determinadas cenas, a angústia que uma história desperta.

Aristóteles defendia a arte - e especialmente a tragédia - exatamente pela sua


possibilidade catártica. Segundo ele, o espectador (passivo) aprende com uma
tragédia porque ele sente internamente a dor do protagonista sem cometer os
mesmos erros dele - e levando isso como uma espécie de lição ou valor para a
vida. Quando morre um herói, morremos com ele; quando a mocinha é traída,
sofremos com ela.

A catarse trabalha com uma lógica muito usada na psicanálise para lidar com
medos: a purgação. Ao invés de esconder e reprimir o medo, os psicanalistas
acreditam que devemos tirá-lo de dentro de nós, purgando-o, assim como
antigamente as pessoas tomavam purgantes e faziam sangramentos para "tirar
a doença de dentro do corpo". Assistir a uma tragédia, sentir a tensão e o
medo seria uma forma de purgar tais sentimentos, purificando nossas almas.

Muitos anos depois Edgar Allan Poe, ao abordar o efeito como primeira
consideração para a escrita de um conto, retoma o conceito aristotélico, ainda
que o desvincule da tragédia, ampliando o conceito para outros efeitos que
não apenas o de catarse.

Uma fórmula para a catarse

O mais incrível da Poética é que Aristóteles não se limita a teorizar, ele


didaticamente mostra como se constrói a catarse, por exemplo. Segundo o
filósofo, é preciso "que o HERÓI não passe da infelicidade para a felicidade,
mas, pelo contrário, da FELICIDADE (DITA) para a INFELICIDADE (DESDITA); e
não por malvadez, mas por algum erro de uma personagem, a qual, como
dissemos, antes propenda para melhor do que para pior (esse erro chama-se
de DESMEDIDA)”.

Desmedida, nesse caso, é um erro trágico do herói, cometido por vezes


voluntariamente, por vezes involuntariamente. Édipo Rei, por exemplo, casa-se
com sua própria mãe, Jocasta, sem saber que ela era sua mãe. Essa é sua
desmedida, que o leva à desgraça. Romeu e Julieta apaixonam-se sem saber
que são de famílias rivais, e a luta por esse amor é a desmedida de ambos, que
os leva ao final trágico.

Édipo, Romeu e Julieta são exemplos de heróis trágicos

Nesta fórmula, não pode um HERÓI passar da INFELICIDADE (DESDITA) para a


FELICIDADE (DITA), pois isso não provocaria a purgação, e sim alívio. Também
não pode o VILÃO passar da FELICIDADE (DITA) para a INFELICIDADE
(DESDITA), se não o público vibraria ao invés de sentir a descarga emocional
trágica. E nem o vilão passar da INFELICIDADE (DESDITA) para a FELICIDADE
(DITA), pois isso causaria repulsa e não catarse.

O HERÓI (protagonista) passa da FELICIDADE para a INFELICIDADE por conta de


uma DESMEDIDA sua (Assistir a uma tragédia, sentir a tensão e o medo seria
uma forma de purgar tais sentimentos, purificando nossas almas).

O caso dos contos de fada da Disney

Com o passar dos anos, a sociedade passou a se sentir mais protegida, e não
faria sentido lembrar de graves dramas como mortes, assassinatos, traições,
por vezes envolvendo inclusive crianças. Talvez por isso quando Walt Disney
começou a adaptar os contos tradicionais dos irmãos Grimm, fez uma enorme
alteração no tom e nos finais. Apenas para dar um exemplo, em João e Maria
eles não se perdem na floresta: eles são deixados para morrer de fome pela
própria mãe. E não uma, mas duas vezes! Em Cinderela, as irmãs cortam
partes de seus pés para que o sapato do príncipe pudesse entrar nelas.

Com um pouco de esforço, podemos adaptar a lógica da construção da catarse


aristotélica para essas histórias tão comuns hoje em dia, com final feliz. Seria a
seguinte:

O HERÓI passa da INFELICIDADE para a FELICIDADE por conta de uma VIRTUDE


sua.

Branca de Neve é um caso exemplar: ela começa como escrava da madrasta, é


mandada para a morte, e de repente vira sua sorte ao conhecer um príncipe,
que apaixona-se pela sua beleza. O público, porém, já havia se apaixonado
por ela pela sua dedicação, delicadeza e cuidado com os animais e os
anõezinhos.

Se repararmos as narrativas contemporâneas, em muitas encontraremos uma


das duas fórmulas: ou a clássica aristotélica (O Retrato de Dorian Gray,
Werther, O Alienista) ou a renovada valorização da virtude e do final feliz
(Pinóquio, Harry Potter, histórias de heróis).

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