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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UNB

INSTITUTO DE LETRAS – IL
DEPTO. e
Disciplina: Estética LINGUÍSTICA, PORTUGUÊS E LÍNGUAS CLÁSSICAS – LIP
DELiteratura
Professor: Gabriel Pinezi
Aluna: Priscilla Haueisen Dias Ruas (170154386)

Para o filósofo, como a tragédia é uma arte mimética, ela teria a capacidade
de imitar e evocar emoções reais, tais como o medo e a compaixão (essas
emoções, inclusive, tem um papel central no movimento catártico). Assim, o
enredo trágico, com desventuras, ações nobres, sofrimento e situações de
muita dor possibilitavam que o público se identifique com essas emoções e
experimentem uma espécie de catarse.

A Catarse, na Poética, de Aristóteles, diz respeito à purificação emocional


dos espectadores ao assistirem uma peça teatral trágica.

O papel purificador da catarse se estabelece pelo fato de os espectadores


experimentarem o medo e a compaixão (principalmente) de forma indireta, já
que assistem à cena, por um lado, com um certo distanciamento e, por outro,
com identificação. Nesse sentido, a plateia é capaz de lidar com suas próprias
emoções, provocando alívio e libertação sem ser necessário lidar com aquela
experiência na “vida real”. Esse processo resultaria numa limpeza e renovação,
em um sentimento de conforto no público e em uma percepção mais ampla das
fraquezas e vulnerabilidades humanas. Apesar dos espectadores estarem
assistindo uma cena de intenso drama e dor para os personagens, eles
estariam envolvidos por um sentimento de “alívio”. Em outras palavras, o
público lidaria com o sentimento duplo de prazer e desprazer ao assistirem
uma peça trágica.

É importante destacar que a catarse não é obtida em qualquer experiência


artística. É necessário que a peça trágica tenha algumas características para
que a plateia acesse essa experiência. Aristóteles aponta que os personagens
trágicos devem ter características específicas para que esse movimento
catártico seja possível. A tragédia não deve ser a história de homens bons que
passam da felicidade para a infelicidade. Neste caso, o público teria o
sentimento de repulsa e não o misto de temor e compaixão. O movimento
contrário também não é o mais indicado: os homens maus passarem da
infelicidade para a felicidade. Neste caso, o público também não seria
acometido por temor e compaixão. Já o caso de os perversos passarem da
felicidade para a infelicidade poderia causar simpatia do público, mas não
temor e compaixão. O temor e a compaixão, para o filósofo, seriam obtidos
com personagens que são semelhantes a nós (causando identificação) que
passam da felicidade para a infelicidade.

Com base nessa perspectiva de Aristóteles, a morte dos anões pode ser
considerada, em certos aspectos, um enredo trágico, mas o texto produz um
efeito para além diferente do trágico. Para sustentar essa afirmativa, alguns
argumentos são apresentados a seguir.

No conto “os anões”, de Veronica Stigger, é apresentada a história de anões


que vão comprar doces em uma confeitaria, furam a fila e são mortos pelos
clientes assíduos. O primeiro ponto que deve ser compreendido, na tentativa
de se pensar o conto como um enredo trágico, é o caráter dos personagens.

Os anões inicialmente são caracterizados como pessoas com “graves


falhas de caráter”. Entretanto essa observação, bem como várias outras, são
realizadas pela narradora-personagem que está envolvida na morte dos anões.
A narradora-personagem traz uma série de afirmativas sobre os anões que
devem ser levadas em consideração, tais como reflexões que trazem a
impressão de coisificação, de animalização e de os ver como obstáculos para o
curso natural do dia-a-dia dos clientes. Os seguintes trechos exemplificam
esses aspectos: “apontava o nariz para cima e aspirava fundo” (parece o
movimento de um animal cheirando a comida, ignorando a dificuldade real do
anão em enxergar); “formavam um conjunto bonitinho” (dá um aspecto de
coisificação); e “aguentávamos quietos o comportamento acintoso daqueles
dois” (como se o fato de poder provar doces como todas as pessoas fazem
fosse uma afronta para os outros clientes). Nesse sentido, a postura agressiva
da narradora não transmite a percepção de que os anões eram de fato pessoas
de mau caráter. Adicionalmente, outros trechos demonstram que eles
apresentavam o caráter e o comportamento de alguém que busca transpor
suas dificuldades e vulnerabilidades, tem sentimento empático e pacífico em
relação a situações do dia-a-dia, mas que possuem uma condição física que
não os permitem realizar ações básicas nas mesmas condições de outras
pessoas. Esses aspectos podem ser vistos nas cenas em que eles aceitam o
uso do banco para poder ver melhor os doces; naquela em que o marido anão
tenta defender sua esposa e ajudá-la quando ela cai; e quando, apesar de
todos os insultos, eles permanecem calados. Também são percebidas nas
cenas do supermercado em que claramente eles precisam passar numa fila
diferente por não conseguirem usar o carrinho de compras como os outros
clientes. Considerando que são pessoas com qualidades e vulnerabilidades,
poderíamos considera-los como de caráter médio, mas esse aspecto não é
esclarecido no texto.

O outro aspecto que deve ser compreendido é o movimento da felicidade


para a infelicidade. Certamente, de uma forma superficial, há a percepção do
movimento dos anões se deliciando com os doces e sendo atendidos
(felicidade) para o fim do conto com uma morte trágica (infelicidade).

Entretanto, é necessário adicionar outros aspectos do conto para


compreender sobre a possibilidade se ser visto como um enredo trágico. O
conto apresenta personagens que contem uma carga considerável de
distanciamento do leitor médio, pois são caracterizados como pessoas
marginalizadas que não têm a possibilidade de desfrutar de possibilidades
básicas, já que não conseguem ver os doces, não são vistos pelos atendentes,
não conseguem colocar suas compras no carrinho etc. Essa situação não pode
ser vista como uma situação feliz ou ideal. Nesse sentido, há uma certa
distância para que alguns leitores se identifiquem com os anões, pois
claramente eles são retratados como diferentes e como não gozadores de
direitos. Mas o texto aparentemente usa a estrutura trágica para trazer uma
cena de extremos ou de absurdos para denunciar uma situação de reação de
desproporcionalidade por causa de ações de equidade.

Em outras palavras, o texto apresenta o movimento de uma condição de


falta de acessos desses anões (podendo ser transposto para uma série de
situações de falta de acesso da nossa sociedade para determinadas camadas)
para uma situação de “reparo” de oportunidade (o fato de terem um banquinho
e poderem ser atendidos), provocando indignação daqueles que já detinham
esses direitos básicos ou privilégios.
Seria uma cena semelhante às reações assistidas diariamente relativas às
políticas afirmativas ou a mudanças culturais paulatinas. O texto, nessa
perspectiva, não tem o efeito de gerar medo e compaixão no leitor, mas, sim,
de fazer uma denúncia para um desconforto desproporcional causado na
sociedade em determinadas situações de ascensão social ou de reparação de
direitos. Nesse sentido, geraria um sentimento mais próximo de indignação e
denúncia do que de identificação no misto entre medo e compaixão.

É interessante notar também que o texto expressa o efeito da aceitação


coletiva para uma ação absurda ou para ações historicamente injustas. O conto
traz uma imagem extrema de morte violenta, impune e imperceptível, mas nos
transporta para várias outras cenas vividas cotidianamente na realidade, tais
como em cenas de desigualdade social, de raça, gênero etc.

A aceitação coletiva e o envolvimento coletivo no ato violento são também


abordados no texto como uma denúncia para esse tipo de comportamento
social da multidão ou da sociedade. Esse aspecto dialoga com o filme Dogville,
do Lars Von Trier. O filme relata a história de Grace que é inicialmente acolhida
por uma comunidade e posteriormente é acometida por violências de diversas
formas. O filme retrata sobre as fragilidades das relações sociais, falta de
empatia e de solidariedade. Em especial, explora como a violência, opressão e
injustiça podem ocorrer quando as pessoas são objetificadas e quando o poder
(pode-se também pensar no poder político também) é mal empregado. O filme,
assim como o conto, gera um desconforto no público e não uma purificação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34,


2015.

DOGVILLE. Direção: Lars Von Trier. Produção de Vibeke Windelov. Dinamarca:


Les Films du Losange e Zentropa Entertainment Production, 2004.

STIGGER, Veronica. Os Anões. Porto Alegre: Cosac Naify, 2010.

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