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Trecho1
“A mulher do médico disse, Dispam-se todos, não podemos ficar como estamos, as
nossasroupas estão quase tão sujas como os sapatos [...]. A mulher do médico recolheu
as roupasdeixadas no chão, calças, camisas, um casaco, camisolas, blusões, alguma
roupa interior,pegajosa de imundície [...]. A mulher do médico sentiu frio, lembrou-se dos
outros, ali no meiodasala,nus.”
(SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras,1995. p.258-260.)
Trecho2
“despiu de golpe a bata molhada, e, nua [...], pôs-se a lavar as roupas, ao mesmo
tempo que a si própria.”
(SARAMAGO,José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.265.)
As personagens que se juntam à mulher do médico são a rapariga dos óculos escuros e a
mulher do primeiro cego. Alegoricamente, esse banho representa um ritual de purificação
psicológica (ou da alma de cada uma delas). As três mulheres, poucos dias antes, haviam
sido humilhadas e violentadas pelos cegos malvados. A morte do cego da pistola e o
incêndio do manicômio, embora tenham sido uma forma de vingança, não foram suficientes
para que elas minimizassem a terrível sensação de violência. O banho de chuva é um
momento íntimo entre elas, em que se revelam as sensações de confiança e de admiração
entre as três. Assim, após terem sido tratadas de forma tão desumana pelos homens, as
personagens femininas unidas (em uma atitude de sororidade OU de solidariedade entre
mulheres OU de cumplicidade feminina) recuperam um pouco de sua dignidade e,
consequentemente, de sua humanidade, voltando também a se preocupar com sua
feminilidade (voltando a pensar nos próprios corpos etc.).
2. No final do romance Ensaio sobre a cegueira, ganha destaque o “cão das lágrimas”.
Descreva a cena em que esse personagem surge e, depois, explique a ironia construída
pela sua representação e pelo seu papel na trama.
O cão das lágrimas aparece quando, perdida, solitária e assustada, após fugir do
supermercado com os alimentos, a mulher do médico perde as forças e cai de joelhos no chão,
em prantos, na chuva. Nesse momento, quando outros cães devoravam cadáveres de
pessoas, o que representa a desumanização completa, o cão das lágrimas aparece, lambe o
rosto da mulher do médico e a consola. A ironia de sua representação é que o animal acaba
tendo um comportamento absolutamente “humano”. Como todos os seres humanos estavam
cegos, o cão é o único capaz de confortar a mulher que ainda enxergava. Assim, se apenas ela
testemunha o sofrimento da humanidade, ele é quem testemunha o sofrimento da mulher do
médico (por isso ela passa a ser chamada de mulher das lágrimas, durante um tempo, criando
uma ideia de cumplicidade entre ela e o cão das lágrimas).
“[...] Só mesmo uma personagem [...] poderia dividir com ele (o narrador) a
exposição doenunciado e, de certa forma, o poder sobre a enunciação, fazendo com que a
posse dalinguagemnão sejaprerrogativa deumaúnicavoznarrativa[...].”
O que justifica a utilização dessa exposição partilhada daquilo que é narrado, tendo em
vista o caos que se instaura com a epidemia de cegueira? Como essa estratégia se
associa à própria relação dos leitores com a narrativa?
O narrador divide a enunciação com a mulher do médico para narrar grande parte da
história. Essa escolha parece ser feita para que o narrador em terceira pessoa se aproxime
dos acontecimentos relatados. Como o narrador não faz parte daquele grupo de cegos e não
vivencia aquela realidade, seria difícil que ele contasse toda história com a veracidade de
quem participa dos acontecimentos. Sendo assim, Saramago cria uma personagem que vive
e vê os eventos, relatando de maneira mais sensível tudo o que se passa, ao mesmo tempo
em que restringe (inclusive ao leitor) o acesso a informações mais precisas sobre o que
acontecia, por exemplo, do lado de fora do manicômio. Dessa maneira, o narrador dispensa
o afastamento e a onisciência comuns às narrativas em terceira pessoa, fazendo de si (e dos
leitores) mais um entre os cegos, sofrendo e aprendendo de modo autêntico naquela caótica
sociedade.