Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Função: Estamira
Edson Luiz André de Sousa1
Anelito de Oliveira * *
Resumo: Este ensaio aborda o filme de Marcos Prado, Estamira, lançado em 2006. O filme
acompanha a vida de uma mulher que olha o mundo através de seu trabalho em um aterro
sanitário no Rio de Janeiro. Percebemos na boca de Estamira o poder da palavra, sua
indignação diante das violências que sofreu, mas, sobretudo, o poder de criação e resistência
de seu testemunho. Arte e Psicanálise encontram-se neste ponto quando apostam no poder
de sua narração endereçada a um outro como uma forma de reconfigurar a vida.
Estamira, filme de Marcos Prado de vez seja justamente esta tensão que a
2006, nos introduz em uma experiên- arte produz: a forma que recorta o mun-
cia de limite. O espectador fica captu- do para nos apontar o visível em sua
rado em uma espécie de suspensão, potência de enigma.
com o risco iminente de submergir na Estamira nos surpreende com inú-
radicalidade das imagens. Todo o limi- meros excessos: da miséria, da dor, da
te, como sabemos, nos joga na tensão negligência, da violência, do abuso se-
entre a forma e a sua dissolução. Tal- xual, das toneladas de lixo que chegam
1
Psicanalista. Analista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Professor do PPG Artes
Visuais e PPG Psicologia Social da UFRGS. Doutor em Psicanálise e Psicopatologia pela Universidade de
Paris VII. Pesquisador do CNPq. Autor dos livros Freud (SP: Editora Abril, 2005) e Uma invenção da
utopia (SP: Lumme Editor, 2007)
**
Fragmento do poema Além da Pele. Este poema encontra-se na coletânea organizada por Claudio Daniel
e Frederico Barbosa intitulada “Na virada do século – poesia de invenção no Brasil” , Landy Editora, São
Paulo, 2002, p. 42 . Anelito de Oliveira é poeta e jornalista e vive em Belo Horizonte
diariamente no aterro sanitário do Jar- tos aponta como o papel dos pobres em
dim Gramacho na Baixada nosso contexto social:
Fluminense, no Rio de Janeiro. Este
excesso, contudo, é contido, em par- A pobreza é uma situação de ca-
te, na determinação de Estamira, uma rência, mas também de luta, um es-
mulher de 63 anos, diagnosticada tado vivo, de vida ativa, em que a
como esquizofrênica, e que há mais de tomada de consciência é possível.
20 anos vive recolhendo seu sustento Miseráveis sãos os que se confessam
no lixão. Ela fala, grita, pensa, demons- derrotados. Mas os pobres não se en-
tra, faz, olha, argumenta. Sua voz é o tregam. Eles descobrem cada dia for-
fio condutor de toda a narrativa do mas inéditas de trabalho e de luta.
documentário, e revela o quanto o po- (SANTOS, 2000, p. 132).
der narrar e expressar um sofrimento
faz a vida resistir, mesmo no meio dos Podemos ver no filme a sensibili-
escombros e dos detritos. Por isto, este dade de uma mulher que faz dos restos
filme fala de limite. Mário Peixoto do mundo uma espécie de transfigura-
(2002), em um de seus inúmeros poe- ção de sentidos. Assim, o resto, ao pas-
mas sobre o mar, traz uma imagem in- sar por suas mãos, por seu pensamen-
quietante e infelizmente tão atual. “Há to, por seu discurso, adquire uma outra
os que preferem não ver. A vista das significação. Ela chega a fazer uma ela-
coisas é profunda demais para tão pe- boração sobre o estatuto do resto di-
queno contato”. No conforto do cine- zendo que no lixão onde trabalha, “as
ma podemos ouvir e ver a vida resis- vezes, é só resto, e, as vezes, vem tam-
tindo em palavras, e tirando da bém descuido. Resto e descuido.” É
invisibilidade e esquecimento tanta neste ponto preciso, que Estamira nos
potência. Diante da tela, fazemos con- indica uma função do olhar, pois é des-
tato com nossa cegueira, contato com de sua posição singular que pode recu-
nosso desprezo pelos miseráveis, con- perar um estatuto, para aquilo que foi
tato com o que é abjeto e nojento, sen- rejeitado e eliminado. Junto com o lixo
sações que nada mais são do que ver o vêm, evidentemente, muitos pensa-
que produzimos nas mãos de outros e mentos e imagens de uma sociedade do
nas bocas de outros. exagero, do consumo compulsivo, do
descuido e da negligência. Estamira
Testemunho dedica-se, pacientemente, a uma aná-
lise deste panorama, discorrendo uma
Estamira parece se sustentar no série de teses sobre a vida. Seu traba-
testemunho de uma experiência que se lho do pensamento é rico em imagens,
esforça em transmitir. Como ela mes- definições e metáforas. Faz distinções
ma diz: “A minha missão, além de ser a importantes entre trabalho e sacrifício,
Estamira, é mostrar a verdade, capturar entre o ser ruim e o ser perverso, entre
a mentira e tacar na cara”. A palavra a doença mental e a perturbação, en-
adquire, portanto, uma dimensão de tre o homem ímpar e a mulher par, en-
salvação e de força crítica, e surge para tre os espertos e os espertos ao contrá-
revelar um potencial analítico rico de rio, entre o além e o “além dos aléns”.
uma realidade cruel e injusta. Neste Produz, na minha opinião, uma autên-
ponto, a vida de Estamira comprova, tica e rigorosa teoria sobre o laço soci-
com todas as letras, o que Milton San- al e que Marcos Prado soube tão bem
52 Estudos de Psicanálise • Salvador • n. 30 • p. 51 - 56 • Agosto. 2007
Função: Estamira
Recebido em 23/05/2007