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Análise Simbólica do livro: Todo dia a mesma noite _ a história não contada da

boate Kiss

Apresentação:

Primeiramente, gostaria de expor um resumo da obra de não-ficção que relata o


trágico incêndio que aconteceu na Boate Kiss, em 27 de Janeiro de 2013, na cidade
de Santa Maria, Rio Grande do Sul. O livro é bastante profundo e aborda não só a
história da boate e a tragédia em si, mas também a burocracia, corrupção e
negligência que levaram ao ocorrido, além do sofrimento das famílias que perderam
seus filhos e amigos naquele fatídico dia. É uma leitura densa, mas importante para
refletirmos sobre a responsabilidade social das empresas e governos em manter a
segurança e bem-estar da população,além de nos levar a uma profunda indagação
sobre a brevidade da vida mais ainda diante de tragédias dessa magnitude.
Daniela Arbex é autora do livro, cuja formação em Jornalismo faz um trabalho de
grande importância, narrando histórias marcantes e muitas vezes negligenciadas
pela sociedade. Em "Todo Dia a Mesma Noite", ela faz um relato minucioso da
tragédia na Boate Kiss, mostrando como a falta de fiscalização, manutenção e
responsabilidade por parte dos donos do estabelecimento, assim como o descaso
das autoridades, levaram ao incêndio que matou 242 vítimas, além de deixar 636
pessoas feridas, e tantas outras milhares que foram afetadas direta ou
indiretamente por essa catástrofe.
O livro apresenta também relatos emocionantes das famílias das vítimas e de
sobreviventes que precisaram lidar com as sequelas físicas e emocionais da
tragédia. É um livro que nos faz refletir sobre nossas escolhas, atitudes e ações, e
que nos ajuda a entender melhor uma tragédia que jamais deveria ter acontecido.
Carl G. Jung , tão atual e tão profundo em pleno século XXI

O presente trabalho tem como objetivo fazer um paralelo com a obra já citada,
conceituando temas de estudo de Jung muito peculiares e complexos. E como
estudante, tomo a liberdade de ir além sobre pensar a finitude da vida, sobretudo
diante de situações repentinas. O sofrimento existe desde o nascimento do homem,
e não estamos ilesos de passar essa vida sem tê-lo, e como ressignificar uma dor?
No caso dessas milhares de famílias que perderam seus filhos, netos, maridos e/ou
esposas de forma tão dolorosa cruel como sequenciar a sua própria jornada diante
da perda significativa de alguém que amamos?
Jung defendia dentre tantas ideias, uma que achei bastante pertinente:
“auxiliar o indivíduo a adquirir firmeza e paciência diante do sofrimento, pois a vida
acontece num equilíbrio entre alegria e dor”.
Mas como um pai ou mãe poderão ter essa potência (força) e enfrentar essa
caminhada?

“Durmo nas imagens e lembranças. As vozes se misturam na minha mente. O


tempo não passa.“ Paulo Tadeu de Nunes de Carvalho _ pai de Rafael, 32 anos
morto na boate Kiss.

Essa fala ecoou fortemente em meu coração e talvez por isso tenha sido a razão
pela qual escolhi esse livro, para desenvolver essa análise. A vida não é pautada
por uma felicidade constante, mas sim a busca de um significado/sentido.
Para Jung, o “segredo” está em buscar verdadeiramente o sentido para o que nos
acontece, trazendo grande poder curativo: nos libera da vitimização e imprime em
nossa caminhada a heróica capacidade de ressignificar, mudar e fluir. E apesar do
significado nem sempre ser colorido e florido, ele é sempre real; e é só com os pés
bem enraizados na realidade, seja ela qual for, que podemos trilhar nosso caminho
e decidir o melhor rumo, muitos desses familiares conseguiram emergir essa força
para continuar a sua própria existência, outros enveredaram para aliviar a sua dor
cometendo suícidio, ou mergulhando em vícios como bebidas ou jogos, abandono
do seus lares, e o mais comum: afundando no abismo de uma depressão.

“Tragédias são episódios tão avassaladoramente desconstrutivos da rotina


esperada, tão perturbante desarrumadores da ordem natural, tão violentamente
instauradores da ruína e do caos, que nem mesmo a semântica se mantém em pé.”
(pág. 09_préfacio do livro Todo o dia a mesma noite)

Até aqui poderíamos pensar de modo bem geral, alguns conceitos que Jung
defendia diante do sofrimento humano, até por um direção do seu método ele
defendia o diálogo com o inconsciente, da experiência de conversar com nossas
emoções
através das imagens simbólicas, de um caminho de individuação à frente de nós,
sem data ou local de chegada, mas com uma confiança no ser psíquico central, no
arquétipo que representa a possibilidade de uma maior sabedoria, de uma dinâmica
mais saudável, de um crescimento integral.
Obviamente, que essa “trilha” não é mágica, tampouco cor de rosa, mas gostaria de
trazer um pouco mais detalhado o conceito de símbolo e simbólico e que mais
adiante trarei um trecho da obra para exemplificar.
Na concepção de Jung, símbolo é uma representação de um conceito ou ideia que
transcende o mundo material e consciente, e que está conectado ao inconsciente
coletivo da humanidade. Ele acreditava que os símbolos têm um significado
universal, que é herdado pela humanidade de forma inconsciente e que está
presente em todas as culturas e sociedades. Podemos pensar na morte como um
processo que todos nós passamos desde os primórdios da humanidade.
Ampliando essa ideia para o simbólico, durante a leitura, a autora do livro traz
relatos de muitos familiares que se agarram em tudo que podem para manter “viva”
a existência de seu querido.

“É do valor da presença, da convivência, do amor pelos nossos filhos (...) É um


grande inventário de afetos, em que os vestígios de presença humana ainda estão
espalhados por toda parte, em objetos que parecem depositários de vida, como um
perfume preferido deixado sobre a pia de um banheiro, ou um sapato de salto alto
lustrado uma festa, ou bilhetinhos com flores e corações pregados na geladeira da
cozinha, ou nos quartos mantidos com luzes acessas nas madrugadas de Santa
Maria (...) (pág. 13)

Diante do sofrimento da perda, o indivíduo recorre consciente ou inconsciente a


objetos, atos, lembranças que simbolizam e eternizam memórias tão particulares
como um alívio momentâneo a uma dor permanente. Isso é extremamente
profundo, e linkar o trecho acima citado com o conceito, nos faz ir mais adiante no
que tange ao campo do simbólico: agarrar-se em objetos de seus filhos, por
exemplo, mantém em pé, muitos desses pais, que através do processo consciente
e/ou inconsciente se torna o respiro necessário para seguir a própria vida.
Um outro conceito que podemos abordar é o de sincronicidade, que para Jung, é
aquilo que se refere a dois acontecimentos: interior e exterior, que ocorrem
simultaneamente sem ter entre si uma ligação passível de explicação racional,
porém, que possuem sentido para quem está observando. O psicólogo percebeu
existir uma ligação entre o indivíduo e o ambiente em torno dele, o que favorece as
circunstâncias coincidentes, criando assim um valor específico e um sentido
simbólico.
Jung acreditava que diferentes eventos poderiam estar ligados pela causalidade, e
também por significado. Os eventos que possuem ligação por significado não
demandam uma explicação sob o viés da causalidade. Vamos ao exemplo, retirado
do próprio livro:

“(...) Lívia não conseguia dormir. Estava se sentindo estranha, embora estivesse
tomada por uma ansiedade. (...) não entendia o motivo daquele sentimento. Por fim,
acabou adormecendo. (...) Mas o silêncio da madrugada foi quebrado pouco tempo
depois pelo som do telefone. Uma notícia sombria chegava: a morte de seu filho.”
(pág. 53)

Essa impressão, ou até popularmente conhecida como intuição, é o que Jung


procura defender sobre eventos que ocorrem de modo causal, mas que trazem ao
indivíduo um significado para “justificar” o que acabará de ocorrer.
Contudo, há tantos outros conceitos que podem ser trabalhados nessa obra, porém
me atentarei brevemente a outro que possui uma grande importância pessoal:
arquétipo, mas especificamente o de mãe.
O arquétipo da mãe é um dos arquétipos mais fundamentais na teoria psicológica
de Carl Jung. Ele representa a imagem da mãe primordial, ou seja, uma figura
materna universal e arquetípica que é inerente à psique humana. Jung acreditava
que a imagem da mãe é uma das primeiras imagens que um bebê forma em sua
mente. Essa imagem é, em grande parte, baseada nas experiências do bebê com
sua própria mãe, mas também inclui elementos arquetípicos que vêm da cultura e
da história humanas. O arquétipo da mãe é, portanto, uma combinação de
experiência pessoal e coletiva.
Para Jung, o arquétipo da mãe representa a ideia da nutrição, proteção, conforto e
cuidado, bem como a ideia de abrigo e segurança. Ele acredita que a figura materna
é uma fonte de vida e um símbolo de fertilidade e criatividade. Por outro lado, o
arquétipo da mãe também pode assumir aspectos negativos, como o controle
excessivo, o ciúme, a possessividade e a tirania.
Como não pensar, em todas essas mães tiveram seus filhos tomados por essa
tragédia, em várias passagens da obra já citada, muitas relataram a dor e a culpa de
não conseguirem proteger seus filhos. A dor essa que carregaram para o resto de
suas vidas de que elas deveriam estar em seus lugares.

“ (...) os aparelhos tocavam juntos e cada telefone tinha um som diferente. Muitos
tocavam conhecidas músicas sertanejas e na maioria dos casos, porém, o visor
indicava a mesma legenda: “mãe”, “mamãe”, “vó”, “casa”, “pai”, “mana”. (...) Um
corpo mais adiante identificado, mostrava em seu celular 134 chamadas no visor
com o nome de “mãe”. (pág. 34)

Esses filhos foram tomados dos braços de suas mães, esta entidade que tem por
definição proteger, cuidar e zelar por sua prole. Sangue do seu sangue, que de
maneira tão brusca e cruel lhes foram arrancadas naquela madrugada. Essas mães
desejavam estar com seus filhos, negar-lhes se assim soubessem, a ida a um local
que horas mais tarde pegaria fogo. Mas a tragédia já estava consumada e nada
mais poderia ser feito.

Considerações Finais:

Através dessa leitura, foi inevitável não pensar na minha própria existência,
questionando o sentido da minha vida e do meu propósito. Quando penso em cada
uma daquelas mães e pais, penso nos meus pais, penso nos meus filhos. Que dor
terrível, e impossível sentir exatamente o que esses familiares sentem dia após dia,
mas totalmente possível ser impactado por essa tragédia, e tamanha a força que
muitas dessas pessoas se propuseram a ter para continuar a sua caminhada. Há
quem diga que sofrimento é uma escolha, mas é uma ideia quase que descabida na
psicologia analítica. Passar pelo sofrimento é inevitável, é um processo longo de
autoconhecimento para o indivíduo se dispor a mudar o rumo da sua dor. E sofrer
nesse caso, pela perda tão precoce de um filho (rompendo o ciclo da vida) é
“atravessar” como Jung afirma, essa “ponte“ que só se torna possível depois de
encarar um mergulho profundo em si. E cada um de nós encontrará em sua jornada,
instrumentos necessários para seguir sua direção. Para esses pais o processo foi e
continuará sendo doloroso, e muitos que perderam filhos únicos e até mais de um
filho, optaram por seguir adiante, se agarrando em pequenos rituais para manter
viva a memória do que se foram.
Por fim, apresento , outro emocionante trecho do livro:

“(...) resistir não é uma escolha, se manter vivo não é uma escolha, mas um
imperativo de sobrevivência. Resistir ao cansaço da espera por alguém que não
voltará, ao silêncio imposto pela ausência, à dor que teima em ficar, por mais que se
queira livrar-se dela. (...) Se a recordação de uma tragédia é dolorosa, imagine
carregá-la dentro do si. As mães de Santa Maria sabem perfeitamente o que é isso.
Aliás, só elas conseguem dimensionar a devastação causada pelo esquecimento do
som da risada de um filho. (...) Lívia sente falta de tudo que experimentou ao lado
de Heitor, mas principalmente de ser chamada de mãe. “ (pág. 228)

Referência:
ARBEX, Daniela. Todo dia a mesma noite _ a história não contada da boate Kiss.1a
edição, Rio de Janeiro, Editora Intrínseca, 2018;

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