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Antonin Artaud e o teatro da patologia

DAVID MACLAGAN*
(London)

Traduzido por Flora Schroeder Garcia

“Jeder Krankheit kann man


Seelenkrankheit nennen.”
Novalis

Um “teatro da patologia” pode ser tomado como uma galeria fantástica de


“personagens doença”, cada um com seu histórico médico e atributos sintomáticos, ou
como um desfile caricatural de figuras deformadas, tortas ou perversas: em todo caso,
como um palco médico ou um teatro de anatomia, onde os “atores” são passivos,
pacientes, servindo meramente para exemplificar o típico. A noção de James Hillman de
“patologizar” é uma inversão provocativa desse quadro de modo que o que quer que uma
vez tenha sido considerado a partir de um ponto de vista puramente clínico fala agora
com sua própria voz e questiona a sentença diagnóstica previamente imposta sobre si.
Patologizar é
... a habilidade autônoma da psique de criar doença, morbidez, desordem,
anormalidade e sofrimento em qualquer aspecto de seu comportamento e de
experienciar e imaginar a vida a partir dessa perspectiva deformada e aflita. 1
Tal patologização não deve ser confinada aos registros da psicopatologia: é a
autêntica voz da alma, à medida que fala em e por meio de todos nós.
Porém, “aflição” e “deformidade” aqui não são simplesmente condições passivas;
elas têm um componente ativo, mesmo polêmico: os escapes da patologização à norma
não acontecem simplesmente, são consequências de uma intrincada negociação, na qual
a psique, a pessoa e seu contexto intelectual e histórico estão envolvidos. O aspecto

*
David MacLagan é um escritor, artista e arteterapeuta. Ele é o autor de Creation Myths [Mitos de Criação]
(London: Thames and Hudson, 1977) e é o Senior Lecturer na Birmingham Polytechnic. Ele está envolvido
com a obra de Artaud há mais de vinte anos. Esse artigo é uma versão destilada de uma palestra proferida
na segunda edição da Annual Conference of the London Convivium for Archetypal Studies em junho de
1988.
frequentemente dramático – mesmo “melodramático” – da patologização destaca
questões sobre a linha divisória entre o patético e o irônico, entre o que é deliberadamente
exagerado e o que é distorcido pela pressão da circunstância. Também levanta questões
sobre a relação paradoxal entre atuação e identidade:
O ator é – e não é – uma pessoa e uma persona, dividido e indiviso – como
Dioniso era chamado. O eu dividido é precisamente onde o eu localiza-se
genuinamente – contrariamente a Laing.2
De diversos modos evidentes, a obra de Antonin Artaud, especialmente os escritos
dos quatro últimos anos de sua vida (1944-1948), é particularmente adequada à
perspectiva da patologização: envolve-se com a psicopatologia e, acima de tudo, com a
retórica da paranoia; é, em sua reforma da linguagem, escrita in extremis, no limite do
sentido. E centra-se no teatro não somente topicamente, mas no seu idioma
essencialmente dramático.
“Eu escolhi o domínio da dor e da sombra assim como outros escolheram o do
brilho e do acúmulo de matéria” 3, escreveu Artaud no final de Fragmentos de um diário
do inferno, publicado em 1926. De fato, sua primeira publicação – uma correspondência
com o editor4 de N.F.R.5 – começa com sua insistência em uma ausência, inadequação e
fracasso que são fundamentais: são o terreno de onde ele nunca irá se mover e suas
descrições desse terreno são intensamente, excruciantemente físicas, ao mesmo tempo em
que documentam uma urgência metafísica desesperada por forçar ou por forjar uma
conexão imediata entre corpo e mente, material e espiritual. A diferença ou a distância
entre ambos, que normalmente são consideradas como certas, eram intoleráveis para ele
e, ao recusar-se a aceitá-las, ele comprometeu-se por toda sua vida à contradição não
somente dos limites convencionais da literatura, mas do conceito do pensamento
desencarnado.6 A exposição implacável de Artaud do fracasso da escrita em encarnar o
pensamento intima constantemente seu próprio sofrimento complexo e íntimo a
testemunhar contra ela. Não pode haver dúvida quanto à realidade inevitável desse
sofrimento, como Susan Sontag escreveu:
Em nenhuma parte, em toda história da escrita em primeira pessoa, há um
registro tão incansável e detalhado da microestrutura da dor mental. 7
Essa doença ou “desordem” foi certamente reconhecida enquanto tal por Artaud
e, ao longo de sua vida, de sua primeira hospitalização aos dezenove anos, passando pelas
tentativas de remediá-la por meio de psicoterapia, acupuntura, injeções tônicas, etc., ao
seu eventual encarceramento psiquiátrico, foi tratada a partir de um ou de outro tipo de
perspectiva psicopatológica. O quadro é complicado adicionalmente pelo seu uso
periódico de ópio ou de heroína, com tentativas frequentes de desintoxicação: um padrão
final e brutalmente rompido pelo seu confinamento em setembro de 1937. Porém, a
relação de Artaud com a doença não pode ser vista meramente como a do sofredor com
sua aflição, menos ainda como a de um “paciente” demostrando sinais de doença: é mais
ambígua e colusória. A doença não é somente um desvio, é uma direção em todo sentido
da palavra e a nossa contribuição com ela não é reduzível à negligência ou à culpa. A
doença é, com frequência, uma abertura ou um aprofundamento de experiência, uma
espécie de ênfase, por mais dolorosa que seja, que tem, como Alfred Ziegler demonstrou8,
suas próprias dimensões arquetípicas. Pode marcar uma recusa tanto quanto uma
incapacidade de estar confortável ou satisfeito: no caso de Artaud, marca sua diferença
radical e intransigente de tudo o que é normalmente considerado como certo, camuflado
pelo verniz do bem-estar. Em um texto tardio, escrito em 1946, ele escreve:
A doença é um estado.
A saúde é somente outro,
mais miserável.
Quero dizer mais covarde e contido.
Ninguém que está doente não cresceu.
Ninguém com boa saúde não cedeu um dia, por não ter querido adoecer, como
certos médicos que suportei.
Eu estive doente toda minha vida e peço somente para seguir.
Pois estados de privação de vida sempre me informaram muito melhor da
pletora do meu poder do que crenças pequeno-burguesas em:
BOA SAÚDE É TUDO O QUE VOCÊ PRECISA. 9
A doença, no caso de Artaud é uma questão que depende da conexão (ou
desconexão) entre as extensões mais longínquas e mais metafisicas do pensamento e a
experiência física mais íntima do corpo enquanto agente de sua expressão material.
Inevitavelmente, esse problema é colocado sob os holofotes por uma auto investigação
intensa, que, cada vez mais, empurra a fronteira do privado e do inarticulável além dos
limites ordinários. Não é por acaso que tantas de suas descrições de agonia psicossomática
estejam em forma epistolar, começando pela Correspondence Avec Jacques Rivière
[Correspondência com Jacques Rivière] em 1924, pois esse ensaio é inerentemente
dramático; uma espécie de exibição exemplar de seu eu em todos os seus dolorosos
detalhes – dolorosos para o leitor, assim como para o próprio Artaud:
E aqui, senhor, está todo o problema: ter dentro de si as inseparáveis realidade
e clareza material de um sentimento, tê-las ao ponto de que não podem não
ser expressadas; ter uma riqueza de palavras, de figuras de linguagem
adquiridas, que poderiam dar um passo para fora, entrar em jogo; e, no
momento em que a alma está se preparando para organizar sua riqueza, suas
descobertas, essa revelação, nesse momento inconsciente em que a coisa está
prestes a emergir, uma vontade maliciosa e superior ataca a alma como
vitríolo, ataca a massa da palavra-imagem, ataca a massa do sentimento e
deixa-me arquejando como se na própria entrada da vida. 10
Essa passagem é tipicamente “dramática” de diversos modos: dirige-se a um
público; tem um tom aumentado; imagina o fracasso em termos de uma agência exterior
(“uma vontade maliciosa e superior”). Emprega uma retórica de extremidade. Porém, essa
intensa tensão (ou aflição)11 de linguagem está ligada de modo crucial às tentativas
persistentes de Artaud de utilizar palavras para penetrar por trás da representação do
pensamento habitual e verbal e para exacerbar, pela própria acuidade de suas descrições,
a discrepância entre a instalação literária da linguagem e suas raízes subjetivas, ocultas.
De certo modo, ele está ampliando, em um close-up feroz, a concatenação entre corpo e
mente e fornecendo um mise-en-scène metafórico para todos os seus possíveis colapsos.
O efeito disso é expor a noção de uma mente desinteressada e desencarnada, expressa por
meio de um domínio confiante da linguagem, como uma ficção desonesta. Através de
suas rachaduras e de seus defeitos, no entanto, algo pode ser vislumbrado de uma luta que
não é pessoal a Artaud, mas que é relacionada ao que Nietzsche chamou “a Unidade
original, sua dor e contradição”12.
De fato, é possível perceber uma profunda tensão na obra de Artaud - nos termos
de Nietzsche, entre a visão desinteressada e apolínea da vida como uma ilusão e o ímpeto
dionisíaco de dissolver a coerência artificial da autoconsciência. Porém, o que é de
relevância mais imediata é a visão de Nietzsche do poeta dionisíaco como o local ou o
teatro de um drama que excede o pessoal:
... o poeta lírico, por outro lado, torna-se suas imagens, suas imagens são
versões objetificadas de si. Sendo o centro ativo daquele mundo, pode falar
audaciosamente na primeira pessoa, porém o seu “eu” não é o do homem
desperto de fato e sim o “eu” que habita, verdadeira e eternamente, no terreno
do ser. É pelos reflexos desse “eu” que o poeta lírico contempla o terreno do
ser. Imaginemos em seguida como ele vê também a si mesmo em meio a esses
reflexos – como não gênio, isto é, como seu próprio assunto, a totalidade da
multidão fervilhante de suas paixões e intenções dirigidas a um objetivo
definido; e quando agora parece como se o poeta e o não poeta unidos a ele
fossem um e como se o primeiro estivesse usando o pronome “eu”, nós somos
capazes de ver através de sua aparência, que enganou os que anexaram o
rótulo “subjetivo” ao poeta lírico. O homem Arquíloco, com seus amores e
ódios apaixonados, é, na verdade, somente uma visão do gênio, um gênio que
não é mais meramente Arquíloco, mas o gênio do universo, expressando suas
dores por meio da similitude de Arquíloco, o homem. 13
Poder-se-ia dizer que, para Artaud, o teatro seria uma extensão necessária e
inevitável do drama que se demonstrava impossível de conter dentro dos limites de um
discurso subjetivo (ou subjetivado): sua retórica já é dramática, animadora, projetora,
materializadora e amplificadora; é ainda estruturalmente dramática, implicando um
relacionamento espetacular com processos que são normalmente identificados a:
Eu sou às vezes na vida; às vezes acima da vida. Eu sou como um personagem
em um palco que pode ter a habilidade de ser o objeto de sua própria
contemplação e às vezes de ser uma abstração pura e uma simples criação da
mente e às vezes, o inventor e o animador dessa criatura mental. 14
Esse adiamento indefinido de qualquer fim à autoconsciência pode ser rotulado
como introspecção “excessiva” na psicopatologia, mas a patologia está tanto na estrutura
predominante do nosso pensamento quanto em Artaud, o indivíduo.15
Os textos de Artaud sobre teatro16 são complexos e abrangentes. Uma de suas
características controversas é que a linguagem escrita, e mesmo falada, é rebaixada do
seu posto soberano e incorporada a uma “linguagem” teatral total, sintética:
É no palco que a união entre pensamento, gesto e ato é reconstituída. E o
duplo do teatro é aquela realidade não utilizada pelo homem moderno.17
A base operativa desse teatro é psicossomática – ou, nos termos de Artaud, “orgânica”.
Não simula os movimentos da expressão “psicológica” para o exterior, produzindo,
assim, uma catarse distanciada por meio do reconhecimento. Em vez disso, seu efeito é
imediato, dando curto-circuito nos desvios convencionais e operando do exterior para o
interior:
Recuperar as paixões por meio de suas forças, em vez de contemplá-las como
abstrações puras, confere um domínio ao ator que o torna equivalente a um
verdadeiro curandeiro. Saber que há uma questão corporal para a alma,
possibilita-nos recuperar a alma na direção oposta.18
A implicação evidente da técnica teatral de Artaud é que a “alma” está sujeita à
influência material e essa é a base do que ele chama de “metafísica em ação”. Há uma
poderosa influência oculta em seu pensamento aqui e seu conceito de “duplo” assemelha-
se ao de “corpo sútil” no pensamento esotérico: de modo ritual ou quase religioso, esse é
o objeto da ação teatral. Tais ideias são profundamente perturbadoras ao nosso dualismo
convencional, em que o mental e o físico estão segregados, e nós veremos como elas
ocorrem novamente na retórica dos escritos posteriores de Artaud.
Os dois aspectos do teatro de Artaud que eu quero examinar a partir da perspectiva
da patologização são a metáfora da praga e o conceito relacionado do Teatro da
Crueldade. Apesar do que eu acabo de dizer, o interesse de Artaud na praga não é no seu
efeito contagioso: pelo contrário, é na sua erupção misteriosa e invisível e no fato de que
sua ocorrência é contraditória: são somente os que tentam proteger a si mesmos que
sucumbem. Em um nível social, a praga implica um colapso da ordem normal e o
recrudescimento dos desejos reprimidos até o momento. É verdade que Artaud apresenta
seu teatro como uma espécie de profilático, porém é um profilático que opera por meio
de uma inflamação crucial:
O teatro, assim como a praga, é o retrato dessa carnificina, dessa separação
essencial. Desencadeia conflitos, libera forças, provoca possibilidades e, se
essas forças e essas possibilidades são negras, não é culpa da praga ou do
teatro, mas da vida.19
Embora enfatize a ação gratuita, não-natural da praga e exija uma opus contra
naturam comparável do ator, Artaud também imagina-a como uma imagem que retrata
de forma negativa todos os aspectos impuros e materialistas da civilização moderna. O
elo com a patologização aqui é a ideia de que a “desordem” não é necessariamente caótica,
mas pode ser uma inversão sistemática de ideias recebidas.
A noção de “crueldade” está ligada a uma noção de necessidade cósmica e ao
retorno a uma dimensão mítica:
Se, como os sonhos, o teatro é sanguinário e desumano, é, muito além disso,
de modo a manifestar e ancorar indelevelmente em nós a ideia de um conflito
perpétuo e de um espasmo no qual a vida é pontuada a cada minuto, onde
tudo na criação eleva-se e afirma-se contra nossa condição enquanto seres
constituídos; é para perpetuar, de modo concreto e real, as ideias metafísicas
em certas lendas, cujas atrocidade e energia são suficientes para demonstrar
sua origem e seu tenor em aspectos essenciais. 20
Essas “ideias metafísicas” têm um sabor gnóstico ou maniqueísta. Há uma
violência ou crueldade intrínseca à vida, que deriva do seu relacionamento trágico com o
que está escondido por trás de sua aparência manifesta. Mesmo nesse estágio (1932), os
temas do teatro de Artaud são carregados de urgência apocalíptica; como se procurasse
desesperadamente despertar um público embalado por uma falsa noção de segurança.21
Esses temas são cosmogônicos e, talvez, arquetípicos:
Criar mitos, esse é o real objetivo do teatro, traduzir a vida em seu aspecto
universal, imenso...22
ou novamente:
Esses temas serão cósmicos, universais, retratados com base nos textos mais
antigos, extraídos de antigas cosmologias – mexicana, hindu, judaica,
iraniana, etc.23
Mais significativa, a partir da perspectiva da patologização, é a insistência de
Artaud em mudar o foco do teatro das preocupações “psicológicas” que são
individualistas para um ponto em que o homem será dolorosamente lembrado de sua
sujeição a forças que estão fora dos limites de sua identidade pessoal. Até certo ponto,
isso é comparável à função de “cultivar a alma” da patologização, como descrita por
Hillman:
Liberta a alma de sua identificação ao ego e à vida do ego, assim como aos
heróis de luz e aos deuses elevados do mundo superior, que fornecem ao ego
seus modelos... Patologizar força a alma a uma consciência de si enquanto
diferente do ego e da vida do ego...24
Porém, Artaud está, ao mesmo tempo, enredado pela dimensão heroica do mito: o
esforço singular exigido do ator, a força necessária para superar a letargia cultural, sem
mencionar a sua própria luta contínua para realizar seus projetos e ser compreendido...
tudo têm um tom heroico, que é intensificado por sua tendência a ver eventos sob uma
luz inflexivelmente dramática.
À medida que seus projetos se frustraram e que Artaud se tornou cada vez mais
impaciente em relação a uma cultura que parecia incapaz de produzir o tipo de resposta
que ele exigia, era natural que seu olhar se dirigisse para fora da Europa. Sua viagem ao
México, sua participação nos ritos de peyote Tarahumaran em 1936 e sua expedição
decisiva à Irlanda no ano seguinte são acompanhadas por mudanças radicais no tom e no
conteúdo de sua escrita. Demonstram um estilo anônimo, profético e as insinuações de
catástrofe eminente tornam-se mais veementes e ameaçadoras: gradualmente, Artaud
passa a alegar que é inspirado diretamente por deus e que é um emissário divino enviado
para desempenhar um papel crucial em um drama apocalíptico no qual Cristo combaterá
o Anticristo e aniquilará a Cristandade, estabelecida como uma perversão de sua doutrina
revolucionária.
Quaisquer que sejam as circunstâncias de fato sob as quais Artaud foi preso e
deportado de Dublin a Le Havre em setembro de 1937, alguma espécie de crise parece ter
sido inevitável: ao atuar seu conflito com o mundo de modo tão literal, ele estava
convidando uma resposta igualmente literal, a do confinamento psiquiátrico. O rótulo
diagnóstico sob o qual ele foi internado era “esquizofrenia paranoide”, mas é demasiado
simples reduzir todo o processo de patologização que eu venho descrevendo até o
momento e enfiá-lo novamente em uma psique individual “louca”. A patologização
individual sempre se encontra em uma relação diametral com um idioma coletivo (de
discurso, de pensamento ou de fantasia) e essa relação é torcida para um lado ou para o
outro: imagem-espelho, inversão, reversão positivo-negativa, etc. Em nenhuma parte,
essa reversão é mais dramática do que na paranoia; e no caso do fanatismo religioso (e,
posteriormente, antirreligioso) de Artaud é também repleta de complicações.
Em primeiro lugar, como Hillman aponta em sua palestra em Eranos de 1985, a
paranoia, em sua forma religiosa,
... é dada com nossa Weltbild teológica. Consequentemente, a psiquiatria não
pode alcançar a paranoia endêmica, o potencial delirante, em indivíduos sem
abordar sua fonte no coletivo: aquela necessidade doutrinal de que um deus
oculto revele a si mesmo e as revelações desse deus não podem ser claramente
distinguidas de delírios.25
Então, há um protótipo cultural para a revelação inspirada. No entanto, ao mesmo
tempo, como Kierkegaard demonstrou, o encontro crucial é interior, pessoal e, portanto,
sem justificativa objetiva.26 De qualquer modo, quaisquer que possam ser as técnicas
teológicas para distinguir entre revelações verdadeiras e falsas – e, como Hillman sugere,
elas podem não ser nitidamente separáveis -, a psiquiatria, com sua posição resolutamente
materialista, suspeita agressivamente de qualquer experiência visionária ou
transcendental. O discurso sobre essas experiências é normalmente desqualificado de
antemão. Essencialmente, o relacionamento entre revelação e psiquiatria equivale a um
cabo de guerra hermenêutico: o paciente ou a paciente insiste na verdade irrefutável de
sua experiência, enquanto o psiquiatra não pode conferir-lhe nenhum outro status exceto
o de sintoma.
Essa dificuldade é agravada pelo fato de que, em uma cultura cujas pressuposições
de fundo são poderosamente dualistas, a tendência é haver um hiato problemático entre o
físico e o espiritual. Uma consequência disso é que as experiências que dizem respeito ao
domínio intermediário da alma tendem a ser capturadas por um ou por outro desses polos
– a tornarem-se somatizadas ou espiritualizadas. Em ambos os casos, elas são tomadas
literalmente, como doença ou como revelação. 27 Nas primeiras obras de Artaud, como
vimos, a tensão entre o físico e o metafísico está tanto esticada ao limite quanto, em
reação, comprimida de modos que desafiam a categorização dualista. Há momentos –
notavelmente em sua regressão entusiasta ao cristianismo em 1943 – em que a
complexidade e a profundidade de sua escrita são um tanto quanto simplificadas por sua
adoção de um idioma religioso; mas há muitos outros momentos em que a linguagem que
emprega é tão radicalmente metafórica que é impossível sustentar tais discriminações.
Mesmo em seus relatos iniciais de sofrimento, o mental é descrito em termos do físico e
vice-versa:
Que a alma de uma pessoa decepcione sua língua, ou a língua de uma pessoa,
a sua mente, e que essa ruptura trace no plano dos sentidos algo como um
vasto sulco de sangue e desespero, aí está o grande sofrimento que mina não
a casca e a armadura, mas a SUBSTÂNCIA dos corpos.28
Nos escritos posteriores de Artaud, de 1943 em diante, essa combinação de mente
e corpo, de interno e externo é tão persistente que equivale a uma metáfora radical: em
vez de um ser descrito em termos dos atributos de outro de modo que o empréstimo possa
ser sempre considerado, os dois domínios são mapeados um no outro simultaneamente,
assim tornando a leitura de um em termos do outro impossível. De algum modo, por meio
de um esforço inimaginável ao longo de cinco anos de solidão, de uma excomunhão
praticamente completa do mundo exterior e de aproximar-se à inanição, Artaud começou
a desenvolver um modo de escrever que era profundamente subversivo em relação à
maioria das categorias de pensamento instaladas na linguagem: distinções entre realidade
interior e exterior, agências materiais e imateriais, processos mentais e físicos.
No exato momento em que, tendo sido transferido ao hospício mais terapêutico
em Rodez, Artaud começou, em setembro de 1943, a vislumbrar a possibilidade de atingir
mais uma vez algum tipo de público, encontrou-se forçado a submeter a autoridade de
sua escrita ao julgamento psiquiátrico. Para o Dr. Ferdière, que estava familiarizado com
a obra anterior de Artaud, havia diferenças nítidas entre o que denominava “delírio” e a
literatura. Ele buscava restaurar Artaud ao que ele próprio considerava a escrita adequada.
O espetáculo de um poeta ser ameaçado, se mencionasse “encantamento” (envoûtement)
uma vez mais, com eletrochoque por um médico cujos preconceitos literários tinham o
respaldo da força psiquiátrica é tragicômico, mas os efeitos devastadores do tratamento
de choque e a real possibilidade de que sua eventual liberdade dependesse de que
cumprisse as tarefas literárias que lhe foram atribuídas fez com que, a Artaud, parecesse
Ferdière o agente cego da cultura de que tentava escapar. Terá sido um acidente que uma
das primeiras tarefas propostas por Ferdière era de que Artaud refinasse algumas versões
francesas precisamente do Capítulo 6 de “Through the Looking-Glass” [“Através do
espelho”] no qual a utilidade da linguagem está em questão? Em todos os casos, a
“tradução” de Artaud, embora geralmente “fiel”, é assinalada por desvios significativos
que a tornam profundamente irônica.
A longa lida do confinamento ocasionou uma espécie de enantiodromia, por meio
da qual o drama que Artaud havia atuado no palco do mundo agora deitava-se sobre si
mesmo, como ele comentou, quando, em fevereiro de 1945, se propôs a relançar Le
Theatre et Son Double [O teatro e seu duplo]:
Não há mais nenhuma questão de uma viagem à terra dos Tarahumarans ou à
Irlanda, mas de uma viagem mais dramática e caótica, que, se não combina
com as convulsões geográficas do globo terrestre... somente traduz melhor os
espasmos genésicos de um pensamento em plena formação, em plena
essência, naquele ponto crucial de explosão mental em que os verbos da
Palavra ainda não emergiram e ainda não nasceram, mas em que a alma está
em chamas como uma terra que invasões de bárbaros deslocam em todas as
direções, e esses bárbaros são paixões-desejos, estados psíquicos internos, os
eflúvios e os aromas do ego no momento em que toma forma no ser
inconsciente o que será força-drama e pensamento no Manifesto.29
Esse drama não é “internalizado” nos termos da filosofia empobrecida, sugerida
pelos truques-conjuradores de “projeção”, “introjeção”, etc.: é uma forma complexa e
altamente desenvolvida de patologização, cuja retórica contradiz toda segregação
simplista entre realidade externa e interna. Sua “paranoia” não é mais literalizada, mas
radicalmente metafórica. Sobre o discurso metafórico, Hillman escreve que
... as posições que ele declara são flexionadas por uma voz que o dispara entre
aspas. Simultaneamente, ele diz algo e vê através do que diz. 30
O perigo é que, se equivocado, esse “ver através” poderia levar à suspensão de
experiências reais em uma terra de ninguém de “como se”. Ao passo que Artaud se refere
à infiltração insidiosa e real de seu pensamento por estruturas implícitas na própria
linguagem que é forçado a empregar:
A linguagem gramatical moderna, como é, aproxima-se demasiadamente ao
seu modo de claramente agarrar um falso assunto. Ela obriga você a construir
somente dentro do repertório de coisas que são lúcidas, ou seja, coisas que já
são iluminadas, em vez de, a cada vez, ir procurar, no obscuro, por um
desconhecido cuja vida lúcida lhe será dada por meio do esforço e por meio
da vontade. O que eu estou fazendo é escapar da claridade para lançar luz no
obscuro.31
As Lettres de Rodez [Cartas de Rodez], escritas próximo ao fim de 1945 e
publicadas em 1946, quase ao mesmo tempo em que foi final e relutantemente concedida
a Artaud sua liberdade, são a primeira amostra pública de sua voz real, triunfante. Essa
voz é polifônica: carregada com as mais sutis nuances de tom, do malicioso ao lírico, da
exasperação à exaltação, atravessando o obsceno e o sublime, o trágico e o cômico:
Eu sou o fundo do poço, diz o homem na rua, para indicar que ele está em um
beco sem saída, que a prata do espelho de sua alma é uma fossa perfurada
para ele. E essa alma é poesia, e a poesia perdida é uma alma da qual, hoje
em dia, ninguém quer mais nada. Eu não sei se os Tarahumarans realmente
queriam algo dessa alma, húmus, lívido pela decomposição, e que, por meio
do húmus e do vírus, faz ácido, ácido da vida após a morte dentro da vida.
Viver é eternamente sobreviver a si mesmo, ao remastigar o próprio ego
excremental, sem qualquer medo de sua alma fecal, uma força faminta de
sepultamento. Pois toda humanidade quer viver, mas não quer pagar o preço,
e o preço é o preço do medo. Para ser, há um medo a ser superado, e essa
superação consiste em levar o medo, todo o caixão sexual da escuridão do
medo, em si mesmo, como corpo integrante da alma, de toda a alma desde o
infinito, sem recurso a qualquer deus atrás de si. E sem esquecer nada de si
mesmo. E quando encantos (“spells”) têm lugar, dia após dia em toda Paris,
para impedir-me de carpir minha alma, de recuperar seu orifício enterrado,
que toda religião tem sido suficientemente insignificante para declarar selado
com uma proibição, ninguém continuará a me dizer e ninguém virá aqui me
dizer que sou louco por procurar esse balsamo corporal da alma, o material
mágico da poesia. Pois é disso que sou acusado e é por isso que fui colocado
em uma camisa de força, envenenado e colocado para dormir via
eletricidade, é por ter querido encontrar o material fundamental da alma e
liberá-lo em fluidos radicais. Esses lançadores de encantos não são somente
toda Paris; eles são, hoje em dia, toda a terra, todos sob o comando, obedecido
em toda a parte, dos mestres odiosos do Himalaia. Que não são nada menos
que a subconsciência de toda baixeza ou de todo crime, do mais imundo e do
crime de todos os homens, e que transportam a si mesmos, com o corpo inteiro
de cada um dos homens, para o Himalaia, pensando em lá colocarem-se fora
do alcance da raiva que tem brotado em mim nesses quarenta e nove anos.32
Eu quero me concentrar nesses “lançamentos de encantamentos” porque eles são
um elemento tão crucial na patologização de Artaud e porque eles são tão facilmente
confundidos com a paranoia. O termo evidentemente deriva de fontes mágicas e ocultas
que são conhecidas, ainda que não exatamente de domínio público, e que são uma
característica de sua escrita a partir do final da década de 1930. O idioma do ocultismo é
híbrido, não somente em sua mistura de figuras egípcias, assírias e cristãs, mas mais
fundamentalmente nos termos do que Chögyam Trungpa denominou “materialismo
espiritual”, em suas viagens astrais e duplos etéreos, que pairam no limite entre realidade
material e metafísica. A literatura de encantamentos e exorcismos ocultos atribui a doença
a ações maliciosas à distância, acredita literalmente na potência das imagens mentais,
postula um efeito rebote a todas as influências mágicas e designa um papel chave ao
excremento.33 Todas essas características podem ser encontradas nos escritos de Artaud.
Mas seus envoûtements não são tão ingênuos: de fato, são uma inversão profundamente
irônica e paradoxal da perspectiva a partir da qual ele é visto como perturbado e sua
função retórica é colorida pelo humour noir.
A retórica do envoûtement é, portanto, inerentemente paradoxal: ela concretiza
influência e efeitos que seriam, caso contrário, invisíveis, faz colapsar o metafísico no
físico e dá uma forma tangível e dramática à pressão tácita do conformismo burguês
contra o qual Artaud tinha que lutar continuamente:
Cada linha que traço em um desenho ou que escrevo em um texto representa
um peso sem limites a ser levantado na minha consciência em virtude da
resistência à consciência de todos, exceto alguns raros amigos como você.34
Porém Artaud torna impossível a nós tratar esses envoûtements simplesmente
como figuras de linguagem: seu detalhe físico e circunstancial, sua especificidade
grotesca e escandalosa impedem-nos de desativá-los desse modo, ao mesmo tempo em
que eles desafiam a categorização como “paranoides”. Eles podem ser vistos como uma
forma de personificar extrema e irônica, cujo tema é a consciência humana em um nível
coletivo. A ironia é tanto um modo de dizer algo quanto de não o dizer; é uma forma
típica de discurso sob coação. Apela a um público ausente ou invisível: é intensamente
vulnerável e, entretanto, é um modo de ter a última palavra impronunciável. O idioma de
envoûtements tricota, unindo-os, uma quantidade de fios que eu desembaracei da obra de
Artaud: eles encenam uma encarnação dramática do pensamento, eles são uma contra-
dicção do uso convencional da linguagem e eles empregam algumas das táticas mais
extremas da patologização. Eles nos forçam a reconhecer o caráter profundamente
antagônico da patologização e a sua natureza arquetipicamente histriônica.
Pode-se dizer que os escritos tardios de Artaud, de 1945 em diante, encorporam
suas ideias de teatro, sejam seus tópicos teatrais ou não. É um teatro que brinca com e
sobre a patologia, esteja ela localizada nele ou no mundo como um todo. Em um texto
escrito no último ano de sua vida, ele falou de “perturbar o ator”:
O teatro de verdade é muito mais assustador, é muito mais
perturbador.
estado espasmódico do coração aberto
dando tudo
ao que não existe
e ao que não é
e nada ao que é, ao que se pode ver
ao que se encerra35
a no que se pode repousar
e com o que se pode permanecer.
Mas quem
hoje
quer viver
no que
requer
ferir de modo
a permanecer
perturbado?36
1
James Hillman, Re-Visioning Psychology [Re-vendo a psicologia] (New York: Harper and Row, 1975),
57.
2
James Hillman, Healing Fiction [Ficções que curam] (Barrytown: Station Hill, 1983), 39.
3
Antonin Artaud, Oeuvres Complètes [Obras completas] (daqui em diante referido como O.C.) (Paris:
Gallimard), 120.
4
Jacques Rivière [Nota da tradutora].
5
La Nouvelle Revue Française [A nova revista francesa] [NT].
6
O Esprit francês abarca tanto o domínio intelectual quanto o espiritual.
7
Susan Sontag, Born Under Saturn [Sob o signo de Saturno] (New York: Vintage Books, 1981), 20.
8
Alfred Zeigler, Archetypal Medicine [Medicina arquetípica], traduzido por Gary V. Hartmann, (Dallas:
Spring Publications, 1983).
9
O.C. XXII, 67
10
O.C. I. 42
11
No original, “stress (or distress)”. [NT]
12
F. Nietzsche, The Birth of Tragedy [O Nascimento da tragédia], traduzido por Frances Golfing, (New
York: Doubleday, 1956).
13
Ibid, pp. 39-40 (ênfase minha).
14
O.C. I 12
15
Ver, por exemplo, a reavaliação de “auto perturbação” esquizofrênica em Instrospection, Schizophrenia
and the Fragmentation of Self, [Introspecção, esquizofrenia e a fragmentação do eu], Louis A. Sass em
“Representations” [“Representações”], N. 19, Summer 1987.
16
Esses ensaios começaram a ser publicados em 1932 e foram reunidos, mais tarde, sob o título Le Theatre
et Son Double [O teatro e seu duplo], publicado em 1938, quando Artaud estava internado há um ano.
17
O.C. V, 273.
18
O.C. IV, 157.
19
O.C. IV, 109.
20
O.C. IV, 109.
21
No original, “lulled into a false sense of security”. Do inglês, “lull into” é fazer com que uma pessoa se
sinta à salvo de modo a enganá-la. [NT]
22
O.C. IV, 139-40.
23
O.C. IV, 147.
24
Hillman, R. P., 89.
25
James Hillman, “On Paranoia” [“Sobre a paranoia”] (Ascona: Eranos Yearbook, 1985), 307.
26
Ver Kierkegaard, Fear and Trembling [Medo e tremor], traduzido por Walter Lowrie (New York:
Doubleday, 1954), 39-41.
27
Hillman, Eranos, 1985, 308.
28
O.C. I, 117-18.
29
O.C. XXV, 11.
30
Hillman, R. P., 156.
31
A. Artaud, texto tardio, não publicado.
32
O. C. IX, 175.
33
Ver, por exemplo, Anne Osmont, Envoûtements et Exorcismes’ à travers les Ages [Encantamentos e
exorcismos através dos tempos], (Paris: Omnium Littéraire, 1954).
34
O.C. IX, 81.
35
Na citação realizada em inglês por MacLagan, “clinches”. “To clinch” pode ser traduzido como “fechar
(um acordo)” ou como “abraçar apaixonadamente”. [NT]
36
“Aliéner L’Actèur” [“Alienar o ator”] em L’Arbalete No. 13, S.

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