Você está na página 1de 13

Teatro e terapia.

Dioniso na vida cotidiana

Ginette Paris1
(Montreal)

Traduzido por Flora Schroeder Garcia

Uma de minhas colegas é uma psicóloga com uma prática um tanto quanto
inusitada. Ela trabalha em parceria com médicos que encaminham cônjuges de pacientes
que têm doenças crônicas ou terminais. Ela não vê o paciente, somente o cônjuge. Após
cinco anos de prática, ela descobriu que aqueles cônjuges que, além do fardo do marido
ou da esposa doente, tinham que cuidar de crianças mais novas estavam, de algum modo,
em melhores circunstâncias. Mesmo se essa situação significasse muito mais trabalho,
fadiga e responsabilidades pesadas, os cônjuges ficavam menos deprimidos e
recuperavam-se mais rapidamente da morte do companheiro do que os demais. Curiosa a
respeito dessa descoberta, ela perguntou-lhes por que eles estariam em melhores
condições do que aqueles com menos responsabilidades e mais tempo livre.
Cada um, a seu modo, disse-lhe que a proximidade cotidiana com crianças
pequenas os forçava a agir alegremente, a esconder seu sofrimento e sua aflição, a agir
com tranquilidade mesmo quando, interiormente, o sentimento fosse de desespero. Se as
crianças fossem expostas às ansiedades do adulto, uma situação ainda pior poderia
desenvolver-se e tornar-se um pesadelo completo. Na medida em que o papel da mãe ou
do pai seguros de si, serenos e amigáveis, que colocam as crianças na cama, que
cozinham, que servem as refeições, que dão banho ou que leem uma história antes de
dormir é um papel alegre, o adulto encontra nesses momentos um escape de sua situação
triste e frequentemente devastadora.
A mãe ou o pai que, apesar da dor e da perturbação que possa estar sentindo
interiormente, finge que tudo está em paz está brincando1 com a criança que, por sua vez,
guia-lhe e proporciona-lhe limites. A mãe ou o pai e a criança têm um contrato
inconsciente: eles fazem de conta que “tudo está indo bem”. Seria absurdo perguntar-lhe

1
Ginette Paris é professora de Psicologia Social na University du Quebec, Montreal. Ela é a autor de Pagan
Grace [Graça pagã] (Spring, 1989) e Pagan Meditations: The Worlds of Aphrodite, Artemis and Hestia
[Meditações pagãs: Os mundos de Afrodite, Artêmis e Héstia] (Spring, 1986). Esse artigo, uma introdução
ao seu trabalho sobre psicodrama arquetípico, foi proferido na conferência “Myth and Theatre” [“Mito e
Teatro”] de 1987 em Chateau de Malérargues, França.
se estão sendo verdadeiros, assim como é tolice perguntar a uma criança se ela está sendo
verdadeira quando está brincando; trata-se de verdade honesta e brincadeira honesta.
Estão brincando e isso está fazendo a ambos muito bem. Jogos somente tornam-se falsos
quando os tomamos literalmente, quando os denominamos “realidade”, ou seja, quando
queremos parar de brincar para sermos sérios.
A sua experiência não está distante da nossa, com ou sem crianças, com ou sem
um cônjuge doente. Quem nunca esteve em uma situação emocional desesperadora e foi
forçado a manter uma máscara alegre? Por exemplo, estar em uma posição em que você
deveria mostrar atitudes profissionais de entusiasmo e de receptividade quando você
preferiria mostrar uma máscara carrancuda parece inicialmente um esforço. Porém,
frequentemente o sentimento que estava sendo encenado torna-se nosso e nós tornamo-
nos um com a máscara. É como entendo a popularidade de uma abordagem psicológica
tão simplista quanto “pensar positivo”. Essa abordagem é construída em torno de uma
prescrição fundamental: substituir fantasias e papeis negativos por positivos. Se repito
para mim mesma: “Eu sou forte, eu sou forte” com frequência suficiente e se ajo como se
fosse forte, então posso tornar-me forte. Exceto pelo fato de que não se pode basear uma
psicologia inteira exclusivamente no lado positivo de uma única experiência interior, não
mais do que em um único arquétipo, e exceto por uma determinada aplicação simplista
do método, pode-se ver por que essa abordagem desperta interesse. Para aqueles que
vestem a máscara do tédio, da timidez e da inferioridade, o pensamento positivo pode agir
como um terreno de treino para um papel mais positivo, relaxado ou poderoso.
Agir como se não estivemos perturbados, quando nos sentimos em pânico, pode
parecer uma mentira. Porém, isso ocorre somente porque se presume que há uma e
somente uma emoção genuína e que qualquer comportamento que não seja uma expressão
dessa emoção única, profunda, verdadeira é enganoso. Irving Goffman, em seu livro The
Presentation of Self in Everyday Life [A apresentação do eu na vida cotidiana]2 define
sinceridade como “confiança em nossa própria performance” enquanto o cinismo seria
não se importar com a plateia e zombar daqueles que acreditam em nossa performance.
Essas definições de sinceridade e de cinismo são adequadas a um ponto de vista
dionisíaco. O ator não sente que engana a plateia a respeito de sua identidade porque sabe,
como nós sabemos, que está interpretando um papel, vestindo uma máscara. Se ele não é
cínico, no sentido de Goffman, põe tudo de si em seu papel e tenta ser para a plateia o
personagem que finge ser. Enquanto isso, o ator não se preocupa se está sendo verdadeiro
em relação ao seu “eu real”. Ele é verdadeiramente um ator. Como nós todos somos.
Dioniso não é o ator atrás da máscara. Ele é a máscara.

Em nossa cultura psicológica, a procura pelo eu real e verdadeiro oculta uma


fantasia anti-dionisíaca e tipicamente monoteísta. Nós não reconhecemos facilmente
Dioniso, patrono dos atores, que nos convida a interpretar todos os papeis - trágicos assim
como cômicos, grotescos assim como solenes - com intensidade, com espírito e com brio.
Para conhecer Dioniso, nós devemos aceitar a identificação com a máscara em vez de
buscar por algo atrás da máscara.
Porém, essa identificação, por mais intensa que seja, é temporária. Como deus do
carnaval, do baile de máscaras, ele está preocupado com a constante metamorfose de
identidade e opõe-se a qualquer identificação fixa com um papel. Para ser dionisíaco, é
necessário não apenas se identificar plenamente com a pessoa, a divindade ou o animal
que a máscara retrata, mas também aceitar que essa identificação nunca é definitiva e
final. Assim que não há mais brincadeira, que não há mais movimento, nós deixamos
Dioniso por outro arquétipo (talvez Saturno ou Hestia... que não gostam de mudanças...).
O Dioniso mais conhecido pelos mitólogos e antropólogos é o relacionado ao
bacanal ou à tragédia grega clássica, uma vez que o deus tinha o seu santuário no palco e
que o seu sacerdote tinha um assento de honra no teatro. Porém, pode-se perguntar: por
que, com tanta frequência, restringe-se Dioniso à forma clássica do teatro enquanto outros
deuses e deusas não eram restritos a seus templos? E quanto às mênades dançando nas
montanhas? Nós compreendemos com facilidade que Afrodite, por exemplo, está
presente onde quer que haja atração sexual e podemos reconhecê-la no desejo tímido,
incerto, assim como na experiência sexual mais extática e extravagante. Então por que
não reconhecer Dioniso onde quer que e quando quer que haja fantasia, dramatização,
interpretação de papeis?
Não se pode escapar à fantasia, mesmo quando se narra somente os fatos reais da
própria vida. Onde quer que haja um Narrador (e como poderia não haver?) não há
biografia objetiva, assim como não há história objetiva, uma vez que qualquer biografia
implica uma perspectiva arquetípica a partir da qual os eventos, os humores, as qualidades
que constituem uma história são selecionados. A mesma história de vida pode ser contada
a partir do meu ponto de vista enquanto herói ou a partir do meu ponto de vista enquanto
vítima. Como vemos com frequência em terapia, uma mulher que, na frente de seus
amigos, conta sua história como um contínuo combate feminista contra o machismo, irá,
em um contexto diferente, sentir e contar sua história a partir do ponto de vista da esposa
submissa, da mãe tradicional, da filha fiel. Nós temos muitas histórias, muitas biografias
porque nós somos habitados por muitas pessoas arquetípicas e estamos constantemente
editando o roteiro de nossa vida. Walter Ong afirma que há um processo denominado
“ficcionalização” não somente em culturas orais, pré-literárias, como já é bastante
reconhecido, mas em nossa cultura literária também. Nenhum escritor, ele argumenta,
pode escrever sem fantasiar um público. Mesmo um diário pessoal, que não é dirigido a
qualquer público expresso.
Dioniso é normalmente apresentado como uma figura extrema, destemperada, o
que é certamente um aspecto importante do arquétipo. Porém, isso o mantém dentro dos
limites de ocasiões carnavalescas ou de situações intensas e trágicas e, assim, o mantém
fora da vida cotidiana. E nós perdemos o Dioniso do dia-a-dia, o deus das máscaras.
Conhecê-lo não é desmascará-lo, mas examinar de modo mais profundo a máscara.
Já na década de 1950, Simone de Beauvoir examinou de modo mais profundo as
máscaras vestidas por homens e mulheres. Ela descreveu em detalhes como uma mulher
forte performa o desamparo e termina por acreditar nele, como garotas jovens perdem
deliberadamente em jogos competitivos com garotos e como solicita-se a uma mulher
adulta que não desafie a superioridade das opiniões e do status de homens. Assim como
a longa linhagem de acadêmicas feministas que escreveram posteriormente sobre papeis
de gênero, ela compreendeu que a máscara feminina era projetada para a conveniência da
plateia masculina - não para acentuar a performance feminina. O feminismo apontou o
grau de cinismo inevitavelmente atingido quando um homem e uma mulher são forçados
a encenar em uma peça que desprezam, com máscaras com as quais não podem se
identificar. Nesse contexto, nós ainda necessitamos da ferocidade e do caos de Dioniso
para destruir velhos papeis, para destroçar o palco, para arruinar o cenário, para destituir
os diretores e, o mais difícil de tudo, para derrubar em nós mesmos a rigidez dos velhos
hábitos. Nós precisamos ser lembrados de que estamos interpretando papeis, de modo que
nada é fixo. Quando o papel no jogo parece jugo3, atando, contendo, atrapalhando-nos,
ele pode ser abandonado ocasionalmente, como no bacanal, ou permanentemente, como
na revolução e na revolta. Porém, o Dioniso do dia-a-dia pode também agir de modo mais
gentil, precisamente auxiliando-nos a não compreender de modo literal a interpretação.
Para o classicista Jean-Pierre Vernant4, Dioniso é o que estilhaça a perspectiva positiva,
para a qual há apenas uma interpretação, uma verdade, um lugar definido para todos e
para tudo. Ele define Dioniso como o deus que nos introduz ao mundo da Alteridade. Para
sermos capazes de interpretar muitos papeis, nós devemos ter esse sentido embutido do
Outro, que é ocasionado pelo dionisíaco.
Evidentemente, deve-se encontrar um equilíbrio entre, por um lado, a patologia
de quem pensa que não veste máscara nenhuma e que não participa de jogo nenhum e,
por outro, a patologia de quem não consegue se comprometer com papeis substanciais,
com papeis de longo prazo, sentindo que toda atitude é, no fim das contas, interpretação
de papeis, que nada é real ou digno de ser levado a sério5. O primeiro acredita que não
interpreta nenhum papel, quando, de fato, interpreta somente um e permanece
rigidamente fiel a ele; o segundo é um mau ator e a sua performance é inadequada devido
à falta de ensaios e às encenações malfeitas. Ao nos depararmos com uma má
performance, nosso estranhamento não vem do fato de que há uma pessoa que veste uma
máscara, mas de que a máscara é vestida de modo errado. Psicólogos verão mais
prontamente a patologia de quem acredita que tudo é um jogo do que de quem acredita
que não joga nenhum jogo. Não esqueçamos que a psicologia frequentemente favoreceu
uma definição de saúde mental em que não há espaço para o jogo. Pierre Janet, um antigo
e influente teórico da psicologia científica, por exemplo, descreveu maturidade como a
escolha de uma identidade e o fim de uma multidirecionalidade aberta. O endireitamento
e a fixação do ego foi concebido como o estágio final na construção da personalidade.
Janet insistiu no lado negativo da interpretação de papeis, na tensão e na contradição entre
papeis e na necessidade de unidade da personalidade.
A psicologia humanista tomou a direção oposta na medida em que presumia a
multiplicidade de papeis na vida cotidiana. Porém, a procura humanista pelo eu autêntico
pode ser tomada ainda como anti-dionisíaca uma vez que a máscara de Dioniso não é algo
atrás do qual uma pessoa se esconde - é a própria imagem por meio da qual uma pessoa
se conecta ao arquétipo. O ascético, que nunca permitirá um pouco de diversão, um pouco
de embriaguez, que proíbe o excesso e que teme a intensidade, não é o único tipo anti-
dionisíaco. A fantasia de que encontrarei, um dia, meu eu autêntico, o que está atrás da
máscara, atrás do espelho, atrás dos papeis, é também uma perspectiva anti-dionisíaca. A
negação de Dioniso carrega uma separação perigosa entre, por um lado, meu Eu
Verdadeiro, que defino como bom, profundo e autêntico e, por outro lado, o papel social,
que não depende de mim, que é somente uma máscara que sou obrigado a vestir para
viver no mundo e que me dispensa de questionar a santidade do meu eu profundo.
Levada ao seu extremo, tal recusa de identificar-se com a máscara conduz ao tipo
de pessoa que poderia tornar-se um torturador nazista enquanto continuaria a ver a si
mesma como sensível e refinada porque, em sua vida privada, ouve, com emoção, Mozart.
Ela não questiona seu “Eu Verdadeiro”, uma vez que é sensível; ama música, crianças e
flores. É o outro, o que veste o uniforme militar, que se comporta como um bruto, mas
esse é somente uma máscara, uma máscara que esconde o Eu Sensível Verdadeiro. Se
uma pessoa é verdadeiramente dionisíaca, não há como saber quem está atrás da máscara,
uma vez que a própria máscara é uma divindade e uma divindade não será tratada como
um acessório que se pode pendurar no armário. Kerenyi6 menciona que o homem
moderno parece estar obcecado com a ideia de que, se nós pudéssemos colocar todas as
máscaras de lado, seríamos liberados e o homem original, primitivo, bom seria revelado.
Porém, de novo, essa é a máscara concebida enquanto algo atrás do qual uma pessoa se
esconde e essa definição negativa é exatamente o oposto do antigo conceito de máscara,
que era concebida como um elo entre a pessoa e o animal, o ancestral ou a divindade
arquetípicos encarnados na máscara.
A nossa atitude negativa em relação a quem consideramos que “está vestindo uma
máscara” não é uma atitude negativa em relação à máscara, mas uma recusa em permitir
que uma pessoa desempenhe determinado papel devido ao poder conferido por esse papel.
Nós não concordamos, por exemplo, que Fulano tenha o direito de adotar uma atitude
paternal em relação a nós ou a vestir um semblante que insinue superioridade. Nós nos
defendemos não contra máscaras, e sim contra quem percebemos como ladrões que
roubam máscaras poderosas que não têm o direito de vestir. Quando um adolescente se
rebela contra papeis adultos, nós tendemos a ver essa rebeldia como a de uma alma jovem
cortando caminho em meio à falsidade de jogos adultos e suportando nossa falta de
autenticidade. Há alguma verdade nisso, pois os adolescentes podem compreender a
falsidade de certas atitudes. Porém, pode ser ainda que o adolescente esteja expressando
sua frustração porque teve que esperar tempo demasiado pela oportunidade de interpretar
um papel consistente. Os papeis oferecidos são inacreditavelmente deficientes em
substância, variedade, intensidade. Zombando de nossa performance enquanto adultos,
os adolescentes reclamam. A raiva deles é similar à raiva de feministas descobrindo a
insignificância, a solidão e o desprezo que acompanham alguns papeis de mulheres. Essas
mulheres não aplaudirão o herói masculino pelos mesmos motivos que os jovens
depreciam os adultos que monopolizam o palco e que conseguem todas as honras. Ambos
estão dispostos a desempenhar papeis, mas acham inaceitável que certas categorias de
atores sejam autorizadas a interpretar papeis importantes enquanto outras sejam limitadas
a suprir papeis coadjuvantes.
Interpretação de papeis

Ao longo da história da Psicologia Social, o conceito de interpretação de papeis


(“role-playing”) têm sido crucial. A palavra “role” [“papel”] vem de rotulus, que, em
latim, significa rolo, e rotulus vem de rota, que significa roda. Inicialmente, rotulus
referia-se ao pedaço de papel, enrolado em torno de um cilindro, sobre o qual eram
escritos os processos judiciais ou referia-se ao texto de um ator escrito em um rotulus. É
desse último significado que obtemos a palavra “role”. Porém, a partir do século XI, o
termo “role” adquiriu o sentido figurado de posição social ou profissão. Então a analogia
entre o papel do ator e o papel social é tão antiga quanto o próprio termo e os sociólogos
certamente não inventaram o termo “interpretação de papeis”.
Shakespeare é, com frequência, citado, uma vez que ao menos um de seus
personagens via o mundo como um palco no qual representamos, cada qual a seu turno,
nossos papeis. De fato, Shakespeare emprega o termo “play”7 em uma variedade
fantástica de contextos e significados. Assim, “Fortune play upon thy prosperous helm”
[“Fortuna toque em vosso próspero leme”], All’s Well That Ends Well [Tudo está bem
quando termina bem], III, 3, 7; “Victory with little loss doth play upon the dancing banner
of the French” [“Vitória, com pouca perda, brinca na bandeira dançante dos franceses”],
King John [Rei John], II, 1, 307; “Warm life plays in that infant’s veins” [“Vida cálida
jorra nas veias daquela criança”], King John, III, 4, 132; “Those happy smiles that play’d
upon her ripe lip” [“Aqueles felizes sorrisos que brincam em seu lábio maduro”], King
Lear [Rei Lear], IV, 3, 22.
Os adjetivos que Shakespeare emprega mais frequentemente com “play” são:
falso, sujo ou justo; ou seja, pode-se jogar de modo justo ou falso, mas sempre se joga.
E, após Shakespeare, LaFontaine, o fabulista, escreveu também que a história da raça
humana era como uma “play of one hundred acts, with the universe as stage” [“peça
teatral em cem atos, com o universo como palco”].
Proust foi outro grande mestre em retratar as habilidades de representar papeis.
Aqui estão dois exemplos de sua percepção clara desse fenômeno.
A primeira citação é de A caminho de Guermantes. Após uma semana em uma
pequena vila onde havia ido visitar seu amigo St. Loup, retornava a pé para a estação de
trem. Não havia sentido em permanecer ali, uma vez que St. Loup deveria retornar às suas
obrigações militares. Porém, eles não haviam tido a oportunidade de se despedirem na
noite anterior. Repentinamente, Proust vê uma carruagem aberta em que se encontrava
St. Loup, mas o homem não se detém para se despedir, em vez disso executa a saudação
militar.8
Eu já havia observado em Balbec que, lado a lado com a sinceridade infantil
de sua face, cuja pele tornava visível, por sua transparência, a repentina maré
de certas emoções, seu corpo havia sido admiravelmente treinado para
executar um certo número de dissimulações bem-educadas, e que ele, como
um ator consumado, podia, em sua vida regimental e social, interpretar
alternadamente papeis bastante diferentes. Em um de seus papeis, ele amava-
me ternamente, agia em relação a mim quase como se houvesse sido meu
irmão; meu irmão ele havia sido, ele era agora novamente, mas, por um
momento, naquele dia, ele tinha sido outra pessoa que não me conhecia e que,
segurando suas rédeas, com seu monóculo aparafusado em um olho, sem um
olhar ou um sorriso, havia levantado sua mão desimpedida ao topo de seu
chapéu para dar-me corretamente a saudação militar.
Uma segunda citação 9 irá mostrar como Proust compreendia a interação entre os muitos
personagens diferentes que são parte de nós mesmos. A mulher que ele ama, Albertine,
acaba de partir e ele simplesmente não pode acreditar. Antes que ele possa se dar conta
plenamente de que ela se foi, seus muitos eus devem ser informados de que, realmente,
ela se foi:
E, assim, a cada momento, havia mais um daqueles inumeráveis e humildes
“eus”, que compõem nossa personalidade, que não estavam ainda cientes da
partida de Albertine e que deviam ser informados disso; eu era obrigado – e
isso era mais cruel do que se eles houvessem sido estranhos e não houvessem
tomado de empréstimo minha sensibilidade para a dor - a descrever a todos
esses “eus”, que ainda não sabiam disso, a calamidade que havia ocorrido; era
necessário que cada um a seu turno ouvisse pela primeira vez as palavras
“Albertine pediu suas caixas”.
A psicologia social10 definiu papel como “a soma de modelos culturais em associação a
um determinado status”. Na Idade Média, “status” significava um conjunto de regras
impostas a membros do mesmo ofício ou profissão. O termo ainda tem o significado de
um conjunto de regras e regulamentos. É um contexto estático, de modo algum dionisíaco.
No primeiríssimo dia, em qualquer organização, nós normalmente sabemos qual é nosso
status e, quanto maior é a organização, mais precisa é a definição. O próprio termo
“bureaucracy” [“burocracia”] vem de “bureau”, que originalmente significava o
aposento em que o status da organização era escrito e mantido.
O status é a porção estática, o que facilita que seja escrito e aprendido. Mas um
papel é um conceito dinâmico e não é tão facilmente definido. Quando quer que nós
passemos a ocupar um novo status, é necessário tempo para aprender o papel, para
encontrar nosso estilo, para experimentar novas atitudes, para infundir nossas qualidades
pessoais no papel, ocasionalmente até mesmo para desenvolver essas qualidades pessoais.
O papel lentamente torna-se parte de nossa identidade, enquanto o status permanece com
a organização. Essa fusão do papel com personalidade levou antigos psicólogos sociais,
como Gordon Allport11, em 1937, a definir personalidade como a integração de todos os
componentes do status e do papel de uma pessoa na sociedade. No mesmo ano, Moreno,
um psiquiatra que havia sido ator e diretor, definiu o neurótico como alguém cujo
repertório de papeis é escasso e ressecado, o que o impede de se adaptar aos múltiplos
requisitos da vida em sociedade. Certos papeis não estão disponíveis para o neurótico
porque foram reprimidos. Para ajudar o neurótico a diversificar o repertório de respostas
comportamentais, Moreno desenvolveu sua famosa técnica do psicodrama. Essa técnica
terapêutica obteve grande sucesso nas décadas de 1950 e 1960 e, embora tenha sido
desenvolvida originalmente em um contexto clínico, logo escapou de Moreno, tendo sido
adaptada para tratar todos os tipos de problemas pessoais e interpessoais e tendo sido
usada largamente em contextos organizacionais. O psicodrama de Moreno foi uma
tentativa de aproximar teatro e terapia e, como tal, foi muito dionisíaco.
Quando o psicodrama perdeu sua popularidade, a Gestalt-terapia, especialmente
sob a influência daquele magnífico brincalhão, Fritz Perls, reconheceu o poder liberador
do jogo psicodramático. Perls propôs toda uma gama de técnicas. Por exemplo, ele
sugeriria um diálogo entre duas partes do eu, a dominante, que, de acordo com Perls, era
o “manda-chuva”, entrando em conversação com o azarão dominado. Perls não estava
acima de utilizar alguns acessórios para intensificar o drama: cadeiras, chapéus,
almofadas, raquetes de tênis... Tanto a abordagem de Moreno quanto a Gestalt-terapia
têm como objetivo ajudar os participantes a criarem um novo roteiro para o seu drama, a
encontrarem novas palavras, novas emoções e novos gestos que possibilitem que emerjam
da impotência do papel de figurante silencioso. E, uma vez que o roteiro é uma pista para
o personagem e que o personagem é uma pista para o mito, esse tipo de jogo aumenta a
consciência sobre o seu próprio mito pessoal. Um participante poderia perguntar: “Como
posso agir quando meu pai ataca minha mãe, pois ele também é meu pai? As palavras que
vêm a mim são as de uma criança assustada ou a de um herói em defesa de sua mãe? E
como poderia dizer à minha mãe que não posso servi-la como seu defensor contra o
marido dela?”. Uma mulher pode procurar palavras e gestos para expressar emoção, pode
praticar uma recusa agressiva à situação que suga sua energia. Outra pessoa aprende o
papel de ouvinte, como o homem de negócios que sempre deu ordens e que não sabia
como ser, em vez de um chefe, um pai para sua filha. Por meio da interpretação, ele
experimentou o papel de pai atento.
Inevitavelmente, as técnicas do psicodrama e os exercícios da Gestalt-terapia
conduzem o grupo ao seio da tragédia, uma tragédia interrompida por episódios burlescos,
assim como na tradição dionisíaca. Há um momento em que parece mesmo haver uma
competição: a vida de quem é mais trágica, a dor de quem é mais intensa, o problema de
quem é mais complexo... E, no entanto, foi exatamente assim que a tragédia começou:
com uma competição de lamentações. O prêmio era conferido ao autor que era mais bem
sucedido em mover a plateia por meio da dor de seus heróis. Dioniso ama exibir-se,
mesmo na dor e na aflição da vida. Ele nos dá estilo em nossas explosões de emoção,
nossas fúrias, nossos chiliques infantis, nossas cenas de amor, nossas brigas domésticas.
Porém, há mais. Ele pede que nós demos igual intensidade, competência e sinceridade à
nossa interpretação cotidiana de papeis e, ao fazê-lo, ele protege a vida coletiva, que é tão
vulnerável à chatice.

Dioniso na organização

Um ressurgimento dionisíaco poderia vir de uma revisão de nossas instituições a


partir do ponto de vista de sua teatralidade, qualidade de encenação e oportunidades de
interpretação de papeis. Nós colocamos muito esforço na análise financeira, política,
tecnológica, estrutural de nossas instituições e organizações. Mas e a análise
dramatúrgica? O que Goffman 12 nomeia de “recompensa ritualista”, pelo que se refere à
oportunidade que uma pessoa tem de se exibir, de ser vista e aprovada no exercício de um
papel, está em falta na maior parte de nossas instituições, mesmo em nossas escolas, onde
seria mais necessária, uma vez que nenhuma pessoa jovem irá aprender sem algum tipo
de recompensa ritualista.
Algumas organizações - sobretudo, aquelas que não possuem os meios de dar
recompensas monetárias e que não têm muito tempo para festas - poderiam dar mais
dessas recompensas ritualísticas. Tais recompensas são necessárias àqueles cujos papeis
são discretos demais, cujos títulos são modestos demais, cujos uniformes são sem graça
demais; seus espaços não decorados, seus trabalhos simples demais.
Na maioria das organizações, há uma separação entre, por um lado, aqueles que
realizam o trabalho e que produzem os bens e, por outro, aqueles que têm a tarefa de
“exibir-se” em relações públicas, representando a organização, ocasionalmente
personificando-a. Ganham a atenção, o prestígio e a consideração que acompanha o
sucesso da organização, enquanto os outros ficam atrás, na sombra.
Esse não é um bom equilíbrio de energias dionisíacas. Aqueles no primeiro grupo
adquirem um sorriso congelado e um aperto de mão frio em consequência da pressão
excessiva e da falta de satisfação íntima por um trabalho bem feito, enquanto aqueles no
segundo grupo ficam frustrados e deprimidos devido à falta de reconhecimento do papel
crucial que desempenham na organização. Estão privados de Dioniso, mesmo que haja
festas em abundância. Nenhuma quantidade de agitação-da-vida-noturna pode substituir
inteiramente a qualidade dionisíaca que está ausente no emprego.
Nós necessitamos de um novo apreço pela teatralidade, definida pela psicologia
como uma “tendência em direção a manifestações emocionais espetaculares” e
desvalorizada pela sua associação à histeria. O desconforto que se sente em relação ao
que parece escandaloso, excessivamente enfático ou declamatório deve-se
frequentemente à frigidez da plateia e não à teatralidade das emoções. A necessidade de
se apresentar aos outros de um modo espetacular torna-se histérica somente quando
Dioniso é deixado de fora da cultura. Ele quer receber atenção - quando quer que nós
exibamos nossos adornos, seja o chapéu de um chef, o vestido de noiva branco, a toga do
juiz, a beca da faculdade ou, até mesmo, o traje de corrida. E ele quer mais disso porque
há um prazer e uma vitalidade que vêm de mudar nosso repertório e porque essas roupas
são figurinos de nossas peças. À medida que nós damos ao deus o que lhe é devido,
percebemos que, além de comédia, drama e tragédia, há também farsa, melodrama, show
de variedades, vaudeville, titeragem, contos de fadas, drama de detetive, esquete
publicitário, libreto, ópera, novela televisiva, peça teatral de mistério, peça de milagre13,
julgamento, boletim de notícias, jogo de trívia... Dioniso é o arquétipo que pode nos
ajudar a escolher o gênero ou, ao menos, a tomar consciência dele. Uma vez que sentimos
o gênero, podemos tomar consciência também da estrutura dramática - por exemplo, de
que nossas “peças domésticas” estejam divididas em atos ou em episódios semanais e de
que incluam diálogos, monólogos, prólogos, diatribes e assim por diante.
Nós necessitamos de mais do que um Dioniso que seja uma espécie de diabo
encerrado no Id freudiano, irrompendo periodicamente como um demônio vaporoso de
uma caldeira a gás superaquecida. A perspectiva dionisíaca está lá para nos lembrarmos
de que somos atores em um palco, mas também de que somos mais ou menos livres para
reescrever papeis quando o tédio ou a opressão estiverem nos matando. Dioniso não serve
somente para festas, uma vez que não há noção de coletivo sem drama, ação e suspense,
implicados na rotina cotidiana.
Nenhuma máscara pode nos pertencer definitiva ou exclusivamente; as máscaras
pertencem às divindades. Elas são símbolos pelos quais nós nos comunicamos com a
multiplicidade da realidade arquetípica. Assim que nós começamos a nos familiarizar
com nossas presenças interiores, necessitamos de uma psicologia que não se esforce por
eliminar personalidades secundárias de modo a reforçar o monólogo do ego. A psicologia
arquetípica é uma abordagem que abre um baú repleto de fantasias e de máscaras e que
reconhece o gênio dramático da psiquê operante em nossas histórias de vida. Se nós
pudermos aceitar verdadeiramente a perspectiva dionisíaca, poderemos ver Dioniso como
mais do que um aliado de bacantes histéricas, desgrenhadas e de mulheres sobre quem
presume-se geralmente que dramatizam sempre tudo. O deus pode tornar-se um guia, um
terapeuta, onde quer que haja um papel a desempenhar.
1
O termo “play” aparece diversas vezes ao longo do texto enquanto substantivo e enquanto verbo. Nesse
último caso, pode ser traduzido como “brincar”; “desempenhar”, “interpretar” ou “representar” um papel
em uma peça teatral, um filme, etc.; “jogar”; “tocar” um instrumento. Ao longo desse artigo, foi traduzido
como “brincar”, “desempenhar”, “interpretar”, “jogar”, “representar”, além de como “brincadeira”, “jogo”,
“peça teatral” e “representação”. [NT]
2
Irving Goffman, The Presentation of Self in Everyday Life [A apresentação do eu na vida cotidiana]
(Londres, Penguin Press, 1969).
3
No original, “When roles feel like yokes […]”. Pode ser traduzido, com perda do jogo sonoro, como
“Quando os papeis parecem jugos [...]”. Para reproduzir a sonoridade como foi possível, optei pelo
acréscimo. [NT]
4
Jean-Pierre Vernant, Mythe et Tragédie II [Mito e Tragédia II]. Ed. La Decouverte, 1986, 250.
5
No original, “taken to heart”. Literalmente, “levado ao coração”. A tradução dessa expressão idiomática
para o português é “levado à sério”. Nesse caso, é problemática pela relação com a seriedade, pois Paris
parece aproximar, anteriormente, seriedade e rigidez anti-dionisíaca. [NT]
6
Carl Kerenyi, Man and Mask [Homem e máscara] em Papers from the Eranos Yearbook Vol. IV [Papeis
do Anuário de Eranos]. J. Campbell, ed.
7
Ver nota 1. [NT]
8
Marcel Proust, Remembrance of Things Past [Em busca do tempo perdido], Volume III, The Guermantes
Way [O caminho de Guermantes], traduzido por Scott Moncrieff e Frederick Blossom (New York: Random
House, 1930).
9
Marcel Proust, Remembrance of Things Past [Em busca do tempo perdido]. The Sweat Cheat Gone [A
fugitiva], traduzido por Scott Moncrieff e Frederick Blossom (New York: Random House, 1930), 17.
10
R. Linton, The Cultural Background of Personality [O contexto cultural da personalidade] (New York:
Appleton Century. 1945). (Linton era antropólogo e foi um dos primeiros a escrever sobre o papel depois
de G. H. Mead).
11
Gordon Allport, Personality: a Psychological Interpretation [Personalidade: uma interpretação
psicológica] (New York: Holt, 1937).
12
Irving Goffman, The Presentation of Self in Everyday Life [A apresentação do eu na vida cotidiana]
(Londres, Penguin Press, 1969), 213: “Ceremonial reward” [“Recompensa cerimonial”].
13
A peça de milagre é um gênero teatral medieval. [NT]

Você também pode gostar