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O mito de Narciso sob a ótica da Psicanálise

Nesta sexta-feira estive no Cinema e Psicanálise e assisti ao filme “O


retrato de Dorian Gray”, baseado no livro de mesmo título escrito por
Oscar Wilde. Vale lembrar que, além deste filme, há outras filmagens da
mesma obra, embora eu não as tenha visto.

Grande parte das discussões após a exibição do filme giraram em torno


da temática do narcisismo. Como o propósito do post não é analisar o
filme e sim o narcisismo, sugiro que leiam a obra de Oscar Wilde e
assistam ao filme para compreender melhor a discussão.

Diante disso, resolvi revisitar mais uma vez o mito de Narciso e passo
agora a descrevê-lo na íntegra para que nenhum detalhe se perca.

O mito:

Narciso, em grego Nárkissos (nárkes= torpor, de onde deriva a palavra


narcótico), era filho de Liríope e Cefiso. Sua mãe muito assustada com a
beleza do filho foi procurar o sábio Tirésias que tinha a capacidade de
ver o futuro. Ela perguntou se Narciso viveria até ficar velho e ele
responde: “Sim, desde que não veja a própria imagem”. Narciso seguia
rejeitando todas as belas donzelas que, exatamente por isso, nutriam
profunda paixão por ele.
Um dia a bela ninfa Eco (a quem Hera condenou a repetir sempre a
última palavra proferida pelos outros dada sua necessidade de sempre
ter a última palavra nas discussões) avistou Narciso, que caçava nas
montanhas, e se encantou por tamanha beleza. Narciso ouvindo o
barulho, perguntou: “Há alguém aqui?” e Eco respondeu: “Aqui?” Então,

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Narciso, vendo a ninfa correr em sua direção disse: “Afaste-se. Prefiro
morrer a te deixar me possuir”. Eco fugiu envergonhada e se refugiou
para sempre nas cavernas. Suas carnes definharam de tanta tristeza. Por
isso, Narciso fora castigado por Nêmesis a ter um amor impossível.

Então, um dia, enquanto Narciso caminhava próximo a uma fonte clara,


por estar exausto, debruçou-se sobre a fonte e avistou a figura mais
perfeita que jamais tinha visto. Não pôde se conter e lançou seus braços
em direção àquele ser maravilhoso. Nesse instante, o ser sumiu, para
depois retornar. Narciso perguntou: “Porque me rejeitas, bela criatura?
Se quando eu sorrio, você sorri? Se não posso te possuir, que pelo menos
eu possa mirar para sempre a sua beleza”. E assim, Narciso ficou por
dias, meses e anos a mirar a imagem maravilhosa na água. Esquecendo-
se de se alimentar, seu corpo perdeu paulatinamente o vigor e as cores,
até morrer. As ninfas choraram o seu triste destino e no lugar em que
estava seu corpo sem vida, nasceu uma linda flor amarela de mesmo
nome.

Considerações psicanalíticas sobre o mito:

Sabemos que os mitos gregos transmitem de forma intensa e poética


dramas universais humanos. Penso que a palavra grega nárkes já
carrega em si mesma um sentido interessante para discutirmos o
torpor, o efeito narcótico e hipnótico que a autoimagem de Narciso (e de
todos nós) possuía sobre ele. E é por isso que o sábio Tirésias disse que
ele só poderia chegar à velhice se não avistasse a sua imagem. Nesse
sentido, o mito de Narciso contém uma ideia preciosa sobre a vida e o
desenvolvimento mental (chegada à velhice): se não abandonamos esta
espécie de torpor ou efeito narcotizante que a nossa imagem (o nosso
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narcisismo) exerce sobre nós, a vida corre perigo. De acordo com Bion,
teremos dificuldade de ir do Narcismo para o Socialismo (vínculos,
relação com o outro).

Eco busca Narciso:

É interessante também no mito que seja Eco (que usualmente


conhecemos pelo som gerado por uma única voz em lugares grandes e
vazios, condição frequentemente encontrada em cavernas) a buscar
Narciso. Nesse sentido, podemos considerar que Narciso (aquele que
está condenado a amar a si mesmo) não pode se relacionar com nada a
não ser com seu próprio Eco.

Nesta passagem, é muito interessante quando Eco diz para Narciso se


juntar a ela e ele diz: “Prefiro morrer a te deixar me possuir”. Ou seja,
não há nada mais assustador e terrível para o narcisismo que se deixar
possuir por um outro, que não ele mesmo. E, tanto no caso do mito
quanto no caso de Dorian Gray, a “moral da história” é a mesma: quando
a necessidade dos vínculos é negada, quando há um fechamento da
libido em si mesmo, negando-se a própria condição de dependência e
fragilidade humana, o que resta é a inanição e a morte.

Mas porque assumir a necessidade dos vínculos e a condição de


dependência é tão terrível ao narcista? Porque, no caso de Dorian Gray,
havia um pacto de amor à própria imagem, que o levou ao
enlouquecimento e à morte? Outra questão importante: não haveria
dentro de todos nós um estado narcísico (ou pactos narcísicos), que em
graus menos ou mais graves, nos levariam à inanição e morte em vida?

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Vínculos e dependência

Para responder à primeira questão, é necessário recorrer brevemente a


algumas das teorias sobre o narcismo. Freud trouxe contribuições
importantes para compreender o narcisismo que, segundo ele, seria um
momento desenvolvimental vivido pelo bebê, anterior à descoberta do
objeto materno. Segundo Freud, a libido (amor, sexualidade vital) pode
estar investida ou catexizada em dois “lugares”: 1) no próprio corpo (o
que configuraria uma libido narcísica); 2) no objeto, no outro (libido
objetal). Para ele, no início, o bebê investe toda sua libido em si mesmo
vivendo um estado de completa completude e onipotência. Por isso ele
chama o bebê de “sua majestade”. Aos poucos, este bebê vai descobrindo
a necessidade do objeto (leite, afeto materno) e passa a investir sua
libido em seu primeiro objeto de amor: a mãe.

Winnicott contribuiu ainda mais com esta compreensão do narcisismo


quando disse que, na condição de uma necessidade absoluta do
ambiente e de fragilidade física e mental, o bebê precisa que a mãe vá
apresentando a ele o mundo em pequenas doses. Por isso, nos primeiros
meses de vida, o bebê precisa achar que é ele que cria tudo: o leite, o
mundo. É o que ele chama de momento de ilusão. Se a mãe não é sensível
o suficiente para tolerar este estado precário do bebê e apresentar a ele
o mundo em pequenas doses (porque aqui ele ainda não tem condições
de compreender, por exemplo, o que é o tempo e o espaço do seu corpo),
falhas cruciais em seu narcisismo vão permanecer e este indivíduo,
mesmo adulto, terá dificuldades para dirigir sua libido ao outro.

Alguns outros autores que discutem o narcisismo, por outro lado,


consideram que, muito mais do que falhas ambientais, a organização

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narcisista da personalidade é gerada por uma intensa ação da pulsão de
morte que nega toda a realidade da condição humana: a morte, a
precariedade física e mental e a necessidade de dependermos do outro.
Segundo tais autores, o narcisista (em graus menos acentuados, todos
nós temos uma porção narcisista em nossas personalidades), negariam
esta realidade, bem como suas realidades internas (dores, angústias e
frustrações).

Era o que parecia fazer Dorian quando passou a depositar no quadro


(duplo dele) todos os aspectos de sua personalidade que não podiam ser
tolerados, sonhados e pensados por ele. Esta realidade alucinatória
criada por ele obviamente não poderia se manter por muito tempo
porque é falsa e contraria totalmente a condição humana finita, limitada
e precária. Por isso, o filme mostra a sua paulatina decadência,
sofrimento mental e morte.

Assim, seja por falhas ambientais (traumas precoces) vividas pelo bebê,
seja por fatores constitucionais que carregam a personalidade com altas
doses de pulsão de morte, o fato é que o narcisismo, tal como mito
mostra tão bem, por negar a dependência e a importância dos vínculos,
remete o sujeito à inanição mental e à morte.

O narcisismo nosso de cada dia:

Levantei uma outra questão intrigante no texto: o narcisismo é um


estado patológico ou uma vivência presente (e necessária também) para
a manutenção da vida de todos nós? E, se o narcisismo é necessário,
quando é que ele começa a ser mortífero e perigoso à vida?

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Esta é uma questão difícil. André Green, importante autor psicanalítico
contemporâneo, assevera ser necessário discriminarmos o que é
narcisismo de vida e narcisismo de morte.

Narcisismo de vida, conforme eu compreendo, é tudo aquilo que nos


mantêm em contato conosco, com a nossa autoestima, com o respeito
necessário que temos que ter para conosco, para com as nossas ideias,
com o nosso corpo e mente. Alimentar-se bem, exercitar-se com
regularidade, amar as próprias ideias e criações, embora também sendo
capaz de aceitar e conter o diferente…tudo isso a meu ver é narcisismo
de vida e absolutamente crucial para não nos perdermos no outro.

Já o narcisismo de morte estaria ligado à uma excessiva e desmedida


preocupação consigo mesmo a ponto de nos esquecermos da existência
e necessidades do outro que está ao nosso lado bem como o ódio à nossa
condição de dependência e finitude. Estas vivências patológicas e
intensas, muito presentes em patologias atuais, tais como, os
transtornos de personalidade, são muito danosas ao desenvolvimento
porque matam qualquer possibilidade de que o sujeito se abra para os
vínculos e para o reconhecimento de suas falhas e limitações.

Dorian Gray e Narciso:

Tanto no caso de Dorian Gray quanto de Narciso o que estava presente


era o narcisismo de morte. O que regia suas personalidades era um
absoluto ódio diante da condição humana, a arrogância diante do outro
e a onipotência. Ressalto que no caso de Dorian Gray, em um dos
momentos dramáticos do filme, quando ele mata um de seus melhores
amigos, ele parte em uma viagem e envia cartas a um conhecido dizendo

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que ele era um Deus. Trata-se de um estado delirante e psicótico em que
as delimitações entre a realidade e as fantasias ficam borradas,
impedindo cada vez mais o sujeito de tolerar suas percepções externas
e internas.

Narcisismo e cultura:

Para finalizar, gostaria de situar que, apesar da obra de Oscar Wilde ter
sido escrita em 1890, esta é uma temática ainda muito atual e considero
que permanecerá sendo enquanto houver humanos sobre a terra.

Particularmente hoje em dia, pelo fato de vivermos um momento


histórico em que as pessoas toleram pouco suas frustrações e condição
humana, a temática do narcisismo nunca foi mais atual.

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