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O CANTO DO CISNE VERSÃO MOÇAMBIQUE

Estudo dramático em um ato

personagens
um ator velho cômico de 68 anos, ou mais.

Soprinho, um mais bem velho profissional do


ponto.

(A ação acontece num palco carro alegórico:


um teatro de província, à noite, depois da
apresentação.
Um palco despojado de teatro provinciano de
segunda categoria:
A direita uma fileira de portas sem pintura e
mal pregas, que levam aos camarins;
o plano esquerdo e o fundo do palco estão
atulhados de cacarecos.
No centro do palco, um banco caído.
Noite. Escuridão.)
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ATOR
(no figurino de Calchas,
personagem da peça
"Troilo e Cressilda" de Shakespeare,
sai de um camarim, com uma vela na mão,
rindo às gargalhadas)

ahahahaha
Puxa vida!
ahahahaah
Essa é boa!
ahahahaha
Essa é demais!
ahahahah
Esqueceram de mim no camarim!

O espetáculo já acabou faz tempo,


Todo mundo foi embora do teatro
E eu fiquei assim
dormindo no camarim...
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Eu dormi no camarim!
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Nossa...
Ah, seu maluco,
seu doido!
dormindo que nem um cachorro surdo!

quer dizer então,


que você encheu a cara a ponto de dormir
sentado!?

Que gênio!

Parabéns, pra você,


Nesta data querida
Muitas felicidades,
muitos anos de vida!

Capeta!?
Capeta, você tá aí?!
Diacho!
Dagô?!
A essa hora os demônios estão roncando...
Capeta!
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(Vai em direção ao banco caído e levanta)


Nada...
Não se ouve um pio...
Nem o eco responde...
E ainda hoje eu dei dinheiro pra eles...
Dinheiro sempre traz felicidade.
(olha em volta)
Mas na hora que você precisa
nem a morte
encontra esses demônios...
Aquela pressa
Saíram e fecharam tudo
Me deixaram preso aqui...
Funcionários de merda!
gentalha, gentalha, gentalha…
funcionários malditos!
povo maldito

Que um espírito perverso


Perdido nas sombras macabras
Arraste vocês pro fundo dos infernos
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(movendo a cabeça)
Ainda estou tonto!
Afe! Como eu brindei e bebi
por conta da homenagem!
Deus do céu!
Até o suor está cheirando álcool,
a língua está parecendo uma lixa...
Não tenho mais idade pra essas coisas...
estou enjoado...

Esqueceram de mim no camarim!

Ai...
(levanta e senta)
Ai...
Tudo dói... e com som
Ai...
Som pra levantar
Ai...
Som pra sentar
Idade do condor.
(canta Idade do Condor)
Com dor... nas costas
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Condor... no ombro
Condor... nas juntas
Condor... nas articulações
e tanto arrepio pelo corpo
Com dor... nas costas
Condor... no ombro
Condor... nos joelhos
Condor... nas articulações
E por dentro nada
só um frio
sem esperança... de mudança.

Meu Deus! Fiquei velho...


Por mais que você finja que não vê
Por mais que você se faça de besta
o que foi feito está feito!
Anos e anos e anos se passaram, adeus!
Foi embora como fumaça!
Não tem como voltar...

Da garrafa toda
sobrou só um restinho no fundo...
Sobrou a borra...
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Assim é que as coisas são, meu caro...


Por bem ou por mal,
Chegou o momento
de ensaiar o papel principal do velório.
A Velhinha... que leva todos ...
continua por aqui...
(fala pra si)
Caramba!
Tanto tempo aqui
E estou vendo tudo
como se fosse a primeira vez!!!
Que engraçado!
A boca de cena
A fila do gargarejo
Quem senta aqui
senta na fila do perdigoto
As arquibancadas
A cabine da técnica
Eu tenho que falar e todos tem que ouvir
Da fila do gargarejo até
A fila onde se senta a velhinha
da última fileira
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(Grita)
aaaahahahahahhahhahhahhahhha
que frio!!! ...
Tem Um vento encanado por aqui...
Eita lugar encantado, cheio de espíritos!

“a hora enfeitiçada da noite chega...


É quando os cemitérios bocejam
e o inferno solta seus bafos
contaminando este mundo.
agora posso beber sangue quente
e fazer os tais negócios amargos,
que o dia treme todo só de olhar.”
(grita)
Capeta!
Onde foi que vocês se enfiaram,
demônios dos infernos?!
Malditos!!! Cancerosos!!! Morféticos
Demônios das trevas eternas

Deus! quanta blasfêmia!!!


O que é que está me inspirando tanto
a chamar pelo tinhoso ?
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Bom: com esse figurino de bufão...


enjoado.

Vamos passar desta para melhor.

O diabo desse lugar


parece que fala com a gente.
Que medo!!!

(Dirige-se para o seu camarim; no mesmo


instante, aparece um vulto, vestido com um
cobertor)
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II
ATOR
(dá um grito de pavor e recua)
Quem é você?
O que é que você quer?
O que você veio fazer aqui?

SOPRINHO:
(Sopra)
Sou eu!

ATOR
Sou eu?

SOPRINHO:
(Aproximando-se dele bem devagar)
Sou eu, o ponto...
que soprava os textos dali...
o ponto, Soprinho... sou eu!
Quando vocês esqueciam o texto
Era eu que soprava.
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Vocês faziam um sinal...


Se passasse a mão na cabeça, no rosto,
Se levantasse os braços
Ou pusesse a mão no pescoço...
Era o sinal de que esqueceu o texto
E eu soprava.

ATOR
(Prostrado, deixa-se cair sobre o banco, respira
com dificuldade e treme dos pés à cabeça)
Soprinho?
É você...
você, Soprinho?
Mas o que...
que você está fazendo aqui?

SOPRINHO:
Eu durmo aqui, mas ninguém sabe
fico à noite nos camarins.
Por tudo que é sagrado,
não conta pro segurança
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nem pros funcionários


se descobrem, me botam pra fora...
Eu não tenho onde morar

ATOR
Soprinho,
Teve palmas, teve flores, teve homenagens,
Todo mundo me cumprimentou...
Mas nem uma alma caridosa
pra se lembrar de mim.
Pra se preocupar em me levar pra casa
esqueceram de mim
no camarim.
O mundo é assim, Soprinho...
Malditos!!!
Esqueceram de mim!
Mundo maldito! Gente maldita!

Virei velho
Tenho 68 anos
Não tenho utilidade pra esse mundo
Vou ter que morrer.
Que medo!
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Que medo!
SOPRINHO:
(com carinho e respeito)
Vai pra casa descansar em paz...

ATOR
(Bem doce)
Nada disso, não vou!
não, não e não!

SOPRINHO:
Como assim,
esqueceu pra onde todo mundo vai depois
daqui?

ATOR
(desesperado)
Não quero ir embora, não quero!
Não quero ficar enterrado no meu canto...
Só eu, sem ninguém comigo,
nem amigos, sem amor, sem mulher,
sem filhos, nada...
Sozinho, como um mendigo na madrugada...
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Assim que eu for embora


Ninguém vai se lembrar de mim
Quem se preocupa comigo?
Quem precisa de mim?
Quem me ama?
Ninguém me ama.

SOPRINHO:
O público, o público te ama.

ATOR
O público não está nem aí pra nós.
Está dormindo
Já esqueceu que sou o bufão.
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Vês! Ninguém assistiu ao formidável


Enterro de sua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!


O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!


O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena a tua chaga,


Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Não, ninguém me ama,


ninguém me quer.

SOPRINHO
Meu Deus do céu, Quanto drama!
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ATOR
É que eu sou uma pessoa,
um ser vivo,
o que corre nas minhas veias é sangue
e não água.
Sou uma pessoa nobre, Soprinho,
de boa origem...
Antes de cair neste buraco,
eu era outro, era um guerreiro...
Como eu era valente,
cheio de coragem,
de entusiasmo!
Deus, onde foi parar tudo isso, Soprinho?
e depois, que ator eu me tornei, hein?
(Levanta-se e apoia-se no braço do ponto)
Onde foi parar tudo isso,
o que fizeram desse tempo?

Olhei hoje para esta boca de cena


e assisti tudo, tudo!
Dei de comer pra essa boca
por anos da minha vida,
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e que vida, Soprinho!


agora eu vejo tudo,
nos mínimos detalhes,
como vejo o seu rosto.
A juventude cheia de entusiasmo, a fé, o tesão,
o amor da orgia!
A orgia, Soprinho!

SOPRINHO:
HI, Já passou da hora de ir deitar,

ATOR
Sabe, Uma criatura se apaixonou por mim
por causa da minha arte...

Criatura mais pura, mais cheia de graça.


Jovem, inocente, verdadeira
e fresca como uma manhã de verão...
No que olhava, No que sorria,
o tempo mudava,
a noite se iluminava.
O coração mais duro, mais gelado,
se derretia.
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Eu estava assim,
como estou agora diante de você...
vou levar pro túmulo esse olhar...
Carícia, veludo, voragem, brilho da juventude!
Ai, eu não aguento, caio a seus pés,
Te peço, por tudo.
Vamos ficar juntos?..
Sabe o que a criatura disse?

SOPRINHO:
E vamos viver de teatro!

ATOR
E vamos viver de teatro!
Está entendendo?

SOPRINHO
BONITINHA, MAS ORDINÁRIA

ATOR
O mineiro só é solidário no câncer!
Nelson Rodrigues
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SOPRINHO
– Você está alto, eu estou alto. É a hora de
rasgar o jogo. De tirar todas as máscaras.
Primeira pergunta:
Você é o que se chama um mau caráter?

ATOR
– Você está alto, eu estou alto. É a hora de
rasgar o jogo. De tirar todas as máscaras.
Primeira pergunta:
Você é o que se chama um mau caráter?

SOPRINHO
– Por que?

SOPRINHO
– (VACILANTE) Pelo seguinte.

SOPRINHO
– Fala.

SOPRINHO
– Estou precisando de um mau caráter.
Entende? De um mau caráter.

SOPRINHO
– Quem sabe?
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SOPRINHO
– Espera. Outra pergunta.
Você quer subir na vida? É ambicioso?

SOPRINHO
– Se sou ambicioso? Pra burro!
Você conhece o Otto? O Otto Lara Rezende?
O Otto!

SOPRINHO
– Um que é músico?

SOPRINHO
– músico? Onde? O Otto escreve. O Otto.
O mineiro jornalista! Tem um livro.
Não me lembro o nome. Um livro!

SOPRINHO
– Não conheço, mas...
Bola pra fora! Bola pra fora!

SOPRINHO
– O Otto é de arder! É de lascar!
E o Otto disse uma que eu considero o fino!
O fino! Disse:
“o mineiro só é solidário no câncer”.
Que tal?
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SOPRINHO
– (REPETINDO)
“O mineiro só é solidário no câncer.” Uma piada.

SOPRINHO
– (INFLAMADO) Aí é que está!
– Não é piada. Escuta, Dr. Peixoto.
A princípio eu também achei graça. Ri.
Mas depois veio a reação.
Aquilo ficou dentro de mim.
E eu não penso noutra coisa.
Palavra de honra!

SOPRINHO
– Uma frase!

SOPRINHO
– Mas uma frase que se instalou em mim.
Que está me comendo por dentro.
Uma frase roedora. E o que há por trás?
Sim, por trás da frase?
O mineiro só é solidário no câncer.
Mas olhe a sutileza. Não é bem o mineiro.
Ou não é só o mineiro. É o homem.
O ser humano. Eu, o senhor ou qualquer um,
só é solidário no câncer.
Compreendeu?
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SOPRINHO
– E daí?

SOPRINHO
– Daí eu posso ser um mau caráter.
E pra que pudores ou escrúpulos
se o homem só é solidário no câncer?
A frase do Otto mudou a minha vida.
Quero subir sim, quero vencer.

SOPRINHO
– Bem uma curiosidade:
- o que é que você faria , pra ficar rico?
Cheio do ouro? Milionário.

SOPRINHO
– Eu faria tudo!
Com a frase do Otto no bolso,
não tenho bandeira.
E, de mais a mais, sou filho de um homem.
Vou lhe contar. Quando meu pai morreu
tiveram de fazer uma subscrição,
vaquinha pro enterro.
Os vizinhos se cotizaram. Comigo é fogo.
A frase do Otto me ensinou.
Agora quero um caixão com aquele vidro, como
o do Getúlio.
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E enterro de penacho, mausoléu, o diabo.


Não sou defunto de cova rasa!

SOPRINHO
– Isso mesmo.
O Otto Lara é que está com a razão.

SOPRINHO
– (NUM REPELÃO DE BÊBADO)
O mineiro só é solidário no câncer.
E eu sou mau caráter, pronto!

ATOR
Naquele dia
entendi que não existe arte sagrada
É tudo conversa pra boi dormir
Estamos num negócio como outro qualquer,
Aplauso, sucesso, fotografia,
Não enche barriga.
Eu sou um produto
um produto pra vaidade do público
É tudo negócio.
(deixa-se cair sobre o banco)
É tudo negócio.
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SOPRINHO
Você está me deixando preocupado.
Vamos voltar? Me dá este prazer!

ATOR
Eu perdi minha ilusão
E paguei o preço pra descobrir isso.
Desde essa história... com essa criatura...
Fui atrás dos meus interesses...
sem compromisso com nada...
Fazendo qualquer papel
de bobo da corte, de gozador, de besta,
de má influência e, no entanto,
eu era um artista! Eu tinha talento!
Mas enterrei esse talento,
distorci minha linguagem,
falo sem pensar,
perdi a imagem e a semelhança divina...
Me entreguei pra um poço sem fundo.
ontem à noite eu percebi... quando acordei,
olhando para trás...
Que o que está feito está feito...
Finita la comédia!
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SOPRINHO:
Meu querido...
Vamos, sossega...
Meu Deus!
Capeta. Dagô.

ATOR
E que talento, que força!
Não pode imaginar que dicção
Quanto sentimento
Quanta elegância,
Quanta música
(golpeia o peito)
Tem dentro deste peito!

SOPRINHO
É noite, tudo é noite...

ATOR
Espera me dá um pouco de ar
O poeta Mário de Andrade,
O seu último poema:
A Meditação sobre o Tietê
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SOPRINHO
“Água do meu Tietê...
Onde me queres levar?
Rio, que adentras na terra...
E que me afasta do mar.
É noite. E tudo é noite.”
ATOR
“É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco
admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e
oliosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite tão vasta
O peito do rio, que é como se a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando de
apreensões
As altas torres do meu coração exausto. De
repente
O ólio das águas recolhe em cheio luzes
trêmulas,
É um susto. E num momento o rio
Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e
ruas,
Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam
Agora, arranha-céus valentes donde saltam
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Os bichos blau e os punidores gatos verdes,


Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e
fábricas,
Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada
forma
Humana corrupta da vida que muge e se
aplaude.
E se aclama e se falsifica e se esconde. E
deslumbra.
Mas é um momento só. Logo o rio escurece de
novo,
Está negro. As águas oliosas e pesadas se
aplacam
Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um
caminho de morte.
É noite. E tudo é noite. E o meu coração
devastado
É um rumor de germes insalubres pela noite
insone e humana.

Meu rio, meu Tietê, onde me levas?


Sarcástico rio que contradizes o curso das águas
E te afastas do mar e te adentras na terra dos
homens,
Onde me queres levar?...
Por que me proíbes assim praias e mar, por que
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Me impedes a fama das tempestades do


Atlântico
E os lindos versos que falam em partir e nunca
mais voltar?
Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da
terra,
Me induzindo com a tua insistência turrona
paulista
Para as tempestades humanas da vida, rio, meu
rio!...”

ATOR
E aí?
Como foi?
(vivamente)
Mais uma deixa eu mostrar...
Shakespeare, pode ser?.

SOPRINHO:
Laertes, o seu filho,
está partindo para a França...
O navio está no porto,
vento favorável, pronto pra partir
Ele está conversando com filha Ofélia
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ATOR
Ainda aí Laertes, já embarcar, vai embarcar!
o vento curva os ombros tua vela,
só estão te esperando!
Toma aqui, minha benção, vai com ela.
Guarda na memória estas poucas dicas:
Cuida da imagem.
Não dê língua pro que estiver pensando,
pra um pensamento irrefletido, ação nenhuma.
seja familiar, o que não quer dizer ser promíscuo
os amigos que tiver conquistado e aprovado,
não esquece
amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete
chaves dentro do coração
mas não caleja a mão abrindo a palma atoa
pra qualquer frangote ou mau elemento que
aparecer
Cuidado, pra não comprar briga mas se comprar
segura
de tal modo que o inimigo é que venha a temer
você
dê ouvidos a todo mundo, voz a poucos
aceita as opiniões de cada um
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mas guarda pra ti o teu julgamento


e que tuas roupas custem o quanto você puder
pagar
não inventa moda, ricas mas sem ostentação
porque a roupa sempre faz o homem
e na França nisso eles são os primeiros os
modelos
não empresta nem pede emprestado
emprestar faz perder ao mesmo tempo o
dinheiro e o amigo
pedir emprestado arrasa a confiança
e liquida com a poupança
acima de tudo seja fiel consigo mesmo
e em consequência não será falso com ninguém.
vai e que minha benção frutifique tudo isso em
você.

SOPRINHO:
Adoro!!
Shakespeare! Ham-let! Salve Polônio!
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ATOR
Vamos lá! Uma cena de Moçambique:
A CAVAQUEIRA DO POSTE,
De Sergio Mabombo!
SOPRINHO
Escuta...Tendeu!
Vamos improvisar para comermos.
Estás à Ouvir essa música?
Esses jovens que fazem música descartável
estão a comer feijão no terceiro andar,
no flat do maconde.
Chamam isso de festa de feijoada.
Então vamos lhes provocar:
logo que eles ficarem zangados,
vão nos atirar com qualquer comida
que tiverem na mão, percebe?

TENDEU
haaa já te copiei.
Mas com tanto pretexto para festa
eles foram logo para festa da feijoada...

CALVINO
Sim, e veja que até a televisão
faz cobertura total da festa da feijoada.
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TENDEU
Em ti falta vergonha, com esse tipo de
improvisos...

CALVINO
Exacto!
sem vergonha mas com fome.
Agora chega de conversa.
Vair enervar esses gajos
até te atirarem com massa esparguete,

TENDEU (olha pró terceiro andar do prédio)


Oh.. seus jovens barulhentos.
deixem nos dormir antes que haja guerra.

CALVINO- (aproximando-se ao amigo)


Seus pimbas.
Vocês não tem pontaria nenhuma
que ate parecem uns... uns...

TENDEU
...Uns velhos... (olhando para o Calvino)
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CALVINO (irritado com o amigo)


Cala-te! Vê-la o que falas.
(Para o prédio)
isso mesmo...
uns velhos sem sequer um braço...
(Dirige se para o poste)

TENDEU (ressentido, seguindo o outro)


-...desculpa aquilo do velho...
foi sem notar...

CALVINO
desculpa uma ova.
vai mas é continuar a trabalhar,
me faça essa cambada de música de máquinas
atirar comida cá para baixo.

TENDEU -(pro terceiro andar)-


seus franganotes.
festa da feijoada o que? ham?
aposto que vocês
nem são capazes de me acertar
com uma laranja na cabeça.
(esquiva uma laranja que caí do terceiro andar)
Olha! Atiraram, conseguimos,
é uma laranja.
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CALVINO
- Que caraças de laranja o que?
eu não quero laranja pá!

TENDEU
- Tá bom...tá bom... o que é que vai comer?

CALVINO
- Massas

TENDEU (De novo para o terceiro andar)


- vocês não têm pontaria nenhuma para me
acertar a cabeça com massa...(para o
outro)...cotovelo?.

CALVINO
- Não pá! Esparguete.

TENDEU
—Mas se é festa de feijoada
como é que vão ter massa esparguete?

CALVINO
Mas se é festa da feijoada
como é que tiveram a porcaria de laranja?
Continua à trabalhar ai.
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TENDEU
- Vocês não são capazes de me acertar
com massa esparguete...
vocês não são capazes de ....
(cai mais uma laranja)
Calvino! Hoje... só tem laranjas.

CALVINO :
Um tolo como você só pode conseguir laranjas.
há...claro! é o que você gosta... laranjas.
As minhas preferências que se lixem.
(pausa)
agora quero ver quem vai descascar
essa porcaria de laranja para ti.
Pausa longa

TENDEU
(com ar irónico, de gozo)
bom... na verdade eu pedi esta linda laranja,
amarela ... da cor amarela...
só para olhá-la com os olhos.
não há melhor espetáculo para a vista
do que a delicia de só olhar uma laranja.
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CALVINO
Cala-te porra ...cala te!
estou farto das tuas ironias.
(Mais calmo)
É incrível como os tempos mudam Tendeu.
Houve tempos de fartura
em que bastava mostrar a língua de fora
para alguém num prédio,
e ele nos atirava com massas esparguete...
ovos cozidos, mayonaise,
bolos de nata, batata doce...etc etc etc.
Se tivesses talento de provocação
até podia te atirar com uma boa sobremesa.
Mas agora temos esse vírus de crise alimentar
mundial.
Os que têm comida é difícil eles deitarem
comida no meu contentor.

TENDEU
Hoje só atiram lixo mesmo.

CALVINO
Mesmo hoje se atiram essa laranjinha que tens
na mão..

TENDEU
Suca...
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CALVINO
Desculpa..
Se eles atiram essa laranjinha cá para baixo
não é porque não sabem
que este jogo de provocação é uma farsa.
eles sabem que é uma mentira, um truque..
eles só atiram essa laranjinha
por uma questão de caridade.
caridade para conosco. Os cães..

TENDEU
Já te disse que não somos cães.

CALVINO
Somos cães sim.
Não conseguimos nada.

TENDEU
já te disse que não somos cães.
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CALVINO
E eu já te disse que ... que....
(faltam-lhe palavras).
Tá bom... você não é um cão.
mesmo vivendo aqui,
sem produzir nada,
apenas pedindo,
comendo das lixeiras...
você julga que não é um cão. como?
porque você julga que não é um cão?

TENDEU-
porque não tenho essa categoria ... de cão.
um cão meu caro...
se tiver sorte de ter um bom dono,
o que é muito frequente,
encarregam um gajo...um humano...
para lhe levar a passear,
lhe dar banho,
tirar o seu cocozinho.
Há um tipo que lhe proibiram de entrar
naquele hotel da baixa não vés?

CALVINO
há 28 anos
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TENDEU
Não entrou naquele hotel porque estava mal
vestido, ao mesmo tempo
que entrava um senhor com os seus cães.
Ontem um miúdo me mostrou no telefone
um cão que estava a pinar uma mulher branca.
Agora eu em toda minha vida
nunca tive metade desses privilégios.

CALVINO
Mas tens certeza que era um cão...
animal com uma mulher branca ...
pessoa...não entendo.

TENDEU
Era um cão preto, eu vi.

CALVINO :
Há! Você confundiu com estes rastas.
Porque essas mulheres modernas gostam destes
rastas.

TENDEU
Era um cão, te digo

CALVINO
Não entendo...
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TENDEU
Mas o que é que você não entende?
Simples, fica assim
(coloca o outro inclinado)
Suponhamos que eu sou o cão
E você é a mulher moderna.
(faz um gesto obsceno por detrás do amigo e se
ri da cena)

CALVINO
Opa... opa... vê lá hem
Não gosto
Me respeita ok

TENDEU
Estou a tentar te animar, não vês?

SOPRINHO
A CAVAQUEIRA DO POSTE,
De Sergio Mabombo!

ATOR:
Que força! Grande talento! Que artista!
Mais uma... mais uma esπecial
Do fundo do passado... Manda
(Ri de felicidade)
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Que fazemos?
Sim, isto.

SOPRINHO
Bacantes, último ato,
Kadmos, o governador
diante do corpo despedaçado do neto Penteu.

ATOR
Ai, filho! Ai, filho, você só vivia para os
seus, para a nossa casa, para o nosso
palácio,
nós tínhamos os olhos voltados só pra
você. Você: “nova visão da nossa Casa!”
Nosso povo te respeitava, te temia, e
contra o velho aqui ninguém ousava fazer
nada. Só de olhar na tua cara, de medo do
castigo, o inimigo já esfriava.
Agora, daqui, da capital da dor, vou ser
exilado no escândalo, na corrupção, na
desonra.
Eu, Kadmos, o íntegro, o sério, o
reconciliador, o aliancista!
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Eu, que a mais formosa seara tebana


semeei
…e ceifei.
(para os restos mortais)
Ó tu, o mais caro entre os mortais,
embora já não existas entre os que, como
tu também muito caros,
tu continuas o mais caro,
nessa minha última homenagem declaro,
antes do teu repouso eterno.
Agora, eu não passo de um coitado.
Você outro, mas já foi.
Sua mãe, sua tia, de dar dó.
Ah… Eu não merecia isso!
(para todos e para o corpo sem órgãos do
kosmos)
Se existe alguém que se ponha acima dos
deuses, não acredita, brinca, então que
venha aqui, no meu lugar estudar o caso
e vai ficar sabendo, vai começar a
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acreditar.

SOPRINHO:
"Tudo o que há no amor,
no crime, na guerra, na loucura,
nos deve ser devolvido pelo teatro
se ele pretende reencontrar a sua necessidade."

ATOR:
(ri às gargalhadas e aplaude)
Bravo! Bis! Bravo!
Com os diabos, quem falou em velhice?
Não há velhice alguma,
é tudo disparate, tolice.
O vigor jorra de todas das nossas veias como de
um chafariz,
- isto é juventude, viço, vitalidade!
Onde tem talento não tem velhice, Soprinho!

Por essa você não esperava, hem, tá avoado.


Tem mais, deixa eu me lembrar..
Oh, senhor, Deus meu!
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Tem mais alguém aí?

SOPRINHO:
Deve ser o Capeta e o Dagô.
Chegaram.
QUANTO TALENTO, QUANTO TALENTO

ATOR:
(se vira e grita na direção de onde veio o ruído)
Por aqui meus anjos!
Vamos mudar o figurino
A velhice não existe tudo isso é ficção música
(se ti alegremente a gargalha)
Mas POR QUE você está chorando Soprinho?
(soprinho vai saindo e se escondendo)
por que estão me olhando assim
O que é que está acontecendo.
chega, chega, ninguém mais vai chorar.
ONDE HÁ ARTE
ONDE HÁ TALENTO
ALI NÃO TEM VELHICE, NEM SOLIDÃO NEM
DOENÇA
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E A PROPRIA MORTE NÃO É O PERSONAGEM


MAIS IMPORTANTE
(CHORA)
Não soprinho, você tem razão agora chega
la comédia, nossa comédia, é finita

Talento! mas e daí?


Acabou eu sou um limão espremido
ultrapassado um traste velho
E você não passa de um velho rato de teatro, um
ponto, vamos.

Nem se despediu de mim!


Nem se despediu de mim!

Dia 22 de maio de 2023


12h 40m Pascoal e Roquildes
Kimbundu Português
SABU
49 YA KITUTU
MITO DA CAVEIRA
KYA WONGO
FALANTE
KIZWELA
Sayi dinyanga
dyakexine kuya Um caçador ia pelo mato.
nyangu.
Dyasange kitutu
Encontrou uma caveira
kya wongo
humana.
kyokulu.
Dinyanga
O caçador perguntou:
dyehudisa:
- Ihi yakubekela – Quem foi que te trouxe
haha? até aqui!?
- kitutu kya wongo
— A caveira falou:
kyatambwisa:
- Dizwi – A língua me trouxe até
dyangibekela haha! aqui!
- Dinyanga dyaye. — O caçador saiu
Dyasota Ngana. correndo. Procurou o rei.
Dyazwela kwa
Disse ao rei:
ngana:
Ngasange kitutu
– Encontrei uma caveira
kya wongo kya
humana no mato.
nthu nyango.
Kyazwela kala tata
Fala mais que pai e mãe.
ni mama.
Ngana yazwela: — O rei disse:
- Tunde mam’etu
– Nunca, desde que minha
kyangivala,
mãe me suportava, ouvi
kingevwami kwila
dizer que uma caveira
kitutu kya wongo
falasse.
kizwela.
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ATOR e SOPRINHO FAZEM JUNTXS


Quem é este que deseja um negócio destes?
Meu irmão, meu parente!
Não, meu iluminado companheiro.
Quem morre nesta labuta
é mais uma criatura que se foi nessa luta.

Se a gente estiver presente,


quanto mais gente ausente,
maior fração de glória sobra pra gente.
Pelo amor de Deus, eu lhe peço,
não deseje aqui nem uma única criatura a mais.

Juro por Zeus, não tenho ganância de ouro,


nem me importa quantos comem às minhas
custas.
Não me entristece ver outro homem vestindo
meus trajes.
Estas coisas exteriores não habitam meus
desejos.
Mas, se for pecado ter ganância de honra,
sou a alma mais pecadora aqui neste mundo dos
vivos.

Não, mano, por nossa fé,


não chore pra ter nem mais uma pessoa aqui.
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Acredite, não quero repartir com mais ninguém


tão grande honra,
pois tenho grandes esperanças.
Ah, primo, não queira uma única figurinha a
mais,
em vez disso, anuncie o seguinte:
quem que não tiver estômago para o combate
está liberado para abandonar o barco,
a porta da rua é serventia da casa
Não queremos lutar na companhia
De quem tem medo do risco da alegria.

Hoje é dia (...)


dia de (...).
Quem de nós que sobreviver à luta do dia de
hoje
e voltar pra casa são e salvo
ficará arrepiado sempre que esse dia for
mencionado
e vai virar fera só de ouvir falar em (...).
Quem que passar pelo dia de hoje
e chegar até a velhice
oferecerá a seus vizinhos todos os anos um
banquete sempre na véspera
e dirá amanhã é dia de (...).
E vai arregaçar as mangas, mostrar os
ferimentos e dizer
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estas cicatrizes eu ganhei no dia de (...).


A memória fica cada vez mais fraca...
Mas mesmo que tenha se esquecido de tudo,
Lembrará, contando vantagens,
das cenas daquele dia;
E vai brindar os nossos nomes,
e não se passará um único dia de (...),
de hoje até quando o mundo se acabar,
sem que sejamos lembrados.
nós um punhado de gente sortuda;
nós um bando de camaradas....
pois quem hoje aqui derrama seu sangue
estará pra sempre comigo.
Pode ser de qualquer condição,
o dia de hoje fará dessa criatura uma pessoa
nobre.
E as pessoas nobres que não estão presentes,
vão gemer de inveja porque não estavam aqui
e vão se considerar gente de menos qualidade
sempre que ouvirem falar das lutas do dia de
São Crispim (...).
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NIKITA
“Se alguém chega e te abraça,
com imensa alegria,
É teu dever tratá-lo com igual cortesia,”

ALCESTE
Eu acho tão indecente
Isso de se apresentar sem ser gente
Eu não engulo coisa tão deprimente,
Que a moda hoje em dia obriga a gente;
Não tem negocio que odeio tanto quanto
expressão corporal
as contorções de que vem se apresentar
quase em convulsões,
Que vantagem ouvir que alguém lhe ama,
Jurando consideração e amizade fama,
E lhe cobrir de elogios todo gentil,
Se lá fora ele diz o mesmo a um imbecil?
Não, pra uma alma justa, não tem sentido
um sentimento assim tão prostituído.
Quem gosta de todos não gosta de ninguém;
E se você pratica isso,
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Não tem comigo nenhum compromisso.


Recuso o coração que não seja quente,
que entre o bom e o mau se mostra indiferente.
Atuar assim não é ser sincero,
Esse amor pra mim é zero.

PHILINTE
No mundo em que se vive é preciso ceder,
Ser um pouco gentil pra poder conviver.

ALCESTE
Ao contrário, é preciso agir, com coragem,
É horrível o comércio na camaradagem.
Que a gente ao se apresentar,
Mostre o coração, na hora de falar,
Que nossos sentimentos
Não se escondam jamais em falsos movimentos.

PHILINTE
Mas em muitas praças, não dá pra abrir o
abcesso
O importante sempre é o sucesso.
Pra isso é que existe a autocensura
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pra te fazer atuar com reserva e com frescura.


Quando alguém te causa desgosto,
É justo atirar-lhe a verdade no rosto?

ALCESTE
É...

PHILINTE
O quê? E dizer:
Presidente deixa de ser demente!!!
Senadora seja a primeira
a parar de falar besteira?!

ALCESTE
É claro.

PHILINTE
E dizer ao capitalista:
deu na vista que você é oportunista?!

ALCESTE
Exato.
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PHILINTE
Está brincando.

ALCESTE
Eu não brinco em serviço,
E não posso deixar de falar isso.
Coisa assim fere o meus peito, o país e a cidade
Meu fígado solta bile em quantidade.
Me deixa patinando no humor negro,
com rancor profundo
Ver uma criatura justa ter que viver num
mundo.
Onde, em toda parte, bajulação, se propaga
Injustiça, mentira, calúnia e traição;
Eu passo mal, não aguento mais,
Daqui pra frente só falo com os animais

NIKITA
Palmas vivas
Moliérè, o Misantropo...
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Vês! Ninguém assistiu ao formidável


Enterro de sua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!


O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!


O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena a tua chaga,


Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

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