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O QUE VEJO NO ESCURO

Dramaturgia de Zeneide Pereira Cordeiro


Personagens: Zoli, Bili, Visão

Abertura (cena 1)
Teatro com pouca iluminação no momento em que o público entra. Durante o
processo de acomodação dos espectadores toca uma música instrumental. Com o
público acomodado, o espetáculo inicia.
Palco no escuro. Silêncio. Batidas de bengala, Bengala percorre o palco.
Zoli:
Alô! Ei mermã, estava com saudades de ti demais... Sim, claro, assisto todos
os dias... Deus me livre perder algum episódio. Eita, essa é a que mais amo, amo
essa personagem, amo, amo... porque tu achas que botei o nome da Bili de Bili?
Pois é, a pessoa tem esse preconceito com a norte, né. Mas, você reparou que ela é
a personagem mais arretada, porreta dessa série? É la quem viaja entre os
mundos... aí moléstia, caramba... nada não, é coisa de cega, cruzes isso dói, é que
acho que desmenti meu dedinho do pé quando colocava meu sapato atrás da porta.
Ei vou ter que desligar agora, a gente se fala daqui a pouquinho, tchau.
(Zoli verifica seu dedinho machucado e sorri levemente)
Suspiros. Silêncio. Foco de luz no palco, as personagens estão no palco.
Zoli:
Esse machucado me fez lembrar de uma historinha acolá! (Risos).
Bili, Bili... cadê tu mermã? Poxa, por tua causa me machuquei feio. Caramba,
parece que quebrou meu dedinho. Ah! Aqui está você. (Zoli segura Bili, sorri
lembrando de algo)
Ah, e eu lá sou de ficar com raiva de ti mermã! Afinal, tu me salvaste trilhões
de vezes de cair, topar e me machucar... já me salvou de muitos tombos na vida.
Eita, nós temos histórias né mermã!
Mas, estou rindo não é disso não, sabe o que é? É daquela historinha, um
daquela. Daquele carinha lá do shopping... estou lembrando do comentário daquele
carinha do shopping... o abestado pensou que eu estava paquerando ele... ver se
pode? Uma lindeza como eu paquerar uma besta daquele...
Fico imaginando a cara que ele deve ter feito quando me viu levantando.
Abrindo minha bengala, colocando óculos escuros e saindo... É foi preciso me vestir
de cega... fiz isso para deixar ele desconcertado mesmo ... sim, percebi que ele
estava me olhando, aí, decidi me divertir, fiquei olhando para ele também, ou
melhor, deixei ele pensar que eu estava olhando... porque, a gente sabe que ver, ver
... não vejo nada!
Mania besta... essa gente tem. Pensam que gente cega não namora, não
paquera, não vai ao cinema, nem sabem comer com as próprias mãos. O pior de
tudo, é que tem gente que pensa que pessoas cegas não fazem sexo. Ver se pode
uma coisa dessa?
Tem gente que pensa que cegueira é doença contagiosa, outros, que
pessoas cegas são santas e exemplo de superação... tem cego e cega de todo
jeito... tem pessoas cegas bonitas, feias, inteligentes, que trabalham em todas as
áreas do conhecimento, educação, artes, tecnologia e tem, tem pessoas cegas
bandidas, corruptas e preconceituosas.
Um monte de abestado poraí, fala e até jura de pé junto que gente cega não
ver nada do mundo, nada, nadica de nada. Afinal, gente cega é gente cega! Ah! Ah,
se essa gente fosse capaz de imaginar pelo menos um tiquinho do que uma cega
ver! Aposto que ficariam doidinhas do juízo. Não gosto de comparar cegueira com
nada. Mas, nesse caso, tem muita gente cega de ignorância nesse mundo! Tu não
achas Bili?
Vai ver Deus quis assim, uns ver demais, outros ver pouco e outros não ver
nada, que coisa né Bili? Bili? Responde mermã!
Zoli encosta o ouvido na ponteira de Bili. Espera uma resposta. Grita
desesperada
Zoli:
Ah é, você é uma bengala e bengala não fala sem precisão... as vezes acho
você tão metida...
Visão:
Sempre está achando alguma coisa.
Zoli:
Vixe! Olha quem chegou! Gosta de meter o bico onde não é chamada.
Visão:
Cheguei de onde? Bateu a cabeça no vento foi? Onde já se viu, chegar, sem
nunca ter ido...
Zoli:
Quê? Até parece... que é de estar do meu lado.
Visão:
Agora pronto. Vai dá uma de desentendida é? Olha! Isso não combina com
você...
Zoli:
Para. Agora tu vem me dizer que viver assim é bom? Eu que sei o que vivi e
vivo... Tu me deixaste, me abandonou da noite para o dia... Um dia dormi e quando
acordei cadê? Tu
Sabe o que senti? Senti... tive medo... muito medo... chorei, quando tudo o
que mais queria era enxergar meu próprio rosto... queria ser igual, igual como todo
mundo... queria ter sido uma criança normal ser gente normal...
Visão:
Já disse, ser coitadinha, dramática não é para você...
Bobinha! Quando uma pessoa nasce para ser diferente... nunca será
“normal”, nem comum.
(Música) Zoli pensativa abraça Bili. Visão se afasta.
Cena 2
Zoli:
Queria mesmo era ser artista de teatro! Poder subir num palco e ter um monte
de gente assistindo e se divertindo com minha arte... isso sim, é magia, é beleza!
Como artista seria tudo o que quisesse ser, jardineira, motorista, cientista,
professora e até uma médica cirurgiã cega... já imaginou? Uma cirurgiã cega?
Mas, não queria ser como certas atrizes que existe por aí, não... minha arte
seria para levar alegria, esperança, força e resistência para as pessoas...
interpretaria a vida de gente como eu e como você... mostraria a realidade da
sociedade do lado de dentro... vivendo, agindo, lutando...
As artistas são seres superpoderosas.... Falam a verdade nua e crua... dão
chicotadas de consciência em todo mundo com criatividade e bom humor que tem
abestado que nem se toca. Ah! A hipocrisia alheia as vezes me dá vontade de
gargalhar bem alto...
Som do sino dos ventos. (Silêncio. Zoli com expressão triste e reflexiva)
Cena 3
Zoli:
É Bili, isso é verdade. Tive medo... medo de ir pelo mundo atrás do meu
sonho... escolhi viver assim... sozinha no escuro... Mergulhada num mundo só meu.
É isso Bili, foi um erro o que fiz... tentei me esconder na minha própria escuridão e
quanto mais me escondia, mais me mostrava...
Onde já se viu uma cega que quer ser artista passar despercebida? Não tem
como passar despercebida no mundo quando se é cega e anda com uma bengala
Espargosa e zua denta como tu Bili.
Toda vez que tentei ser discreta, para não chamar atenção do povo normal,
mas, atenção chamei e isso é desde quando era pequenininha, miudinha do
tamanho de um maroin. Tu lembras Bili do tempo que andava tortinha e
desiquilibrada e até meu pai e minha mãe me chamavam de bebinha?
Toda tardezinha ia eu e meus irmãos banhar na beira do poçp, cada um
levava na mão um pedaço de sabão de sebo, mais fedorento que gambá. Depois do
banho sempre tinha briga, para saber quem era que ia usar o cação mais novo,
como se tivesse algum novo... todos eram velhos e furados a diferença é que tinha
uns mais furados, rasgados e com o elástico morto mais do que outros...
Meu pai comprava roupa para nós uma vez no ano, sempre no mês de
dezembro que era para usar na natal roupa nova. Ele comprava três mudas de
roupas iguais, só que nós éramos quatro, três menino e uma menina que era eu...
A roupa nova quem vestia era os meninos no natal. Eu vestia meu vestido
novo dos dias de domingo. Dos meus oito anos até meus treze anos, ... usei o
mesmo vestido novo no natal. Depois de treze anos meu vestido novo se
transformou numa bata nova que usei até rasgar... aí não teve jeito, tive que fazer
absorvente com o pobre do coitado.
(Música) Visão se aproxima. Zoli anda com Bili na direção da Visão.
Cena 4
Zoli dança em êxtase. Senti seu corpo. Suspira encantada com o que ver.
Zoli:
Ficaria desse jeito para sempre... quanta beleza! Luzes, raios... Peraí, o que é
um raio? O que é uma sombra? O que será tonalidade de cor? Sei lá! Essas
bobagens não me interessam mesmo... tenho meu próprio universo colorido.
Iluminado... meu próprio pôr do sol, azul, laranja, roxo, amarelo... amo o amarelo...
É, como se o sol estivesse perto de mim, e, eu pudesse tocar, entrar, me envolver,
ser uma, ser um, o sol e eu...
É tão gostoso sentir o sol tocar meu corpo, acariciar meus cabelos, falar
baixinho no meu ouvido os segredos do céu... não existe nada mais belo e cheiroso
do que o nascer e o pôr do sol...
Chuva! A chuva... como ela canta, canta diversos ritmos, melodias, e, ainda
assim, é uma canção harmoniosa... alegra e conforta a alma. Mas, às vezes, é
capaz de deixar um ser humano nú e colocar para correr com medo o mais forte dos
animais, de deixar paralisado o mais inteligente e valente dos homens...
É gostoso... o vento... é lindo, imprevisível e assustador... ninguém, beija de
modo tão carinhoso como ele... Algumas vezes, ele me irrita. O cara é muito
barulhento, tudo faz zuada, grita, murmura, sussurra... não gosto de gente
barulhenta! Não gosto. Gosto do silêncio... não do silêncio sem som... gosto do
silêncio do som do meu corpo, da minha mente porque é de lá que tudo acontece...
É de lá que sinto o prazer de enxergar as coisas com o som... ouvir a chuva
antes de cair... sentir seu cheiro e seu gosto a distância... ouvir os ingredientes de
um bolo se misturando durante o preparo. Criar músicas e passos de dança no ritmo
da batida do coração de uma pessoa, da sua pulsação, da sua respiração é vida, e,
pé, assustador, também... é tão bom ! Divertido. Bacana demais...
Sim Bili, isso era mesmo muito bacana! Bacana era quando enganava um
monte de abestado na escola quando dizia que tinha o dom de ver o futuro. Eu
ficava de butuca com meus ouvidos bem abertos... concentrada para ouvir
conversas e até pensamento dos outros, quanto mais longe conseguia ouvir um
fuxico ou um resmungo que não era do meu interesse mais divertido era para mim...
Assim, sabia de tudo o que acontecia... sabia da vida de todo mundo.
Eu também, gostava de usar meu dom de ouvir para encantar menino, tinha
uns que ficavam mortinhos de apaixonados por mim...
Ouvir tudo, saber de tudo, às vezes, tinha suas mazelas... aqui e acolá, ouvia
gente falar mal de mim, me criticar e tramar coisa ruim... ficava triste, mas, era só
por alguns minutos... Sempre tinha ideia para aprontar... tinha vez que criava meus
próprios apelidos.
A melhor época da minha vida, não lembro dos detalhes... só sei que foi
quando aprendi ver tudo. Ver tudo com a ponta dos dedos, minhas mãos, meus
ouvidos, meu nariz, minha boca, meu coração... com meu corpo inteiro... e, com tu
Bili...
Cena 5
Zoli para em frente ao espelho tocando seu rosto encantada.
Zoli:
Espelho! Amo espelho! O que você ver quando se olha no espelho? Será seu
eu? Seu eu, além da aparência da visão... O que é escondido, o que você esconde
dentro do espelho? O que você pensa que esconde? (Zoli sorri ironicamente).
Preconceito? Medo? Ódio? Sonhos? Desejos? Sexualidade? Verdades.
Mentiras. Sua verdadeira face. O que você é.
Adoro imaginar que existe uma de mim aqui dentro... será que ela lembra
nossas travessuras? Das vezes que ensaiamos beijo na boca... e, quase quebrei
meus dentes da frente... E, daquela vez que rebolava imitando a Carla Perez...
enrolava minha saia até ficar bem curtinha, colocava a calcinha no bumbum e
dançava segura o tchã... vai descendo na boquinha da garrada... desce mainha...
Eu também gostava de levantar a saia para dançar amada... preta fala para
mim... fala... E forró, xote... me dá um beijo estou doidinha, doidinha para te beijar...
Um dia, quando estava me acabando toda rebrando só no mamulejo e no
bole e bole, uma tia minha que eu chamava de tia do mal me pegou dançando
lambada... ou forró, não lembro direito que música dançava, só sei que ela me
bateu... me bateu com chinelo, cabo de vassoura, puxou meu cabelo e deu tapas no
meu rosto... depois saiu me chamando de quenga, rapariga e tabaco aceso, ela
jurou que se me pegasse dançando de novo ia colocar pimenta no meu priguito.
Fiquei morrendo de medo dela lascar pimenta no meu... priguito! Já imaginou
Bili o sufoco que seria? O ardor na minha perseguida, cruzes, Deus me defenda.
Mas, a surra daquela diaba não adiantou. Parei de chorar rapidinho e fui dançar...
inclusive aperfeiçoei meu rebolado.
Ei, outra de mim... e aquilo, aquilo! E aquilo que pintamos escondidas! Toda
vez que tinha oportunidade roubava um batom emprestado de alguém para pintar
meus beiços... queria pintar só os beiços, mas, como não sabia, pintava o rosto
todo... eita, me lembro do desespero que ficava quando percebia que tinha acabado
o batom de alguém...
Cena 6
Zoli assustada.
Zoli:
Escondi. Vamos! Ah! Medo, muito medo...
Visão se aproxima da Zoli com pose irônica e tranquila.
Visão:
Medo? Você?
Zoli:
O mundo foi muito cruel para mim. Cuspiu meu rosto, me humilhou, bateu,
estuprou meu corpo, tirou minha inocência, minha paz... Parei de dormir, deixei de
dormir a muito, muito tempo.
Fecharam as portas para mim... disseram que eu não era capaz... que não
era gente... me chamaram de desvalida, maldiçoada, infeliz... que minha vida toda
iria depender dos outros... aquela mulher me disse, isso aqui não é para você, é
para a gente normal...
Aquele homem tocou meu corpo sem minha permissãomachcou meu ventre,
mordeu meus seios, urinou no meu rosto, com sua boca nojenta cuspiu meu corpo
nu, machucado, violentado, enfraquecido. depois disse que não foi ele, que eu não
tinha como provar porque não enxerguei...
Gente que devia ter me acolhido, me protegido... apagou a luz, desligou a TV
quando tentava assistir uma cena da novela escondida, jogou meus sapatos no lixo,
cortaram meus cabelos, rasgaram a rede que dormia... fiquei no frio, no chão...
Visão:
E o que você fez?
Zoli:
Chorei.
Visão:
Chorou...
Zoli:
Chorei, chorei e chorei... com a cabeça entre as pernas... com o rosto no
chão...
Som do sino dos ventos
Cena 7
Zoli:
Foi com a cara no chão que enxerguei... no escuro da minha visão enxerguei
mundos... o mundo de cada ser que se aproxima de mim... mundos escondidos no
espelho... as portas estavam fechadas, então. Arrombei janelas e pulei... entrei, lutei
para ir onde queria... tirei o que estava escondido e mostrei...
O mundo agora é minha casa! Cada rua, esquina, praça, casa. Todo lugar é
meu palco! Meu corpo minha visão... na luz da escuridão tracei meu caminho...
Visão:
Finalmente, acordou. Bobinha! Agora, entendeu, existem infinitas formas de
ver o mundo... toda pessoa tem uma. Mas, poucas pessoas, nascem para ver o
mundo de diversas maneiras... Você é uma das poucas criaturas que pode me
enxergar além da aparência.
Zoli:
É isso! Por isso que minha finada mãezinha dizia que nasci de cl, ce para a
lua... Jesus e Santa Luzia ouviram minhas preces... novenas... ladainhas... e a
penitência de comer 35 ovos, um frango inteiro, um quilo de feijoada com arroz de
toicinho por dia, durante trinta e cinco anos da minha vida.
Viver não é fácil... todo mundo tem suas dificuldades, lutas diárias, precisam
enfrentar seus próprios demônios... viver no escuro... não é para qualquer um.
Silêncio
Cena 8
Zoli deitada no palco ao lado da Bili e da Visão
Saudade da Eva! Fica com ciúme não Bili, a Eva foi antes de você. Ela era
feinha a bichinha... era uma vara grosseira, sem brilho, sem charme, mas, foi minha
melhor amiga, me salvou de cair nos buracos, machucar meu corpo muitas e muitas
vezes. Um dia foi só nós duas fazer o teste para participar daquele filme! Daquele
filme de princesas, madame que lutavam pelo amor de um principe encantado.
Ah, mermã! Tu precisavas ver o que aconteceu quando a gente chegou lá!
Todo mundo lá parou para olhar a gente... e, nós passamos no meio deles de
cabeça erguida, peito estufado, barriga para dentro e elegância no rebolado...
Ainda lembro da voz do descuncado daquele homem e da metida daquela
mulher dizendo, aqui não trabalhamos com PCDs... Se tu visses Bili a cara de
passada dela, a abusada ficou chocada quando eu disse que não era PCDs, mas,
sim uma artista cega. Ah! Queria encontrar essa gente agora!
Falar de gente cega é mais quem sabe, ou melhor, pensa que sabe, é mais
quem julga, admira e tem aqueles que morre de medo... falam no meu Deus se eu
ficasse cega morreria... Que coisa! Onde já se viu cegueira matar alguém?
O que mata é o preconceito, a intolerância e o egoísmo humano. Ah, como
queria que essas pessoas pudessem enxergar elas próprias no escuro pelo menos
uma vez!
O escuro é o lugar de onde se pode ver tudo... ver o quê e quem está no
escuro e no claro, na luz, mas, quem está na luz não ver quem está no escuro.
Coisas incríveis e prazerosas acontecem no escuro. O amor selvagem, o romântico,
as juras de amor, gemidos, aconchegos, sorrisos...
No escuro está também, nossos maiores medos, pesadelos... fraquezas... o
escuro faz isso, mostra nosso eu. Não existe nada mais terrível do que nosso eu...
Silêncio. Palco no escuro.
Visão:
Sim, enxergar no escuro é, divino., lindo, excitante!
Zoli
Ah, se você soubesse o que vejo no escuro!
Fim

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