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Ora direis ouvir estrelas

2018

Amador Ribeiro Neto


Universidade Federal da Paraíba
07/02/2018
2

Amador Ribeiro Neto


(organizador)

Direis ouvir
estrelas
(antologia de poesia)
3

Parte 1
SONETOS
4

Via Láctea
(Olavo Bilac)

Ora (direis) ouvir estrelas! Certo


Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto


A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!


Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!


Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e entender estrelas"

Ouvir estrelas
(Bastos Tigre)

Ora, direis, ouvir estrelas! Vejo


Que estás beirando a maluquice extrema.
No entanto o certo é que não perco o ensejo
De ouvi-las nos programas de cinema.

Não perco fita; e dir-vos-ei sem pejo


Que mais eu gozo se escabroso é o tema.
Uma boca de estrela dando beijo
É, meu amigo, assunto pra um poema.

Direis agora: - Mas, enfim, meu caro,


As estrelas que dizem? Que sentido
Têm suas frases de sabor tão raro?

- Amigo, aprende inglês para entendê-las,


Pois só sabendo inglês se tem ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.
5

Língua portuguesa
(Olavo Bilac)

Última flor do Lácio, inculta e bela,


És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela…

Amo-te assim, desconhecida e obscura,


Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma


De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: ―meu filho!‖


E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

A um poeta
(Olavo Bilac)

Longe do estéril turbilhão da rua,


Beneditino escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego


Do esforço: e trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua
Rica mas sóbria, como um templo grego

Não se mostre na fábrica o suplicio


Do mestre. E natural, o efeito agrade
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade


Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.
6

Nel mezzo del camin...


(Olavo Bilac)

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada


E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada


Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida


Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,


Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo

Flores da lua
(Cruz e Sousa)

Brancuras imortais da Lua Nova,


frios de nostalgia e sonolência...
Sonhos brancos da Lua e viva essência
dos fantasmas noctívagos da Cova.

Da noite a tarde e taciturna trova


soluça, numa trêmula dormência...
Na mais branda, mais leve e florescência
tudo em Visões e Imagens se renova.

Mistérios virginais dormem no espaço,


dormem o sono das profundas seivas,
monótono, infinito, estranho e lasso...

E das Origens da luxúria forte


Abrem nos astros, nas sidérias leivas
flores amargas do palor da Morte.
7

O meu palhaço
(Silvino Olavo)

Meu coração é um mísero acrobata


um palhaço sarcástico de arena,
gargalha sempre, de feição serena,
contrafazendo a mágoa que o maltrata.

Enquanto em riso a multidão desata,


as piruetas deste clown em cena,
ninguém descobre, na aparência amena,
a tragédia recôndita que o mata.

Mas eu me vingo deste pouco siso,


ao paradoxo do meu próprio riso,
porque a tragédia desse riso insano,

que me remorde e que a ninguém ausculta,


é irmã gêmea da tragédia oculta
que existe em todo coração humano.

Acrobata da dor
(Cruz e Souza)

Gargalha, ri, num riso de tormenta,


como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,


agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta ...

Pedem-se bis e um bis não se despreza!


Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,


afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.
8

Oh! páginas da vida que eu amava


(Álvares de Azevedo)

Oh! páginas da vida que eu amava,


Rompei-vos! nunca mais! tão desgraçado!...
Ardei lembranças doces do passado!
Quero rir-me de tudo que eu amava!

E que doido que eu fui! como eu pensava


Em mãe, amor de irmã! em sossegado
Adormecer na vida acalentado
Pelos lábios que eu tímido beijava!

Embora - é meu destino. Em treva densa


Dentro do peito a existência finda...
Pressinto a morte na fatal doença!...

A mim a solidão da noite infinda!


Possa dormir o trovador sem crença...
Perdoa, minha mãe, eu te amo ainda!

Budismo moderno
(Augusto dos Anjos)

Tome, Dr., esta tesoura, e ... corte


Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!


Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida.


Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades


Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!
9

Psicologia de um vencido
(Augusto dos Anjos)

Eu, filho do carbono e do amoníaco,


Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Produndissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —


Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,


E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Versos íntimos
(Augusto dos Anjos)

Vês! Ninguém assistiu ao formidável


Enterro de sua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!


O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!


O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena a tua chaga,


Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
10

O morcego
(Augusto dos Anjos)

Meia-noite, ao meu quarto me recolho.


Meu Deus ! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho

‖ Vou mandar levantar outra parede …‖


- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre minha rede

Pego de um pau. Esforços faço. Chego


A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A consciência humana é este morcego!


Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto.

O idealismo
(Augusto dos Anjos)

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!


O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor!Quando virei por fim a amá-lo?!


Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaira,
De Messalina e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,


O mundo fique imaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro —

E haja só amizade verdadeira


Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!
11

Sete anos de pastor Jacó servia


(Camões)

Sete anos de pastor Jacó servia


Labão, pai de Raquel, serrana e bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,


Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos


Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,


Dizendo: – Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!

Amor é um fogo que arde sem se ver


(Camões)

Amor é um fogo que arde sem se ver;


é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente;
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;


é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;


é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealmente.

Mas como causar pode seu favor


nos corações humanos amizade
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
12

Quem vê, Senhora, claro e manifesto


(Camões)

Quem vê, Senhora, claro e manifesto


o lindo ser de vossos olhos belos,
se não perder a vista só em vê-los,
já não paga o que deve a vosso gesto.

Este me parecia preço honesto;


mas eu, por de vantagem merecê-los,
dei mais a vida e alma por querê-los,
donde já me não fica a mais de resto.

Assim que a vida e alma e esperança


e tudo quanto tenho, tudo é vosso,
e o proveito disso eu só o levo.

Porque é tamanha bem-aventurança


O dar-vos quanto tenho e quanto posso
Que, quanto mais vos pago, mais vos devo

Por que quereis, Senhora, que ofereça


(Camões)

Por que quereis, Senhora, que ofereça


a vida a tanto mal como padeço?
se vos nasce do pouco que mereço,
bem por nascer está quem vos mereça.

Sabei que, enfim, por muito que vos peça,


que posso merecer quanto vos peço;
que não consente Amor, que em baixo preço
tão alto pensamento se conheça.

Assi que a paga igual de minhas dores,


com nada se restaura, mas devei-ma,
por ser capaz de tantos desfavores.

E se o valor de vossos servidores


houver de ser igual convosco mesma,
vós só convosco mesma andai de amores.
13

A Carolina
(Machado de Assis)

Querida, ao pé do leito derradeiro


Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro


Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.

Trago-te flores - restos arrancados


Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos


Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

Círculo vicioso
(Machado de Assis)

Bailando no ar, gemia inquieto vagalume:


―Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!‖
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

―Pudesse eu copiar-te o transparente lume,


Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela‖
Mas a lua, fitando o sol com azedume:

―Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela


Claridade imortal, que toda a luz resume‖!
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

Pesa-me esta brilhante auréola de nume…


Enfara-me esta luz e desmedida umbela…
Por que não nasci eu um simples vagalume?‖…
14

Natal
(Glauco Mattoso)

Nasci glaucomattoso, não poeta.


Poeta me tornei pela revolta
que contra o mundo a língua suja solta
e a vida como báratro interpreta.

Bastardo como bardo, minha meta


jamais foi ao guru servir de escolta
nem crer que do Messias venha a volta,
mas sim invectivar tudo o que veta.

Compenso o que no abuso se me impôs


(pedal humilhação) com meu fetiche,
lambendo, por debaixo, os pés do algoz.

Mas não compenso, nem que o gozo esguinche,


masoca, esta cegueira, e meus pornôs
poemas de Bocage são pastiche.

Spik(sic)tupinik
(Glauco Mattoso)

Rebel without a cause, vômito do mito


da nova nova nova nova geração,
cuspo no prato e janto junto com palmito
obaioque (o forrock, o rockixe),o rockão,
Receito a seita de quem samba e roquenrola:
Babo, Bob, pop, pipoca, cornflake;
take a cocktail de coco com cocacola,
de whisky e estricnina make a milkshake.
Tem híbridos morfemas a língua que falo,
meio nega-bacana, chiquita maluca;
no rolo embananado me embolo, me embalo,
soluço - hic - e desligo - clic - a cuca.

Sou luxo, chulo e chic, caçula e cacique.


I am a tupinik, eu falo em tupinik.
15

Soneto escatológico
(Glauco Mattoso)

"Cagando estava a dama mais formosa..."


Assim falou Bocage num soneto
do mesmo naipe deste que cometo
sobre a reputação que a merda goza.

A crítica a compara à rara rosa


se obrada na miséria dalgum gueto.
Políticos proferem-na: "Eu prometo..."
e a mídia a tematiza em verso e prosa.

É tanto incompetente apadrinhado


fazendo merda e sendo promovido
que, quando comecei o aprendizado,

Pensei: "Que seja próprio o seu sentido,


porque já me enojei do figurado!"
E então fui rei da merda com que agrido.

Cagando estava a dama mais formosa


Bocage

Cagando estava a dama mais formosa,


E nunca se viu cu de tanta alvura;
Porém o ver cagar a formosura
Mete nojo à vontade mais gulosa!

Ela a massa expulsou fedentinosa


Com algum custo, porque estava dura;
Uma carta d'amor de alimpadura
Serviu àquela parte malcheirosa:

Ora mandem à moça mais bonita


Um escrito d'amor que lisonjeiro
Afetos move, corações incita:

Para o ir ver servir de reposteiro


À porta, onde o fedor, e a trampa habita,
Do sombrio palácio do alcatreiro!
16

Soneto da perdida esperança


(Carlos Drummond de Andrade)

Perdi o bonde e a esperança.


Volto pálido para casa.
A rua é inútil e nenhum auto
passaria sobre meu corpo.

Vou subir a ladeira lenta


em que os caminhos se fundem.
Todos eles conduzem ao
princípio do drama e da flora.

Não sei se estou sofrendo


ou se é alguém que se diverte
por que não? na noite escassa

com um insolúvel flautim.


Entretanto há muito tempo
nós gritamos: sim! ao eterno.

Soneto do pássaro
(Carlos Drummond de Andrade)

Amar um passarinho é coisa louca.


Gira livre na longa azul gaiola
que o peito constringe, enquanto a pouca
liberdade de amar logo se evola.

É amor meação? pecúlio? esmola?


Uma necessidade urgente e rouca
de no amor nos amarmos se desola
em cada beijo que não sai da boca.

O passarinho deixa a nosso alcance,


e na queda submissa um voo segue,
e prossegue sem asas, pura ausência,

outro romance ocluso no romance.


Por mais que amor transite ou que se negue,
é canto (não é ave) sua essência.
17

Encontro
(Carlos Drummond de Andrade)

Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho.


Se a noite me atribui poder de fuga,
sinto logo meu pai e nele ponho
o olhar, lendo-lhe a face, ruga a ruga.

Está morto, que importa? Inda madruga


e seu rosto, nem triste nem risonho,
é o rosto, antigo, o mesmo. E não enxuga
suor algum, na calma de meu sonho.

Oh meu pai arquiteto e fazendeiro!


Faz casas de silêncio, e suas roças
de cinza estão maduras, orvalhadas

por um rio que corre o tempo inteiro,


e corre além do tempo, enquanto as nossas
murcham num sopro fontes represadas.

Soneto da loucura
(Carlos Drummond de Andrade)

A minha casa pobre é rica de quimera


e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.

Rola em minha cabeça o tropel de batalhas


jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.

Donzelas a salvar, há milhares na Terra


e eu parto e meu rocim, corisco, espada, grito,
o torto endireitando, herói de seda e ferro,

e não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,


na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas.
18

Necessito de um ser, um ser humano


(Mário Faustino)

Necessito de um ser, um ser humano


Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler

À luz da lua que ressarce o dano


Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço


Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso

Contra meu ser arfante:


Necessito de um ser sendo ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.

O mundo que venci deu-me um amor


(Mário Faustino)

O mundo que eu venci deu-me um amor,


Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor

Alado galopando em céus irados,


Por cima de qualquer muro de credo.
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor

Amor feito de insulto e pranto e riso,


Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.

Amor que dorme e treme. Que desperta


E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória...
19

Desenganos da vida humana, metaforicamente


(Gregório de Matos)

É a vaidade, Fábio, nesta vida,


Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.

É planta, que de abril favorecida,


Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.

É nau enfim, que em breve ligeireza,


Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias apresta, alentos presa:

Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa


De que importa, se a guarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?

A uma dama
(Gregório de Matos)

Vês esse Sol de luzes coroado?


Em pérolas a Aurora convertida?
Vês a Lua, de estrelas guarnecida?
Vês o Céu de planetas adornado?

O Céu deixemos: vês naquele prado


A rosa com razão desvanecida?
A açucena por alva presumida?
O cravo por galã lisonjeado?

Deixa o prado: vem cá, minha adorada:


Vês desse mar a esfera cristalina
Em sucessivo aljôfar desatada?

Parece aos olhos ser de prata fina...


Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada
À vista do teu rosto, Catarina.
20

À cidade da Bahia
(Gregório de Matos)

Triste Bahia! oh! quão dissemelhante


Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mim abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,


Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente


Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh! Se quisera Deus que, de repente,


Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!

Achando-se um braço perdido do menino deus


(Gregório de Matos)

O todo sem a parte, não é todo;


a parte sem o todo não é parte;
mas se a parte o faz todo, sendo parte,
não se diga que é parte, sendo o todo.

Em todo o Sacramento está Deus todo,


e todo assiste inteiro emq ualquerparte,
e feito em partes todo em toda a parte,
em qualquer parte sempre fica o todo.

O braço de Jesus não seja parte,


Pois que feito Jesus em partes todo,
assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte deste todo,


Um braço que lhe acharam sendo parte,
nos diz as partes todas deste todo.
21

Soneto de fidelidade
(Vinícius de Moraes)

De tudo ao meu amor serei atento


Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento


E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure


Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):


Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Soneto de separação
(Vinícius de Moraes)

De repente do riso fez-se o pranto


Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento


Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente


Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante


Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
22

O muro
(Pedro Kilkery)

Movendo os pés doirados, lentamente,


Horas brancas lá vão, de amor e rosas
As impalpáveis formas, no ar, cheirosas.. . .
Sombras, sombras que são da alma doente!

E eu, magro, espio... e um muro, magro, em frente


Abrindo á tarde as órbitas musgosas
— Vazias? Menos do que misteriosas —
Pestaneja, estremece. . . O muro sente!

E que cheiro que sai dos nervos dele,


Embora o caio roído, cor de brasa,
E lhe doa talvez aquela pele!

Mas um prazer ao sofrimento casa. . .


Pois o ramo em que o vento á dor lhe impele
É onde a volúpia está de urna asa e outra asa.

Cetáceo
(Pedro Kilkerry)

Fuma. É cobre o zênite. E, chagosos no flanco,


Fuga e pós, são corcéis de anca na atropelada.
E tesos, no horizonte, a muda cavalgada.
Coalha bebendo o azul um largo voo branco.

Quando e quando esbagoa ao longe uma enfiada


De barcos em betume indo as proas de arranco.
Perto uma janga embala um marujo no banco
Brunindo ao sol brunida a pela atijolada.

Tine em cobre o zênite e o vento arqueja e o oceano


Longo enfroca-se a vez e vez arrufa,
Como se a asa que o roce ao côncavo de um pano.

E na verde ironia ondulosa de espelhou


Úmida raiva iriando a pedraria. Bufa
O cetáceo a escorrer d’ água ou do sol vermelho
23

Parte 2
POESIA CONCRETA
24

Augusto de Campos

cidade
(Augusto de Campos)

atrocapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubrimendimultipliorganiperiodipl
astipublirapareciprorustisagasimplitenaveloveravivaunivoracidade
city
cité
25

Augusto de Campos
26

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27

Augusto de Campos
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Augusto de Campos
29

Augusto de Campos
30

Augusto de Campos
31

Augusto de Campos
32

Augusto de Campos
33

Décio Pignatari
34

Décio Pignatari
35

Décio Pignatari
36

Décio Pignatari
37

Ronaldo Azeredo
38

Ronaldo Azeredo

cinco
(José Lino Grünewald)

2 2

3 3 3

4 4 4 4

c i n c o
39

José Paulo Paes

AC
DC
WC
José Paulo Paes
40

Economia política
(Glauco Mattoso)

PO R

DE

PO R
41

Pedro Xisto
42

Pedro Xisto
43

Parte 3

OUTROS POEMAS
44

As sem-razões do amor
(Carlos Drummond de Andrade)

Eu te amo porque te amo.


Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,


é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo


bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,


e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Amar
(Carlos Drummond de Andrade)

Que pode uma criatura senão,


Entre criaturas, amar?
Amar e esquecer, amar e malamar,
Amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
Sozinho, em rotação universal, senão
Rodar também, e amar?
Amar o que o mar traz à praia,
O que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
É sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
O que é entrega ou adoração expectante,
E amar o inóspito, o áspero,
Um vaso sem flor, um chão de ferro,
45

E o peito inerte, e a rua vista em sonho,


E uma ave de rapina.
Este o nosso destino: Amor sem conta,
Distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
Doação ilimitada a uma completa ingratidão,
E na concha vazia do amor à procura medrosa,
Paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor,
E na secura nossa, amar a água implícita,
E o beijo tácito, e a sede infinita.

Campo de flores (Carlos Drummond de Andrade)

Deus me deu um amor no tempo de madureza,


quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus – ou foi talvez o Diabo – deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos


e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia


e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra


imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa


a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
46

Onde não há jardim, as flores nascem de um


secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso


para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece


na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,


há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.

Ausência
(Carlos Drummond de Andrade)

Por muito tempo achei que a ausência é falta.


E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
47

Canção final
(Carlos Drummond de Andrade)

Oh! se te amei, e quanto!


Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.

Para sempre
(Carlos Drummond de Andrade)

Por que Deus permite


que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
— mistério profundo —
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
48

junto de seu filho


e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Quadrilha
(Carlos Drummond de Andrade)

João amava Teresa que amava Raimundo


que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o
convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto
Fernandes
que não tinha entrado na história.

No meio do caminho
(Carlos Drummond de Andrade)

No meio do caminho tinha uma pedra


tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
49

Caso do vestido
(Carlos Drummond de Andrade)

Nossa mãe, o que é aquele


vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido


de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?


Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.


Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa


que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo


ficou frio e não o veste.

O vestido, neste prego,


está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido!


tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai


palavras da minha boca.

Era uma dona de longe,


vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,


se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,


se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne,


bebeu, brigou, me bateu,

me deixou com vosso berço,


foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.


Em vão o pai implorou.
50

Dava apólice, fazenda,


dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,


lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.


Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,


a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência


e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?


Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai


chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos


pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei


aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse


de meu marido a vontade.

Eu não amo o teu marido,


me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele


se a senhora fizer gosto,

só pra lhe satisfazer,


não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,


os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,


os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,


de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia


as partes da pecadora.
51

Eu fiz meu pelo sinal,


me curvei... disse que sim.

Saí pensando na morte,


mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,


passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,


não comia, não falava,

tive uma febre terçã,


mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,


fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,


costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,


meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro


pagou conta de farmácia.

Vosso pai sumiu no mundo.


O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba


me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,


com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,


não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.


Mas te dou este vestido,

última peça de luxo


que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,


da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,


52

ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado


confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.


Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,


no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,


me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,


rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:


vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa


que recorda meu malfeito

de ofender dona casada


pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido


e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,


quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,


quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha


delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados


com sandálias de cetim.

Olhei muito para ela,


boca não disse palavra.

Peguei o vestido pus


nesse prego da parede.
53

Ela se foi de mansinho


e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.


Olhou pra mim em silêncio,

mal reparou no vestido


e disse apenas: Mulher,

põe mais um prato na mesa.


Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,


era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado


e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,


um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,


vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço


vosso pai subindo a escada.

O passarinho dela
(Carlos Drummond de Andrade)

O passarinho dela
é azul e encarnado.
Encarnado e azul são
as cores do meu desejo.

O passarinho dela
bica meu coração.
Ai ingrato, deixa estar
que o bicho te pega.

O passarinho dela
está batendo asas, seu Carlos!
Ele diz que vai-se embora
sem você pegar.
54

Vou-me embora pra Pasárgada


(Manuel Bandeira)

Vou-me embora pra Pasárgada


Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada


Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica


Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo


É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste


Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
55

Pneumotórax
(Manuel Bandeira)

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.


A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:


— Diga trinta e três.
— Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
— Respire.

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.


— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Andorinha
(Manuel Bandeira)

Andorinha lá fora está dizendo:


— ―Passei o dia à toa, à toa!‖

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!


Passei a vida à toa, à toa…

Os sapos
(Manuel Bandeira)

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,


Berra o sapo-boi:
— ―Meu pai foi à guerra!‖
— ―Não foi!‖ — ―Foi!‖ — ―Não foi!‖.
56

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: — ―Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo


Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom


Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinquenta anos


Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas…‖

Poética
(Manuel Bandeira)

Estou farto do lirismo comedido


Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
57

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante


exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Cartas de meu avô


(Manuel Bandeira)

A tarde cai, por demais


Erma, úmida e silente…
A chuva, em gotas glaciais,
Chora monotonamente.

E enquanto anoitece, vou


Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.

Enternecido sorrio
Do fervor desses carinhos:
É que os conheci velhinhos,
Quando o fogo era já frio.

Cartas de antes do noivado…


Cartas de amor que começa,
Inquieto, maravilhado,
E sem saber o que peça.

Temendo a cada momento


Ofendê-la, desgostá-la,
Quer ler em seu pensamento
E balbucia, não fala…

A mão pálida tremia


Contando o seu grande bem.
Mas, como o dele, batia
Dela o coração também.
58

O último poema
(Manuel Bandeira)

Assim eu quereria meu último poema


Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

Consoada
(Manuel Bandeira)

Quando a Indesejada das gentes chegar


(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

O anel de vidro
(Manuel Bandeira)

Aquele pequenino anel que tu me deste,


— Ai de mim — era vidro e logo se quebrou
Assim também o eterno amor que prometeste,
— Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.

Frágil penhor que foi do amor que me tiveste,


Símbolo da afeição que o tempo aniquilou, —
Aquele pequenino anel que tu me deste,
— Ai de mim — era vidro e logo se quebrou

Não me turbou, porém, o despeito que investe


Gritando maldições contra aquilo que amou.
De ti conservo no peito a saudade celeste
59

Como também guardei o pó que me ficou


Daquele pequenino anel que tu me deste

Porquinho-da-índia
(Manuel Bandeira)

Quando eu tinha seis anos


Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prá sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…

— O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.

Desencanto
(Manuel Bandeira)

Eu faço versos como quem chora


De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...


Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca


Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.


60

Madrigal tão engraçadinho


(Manuel Bandeira)

Teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi até hoje na minha vida,
inclusive o porquinho-da-índia que me deram quando eu tinha seis anos.

Bandeira de Pernambuco
(Éverton Francisco Araújo)

por trás do arco, íris.


- cá no teu coração estilhaçado -
pouco tem de catedral
mais de sala

aconchego de sala grande


família grande
almoço que sai tarde e
fumaça que tem mais lirismo
que os cigarros e os trens

...teu coração estilhaçado


vitral
de
melancolorir
os
dias

cores, peças - quebradiço ritmo ora


longo
longo

lágrima de bandoneón
ora
não

quebras o coração em pedra e /fases/ mosaico


aqui crisálida e ali já o vôo
- vôo, porém, de mariposa -
que pousa no auto-retrato, mas
arrasta asa pro mundo
61

- calmamente, sai das paredes do verso


e respira no lá-fora:
/na varanda do poema
dois dedos de prosa/

tiro no vitral do peito e


caio de olhos no fundo do teu poema
até que tiras um riso
- a dor não é tão séria –

e juntas
o que tenho eu
de mais colorido e repões numa forma nova
- aqui o azul
ali o vermelho
cá o lilás e muito
muito de amarelo-caju, que me enternece

e outras cores que eu não sabia –

o lirismo é sempre um lirismo novo.


um poeta desfolha
é bandeira

Autopsicografia
(Fernando Pessoa)

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
62

Todas as cartas de amor são ridículas


Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

Todas as cartas de amor são


Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,


Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,


Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia


Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje


As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,


Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
63

Tabacaria
Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,


Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.


Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.


Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?


Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
64

Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,


E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma
parede
sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;


Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei


A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
65

Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,


Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,


Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,


E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem
cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube


E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,


Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
66

Como um tapete em que um bêbado tropeça


Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.


Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas
como
tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,


Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da
superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)


E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los


E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal
disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira


E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria
sorriu.
67

Poema em linha reta


Fernando Pessoa (Álvares de Campos)

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.


Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem
pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo


Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana


Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!


Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,


Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
68

O guardador de rebanhos
Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

Num meio dia de fim de primavera


Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,


Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer


Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala


Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir


E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
69

Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu


E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.


Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus,


Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada


Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
70

E por isso se chamam seres".


E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

..........................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.


Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo


Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.


A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas


No degrau da porta de casa,
71

Graves como convém a um deus e a um poeta,


E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens


E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade

Que uma flor tem ao florescer


E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma


E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

.................................................................................

Quando eu morrer, filhinho,


Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
72

Que tu sabes qual é.

....................................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus,


Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

O amor é uma companhia

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

O amor é uma companhia.


Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.


Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência
dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no
meio.
73

A extraordinária aventura vivida por Vladímir Maiakóvski no verão da datcha.


(Maiakóvski; tradução de Augusto de Campos)

A tarde ardia com cem sóis.


O verão rolava em julho.
O calor se enrolava
no ar e nos lençóis
da datcha onde eu estava.
Na colina de Púchkino, corcunda,
o monte Akula,
e ao pé do monte
a aldeia enruga
a casca dos telhados.
E atrás da aldeia,
Um buraco
e no buraco, todo dia,
o mesmo ato:
o sol descia
lento e exato.
E de manhã
Outra vez
Por toda parte
lá estava o sol
escarlate.
Dia após dia
isto
começou a irritar-me
terrivelmente.
Um dia me enfureço a tal ponto
que, de pavor, tudo empalidece.
E grito ao sol, de pronto:
"Desce!
Chega de vadiar nessa fornalha!"
E grito ao sol:
"Parasita!
Você, aí, a flanar pelos ares,
e eu, aqui, cheio de tinta,
com a cara nos cartazes!"
E grito ao sol:
"Espere!
Ouça, topete de ouro,
e se em lugar
desse ocaso
de paxá
você baixar em casa
para um chá?"
Que mosca me mordeu!
É o meu fim!
Para mim
74

Sem perder tempo


o sol
alargando os raios-passos
avança pelo campo.
Não quero mostrar medo.
Recuo para o quarto.
Seus olhos brilham no jardim.
Avançam mais.
Pelas janelas,
pelas portas,
pelas frestas,
a massa
solar vem abaixo
e invade a minha casa.
Recobrando o fôlego,
me diz o sol com voz de baixo:
"Pela primeira vez recolho o fogo,
Desde que o mundo foi criado.
Você me chamou?
Apanhe o chá,
pegue a compota, poeta!"
Lágrimas na ponta dos olho - o calor me fazia desvairar -
Eu lhe mostro
o samovar:
"Pois bem,
sente-se, astro!"
Quem me mandou berrar ao sol
Insolências sem conta?
Contrafeito
me sento numa ponta
do banco e espero a conta
com um frio no peito.
Mas uma estranha claridade
fluía sobre o quarto
e esquecendo os cuidados
começo
pouco a pouco
a palestrar com o astro.
Falo
disso e daquilo,
como me cansa a Rosta,
etc.
E o sol:
"Está certo,
Mas não se desgoste,
não pinte as coisas tão pretas.
E eu? Você pensa
Que brilhar
é fácil?
Prove, pra ver!
75

Mas quando se começa


é preciso prosseguir
e a gente vai e brilha pra valer!"
Conversamos até a noite
Ou até o que, antes, eram trevas.
Como falar, ali, de sombras?
Ficamos íntimos,
os dois.
Logo,
Com desassombro,
estou batendo no seu ombro.
E o sol por fim:
"Somos amigos
Pra sempre, eu de você,
você de mim.
Vamos, poeta,
cantar,
luzir
no lixo cinza do universo.
Eu verterei o meu sol
e você o seu
com seus versos".
O muro das sombras,
prisão das trevas,
desaba sob o obus
dos nossos sóis de duas bocas.
Confusão de poesia e luz,
Chamas por toda a parte.
Se o sol se cansa
e a noite lenta
quer ir pra cama,
marmota sonolenta,
eu, de repente,
inflamo a minha flama
e o dia fulge novamente.
Brilhar para sempre,
Brilhar com como um farol,
Brilhar com brilho eterno,
gente é pra brilhar,
que tudo o mais vá pro inferno,
este é o meu slogan
e o do sol.
76

Carta de Paris ao camarada Kostróv sobre a essência do amor


(Maiakóvski; tradução de Augusto de Campos)

Perdoe-
me,
camarada Kostróv,
com sua habitual
largueza de vista,
se eu desperdiço
as minhas estrofes
de Paris
em lírica imprevista.
Imagine:
uma beleza
entra na sala
vestindo
peles e adereços.
A essa
bela presa
a minha fala
(não sei se
bem ou mal)
eu endereço:
Sou russo,
camarada,
e sou famoso em meu país.
Já tive muitas namoradas
bonitas
- todas que eu quis.
As mulheres
amam os poetas.
Sou vivo,
minha voz é de bom timbre.
Tonteio como éter.
Basta
ouvir-me.
Não me fisgam
com armas
sem valor.
Não caio
por qualquer charme.
Eu fui
para sempre
ferido pelo amor -
mal e mal
posso arrastar-me.
77

Não meço
o amor
pelo matrimônio.
Deixou de amar -
passe bem!
Para mim,
camarada,
as cerimônias
valem
menos que um vintém.
Para que ficar palrando?
Deixe de onda,
formosura,
eu não tenho mais vinte anos,
mas trinta...
e outros tantos
fora da conta.
O amor
não está
em ferver bruscamente,
nem está
em acender uma fogueira,
mas no que há
por trás
das montanhas do peito
e acima
da jângal-cabeleira.
Amar
é ir ao fundo
do cercado
e até que a noite
- corvo negro -
chegue
cortar lenha
com chispas
no machado
e a nossa própria força
pôr em xeque.
Amar
é desfazer-se dos lençóis
que a insônia desarruma
e com ciúme
de Copérnico,
a ele,
não ao marido
da Maria dos Anzóis,
considerar rival eterno.
O amor
não é
paraíso nem geena.
78

Para nós
o amor
é o atestado
de que
outra vez
se engrena
o coração -
motor enferrujado.
Você
rompeu o fio
com Moscou.
Os anos
criam
distância.
Como
explicar o que passou
assim de relance?
Na terra
há luzes - até o céu...
No céu azul
estrelas
a granel.
Se eu
não fosse poeta
seria astrônomo
por certo.
A praça já se apinha.
Os coches rodam.
Eu passo
anotando linhas
no meu livro de notas.
Correm
os carros
rente.
mas não me atropelam.
Entendem,
de repente:
Está em êxtase
por ela.
Sonhos,
visões,
excursos
enchem-no
até os ossos.
Aqui
até os ursos
ganhariam asas.
E agora,
quando acabo de fervê-las,
num restaurante barato,
79

as palavras
soletram
das letras
às estrelas
um cometa dourado.
Deixando
pelo céu
um longo rastro,
brilha
a plumagem do cometa,
para que os namorados
vejam os astros
de seus quiosques
de violetas.
Para acordar
e atrair
o apreço
desses
a que a visão já falha.
Para cantar
aos inimigos
a cabeça
com a longa cauda
luminosa
navalha.
Ouço
em meu peito
até o último pulsar
como se o estivesse
esperando
para um encontro:
o amor
a ressoar
simples e humano.
O furacão,
o fogo,
o mar
vêm vindo
furiosamente.
Quem
os pode
domar?
Você pode?
Experimente...
80

Balalaica
(Maiakóvski; tradução de Augusto de Campos)

Balalaica
(como um balido abala
a balada do baile
de gala)
(com um balido abala)
abala (com balido)
(a gala do baile)
louca a bala

Incompreensível para as massas


(Maiakóvski; tradução de Haroldo de Campos)

Entre escritor
e leitor
posta-se o intermediário,
e o gosto
do intermediário
é bastante intermédio.
Medíocre
mesnada
de medianeiros médios
pulula
na crítica
e nos hebdomadários.
Aonde
galopando
chega teu pensamento,
um deles
considera tudo
sonolento:
- Sou homem
de outra têmpera! Perdão,
lembra-me agora
um verso
de Nadson...1

1
O poeta S. I. Nádson (1862-1887). A mudança de acento é do próprio Maiakóvski.
81

O operário
não tolera
linhas breves.
(E com tal
mediador
ainda se entende Assiéiev). 2
Sinais de pontuação?
São marcas de nascença!
O senhor
corta os versos
toma muitas licenças.
3
Továrich Maiakóvski,
por que não escreve iambos?
Vinte copeques
por linha
eu lhe garanto, a mais.
E narra
não sei quantas
lendas medievais,
e fala quatro horas
longas como anos.
O mestre lamentável
repete
um só refrão:
- Camponês
e operário
não vos compreenderão.
O peso da consciência
pulveriza
o autor.
Mas voltemos agora
ao conspícuo censor:
Camponês só viu
há tempo
antes da guerra,
4
na datcha ,
ao comprar
mocotós de vitela.
Operários?
Viu menos.
Deu com dois
uma vez
por ocasião da cheia,
dois pontos
numa ponte
contemplando o terreno,
vendo a água subir

2
O poeta N. N. Assiéiev (1889-1963), amigo de Maiakóvski.
3
Camarada.
4
Casa de veraneio.
82

e a fusão das geleiras.


Em muitos milhões
para servir de lastro
colheu dois exemplares
o nosso criticastro.
Isto não lhe faz mossa -
é tudo a mesma massa...
Gente - de carne e osso!
E à hora do chá
expende
sua sentença:
- A classe
operária?
Conheço-a como a palma!
Por trás
do seu silêncio,
posso ler-lhe na alma -
Nem dor
nem decadência.
Que autores
então
há de ler essa classe?
Só Gógol,
só os clássicos.
Camponeses?
Também.
O quadro não se altera.
Lembra-me e agora -
a datcha, a primavera...
Este palrar
de literatos
muitas vezes passa
entre nós
por convívio com a massa.
E impinge
modelos
pré-revolucionários
da arte do pincel,
do cinzel,
do vocábulo.
E para a massa
flutuam
dádivas de letrados -
lírios,
delírios,
trinos dulcificados.
Aos pávidos
poetas
aqui vai meu aparte:
Chega
83

de chuchotar
versos para os pobres.
A classe condutora,
também ela pode
compreender a arte.
Logo:
que se eleve
a cultura do povo!
Uma só,
para todos.
O livro bom
é claro
e necessário
a mim,
a vocês,
ao camponês
e ao operário.

Nalgum lugar
(E. E. Cummings; tradução de Augusto de Campos)

nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além


de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra


embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e


minha vida nos fecharemos belamente, de repente
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala


o poder de tua intensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha


e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas
84

Hotel Fraternité
(Hans Magnus Enzensberger; trad. de Aldo Fortes)

aquele que não tem com o que comprar uma ilha


aquele que espera a rainha de sabá na frente de um cinema
aquele que rasga de raiva e desespero sua última camisa
aquele que esconde um dobrão de ouro no sapato furado
aquele que olha nos olhos duros do chantagista
aquele que range os dentes nos carroceis
aquele que derrama vinho rubro na cama sórdida
aquele que toca fogo em cartas e fotografias
aquele que vive sentado nas docas debaixo das gaivotas
aquele que alimenta os esquilos
aquele que não tem um centavo
aquele que observa
aquele que dá socos na parede
aquele que grita
aquele que bebe
aquele que não faz nada

meu inimigo
debruçado sobre o balcão
na cama em cima do armário
no chão por toda parte
agachado
olhos fixos em mim
meu irmão

Depois do começo
(Vasko Popa; trad. de Aleksandar Jovanovic)

O que faremos agora

Realmente o que faremos


Agora jantaremos a medulo

Comemos a medula no almoço


Agora o ócio dói em mim

Pois toquemos música


Gostamos de música

O que faremos quando os cães vierem


Eles gostam de ossos

Entalaremos em suas gargantas


E gozaremos
85

No final
(Vasko Popa; trad. de Aleksandar Jovanovic)

Osso eu osso tu
Por que me engoliste
Não me vejo a mim também

Onde estou agora

Agora não se sabe


Quem está onde quem é quem
Tudo é sonho horrível da poeira

Será que me ouves

Ouço a ti e a mim
O canto do galo canta em nós

Canção de amor cantar eu vim


(Arnaut Daniel – Trad. Augusto de Campos)

Canção de amor cantar eu vim


ao ver o verde do capim
e o campo enfim
cheio de cor
de muita flor
e verde ver a folha,
para que o ar
no meu cantar
os pássaros recolha.

Recolho o som do ar assim


e para revivê-lo em mim
eu canto, sim,
pois sei compor
com arte e ardor
e Amor não há quem tolha;
nalgum lugar
vou encontrar
alguém, não tenho escolha.

Se escolhe Amor ao amador


o faz escravo de um senhor:
aonde for,
o faz voar
e revoar
86

ao vento como bolha;


triste e ruim
é sempre o fim
de quem Amor escolha.

Assim acolhe com calor


a dama bela ao trovador,
mas o temor
do mau olhar
não quer deixar
que Amor aflore e colha
em seu jardim
a flor carmim
que a inveja aferrolha.

Ferrolhos põe, para apartar


a bela dama do seu par
e a exilar
nalgum confim,
longe, sem-fim;
por isso o olhar se molha
de ira e dor,
por não dispor
da flor, que se desfolha.

Desfolha, a flor, a descorar,


mas sua cor há de voltar
pois meu trovar,
claro clarim,
não há Caim
que ao ouvi-lo não se encolha,
nem fingidor
ou traidor
que ele não desacolha.

À Dama ama e olha


Arnaut, cantor,
que ante esse Amor
todo outro amor se esfolha.

Elegia: indo para o leito


(John Donne; tradução de Augusto de Campos)

Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz;


Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
87

Canso-me de esperar se nunca brigo.

Solta esse cinto sideral que vela,


Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado.
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
o que ele guarda, quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu Anjo, és como o Céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
o que o meu Anjo branco põe não é
o cabelo mas sim a carne em pé.

Deixa que minha mão errante adentre


Atrás, na frente, em cima, embaixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem ó a conquista,
Minha Mina preciosa, meu Império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
onde cai minha mão, meu selo gravo.

Nudez total! Todo o prazer provém


De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As joias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
o olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados, a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.

Para ensinar-te eu me desnudo antes:


A coberta de um homem te é bastante.
88

Se
(Rudyard Kipling – Trad. Guilherme de Almeida)

Se és capaz de manter tua calma, quando,


todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.

Se és capaz de esperar sem te desesperares,


ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,


de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,


em armadilhas as verdades que disseste
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.

Se és capaz de arriscar numa única parada,


tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.

De forçar coração, nervos, músculos, tudo,


a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,


e, entre Reis, não perder a naturalidade.
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos podes ser de alguma utilidade.

Se és capaz de dar, segundo por segundo,


ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e – o que ainda é muito mais – és um Homem, meu filho!
89

Kipling revisitado
(José Paulo Paes)

se etc
se etc
se etc
se etc
se etc
se etc
se etc

serás um teorema
meu filho

as cigarras
(Sérgio de Castro Pinto)

são guitarras trágicas.

plugam-se/se/se
nas árvores
em dós sustenidos.

kipling recitam a plenos


pulmões.

gargarejam
vidros
moídos.

luta de classes
(Paulo de Toledo)

no chão um cego esmoler imundo


pede uma moeda pro mendigo
e ele: vai trabalhar vagabundo
90

Catar feijão
(João Cabral de Melo Neto)

Catar feijão se limita com escrever:


jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele.
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não quanto ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.

Tecendo a manhã
(João Cabral de Melo Neto)

Um galo sozinho não tece a manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretecendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão
91

Graciliano Ramos:
(João Cabral de Melo Neto)

Falo somente com o que falo:


com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,


resto de janta abainada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto de cicatriz clara.

Falo somente do que falo:


do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,


cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.

Falo somente por quem falo:


por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes


de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.

Falo somente para quem falo:


quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,


a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
92

se bate numa porta a socos.

O que se diz ao editor a propósito de poemas


(João Cabral de Melo Neto)
A José Olympio e Daniel

Eis mais um livro (fio que o último)


de um incurável pernambucano;
se programam ainda publicá-lo,
digam-me, que com pouco o embalsamo.

E preciso logo embalsamá-lo:


enquanto ele me conviva, vivo,
está sujeito a cortes, enxertos:
terminará amputado do fígado,

terminará ganhando outro pâncreas;


e se o pulmão não pode outro estilo
(esta dicção de tosse e gagueira),
me esgota, vivo em mim, livro-umbigo.

Poema nenhum se autonomiza


no primeiro ditar-se, esboçado,
nem no construí-lo, nem no passar-se
a limpo do datilografá-lo.

Um poema é o que há de mais instável:


ele se multiplica e divide,
se pratica as quatro operações
enquanto em nós e de nós existe.

Um poema é sempre, como um câncer:


que química, cobalto, indivíduo
parou os pés desse potro solto?
Só o mumificá-lo, pô-lo em livro
93

Pior do que a morte


(Frederico Barbosa)

para JC

O pior é que dizem: rezou:

Ele que foi do contra,


do contra, ateu,
agora que zerou,
creu?

Ele que sabei que a vida é coisa


de sempre não.
Sem fórmulas fáceis,
nem saídas para a dor
de cabeça
de pensar
de ser sem crer.

Ele que sabia que não há aspirina


contra o bolor.

Logo dirão que se inspirou,


e compôs de improviso
um soneto vendido,
dos que sempre enfrentou.

Dirão ainda que se converteu


e defendeu a vida devota,
a pacificação bovina,
a prédica dos pastores.

(Verbo e verba:
pragas velhas.)

E que se arrependeu do pecado


de ser exato, claro e enjoado.

Vida, te escrevo merda.


Às vezes fezes, mas sempre merda.
Fingida flor, feliz cogumelo,
caga e mela.
Sempre severa e cega
merda.

Triste é depender
94

de relatos carolas,
acadêmicos, cartolas.
Triste é depender
da leitura alheia,
fáceis falácias: farsas.

Triste é depender
dos olhos dos outros,
de voz de falsas sereias.

Triste é não poder mais


se defender.

Mas
um aqui, João.
incerto, grita
e insiste em não crer
na sua crença repentina,
que a morte (sua) desminta a obra (sua) vida.

Um aqui, João,
o tem por certo:
é mais fácil o não
crer, não
ceder, não
descer, não
conceder. Não.

Não, não orou.

na noi te eu te mo eu te
(Arnaldo Antunes)

Na noi te eu te mo eu te
amo e te ch
O te lefone do ho tel l me
-te me-
do.
Do escuro so negro do breu da voz da noite vem
a tua voz.
Nas estrelas eu ter-
mo e me
a ti ro
a ti só a ti e a
tu: do
95

Dúvida
(Arnaldo Antunes)

Estou cego a todas as músicas,


Não ouvi mais o cantar da musa.
A dúvida cobriu a minha vida
Como o peito que me cobre a blusa.
Já a mim nenhuma cena soa
Nem o céu se me desabotoa.
A dúvida cobriu a minha vida
Como a língua cobre de saliva
Cada dente que sai da gengiva.
A dúvida cobriu a minha vida
Como o sangue cobre a carne crua,
Como a pela cobre a carne viva,
Como a roupa cobre a pele nua.
Estou cego a todas as músicas.
E se eu canto é como um som que sua.

As coisas
(Arnaldo Antunes)

As coisas têm peso,


massa, volume, tama-
nho, tempo, forma, cor,
posição, textura, dura-
ção, densidade, cheiro,
valor, consistência, pro-
fundidade, contorno,
temperatura, função,
aparência, preço, desti-
no, idade, sentido. As
coisas não têm paz.

Nome
(Arnaldo Antunes)

algo é o nome do homem


coisa é o nome do homem
homem é o nome do cara
isso é o nome da coisa
cara é o nome do rosto
96

fome é o nome do moço


homem é o nome do troço
osso é o nome do fóssil
corpo é o nome do morto
homem é o nome do outro

razão nenhuma
(Lau Siqueira)

o que escrevo
é apenas parte
do que sinto

a outra parte
finjo que minto

e acredito

candura
(Lau Siqueira)

preciso morrer
de morte natural

pra que ninguém


possa supor
de que bem
é feito meu mal

estribilho
(Lau Siqueira)

sempre tranquilo
na hora da morte
direi

licença
vou dar um cochilo
97

aos predadores da utopia


(Lau Siqueira)

dentro de mim
morreram muitos tigres

os que ficaram
no entanto
são livres

grafite
(Lau Siqueira)

morrer é quase
um imprevisto

morro sempre
quando penso
que não existo

?
(Lau Siqueira)

que luas são essas


sob a tua blusa

quem mais te viu


poeta e musa

Não-sei-o-que-é
(Raimbaut d’ Aurenga – Trad. Augusto de Campos)

senhores, mas vou começar.


Canção não é, nem sirventês,
nem outro nome lhe sei dar;
não sei dizer como se fez
e já nem sei como acabar.
que ninguém jamais o viu feito por homem ou mulher
neste século ou em outro qualquer.

Perco a razão ou perco o pé?


98

Ninguém me deve reprovar


nem me acusar de insensatez
por falar o que vou falar:
tudo o que há não vale um reis
ante o que posso ver e olhar,
e já direi por quê. Se eu vos tivesse chamado, sem o
levar a cabo, me daríeis por louco. Que eu mais
quero ter um reis na mão que ser um rei no céu..

Já não farei retorno a ré,


amigos, a que vim pregar,
nem sofrerei qualquer revés;
antes, prossigo sem tardar,
jogando logo este xadrez
com quem me soube conquistar.
Tudo isso digo por uma dama que me faz definhar com
belas palavras e longa espera, não sei por quê. Podeis
dizer-me, senhores?

Quatro meses, de boa fé,


como mil anos vi passar
e ainda espero que me dês
o que me prometeste dar.
Dama, se amargo assim me vês
adoça-me com doce amar!
Meu Deis, ajuda-me! In nomine Patris et Filii et Spiritus
Sancti! Senhora, isso o que será?

Por teu amor perdi até


três damas, que deixei de amar,
e aqui me vejo, sem as três,
irado-alegre, a cantar
este louco trovar cortês
qual jogral, sem poder parar.
Dama, não sei por que não fazes como fez Dama Aima
à espada, que o enfiou onde lhe aprouve.

Chega ao fim meu não-sei-o-quê-é,


que eu assim o quis batizar,
pois não ouvi nenhuma vez
tal nome a algo nomear;
se o aprendestes, sabereis
cantá-lo a quem interessar.
E se indagarem quem o fez, podeis dizer que o fez
quem sabe fazer bem o que quiser.
99

Farmácia
(Marco Lucchesi)

Farmácia
Eu nada sei
do mal de que padeço

e todavia o confesso
o que me aflige

sinto dores fortes


quando vejo o azul

a beleza me fere
espanta e fascina

o passar do tempo
me dá vertigem

e me prende
em suas teias de irreversão

os pássaros me deixam
intranquilo no ocaso

e quando vejo seu rosto


meu coração dispara

preciso de um remédio
para curar-me do mal de ter nascido

O elixir do pajé
(Bernardo Guimarães)

Que tens, caralho, que pesar te oprime


Que assim te vejo murcho e cabisbaixo,
Sumido entre essa basta pentelheira,
Mole, caindo pela perna abaixo?

Nessa postura merencória e triste


Para trás tanto vergas o focinho
Que eu cuido vais beijar, já no traseiro,
Teu sórdido vizinho!

Que é feito destes tempos gloriosos


100

Em que erguias as guelras inflamadas,


Na barriga me dando de contínuo
Tremendas cabeçadas?

(...)

A outra freira, que satirizando a delgada fisionomia do poeta lhe chamou Pica-flor
(Gregório de Matos)

Se Pica-flor me chamais,
Pica-flor aceito ser,
Mas resta agora saber
Se no nome, me que me dais,
Meteis a flor, que guardais
No passarinho melhor!
Se me dais este favor,
Sendo só de mim o Pica,
E o mais vosso, claro fica
Que fico então Pica-flor.

À Floralva, uma dama de Pernambuco


(Gregório de Matos)

Décimas

1.
Bela Floralva, se Amor
Me fizesse abelha um dia,
Em todo o tempo estaria
Picando na vossa flor:
E quando o vosso rigor
Quisesse dar-me de mão
Por guardar a flor, então,
Tão abelhudo eu andara,
Que em vós logo me vingara
Com vos meter o ferrão.

2.
Se eu fora ao vosso vergel
E na vossa flor picara
Um favo de mel formara
Mais doce que o mesmo mel:
Mas vós como sois cruel,
E de natural castiço,
Deixais entrar no caniço
101

Um zângano comedor,
Que vos rouba o mel e a flor,
E a mim o vosso cortiço.

o elefante
(Sérgio de Castro Pinto)

a cor de pólvora que não explode.


barril de pólvora mansa.
apesar do pavio da tromba.

lapidar
(Sérgio de Castro Pinto)

em cada verso
que escrevo,
eu me parto.

a folha é lousa.

poemas, epitáfios.

exílio
(Sérgio de Castro Pinto)

desarvorada,
a madeira
do móvel
desata
os seus nós e estala

a árvore que foi (no exílio da sala).


102

recado a pound
(Sérgio de Castro Pinto)

pound, eu não sou


nenhuma antena.

eu sou a pane
e a interferência
dos meus fantasmas

no tubo de imagens dos poemas.

antagonismo: máquina de fotografia/revólver


(Sérgio de Castro Pinto)

a máquina
é o revólver ao inverso:
os objetos-bala não saem,
eles entram, se internam.

da máquina
(se acionado o gatilho),
os objetos-bala a engravidam
de um festival colorido.

do revólver
(se acionado o gatilho),
apenas existe uma cor:
a mesma cor de um grito.

o homem conduzindo a máquina de fotografia


(Sérgio de Castro Pinto)

na máquina
a paisagem é intestina
(o fora está dentro),
não pode mostrar-se ainda.
103

a máquina
guarda o que havia fora
e o homem a conduzindo
conduz duas memórias:

uma a da máquina (mais dentro)


e a outra a do homem (mais fora).

a morte de lampião
(Sérgio de Castro Pinto)

a morte
sem ponto cardeal
(morte por grau)
via-se maior
na forma horizontal.

lentes invertidas
são matemáticas:
lampião dorme
maior que a vida,
sem altura, enorme.

rios, cidades, poetas


(Sérgio de Castro Pinto)

À Moema Selma D’Andrea

o paraíba, o mamanguape,
o tigre, o eufrates
o tejo, o sena,

não desviam o curso do poema.

o poema, nenhum rio


ou cidade o fazem.
só os poetas, à margem do lápis:

caniço pensante na maré vazante da linguagem.


104

1979: Ano I da Criança Brasileira


(Sérgio de Castro Pinto)

criança que pratica esporte


respeita as regras do jogo

criança que pratica esporte


respeita as regras do logro

criança que pratica esporte


respeita as regras do ogro

criança que pratica esporte


respeita as regras do lobo

criança que pratica esporte


respeita as regras da globo

desjejum
(Líria Porto)

já passa das oito


um sol vagabundo
lambe o horizonte
vadia como eu
na ânsia de sorver-te

Liberdade
(Líria Porto)

Beija-flor tomava banho


na piscina do vizinho.

Adiantou cerca de arame,


plantar flores com espinho?
105

Antigas tardes
sentavam-se nas calçadas:
por-dos-sós

(Saulo Mendonça)

Pintassilgo no terraço
cantando ao amanhecer.
Meu relógio de parede

(Saulo Mendonça)

Escrever memórias:
até os pirilampos
reacendem suas luzinhas

(Saulo Mendonça)

À tardinha, no Sanhauá
o velhinho fitava o rio
com seu olhar poente

(Saulo Mendonça)

Copa do Mundo:
O coração perde a forma
quando em bola se transforma

(Saulo Mendonça)

Chuva passando
tarde escurecendo...
É tempo de tanajura

(Saulo Mendonça)
106

Frondoso tamarindo.
Em seu lugar vazio
verdes lembranças

(Saulo Mendonça)

No céu, quantos trovões!!


Gozos espalhafatosos
das nuvens quando cruzam

(Saulo Mendonça)

Estalactites.
Lágrimas da terra
quando chora por dentro

(Saulo Mendonça)

Monges orando!
Silêncio cristalino
de cardume na água

(Saulo Mendonça)

Noite de primavera.
Um fruto caiu no lago
e amassou a lua

(Saulo Mendonça)
107

Lazaro
(Alberto Lins Caldas)

1
● lazaro ●
● abre os olhos abre e respira ●
● como gatos cães e cavalos ●
● vem lazaro ●
● vem como se vai pra amante ●
● vem como se vai pra guerra ●
● deixa a morte deixa isso ●
● q vai devorando sem saber ●
● ate não restar nada de nada ●
● abre as mãos abre as pernas ●
● respira suspira e pragueja ●
● nessas ruas nesse deserto ●
● correr brincar rir e odiar ●
● como todos os homens ●
● como todos os vivos lazaro ●
● esquece isso de morrer ●
● isso da morte q nos afasta ●
● isso q não pode se dizer ●
● lazaro ●
● tira essa roupa da rua ●
● vem vestir a nudez de dormir ●

2
● depois há os queijos ●
● as lentilhas os arenques ●
● os pães as trutas defumadas ●
● as postas de carne e sangue ●
● batido com vinagre ate coalhar ●
● os porcos as galinhas os bois ●
● a boca lazaro as coxas lazaro ●
● das mulheres os peitos os dedos ●
● dos pes das mulheres lazaro ●
● as horas de leseira as festas ●
● lembra das festas lazaro ●
● o sono o desejo e a alegria ●
● ouve o silencio lazaro ●
● raro aqui dessas palavras ●
● a bruta 107iolência e o ritmo ●
● mas sei q a morte lazaro ●
● seduz muito mais q a vida ●
● e mais q qualquer palavra ●
● então fica lazaro ●
● porqso a morte faz gozar ●
● a vida é feita pra não bastar ●
108

Meu coelhinho sujo


(Alberto Lins Caldas)

● meu coelhinho sujo ●


● vc conhece bem essa arte ●
● sabe q não se reparte ●
● desejo não se reparte 108ólera ●
● não se reparte nosso ouro ●
● nem a carne se reparte ●
● olha meu coelhinho sujo ●
● olha bem essas terras ●
● porq a terra é toda nossa ●
● toda noite meu coelhinho sujo ●
● quando vc me toca eu toco ●
● na pele da vida q borbulha ●
● sem a tolice sem o sentimento ●
● do mundo la dentro e aqui ●
● como fazem as aranhas ●
● sem vc meu coelhinho sujo ●
● posso viver posso comer posso ●
● seguir sendo eu mesma ●
● mas sem sua arte sem sua ●
● força nessa arte meu coelhinho ●
● é o mesmo q viver sem possuir ●
● sem possuir meu coelhinho sujo ●
● todos os doces todos os amargos ●
● todos os cavalos todos os gatos ●
● porq não possuir não dominar ●
● é o mesmo q não ser ou morrer ●
● é aceitar tudo meu coelhinho sujo ●

Pronominais
(Oswald de Andrade)

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
109

3 de maio
(Oswald de Andrade)

Aprendi com meu filho de dez anos


Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca

Vadiagem mística
(Oswald de Andrade)

Passei quase toda a manhã na Basílica


Rezando e olhando
Vi dois casamentos
Bentos
De fraque
O sacristão chama-se Seu Bentinho
E a gente logo que sai da igreja
Cai no rio espraiado
O hoteleiro de meu hotel
Tem cor de medalha de pescoço
E conta-me que houve cafezais
Nos pastos
Nos bambuzais
Se eu me casasse
Queria uma orquestra
Bem besta

Música de manivela
(Oswald de Andrade)

Sente-se diante da vitrola


E esqueça-se das vicissitudes da vida
Na dura labuta de todos os dias
Não deve ninguém que se preze
Descuidar dos prazeres da alma

Discos a todos os preços


110

Cabo Machado
(Mário de Andrade)

Cabo Machado é cor de jambo.


Pequenino que nem todo brasileiro que se preza.
Cabo Machado é moço bem bonito.
É como si a madrugada andasse na minha frente.
Entreabre a boca encarnada num sorriso perpétuo
Adonde alumia o Sol de oiro, dos dentes
Obturados com um luxo oriental.

Cabo Machado marchando


É muito pouco marcial.
Cabo Machado é dansarino, sincopado,
Marcha vem-cá-mulata.
Cabo Machado traz a cabeça levantada
Olhar dengoso pros lados.

Segue todo rico de joias olhares quebrados


Que se enrabicharam pelo posto dele
E pela cor-de-jambo.
Cabo Machado é delicado gentil.
Educação francesa mesureira
Cabo Machado é doce que nem mel
É polido que nem manga rosa.
Cabo Machado é bem o representante de uma terra
Cuja Constituição proíbe as guerras de conquista
E recomenda cuidadosamente o arbitramento.
Só não bulam com ele!
Mais amor menos confiança!
Cabo Machado toma um geito de rasteira...

Mas traz unhas bem tratadas


Mãos transparentes frias,
Não rejeita o bom-tom do pó-de-arroz.
Se vê bem que prefere o arbitramento.
E tudo acaba em dansa!
Por isso Cabo Machado anda maxixe.

Cabo Machado... bandeira nacional!

Viuvita
(Mário de Andrade)

Ela era mesmo bonita, muito moça


Esperando autobonde sozinha na esquina.
111

Todos os homens a encaravam sem respeito, desejando.


Vai, para se livrar de tanta amolação
Ela fez esse gesto de moça que arranja chapéu,
Só pra mostrar a defesa que tinha no dedo, uma aliança.
A moça esqueceu que tinha duas alianças no dedo...
Por causa disso os homens se aproximaram mais.

O valioso tempo dos maduros


Mário de Andrade

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a
frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói
o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando
seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos
inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da
idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo de
secretário-geral do coral.
'As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha
alma tem pressa...
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito
humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se
considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade,
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial!

amor então também acaba? (Paulo Leminski)

Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
112

numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.

eu quando olho nos olhos (Paulo Leminski)

eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora

quem está por fora


não segura
um olhar que demora

de dentro do meu centro


este poema me olha

Quando eu tiver setenta anos


(Paulo Leminski)

quando eu tiver setenta anos


então vai acabar esta adolescência

vou largar da vida louca


e terminar minha livre docência

vou fazer o que meu pai quer


começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja


aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência


quando acabar esta adolescência
113

o paulo leminski
(Paulo Leminski)

o paulo leminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhadaputa
de fazer chover
no nosso piquenique

não discuto
(Paulo Leminski)

não discuto
com o destino

o que pintar
eu assino

O anjo esquerdo da história


(Haroldo de Campos)

os sem-terra afinal
estão assentados na
pleniposse da terra :
de sem-terra passaram a
com-terra : ei-los
enterrados
desterrados de seu sopro
de vida
aterrados
terrorizados
terra que à terra
torna
pleniposseiros terra-
tenentes de uma
vala (bala) comum :
114

pelo avesso afinal


entranhados no
lato ventre do
latifúndio
que de im-
produtivore-
velou-se assim u-
bérrimo : gerando pingue
messe de
sanguevermelhoso
lavradores sem
lavra ei-
los : afinal con-
vertidos em larvas
emmortuá-
rios despojos :
ataúdes lavrados
na escassa madeira
(materia)
de si mesmos : a bala assassina
atocaiou-os
mortiassentados
sitibundos
decúbito-abatidos pre-
destinatários de uma
agra (magra)
re(dis)(forme) forma
- fome - a-
grária: ei-
los gregária
comunidade de meeiros
do nada :
enver-
gonhada a-
goniada
avexada
- envergoncorroída de
imo-abrasivo re-
morso -
a pátria
(como ufanar-se da?)
apátrida
pranteia os seus des-
possuídos párias -
pátria parricida:
que talvez só afinal a
espada flamejante
do anjo torto da his-
tóriacha-
mejando a contravento e
115

afogueando os
agrossicários sócios desse
fúnebre sodalício onde a
morte-marechala comanda uma
torva milícia dejanízaros-ja-
gunços :
somente o anjo esquerdo
da história escovada a
contrapelo com sua
multigirante espada po-
derá (quem dera!) um dia
convocar do ror
nebuloso dos dias vin-
douros o dia
afina sobrevivente do
j u s t o
a j u s t e de
contas

Galáxias (fragmento)
(Haroldo de Campos)

circuladô de fulô ao deus ao demo dará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva
quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá
soando como um shamisen e feito apenas com um arame tenso um cabo e uma lata
velha num fim de festafeira no pino do sol a pino mas para outros não existia aquela
música não podia porque não podia popular aquela música se não canta não é popular se
não afina não tintina não tarantina e no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa
da mais megera miséria física e doendo doendo como um prego na palma da mão um
ferrugem prego cego na palma espalma da mão coração exposto como um nervo tenso
retenso um renegro prego cego durando na palma polpa da mão ao sol
circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva
quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá o povo é o inventalínguas na
malícia da mestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso tenteando a
travessia azeitava o eixo do sol e não peça que eu te guie não peça despeça que eu te
guie desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe me esqueça me largue me
desamargue que no fim eu acerto que no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o
fim me reservo e se verá que estou certo e se verá que tem jeito e se verá que está feito
que pelo torto fiz direito que quem faz cesto faz cento se não guio não lamento pois o
mestre que me ensinou já não dá ensinamento
116

Iniciação amorosa
(Drummond)

A rede entre duas mangueiras


balançava no mundo profundo.
O dia era quente, sem vento.
O sol lá em cima,
as folhas no meio,
o dia era quente.

E como eu não tinha nada que fazer vivia namorando as pernas morenas da lavadeira.
Um dia ela veio para a rede,
se enroscou nos meus braços,
me deu as maminhas
que eram só minhas.
A rede virou,
o mundo afundou.

Depois fui para a cama


febre 40 graus febre.
Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas, girava no espaço verde.

O rei menos o reino


(Augusto de Campos)

Onde a Angustia roendo um não de pedra


Digere sem saber o braço esquerdo,
Me situo lavrando este deserto
De areia areia arena céu e areia.

Este é o reino do rei que não tem reino


E que – se algo o tocar – desfaz-se em pedra.
Esta é a pedra feroz que se faz gente.
- Por milagre? de não e palma e pele.

Este é o rei e este é o reino e eu sou ambos,


Soberano de mim: O-que-fui-feito,
Solitário sem sol ou solo em guerra
Comigo e contra mim e entre os meus dedos.

Por isso minha voz esconde outra


Que em suas dobras desenvolve outra
Onde em forma de som perdeu-se o Canto
Que eu sei aonde mas não ouço ouvir.
117

Caligrafia para Adília


(Guilherme Delgado)

Adília não é o nome de Adília


quem diria
nascida tal de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira
nem precisa Adília dizer um nome impraticável pra poesia
Adília é poeta
a família de Adília sabe
a família de Adília acabará nela exatamente com ela
Adília sabe disso muito bem
Adília não deu em nada só em gatos brincando com baratas
um poeta numa cela à espera de Diderot e Diderot está morto
uma rosa embolorada
isso a família de Adília não quer
não se chora uma ninhada de gatos não se continua a tradicional
[Fidalgo de Oliveira numa cela
assim como não se chama de neto um bolor
todo um brasão familiar (extinto) depois de uma poeta
vai chegar o dia em que tudo acabará em Adília
que dia enorme pra poesia

Caligrafia para Graciliano


(Guilherme Delgado)

Como uma lavadeira,

torço o grão de chuva,


a néstia.

Bato na pedra,
ouço o estampo

cada vez mais largo,

as mãos
me identificando.

Boca estopada,
118

o branco agrava:

no espaço da página,

cada vez mais


mínimo.

— Nada é pouco,
o tiro asserta.

— Se magro o livro,
aproveita-se

até o focinho.

Sebenta
(Zuca Sardan)

Reitor Finel
escreve de perfil
com pincenez azul
a Sebenta Divina

Sybila
(Zuca Sardan)

E vós, Sibyla Xantypa,


entrai num paso-doble
trazendo Café Fonema
e bolachas Madalena !...

Ápice
(Zuca Sardan)

Tio Finel num ápice sublime


prepara sua revolucionária
Theoria Gyro-Pyroscópica
do Cosmos Recyclado
119

Éden
(Zuca Sardan)

O arguto Finel descobriu


que o Éden era um jardim
zoológico protegido pelos
Atlântidas na Amazônia

Capivaras
(Zuca Sardan)

O Jardim das Delícias


repleto de araras capivaras
jacarés gambás tamanduás
e... o terrível Taturama

Cosmos
(Zuca Sardan)

O Cosmos gira num parafuso


sem fim em feroz remoinho
de planetas e mocambos
cometas e constela§öes

Estudos
(Zuca Sardan)

Apresentamos assim estudos


astrosóficos e pyrocráticos
da mais supina importância
no Boletim do Lyceo Pytanga

Estampas
(Zuca Sardan)

Sibyla Xantypa traz pro Finel


uma lupa enquant'o sábio
folheia dúbias estampas
neste gabinete propício
120

Vista aérea
(Expedito Ferraz Jr)
a certa altura,
a vista de um cemitério
se afigura
como a visão
de uma única
sepultura

acerta altura,
já a toda uma cidade
se mistura
essa impressão,
e a arquitetura
de alamedas,
letreiros e ladrilhos
faz ver canteiros,
lápides,
jazigos

a certa altura,
impossível distinguir
entre ruína e criação;
entre o milagre
da civilização
e o terremoto:
tudo quernos parecer
destroços

a certa altura,
resta aprender
a carregar os mortos
na vala comum
dos nossospróprios
ossos

Desconcerto
(Expedito Ferraz Jr)

um quarteto
de cordas

um arranjo
de flores

um solo
infinito
121

O meu lugar no estado das coisas


(Daniel Francoy)

Conheço o meu lugar no estado das coisas


e não ouso dizer o sentimento do mundo.
O jardim renovado, os hibiscos em flor
não são o planeta inteiro e tampouco
o meu coração. Antes, são uma mentira
que frutificou melhor do que um poema.
Um simples arranjo de cores, como bananas
num quadro de natureza morta, como cédulas
antigas de dinheiro, tornadas singelas
porque agora nada valem e ninguém
– nem mesmo eu – viverá por elas.
Apenas um modo de se enternecer,
de talvez pedir perdão, uma maneira
sutil de não se confundir com os assassinos,
uma impotente variação do verbo resistir,
um pacífico modo de calar a boca,
de não gritar, de não se render
ao coração pleno de napalm, de estar
entre vizinhos no país ocupado.

Os limites do inverno
(Daniel Francoy)

Serpenteio, nos limites do inverno,


por uma alameda de condomínios
com nomes de principados e prédios
com nomes de ilhas mediterrâneas.
Entre mim e o outro, intransponível,
uma fria e úmida aragem.
A cidade aparece lá embaixo
sob a garoa: opaca, névoa leitosa.
A imensidão é uma força que fracassa
e a chuva é alheia ao cão que arrasta a pata,
ao cadáver enterrado na semana passada,
às rachaduras na parede da casa de família,
ao pássaro gris que luta para se manter em voo
e ao lixo na margem do rio
em meio à bruxa assassinada.
122

alguém explique
como persiste
uma memória tão vívida

de uma pessoa
que já não existe?

(Ademir Assunção)

fim de festa
o vento entra
pelas frestas

(Ademir Assunção)

tanto caminhar
tantas luas tantos sóis
até nenhum lugar

(Ademir Assunção)

Caderno de carnações
(Anna Apolinário)

poema
artefato do diabo

macambira
na
garganta
labaredas,
libélula delirante
esporão na goela

fera
que golpeia
musas, lâmina
malévola
trespassando-me
terrífica
antilírica maquinaria
123

sismograficamente, eu
gozo

Deus autofágico
O poema aniquila

Cabíria
(Daniel Sampaio)

a noite sarra a barra de tua saia

a vida são sempre mambos & mambos pra putas & putas
(menos tu)

e se fosse pra sofrer, deixa a gueixa


andar pierrô

àquela
(Daniel Sampaio)

àquela que me atinge tigre


eu quero – só de dentes – amarmadilhas
e como ela derreia na relva
cobre do Cobre os olhos cobre com o braço sobre
que o ar queima e quer mais queimar,
amordaço, brônquios e sonhos, um sentimento míssil

belozebu
(Edypo Pereira)

o sino daaam/daaam/daaam
plackthplockth voam as freiras num
zoooooooooooom
meu poema é belozebu
no convento
da língua
fazendo catacrisma
124

for mar
(Flavio Castro)

ver mar navio


isto aquilo dentro sonhadoceano
istmo influxo cristalvo
borda espumosa
glosa garrafagem
margem ala(r)gada abortadossos
glauco azougue líquido felino

içado branco árido


translúcida luta
urro cálido marco piramidal
janela ignota fachada
lucífero céu infame
sol noite escarlate lua

Caligrama para Adília Lopes


(Guilherme Delgado)

Adília não é o nome de Adília


quem diria
nascida tal de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira
nem precisa Adília dizer um nome impraticável pra poesia
Adília é poeta
a família de Adília sabe
a família de Adília acabará nela exatamente com ela
Adília sabe disso muito bem
Adília não deu em nada só em gatos brincando com baratas
um poeta numa cela à espera de Diderot e Diderot está morto
uma rosa embolorada
isso a família de Adília não quer
não se chora uma ninhada de gatos não se continua a tradicional
[Fidalgo de Oliveira numa cela
assim como não se chama de neto um bolor
todo um brasão familiar (extinto) depois de uma poeta
vai chegar o dia em que tudo acabará em Adília
que dia enorme pra poesia
125

arar
(Éverton Francisco)

a ave lavra:
bico branco à enxada
sachando as nuvens-daninhas.

pra – no terroso dos olhos dela –


ser mão que ara, flor do vôo,
asas desmanchando em pétalas.
arara fazendo-se araçá

azul

feixes
(Éverton Francisco)

feixes de luz mergulham


em feixes de cana.
os homens como peixes
mergulham
nos feixes de cana.
os podões são dentes,
dũa boca oculta
bebendo a água verde
de esse rio.
e o usineiro – que sabe
aquário este feudo –
é como deus

Segredo
(Moama Marques)

da concha
do seu ventre
ecoa

em ponteio

a onda do meu beijo


ao tímpano do seu sexo
126

Redemoinho
(Moama Marques)

Na rua
no meio do redemoinho
o Diabo
Riobaldo

O Diabo
nos olhos de Diadorim

O Diabo
no ódio de Diadorim

O Diabo
no amor de Diadorim

duro, sério
tão bonito
Diadorim

no relume das brasas


em meio à neblina
cruzando o arco-íris

Amo tanto
(Renálide Carvalho)

Amo tanto esses zoinhos teus


Que pensar em deixá- los
Me dá dó
Não existe dor maior
Que a de um tal pensamento
Faria música em dó menor
Toda feita de lamento
Se sonhasse SOMENTE
em perdê -los
Teus zoinhos...
Amo tanto
Que um dia
Hei de tê-los.
127

Sombras cambaleando nos becos


- quinto monólogo interior de Llili Maconha -
(Ademir Assunção)

Há homens limpos no meio da sujeira.


Há homens gentis no meio da loucura.
Eu sei que eles existem.
Posso vê-los em movimento no meio da neblina.
São como sombras cambaleando sob a luz fraca dos becos,
entre latas de lixo e gatos feridos.
Eles têm a cara cheia de uísque, cerveja, vinho e cicatrizes.
Eles são velhos, muito velhos.
Eles andam sozinhos pelas ruas mais sórdidas.
Às vezes se trancam em casa
e não conseguem sequer abrir as janelas.
Eles bebem muito. Eles fumam muito.
Eles leem histórias em quadrinhos
e dançam em cima dos muros das suas casas
quando estão sóbrios.
Eles mijam fora da privada quando estão muito bêbados
e às vezes adormecem com a cara enfiada na poça de urina.
Eles vão até o açougue e compram ossos para seus cachorros
quando conseguem algum dinheiro.
Eles ficam felizes olhando seus cachorros mascarem o osso.
Eles falam devagar e conseguem manter o olhar fixo,
durante muito tempo, em lugar nenhum.
Eles riem quando procuram a carteira pela casa toda
e a encontram caída dentro da privada
e olham para a capa de couro toda ensopada
e perguntam: ―ei, o que você está fazendo aí?
eu a procurei por todo canto‖.
Agora mesmo, um deles deve estar alimentando seu gato
com as últimas sardinhas que restaram
e tentando abrir a janela para a Coruja com Asas de Areia,
que bate contra o vidro, tremendo de frio.
Não consigo sentir mais quase nada,
não sei o que fizeram com a minha coragem,
nem com meu medo.
Mas sei que esses homens existem
e continuam vivos entre os escombros.
Posso senti-los por perto.

* * *

vassoura em punho
o monge varre
a própria mente

* * *
128

Índice segundo o nome dos poetas

Ademir Assuunção: 122 – 127


Alberto Lins Caldas: 107 – 108
Álvares de Azevedo: 7
Arnaldo Antunes: 94 – 95
Arnaut Daniel: 85
Augusto de Campos: 24- 25 – 26- 27 – 28 – 29 -30 – 31 – 32 – 116
Augusto dos Anjos: 7 – 8 – 9
Bandeira (Manuel Bandeira): 54- 55 – 56 – 57 – 58 – 59 – 60
Bernardo Guimarães: 99
Bilac (Olavo Bilac): 3 – 4 – 5
Bocage: 14
Cabral (João Cabral de Melo Neto): 90 – 91 – 92
Camões: 10 – 11
Cruz e Sousa: 5-6
Cummings (e. e. cummings): 83
Daniel Sampaio: 123
Décio Pignatari: 33 – 34 – 35 – 36
Daniel Francoy: 121
Drummond (Carlos Druumond de Andrade): 15 – 16 – 44- 45 – 46 – 47 – 48 – 49 – 50
– 51 – 52 – 53 – 116
Edypo Pereira: 123
Éverton Francisco: 60 – 125
Expedito Ferraz Jr.: 120
Fernando Pessoa: 61- 62- 63 – 64 – 65 – 66 – 67 – 68 – 69 – 70 – 71 – 72
Flavio Castro: 123
Frederico Barbosa: 93
Glauco Mattoso: 13 – 14 – 40
Gregório de Matos: 19 – 20 – 100
Guilherme Delgado: 117 – 124
Hans Magnus Enzensberg: 84
Haroldo de Campos: 113 – 114 – 115
John Donne: 86
José Paulo Paes: 39 – 89
Kilkerry (Pedro Kilkerry): 22
Kipling: 88
Lau Siqueira: 96 – 97
Leminski (Paulo Leminski): 111 – 112 – 113
Líria Porto: 104
Maiakóvski (Vladímir Maiakóvski): 73 – 74 – 75 – 76 – 77 – 78 – 79 – 80
Marco Lucchesi: 99
Mário de Andrade: 110 – 111
Mário Faustino: 17 – 18
Moama Marques: 125
Oswald de Andrade: 108 – 109
Paulo Toledo: 89
129

Raimbaut: 97
Renálide Carvalho: 125
Ronaldo Azeredo: 37 – 38
Saulo Mendonça: 105-106
Sérgio de Castro Pinto: 89 – 101 – 102 – 103 – 104
Vasko Popa: 84 – 85
Vinícius de Moraes: 21
Zuca Sardan: 118 – 119

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