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VIDA DE FREDERICO NIETZSCHE

Autor: Daniel Halévy

Tradutor: Jerônimo Monteiro


Editora Assunção ltda.
Coleção Perfis Literários
Digitalização: http://www.consciencia.org

I – OS ANOS DE INFÂNCIA

Karl-Ludwig Nietzsche, jovem ministro da Igreja Luterana. pertencia a uma família de eclesiásticos. Seu pai
e seu avô haviam ensinado teologia. Sua esposa era filha e nela de mi nistros.
Nada sabendo das
novas tendências do pensamento dos desejos que se agitavam, seguia
serenamente a dupla tradição — uma revelada por Deus aos seus discípulos e
a outra Indicada aos homens pelos príncipes. Seus superiores estimavam-no
muito. Frederico-Guilherme IV, rei da Prússia, dignava-se protegê-lo. Ele
podia confiar numa bela carreira, mas sofria dos nervos, estava deprimido e
tinha necessidade de. repouso.
de Rocken, pobre vila cujos
Pediu que lhe dessem uma paróquia no campo; confiaram-lhe a
casebres se erguem na vasta planície dos confina da Prússia e de Saxe - um
sitio melancólico a que Karl-Ludwig Nietzsche logo se afeiçoou. Aceitou a
solidão. Grande músico, improvisava muitas vezes, no órgão rústico, ao
entardecer, fechado no templo, e os camponeses, do lado de fora, ficavam a
ouvi-lo com admiração,
O pastor e sua esposa esperaram quatro anos pelo primeiro filho, que nasceu, afinal, no dia 15 de outubro de
1844, que era o dia do aniversário do rei, Esta coincidência fez aumentar a alegria do pai. "O mês de outubro, mês
bendito! — escreveu ele no registro do templo — tu sempre me cumulaste de alegrias. Mas, de todas as que me
trouxeste, esta é mais profunda, a mais magnífica: batizo o meu primeiro filho... Meu filho, Frederico-Guilherme, tal
será teu nome sobre a terra, para eterna lembrança do real benfeitor cujo dia natal é o teu".

teve, logo, um irmão, e depois, uma irmã. Algumas recordações


O menino
conservadas pelas mulheres descrevem-nos este lar onde a alegria passou
rapidamente. O pequeno Frederico foi tardo em falar. Olhava para todas as
coisas com olhos graves, e calava-se. Aos dois anos e meio, diz sua primeira
palavra. O pastor gosta muito deste companheiro silencioso e leva-o com
prazer nos seus passeios. Frederico Nietzsche jamais se esqueceu do som dos
sinos longínquos sobre a planície imensa e semeada de lagos, nem da
impressão de sua mão apertada na forte mão do seu pai.
A infelicidade chegou bem depressa. No mês de agosto de 1848, o pai tombou do alto da escadaria e bateu
violentamente com a cabeça nas pedras da calçada. O choque determinou» ou. talvez, não se sabe ao certo,
precipitou a eclosão de uma terrível doença. Karl-Ludwig Nietzsche perdeu a razão e morreu depois de um ano de
loucura e sofrimento. Frederico tinha, então, quatro anos. Os trágicos dias afetaram o seu espírito: o despertar, os
soluços que enchiam a casa, o pavor do quarto fechado o silêncio e o abandono; os sinos, os cânticos, os discursos
funerários, o caixão sepultado sob as lages da igreja... Por muito tempo ficou abalado, por ter tão cedo presenciado
estas coisas, visões atormentavam suas noites, e pressentia uma catástrofe próxima. Sonhou — ouçamos a sua
ingênua descrição, feita aos quatorze anos:

Quando a gente despoja a árvore de sua copa, ela se desfolha, marcha t os pássaros abandonam seus
ramos. Nossa família foi despojada de sua copa, toda a alegria desapareceu de nossos corações, e profunda tristeza
se apossou de nós» Mal se haviam fechado nossos ferimentos e foram de novo dolorosamente abertos. Naquele
tempo, eu sonhei que ouvia na igreja o órgão tocar tristemente, como durante os enterros. E como procurava o
causa disso, uma tumba se abriu rapidamente e meu pai apareceu andando com sua mortalha. Atravessou a igreja e
voltou bem logo, com uma criança nos braços. A tumba abriu-se novamente, meu pai desceu e a pedra tornou a
fechar-se. No mesmo instante, o órgão deixou de se ouvir, e eu acordei. Contei, pela manhã esse sonho a minha
querida mãe. Pouco depois, meu irmãozinho Joseph caiu doente, com ataques de nervos e morreu dentro de poucas
horas. Nossa dor foi terrível. Meu sonho se havia realizado fielmente, e o pequeno corpo depositado nos braços de
seu pai. Após esta dupla infelicidade, o Senhor no céu foi nosso único consolo. Isto foi pelo fim de janeiro de 1850.

Na primavera deste ano a viúva do pastor deixou a casa paroquial e foi residir numa cidade vizinha, em
Naumburg-sur-Saale. Estava perto dos seus parentes, que moravam no campo, não longe dali. A mãe e a irmã de seu
marido vieram habitar com ela uma pequena casa à qual as crianças, sempre desoladas a custo se habituaram.

Naumburg era uma cidade real, criada pelos Hohenzollern e dedicada à sua dinastia. Uma burguesia de
funcionários e pastores, famílias de oficiais, e alguns fidalgos vivia entre as muralhas cobertas de musgo e cujas
cinco portas eram fechadas todas as noites. A existência era grave e medida. O sino da igreja metropolitana envolvia
a pequena cidade com seus apelos; despertava-a, fazia-a adormecer, reunia-a para as festas do culto ou do Estado. O
próprio Nietzsche era um garoto grave e comedido. Seus instintos iam bem com os usos de Naumburg e sua alma
ativa bem cedo descobriu belezas nessa nova vida. Admirava as paradas militares, os serviços , religiosos com órgão
e coros, a majestade dos aniversários. A cada ano, comovia-se com a volta do Natal. O dia de teu natalício causava-
lhe menor perturbação, mas alegria maior.

Sendo dia de meu aniversário também o do nosso bem-amado rei — escreveu ele — nesse dia sou
despertado pela música militar. Recebo meus presentes; a cerimônia termina bem depressa e vamos juntos a igreja.
Embora o sermão não seja escrito em minha intenção, esforço-me para o ouvir e tomo a melhor parte para mim. Em
seguida, reunimo-los na escola para assistir à grande festa... Antes de nos separar-nos cantamos em coro um hino
patriótico e o diretor concilium dimisit. Então é que começa o melhor momento para mim. Chegam meus amigos e
passamos juntos uma tarde agradável.

Frederico não se esquecia de seu pai; queria, como ele e como todos os homens de sua família, ser ministro,
um dos eleitos que vivem perto de Deus e falam em seu nome. Não compreendia uma profissão, mais digna nem
mais conforme com seus desejos. Embora fosse muito jovem, tinha a consciência exigente e meticulosa. Ressentia-se
dos menores ralhos e desejava governar-se a si próprio. Quando o assaltava um escrúpulo de consciência, retirava-se
para um canto isolado, meditava, examinava-se e não voltava a brincar com sua irmã senão depois de se ter
deliberadamente arrependido e justificado. Um dia em que chovia torrencialmente, sua mãe viu que ele voltava da
escola sem guarda-chuva nem capote, andando com passos iguais e lentos. Chamou-o. Ele entrou sem pressa.
"Vivem nos recomendando que não corramos na rua", explicou. Seus colegas chamavam-no "o pequeno pastor" e
escutavam em respeitoso silêncio quando lia em voz alta um capitulo da Bíblia.

Ele não ignorava seu prestigio. "Quando a gente é senhor de si próprio — dizia gravemente a sua irmã — é
senhor do mundo inteiro". Era orgulhoso, acreditava que a raça dos Nietzsche era nobre, graças a uma lenda familiar,
que a avô gostava de contar. Frederico e sua irmã Lisbeth Viviam sonhando com ela: antepassados longínquos
haviam habitado a Polônia. Eram condes e chamavam-se Nietzkii. Ao tempo da Reforma, desafiando a perseguição,
romperam com a Igreja Católica. Tiveram que fugir, levando seu filho nascido na véspera, e durante três anos
erraram de cidade em cidade, miseráveis e perseguidos. A mãe não deixou de amamentar seu filho e assim lhe deu,
apesar das provações, uma prodigiosa saúde. Ele viveu muitos anos e transmitiu à sua linhagem essa dupla virtude de
força e longevidade. Frederico não se cansava nunca de ouvir tão bela aventura. Pedia muitas vezes, também, que lhe
repetissem a historia dos poloneses.. A eleição do rei, pelos nobres reunidos a cavalo numa grande planície e o
direito que tinha o menor dentre eles de opor sua recusa à vontade geral - enchiam-no de admiração; não tinha
dúvidas de que esta era a primeira raça do mundo. "Um conde Nietzki jamais deve mentir", disse ele um dia a sua
irmã. As paixões, os fortes desejos que, trinta ou quarenta anos mais tarde haviam de inspirar a sua obra, já naquele
tempo animavam a criança de larga fronte, grandes olhos e que mulheres infelizes envolviam em carinhos. Aos nove
anos, suas inclinações artísticas se estenderam: a musica foi-lhe revelada por um coro de Haendel que ouviu na
igreja. Estudou piano Improvisava, acompanhava-se cantando os hinos, e a sua mãe se emocionava recordando o
mando que, como o menino agora brincava e improvisava no órgão de Rocken.

Apossou-se dele o instinto de criar — instinto já tirânico. Compôs melodias, fantasias, uma suíte de
mazurcas dedicadas aos "seus ancestrais poloneses". Escreveu versos e mãe, avó, tias e irmã receberam, em cada
aniversário, um poema com sua respectiva música. Seus próprios divertimentos passaram a ser pretexto para
trabalho: redigia tratados didáticos contendo regras e conselhos que remetia a seus companheiros. Aprendeu
rapidamente arquitetura; depois, em 1854, durante o sítio de Sebastopol, cuja captura o fez chorar - porque amava os
eslavos e detestava os revolucionários franceses — estudou balística e a defesa das praças fortes. Ao mesmo tempo
fundou, com dois amigos, um Teatro das Artes, onde se representaram dramas antigos e bárbaros, cujo autor era ele:
Os Deuses do Olimpo e um Orkadal.

Deixou a escola para ingressar no colégio de Naumburg. A sua superioridade demonstrou-se tão flagrante
que os professores aconselharam à senhora Nietzsche mandá-lo para um estabelecimento de ensino superior. A pobre
mulher hesitou. É que almejava ter junto de si o seu filho.

Isto foi em 1858. Entrando em férias, já agora mais graves, foi gozá-las, como de hábito, na vila de Poblés,
à sombra dos outeiros cobertos de bosques à margem do fresco e preguiçoso Saale, em cujas águas nadava todas as
manhãs. Acompanhado de sua irmã Lisbeth, hospedava-se em casa de seus avós maternos. Era feliz, mimado pela
vida, mas o futuro incerto preocupava seu pensamento.

Chegava a adolescência. Talvez tivesse que se separar dos seus, trocar de lugar e de amigos. Pressentia, com
um pouco de ansiedade, o novo curso que sua vida ia tomar. Rendava o passado pueril, longo passado do qual os
homens não devem sorrir, treze anos cheios pelos primeiros afetos, as primeiras tristezas, os primeiros orgulhos de
uma alma ambiciosa pela esplêndida descoberta da música e da poesia. As recordações assaltavam-no, numerosas,
vivas e tocantes. Nietzsche, que tinha a alma lírica, surpreende-se como que embriagado de si próprio. Em doze dias
escreveu a história de sua infância, e ao terminar, sentia-se feliz:

Consegui terminar o primeiro caderno — escreveu — e estou contente por isso. Escrevi com imenso
prazer e sem um momento de fadiga. Como é bom fazer desfilar novamente diante dos olhos os nossos primeiros
anos, acompanhando o desenvolvimento do espírito! Contei sinceramente toda a verdade, sem poesia, sem
preocupação literária... Possa eu escrever ainda outros cadernos semelhantes a este!

E em seguida vêm quatro pequenos versos:

Ein Spiegel ist das Leben. In ihm sich zu erkennen,


Mõcht ich das erste nennen, Wonach wir nur anch strebenü

("A vida é um espelho. — Nele nos reconhecemos,


— É, digo, o primeiro alvo — para o qual cada um de nós se esforça.")

A escola de Pforta fica a duas léguas de Naumburg à margem do Saale. Desde que existe a Alemanha,
existem em Pforta alunos e professores. Alguns monges cistercienses, vindos do ocidente latino no século XII para
converter eslavos, conseguiram obter essas terras atravessadas pelo rio. Levantaram grandes muros, dentro dos quais
construíram os edifícios e a igreja, e fundaram a tradição que até agora subsiste. No século XVI foram expulsos pelos
príncipes saxões, mas a escola foi mantida, e os luteranos, instalados em seu lugar, conservaram seus métodos.

As crianças devem ser educadas sob princípios religiosos — diz uma ordem de 1540. — Durante seis anos
elas se exercitarão no conhecimento das letras e na disciplina das virtudes." E os alunos permaneciam separados de
suas famílias, enclausurados com seus mestres. Eram-lhes impostas certas regras de bons costumes: estavam
proibidos de se tratar por "tu" e de mostrar maneiras livres. Estabelecera-se entre eles uma certa hierarquia: os mais
velhos tomavam conta dos mais jovens, e cada professor servia de tutor a vinte discípulos. Ensinavam-lhes religião,
hebreu. grego e latim. . O espírito humanista, o moralismo protestante e o rigor alemão formaram, nesta velho
mosteiro, uma aliança singular, vivaz, um modo fecundo de viver e de sentir. Muitos homens eminentes ou notáveis
receberam sua instrução em Pforta Novalis, os Schlegel, Fichte — Fichte o filósofo, o educador, e patriota, glória da
sua estirpe. Frederico Nietzsche sempre havia desejado estudar em Pforta. Concederam-lhe uma bolsa, e ele deixou a
família em outubro de 1858.

Ao entrar, desaparece para nós. A única recordação que temos do seu primeiro ano escolar é uma anedota
heróica e pueril: a história de Mucias Scaevola que parecia inverossímil a muitos de seus colegas, que a negam:
"homem algum poria a sua mão no fogo", opinaram os jovens críticos. Nietzsche não lhes respondeu, mas, tirando do
fogão um carvão ardente, colocou-o na palma da mão. E para sempre êle ficou com a marca desta queimadura, Janto
mais visível porque tomara o cuidado de prolongar e aumentar a chaga gloriosa derramando sobre ela cera derretida.

O mais certo é que tenha suportado com dificuldade a nova vida. Divertia-se pouco, não fazia amizade com
desconhecidos, e os ternos hábitos do lar maternal haviam-no preparado mal para a disciplina de Pforta. Saía apenas
uma vez por semana, às tardes de domingo. Sua mãe, sua irmã e dois amigos que tinha em Naumburg vinham buscá-
lo à porta e passavam com ele o dia num albergue da vizinhança.

Em julho de 1859, Nietzsche teve um mês de liberdade. Os alunos de Pforta não tinham outras férias. Foi
rever as pessoas e os lugares que amava, fez um rápida viagem a Iena e Weimar. Durante o ano ele não redigira
senão as suas lições. Mas reencontrou o prazer de escrever e compôs, sobre as suas impressões do verão, uma
fantasia sentimental a que pão falta algo de patético.

O sol já se havia posto — escreveu ele — quando deixamos o sombrio recinto; atrás de nós o céu aparece
banhado de ouro; sobre nossas cabeças flutuam nuvens róseas; e lá em frente, a cidade repousando sob a doce
brisa da tarde... — Guilherme — disse eu ao meu amigo — haverá alegria maior do que errar juntos através do
mundo? Oh prazer da amizade, da fiel amizade; oh hálito da noite magnífica de verão, perfume das flores e rubor
da tarde! Não sente os seus pensamentos elevar0se, e como as alegres andorinhas, pairar sobre as nuvens coroadas
de ouro? Como são maravilhosas as paisagens da tarde! É como se estivesse descobrindo a minha própria vida. Eis
como se agrupam os meus dias: uns retidos na penumbra, e outros, cheios de exaltação e liberdade. - Nesse
momento, um grito agudo chegou até nós. Vinha do manicômio que se achava próximo. Entreapertamos as mãos
mais fortemente, como se um gênio mau nos tivesse tocado com sua asa pavorosa. Desaparecei, oh potências do
mal! — Mesmo neste belo mundo existem infelizes. Mas, que é, então, a infelicidade?

No começo de agosto voltou à Pforta. A volta entristeceu-o tanto como a primeira entrada ali. Não pôde
aceitar esta busca opressão e não pode deixar de pensar em si mesmo. Mantém, durante algumas semanas, um diário
íntimo que nos revela seu estado de espírito e o emprego de cada um de seus dias. Ai estão algumas máximas
corajosas contra o tédio, ditadas pelo professor e que ele transcreveu; depois, a descrição de seus estudos, suas
distrações, suas leituras e as crises que o deprimem. A alma lírica do rapaz, ora resiste e ora se abandona às suas
impressões e dificilmente se dobra sob a disciplina. Sob a pressão da emoção, ele abandona a presa, muito pouco
musical para a sua melancolia: aparecem o ritmo e a rima. A inspiração dita-lhe alguns versos,- uma quadra ou uma
sextilha. Ele não rebusca, nem procura reter a inspiração; segue-a quando ela surge; e apenas declina, a prosa
reaparece, como num diálogo shakesperiano.

Às vezes, a vida em Pforta é embelezada por horas de alegria simples e moça. Os rapazes passeiam,
cantando em coro, e vão nadar. Nietzsche toma parte nestes divertimentos e descreve-os. Quando o calor se faz
pesado demais, a água toma o lugar do estudo. Os duzentos alunos descem para o rio, cadenciando seus passos com
uma canção. Atiram-se à água e descem a corrente, sem desorganizar a ordem da marcha, realizando uma prova
muito longa, que é difícil para os mais jovens, mas deixa-os orgulhosos; quando o chefe apita, sobem para a margem,
vestem os uniformes que vinham num bote, atrás deles, e em seguida, sempre cantando e marchando em ordem,
voltam ao trabalho e à velha escola. "É surpreendente!" diz Nietzsche.

Chega o fim de agosto: oito dias, depois, seis; um longo mês se passa sem que uma só linha seja
acrescentada ao diário. Ele o reabre, afinal, para o concluir:

Meu estado de espírito mudou muito, desde o dia em que comecei a escrever este diário. No verão passado
era verdejante e alegre; agora, oh tristeza, é como o último outono. Então, eu era unter-tertianer (aluno do 3.o ano),
agora, subi um grau... O meu aniversário passou, fiquei mais velho — o tempo passa como a rosa da primavera, e o
prazer, como a espuma do regato. Encontro-me, neste momento, tomado de um extraordinário desejo de saber, de
acumular cultura geral. Li Humboldt e foi ele quem me deu o impulso, Possa esta nova inclinação durar como
aquela que me prende à poesia?

Em seguida, Nietzsche estabeleceu um vasto programa de estudos onde a geologia, a botânica, a astronomia
se aliavam à estilística latina, ao hebreu, às ciências militares, a todas as técnicas. "E sobre todas as coisas — diz ele
— a religião, fundamento de todo o saber! Grande é o domínio do saber, infinita a busca da verdade!"

Um inverno e uma primavera se passam, e o rapaz trabalha. Mas chegam as segundas férias e a terceira
volta à escola. O outono despe os grandes carvalhos sobre as terras de Pforta. Frederico Nietzsche tem dezessete
anos e entristece
Havia muito tempo que ele se impusera uma penosa disciplina: Lera Schiller, Hölderlin, Byron; pensa nos
sombrio Manfredo, mágico poderoso que, cansado de seu poder,
deuses da Grécia e no
procura em vão o repouso da morte que sua arte havia vencido. Que importam a
Nietzsche as lições de seus professores. Ele medita os versos do poeta romântico:
Sorow is knowledge: They'who know the most
Must mourn the deespest over the fatal truth,
The tree of knowledge is not that of life.

(O saber é amargo. Aqueles que mais sabem


Mais profundamente choram a fatal verdade:
A árvore do saber não será, jamais, a árvore da vida(*)
Ele se cansa, enfim. Quer escapar à engrenagem das aulas, dos deveres que prendem toda sua vida, e, atento
apenas a si mesmo, conhecer os sonhos de que seu espírito está transbordante.

Faz confidencias a sua mãe e a sua irmã; declara que seus projetos para o futuro mudaram. A Universidade
o aborrece. Ele não quer ser professor, mas músico. Sua mãe faz-lhe ver a razão e consegue acalmá-lo. Mas
conforma-se por pouco tempo. A morte de um professor ao qual ele estava ligado, acabou de o confundir.
Negligenciou o trabalho, isolou-se e recolheu-se.

Escreve. Tivera, desde a primeira infância, o instinto da frase e da palavra, do pensamento visível. Não
cessou de escrever, e nem uma nuance de sua inquietação nos ficou escondida. Compreendeu o vasto universo do
romantismo e da ciência, sombrio, agitado, sem amor. Esta temível visão fascina-o e o aterroriza. Sua antiga piedade
ainda o impressiona: exprobara-se por sua veleidade e audácia de negar, como de outros tantos pecados. Procura
conservar a fé religiosa, cada dia menor. Não rompe à maneira francesa e católica; desliga-se com lentidão e medo:
com lentidão, porque venera estes dogmas ou símbolos que povoam todo o seu passado, a recordação de sua casa e
de seu pai; com medo, porque sabe que, renunciando à antiga segurança, não encontrará uma segurança nova, mas os
problemas surgirão aos punhados. Medindo a gravidade suprema da escolha, ele medita.

— escreveu ele — não é trabalho para algumas semanas, mas


Uma tal tentativa
para uma vida. É possível que, armada com os resultados de uma reflexão pueril,
a gente pretenda negar a autoridade de dois mil anos garantida pelos mais
profundos pensadores de todos os tempos? Será possível que, com fantasias e
rudimentos de idéias a gente pretenda afastar de si estas angústias, estas bênçãos
religiosas de que toda a História está penetrada?
o pensamento humano está em luta
Desdenhar dos problemas filosóficos sobre os quais
há milhares de anos; revolucionar crenças que, recebidas pelos homens mais
autorizados, elevaram-nos à verdadeira humanidade; ligar a filosofia ás
ciências naturais, sem mesmo conhececer os generosos resultados de uma e
das outras; e, finalmente, tirar das ciências naturais um sistema do real
quando o espírito não percebeu ainda nem a unidade da história universal,
nem os mais essenciais princípios — i uma perfeita temeridade.
...Que é, então, a humanidade? Mal o sabemos: um ponto num conjunto, um período num infinito, uma
produção arbitrária de Deus? Será o homem outra coisa mais que uma pedra evoluída através dos mundos
intermediários das flores e dos faunos? Será ele, no presente um ser completo, ou que lhe reservará a história? Ê$te
eterno faturo não terá fim? Quais serão as molas deste grande relógio? Estão ocultas, mas, por mais longa que seja
a grande hora que chamamos história, a todos os Instantes elas, são as mesmas. As peripécias são inscritas sobre o
quadrante; o ponteiro progride, e, quando passar a décima-segunda hora, a série recomeça: é o inicio de um
período na história da humanidade. Aventurar-se, sem guia nem bússola, no oceano da dúvida, é perda e loucura
para um cérebro jovem; em sua maioria, são destroçados pela tempestade, e pequeno é o número daqueles que
descobrem novas regiões... Muitas vezes toda a nossa filosofia me pareceu uma torre de Babel... Uma infinita
confusão no pensamento popular é o desolador resultado; devemos esperar grandes desordens, no dia em que as
o cristianismo está baseado em afirmartivas
multidões compreenderem que todo
gratuitas. A existência de Deus, a imortalidade, a autoridade da Bíblia, a
revelação — serão para sempre problemas. Esforcei-me para negar tudo.
Ah/ Destruir, é fácil. Mas, construir...
instinto transparece nesta página! Frederico Nietzsche
Que maravilhoso
apresento questões precisas que em seguida irão prender-se ao seu
pensamento, e deixa pressentir as enérgicas respostas que confundirão os
homens: a humanidade é um vácua, um produto arbitrário de Deus; um
destino absurdo leva-a a reiniciar-se continuamente; volta sempre ao
princípio. Toda a soberania brota da força, e a força é cega; guia-se pelo
acaso. Frederico Nietzsche não afirma coisa alguma; desaprova as
proposições precipitadas sobre assuntos graves. Quer abster-se, hesita; e,
afinal, quando se entrega, quer dar-se todo, inteiro. Suspende seu pensamento.
Mas ele é transbordante, e, malgrado ele próprio, assim se exprime, às vezes:
Bem logo, a submissão á vontade de Deus e à humanidade não, serão senão um véu atirado sobre a
pusilaminidade que experimentamos no momento em que devemos afrontar bravamente o destino.

Toda a moral, todo o heroísmo nietzschianos estão condensados nestas poucas palavras.

Já citamos os autores de que Nietzsche mais gostava então: Schiller, Byron, Hölderlin. Este, então pouco
conhecido, era o seu preferido. Descobrira-o como a gente, com um
olhar, descobre um amigo entre a
multidão. Foi um encontro singular. A vida do poeta, que acabava de morrer,
parecia-se com a vida do menino, apenas começada. Hölderlin, filho de pastor
protestante, quis seguir a vocação paterna. Em 1780 estudou teologia na
Universidade de Tubíngue, com colegas que se chamavam Hegel, Schelling.
Deixou de crer. Conhecia Rousseau, Goethe, Schiller e o romantismo embriagava-
o. Gostava da natureza misteriosa, da lúcida Grécia. Ama-as simultaneamente e
sonha em unir suas belezas numa obra alemã. Era pobre e tinha que levar a dura
vida do poeta necessitado. Professor, suportou o aborrecimento das casas ricas, em
quase todas desprezado e em uma, muito querido: satisfação logo seguida pela
desilusão. Volta à vila natal, onde as pessoas e o ar são doces. Trabalha, escreve
todo o tempo de que dispõe, mas pesa-lhe viver à custa dos seus, e afasta-se.
Manda imprimir alguns versos, e o público não gosta desses belos poemas, onde o
gênio de um desconhecido faz os deuses do Olimpo passar pelas sombras das
florestas renanas. O infeliz Hölderlin sonha criações mais vastas, mas retém o
sonho : a Alemanha é um mundo, e a Grécia um outro mundo. É preciso a força de
um Goethe para as unir e fixar as palavras eternas de Fausto, raptor de Helena.
Hölderlin escreveu fragmentos de um poema em prosa. Seu herói é um jovem
grego que se lamenta da ruína de sua raça, e, frágil precursor de Zaratustra, clama
pela renascença de uma valorosa humanidade. Compôs três cenas de uma tragédia
cujo herói é Empédocles, tirano de Agrigente, poeta, filósofo, grande inspirador das
multidões, grego isolado, por sua própria grandeza, entre os gregos, mágico que,
possuindo toda a natureza, cansa-se das satisfações que a vida pode oferecer e se
retira para o cimo do Etna, deixando a família, seus amigos, seu povo que o quer, e,
um dia, ao nascer da noite, atira-se na cratera. E obra de fôlego: Hölderlin
abandona-a. A tristeza o enfraquece e exalta. Quer deixar a Alemanha, onde tanto
tem sofrido, e libertar os seus de sua vida incômoda. Propõem-lhe um emprego em
Bordéus, na França, e ele desaparece. Seis meses mais tarde, volta ao lar, vestido de
farrapos, queimado pelo sol. Interrogam-no, mas ele nada diz. Procuram informar-
se, e, após grande trabalho, vêm a saber que ele atravessou a França a pé, sob o sol
de agosto. Sua inteligência este perdida.
Ele acaba-se, abisma-se num torpor que dura quarenta anos. Morre em 1843, alguns meses antes do
nascimento de Nietzsche. Um platoniano podia deleitar-se pensando que um único gênio migrara de um corpo para o
outro. A mesma alma alemã romântica por natureza e clássica por aspiração, despedaçada, enfim, pelos desejos,
anima estes dois homens e predestina-os a um fim igual. A gente parece surpreender, através de suas vidas, o
trabalho cego da raça, a qual, perseverando na monótona imagem, envia ao mundo, de século em século, filhos iguais
para provas iguais.

Naquele ano, ao aproximar-se o verão, Nietzsche sentiu, nos olhos e na cabeça, fortes dores de natureza
incerta, talvez nervosa. Suas férias estragaram-se. Mas conseguiu licença para ficar em Naumburg até o fim de
agosto, e sentiu-se bem pago de suas tristezas pelas alegrias de um prolongado lazer.

Nietzsche está em ótima disposição quando volta a Pforta. Não resolveu, mas explorou suas dúvidas e pôde,
sem se violentar tornar a ser um aluno trabalhador. Não pensa em interromper suas leituras, que são imensas. Não
deixa de enviar pontualmente, todos os meses, a seus dois amigos de Naumburg, poemas, trechos de música para
dança, ou lírica, ensaios de crítica ou filosofia, e estas ocupações não prejudicam seu trabalho escolar. Dirigido por
excelentes mestres, estuda as línguas e literaturas da antigüidade. Seria feliz, se os insistentes problemas de futuro e
de profissão não começassem a atormentá-lo.

Meu futuro me preocupa — escrevia ele a sua mãe em 1863: — Várias razões, exteriores e
interiores, fazem com que ele me pareça confuso e incerto. Sem dúvida, sinto que serei capaz de vencer,
na atividade que escolhem. Mas falta-me força para afastar de mim uma série de coisas que me
interessam. Que hei de estudar? Não chego a decisão alguma e, no entanto, só eu posso refletir e
escolher. O que é certo é que aquilo que estudar, quero estudá-lo a fundo. Mas a escolha é dificílima,
pois quc se trata de encontrar o domínio preciso onde a gente possa estar certo de se aplicar
inteiramente. E quantas vezes estas esperanças enganam! Como a gente se sente rapidamente desviado
por uma predileção momentânea, uma tradição de, família, ou simples desejos! Escolher o futuro é jogar
uma partida de loto onde há muitas pedras pretas e poucas brancas. Atualmente, minha situação é
incômoda. Dispersei o interesse por uma multidão de domínios, de modo que, se satisfizer todos os
desejos, serei um homem muito instruído, mas dificilmente um animal profissional, É claro que devo
destruir muitos dos desejos, e, ao mesmo tempo, adquirir novos. Mas quais serão os
infelizes que devo atirar pela borda? Talvez sejam, justamente, os meus mais
queridos filhos...
as últimas férias, e o começo do último ano, Nietzsche volta sem
Depois,
tristeza para a velha escola que deverá deixar bem depressa. Vai encontrar deveres
menos rigorosos, um quarto particular e certas liberdades. Janta com um outro
professor que o convida, e assim, no próprio mosteiro conhece os primeiros
prazeres do mundo. Na casa de um dos professores, encontra uma jovem amável
Depois de vê-la por várias vezes, sente o amor, pela primeira vez em sua vida.
Durante alguns dias pensa unicamente nos livros que lhe vai emprestar, na música
que vai tocar com ela. Sua emoção é deliciosa, Mas a moça deixa Pforta, e
Nietzsche volta ao trabalho. O "Banquete" de Platão, as tragédias de Ésquilo lhe
dão seus últimos prazeres. Depois, ele se entrega aos devem quotidianos. Às vezes
senta-se ao piano, antes do jantar. Dois colegas que ficaram seus amigos, Gersdorff
e Paul Deussen, ouvem-no. Ele toca Beethoven ou Schumann, ou improvisa.
A poesia está sempre com ele. Basta um rápido descanso, uma folga de algumas horas: o lírico reaparece.
Na manhã de Páscoa, deixa a escola, vai à sua casa, diretamente ao seu quarto, onde se encontra só. Sonha por um
instante. Assalta-o uma multidão de impressões, e ele escreve. É um intenso prazer, após a longa privação, e não será
digna de Zan-thustra esta página que transcrevemos?:

Aqui estou, no limiar do primeiro dia da Páscoa, envolto em minha "robe de chambre", sentado à minha
lareira. Lá fora cai uma chuva fina. Perto de mim, a solidão. Uma folha de papel branco está
sobre a mesa.
Olho-a e entretenho-me, ratando a caneta entre meus dedos, esmagado
pela multitude inextrincável de idéias, sentimentos, pensamentos que se
comprimem e desejam ser descritos. Uns reclamam e fazem grande tumulto: são os
jovens, têm pressa de viver. Lá estão outros se debatendo: são os velhos
pensamentos, bem maduros, bem esclarecidos; como velhos, eles olham
despeitados a confusão que fazem os mais moços. É este combate entre moços e
velhos que determina nosso humor; e ao estadodo combate, à vitória de uns e à
fraqueza dos outros, é que chamamos, a cada minuto, o nosso estado da alma
-nosso stímmung.
... Às vezes, quando espio meus pensamentos e sentimentos e os observo em
religioso silêncio, tenho a impressão de que facções bárbaras bramem e se agitam
que o ar estremece e se dilacera, como se um pensamento ou uma águia se tivesse
atirado para o sol.
O combate é o alimento que dá força à alma. Ela sabe escolher os seus
frutos doces e esplêndidos Sob a pressão do desejo de um novo alimento, ela destrói; luta com energia — mas como sabe
ser suave quando atrai seu adversário, aperta-o e se une a ele inteiramente. Essa impressão que num minuto faz toda a nossa felicidade ou toda a
nossa tristeza, talvez deslize num instante, como os cortinados duma impressão ainda mais profunda, para desaparecer diante desta que ê mais
importante. Assim se vão aprofundando as impressões de nossa alma, sempre únicas, incomparáveis, extraordinariamente jovens e rápidas como
o próprio instante que as traz.

Nesse minuto, penso em certas pessoas que amei; certos nomes, certas fisionomias passam pelo meu espírito
—não quero dizer que suas naturezas se tornem realmente mais profundas e mais belas; mas é verdade que cada uma destas reminiscências,
quando as encontro, levam-me para impressões mais agudas — porque o espírito não se conforma em voltar a um nível que já ultrapassou — ele
tem necessidade de se tornar maior, sempre maior. Eu vos saúdo, caras impressões, ondulações maravilhosas de uma alma agitada. Sois
numerosas como a natureza, mas mais grandiosas; por isso que vós cresceis e vos esforçais sem cessar — e a flor, ao contrário, perfuma hoje
como perfumava no dia de sua criação. Eu não amo agora como amava há uma semana atrás; e não estou tão disposto neste momento como
estava quando tomei esta caneta para escrever.

Frederico Nietzsche voltou a Pforta para preparar os últimos exames. Pouco faltou para ser reprovado, pois
em matemáticas não conseguiu média. Mas os professores, desprezando esta insuficiência, conferiram-lhe o diploma.
E ele deixou a velha escola. Deixou-a com pena. Sua alma depressa se agarrava aos lugares onde vivia. Agarrava-se
com igual insistência às recordações felizes como às melancólicas.

A despedida dos alunos é uma cerimônia regulamentada. Eles se reúnem para orar em comum uma última
vez. Depois, aqueles que vão partir entregam aos professores um testemunhou escrito de sua gratidão. A carta de
Frederico Nietzsche foi emocionante pelo acento patético e solene que tinha. Foi a Deus que ele se dirigiu: "A Ele,
que me deu tudo. os meus primeiros agradecimentos. Que oferta lhe poderei fazer, senão o cálido reconhecimento de
meu coração, seguro do seu amor! Ele me permitiu viver esta bela hora! — Que ele continue a velar sobre mim, o bondoso Deus." Depois,
agradece ao rei "por cuja bondade me foi possível entrar nesta escola...; a ele e à pátria, espero poder honrar, um dia. É essa a minha vontade."
Fala. em seguida, aos seus venerados mestres, e aos seus colegas "e particularmente a vocês, meus caros amigos, que lhes poderei dizer no
momento de partir".

Compreendo porque a planta, tirada do solo que a alimentou só pode, num solo estranho, enraizar
com dificuldade e lentidão. Poderei me afastar de vocês? Poderei me habituar a outro meio? Adeus!”

Não satisfeito com estas expansões, escreveu para si mesmo estes versos que as reproduzem:

Que seja assim — a marcha do mundo é tal;


Que me aconteça como a tantos outros.
Eles partem, seu bote se despedaça,
E ninguém pode mostrar o ponto do sumiço.
Adeus, adeus! O sino do barco chama,
E como demoro, o barqueiro me apressa.
E agora, ousado, parto através de vagas, tempestades e recifes!
Adeus! Adeus!...
II

OS ANOS DA JUVENTUDE

Pelo meado de outubro de 1862, Nietzsche deixa Naumburg para entrar na Universidade de Bonn. Paul
Deussen, seu colega, e um sobrinho deste, acompanham-no. Os jovens não têm pressa. Detêm-se na margem do
Reno. Estão alegres e mesmo um tanto tontos com a completa liberdade de que gozam. Paul Deussen, agora
professor na Universidade de Kiel, conta-nos, com a satisfação de um pacato burguês que se anima à recordação das
loucuras passadas, aquelas viagens repletas de exuberantes gargalhadas.

Os três amigos percorrem o campo a cavalo. Nietzsche — não teria ele abusado da cerveja servida na
estalagem? — interessa-se muito mais pelas longas orelhas de sua montaria do que pela beleza da paisagem. E mede-
as com cuidado.

— É um burro — diz ele.

— Não — replicam os outros — É um cavalo. Nietzsche mede as orelhas de novo, e teima com
firmeza:

— É um burro!

Voltam ao cair do dia. Gritam, discutem, escandalizam a pequena cidade. Nietzsche canta canções de amor,
e as mocas, atraídas pelo barulho às janelas meio fechadas, observam por trás das cortinas essa cavalgada. Afinal, um
cidadão, saindo de sua casa, envergonha os barulhentos e leva-os, não sem os ameaçar, em direção à estalagem.

Os três se instalam em Bonn. A emoção que sentem c viva. As universidades tinham então, um prestigio
singular.

Únicas a permanecer livres, mantinham, na Alemanha dividida, uma possante vida num débil corpo.
Tinham sua história, que era gloriosa, e sua lenda, mais gloriosa ainda. O povo sabia que os jovens alunos de Leipzig, Berlim,
Iena, Heidelberg ou Bonn, inflamados pelos professores, se haviam armado contra Napoleão, para salvação da raça alemã; sabia também que esses
valentes haviam lutado c lutavam ainda contra os déspotas e os padres, para fundar a liberdade alemã; c o povo amava esses graves professores e
esses tumultuosos jovens que representavam a pátria no seu mais nobre aspecto: a pátria trabalhadora, armada para o trabalho.

Não havia nenhum jovem que não pensasse nos anos de estudo como os mais belos tempos de sua vida; não
havia moça alguma que não sonhasse com o seu estudante. E toda a sonhadora Alemanha não tinha sonho mais
lindo: era infinitamente orgulhosa de suas Universidades ilustres, escolas de saber, de bravura, de virtude e de
alegria.

"Cheguei a Bonn — escreve Frederico Nietzsche num dos numerosos ensaios onde conta a si próprio a sua
vida — com o orgulhoso sentimento de um futuro feliz e rico". Êle não ignorava sua própria capacidade, e estava
impaciente por travar conhecimento com os seus contemporâneos, que seriam o material para o trabalho do seu
pensamento.
A maior parte dos estudantes de Bonn vivia agrupada em associações. Nietzsche hesitou um pouco antes de
seguir esse costume. Mas, temendo um selvagem repúdio no caso de desprezar qualquer obrigação de camaradagem,
fez-se incluir num destes Vereines (sociedade). "Refleti muito antes de dar esse passo, o qual, dado o meu caráter, me pareceu quase
necessário" — escreveu ele a seu amigo Gersdorff,

Durante algumas semanas deixou-se distrair pelo ritmo desta nova existência. Sem dúvida, ele jamais
gostou de cerveja ou de fumo. Mas as discussões eruditas, os passeios de barco pelo rio, as horas de alegria nos
albergues ribeirinhos, e pela tarde, na volta, os coros improvisados — isto sim, Nietzsche aceita estes prazeres
simples. Para ser um estudante "completo", ele quis se bater em duelo, e, como não tinha nenhum inimigo, escolheu
para adversário um agradável colega. "Sou um calouro — disse ele — e quero me bater. Simpatizo d com você.
Vamo-nos bater". — "Perfeitamente" — respondeu o outro. E Nietzsche recebeu uma estocada.

Era impossível que uma tal vida o contentasse por muito tempo. Este humor de infantil gaiatismo logo
termina primeiros dias de dezembro, ele começa a retrair-se e sente renascer a inquietação. As festas do Natal e do
Ano Novo, passadas longe dos seus, entristecem-no. Uma carta que mandou a sua mãe deixa entrever a insatisfação :

Adoro os aniversários, os primeiros-de-ano, os dias de Natal. Devemos-lhes horas em que a alma,


suspensa, descobre fragmentos de sua própria existência. Depende de nós. sem duvida, gozar mais amíud e horas
semelhantes, mas nós pouco nos preocupamos com isso.

Elas favorecem momentos para resoluções decisivas. Costum o,


em tais momentos , reler os
manuscritos me as cartas do ano findo, e escrever só para mim, as reflexões que me acodem.
Durante uma hora ou duas, a gente fica como que acima do tempo, fora de tua própria
existência. Dominamos com segurança o passado, e resolvemos, de alma mais valente e mais firme,
reencetar a marcha para diante. É quando os votos e as bençãos tombam como I uma doce chuva
sobre a alma - é maravilhoso!
Dessas reflexões, que o jovem escreve para "si mesmo", possu ímos
algumas. Ele se censura pelas
horas perdidas e se decide a levar uma vida mais austera e mais concentrada. No entanto, no
momento de romper com alguns colegas um tanto grosseiros, mas bravos, e jovens como ele -
hesita.. Ficará com eles? Um delicado receio o agita. Pode ser que, pelo efeito de uma longa
indulgência, ele se habitue aos seus modos, e deixe de ser tão sensível às ações baixas.
O costume é uma força temível escreveu ao teu amigo Gersdorff, A gente já perdeu multo quando perdeu a
desconfiança instintiva diante das coisas más que se nos apresenta na vida quotidiana. Adotou um terceiro partido,
muito difícil, e decidiu falar francamente a seus amigos, dizendo que procuraria exercer sobre eles
uma boa influência, tentando tornar suas vidas mais nobres, começando, assim, o apostolado que
sonhava estender, um dia, a toda a Alemanha. Propôs uma reforma na associação: queria que se
suprimisse, ou pelo menos, se reduzisse o hábito do fumo e da bebida que lhe provocavam
desgosto.
A proposta não obteve o mínimo sucesso. Fizeram-no caras e o afastaram. Nietzsche, sempre
pronto aos sarcasmos vingou-se com palavras que não contribuíram para aumentar apreço dos
seus colegas. E ele conheceu, então, a mais amarga das solidões: a solidão dos vencidos. Haviam-
lhe pedido que se afastasse de todos, mas ele não se retirou. Era orgulhoso, e a estada em Honn
tornou-se dolorosa.
Trabalhava energicamente e sem alegria. Estudava filologia o que não lhe interessava em nada. Era um
exercício que ele se impusera para disciplinar o espírito, para corrigir tendência ao misticismo
vago, à dispersão. Mas não sentia nenhum prazer em analisar minuciosamente os textos gregos,
cuja beleza sentia por instinto. Ritschl, seu professor de filologia, dissuadia-o de qualquer outro
estudo. "Se deseja ser um homem forte - dizia - adquira uma especialidade". Nietzsche obedeceu.
Renunciou à teologia, que tivera desejo de aprofundar. Era dezembro compusera algumas
melodias: decidiu que durante todo o ano não se entregaria a um prazer tão inútil. Queria
submeter-se e afastar o aborrecimento.
Seu esforço foi recompensado: pôde escrever um trabalho cujo rigor e sagacidade foram apreciados
por Ritschl.
Franca satisfação! Era de pensar que Nietzsche tinha necessidade! Escutava falar os estudantes. Uns
repetiam sem ardor as fórmulas de Hegel, Fichte ou Schelling: e estes grandes sistemas perdiam toda a virtude
estimulante. Outros preferiam as ciências positivas e liam tratados materialistas de Vogt ou Büchner. Nietzsche leu
esses tratados, mas não os releu nunca. Era poeta, tinha necessidade de lirismo, de intuição e de mistério. Não se
podia satisfazer com o mundo claro e frio da ciência. Esses mesmos rapazes que se diziam ma terialistas, diziam-se
também democratas; exaltavam a filosofia humanitária de Feuerbach; mas Nietzsche era mais poeta ainda, e, por
educação ou por temperamento, muito aristocrata para se interessar pela política das massas. Concebia a beleza, a
virtude, ã força, o heroísmo, como fins desejáveis, e os desejava para si mesmo. Não desejara jamais, porém, uma
vida feliz, igual e cômoda: não podia, portanto, interessar-se pela vida feliz dos homens, pelo pobre ideal de uma
alegria medíocre e de um sofrimento menor.

Insatisfeito com todas as tendências dos seus contemporâneos, que alegria podia êle sentir? Refugado pela
política baixa, metafísica débil e pela ciência positiva — para que sentido podia dirigir o espírito? Tinha, decerto,
preferências vivas e positivas. Estava seguro de seus gostos. Gostava dos poetas gregos; gostava de Bach,
Beethoven, Byron. Mas quais eram, enfim, seus pensamentos? Ele não sabia que resposta dar aos problemas da vida,
e preferia sempre o silêncio às palavras incertas, aos vinte, como aos dezessete anos. E se impôs a abstenção.

Em seus escritos, cartas ou conceitos, mostra-se sempre reservado. Seu amigo Deussen emitiu a idéia de que
a prece não tem virtude real e proporciona ao espírito uma confiança ilusória. "Aí está uma dessas tolices à
Feuerbach" — replicou Nietzsche com aspereza. O mesmo Deussen, um outro dia, falava da "Vida de Jesus", da qual
Strauss acabava, de publicar uma nova edição, e aprovava o senso do livro. Nietzsche recusou-se a dar opinião. "A
questão é importante — disse êle. — Se você sacrificar Jesus deve, também, sacrificar Deus". Estas palavras
deixavam crer que Nietzsche continuava adepto do cristianismo. Uma carta que êle envia à sua irmã desfaz essa
impressão. A moça, que se conservara crente, escreveu--lhe: "É preciso procurar a verdade, sempre, entre as coisas
mais penosas. Ora, a gente não acredita sem custo nos mistérios do cristianismo. Portanto, os mistérios do
cristianismo são verdadeiros". Recebeu bem depressa a resposta do irmão, o qual pela rudeza da linguagem, traía o
infeliz estado de, sua alma:

Você acredita que nos seja muito difícil, realmente, receber e aceitar todas as crenças em que fomos educa -
dos e que, pouco a pouco, deitaram em nós profundas raízes, e que todos os nossos, e que unia multidão de
homens excelentes têm por verdadeiras e que, verdadeiras ou não, consolam
eficazmente e elevam a humanidade? Acredita você que essa submissão à
crença seja mais difícil do que lutar contra esses hábitos, na dúvida e no
isolamento, submetido a todas as depressões da alma digo mais: aos
remorsos; muitas vezes em desespero mas sempre ligado ao eterno alvo — a
descoberta das novas rotas que levam ao bem, à verdade, ao belo?
Que acontecerá, enfim? Tornaremos a encontrar as nossas familiares idéias sobre Deus, o mundo e a
da pesquisa não é, afinal, algo
redenção? Para um verdadeiro pesquisador, o resultado
completamente indiferente? Que procuramos com o nosso esforço? O
repouso? a felicidade? Não. Nada mais que a Verdade, por mais espantosa e
cruel que ela possa ser. Aqui está como se dividem os caminhos do homem:
se quiser o repouso para o espírito, e a felicidade — acredite; se quiser ser
um discípulo da Verdade, então — procure...
Nietzsche procurou suportar esta penosa vida. Caminhava pelos campos. Sozinho no seu quarto, estudava a
história da arte e a vida de Beethoven. Vãos esforços: não podia olvidar as pessoas de Bonn. Por duas vezes foi a
Colônia assistir a concertos musicais. Cada vez que voltava, sentia-se mais pesadamente infeliz. E, enfim, partiu:
Deixei Bonn como um fugitivo. Achava-met à meia-noite, no cais
do Reno, em companhia de meu amigo M... Esperava o vapor que vinha
de Colônia, e não experimentava a mais leve tristeza ao deixar um lugar tão
lindo, campinas tão floridas e um bando de tão jovens companheiros. Ao
contrário: fugia deles. Não quero recomeçar a fazer sobre eles julgamentos
injustos, como tantas vezes me aconteceu. Minha natureza não encontrava,
entre eles, satisfação alguma. Estava ainda muito timidamente recolhido em
mim mesmo, e não tinha força para agir livremente entre tantas influências
que se exerciam sobre mim. Tudo se me impunha e eu não consegui dominar
o que me rodeava... Sentia de maneira opressiva, que nada fizera pela
ciência, pouco pela vida. Não soubera senão me sobrecarregar de erros. O
vapor chegou e levou-me. Fiquei sobre a ponte, na noite úmida e fria, e
enquanto observava como se extinguiam lentamente as luzinhas que
marcavam a margem de Bonn. Tudo conspirava para me dar uma impressão
de fuga.

Nem Nietzsche aceita estas palavras amargas. Ele julga a Alemanha de acordo com os estudantes de Bonn e
encontra em todos os lugares a sua própria inquietação. Refletindo, sofre percebendo que suas impressões são
comuns ao baixo povo. Nas cervejarias, onde seus hospedeiros o levam, fica sem beber nem fumar, sem dirigir a
palavra às pessoas que lhe são apresentadas.

Ele não quer tornar a ver Bonn, e decide ir para Leipzig terminar seus estudos. Chega à cidade desconhecida
e imediatamente se inscreve na Universidade. É dia de festa. Um reitor arenga aos estudantes e lhes diz que nesta
mesma data, cem anos atrás, Goethe viera matricular-se entre os antigos alunos. "O gênio tem seus próprios
caminhos — acrescentou depressa o prudente funcionário — e é perigoso segui-los. Goethe nunca foi um bom aluno.
Não o tomem por modelo para seus anos de estudo...” — "Hu! Hu! Hu!" fizeram os rapazes, rindo, e Frederico
Nietzsche, perdido na multidão, sentia-se feliz pelo acaso que o fizera chegar no instante em que se comemorava tal
aniversário. Entrega-se ao trabalho, queima os versos encontrados entre seus papéis e se exercita nos mais rigorosos
métodos da filologia. Mas o abatimento toma conta dele em seguida. Receia passar um ano igual ao de Bonn e um
longo lamento enche suas cartas, seus cadernos. Mas tudo isso cessa em breve, e eis o acontecimento que libertou
sua alma: Certa ocasião, folheou uma obra cujo autor lhe era desconhecido: O Mundo, como Vontade e como
Representação, de Arthur Schopenhauer. O vigor da frase, o brilho preciso da palavra, chocam-no. "Não sei — disse
ele — que demônio me sussurrava: Leva esse livro para casa... Apenas chegado ao meu quarto, abri o tesouro que
adquirira, e comecei a deixar que esse gênio enérgico e sombrio agisse sobre mim..."

A estréia foi grandiosa: eram os três prefácios que o mal conhecido autor escrevera com longos intervalos,
em cada nova edição, em 1818, 1844 e 1859. São altivos, amargos, mas nada inquietos; ricos em pensamentos
profundos, em sarcasmos agudos, e o lirismo de um Goethe casa-se, ali, ao espírito cortante de um Bismarck. São
belos, dessa beleza clássica e medida que é rara na literatura alemã. Frederico Nietzsche foi conquistado por essa
nobreza, esse gosto e essa liberdade.

Eu estimaria — escrevera Schopenhauer — que a verdade descoberta por um homem, ou a luz que ele
projetou sobre qualquer ponto obscuro, pudesse vir a tocar um outro ser pensante, comovê-los, a alegrá-lo e consolá-
lo. É para ele que a gente fala como nos falaram outros espíritos semelhantes a nós e que nos consolaram no deserto
da vida...
Nietzsche ficou emocionado: parecia-lhe que um gênio desgarrado se dirigia exclusivamente a ele. O
mundo que Schopenhauer descrevia era tremendo. Nenhuma providência o orienta, nenhum Deus o habita. Leis
inflexíveis o encadeiam através do espaço e do tempo; mas sua essência eterna é indiferente às leis e estranha à
razão. É a cega vontade que nos guia na vida. Todos os fenômenos do universo são o prolongamento desta Vontade,
do mesmo modo que todos os dias do ano são o prolongamento do mesmo sol. Ela é invariável e infinita: dividida e
comprimida no espaço, "nutre-se de si mesma, pois que fora dela nada existe e que é uma vontade esfaimada".
Portanto, ela se dilacera e sofre. A vida é um desejo e o desejo um tormento sem fim. As boas almas do século XIX
acreditam na dignidade do homem e no Progresso. Uma superstição fá-las abobalhadas. A Vontade ignora os
homens, "últimos a chegar sobre a terra e que vivem em média trinta anos". O Progresso é a invenção idiota dos
filósofos inspirados pela multidão: a Vontade, escândalo para a razão, não tem princípio nem fim; é absurda e o
universo que ela anima, não tem sentido...

Frederico Nietzsche leu com avidez as duas mil páginas deste panfleto metafísico cujo formidável choque
esmaga as ingênuas crenças do século XIX, e arrebata todos os sonhos à pueril humanidade. Ele sente uma estranha
emoção, quase alegria. Schopenhauer condena a vida, mas existe nele uma energia tão veemente que, na sua obra
acusadora, o que a gente encontra e admira é a vida. Durante quatorze dias, Nietzsche apenas dorme — deita-se às
duas e levanta-se às seis; passa os dias entre o livro e o piano, medita e, nos intervalos de sua meditação, compõe um
Kyrie. Sua alma está exuberante: encontrou a verdade, mas que importa? Desde muito tempo seu espírito já o tinha
prevenido e preparado. "Que procuramos com o nosso esforço?" — escrevera à sua irmã. — O repouso? a
felicidade? Não. Nada mais que a verdade, por mais cruel e espantosa que ela possa ser."

Ele reconhece o sombrio universo schopenhauriano. Pressentira-o em suas cismas juvenis, nas leituras de
Ésquilo, Byron e Goethe; entrevira-o através dos símbolos cristãos: esta Vontade má, escrava dos desejos, não será,
sob um nome diferente, a natureza decaída que o Apóstolo mostrou, mais trágica ainda, privada dos clarões divinos
que um Redentor nela deixara? Atemorizado por sua inexperiência e temeridade, ele recuara ante uma visão tão
espantosa. Mas, agora, tem coragem para a olhar de frente. Já não teme, porque não está só. Acredita na sabedoria de
Schopenhauer e satisfaz, afinal, um de seus maiores desejos: segue um mestre! Chega a pronunciar uma palavra mais
grave. Dá a Schopenhauer o nome supremo no qual a sua infância de órfão colocou um mistério de força e ternura:
chama-o "seu pai". Exalta-se, um remorso desola-o subitamente: seis anos antes, Schopenhauer vivia ainda; poderia
ter se aproximado dele, ouvi-lo e dizer-lhe quanto o venerava. O destino os havia separado! A alegria e a tristeza
intensas e confundidas abateram-no e foi atacado por uma febre nervosa. Fica assustado, mas refaz-se graças a
enérgico esforço, e volta à vida, ao trabalho dos dias e ao sono das noites.

Os jovens têm necessidade de admirar — é uma forma de amor. Quando admiram, quando amam, todas as
necessidades da vida se tornam fáceis. Frederico Nietzsche, discípulo de Schopenhauer, conheceu, então, suas
primeiras felicidades. A filologia já lhe causa menos aborrecimento. Alunos de Ritschl, seus colegas, fundam uma
sociedade de estudos. Nietzsche junta-se a eles, e, no dia 18 de janeiro de 1866, algumas semanas depois da grande
leitura de Schopenhauer, expõe aos colegas o resultado de suas pesquisas em torno dos manuscritos e variantes de
Théognis. Fala com propriedade e vigor, e aplaudem-no. Nietzsche adorava o sucesso; apreciava-o com uma vaidade
simples que não escondia. Foi feliz. Entregou a Ritschl o que escrevera e foi muito felicitado por ele, o que aumentou
ainda sua alegria. Quis tornar-se, e se tornou, realmente o aluno preferido do mestre. Sem dúvida, ele não deixara de
considerar a filologia como uma ocupação inferior, exercício intelectual e "ganha-pão", e sua alma estava pouco
satisfeita — mas que grande alma pode jamais estar satisfeita? Muitas vezes, depois de um dia de intenso trabalho,
ficava melancólico — mas que alma jovem e sedenta ignora a melancolia? Pelo menos, sua tristeza deixara de ser
deletéria, e um fragmento de carta que começa com uma queixa e termina por uma emoção entusiasta, denuncia não
sofrimento, mas plenitude excessiva:

Há três coisas que me consolam — escreve ele em abril de 1866 — e que rara consolação! Meu
Schopenhauer, a música de Schumann e os passeios solitários. Ontem preparava-se uma pesada tempestade;
apressei-me em direção a uma colina próxima (chamam-na Leusch. Pode-me explicar o que quer dizer?) e subi. Lá
em cima encontrei uma choça e um homem que, observado por seus filhos, degolava dois carneiros. A tempestade
rebentou com toda a violência, com relâmpagos e granizo, e eu me sentia inexplicavelmente bem, cheio de força e de
vontade, e compreendi claramente que para interpretar a natureza é preciso, como fiz, ficar a sós com ela, longe de
cuidados e de contrariedades acabrunhadores. Que me importa, então, o homem e sua desordenada vontade! Que me
importa o "tu deves", e o "tu não deves"! Como são diferentes o relâmpago, a tempestade, o granizo: forças livres e
sem ética. Como são felizes e fortes estas vontades puras que o espírito não perturbou!

Nas vésperas do verão de 1866, Nietzsche passava todos os seus dias na biblioteca de Leipzig, onde
decifrava difíceis manuscritos bizantinos. De súbito, deixou-se distrair por um grandioso espetáculo: a Prússia,
discretamente ativa havia cinqüenta anos, voltava ao campo de batalha. O reino de Frederico, O Grande, encontrara
um chefe: Bismarck, o aristocrata apaixonado, irascível e astucioso, que deseja realizar, afinal, o sonho de todos os
alemães e fundar um Império superior aos pequenos Estados. Ele rompeu com a Áustria, que Moltke humilhou
depois de vinte dias de luta.

"Acabei com os meus Theognidea para o Museu Rheinisches, durante a semana de Sadowa", lê-se num
memorandum de Nietzsche. Ele não interrompe o seu trabalho, mas as preocupações políticas ocupam o seu
pensamento. Sente a alegria de uma vitória nacional; descobre que é um patriota prussiano, e um pouco de espanto se
mistura ao seu prazer: "É para mim uma alegria nova e muito rara..." Depois, refletindo sobre esta vitória, discerne as
conseqüências, que enuncia com clareza:

"A vitória é nossa; ela aí está. (Mas) enquanto Paris for o centro da Europa, as coisas permanecerão as
mesmas. É inevitável que façamos um esforço para romper esse equilíbrio, pelo menos para tentar rompê-lo. Se
fracassarmos, podemos estar certos de que tombaremos, um e outro, no campo de batalha, despedaçados por um obus
francês."

Ele não se deixa perturbar por esta visão do futuro que satisfaz o seu gosto pelo sombrio e pelo patético. Ao
contrário, anima-se e se admira:

Em certos momentos preciso fazer esforços para arrancar minhas opiniões do rumo que lhes dão as
paixões momentâneas e minhas naturais simpatias pela Prússia. Vejo aqui uma nação conduzida com grandeza por
um Estado, por um chefe; uma ação talhada na verdadeira substância com que é, afinal, feita a história; não moral,
seguramente, mas, para os que a contemplam, suficientemente edificante e bela.

Não foi, na verdade, um sentimento semelhante o que experimentou sobre aquela colina de bizarro nome —
Leusch — num dia de tempestade, perto daquele homem que degolava calmamente seus carneiros? Forças livres e
sem ética! como são felizes e fortes estas vontades puras que o espírito não perturbou!

***

O segundo ano que passou em Leipzig talvez tenha sido o mais feliz de sua vida. Gozava plenamente a
segurança intelectual que a ascendência de Schopenhauer lhe assegurava. Você me pede uma apologia de
Schopenhauer? — escreveu a seu amigo Deussen — Pois digo-lhe somente isto: olho para a vida de frente, com
coragem e liberdade depois que os meus pés encontraram um solo. As águas da perturbação, para me exprimir por
imagens, já não me desviam do caminho, porque já não me passam acima da cabeça; sinto-me como em minha casa
nestas regiões obscuras.
Foi um ano de recolhimento e de boa convivência. Não se incomodava com os negócios públicos. No dia
seguinte ao da vitória, a Prússia recaíra ao baixo nível da sua vida cotidiana. As gabolices da tribuna e da imprensa
sucederam-se à ação dos grandes homens. "Que uma multidão de cérebros medíocres tome conta de coisas cuja
importância é real — escreveu ele — é um pensamento que dá medo..." Pode ser que tivesse qualquer remorso por
ter se deixado seduzir por uma peripécia dramática. Ele bem sabia — Schopenhauer lhe ensinara — que a história e a
política são dois jogos ilusórios. Tê-lo-ia esquecido? Escrevia, para firmar seus pensamentos e para definir o sentido
e o valor medíocres das agitações humanas, o seguinte:

Será a História outra coisa que o combate sem fim de interesses inumeráveis e diversos em luta pela
existência? As grandes "idéias" em que muitas pessoas acreditam descobrir as forças diretrizes desse combate não
são mais que reflexos que passam sobre a superfície do mar oleoso: não têm ação alguma sobre o mar, mas
acontece que, algumas vezes, tornam as vagas mais bonitas, e conseguem, assim, enganar àqueles que as
contemplam. Pouco importa que essa luz emane da lua, do sol ou dum farol; o mais que acontece é a vaga ficar um
pouco mais ou um pouco menos iluminada. Isso é tudo.

Seu entusiasmo não tinha outro objeto senão a arte e o pensamento, o estudo do gênio antigo. Apaixona-se
por seu professor, Ritschl: "Este homem é a minha consciência científica", diz ele. Toma parte nas noitadas
amigáveis do "Verein" — fala e discute. Concebe mais trabalhos do que pode executar, e oferece-os a seus amigos.
Resolve estudar as fontes de Diógenes Laércio, o compilador que salvou do esquecimento tão preciosas informações
sobre os filósofos da Grécia. Pensou em compor memórias que fossem sagazes, rigorosas e, não obstante, cheias de
beleza: "Todo o trabalho importante — escreveu ele a Deussen — como você mesmo comprovará, exerce influência
moral. O esforço para concentrar determinada matéria e dar-lhe forma harmoniosa pode ser comparado ao ato de se
atirar uma pedra sobre a nossa vida interior: o primeiro círculo é pequeno, mas multiplica-se, e se vai transformando
em círculos maiores."

Em abril, Nietzsche reúne e redige suas notas; é inteiramente dominado por um desejo de beleza. Não quer
escrever à maneira dos eruditos, que mal conhecem o sabor das palavras e o equilíbrio das frases. Ele deseja
"escrever", no verdadeiro sentido difícil e clássico da palavra.

Abri os olhos à evidência — escreve ele — Já vivi demasiado tempo no estado de inocência estilística. O
imperativo categórico: "Deves escrever, é necessário que escrevas", acabou me despertando e procurei escrever
bem. Era um trabalho que eu esquecera desde que saí de Pforta, e a pena se tornou inábil entre os meus dedos.
Sinto-me impotente, irritado. Ouço murmurar, perto de meus ouvidos, os princípios da boa linguagem dados por
Lessing, Lichtemberger, Schopenhauer. Pelo menos, recordo-me, e isto é um consolo, que essas três autoridades, de
perfeito acordo, dizem que escrever bem é muito difícil, que homem algum escreve naturalmente bem e que, para
adquirir estilo, é preciso trabalhar e fazer grande esforço... Antes de mais nada, eu desejaria aprisionar no meu
estilo o espírito alegre. Farei para isso tanta força como faço para executar ao cravo. Quero, enfim, produzir não
somente com os elementos adquiridos, mas também realizar fantasias livres, tão livres como possíveis dentro da
lógica e da beleza.

Sua felicidade é completada por uma alegria sentimental: Nietzsche encontra um amigo. Por longo tempo
permanecera fiel aos seus companheiros de infância: um morrera, e o outro, depois de dez anos de vida e ocupações
separadas, tornara-se um estranho. Em Pforta, estimara muito o estudioso Deussen, o fiel Gersdorff: um continuava
seus estudos em Tubingue e o outro em Berlim. Correspondiam-se zelosamente, mas uma troca de cartas não podia
ser suficiente para satisfazer a necessidade de amizade, instintiva em seu coração. Conheceu afinal a Erwin Rohde,
espírito vigoroso e perspicaz. Dedicou-lhe logo grande amizade e admiração — porque ele era incapaz de estimar
sem admirar. Atribuiu-lhe as qualidades sublimes que transbordavam de sua própria alma. À noite, após as laboriosas
horas de trabalho, eles se reuniam e passeavam, a pé ou a cavalo, sempre conversando. "Pela primeira vez —
escreveu Nietzsche — experimento uma amizade que se levanta sobre um fundo moral e filosófico. É comum
discutirmos seriamente, porque estamos em desacordo sobre muitos pontos. Mas basta que a discussão atinja um
sentido mais profundo, para que todos os pensamentos discordes se extingam, e não fica entre nós senão um
agradável e total acordo." Eles haviam combinado passar juntos as primeiras semanas de férias. Em princípio de
agosto, ambos livres, deixam Leipzig e vão se isolar na fronteira da Boêmia. É essa uma região de colinas suaves e
encantadoras, cobertas de bosques, e que relembra, embora com menor grandiosidade, os Vosges. Nietzsche e Rohde
levam uma vida de filósofos errantes. Tem pouca bagagem e nenhum livro. Caminham de albergue em albergue, e
durante todo o dia, livres de preocupações, entretêm-se falando de Schopenhauer, de Beethoven, da Alemanha e da
Grécia. Julgam e condenam com juvenil precipitação; não se cansam nunca de subestimar sua ciência: "Oh,
puerilidade da erudição — dizem. -- Foi um poeta, foi Goethe quem descobriu o gênio da Grécia e o exibiu aos
alemães, sempre absortos nos confins do um sonho, como exemplo de beleza rica e clara, modelo de forma perfeita.
Os professores chegaram depois dele, e reivindicaram o mundo antigo. Mas, sob seus olhos míopes, essa
maravilhosa obra de arte acabou se transformando no objeto de uma ciência. Que é que eles não estudaram? O
ablativo em Tácito, a evolução do gerúndio nos autores latinos da África; analisaram, até ao último detalhe, a
linguagem da Ilíada e determinaram quais os elementos que a ligam a tal ou tal outra linguagem ariana. Que importa
isso? A beleza da Ilíada é única; foi sentida por Goethe, mas eles ignoram-na. Acabaremos com isso. Esta será a
nossa tarefa; lutaremos pela volta à tradição goethiana; não dissecaremos mais o gênio grego; reanima-lo-emos,
porque desejamos que todos o sintam. Há muito tempo, já, que os eruditos começaram o seu minucioso exame. É
tempo de o terminar, e o trabalho da nossa geração será definitivo: ela tomará posse do grande legado que o passado
nos transmitiu. Também a ciência deve servir ao progresso."

Depois de um mês de conversação, os dois moços deixam as florestas e vão a Meiningen, pequena cidade
onde os músicos da escola pessimista dão uma série de concertos. A crônica destes fatos está conservada numa carta
de Frederico Nietzsche: "O abade Liszt dirigia. Executaram um poema sinfônico de Hans de Bülow, Nirwana, cuja
explicação, em máximas schopenhauerianas, estava impressa no programa. A música, porém, era horrorosa. Já Liszt,
ao contrário, soube encontrar de maneira notável o caráter desse Nirwana indiano em algumas de suas composições
religiosas, como, por exemplo, nas Beatitudes."

Nietzsche e Rohde separaram-se no dia seguinte a estas festas e voltaram à casa de suas respectivas
famílias.

Sozinho em Naumburg, Nietzsche empreendeu muitos trabalhos e muitas leituras. Estudava as obras dos
novos filósofos alemães, Hartmann, Duhring, Lange, Bahnsen. Admirava-os a todos com a indulgência de um irmão
de armas, e pensava em conhecê-los, colaborar com eles numa revista que fundariam juntos. Redigiu um ensaio,
talvez uma espécie de manifesto, sobre o homem que ele desejava dar por mestre aos seus contemporâneos:
Schopenhauer.

"De todos os filósofos — dizia — este o mais verdadeiro”.Nada de piegas entrava em seu espírito. É bravo
— primeira qualidade para um chefe. Frederico Nietzsche anota rapidamente: "Eis a época de Schopenhauer. Um
pessimismo são, fundado no ideal; a seriedade da força viril, o gosto por aquilo que é simples e são... Schopenhauer é
o filósofo de um classicismo reanimado, de um helenismo germânico..."

Trabalhava exageradamente e sua vida em breve se ressentiu disso. Fora isento do serviço militar por causa
da vista fraca. Mas a armada prussiana, em 1867, tinha grande necessidade de homens e ele foi incorporado num
regimento de artilharia aquartelado em Naumburg.

Nietzsche aceitou esse aborrecimento. Seguia a máxima de que um homem deve saber se aproveitar dos
acasos de sua vida e tirar deles, como um artista, os elementos para um destino mais rico. Resolveu, portanto, desde
que tinha de ser soldado, instruir-se sobre essa nova atividade. As obrigações militares tinham, nesse tempo de
guerra, uma solenidade que lhes falta hoje. Nietzsche considerou saudável e bonito fechar seus dicionários e montar
a cavalo; ser um artilheiro e bom artilheiro — uma espécie de asceta a serviço da pátria "etwas aschesis zu treiben",
escreveu ele em seu alemão mesclado de palavras gregas.

Esta vida é incômoda — escreveu mais — mas, saboreada à maneira de aperitivo, acho que vai ser
proveitosa. É um apelo constante à energia do homem, que vale, sobretudo, como antídoto contra o ceticismo
paralisante cujos efeitos observamos juntos. Na caserna a gente aprende a conhecer sua natureza e a saber o que
produz ela entre homens estranhos, na maioria muito rudes... Até agora, parece, todos tem boa vontade para
comigo, tanto o capitão como os simples soldados; mas também, tudo o que devo fazer, faço-o com zelo e interesse.
Não é uma boa razão para a gente se orgulhar se é notado, entre trinta recrutas, como o melhor cavaleiro? Em
verdade, isso vale mais do que um diploma de filologia...
Sobre isso ele cita, por extenso, a bela frase latina e ciceroneana, escrita pelo velho Ritschl em louvor de sua
memória, "De fontibus Laertii Diogenis". Sentia-se orgulhoso do sucesso e não escondia seu prazer. Diverte-se.
"Somos feitos assim. Sabemos o que vale um tal elogia e, apesar disso, uma agradável contração faz trejeitos em
nossa face."

Esta valente disposição dura pouco. Nietzsche descobre depressa que um artilheiro a cavalo é um
infelicíssimo animal quando tem gostos literários e reflete, na barraca, sobre problemas da democracia.

Deplora sua escravização. Num momento de azar, cai do cavalo e quebra uma costela. Sofre, mas estuda e
medita durante a folga: é essa a boa parte de sua vida. No entanto, quando chegam os deliciosos dias de maio, e ele
se encontra na cama ainda, depois de um mês, impacienta-se e tem saudades das horas de exercício. "Eu, que
montava os animais mais rebeldes!" — escreve a Gersdorff. Começa, para se distrair, um pequeno estudo sobre um
poema de Simonide, "La Plainte de Danae". Corrige as palavras duvidosas do texto, e anuncia a Ritschl um novo
trabalho: "Desde meus tempos de escola, este belo canto de Danae está na minha memória como uma inolvidável
melodia. Que pode a gente fazer de melhor nestes belos dias de maio, do que se entregar ao lirismo? Espero que
desta vez, pelo menos, não encontre no meu trabalho, uma conjectura demasiado 'lírica'."

Danae preocupa-o, e as queixas da deusa, abandonada com seu filho aos caprichos das ondas malévolas,
misturam-se em suas cartas com suas próprias queixas. Porque ele sofre. Seu ferimento continua aberto, e uma lasca
de osso aparece, um dia, com o pus. "Assaltou-me uma impressão bizarra quando vi isso — escreve ele — e pouco a
pouco fui percebendo que meus planos de exame, de viagem a Paris, podiam muito bem vir a ser contrariados. A
caducidade do ser não aparece jamais tão nitidamente, ad oculos, senão no momento em que a gente chega a ver um
pedacinho do seu próprio esqueleto."

Esta viagem a Paris a que Nietzsche se referiu numa palavra, era o último e o mais caro dos seus sonhos.
Acariciava essa idéia, e, não podendo nunca guardar uma alegria para si mesmo, escreveu a Rohde, depois a
Gersdorff e a dois outros amigos, Kleinpaul e Romundt: "Após o nosso último ano de estudo, vamos juntos passar
um inverno em Paris. Esqueçamos nosso saber, 'Despedantizemo-nos'; conheçamos o divino 'cancan', o absinto verde
que havemos de beber. Vamos a Paris, viver como amigos e representemos lá, flanando pelos 'boulevards', o
germanismo e Schopenhauer; não seremos, em verdade, vagabundos: de vez em quando mandaremos aos jornais
alguma colaboração para lançar através do mundo anedotas parisienses. Depois de um ano e meio, dois anos (ele
nunca termina de alongar esse tempo imaginário) voltaremos para fazer nossos exames e retomaremos nossas tarefas
profissionais."

Tendo Rohde prometido acompanhá-lo, Nietzsche teve maior dificuldade em suportar a convalescença que
se prolongou até o verão.

***

Levantou-se, enfim. Nos primeiros dias de outubro, sentindo um vivo desejo de prazeres que Naumburg não
podia oferecer — música, sociedade, palestras, teatro — volta à instalar-se em Leipzig, onde professores e colegas
lhe fazem uma calorosa acolhida. Foi um regresso feliz. Fizera apenas vinte e três anos, e uma auréola gloriosa já o
precedia. Pedem-lhe, para importante revista de Berlim, trabalhos históricos, que ele entrega. Mesmo em Leipzig lhe
propõe a redação de uma crítica musical, que ele recusa apesar das insistências. "Nege ac pernego" escreve ele a
Rohde, que residia, então, noutra cidade universitária.

Interessa-se por tudo, menos pela política. O ruído desordenado e confuso que fazem os homens nos
comícios, era-Ihe insuportável. “Decididamente, diz ele, não sou, absolutamente, um Zoon politicon.” E a seu amigo
Gersdorff, que lhe conta as intrigas parlamentares de Berlim, ele escreve:

Esses acontecimentos me espantam, mas não consigo compreendê-los bem, nem fazê-los entrar no meu
espírito, como se tirasse da multidão um determinado homem e o considerasse à parte. Bismarck dá-me imensa
satisfação. Leio seus discursos como se bebesse um vinho forte. Leio-o devagar, para poder apreciá-lo e para que a
alegria dure mais. Concebo sem esforço as maquinações dos seus adversários, tais como você as contou, e acho que
é inevitável que tudo aquilo que é pequeno, estreito, sectário, fracassado, esbarre contra tais naturezas e lhes façam
uma guerra eterna.

A todas as satisfações que ele encontra ou reencontra, junta-se a maior das felicidades: descobre um novo
gênio — Richard Wagner. Toda a Alemanha fazia, ao mesmo tempo, igual descoberta. Ela já conhecia e amava esse
homem tumultuoso, poeta, compositor, publicista e filósofo. Revolucionário em Dresde, autor pateado em Paris,
favorito da corte em Munich. A Alemanha discutira suas obras e rira de suas dívidas e de suas roupagens vermelhas.
Era muito difícil fazer-se um julgamento claro sobre esta existência em que se misturam a fé e a insinceridade, a
mesquinharia e a grandeza, e sobre esse pensamento, às vezes tão forte e às vezes tão loquaz. Que tipo de homem era
esse Richard Wagner? Um inquieto, ou um gênio? Ninguém o sabia bem, e Nietzsche durante muito tempo ficou
indeciso. Tristão e Isolda comove-o infinitamente e outras obras desconcertam-no.

"Acabo de ler a Walkyria — escreveu a Gersdorff em outubro de 1866 — e me acho impressionado de um


modo tão confuso que não consigo chegar a julgamento algum. As grandes belezas e as grandes virtudes são
compensadas por feiúras e defeitos igualmente grandes; a (—a) dá, feitas as contas, O Wagner é um problema
insolúvel", diz em outra ocasião. E o músico que ele preferia então era Schumann. Wagner soube impor sua glória.
Em julho de 1868 fez representar, em Dresde, Mestres Cantores, nobre e familiar poema no qual o povo alemão,
herói da ação, ocupa a cena com suas disputas, seus divertimentos, seus trabalhos e seus amores, glorificando ele
próprio sua arte: a música. A Alemanha experimentou, então, um orgulhoso desejo de grandeza. Possuía a confiança
e o impulso necessários para ousar reconhecer o gênio de um artista. Wagner foi aclamado. Durante os últimos
meses de 1868 ele transpôs esse invisível ponto que transfigura um homem e o eleva acima da própria glória, numa
auréola de imortalidade.

Frederico Nietzsche ouviu Mestres Cantores e sentiu essa beleza maravilhosa. Suas veleidades críticas
desapareceram. "Para ser justo com um tal homem — escreveu ele a Rohde — é preciso um pouco de entusiasmo...
Procuro, em vão, ouvir sua música numa disposição fria e reservada: cada nervo vibra dentro de mim."

Essa arte prestigiosa tomou conta dele e fê-lo desejar que seus amigos partilhassem a nova paixão. Confiou-
lhes suas impressões wagnerianas: "Ontem à tarde, durante o concerto — escreveu — a ouverture de Mestres
Cantores causou-me um sobressalto prolongado, tal como jamais experimentei..."

A irmã de Wagner, madame Brockhaus, mora em Leipzig. É uma mulher superior e seus amigos afirmam
que nela se reconhece um pouco do gênio de seu irmão. Nietzsche quis conhecê-la e seu modesto desejo foi em breve
satisfeito.

Um dia destes — escreveu ele a Rohde — ao entrar em casa encontrei um bilhete que me era dirigido; um
curto bilhete: "Se quer conhecer Richard Wagner venha ao Café do Teatro, às quatro menos quinze. Windisch." Isto
me transtornou, desculpe-me! E eis-me como transportado por um turbilhão. Naturalmente, fui procurar esse
excelente Windisch, que me deu mais algumas informações. Disse-me que Wagner estava em Leipzig, na casa de sua
irmã, observando rigoroso incógnito. A imprensa de nada suspeitava, e os criadas da família Brockhaus são mudos
como "coveiros de libré". Madame Brockhaus, a irmã de Wagner, apresentara-lhe uma única pessoa, madame
Ritschl, essa mulher tão perspicaz e judiciosa, oferecendo-se, assim, a alegria de se mostrar orgulhosa de sua amiga
diante de seu irmão, e deste diante dela. Feliz criatura! Wagner, na presença de madame Ritschl executou o "lied",
dos Mestres Cantores, que você bem conhece. A excelente senhora diz-lhe que esse "lied" lhe é familiar, “mea
opera”. Alegria e surpresa de Wagner. Ele demonstra um vivo desejo de me conhecer, incógnito. Decidem
convidar-me para sexta-feira à noite. Windisch disse-lhes que eu seria impedido de comparecer por causa de minhas
funções, meus trabalhos e minhas promessas. Propuseram, então, domingo após o meio-dia. Lá fomos, Windish e
eu; encontramos a família do professor, mas Richard não estava. Saíra com o seu grande crânio coberto por uma
prodigiosa cabeleira. Travei conhecimento com essa distinta família, e fui amavelmente convidado ara voltar
domingo à tarde, o que aceitei.

Asseguro-lhe que durante os dias seguintes andei de um humor romântico. Concordemos: esse início, essa
apresentação, esse herói do qual ninguém se aproxima — havia aí qualquer coisa que se assemelhava a uma lenda.

Prevendo uma noitada importante, resolvi vestir traje de cerimônia. Justamente meu alfaiate me prometera
para esse domingo um traje preto. Ia tudo bem.

Domingo. Era um dia aflitivo, de neve e chuva. A gente estremecia só à idéia de sair. Não fiquei, assim,
aborrecido ao receber, pela tarde, a visita de R...... que tagarelou sobre os Eleitos e a natureza de Deus em sua
filosofia — pois que ele devia tratar, como candidandus, o tema dado por Ahrens: "Desenvolvimento da idéia de
Deus até Aristóteles", ao passo que Romundi tem a pretensão de resolver o problema "Da Vontade", o que lhe
valeria o Prêmio da Universidade. O dia findava, o alfaiate não chegou e Romundt partiu. Acompanhei-o e fui até o
meu alfaiate, onde encontrei os escravos ocupadíssimos com a minha roupa. Prometeram-me que dentro de três
horas estaria em minha casa. Fui, mais satisfeito com o rumo que as coisas tomavam. Em caminho cruzei com
Kintschy, li o "Kladderadatsch" e vi, contente, que a imprensa noticiava achar-se Wagner na Suíça, e que se estava
construindo em Munich uma bela casa para ele. Eu bem sabia que iria vê-lo dentro de poucas horas, e que ontem
havia chegado uma carta para ele, do pequeno rei, com este endereço: "Ao grande compositor alemão Richard
Wagner". Entrei em casa. Nada de roupa. Li, muito confortavelmente, uma dissertação sobre a "Eudocia", sendo
distraído, de tempos em tempos, por um ruído aborrecido, mas longínquo. Afinal, ouvi que batiam à velha grade de
ferro que estava fechada...

Era o alfaiate. Frederico Nietzsche faz a prova do terno, que lhe vai bem. Agradece ao alfaiate, que, no
entanto, não se retira, porque deseja ser pago. Nietzsche, que está com pouco dinheiro, é de outra opinião. O alfaiate
insiste em receber, e Nietzsche reitera sua recusa. O alfaiate não quer ceder e sai, levando de novo a roupa.
Nietzsche, só e envergonhado em seu quarto, considera desgostosamente uma sobrecasaca negra, em grande dúvida
sobre se "aquilo estaria à altura de Richard". Afinal, vestiu-a.

Lá fora a chuva caia torrencialmente. Oito horas e um quarto. Às oito e meia, Windisch estará à minha
espera no Café do Teatro. Precipitei-me pela noite chuvosa, obscura, eu um pobre homem de negro, sem fraque,
mas de humor romântico. A sorte me era favorável. O aspecto nervoso das ruas tem qualquer coisa de misterioso e
de inusitado. Entramos no confortável salão dos Brockhaus; só havia pessoas da família, e nós dois. Apresentaram-
me a Richard, a quem exprimi, em algumas palavras, a veneração que sentia. Perguntou-me minuciosamente como
viera a ser um admirador de sua música e derramou invectivas sobre todas as interpretações de suas obras, exceto
as de Munich, que foram admiráveis. Depois, zombou dos regentes, que, paternalmente, aconselhavam: "Agora, por
favor, um pouco de paixão, senhores, ainda um pouco de paixão, meus amigos!" Wagner imita muito bem o acento
de Leipzig.

Eu gostaria, agora, de lhe dar uma idéia dos prazeres dessa noite, de nossa alegria, que foi tão viva e
particular que até hoje não consegui recobrar meu velho equilíbrio, e nada posso fazer de melhor do que contar-
lhe, conversando, "um conto maravilhoso". Antes do jantar, Wagner executou as principais passagens dos Mestres
Cantores. Ele mesmo imitava todas as vozes. Você pensará que era muito insuficiente. Wagner é um homem
fabulosamente vivo e petulante, que fala depressa, com espírito, e que conseguiu fazer perfeitamente alegre aquela
reunião íntima como era a nossa. Entrementes, conversei longamente com ele sobre Schopenhauer. Ah! Você bem
compreende que alegria foi a minha quando o ouvi falar com indescritível calor, e dizer tudo o que devia a
Schopenhauer e explicar que, único entre os filósofos, o nosso conheceu a essência da música. Depois, ele quis
saber qual era a atitude atual dos filósofos diante de Schopenhauer; riu muito do congresso dos filósofos em Praga
e aludiu à "domesticidade filosófica". Depois, leu um trecho de suas "Memórias", que está escrevendo. Tratava-se
de uma cena de sua vida de estudante em Leipzig, extraordinariamente engraçada e na qual nem mesmo agora eu
posso pensar sem rir. Ele é, aliás, extremamente ágil e espirituoso.

Quando nos despedimos, eu e Windisch, ele deu-me um vigoroso aperto de mão, convidando-me,
amigavelmente, a visitá-lo para conversar sobre música e filosofia. Confiou-me, também, a missão de fazer
conhecida sua música a sua irmã e demais parentes, com o que concordei entusiasmado. Você saberá tudo melhor
quando esta noite se me representar um pouco de mais longe e objetivamente. Agora, um cordial bom dia e os meus
melhores votos pela sua saúde.
O dia da apreciação calma que Nietzsche esperava nunca chegou. Ele se aprpximara de um homem divino.
Sentira a força de um gênio e sua alma ficara excitada. Estudou os trabalhos teóricos que Wagner escrevera e que até
então negligenciara, e considerou seriamente a idéia da obra de arte única, que reunisse as belezas esparsas da poesia,
da plástica e da harmonia. Entreviu uma renovação do espírito alemão pelo ideal wagneriano, e seu espírito depressa
voou para esse lado.

***

Ritschl disse-lhe um dia: “Vou fazer-lhe uma surpresa. Quer ser nomeado professor da Basiléia?” A
surpresa de Nietzsche foi realmente extrema. Estava com vinte e quatro anos e não conseguira ainda suas últimas
graduações. Pediu que lhe repetissem a espantosa proposta. Ritschl explicou que recebera uma carta de Basiléia onde
lhe perguntavam que homem era Frederico Nietzsche, autor das belas memórias publicadas pelo “Rheinisches
Museaum” e se era possível confiar-lhe uma cadeira de filologia. Ritschl respondeu que o sr. Frederico Nietzsche era
um jovem capaz de fazer tudo quanto quisesse. Ousara, mesmo, escrever: o sr. Frederico Nietzsche tem gênio. A
coisa estava assim, em suspenso, mas bem encaminhada.

Nietzsche escutou tudo isso profundamente perturbado. Sentia-se orgulhoso, e, no entanto, desolado. O ano
de liberdade que ele pensara poder gozar esfumava-se rapidamente. Projetos de estudos, de vastas leituras, de
viagens! Perdia uma vida feliz, cheia de sonhos. Poderia, acaso, recusar tão bela proposta? Ele pensava ter, contra
toda razão, alguma veleidade em fazê-lo. Ritschl combateu essa hesitação. O velho sábio sentia por esse singular
aluno verdadeira ternura: era um filósofo sagaz, um metafísico, um poeta. Admirava-o e acreditava nele. Mas tinha
um inquietação: receava que Nietzsche, constantemente solicitado por inclinações numerosas e lindas, acabasse
dispersando entre demasiados assuntos sua energia, extraviando seus dons. Havia quatro anos que lhe dava o mesmo
conselho: “Seja limitado, para ser forte”; conselho que ele repetia com insistência. Nietzsche compreendeu e curvou-
se. Escrevia sempre a Erwin Rohde:

“Não pense mais na nossa viagem a Paris, vou, sem dúvida, ser nomeado professor em Basiléia, eu, que
desejava estudar química! É preciso que aprenda a renunciar desde já. Como me sentirei sozinho, lá! Nada de
amigos cujo pensamento soe em uníssono com o meu, como belas tércias, inferiores ou superiores!”

Obteve o seu último diploma sem ser examinado, em consideração aos seus trabalhos anteriores e à
circunstância única: os professores de Leipzig não julgaram conveniente interrogar o seu colega de Basiléia.

Frederico Nietzsche permaneceu algumas semanas em Naumburg, junto aos seus. Toda a família estava
satisfeita e gloriosa: tão jovem, e professor de Universidade! "E que importância tem isso? — perguntava Nietzsche
impaciente. Mais um pobre diabo no mundo — eis tudo!" No dia 13 de abril, à noite, escreveu a seu amigo
Gersdorff:

Chegou o último momento, a última noite que passo no meu lar. Amanhã cedo partirei pelo vasto mundo;
começarei uma ocupação nova para mim, numa estranha e pesada atmosfera de obrigações e deveres. Ainda uma
vez, é preciso dizer adeus: o tempo dourado, quando a atividade é livre, ilimitada; onde cada minuto é soberano;
onde a arte e o universo se oferecem ao nosso olhar como um puro espetáculo ao qual nós apenas nos misturamos
— esse tempo está irrevogavelmente passado. Agora, reina a dura deusa: a obrigação cotidiana, "Bemooster
Bursche zieh ich aus..." você conhece esta comovente canção de estudantes. Sim, sim! Chegou agora a minha vez de
ser um filisteu! Um dia ou outro, aqui ou lá — o ditado se realiza sempre. As funções e as dignidades são coisas que
jamais se podem aceitar impunemente. Toda a questão é saber se as cadeias que nos atam são de ferro ou de
barbante. Tenho ainda bastante valor para romper, no momento oportuno, qualquer espécie de cadeia, e tentar, de
outra maneira, ou em outro lugar, qualquer ensaio de vida perigosa. Não reconheço ainda em mim nenhum traço da
gibosidade obrigatória do professor. Tornar-se filisteu, anthropos amusos homem gregário... — Zeus e as Musas me
livrem disso! Ademais, não percebo como é que poderei vir a ser o que não sou. Sinto-me mais ameaçado por uma
outra espécie de perigo: a "species" profissional. Não deixa de ser natural que uma ocupação diária, uma
concentração incessante do pensamento sobre certos conhecimentos e certos problemas, embotem um pouco a livre
sensibilidade do espírito e ataquem pela raiz o senso filosófico. Imagino, porém, que posso correr este perigo de
maneira mais tranqüila que a maior parte dos filósofos; a gravidade filosófica já se enraizou muito profundamente
em mim; os verdadeiros e essenciais problemas da vida e do pensamento, já me foram demonstrados bem
claramente, pelo grande mistagogo Schopenhauer, para que eu possa jamais temer uma defecção vergonhosa diante
da "idéia". Penetrar minha ciência deste sangue novo: comunicar aos que me ouvem a gravidade schopenhaueriana
que brilha sobre a fronte do homem sublime — tal é meu dever, minha audaciosa esperança. Quero ser mais que um
pedagogo de honestos sábios. Penso nos deveres dos professores de hoje; tenho inquietação pela geração que vem
atrás de nós — tudo isto preocupa meu espírito. Já que temos que aturar a vida, tratemos, ao menos, de fazer dela
um tal emprego que possamos ser estimados pelos outros, o que nos permitirá, felizmente, ser salvos.

As inquietações de Frederico Nietzsche são vãs. Se ele pudesse adivinhar seu próximo futuro, sentiria
grande alegria. Richard Wagner mora perto de Basiléia, e vai se tornar seu amigo.

III

FREDERICO NIETZSCHE E RICHARD WAGNER

— TRIEBSCHEN —

Frederico Nietzsche se instalou na Basiléia, escolheu um domicílio e visitou seus colegas. Mas pensava sem
cessar em Richard Wagner. Três semanas depois de sua chegada, alguns amigos o acompanham até a margem do
lago dos Quatro Cantões. Por uma manhã ele deixa-os e, sozinho, caminha muito tempo a pé, pela margem, em
direção a Triebschen, refúgio do mestre. Este é o nome de um pequeno cabo que avança para as águas do lago. Uma
só "vila", um só jardim, cujos altos álamos, visíveis de longe, ocupam toda a extensão. Frederico Nietzsche se detém
diante do portão fechado, e toca a campainha. Espera, e olha. As árvores escondem a casa. Escuta e seu ouvido
atento percebe a ressonância de um acorde que um ruído de passos cobre logo. Aproxima-se um empregado.
Nietzsche entrega-lhe seu cartão e, depois, novamente só, põe-se a ouvir de novo e percebe o mesmo acorde que
ressoa, doloroso, obstinado, constantemente repetido. O mestre invisível interrompe-se por um instante, mas, em
seguida, recomeça a busca, levanta o tom, modula e depois, modulando ainda, volta ao acorde inicial. O criado volta
e pergunta: O senhor Wagner quer saber se o visitante é esse mesmo senhor Nietzsche que ele encontrou uma noite
em Leipzig. "Sim", responde o jovem. "Então, seria favor voltar à hora do almoço". Nietzsche, que tem seus
companheiros esperando, escusa-se. O criado desaparece, e, pouco depois, volta com uma nova mensagem: "O Sr.
Frederico Nietzsche está convidado para passar em Triebschen a segunda-feira de Pentecostes." Ele pode aceitar, e
aceita.

Nietzsche vai encontrar Wagner num de seus mais belos instantes. O grande homem está só, longe do
público, dos jornalistas e das multidões. Acaba de trazer e desposar a mulher que se divorciara de Hans Bulow, a
filha de Lizst e da senhora d'Aguot, criatura admirável, gozando do benefício de duas raças. A aventura escandalizara
todos os fariseus da velha Alemanha.

Richard Wagner está terminando sua obra no refúgio que escolhera, obra gigantesca, "suíte" de quatro
dramas cada um dos quais é imenso; obra que não foi concebida para o prazer dos homens, mas para exaltação e
bem-aventurança da alma; obra tão prodigiosa que nenhum público existe digno de a ouvir, nenhum grupo de
cantores dignos de cantá-la; cenário nenhum assaz vasto, assaz nobre para que ela aí possa ser representada. Não
importa. Richard Wagner não deseja curvar-se ao mundo, mas sim deseja que o mundo se curve diante dele.
Terminara Ouro do Reno e Walkyria, e Siegfried logo estaria terminado. Ele começa a conhecer a satisfação do
trabalhador que possui e considera, enfim, sua obra.
A inquietação e a cólera misturam-se à alegria, porque ele não é daqueles que se contentam com a
aprovação de uma elite. Todos os sonhos humanos o comoveram e ele deseja comover todos os homens. Precisa das
multidões, quer ser escutado por elas, e não cessa de chamar a si esses alemães sempre pesados e lentos em segui-lo.
"Ajudem-me! — grita em seus livros — vocês começam a ser fortes. Não desdenhem nem negligenciem, por causa
dessa força, aqueles que foram os seus mestres espirituais: Lutero, Kant, Schiller e Beethoven. Escutem! Eu sou o
herdeiro desses mestres. Ajudem-me! Falta-me um cenário onde eu possa ser livre — Deem-mo! Falta-me um povo
que me entenda — sejam vocês esse povo! Ajudem-me! É o seu dever, e em troca eu os glorificarei!"

Imaginemos esta primeira visita: Nietzsche, com suas maneiras suaves, sua voz intimidada, seu olhar
violento e velado; sua fisionomia tão moça apesar dos bigodes escorridos. Wagner, no vigor dos cinqüenta e nove
anos que não lhe pesam, transbordante de intuições e de experiências, de desejos e de promessas; exuberante de
palavras e gestos. — Qual seria o motivo da primeira conversa? Nenhuma testemunha o poderá dizer. Sem dúvida,
Richard Wagner repetiu o que dizia em seus livros, e disse imperiosamente a Frederico Nietzsche: "Você também,
jovem — ajude-me!"

Quando chegou a hora de partir, como era linda a noite e viva a conversa, Wagner quis acompanhar seu
visitante pelas margens do lago. Saíram e caminharam juntos, e era grande a alegria de Nietzsche. Havia muito
tempo que ele sentia falta de se dedicar a alguém, de admirar, de ouvir. Não pudera satisfazer esse desejo, porque
não encontrara, ainda, homem digno de ser seu mestre. Ali estava, afinal aquele para o qual nenhuma admiração,
nenhum amor seriam grandes demais. Entregou-se de alma e corpo, e resolve dedicar-se a este solitário inspirado,
lutar com ele contra as multidões inertes, contra a Alemanha das Universidades, das Igrejas, dos Parlamentos e das
Cortes.

Qual foi a impressão de Richard Wagner? Sem dúvida, ele também se sentiu feliz. Reconhecera, desde os
primeiros instantes, os extraordinários dons de seu jovem visitante. Pôde conversar com ele; conversar, quer dizer:
dar e receber. Poucos homens haviam lhe proporcionado esse prazer!

Em 22 de maio, oito dias após essa primeira visita, alguns amigos muito íntimos vieram da Alemanha e
Triebschen para festejar com o mestre o dia do seu sexagésimo aniversário. Frederico Nietzsche foi convidado, mas
teve que recusar: preparava sua aula inaugural, e não podia se distrair desse trabalho. Queria poder exprimir, desde o
primeiro momento, a idéia que ele fazia de sua ciência e do seu ensinamento. Havia tomado como tema o problema
homérico no ponto em que se dividem os sábios que analisam a antiguidade, e os artistas que a amam. Queria
demonstrar que os sábios devem resolver esse conflito aceitando o julgamento dos artistas.

Sua crítica, fecunda em resultados históricos úteis, reabilitou a lenda e a vasta projeção dos dois poemas.
Mas nada decidiu, nada podia decidir quanto ao fundo. A Ilíada e a Odisséia continuam diante de nós com suas
formas definidas, e, se a Goethe parece conveniente dizer: "Os dois poemas são obras de um só poeta" — o sábio
nada poderá replicar. Sua incumbência é modesta, é útil, no entanto, e deve ser estimada. Não nos esqueçamos — diz
Nietzsche terminando sua primeira lição — que faz poucos anos ainda que essas maravilhosas obras-primas
helênicas jaziam enterradas num enorme amontoado de preconceitos. Salvou-as o trabalho minucioso dos nossos
estudiosos. Sem dúvida, não é a filologia a criadora deste mundo encantado; não foi ela quem compôs esta música
imortal. Mas não é este um escopo sério e meritório: — o de ser o seu "virtuose" e fazer soar novamente esses
acentos por tão longo tempo esquecidos que se tornaram quase indecifráveis? "Como as musas que descem do céu,
aparecem aos pesados e miseráveis habitantes da Beócia — do mesmo modo a filologia aparece num mundo cheio
de imagens, e cores tenebrosas, cheio das mais profundas e irremediáveis dores; e sua voz consoladora nos fala das
formas luminosas dos deuses e de uma longínqua e azul terra das maravilhas..."

Nietzsche foi muito aplaudido pelos burgueses da Basiléia, que em grande número tinham vindo ouvir o
jovem mestre de cujo gênio muito se falara. Rejubilou-se com o sucesso, mas o seu pensamento estava longe, numa
outra terra de maravilhas, longínqua e azul: Triebschen. No dia 4 de junho recebeu um bilhete de Wagner:

"Venha passar duas noites conosco. Queremos saber quem é o senhor. Meus compatriotas alemães têm-me
dado muito pouco contentamento. Salve a persistente fé que tenho ainda naquilo que chamo — juntamente com
Goethe e alguns outros — a liberdade alemã".
Nietzsche foi, e, desde então, se tornou familiar do mestre. E escreveu a seus amigos:

Wagner realiza aquilo que nós tanto desejamos: é um magnífico, rico e grande espírito; é um caráter
enérgico, um homem encantador, digno de estima, que arde em desejos para saber tudo!... É preciso que me cale:
estou cantando um estribilho...

Peço-lhes — diz ele ainda — não acreditar em nada do que os jornalistas e críticos musicais escrevem
sobre Wagner. Ninguém no mundo o conhece nem o pode julgar, porque o mundo inteiro se apóia sobre
fundamentos que não são os seus e se encontra perdido em sua própria atmosfera. Wagner é dominado por um
idealismo tão absoluto, uma tão comovente e profunda humanidade, que eu me sinto perto dele como perto da
divindade...

***

Richard Wagner escrevera, a pedido de Luís II, rei da Baviera, um curto tratado de metafísica social. Ele
guardava com ciúmes e não emprestava senão a seus íntimos esta obra singular concebida para fascinar um jovem
príncipe romântico. Mandou-a a Frederico Nietzsche, e acreditamos que poucas leituras o terão surpreendido tanto.
Foi tal a impressão recebida que dela vemos traços até em sua última obra. Procuraremos dar uma idéia disso.

Richard Wagner começa explicando seu erro do passado: em 1848 fora socialista, não que tivesse jamais
aceito o ideal de um nivelamento dos homens; seu espírito, ávido de beleza e de ordem, ou seja, de coisas superiores,
não aceitava nada disso. Seu pensamento era diferente. Esperava que uma humanidade libertada das mais baixas
servidões se elevaria com maior facilidade à inteligência da arte. Enganara-se, e compreendeu-o. "Meus amigos,
apesar de sua grande coragem — escreveu ele — foram vencidos. A inanidade de seus esforços me provou que eles
se haviam deixado dominar por um erro fundamental e pediam ao mundo o que o mundo não lhes podia dar."

Depois, seu pensamento se esclareceu. Viu que as massas são impotentes, suas agitações vãs, seu concurso
ilusório. Havia acreditado que elas seriam capazes de introduzir na história um progresso cultural, e reconheceu que,
ao contrário, eram incapazes de colaborar na simples manutenção da cultura adquirida; não se ressentem senão das
necessidades elementares, grosseiras, e imediatas. Qualquer fim nobre é inatingível para elas. E o problema que a
realidade nos manda resolver é o seguinte: como obrigar as massas a servir a uma cultura que lhes deverá ficar
alheia; a servi-la com zelo e amor até ao sacrifício da vida? Tudo gira em torno desta questão, que parece insolúvel e
não o é. Consideremos a natureza: ninguém compreende seus fins, e, no entanto, todos os seres lutam por esses fins.
Como obtém a natureza esse apego deles à vida? Enganando suas criaturas. Coloca nelas a esperança de uma
felicidade imutável e sempre diferente. Proporcionando instintos que obrigam os mais humildes animais a longos
sacrifícios e sofrimentos voluntários. Criou o devotamento da mãe a seu filho, do indivíduo ao seu grupo. Envolveu
em ilusões todos os seres vivos e assim os persuade a lutar e sofrer com inquebrantável constância.

A sociedade, escreveu Wagner, deve ser mantida com artifícios semelhantes. As ilusões asseguram sua
duração, e o dever daqueles que governam os homens é manter e propagar essas ilusões conservadoras. O
patriotismo é mais essencial. Todos os filhos do povo devem ser criados no amor ao rei — símbolo vivo da pátria, e
esse amor deve transformar-se num instinto bastante forte para tornar possível a mais sublime abnegação.

A ilusão patriótica assegura a permanência do Estado, mas não é bastante para garantir uma alta cultura. Ela
divide a humanidade, favorece a crueldade, o ódio e a estreiteza de pensamento. O rei, cujo olhar abrange todo o
Estado, mede os seus limites e conhece os seus excessos. Uma segunda ilusão é aqui necessária: é a ilusão religiosa,
cujos dogmas simbolizam a unidade profunda, o amor universal. O rei deve alimentá-la entre seus súditos.

O homem simples, se for penetrado por esta dupla ilusão, pode levar uma vida feliz e digna: é dirigido e
salvo. Mas a vida do príncipe e de seus companheiros é mais grave e perigosa. Eles propagam as ilusões e, portanto,
julgam-nas. A vida lhes aparece sem véus; sabem quanto ela é trágica. "O grande homem, o homem excepcional —
escreveu Wagner — se encontra quase diariamente naquele mesmo estado em que o homem comum desespera de
viver e recorre ao suicídio." O príncipe, e a elite o que o envolve, seus nobres, estão premunidos, por sua bravura,
contra uma tentação tão desprezível. No entanto, sentem necessidade de amar, de "voltar as costas ao mundo".
Desejam, para eles mesmos, uma ilusão repousante, de que sejam, simultaneamente, autores e cúmplices. A arte
poderá salvá-los. É aí que ela intervém, não para exaltar o entusiasmo tolo dos povos, mas para amenizar a vida
dolorosa dos nobres, e sustentar sua bravura. "A arte — escreveu Richard Wagner dirigindo-se a Luís II, — aponto-a
ao meu muito caro amigo como a terra prometida e benfazeja. Se não é possível a ela elevar-nos de maneira real e
completa acima da vida, eleva-nos, pelo menos, na vida real, às mais altas regiões. Ela lhe dá a aparência de um
passatempo e, transformando em imagens ilusórias os seus mais desagradáveis aspectos, subtrai-nos às necessidades
comuns, nos entusiasma e consola..."

Ainda ontem — escreveu Nietzsche a Gersdorff em 4 de agosto de 1869 — eu lia um manuscrito que
Wagner me emprestara, "Do Estado e da Religião", um tratado cheio de grandeza que ele redigira para expor ao
seu "jovem amigo", o pequeno rei da Baviera, sua maneira íntima de compreender o Estado e a Religião. Jamais
alguém falou aa seu rei em termos mais dignos e mais filosóficos. Eu me sentia comovido e alvoroçado por esse
idealismo que o espírito de Schopenhauer parece inspirar constantemente. Melhor do que qualquer outro mortal, o
rei deve compreender o trágico da vida.

***

Em setembro, Frederico Nietzsche, depois de uma curta estadia na Alemanha, recomeçou a viver entre
Basiléia e Triebschen. Em Basiléia, tinha seus trabalhos, seus alunos que o ouviam atentamente e a amável
companhia dos colegas. Seu espírito, seu talento musical, sua amizade com Wagner, suas maneiras e elegância,
davam-lhe certo prestígio. Convidavam-no a freqüentar as melhores casas, e ele não recusava esses convites. Mas as
mais agradáveis relações não valem uma simples amizade, e Nietzsche não tinha um único amigo nesta cidade de
honestos burgueses. Nunca se sentia satisfeito em Basiléia; sentia-se feliz somente em Triebschen.

Agora, eu também tenho minha Itália — escreveu a Erwin Rohde que estava em Roma — apenas, não
posso freqüentá-la senão aos sábados e domingos. Minha Itália chama-se Triebschen, e já me sinto, lá, como em
minha casa. Ultimamente estive lá quatro vezes, quase continuamente e, ainda por cima, quase cada semana uma
carta segue o mesmo caminho. Meu caro amigo, é impossível dizer o que observo, vejo e aprendo ali. Parece-me,
até, que Schopenhauer e Goethe, Pindaro e Ésquilo ainda estão vivos.

De cada vez que voltava, ficava triste. Um sentimento de solidão deprimia-o logo. E ele confiava a Erwin
Rohde esse estado, ao mesmo tempo em que lhe revelava as esperanças que o trabalho lhe dava.

Na verdade, caro amigo — dizia — tenho bem poucas satisfações e é preciso que as goze sozinho, solitário,
sempre solitário! Ah! eu não recearia uma boa doença, se a esse preço pudesse pagar o prazer de conversar uma
noite com você. As cartas significam tão pouco! Os homens tem constantemente necessidade de parteiras e quase
todos vão dar à luz nos albergues, nos colégios, onde os pequenos projetos e os pequenos pensamentos saltitam
como ninhadas de gatinhos. Mas quando estamos repletos com o nosso pensamento, não há ninguém junto de nós
para ajudar, e assistir durante a difícil operação. Sombrios e melancólicos, vamos depositar em qualquer buraco
escuro os nossos pensamentos recém-nascidos, pesados, informes. Falta-lhes o sol da amizade.

"Estou me tornando um talento na arte dos passeios solitários" — diz ele. E acrescenta: "Minha amizade
tem qualquer coisa de patológico." No entanto, ele se sente feliz no fundo da alma; ele mesmo o declara um dia, e
previne seu amigo Rohde a contar suas próprias cartas.

A correspondência tem isto de irritante: a gente deseja dar o melhor de si mesmo e não dá, afinal, senão o
mais efêmero e convencional, mas nunca a melodia eterna. De cada vez que me sento para escrever, a palavra de
Hölderlin (o autor favorito dos meus anos de escola), me volta ao espírito: "Denn liebend giebt der Sterbliche vom
Bestem!" E, enquanto me lembro, que achou você de minhas últimas cartas? Negações, contrariedades,
singularidades, solidões. E, no entanto, Zeus e o divino céu de outono o sabem, uma possante corrente me conduz
para idéias positivas e cada dia gozo exuberantes horas que me cumulam de ricos golpes de vista, de reais
concepções — e nesses momentos de exaltadoras impressões, nunca deixo de lhe mandar uma longa carta plena de
pensamento e imaginação. Atiro-a através do céu azul, esperando que o fluido que liga nossas almas a leve até
você.

Poderemos nós entrever estas idéias positivas, esses ricos golpes de vista? Sem dúvida, pois que possuímos
todas as notas e todos os rascunhos desse jovem que adquiriu, ao preço do esforço cotidiano, a força e a sabedoria.

Que foram para mim os anos de estudo? — escreveu ele a Ritschl — Uma luxuosa vagabundagem através
dos domínios da filologia e da arte. E por isto, meu reconhecimento é enorme neste instante em que me dirijo a vós
que fostes, até aqui, o "destino" de minha vida. É por isso que reconheço como foi necessária e oportuna a oferta
desta cadeira que de estrela errante me transformou em estrela fixa, obrigando-me a saborear, novamente, a
satisfação do trabalho amargo mas regular, do destino seguro e imutável. O trabalho do homem é muito diferente
quando a santa necessidade da vocação o assiste; como o seu sono é agradável e como está tranqüila, ao despertar,
a consciência daquilo que o dia exige! Não há, então, noites desagradáveis. Tenho a impressão de que pareço uma
porção de páginas esparsas em um livro.

O livro, cujas idéias fundamentais Nietzsche elaborava nesse momento, era A Origem da Tragédia. — O
pensamento grego constitui o centro em torno do qual ele forma seus pensamentos. Aí ele considera audaciosamente
a história. Pensava que um verdadeiro historiador devia apreender, numa vista rápida, todos os conjuntos. "Todos os
grandes progressos da filologia — escreveu em suas notas — são seguidos de um olhar criador." O olhar de Goethe
havia descoberto uma Grécia lúcida e serena. Submissos ao seu gênio, nós continuamos a ver a imagem que ele nos
apresentou. Mas nós devemos olhar e descobrir por nós próprios. Goethe fixou sua atenção nos séculos da cultura
alexandrina. Nietzsche negligencia-os. Ele prefere os séculos rudes e primitivos, para onde o seu instinto, desde os
dezoito anos, o havia conduzido quando ele escolhera para estudar os dísticos do aristocrata Teogônios de Megare.
Sente, aí, uma energia, uma força de pensar, de agir, de suportar, de infligir castigos; uma potência de lirismo e de
sonho — que fazem sua alma rejubilar.

Encontra, enfim, ou pensa encontrar, nessa velhíssima Grécia, o espírito de Richard Wagner, seu mestre.
Wagner quer fazer ressurgir a tragédia e, servindo-se do teatro como de um instrumento espiritual — reanimar, na
alma humana, o sentido diminuído do lirismo. Os trágicos gregos tinham uma ambição semelhante. Eles queriam
tornar sua raça maior e mais nobre por meio da mais surpreendente evocação dos mitos. — Sua tarefa era sublime, e
malogrou-se. Os mercadores do Pireu, as plebes urbanas, a turba dos mercados e dos portos não gostavam desta arte
lírica que os obrigava a pensamentos muito elevados e a atos demasiado meritórios. As famílias nobres foram
vencidas, e a tragédia cessou de existir. Richard Wagner encontrou inimigos semelhantes: os democratas,
raciocinadores vulgares, amigos de prometer paz e falaz bem-estar. "Nosso mundo judaizante, nossa plebe garganta e
politiqueira são hostis à arte idealista e profunda de Wagner — escreveu Nietzsche a Gersdorff. — Sua natureza
cavalheiresca é-lhes contrária..." Seria a arte de Wagner vencida como o fora, em outros tempos, a de Ésquilo? É
sempre essa luta que preocupa Frederico Nietzsche.

Expôs estes novos pontos de vista a seu mestre:

É preciso renovar a idéia do helenismo. Vivemos sobre lugares-comuns que são falsos. Falamos da
"alegria", da "serenidade helênica"; e esta alegria e essa serenidade são frutos tardios e de fraco sabor — favores
dos séculos de escravatura. A sutileza socrática, a doçura platoniana, já trazem a marca do declínio. É preciso
estudar os séculos antigos, o VII e VI. Alcançaremos, assim, a força ingênua, a seiva original; Entre os poemas de
Homero, que são o romance de sua infância, e os dramas de Ésquilo, que são o ato de sua virilidade, a Grécia, não
sem esforço, entra na posse de seus instintos e de suas disciplinas. Estes são os tempos onde devemos beber
conhecimentos, porque se assemelham aos nossos. Os gregos acreditavam então, como os europeus hoje, na
fatalidade das forças naturais, e acreditavam também que o homem devia criar para si próprio suas virtudes e seus
deuses. Um sentimento trágico, um pessimismo corajoso que não os desviava da vida, encorajava-os. Entre eles e nó
tudo é semelhante e correspondente: pessimismo, coragem, vontade de criar uma nova beleza...

Richard Wagner interessou-se pelas idéias do moço ligando-o cada vez mais à sua vida. Certo dia, em
presença de Frederico Nietzsche, ele recebeu da Alemanha a notícia de que Ouro do Reno e Valquíria, mal
executadas longe de seus conselhos e de sua direção, acabavam de sofrer um duplo insucesso. Afligiu-se por ver
depreciar-se e esterilizar-se sob seus olhos a obra imensa que destinara a um teatro e a um público inexistentes.
Sofria. Nietzsche sentiu-se comovido por esse nobre sofrimento.

Ele assistia ao trabalho de seu mestre. Wagner compunha, então, a música do Crepúsculo dos Deuses.
Página a página, a obra crescia, sem pressa nem lentidão, como que conduzida pelo transbordar igual de uma fonte
invisível. Wagner, cuja atenção não era absorvida por esforço algum, escreveu, durante esses mesmos dias, uma
história de sua vida. Frederico Nietzsche recebeu o manuscrito com a missão de o fazer imprimir secretamente, e
fiscalizar a limitada tiragem de doze exemplares.

Reclamavam também a sua presença para ocupações mais familiares. No Natal, Wagner preparou um
teatrinho de fantoches para seus filhos. Ele queria belas figuras, de anjos e demônios. A senhora Cosima Wagner
pediu a Frederico Nietzsche que os comprasse em Basiléia. "Esqueço-me de que é professor, doutor e filólogo —
disse-lhe ela graciosamente — não me lembro senão dos seus vinte e cinco anos."

Ele examinou as figurinhas que achou em Basiléia e, não as achando a seu gosto, escreveu a Paris para que
enviassem a Triebschen os mais espantosos diabos e os mais belos anjos que se pudesse imaginar. Frederico
Nietzsche, admitido à solenidade do guignol passou as festas de Natal com Wagner, sua esposa e seus filhos, na mais
doce intimidade. Cosima Wagner fez-lhe um presente: deu-lhe uma edição francesa de Montaigne que ele, ao que
parece, ainda não conhecia, e que logo iria admirar tanto. Foi imprudência dela. Montaigne é leitura perigosa para
um discípulo.

***

"Devo fazer, este inverno, duas conferências sobre a estética dos trágicos gregos — escreveu Nietzsche em
setembro a seu amigo barão de Gersdorff — e Wagner virá de Triebschen para ouvi-las."

Wagner não compareceu, mas Nietzsche foi ouvido por um público muito numeroso.

Descreveu uma Grécia desconhecida, agitada pelos mistérios, pela embriaguez do deus Dionisios, e
iniciada, por essa mesma embriaguez, por essa desordem, no lirismo, no canto, na contemplação trágica. Parece que
tentou definir esse romantismo eterno, sempre semelhante a si mesmo, na Grécia do século VI, como na Europa do
XIII — o mesmo, sem dúvida, que inspirava Wagner no seu retiro de Triebschen. No entanto, Nietzsche evitou
pronunciar seu nome.

Quando iam assistir à tragédia do grande Dionisios, os atenienses traziam na alma algumas centelhas
daquela força elementar de que nasceu a tragédia. Era um irresistível impulso primaveril que explodia; era um
furor, um delírio de impressões confundidas, que todos os povos primitivos, como toda a natureza, sentem ao chegar
a primavera. Como entre nós os folguedos da Páscoa e do Carnaval. Agora estão encampados pela Igreja, mas, no
início, foram as festas da primavera. Tudo isto deriva do mais profundo instinto. O velho sol grego movimentou
multidões entusiastas, cheias de Dionisios, da mesma maneira, na Idade-Média as danças de São Jão e de São Vito,
agitavam as multidões, que passeavam, dançavam, cantavam de cidade em cidade, tornando-se maior em cada uma.
Podem os médicos considerar isso como doenças populares. Nós dizemos, apenas, que o drama antigo é a flor de tal
doença, e que se a arte moderna não beber dessa fonte misteriosa, o mal será seu.

Em sua segunda conferência, Nietzsche estudou o fim da arte trágica. Foi um fenômeno singular. Todas as
demais artes gregas declinaram lenta e gloriosamente. A tragédia não teve declínio. Desapareceu depois de Sófocles,
como que destruída por uma catástrofe. Nietzsche descreve a catástrofe e cita o nome do destruidor: Sócrates.
Ele teve a coragem de acusar o mais reverenciado dos Homens. Foi ele, homem do povo, o pobre ateniense,
feio e motejador, quem suprimiu a antiga poesia. Sócrates não era nem artista, nem filósofo. Não escrevia, nada
ensinava — falava, apenas. Sentado na praça pública, detinha as pessoas que passavam e espantava-as com sua
lógica divertida, deixava-as convictas de ignorância e absurdos; ria e as obrigava a rir delas mesmas. Sua ironia
desonra as crenças nativas que davam força aos ancestrais; os mitos que sustinham suas virtudes. Ele desmoraliza a
tragédia e declara: "Chega!" Eurípides fica confuso e sua inspiração se detém. O jovem Platão, que talvez viesse a
ultrapassar Sófocles, dá ouvidos ao novo mestre, queima seus versos e renuncia à arte. Sócrates realizou a mais
decisiva das revoluções. Desconjuntou a velha humanidade instintiva e lírica; e, pela voz de Platão, que ele seduzira,
impôs a ilusão, desconhecida dos antigos, de uma natureza acessível à razão humana, penetrada por ela e para
sempre harmoniosa. Frederico Nietzsche deveria inserir essas páginas em seu livro sobre A Origem da Tragédia.

Essa acusação pronunciada contra Sócrates surpreendeu os basilienses. Wagner soube-o e escreveu a
Nietzsche, em fevereiro de 1870 uma carta entusiasta e muito serena:

Quanto a mim, grito: "É isso mesmo!" Você atingiu a verdade e tocou o ponto justo com um agudo dardo.
Espero com admiração a continuação do seu trabalho e das lutas que você há de travar com o dogmatismo vulgar.
No entanto, você me causa cuidados e desejo, de todo o coração, que não quebre o pescoço. Quero, portanto,
aconselhá-lo a não expor seus audaciosos pontos de vista, dificilmente aceitáveis, em pequenas brochuras que
pouco ajudam. Sinto que você está profundamente penetrado por suas idéias; é preciso reuni-las para nos dar um
livro volumoso, de mais vasta ação. Então, você encontrará e dará a palavra justa sobre os divinos erros de
Sócrates e de Platão, esses criadores, tão maravilhosos, que nós mesmo que discordemos deles, ainda os devemos
adorar. Oh, meu amigo! As palavras se elevam como hinos quando consideramos a incompreensível harmonia
dessas essências estranhas ao nosso mundo! E que orgulho nos anima, que esperança, quando, examinando-nos a
nós mesmos, sentimos forte e claramente que podemos e devemos realizar qualquer obra para eles mesmo
inacessível!

Nenhuma das cartas endereçadas por Nietzsche a Wagner foi publicada. Ter-se-ão? Teriam sido destruídas?
Serão apenas ocultadas pela senhora Cosima Wagner, que talvez não seja incapaz de guardar rancor? Não se sabe.
Sem dúvida, Nietzsche pedia a Wagner que se aliasse com ele, e que o ajudasse a tornar mais claros esses pontos
realmente difíceis. Wagner respondeu-lhe:

Caro amigo,

Como é bom a gente poder escrever tais cartas! Não existe ninguém, hoje, com quem eu possa me entender
tão bem como com você, excetuada uma única (*)[Senhora Cosima Wagner]. Deus sabe que seria de mim sem isso!
Mas ele permitirá que nenhum projeto melhor me tente e que possa dispor de muito tempo, para que me abandone
ao prazer de lutar com você contra o "socratismo"; porque, para esclarecer um tal problema devo renunciar a toda
criação. É preciso que dividamos o trabalho, Você pode muito, para mim. Pode se encarregar de metade do
trabalho que o destino me designou. E, fazendo isso, talvez cumpra todo o seu destino. Eu sempre me saí mal de
todas as experiências filológicas. Você também se saiu mal das experiências musicais — é bem isso. Como músico,
você se tornaria, pouco a pouco, o mesmo que eu me tornaria se me obstinasse em realizar trabalhos de filologia.
Mas a filologia me ficou no sangue; como musicista, ela é que me dirige. Você, que é filólogo, continuando a sê-lo
deixe-se dirigir pela música. Dou um sentido muito sério ao que estou dizendo. Soube, por você, como são baixas as
preocupações a que se deve restringir hoje um filólogo de profissão — e você soube, por mim, em que inominável
chiqueiro tem que se agitar hoje um verdadeiro e "absoluto" musicista. Exponha o que deve ser a filologia e ajude-
me a preparar esta grande "Renascença" na qual Platão abraçará Homero e Homero, penetrado pelas idéias de
Platão há de ser, pela primeira vez, o sublime Homero...

Nesse instante Nietzsche concebeu sua obra e se preparou para a escrever de um jacto. "Ciência, arte e
filosofia crescem em mim tão bem combinadas — disse ele em fevereiro a Erwin Rohde — que ainda me vai
acontecer conceber um centauro..."

Mas as necessidades profissionais interrompem esse impulso. Em março foi nomeado professor catedrático.
A honra envaidece-o, e a responsabilidade preocupa-o. Ao mesmo tempo confiam-lhe uma classe de retórica
superior; depois, pedem-lhe para redigir em bom latim uma mensagem de felicitações para o professor Brambach, de
Friburgo, que havia, cinqüenta anos lecionava na universidade local. Nietzsche, que nunca se recusa, aplica-se em
preparar sua aula e em compor a mensagem. Em abril, novo trabalho. Ritschl fundou uma revista: "Acta societatis
philologicae Lipsiae", e deseja que seu melhor aluno colabore. Nietzsche não mercadeja nunca a colaboração que lhe
pedem. Promete um trabalho e escreve a Rohde, para conseguir que ele colabore também:

Pessoalmente, sinto-me seriamente obrigado. E embora esse trabalho, neste momento, me venha
prejudicar, não me recuso. É preciso que colaboremos no primeiro número. Você não ignora que muita gente o vai
ler com curiosidade e com má vontade, É preciso, pois, que seja bom. Prometi fiel ajuda. Responda-me.

Chegam maio e junho de 1870. Frederico Nietzsche parece preocupado, sobretudo, pela redação das "Acta".
Durante as férias de Pentecostes, Rohde, de volta da Itália, deteve-se em Basiléia, com grande alegria de Nietzsche.
Ele desejava que Wagner conhecesse seu amigo, e levou-o a Triebschen. Foi uma bela noitada, na borda do abismo
que nenhum desses homens parecia perceber. Rohde, continuando seu caminho para a Alemanha, deixou Basiléia.
Ficando só, Nietzsche é vítima de um acidente idiota: torceu o pé, e teve que ir para a cama.

***

Teria ele prestado alguma atenção aos rumores de guerra que agitavam a Europa em 1870? Não parece. Era
pouco curioso com respeito às novidades, e nunca lia jornais. Não que fosse indiferente à sua pátria, mas concebia-a
à maneira de Goethe, como uma fonte de arte e de grandeza moral. Um dos seus pensamentos — um só — seria,
talvez, inspirado pelas inquietações públicas: "Nada de guerras. O Estado se tornaria mais forte." Aí temos, sem
dúvida, ao mesmo tempo que uma impressão de Nietzsche, um eco dos assuntos ventilados em Triebschen: Richard
Wagner tinha seus mais ardentes admiradores entre os alemães da renânia e meridionais, onde reinava seu protetor,
Luís II. Os alemães do Norte apreciavam-no pouco e os berlinenses menos ainda que todos os outros. Ele não
desejava, pois, uma guerra que teria por efeito certo tornar mais pesada a ditadura prussiana. O Estado que Nietzsche
designa em sua curta nota é o Prussiano. Previa e receava, como seu mestre, a hegemonia iminente de Berlim, cidade
desprezada, asilo de burocratas, banqueiros, jornalistas e judeus. Em 14 de julho, convalescente, estendido numa
cadeira de repouso, escrevia a seu camarada Erwin Rohde, falando de Richard Wagner e de Hans de Bulow, de arte e
de amizade. Subitamente interrompeu-se no meio de uma frase, e, marcando com o salto de uma linha a interrupção
de seu pensamento, escreveu:

Eis uma notícia terrível como um trovão. Está declarada a guerra franco-alemã, e o mais terrível demônio
se abate sobre nossa cultura, usada até o extremo. Que iremos nós sofrer?

Amigo, caro amigo! mais uma vez nos revimos no crepúsculo da paz. Que significam, hoje, todas as nossas
aspirações? Talvez estejamos no começo do fim. Que desolação! Os claustros vão se tornar necessários, e nós
seremos os primeiros monges!

E assinou: "O Leal Suíço" — Esta imprevista assinatura pode se explicar de maneira literal: Frederico
Nietzsche havia tido que renunciar à sua nacionalidade para poder ser nomeado professor na Universidade da
Basiléia. Mas, seguramente, ela significa mais do que isso e denuncia o desapego do seu espírito e sua decisão de
ficar apenas como espectador.

Como se conhecia mal a si mesmo. Ele era muito jovem, muito bravo, muito orgulhoso de sua raça para
poder assistir como espectador ao drama iminente. "Leal Suíço", e, como tal, dispensado de deveres militares,
instala-se agradavelmente com sua irmã Lisbeth num albergue de montanha, onde redige algumas páginas sobre o
lirismo grego. Foi então que formulou, pela primeira vez, suas definições do espírito dionisíaco e do espírito
apolíneo. Entrementes, as tropas alemãs passavam o Reno e conquistavam suas primeiras vitórias. Frederico
Nietzsche não ouve essas novidades sem emoção. A idéia dos altos feitos nos quais ele não tomava parte, dos perigos
de que ele estava preservado, perturba suas meditações.

Em 20 de julho, escrevendo à senhora Ritschl, expõe seus pensamentos de solitário. É então a expressão do
receio que parece lhe inspirar a lembrança da Grécia arruinada pelo conflito de Esparta e Atenas:

Tristes analogias históricas nos mostram que as próprias tradições da cultura podem ser tragadas pelo
amargar duma tal guerra nacional.

E exprime, também, a emoção que começa a penetrá-lo:


Como me envergonho desta inação em que estou, quando chegou o momento de aplicar meus
conhecimentos como artilheiro! Naturalmente, preparo-me para uma enérgica resolução, caso as coisas tomem mau
aspecto. Sabe que os estudantes de Kiel, de tanto entusiasmados alistaram-se em bloco?

No dia 7 de agosto, pela manhã, leu em seu jornal as notícias de Woerth: "Vitória alemã. Grandes perdas."
Não pôde mais permanecer inativo. Retorna a Basiléia, solicita e obtém das autoridades suíças permissão para servir
como auxiliar do corpo de saúde, e parte para a Alemanha a fim de tomar parte nessa guerra que o atrai.

Atravessa a Alsácia conquistada, vê os campos de cadáveres de Wissembourg e de Woerth; em 29 de agosto


bivaca perto de Strasbourg, cujos incêndios clareiam o horizonte; depois dirige-se por Lunéville e Nancy, para o
campo de Metz, convertido em imenso hospital, onde os feridos de Mars-la-Tour, de Gravelotte e Saint-Privat são
tão numerosos que mal podem ser atendidos, morrendo de seus ferimentos e de males infecciosos. Alguns infelizes
são entregues aos seus cuidados. Ele cumpre o seu dever com coragem e bondade. Mas sente uma emoção singular,
um horror sagrado e quase entusiasta. Pela primeira vez ele considera sem repulsão o trabalho das multidões. Olha
para esses milhões de seres — uns batidos e marcados pela morte, outros marchando pela estrada, ou de pé sob as
armas — olha-os e não mais os despreza: compreende o seu destino. Sob a ameaça da guerra, esses homens se
tornaram graves. Esqueceram seus pensamentos vãos, e marcham, cantam, obedecem aos chefes e morrem. Frederico
Nietzsche é recompensado de seus trabalhos: um impulso fraternal eleva sua alma, não o deixando mais sentir a
solidão. Começa a amar essas criaturas simples que o rodeiam.

Combate-se em Sedan. "Todas as minhas paixões militares despertam — escreve ele — e eu não as posso
satisfazer! Estaria em Rezonville ou em Sedan, ativamente, ou passivamente, talvez. Mas a neutralidade suíça me
mantém de mãos atadas."

Sua passagem pela França é rápida: recebe ordem de conduzir ao hospital de Carlsruhe os feridos que estão
a seu cuidado. Parte e durante três dias e três noites permanece, com onze homens, num vagão de carga, que se
mantém fechado por causa do frio e da chuva. Dois desses feridos são atacados de difteria e todos têm disenteria.
"Para chegar à verdade — disse um místico alemão — a mais rápida montaria é a dor." Nietzsche recorda esta
máxima de que muito gosta. Experimenta sua coragem, verifica seus pensamentos. Pensa os ferimentos dos seus
homens, ouve as suas queixas, seus apelos, e não interrompe a meditação. Até então ele não tinha conhecido senão os
seus livros; agora, conhece a vida. Saboreia esta amarga prova e percebe sempre alguma beleza longínqua.

"Eu também tenho minhas esperanças — escrevera ele — e graças a elas, pude ver a guerra e prosseguir nas
minhas meditações sem me interromper, em presença dos piores horrores. Lembro-me de uma noite solitária em que,
estendido no vagão de carga com os feridos que me haviam confiado, não deixei de explorar em pensamento os três
abismos da tragédia que chamamos: "Wahn", "Wille", "Wehe" — Ilusão, Vontade, Dor. De onde tirava eu a
confiante certeza de que o herói a nascer do conhecimento trágico e da alegria grega — devia suportar novamente
semelhante prova?"

Chegou a Carlsruhe com seus feridos e doentes, mas contraíra o mal, e cai, atacado de disenteria e difteria.
Um desconhecido, que fora seu companheiro no hospital, cuida dele com devotamento. Apenas se sentiu melhor,
Nietzsche foi procurar em casa de sua família em Naumburg, não repouso, mas fuga completa ao trabalho e ao
pensamento.

Sim — escreve ele a seu amigo Gersdorff, que combatia na França — sim: esta concepção das coisas, que
nos é comum, sofreu a prova de fogo. Fiz a mesma experiência que você. Para mim, como para você, estas semanas
permanecerão na vida como uma época em que cada um dos meus princípios será reafirmado. Arrisquei-me a morrer
com eles. Agora, estou em Naumburg, mas ainda mal restabelecido. A atmosfera em que vivi ficou sobre mim, como
uma nuvem sombria: ouço uma queixa interminável.

Já uma vez, em julho de 1865, durante a campanha de Sadowa, ele conhecera a guerra e sentira a sua
sedução. Uma grande e simples aspiração o havia dominado; por alguns instantes, sentira-se de acordo com sua raça.

"Experimento uma emoção patriótica — escreve — e isso não é novo para mim..." Retém e cultiva essa
rápida exaltação.

Quanto mudou sua alma! Já não é aquele "leal suíço" de outros tempos. É um homem entre homens, um
alemão cioso da sua Alemanha. Uma guerra o transformou: ele glorifica a guerra. Ela desperta a energia dos homens,
chega a inquietar seus espíritos. Obriga-os a procurar, numa ordem ideal — ordem de beleza e de dever — os fins de
uma vida demasiado cruel. O poeta lírico, o sábio, incompreendidos nos séculos pacíficos, são ouvidos nos séculos
guerreiros. Os homens têm necessidade deles, e sentem essa necessidade, porque é a mesma que os arregimenta por
trás de seus chefes, a que os torna atentas ao gênio. Só sob a pressão da guerra é que a humanidade se torna una, e se
inclina para o heróico e sublime.

Frederico Nietzsche, fraco e sofrendo ainda, recomeça a redigir as notas para o seu livro e deseja inserir
nelas as suas novas idéias. Eis a Grécia: sua arte é a forma visível de uma sociedade disciplinada pela luta, desde a
oficina onde trabalha o escravo — até ao "gymnasium" e o "agora", onde o homem livre joga armas. Tal esta figura
alada, esta deusa da Samotrácia cujo vôo acompanha uma trirreme sangrenta — o gênio grego emana da guerra. Ele
canta-a e a acompanha.

"É o povo dos mistérios trágicos — escreve Nietzsche — que dá o grande golpe das batalhas pérsicas. Ao
regresso, o povo que sustentou essas guerras, tem necessidade da beberagem salutar da tragédia."

Seguimos, por essas notas, o movimento de um espírito que deseja aprender, através de uma Grécia incerta,
a própria idéia do trágico. Encontramos constantemente essa palavra — trágico — tratada à maneira de um tom
fundamental que o jovem pensador se exercita em repetir, como a criança que acaba de aprender uma palavra nova:
"A Grécia trágica vence os Persas... O homem trágico é a própria natureza na sua mais alta força de criação e de
conhecimento: ele joga com a dor..." Três fórmulas satisfazem, por um instante, sua pesquisa: "A obra de arte trágica
— o homem trágico — o Estado trágico." Ele determina, assim, as três partes essenciais de seu livro, que intitulará
também: O Homem Trágico.

Não entendamos mal o objeto real de suas meditações: esta sociedade, esta disciplina que ele discerne no
passado são, em realidade, as formas ideais da pátria que deseja e ousa esperar. Aqui temos a Europa latina,
enfraquecida pelo utilitarismo e a doçura da vida; aqui temos a Alemanha, rica em poetas, em soldados, em mitos e
em vitórias. Ela é suserana das raças que fraquejam. Como exercerá essa suserania? Não podemos augurar, do seu
triunfo uma nova era guerreira e trágica, cavalheiresca e lírica? Se o podemos conceber, podemos esperá-lo, e, isso é
bastante para indicar o nosso dever. Como será bela esta Alemanha! Bismarck — seu chefe; Molke —seu soldado;
Wagner —seu poeta... E seu filósofo existe também. Chama-se Frederico Nietzsche. Esta certeza Ele não a externa
de modo algum, mas tem-na, seguramente, porque Nietzsche não tem dúvida alguma sobre seu próprio gênio.

Frederico Nietzsche exalta-se, mas não se deixa desviar por seus sonhos; imagina uma pátria ideal, mas não
deixa de perceber claramente a pátria humana, muito humana, que existe. Durante outubro e os primeiros dias de
novembro, isolado entre os seus, nessa Naumburg cujas virtudes provincianas Ele já não aprecia — apenas consegue
suportar a vulgaridade das pessoas sem importância, dos funcionários que visita. Naumburg é uma cidade prussiana,
e Nietzsche não gosta dessa Prússia robusta e baixa. Metz havia capitulado; o mais belo exército francês está
aprisionado. Um delírio de orgulho empolga toda a Alemanha, e Frederico resiste a essa onda. O sentimento de
triunfo é um repouso que sua exigente alma não pode conhecer. Ao contrário, Ele se inquieta e se assusta:

Receio — escreve a Gersdorff — que tenhamos que pagar nossas maravilhosas vitórias nacionais por um
preço que eu, de minha parte não consentirei. Confidencialmente: sou de opinião que a moderna Prússia ê uma
potência demasiado perigosa para a cultura... Á empresa é perigosa, mas devemos ser bastante filósofos para
conservar nosso sangue-frio no meio das chamas e velar para que nenhum ladrão venha e diminua aquilo que, a
meu ver, não se pode medir, não é comparável nem mesmo às mais heróicas ações militares, nem á nossa exaltação
nacional.

Foi então que apareceu uma publicação que comoveu Nietzsche. Era a data do centenário de Beethoven, e
os alemães, ocupados com a guerra, haviam se esquecido da comemoração. A voz de Richard Wagner levantou-se,
só, mas bastante forte para recordar aos vencedores essa outra glória: "Alemães! Sois bravos, mas sê de também na
paz: neste maravilhoso ano de 1870, nada calha melhor ao vosso orgulho de bravos do que a lembrança do grande
Beethoven... Celebremos o grande desbravador de caminhos, celebremo-lo dignamente, não menos dignamente do.
que a vitória da bravura alemã, porque aquele que dá alegria ao mundo eleva-se mais alto entre os homens do que
aquele que conquista o mundo!"

Alemães —,sois bravos. Sêde-os também na paz — nada poderia comover mais Frederico Nietzsche.. Ele
desejou aproximar-se do mestre, e, embora sofrendo ainda, deixou Naumburg..

Tornou a ver Richard Wagner, mas não ficou inteiramente satisfeito. Esse homem, magnífico nos dias de
desgraça, parecia diminuído nos dias felizes. Sua alegria era de qualidade vulgar. A vitória alemã vingava-o dos
assobios e das caçoadas parisienses. "Gozava" os franceses com grande contentamento. Mas declinou diversas
ofertas: prometerem-lhe as mais altas funções e grandes honras se concordasse em residir em Berlim. Recusou. Não
queria deixar-se entronizar cantor oficial de um império prussiano. Seu discípulo conhecia o grau desta reserva.
Em Basiléia Frederico Nietzsche encontrou um melhor confidente para a sua inquietação: o historiador
Jacob Burckhardt, grande conhecedor de artes e civilizações, e que estava triste; qualquer brutalidade lhe era odiosa;
detestava a guerra e suas destruições. Cidadão da última cidade que mantinha na Europa sua independência e seus
costumes antigos, orgulhoso dessa independência e desses costumes, Jacob Burckhardt, burguês de Basiléia, não
pode gostar das nações de trinta ou quarenta milhões de habitantes que se solidificavam ante seus olhos. Aos projetos
de Bismarck e de Cavour, preferia o conselho de Aristóteles: "Façamos de modo que o número de cidadãos não
passe de dez mil — ou então, eles não poderão jamais reunir-se na praça pública."

Estudara Atenas, Veneza, Florença e Siena. Tinha na mais alta estima as antigas disciplinas latinas e
menosprezava as normas de agir germânicas; receava a hegemonia alemã. Burckhardt e Nietzsche eram colegas, e se
encontravam freqüentemente nos intervalos das aulas. Conversavam então, e, nos dias bonitos, subiam juntos ao
terraço a que açodem todos OS turistas, entre a catedral de grés vermelho e o Reno, tão Jovem ainda mas,já tão forte,
passando com o longo murmúrio do suas águas contrariadas. A Universidade estava localizada na margem, entre o
rio e o museu.

Os dois homens examinam constantemente o pensamento comum: como séria continuada esta tradição de
cultura e de beleza, tão frágil e tantas vezes rompida — que os dois ínfimos territórios, a Ática e a Toscana,
confiaram aos nossos cuidados? A França não desmerecera a tradição. Soubera manter os métodos e uma escola de
bom gosto. E a Prússia, feria qualidades para tal herança? Nietzsche repetia sua esperança: "Pode ser que esta guerra
tenha transformado, nossa velha Alemanha. Vejo-a mais viril, dotada de gosto mais firme, mais refinado..." Jacob
Burckhardt discordava: "Não. Você pensa ainda nos gregos, para os quais a guerra era uma virtude educadora. Mas
as guerras modernas são superficiais — não atingem nem corrigem o "deixa-correr" burguês da vida. São raras e sua
impressão se desvanece; esquecemo-las; elas não influem no pensamento." Quais eram as respostas de Nietzsche?
Uma carta enviada a Erwin Rohde deixa-nos perceber o acento mal seguro de seus propósitos: "Sinto grande
inquietação pelo futuro próximo: Acredito divisar nele uma Idade Média disfarçada. Tenha cuidado, em não se
entregar a esta Prússia fatal, contrária à cultura! Os homens servis e os padres crescem ai como cogumelos e vão,
com sua vaidade, tornar toda a Alemanha sombria!"

Jacob Burckhardt, retirado desde muito tempo entre suas recordações e seus livros, tinha o hábito da tristeza
e aceitava-a. A modo de discreto protesto contra a atitude de seus contemporâneos, pronunciou uma conferência
sobre A Grandeza Histórica: "Não tomem como verdadeira grandeza — disse aos estudantes de Basiléia — tal
triunfo militar, ou tal vôo do Estado. Quantas nações foram potentes, mas estão esquecidas e merecem o olvido! A
grandeza histórica é mais rara: ela está toda nas obras dos homens que nós, à falta de bem lhes conhecer a natureza,
chamamos — "os grandes homens". Ela é que nos legou Notre-Dame de Paris; Goethe nos deu o Fausto; Newton,
sua lei do sistema solar. Isso é grande — só isso."

Frederico Nietzsche ouviu e aplaudiu: "Burckhardt está se tornando schopenhaueriano" — escreveu.

Mas não são algumas palavras sábias que contentam o seu ardor. Ele não pode renunciar tão depressa à
esperança que concebeu. Quer agir para salvar sua pátria do desastre moral de que a julga ameaçada. Mas como agir?
Trata-se de um povo pesadão, insensível à inquietude, um povo depreciado pela democracia, rebelde a toda a
aspiração nobre. Por que artifício se poderia conservar nele o ideal em perigo, o amor pelo heroísmo e pelo sublime?
Nietzsche concebe um projeto tão audacioso como extremo, que durante tempo medita sem dizer nada a ninguém.
Richard Wagner trabalhava então para instituir p teatro de Bayreuth, onde queria realizar sua obra épica em inteira
liberdade. Nietzsche ousou imaginar uma instituição diferente, mas da mesma ordem: uma espécie de seminário onde
os jovens filósofos seus amigos — Rohde, Gersdorff Deussen, Overbeck, Romundt — se reunissem em verdadeira
intimidade e, livres de necessidades, de tutela administrativa, pudessem meditar, guiados por alguns mestres, sobre
os problemas do momento. Uma dupla chama, de arte e de pensamento, alimentaria, assim, no coração da Alemanha,
acima das multidões e à parte do Estado, as tradições da vida espiritual.

"Teremos necessidade de claustros" — escrevera Ele em julho a Erwin Rohde. Seis meses de experiências
trouxeram esta conclusão: "Aqui está, seguramente, a mais estranha Idéia QU6 este tempo de guerra e de vitória
suscitou — lemos em suas notas — um anacoretismo moderno — uma impossibilidade de viver de acordo com o
Estado..."

Nietzsche deixa-se arrastar por este sonho cuja irrealidade não percebe. Imagina uma reunião de solitários,
parecida com o nosso Port-Royal des Champs. Ele sabe que uma tal sociedade não está de acordo com as maneiras e
o gosto de seu tempo, mas julga-a necessária e acredita-se com a força necessária para a instituir e impor. Um
instinto profundo inspira-o e o dirige; no velho colégio de Pforta, monacal pelas origens, pelos edifícios e pelas
próprias paredes, pela persistente gravidade e pelos costumes — Ele conhecera, em criança, os aspectos de uma vida
quase religiosa, e guardava consigo a lembrança e a nostalgia desse tempo. Durante seus anos de Universidade, havia
procurado constantemente isolar-se do mundo, cercando-se de amigos. Estudava a Grécia e a sabedoria antiga
alimentava suas inclinações monásticas. Adorava Pitágoras e Platão — um fundador e o outro poeta da mais bela
confraria que os homens jamais puderam criar, a aristocracia restrita e soberana dos sábios armados e dos cavaleiros
meditativos. Assim a humanidade cristã e a humanidade paga, unidas por um longínquo acordo, conspiraram, com
seus pensamentos e suas aspirações.

Ele queria escrever uma carta-aberta a seus amigos conhecidos e desconhecidos, mas fá-lo-ia somente no
instante favorável, e até então guardaria segredo. "Dê-me dois anos — escreveu a seu amigo Gersdorff, com
entusiasmo e mistério — e você verá como se alastrará uma nova concepção da antigüidade que determinará um
novo espírito na educação cientifica e moral da nação!". Pelos meados de dezembro, acreditou chegado o momento.
Erwin Rohde escreveu-lhe uma carta triste — bem fraco eco das apaixonadas cartas que Nietzsche lhe havia
mandado. "Teremos necessidade de claustros..." dizia Ele repetindo a mesma idéia expressa seis meses antes pelo
amigo. Isso não era senão uma palavra; Nietzsche porém viu aí o sinal de acordo espontâneo, um presságio de
colaboração entusiasta, e escreveu-lhe em alegre transporte :

Caro amigo,

Recebi sua carta, e respondo sem perda de um minuto. Quero lhe dizer, sobretudo, que sinto perfeitamente,
como você, que nós seremos a meu ver muito fracos se, conservando nossas pobres queixas, não nos arrancarmos
ao tédio por uma ação enérgica___ Compreendi,

enfim, o alcance dos julgamentos de Schopenhauer sobre a filosofia das Universidades. Não é possível
haver nelas nenhuma verdade radical, é nenhuma verdade revolucionária poderá sair delas. Sacudiremos esse jugo
— para mim, isso é indiscutível. E formaremos, então, uma nova Academia grega. Romundt será dos nossos.

Você conhece, desde a sua visita a Triebschen, os projetos do Bayreuth, há muito tempo, sem que o dis-
sesse a ninguém, venho meditando se não seria conveniente rompermos com a filologia e suas perspectivas de
cultura. Estou preparando um grande adhortatio para dirigir a todos aqueles que não estejam ainda completamente
fartos e cansados das maneiras de ser do tempo atual. Que pena que eu deva escrever-lhe e que não possamos, de
há muito, examinar em conversa cada um dos meus pensamentos! Para você, que não conhece as suas curvas e
diretrizes, meu plano talvez pareça um capricho excêntrico. Mas Ele não é isso. —. Corresponde a uma
necessidade.

Devemos tratar de atingir uma pequena ilha na qual não tenhamos mais necessidade de tampar os ouvidos
com cera. Então, seremos os mestres uns dos outros. Nossos livros, daqui até lá, não serão senão laços para
prender amigos e público para a nossa associação estética e monacal. Vivamos, trabalhemos, alegremos-nos um ao
outro. Talvez só desta maneira possamos trabalhar para a união. Dir-lhe-ei (veja como são graves os meus desíg-
nios) que já comecei a diminuir minhas despesas para constituir uma pequena reserva. Apelaremos para a loteria, a
fim de constatar nossa "sorte"; quanto aos livros que pudermos escrever, exigirei os honorários mais altos
possíveis, em previsão dos próximos tempos. Em breve, não desprezaremos meio algum lícito para chegar a fundar
o nosso convento. Também nós, teremos o nosso dever nos dois anos próximos. Possa este plano parecer-lhe digno
de meditação! Sua última carta, tão comovente, foi, para mim, o sinal de que era tempo de lhe contar meus planos.

Seremos, nós, incapazes de introduzir no mundo uma forma nova de Academia?


Und sollf ich nicht sehnsuchtogster Gewalt In's Leben ziehn die einzigster Gestalt?

Assim falava Fausto a Helena. Ninguém sabe coisa alguma sobre o meu projeto, e, agora, depende de você
que Romundt o saiba.

Decerto, nossa escola de filosofia não é, nem uma reminiscência histórica, nem um capricho arbitrário.
Não é uma necessidade o que nos impele por esse caminho? Parece que o nosso projeto de estudantes — aquela
viagem que devíamos fazer juntos — volta sob uma forma nova, simbólica e mais vasta. Desta vez, ela não ficará
em projeto apenas, como da outra. Quando me lembro disso, fico sempre aborrecido.

Com os melhores augúrios, seu fiel

FRATER FREDERICUS

De 23 de dezembro a l.o de janeiro, estarei em Triebschen, perto de Lucerna.

Em 22 de dezembro, Nietzsche deixou Basiléia, sem ter ainda recebido resposta de Rohde. Encontrou a casa
de Triebschen animada e cheia" de alegria com a brincadeira das crianças e os preparativos para o Natal. A senhora
Wagner deu-lhe um volume de Sthendal, Os passeios em Roma, e Ele ofereceu a Wagner a água-forte de Durer, O
Cavaleiro, o Cão e a Morte, sobre o qual fizera um comentário no livro que preparava então: A Origem da Tragédia
— "Um espírito que se sente isolado — escrevera Ele — desesperadamente solitário, não poderia escolher um
símbolo melhor do que este cavaleiro de Durer que, sozinho, com seu cavalo e seu cão, prossegue impassível o
caminho tenebroso, sem se inquietar com seus horríveis companheiros, e, no entanto, sem nenhuma esperança.
Nosso Schopenhauer foi esse cavaleiro de Durer. Faltava-lhe toda a esperança, mas desejava a verdade. Não existe
um outro como Ele."

Nietzsche teria sido feliz na casa do mestre, se não estivesse esperando a resposta de Rohde. Essa espera
mortificava-o. Ficou em Triebschen durante oito dias. Wagner não se cansou de falar de Bayreuth e de seus vastos
projetos. Nietzsche, igualmente, falaria de boa vontade sobre seu pensamento. Mas queria, antes, receber a opinião
do seu amigo, e essa opinião não chegava nunca. Partiu, enfim, sem nada haver recebido, e sem nada dizer.

Em Basiléia, afinal, teve a resposta tão longamente esperada: resposta honesta, afetuosa, mas negativa:

"Você me disse que os claustros são necessários hoje, e -eu o creio. Mas trata-se de uma dessas
necessidades para as quais não há remédio algum. Conseguiríamos dinheiro? E mesmo que o conseguíssemos, não
sei se eu o acompanharia. Não sinto em mim uma força criadora que me torne digno dessa solidão com que você me
acena. Para um Schopenhauer, um Beethoven, um Wagner, já não é o mesmo; nem para você, caro amigo. Mas
desde que é de mim que se trata — não. Espero uma vida diferente. Entretenhamos, no entanto, isso sim, o desejo de
um tal isolamento, entre alguns amigos, num claustro das Musas. Privados de estímulo, que seria de nós?"

Se Rohde se recusava a segui-lo, quem o seguiria? Não escreveu mais seu adhortatio. Romundt não foi
prevenido e parece que nem mesmo Wagner veio a saber de coisa alguma.

Sem queixas vãs, Nietzsche tratou de elaborar sozinho aquelas verdades revolucionárias para as quais
quisera conseguir um nascimento menos difícil. Deu as costas à Alemanha, a esses Estados modernos que animam a
servidão, atenuam os conflitos e dão-se a missão de favorecer a preguiça dos homens. Considera, novamente a
Grécia primitiva, a cidade do VII e VI séculos; uma misteriosa atração leva-o sempre para aí. Será a sedução duma
beleza perfeita?

Sem dúvida, é também a sedução dessa força e dessa crueldade que os modernos escondem como taras, e
que os velhos helenos exerciam com alegria. Nietzsche admira a força: nos campos de batalha de Metz Ele sentira
perfeitamente esse gosto e esse instinto.

"Se o gênio e a arte São os últimos fins da cultura helênica — escreveu ele — todas as formas da sociedade
helênica nos devem aparecer como mecanismo necessários e como cotas para esse último fim. Procuremos saber de
que meios se utiliza a vontade de arte que anima os helenos..." Ele discerne, então, e aponta um desses meios: a
escravatura. "Frederico-Augusto Wolf — nota ele — demonstrou que a escravatura é necessária à cultura. Esse é um
dos fortes pensamentos de meu predecessor. Aqueles que vieram em seguida foram muito fracos para poder segui-
lo." Nietzsche seguiu esse pensamento, espremeu-o e dele extraiu todo o seu sentido. Essa idéia subitamente
descoberta, inspira-o: é profunda e agita-o todo; é cruel, quase monstruosa, e satisfaz seu gosto romântico. Freme
diante dela é "adora sua beleza sombria.

Pode ser que este conhecimento nos encha de horror — escreve — mas tal horror é o efeito quase
necessário de todo o conhecimento mais profundo. Porque a Natureza permanece sempre algo espantosa, mesmo
quando se dedica a criar as suas mais belas formas. Ela é feita de tal modo que a cultura, em sua marcha triunfal,
não beneficia senão uma ínfima minoria de mortais privilegiados — e é necessário, se se deseja atingir o pleno de-
senvolvimento da arte, que as massas permaneçam escravas.

Nós, os modernos, temos o costume de opor aos gregos dois princípios, um e outro inventados para justi-
ficar uma sociedade perfeitamente servil e que não pode ouvir falar em "escravatura" sem horror e ansiedade:
falamos da "dignidade do homem" e da "indignidade

"i do trabalho".

A linguagem dos gregos é outra. Eles declaram, com simplicidade, que o trabalho é uma vergonha — pois
é impossível que um homem ocupado com a necessidade de ganhar a vida, venha a ser, jamais, um artista. Con-
cluímos, pois, por esta verdade, aparentemente cruel: a escravatura é necessária à cultura, verdade que
seguramente não deixa dúvida alguma sobre o valor absoluto do ser. É o abutre devorando o fígado do filho de
Prometeu, a artesão da cultura. A miséria dos homens que vivem na penúria, deve ser feita mais rigorosa ainda*
para que um número mínimo de homens olímpicos possa criar um mundo de arte. À sua custa, e como os resul tados
de um trabalho não remunerado, a classe privilegiada deve ser subtraída à luta pela vida e posta em condições de
criar e de satisfazer uma nova ordem de necessidades. E se é certo que os gregos foram destruídos pela escravidão,
é mais certa ainda esta outra afirmação: a falta de escravatura será a causa da destruição de nossa época.

Qual, porém, a origem da instituição da escravatura? Como se obteve a submissão do escravo, "toupeira
cega da cultura"? Os próprios gregos no-lo ensinam, responde Nietzsche r "Os vencidos pertencem ao vencedor —
dizem eles — com suas mulheres, filhos, seus bens e seu sangue. A força dá o primeiro "direito", e não existe direito
algum que não seja, no fundo, apropriação, usurpação, poder." Desta maneira, o pensamento de Nietzsche é
novamente conduzido para o seu objeto primitivo. A guerra o havia inspirado a princípio, e torna a encontrá-la. Ela é
que forneceu o escravo. Na dor e na tragédia, os homens inventaram a beleza. É preciso submergi-los e mantê-los na
dor e na tragédia, para conservar neles o sentido da beleza. Em páginas que têm o sabor e o ritmo de um hino,
Frederico Nietzsche glorifica e invoca a guerra:

Eis aqui o Estado de vergonhoso nascimento para a maior parte dos homens, fonte de penas jamais extinta,
chama que os consome em suas freqüentes crises. E, não obstante, nossas almas tudo esquecem à sua voz; à sua
sangrenta chamada ás multidões se agitam e se elevam até ao heroísmo. Sim, o objeto mais alto e venerável, para as
massas cegas, é talvez o Estado, que, em suas horas formidáveis imprime em todos os rostos a singular expressão
da grandeza.

... Algum fio, alguma relação misteriosa existe entre o Estado e a Arte, a atividade política e a produção
artística, o campo de batalha e a obra de arte. Qual é o papel do Estado? É a tenaz de aço que mantém unida a
sociedade. Sem Estado, nas condições naturais — bellum omnium contra omnes — a sociedade continuaria
limitada pela família e não poderia projetar ao longe suas raízes. Pela instituição universal dos Estados, esse
instinto que determinara anteriormente o. bellum omnium contra omnes, concentrou-se. Em certas épocas, terríveis
nuvens de guerra se acumulam sobre os povos e se descarregam em suas cabeças, de um só golpe, com raios e
trovões, tanto mais fortes quanto mais raras são. Estás crises, porém, não são constantes. Entre uma e outra, a
sociedade toma alento. Regenerada pela ação da guerra, eis que começa a brotar por todas as partes, que
reverdece e, ao começar os bons dias, brotam em seus ramos os frutos deslumbrantes do gênio. Confesso que, se
deixando o mundo grego, examino o nosso, encontro nele sinais de abastardamento que me fazem temer pela
sociedade e pela arte. Certos homens, aos quais falta o sentido do Estado não o. querem servir, mas apenas servir-
se dele para seus fins pessoais. Não vêem nele nada de divino e, para o utilizarem de maneira segura e racional,
tomam cuidado a fim de evitar os choques guerreiros. Deliberadamente se esforçam para organizar as coisas de tal
sorte que a guerra seja impossível. Por uma parte, imaginam sistemas de equilíbrio europeu; por outra, se esforçam
em arrancar aos soberanos absolutos o direito de declarar a guerra, a fim de apelar mais comodamente para o
egoísmo das massas e dos que as representam. Sentem a necessidade de debilitar o sentimento monárquico dos
povos e debilitam-no na verdade, propagando a idéia liberal e otimista do mundo, que tem suas raízes nas doutrinas
do racionalismo francês e da Revolução, isto é, em uma filosofia completamente estranha ao espírito germânico; em
uma debilidade romana desprovida de sentido metafísico.

O movimento, hoje em dia triunfante, das nacionalidades e a extensão do sufrágio universal, paralela
àquele movimento, padecem-me determinados, sobretudo, pelo temor à guerra; e, atrás destas diversas agitações,
vejo aqueles que mais se comovem com este temor, os solitários da finança internacional que, naturalmente despro-
vidos de todo o instinto do Estado, subordinam a política, o Estado e a sociedade, aos fins do dinheiro e da
especulação.

Para evitar que o espírito da especulação de tal modo abastarde o espírito do Estado não há senão um
meio: a guerra e sempre a guerra. Na exaltação que ela provoca, se torna evidente aos homens que o Estado não se
fundou para proteger os egoístas contra o. demônio da guerra, mas ao contrário, o amor à pátria e. a fidelidade aos
príncipes ajudam a criar o impulso moral que é o sinal de um destino sempre mais alto... Não se considere, pois,
perigoso o fato de eu entoar aqui um hino à guerra. A ressonância de seu arco de prata é terrível. Chega até nós
sombria como a noite; não obstante, Apolo acompanha-a, Apoio, guia legítimo dos Estados, deus que os purifica...

Não o ocultemos, pois: a guerra é necessária ao Estado, como o escravo o é à sociedade. Ninguém poderá
furtar-se a estas conclusões se tiver lealmente investigado as causas daquela perfeição que a arte grega, e somente
ela, alcançou.

A guerra e sempre a guerra que exalta os povos... — tal é o grito do solitário. Apenas, porém, deixa de
escrever e começa à ouvir e a olhar em torno — adverte imediatamente o pendantesco império alemão, e suas
esperanças refluem; A, turbação de seu espírito se faz visível. Vacila, e num instante exprime a ilusão que persiste, e
a desilusão inevitável:

Eu poderia imaginar — escreve — que os alemães haviam deflagrado esta guerra para salvar do Louvre a
Vênus, segunda Elena. Esta seria a interpretação espiritual do seu combate. A bela rigidez antiga do ser inau-
gurado por esta guerra — é chegado o tempo de sermos graves — acreditamos ser este também o tempo da arte.

Continua escrevendo e seu pensamento se torna agora mais claro e mais triste:

Quando um Estado não pode alcançar seu mais elevado fim, cresce desmesuradamente. O império mundial
dos romanos nada tem de sublime diante de Atenas. Essa beleza que deveria ir toda para as flores, condensa-se
então nas folhas e nos talos, que se hipertrofiam.

Roma inquieta-o. Sem o menor amor por ela, julga-a como um opróbrio para a antigüidade. A cidade,
guerreira, mas sempre plebéia; vitoriosa, mas sempre grosseira — contradiz, de certo modo, suas idéias. "Roma —
escreve — é o Estado típico: a vontade não pode alcançar nele seus nobres fins. A organização é mais vigorosa, a
moralidade, mais pesada. .. quem pode venerar este colosso?"

Quem pode venerar este colosso? Se dermos a estas palavras uma aplicação moderna e urgente, veremos
que o colosso não é Roma, e sim a Prússia e seu império. Restrito foi o território de Atenas ou da Lacedemônia, e
breve o tempo de sua duração. Mas, que importa, se o fim, que é a força e a beleza das almas — foi alcançado !
Frederico Nietzsche sente-se dominado por essa visão da Grécia das cem cidades rivais, erguendo, entre as
montanhas e o mar, suas acrópoles, seus templos, suas estátuas, ressoando ao ritmo dos cânticos, gloriosa e exaltada.
"O sentimento do helenismo — escreve ele — assim que se desperta torna-se agressivo e se traduz num combate
contra a cultura atual."

Frederico Nietzsche sofre com estas feridas que a vida inflige a seu sonho lírico. Seus amigos ouvem-no,
mas não conseguem segui-lo, O professor Franz Overbeck, que mora na sua casa e que o vê diariamente, é um
espírito de escola, firme e penetrante. Alemão por nascimento e francês por educação, compreende os problemas
do momento e associa-se às inquietações e intenções de Nietzsche, mas não consegue igualá-lo em ardor. Jacob
Burckhardt, é grande pela inteligência e pelo caráter, mas não espera nada, ao passo que Nietzsche tem a paixão de
esperar. Ali está Wagner, sem dúvida, que jamais desconcerta a paixão nem a esperança; mas. acaba de publicar uma
"bufonaria aristofanesca" sobre os parisienses vencidos; a obra é grosseira. Frederico Nietzsche lê-a e censura-a.
Overbeck e Burckhardt carecem de ardor e Wagner de delicadeza. Nietzsche não se confia a ninguém.

Acabava de vagar uma cadeira de filosofia na Universidade de Basiléia. Entusiasmado, Nietzsche escreve a
Erwin Rohde para que se candidate a essa cadeira, pois que seguramente a conseguirá e os dois amigos poderão
enfim encontrar-se novamente. Esperança demasiado bela e vã. Erwin Rohde apresenta-se candidato, mas não é
aceito, e Nietzsche censura-se por havê-lo feito alimentar uma falsa esperança, e desespera-se. Sente-se arrastado
"como um pequeno torvelinho em um mar morto de noite e de olvido."

Ele nunca se repusera inteiramente das provas sofridas durante a guerra, pois não havia recuperado o sono
nem a saúde despreocupados e seguros. Sustinha-o uma certa força nervosa que em fevereiro lhe falta
repentinamente, e as desordens surdas tomam uma forma aguda. De que natureza seriam as crises que, havia cinco
meses, o vinham atormentando? Violentas nevralgias, insônias, desordens e debilidade da vista, dores no estômago,
ictericia. Os médicos, sem compreender do que se tratava, aconselharam uma viagem de repouso. Frederico
Nietzsche chamou sua irmã, que foi buscá-lo em Naumburg. Foi com ela fazer uma visita de despedida a Triebschen
e partiu para Lugano.

Naquele tempo, a estrada de ferro não atravessava os Alpes; passava-se o São Gotardo em diligência. O
acaso deu a Nietzsche um estranho companheiro, homem de idade, conversado, e que se deu a conhecer: era
Mazzini. O velho humanitarista e o jovem escravista entenderam-se muito bem: um e outro tinham temperamento
heróico. Mazzini citou uma frase de Goethe: "Nada de transigir. É preciso viver resolutamente, na integridade, na
plenitude e na beleza. Sich des halben zu entwohnen und im Ganzen, Vollen, Schönen, resolut zu leben". Jamais
Frederico Nietzsche olvidou essa enérgica máxima, nem ao homem que a havia citado, nem àquela viagem rápida e
saudável, não longe dos cumes que mais tarde tanto viria a amar.

Chegou a Lugano quase curado. A formosa travessia da montanha, entre a neve e o silêncio alpinos, fora
suficiente. Sua natureza era, ainda, ágil e juvenil; voltava à vida de maneira rápida e radiante e Uma ingênua alegria
reavivava todo o seu ser. Passou dois ditosos meses na Suíça italiana. Um oficial prussiano, parente do general
Moltke, habitava no mesmo hotel. Nietzsche emprestou-lhe seus manuscritos e lhe falava freqüentemente sobre os
destinos do novo império alemão e da missão aristocrática e guerreira que lhe conferia a vitória. Os alemães que
tinham ido repousar naquela primavera tão gloriosa para eles, eram numerosos e todos se reuniam com satisfação
;em torno do jovem, filósofo, para ouvi-lo.

Começava fevereiro; a guerra terminava, e as pessoas, livres de inquietação se abandonavam, pela primeira
vez ao prazer do triunfo. Cantavam, dançavam, até mesmo em público, na praça do mercado, e Nietzsche não era o
mais lerdo em regozijar-se com elas, cantando e dançando também.

"Quando me recordo daquilo — escreve a senhora Föster Nietzsche, que faz uma graciosa e triste descrição
daqueles dias — me parece que vivo um verdadeiro sonho de carnaval."

De Lugano, Frederico Nietzsche escreve a Erwin Rohde:

Meu estado de ânimo deixa freqüentemente muito a desejar. No entanto, a inspiração voltou mais de ama
vez, e meu manuscrito aproveitou com isso. Abandonei resolutamente a filologia. Podem elogiar-me, censurar-me
ou prometer-me as mais altas honras — digam o que disserem, repudio-a. Cada dia penetro mais um pouco
no meu domínio filosófico, e começo a acreditar em mim.

Mais ainda: se tiver que ser poeta algum dia, desde já me sinto disposto a sê-lo. Não sei, não tenho meio
algum para saber até onde me orienta o meu destino, e, no entanto, quando me examino, tudo se toma harmonioso
em mim, como se me houvesse orientado um gênio bom, Meus fins me são singularmente desconhecidos; nenhuma
preocupação de função ou de honraria hierárquica orienta os meus esforços, mas nem por isso deixo de viver num
surpreendente estado de clareza e serenidade. Que impressão esta, de ver o seu mundo diante de si — um formoso
globo, redondo e completo! Tão depressa é um fragmento de uma nova metafísica, como uma nova estética, o que
germina em mim; em seguida, outra idéia me reclama, um novo princípio de educação, que impli ca no abandono
completo de nossas Universidades e ginásios. Não concebo nenhum fato sem encontrar, em seguida, um recanto, um
bom lugar já há muito preparado para o receber. Este sentimento de um mundo interior que cresce em mim,
experimento-o em toda a sua força quando penso* não com frieza, mas tranqüilamente e sem exagerado
entusiasmo, na história destes dez últimos meses, nestes acontecimentos que considero como instrumentos para os
meus desígnios. Orgulho, ou loucura, são palavras débeis para o meu estado de "insônia" mental.

Ah! como desejo a saúde! Quando alguém se impõe uma tarefa destinada a durar mais que ele próprio —
que gratidão se sente por uma boa noite, por um tíbio raio de sol e até mesmo por uma digestão normal!

Em 10 de abril, Nietzsche está de regresso a Basiléia. Reúne e relê, pela última vez, suas notas e fixa o
plano definitivo de sua obra. Deixa de lado suas meditações sobre a guerra, a escravidão e a cidade, das quais
reproduzimos alguns trechos e (Wagner desejava-o, segundo dizem) limita-se ao seu primeiro tema: a tragédia
antiga, modelo e precursora do drama musical alemão. O conselho de Wagner, insinua a senhora Förster-Nietzsche,
não foi de todo desinteressado; convinha-lhe que a primeira obra de seu discípulo fosse consa grada à sua glória. Isto
é verossímil; no entanto, parece que Nietzsche se deixara dominar e seduzir por demasiadas idéias e que, além de
acumular matéria para um livro, entretivera-se, um pouco ao acaso, em alinhavar uma série de estudos de estética,
história e política. Tinha, forçosamente que se limitar, e não sé decidia a fazê-lo. Se Wagner o induziu a isso, fez
bem. Talvez a ele devamos a feliz conclusão deste livro, único verdadeiro que Nietzsche completava.

Que dirá Nietzsche neste livro? Analisará a origem e a essência do lirismo helênico, e oporá a Grécia de
Esquilo, trágica e conquistadora, embriagada por seus mitos e cantos dionisíacos, cheia de ilusões — à Grécia
socrática, alexandrina, ímpia, argumentadora e exangue; corruptora, ao morrer, dos povos que haviam permanecido
puros em torno, do sangue puro da primeira humanidade. Em seguida, focalizará as duas Alemanhas que igualmente
se enfrentam: a Alemanha dos democratas e dos sábios, e a Alemanha dos soldados e dos poetas. É preciso encolher
entre elas. Nietzsche declara sua escolha: devendo a Wagner toda a serenidade do seu pensamento e todas as suas
alegrias, designa-o a seus compatriotas. Enquanto em Frankfurt se assina a paz entre as duas nações, Frederico
Nietzsche, "estabelecendo, igualmente, a paz consigo mesmo", termina os primeiros rascunhos de sua obra, não sem
observar a coincidência das datas, pois os conflitos interiores e as revoluções de seu pensamento não lhe parecem
acontecimentos menos importantes do que os conflitos exteriores e as revoluções das raças.

A paz, porém, não solucionou todos os conflitos daquele terrível ano, e os franceses começaram uma guerra
civil, catástrofe que emocionou a Europa mais profundamente ainda que Froeschwiller e Sedan. Na manhã de 23 de
maio, os jornais de Basiléia anunciaram a destruição de Paris e o incêndio do Louvre. Nietzsche tomou
conhecimento desta notícia com um sentimento de espanto. As mais belas obras, as flores do trabalho humano,
haviam sido destruídas. Mãos humana, tini povo desgraçado havia ousado cometer essa profanação.
Deste modo, todos os temores de Nietzsche se viam confirmados. Sem hierarquia e sem disciplina,
escrevera ele, não pode subsistir a cultura. Nem todos têm direito de participar da beleza; a imensa maioria deve
viver humildemente, trabalhando para seus amos e respeitando suas vidas. Tal é a economia que garante a força das
sociedades, e, em recompensa de sua" força, a delicadeza, a graça e a beleza. Tal é a ordem que a Europa vacila em
manter. Frederico Nietzsche podia sentir-se triunfante, mas nem sequer lhe ocorreu essa idéia. Com verdadeiro
espanto media sua clarividência, sua solidão e sua responsabilidade. De repente, pensou em Jacob Burckhardt: que
imensa devia ser a sua tristeza: Teve desejo de vê-lo, falar-lhe, ouvi-lo, fazer sua a desolação do amigo. Correu a sua
casa, mas não o encontrou. Apesar da hora matinal, Burckhardt havia saído. Nietzsche percorreu as ruas como um
desesperado. Finalmente, voltou a casa. Jacob Burckhardt esperava-o em seu gabinete de trabalho. Enquanto
Nietzsche andava à sua procura, ele andava à procura de Nietzsche. Os dois homens permaneceram muito tempo
juntos e a senhorita Nietzsche, que havia permanecido só na sala vizinha, ouvia os seus soluços através da porta.

Confessemos — escreve Nietzsche a seu amigo, o barão de Gersdorff — que todos nós, com nosso
passado, somos responsáveis pelos horrores que nos ameaçam atualmente. Cometeríamos um erro se
considerássemos com tranqüilidade o desencadeamento de uma guerra contra a cultura e se apenas culpássemos
por isso os desgraçados que a fazem. Quando soube dos incêndios de Paris permaneci verdadeiramente oprimido
durante vários dias, perdida em lágrimas e em dúvidas. A vida científica, filosófica e artística me pareceu um
absurdo, pois via como um único dia era suficiente para destruir ás obras de arte mais belas — que digo? —
destruir i períodos inteiros de arte. Deplorei profundamente que o valor metafísico da arte não se possa manifestar
à populaça. Existe, porém, ainda uma missão mais alta a cumprir. Jamais, por mais viva que fosse a minha dor,
atiraria eu a primeira pedra a esses sacrílegos que não são, a meus olhos, senão os portadores da culpa de todos,
culpa sobre a qual muito há que pensar...

Nas notas autobiográficas escritas em 1878 lêem-se estas palavras: "A guerra. Minha dor mais profunda: o
incêndio do Louvre."

Frederico Nietzsche havia voltado a seus antigos costumes; quase todas as semanas era hóspede dos
Wagner. Não demorou, porém, em perceber que Triebschcn havia mudado depois da vitória alemã. Demasiados
amigos formigavam agora em torno da casa do mestre. Demasiados desconhecidos ocupavam a mansão cuja
simplicidade ele tanto amara. Estas pessoas falavam e discutiam animadamente; nem todos eram como Nietzsche
teria gostado, mas, apesar disso, Wagner falava e discutia animadamente com todos. Julgando chegado o momento
oportuno, havia decidido empreender a campanha para que a Alemanha construísse, enfim, a sala de que ne cessitava,
o teatro, ou o templo de Bayreuth.

Frederico Nietzsche ouvia e tomava parte nas discussões com um ardor inquieto. A idéia de Wagner
exaltava-o, mas sua alma de solitário não deixava de sentir-se mal e às vezes ferida por aquele tumulto mundano que
era preciso tolerar. Wagner não sofria. Ao contrário, parecia engrandecido pela alegria de sentir a multidão mais
perto dele. E Nietzsche, um pouco surpreendido, um pouco desiludido, procurava seu herói e não voltava a encontrá-
lo tal como ele fora antes.

"Guiar o povo — havia ele escrito nos seus cadernos de estudante — é colocar paixões ao serviço de uma
idéia." Wagner acomodava-se a esse trabalho. A serviço de sua arte e de sua glória, aceitava todas as paixões.
Patrioteiro com os patrioteiros, idealista com os idealistas, francófobo até onde se quisesse; para estes, restaurador da
tragédia esquiliana; para aqueles, reanimador dos antigos mitos germanos; pessimista de bom grado e cristão, se
assim o desejavam. Por outro lado, sincero a cada minuto, este ser prodigioso, tão grande con dutor de homens como
grande poeta, manejava habilmente sua pátria.

Ninguém resistia ao seu impulso: não havia outro remédio senão ceder e segui-lo. Resolvia até os mais
ínfimos detalhes dos planos do teatro cujo local acabava de ser escolhido. Estudava a organização prática da obra, e
trabalhava na criação dos Vereine, em que se deviam agrupar propagandistas e subscritores. Sabia proporcionar aos
seus fiéis alegrias raras e inesperadas: um dia surpreendeu-os fazendo executar para eles Unicamente, nos jardins de
Triebschen, o Siegfried-Idyll, gracioso "intermezzo" composto para comemorar o feliz parto de sua esposa, belo eco
dos tempos mais íntimos. Como é natural, distribuiu um papel a Nietzsche, pois era necessário que aquela voz,
fogosa e difícil de se conter, eloqüente, porém não se perdesse. O jovem oferecia-se para realizar uma viagem de
propaganda pelo norte da Alemanha, que demorava a se entusiasmar. Sua proposta não foi aceita, decerto porque
Wagner receava a violência da sua palavra: "Não disse ele — termine e publique o seu livro." Isto causou n
Nietzsche certa tristeza, e parece que, desde aquele momento, começaram as divergências entre os dois artistas.

Por outra parte, o conselho do mestre não era tão fácil do ser seguido como o parecia. A Origem da
Tragédia não, encontrou editor. Frederico Nietzsche fez diversas tentativas que não deram resultado, e seu
veraneio foi entristecido por esse fracasso. Em vista disso, decidiu-se a publicar alguns capítulos em revistas. "Dou o
meu livro ao mundo pedaço a pedaço — escreveu, em julho, a Erwin Rohde; — que tortura, um parto semelhante!"

Em meados de outubro, vai passar uma temporada em Leipzig. Torna a ser seu mestre Ritschl e seus amigos
Rohde e Gersdorff, que haviam atendido a seu convite, e com eles passa alguns agradáveis dias de conversação e
companhia. No entanto, a sorte de seu livro continua incerta; todos os editores de ciência e de filologia livram-se
cortesmente do autor, não se sentindo tentados por aquela estranha obra em que a erudição se amálgama ao lirismo, e
os problemas da mais: antiga Grécia aos da mais recente Alemanha. "É um livro centauro", diz Frederico Nietzsche.
Esta segurança mítica não satisfaz aos comerciantes de livros. Finalmente, e não sem pesar pois sustenta que seu
livro é uma obra científica, vê-se obrigado a se dirigir ao editor de Richard Wagner, e, ao cabo de um mês recebe
resposta favorável. Comunica imediatamente a notícia ao seu amigo Gersdorff, num tal tom de alívio que permite
medir o que ele sofreu:

Basiléia, 19 de novembro de 1871.

Perdão, meu querido amigo. Devia ter-lhe agradecido muito antes. Na sua última carta, em cada uma dás
palavras eu sentia a sua forte vida espiritual; parecia-me que você continuava sendo soldado na alma e que levava
a arte e á filosofia em seu temperamento militar. Isso é bom. Não temos hoje nenhum direito de viver se não formos
militantes, militantes que preparam um saeculum futuro do qual algo podemos adivinhar em nós mesmos em nossos
melhores momentos, pois estes momentos, que são o melhor que há em nós, nos afastam do espírito de nosso tempo,
no entanto devem ter, em alguma parte, não importa em que forma, seu lugar, de onde deduzo que nesses momentos
sentimos passar sobre nós um suspiro confuso dos tempos que se avizinham. Nosso último encontro em Leipzig, não
deixou em seu espírito a impressão de serem aqueles momentos estranhos a tudo e ligados a outro saeculum? Seja
como for, isto fica: Im Ganzen, Vollen, Schõnen, resolut zu leben! Mas, para isso é preciso uma vontade forte, não
concedida ao primeiro a chegar ... Até hoje, Fritszch, o excelente editor, não me respondeu...

Fritszch lhe propõe dar ao seu livro o formato e o tipo de uma recente obra de Wagner: Die Bestimmung der
Oper. Nietzsche se alegra com isso, e escreve cinco últimos capítulos que acentuam a tendência wagneriana da obra.
Esta rápida conclusão e a correção das provas não o distraem, no entanto, de outra empresa.

A Origem da Tragédia vai aparecer. Nietzsche está seguro de que vai ser lida, compreendida e aclamada.
Seus companheiros e professores sempre se inclinaram diante da força do seu pensamento. Parece nem lhe passar
pela cabeça que um público mais vasto poderá permanecer insensível. Quer chegar de um só golpe ao fundo dele, e
faz novos projetos para tirar de seu êxito todas as vantagens possíveis. Deseja falar, pois que a palavra é uma arma
mais viva, e recorda as impressões que experimentou quando, no início de sua carreira de professor, lhe foi confiada
a singular tarefa de ensinar o idioma mais delicado e as obras mais difíceis a ocasionais auditórios. Recorda o seu
desígnio, talvez quimérico, de fundar aquele seminário de filólogos, aquela casa de estudo e de retiro, com a qual
ainda sonha. Deseja denunciar as escolas, os ginásios, as Universidades, pesado aparelhamento de pedantismo que
afoga o espírito alemão, e definir as novas e necessárias instituições destinadas não já à emancipação das massas,
mas à cultura das "elites". Já em março escrevera a Erwin Rohde: "Uma idéia nova me prende, um novo princípio de
educação que implica a dissolução total de nossas Universidades e ginásios." Em dezembro anuncia em Basiléia,
para janeiro de 1872, uma série de conferências sobre "o futuro de nossas instituições culturais."

Em meados de dezembro acompanha Richard Wagner a Mannheim, onde se realizava uma festa de dois
dias dedicada às obras do Mestre.

Ah! Pena que você não tenha estado lá — escreve d Erwin Rohde. — Que são, comparadas a estás, todas
as recordações, todas as sensações da arte? Sinto-me como um homem cujo ideal se realiza. Isso, e só isto é música!
Quando digo a mim mesmo certo número de homens da geração que nos seguirem — algumas centenas deles, pelo
menos — se sentirão emocionados por esta música, como eu próprio me sinto, não posso augurar nada menos que
uma total renovação da nossa cultura!

Regressou a sua casa de Basiléia ainda sob a impressão daqueles dias de Mannheim. Os detalhes da sua vida
cotidiana causavam-lhe uma estranha e tenaz repugnância. "Tudo o que não se pode reduzir a música — escreve —
me repugna e repele... Tenho horror à realidade; para dizer a verdade, não vejo nela nada de real — tudo é simples
fantasmagoria." Animado por essa emoção, adquiriu uma idéia mais clara do problema que o preocupava, e formulou
mais claramente O princípio que procurava.

"Ensinar e educar os homens... que quer dizer isso? Quer dizer: dispor seus espíritos de tal modo que as
obras do gênio estejam garantidas, senão de ser compreendidas por todos, o que é impossível, ser ao menos por
todos respeitadas."...

Como nos anos anteriores, Richard e Cosima "Wagner convidaram-no a passar o Natal em Triebschen, mas
como estava inteiramente absorvido no trabalho de preparar suas conferências, desculpou-se, oferecendo a Cosima
Wagner, a pretexto de escusas e homenagem, uma fantasia musical sobre a noite de São Silvestre, composta poucas
semanas antes. "Estou impaciente por saber o que vão pensar dela — escreve a Rohde. — Não fui jamais julgado por
uma pessoa competente." Em realidade, vários bons juizes no assunto haviam-no desencorajado de continuar em
suas tentativas musicais, mas ele bem depressa esquecia aqueles pareceres contrários.

No último dia de 1871 apareceu seu livro Die Géburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik (A Origem da
Tragédia segundo o espírito da Música). O subtítulo que aparece nas edições atuais: Helenismo e Pessimismo, foi
acrescentado em 1885, na segunda edição. Frederico Nietzsche enviou o primeiro exemplar a Richard Wagner, e
quase imediatamente recebeu dele uma carta delirante:

Querido amigo!

Jamais li um livro tão belo como o seu! Tudo nele é magnífico! Estou escrevendo muito depressa, porque a
leitura me emocionou profundamente, e espero recobrar o sangue frio para relê-lo com método. Disse a Cosima:
Depois de você é a ele que eu mais quero, e, depois, mas muito menos, quero a Lembach, que fez um retrato meu,
tão admirável e tão verdadeiro... Adeus. Venha ver-nos o mais depressa que possa!

Seu

R. W.

E, em 10 de janeiro, Wagner escreve novamente:

Você acabou de publicar um livro que é incomparável. Todas as influências que você possa ter sofrido fi-
cam reduzidas a nada pelo caráter do seu livro. O que o distingue de qualquer outro é a absoluta segurança com
que se manifesta a penetrante individualidade. Desta ".. maneira você satisfaz o ardente desejo meu e de minha
esposa: por fim, uma voz estranha falou de nós com a nossa plena aprovação! Lemos o seu livro duas vezes, da
primeira à última linha — separadamente durante o di° e unidos à noite — e nos lamentamos de não ter à nossa
disposição o segundo exemplar que nos prometeu. Travamos verdadeiros combates em torno deste único exemplar.
Preciso dele constantemente; entre o almoço e a hora do trabalho é ele quem me põe em boa disposição, pois que,
após a sua leitura, voltei a trabalhar no meu último ato. A leitura, comum ou separada, é constantemente
interrompida pelas nossas exclamações. Não me

livrei, ainda, da emoção experimentada. E é este o estado em que nos encontramos.

E Cosima Wagner escrevia: "Oh, que belo é o seu livro! Que belo e profundo! Que profundo e
audacioso!"

Em 16 de janeiro, Nietzsche pronuncia à sua primeira conferência. Sua alegria e segurança são extremas.
Sabe que Jacob Burckhardt o lê e aprova; sabe que Rohde, Gersdorff e Overbeck o admiram.

—"O que me escrevem sobre o meu livro é incrível — escreve ele a um amigo. — Contraí uma aliança com
Wagner. É impossível que você possa imaginar até que ponto estamos ambos ligados, e nem quanto semelhantes são
nossos pontos de vista."

Ele não demora a conceber uma segunda obra, aproveitando as conferências. Será um livro popular, uma
tradução esotérica da Tragédia. Mas sobrevém, em seguida, a idéia de uma ação ainda mais decisiva. A Alemanha
prepara-se para inaugurar a Universidade de Estrasburgo. Esta apoteose de professores sobre um solo conquistado
pelos soldados, deixa Frederico Nietzsche indignado. Pensa em dirigir a Bismarck um folheto "sob a forma de uma
interpelação no Reichstag." Têm os nossos pedantes — perguntará ele — o direito de se irem pavonear em
Estrasburgo? Nossos soldados venceram os soldados franceses, e isto é glorioso. Mas humilhou nossa cultura a
cultura francesa? Quem se atreverá a dizê-lo?

Passam alguns dias. De onde provirá o tom menos seguro de suas cartas? Porque não escreve sua
interpelação e abandona a idéia? Não é difícil imaginar: salvo uns poucos amigos que compreenderam seu livro,
ninguém o lê, ninguém o compra; nem uma revista, nem um jornal se digna fazer referências a ele. Ritschl, o
professor de Leipzig, permaneceu silencioso. Frederico Nietzsche escreve-lhe: "quero conhecer a sua opinião", e
recebe, em resposta, uma crítica severa e uma censura. Erwin Rohde manda um artigo à Literárisches Centralblatt,
que não o publica.

"Era esta a última probabilidade de que uma voz séria se levantasse a meu favor numa publicação científica
— escreve a Gersdorff; — agora", espero unicamente maldades ou asneiras. Espero, porém, que o meu livro abra
lentamente um caminho através dos séculos, como já lhe disse com absoluta convicção, pois que aparecem nele,
ditas pela primeira vez, certas verdades eternas, e necessariamente terão ressonância..."

Frederico Nietzsche havia previsto tão pouco essa falta de êxito que se assombra e desconcerta. Uma
doença da garganta obriga-o a interromper suas conferências, mas este contratempo alegra-o. Havia-se deixado
arrastar por idéias muito alias e delicadas, difíceis até mesmo para ele próprio. Desejava demonstrar que era
preciso instituir duas classes de escolas: profissionais para a grande maioria, e clássicas e verdadeiramente superiores
para um limitado número de alunos, indivíduos escolhidos, cujos estudos continuariam até aos trinta anos. Como
formar e instruir esta "elite" isolada, retirada do comum dos homens? Deste modo tornava Nietzsche a encontrar o
seu mais familiar e íntimo pensamento, aquele ideal aristocrático a que sempre o conduziam as suas meditações.
Havia estudado com freqüência os seus problemas, mas, para os expor em público, necessitava de toda a sua força e
de um auditório" confiante. Sentia-se diminuído pelo pouco êxito do seu livro. A indisposição, muito ligeira, durou
pouco, mas ele não continuou as conferências. Em vão lhe pediram que continuasse. Negou-se terminantemente. Em
vão, também, instaram com ele para que as mandasse imprimir, e todos Os rogos de Wagner foram inúteis. Nietzsche
mostrou-se irredutível. Suas notas chegaram até nós incompletas e numa lamentável desordem. São os ecos e
vestígios de um sonho:

A aristocracia do espírito deve conquistar a sua completa liberdade ante o Estado, que tem hoje em suas
mãos as rédeas da ciência.

Mais tarde os homens se encarregarão de construir ás tábuas da nova cultura___ então, destruição dos
ginásios e das universidades... um areópago para a justiça do espírito.

A cultura próxima: sua idéia dos problemas sociais. O mundo imperativo do belo e do sublime... único
meio de salvação contra o socialismo...,

E, no final, estas três palavras interrogativas, melancólicas e breves, que resumem suas dúvidas, seus
desejos e talvez sua obra inteira: Ist Veredlung moglich? — É possível o enobrecimento?

Frederico Nietzsche renuncia valorosamente à sua esperança, e cala-se. Perdeu sua pátria. A Prússia não
será a armadura invencível de uma raça lírica; o império alemão não realizará "o mundo imperativo do belo e do
sublime".

Em 30 de abril inaugura-se em Estrasburgo a nova Universidade. "Ouço daqui os seus clamores patrióticos"
— escreveu ele a Rohde.

Em janeiro, Nietzsche recusou o oferecimento que lhe fizeram de um emprego que o afastaria de Basiléia.
Em abril, fala de deixar Basiléia e de ir à Itália, passar dois ou três anos.

"Apareceu, por fim, a primeira nota falando de meu livro. — escreve — e pareceu-me muito boa. Mas
onde? Numa publicação italiana! A Revista Européia! Isto é agradável e simbólico."

76 DANIEL HALÉVY

Segunda causa de tristeza: Richard Wagner deixa Triebschen e vai instalar-se em Bayreuth. A partida é
anunciada numa carta de Cosima Wagner. "Sim, Bayreuth!:.. Adeus querido Triebschen, onde foi concebida A
Origem da Tragédia, e tantas outras coisas que talvez jamais recomecem!"

Três anos antes, na mesma estação primaveril, Nietzsche havia aventurado a sua primeira visita a
Triebschen; agora, deseja voltar ainda uma vez, e assim faz, encontrando a casa desolada. Alguns móveis cobertos,
dispersos, se assemelham a ruínas de outros tempos. Os objetos miúdos, os "bibelôs" familiares, desapareceram. A
luz; crua e dura, entra pelas janelas sem cortinas. Wagner e sua esposa acabam de arrumar as bagagens, atirando os
últimos livros às últimas cestas. Afinal, atendem-no para pedir-lhe que ajude, ao que ele logo acede. Ele mesmo
embrulha e arruma as cartas, os preciosos manuscritos, as partituras. De súbito, sente faltar-lhe coragem: assim, pois,
tudo acabou, e não haverá mais Triebschen... Três anos de sua vida... e que anos! — os mais inesperados, os mais
emocionantes, os mais deliciosos — desaparecem num dia! É preciso renunciar ao passado, e, sem pensar, seguir o
mestre. É preciso olvidar Triebschen e pensar somente em Bayreuth. Apenas se pronuncia, este nome mágico fascina
e perturba Nietzsche. As horas de Triebschen haviam sido tão formosas! Horas de trégua e de meditação, de trabalho
e de silêncio. Um homem e uma mulher de gênio, um acompanhamento infantil, um infinito de conversações de-
liciosas, de beleza — tudo isto Triebschen lhe havia dado. Que lhe daria Bayreuth? As multidões correrão para lá;
que trarão as multidões?

Frederico Nietzsche abandona os livros que estava embrulhando. O grande piano de cauda permanecia no
meio do salão. Abrindo-o, preludiou nele por alguns momentos, e, subitamente, pôs-se a improvisar.

E então, Cosima e Richard Wagner, deixando de trabalhar, ouviram. Uma inesquecível e pungente rapsódia
ressoou largamente no salão vazio. Era o adeus.

Em novembro de 1888, já vencido pela loucura, Frederico Nietzsche volta o pensamento para aquela época.
"Já que estou recordando — escreveu — os mais doces consolos de minha vida, devo expressar minha gratidão para
aquilo que foi por muito tempo a minha mais profunda e preciosa alegria: minha intimidade com Richard Wagner.
Faço justiça ao resto de minhas amizades; mas não posso, em absoluto, apagar de minha vida os dias de Triebschen,
dias de confiança, de felicidade, de sublimes instantes — de profundos Olhares, Ignoro o que Wagner terá sido para
os outros, mas, pelo nosso céu jamais passou uma nuvem.

IV

FREDERICO NIETZSCHE E RICHARD WAGNER

BAYREUTH

Estranho é o destino de Bayreuth. Esta pequena cidade alemã, por largo tempo ignorada, começa a brilhar
no século XVIII, até fazer-se célebre em toda a Europa; uma inteligente margravina, irmã de Frederico, o Grande,
amiga de Voltaire e da elegância francesa, ai mora e embeleza a cidade, alegrando seus desertos arredores com
vivendas em cujas fachadas aplica as singulares curvas do "rococó". A margravina morre, e Bayreuth recai no
olvido. Assim passa um século, até que, de repente, a glória volta à pequena cidade convertendo-a na Jerusalém de
uma arte e de um culto novos. Destino curioso, mas fictício, cujas antíteses foram ordenadas por um poeta. A história
de Bayreuth deve se contar entre as obras de Wagner.

Este queria instalar o seu teatro num lugar silencioso e retirado. Convinha-lhe não ir ao encontro dos seus
ouvintes, mas obrigá-los, ao contrário, a ir até ele. Entre muitos outros, escolheu este lugar; assim, se defrontariam as
duas Alemanhas: a do passado, afrancesada e mesquinha; e a outra, a sua, a do futuro, emancipada e inovadora. Os
trabalhos se iniciaram sem demora, e o compositor determinou que a primeira pedra do seu teatro fosse solenemente
colocada em 22 de maio de 1872 — aniversário do seu nascimento.

"Voltaremos a ver-nos! — escreve Nietzsche ao seu amigo Rohde. — Não é verdade que os nossos
encontros são cada vez mais grandiosos e mais históricos?"

Tendo vindo um de Basiléia e outro de Hamburgo, assistiram juntos à cerimônia. Duas mil pessoas se
haviam reunido na pequena cidade. O tempo estava péssimo, mas a constante chuva e o céu ameaçador deram à
cerimônia ainda maior grandiosidade. A arte de Wagner é grave e não precisa do sorriso do céu. Os seus
admiradores, ao ar livre, sob a borrasca, colocaram a primeira pedra. No bloco perfurado, Wagner colocou uma
composição em verso, escrita por ele mesmo, e imediatamente aplicou a primeira pá de cimento. À tarde, Ofereceu
aos seus_ amigos a execução da Sinfonia, com coros e cuja orquestração ele reforçara em algumas passagens. Ele
mesmo dirigiu a orquestra. A jovem Alemanha, reunida no teatro da Margravina, ouviu devotadamente esta obra à
qual o século XIX deu o seu "Credo", e, quando o coro final cantou: "Milhões de homens, abraçai-vos!" — parecia
realmente, disse um dos espectadores, que o milagre se realizava.

Ah, meu amigo! — escreveu Nietzsche. — Que dias vivemos! Ninguém nos poderá tirar estas santas e
graves recordações, Devemos avançar na vida inspiradas por elas e por elas lutando. Antes de mais nada devemos
esforçar-nos em regalar todos os nossos atos com a possível força e seriedade, a fim de provar que somos dignos
dos excepcionais acontecimentos em que nos achamos envolvidos.

Nietzsche queria lutar por Wagner, porque amava Wagner e gostava de lutar. "Ao canhão! ao canhão! —
escreve a Rohde. — Tenho necessidade de guerra, ich brauche den Krieg." Mas ele já verificara em numerosas
ocasiões, e tristemente começava a compreendê-lo, que seu temperamento não se acomodava bem às reticências e
prudências necessárias em um combate em que está em jogo a opinião pública. Em cada momento, as palavras ou os
gestos se chocavam com o seu idealismo radical.

Sentiu novamente aquele dissabor instintivo que já experimentara em Triebschen; Wagner inquietava-o.
Apenas conseguia reconhecer o herói grave e puro que tanto amara; via outro homem: um poderoso trabalhador,
brutal, vingativo e ciumento. Nietzsche havia pensado em dar um passeio pela Itália com um parente de
Mendelssohn, mas teve que renunciar a este projeto para satisfazer o mestre, que odiava a raça e até o nome dos
Mendelssohn.

"Por que será Wagner desconfiado? — escrevia Nietzsche em suas notas. — Isto excita a desconfiança." E
Wagner era tão autoritário como desconfiado. Eram raros, agora, os dias em que conversava a gosto com nobreza e
liberdade, como em Triebschen. Falava com brevidade, ordenava. Nietzsche oferecia-se constantemente para partir
para a Alemanha do norte, para falar, escrever, fundar os "Vereine" que pudesse e "fazer os sábios alemães meter o
nariz nas coisas que seus olhos tímidos não conseguiam ver". Wagner não aceitava estas ofertas, empenhando-se, em
troca, para que Nietzsche publicasse as suas conferências "Sobre o futuro de nossas instituições culturais". Nietzsche,
porém, resistia em satisfazer um desejo no qual ele adivinhava certo egoísmo.

"Este senhor Nietzsche não faz senão o que lhe dá na cabeça!" — exclamava Wagner, irritado, enquanto
fazia seu amigo sofrer esta cólera e a dupla humilhação que significava para ele e seu mestre. "Não tenho direito de
ser respeitado — pensava — estando, como estou atormentado pela doença e pelo trabalho? Estarei, acaso, sob as
ordens de alguém? Por que é Wagner tão tirânico?" E em suas notas escreve: "Wagner é incapaz de fazer grandes e
livres os homens que o rodeiam; não está seguro de si próprio; ao contrário, é altaneiro e receoso."

Por aquele tempo apareceu um folheto: A Filologia do Futuro, replica a F. Nietzsche. O autor era
Wilamowitz, que fora condiscípulo de Nietzsche na escola de Pforta. "Querido amigo — escreve este a
Gersdorff, que lhe anunciara o folheto — não se preocupe comigo: estou alerta. Jamais entabularei uma polêmica. É
pena que seja Wilamowitz. Sabe que no outono passado ele me fez uma visita de amigo?... Por que havia de ser
precisamente Wilamowitz?"

Ferido pelo próprio título da obra, A Filologia do Futuro, que parodiava sua famosa fórmula A Música do
futuro, Wagner escreveu uma réplica e aproveitou a oportunidade para reiterar a Nietzsche sua constante solicitude.
"Que se deve pensar de nossas instituições culturais? — concluía. — É ao senhor que compete nos dizer o que deve
ser a cultura alemã para conduzir a nação regenerada aos seus mais nobres destinos." Ainda nesta circunstância,
Nietzsche permaneceu firme em sua resolução. Estava pouco satisfeito com as suas conferências, descontente com
sua forma e incerto sobre sua própria idéia. "Não quero publicar nada — escreve — acerca do qual não tenha a
consciência pura como a de um anjo" e tratou de exprimir de outra maneira sua fé wagneriana.

Muito me agradaria — escreve ele a Rohde — escrever alguma coisa em favor de nossa causa, mas não
sei o quê. Tudo o que penso é tão ferino e irritante que, longe de servir, prejudicaria. Qual será o motivo de ter sido
o meu livro, tão ingênuo e entusiasta, tão mal recebido? Que estranhos são os homens! E agora? Que faremos?
Exclamação e interrogação.

E começou a escrever as "palavras de quem espera", Reden eines Hoffenden, que não tardou em deixar de
lado.

Frederico Nietzsche voltou a seus livros gregos, sempre belos e consoladores. Ante um escasso número de
alunos pois o mau renome da "Geburt" afastava dele os jovens filólogos, explicou as Coeforas de Esquilo e alguns
textos de filosofia anteriores a Platão. Através de vinte e cinco séculos uma luz admirável desceu sobre ele,
dissipando as dúvidas e as sombras. Ouvia freqüentemente com mau estar as palavras grandiloqüentes que seus
amigos wagnerianos empregavam com tão boa vontade. "Milhões de homens, abraçai-vos!", cantavam em Bayreuth
os coros ensinados por Wagner. Cantavam bem, é certo, mas os homens não queriam se abraçar, e Nietzsche
suspeitava que havia em tudo isso certa pompa e engano. Em troca, os antigos gregos, ambiciosos e maus, se
abraçam muito poucas vezes e seus hinos jamais falam destes abraços. A inveja e o desejo de dominar devoram-nos;
seus hinos exaltam essas paixões; Nietzsche admira sua energia ingênua e suas palavras exatas. Volta a beber nesta
fonte refrescante e escreve um curto ensaio, Homer´s Wettkampf (A Disputa Homérica). Desde as primeiras linhas
vemos que estamos muito longe, do misticismo wagneriano:

Quando se fala de humanidade, pensa-se numa ordem de sentimentos pelos quais o homem se distingue da
natureza e separa-se dela. Esta separação, porém, não existe. As qualidades chamadas "faturais" e as chamadas
"humanas", crescem juntas e misturadas. O homem, até nas suas mais nobres aspirações, continua marcado pela
sinistra natureza.
Estas temíveis tendências que até nos parecem inumanas, são, talvez, o solo fecundo que sustem a toda a
humanidade com suas inquietações, seus atos e suas obras.

E assim é que os gregos, os homens mais humanos que existiram jamais, permanecem cruéis e felizes na
destruição.

Este breve ensaio foi a ocupação de Nietzsche durante vários dias, até que iniciou um grande trabalho.
Estudou os textos de Tales, Pitágoras, Heráclito e Empédocles; procurou aproximar-se desses filósofos, realmente
dignos deste nome por eles inventado, mestres da vida, desdenhosos de disputas e de livros, cidadãos e pensadores ao
mesmo tempo e não desadaptados como os que os seguiram — Sócrates e sua irônica descendência e Platão e sua
descendência sonhadora; — filósofos que se atrevem a usar cada um a sua filosofia, quer dizer, um ponto de vista na
consideração das coisas e na deliberação dos atos. Em poucos dias encheu de notas um grande caderno.

Isto não o impediu, entretanto, de prestar a devida atenção aos êxitos do seu glorioso amigo. Em julho
representava-se Tristão, em Munich; foi ali que se encontrou com outros fiéis, entre eles Gersdorff e a senhorita
Meysenbug, a quem conhecera nas festas de maio em Bayreuth. Apesar de seus cinqüenta anos, a senhorita
Meysenbug conservava aquele encanto de ternura que não a abandonou nunca, e a graça física de um corpo delgado
e nervoso. Nietzsche passou com ela e seu amigo alguns agradáveis dias. Os três se sentiram pena lizados quando
chegou o momento da separação, e, em vez de dizerem adeus, quiseram dar-se uma esperança mútua de próximo
encontro. Gersdorff desejava regressar em agosto, para ouvir novamente Tristão. Nietzsche prometeu que também
iria, mas, no último instante, Gersdorff não pôde ir e Nietzsche não teve ânimo para voltar só a Munich. "É insu -
portável — escreveu ele à senhorita de Meysenbug — encontrar-se só e frente a frente com uma arte tão séria e
profunda. Fico em Basiléia." O estudo e meditação de Parmênides consolou-o de perder a audição de Tristão.

A senhorita de Meysenbug manteve-o ao corrente dos sucessos da campanha Wagneriana. O mestre


acabava de terminar o Crepúsculo, dos Deuses, último dos quatro dramas da Tetralogia, concluindo assim, afinal, a
sua grande obra. A senhorita de Meysenbug soubera-o por uma carta de Cosima Wagner. "Ouço cantar em meu
coração: Louvado seja Deus!" —escrevera a esposa. "Louvado seja Deus", repete a senhorita de Meysenbug, e
acrescenta (e estas palavras dão o tom da hora e do ambiente): "Os fiéis do novo espírito têm necessidade de novos
mistérios para solenizar, reunidos, seu conhecimento instintivo: Wagner cria-os em suas obras trágicas, e o mundo
não recobrará sua beleza enquanto nós não tivermos construído um Templo digno do novo mito dionisíaco..."

Sua amiga conta-lhe também tudo o que está fazendo para trazer à causa wagneriana Margarida de Saboya,
rainha da Itália e para fazer com que ela aceite a presidência de um restrito círculo de nobres protetoras: algumas
damas da mais alta aristocracia, amigas de Lizst, e por ele iniciadas no culto wagneriano, compunham aquele
sublime "Verein". De tudo isto escapa um incômodo tom de esnobismo e de religião. A senhorita de Meysenbug,
porém, era uma mulher esquisita, de inatacáveis intenções, pura, dessa pureza que purifica tudo quanto toca.
Nietzsche não exercia sua crítica sobre as cartas desta amiga.

Não demorou, Nietzsche começou a sentir o cansaço de uni trabalho prolongado demais. Perdeu o sono, e
viu-se obrigado a descansar. Como as viagens o haviam aliviado com freqüência, pelo fim do verão partiu em
direção à Itália. Chegou até Bergamo, mas não passou daí. Aquele país, ao qual tanto amou mais tarde, desagradou-
lhe. "Aqui reina o apolíneo — dizia-lhe a senhorita de Meysenbug, instalada em Florença — é bom banhar-se nele..."
Nietzsche era fracamente apolíneo. Só percebeu voluptuosidade,. excessiva doçura e harmonia de linhas. Seus gostos
de alemão ficaram desconcertados e regressou para a montanha, onde se sentia, segundo escreveu: "maior e mais
audaz". Ali, na hospedaria de uma paupérrima vila, Splügen, passou alguns dias de felicidade.

Aqui, no extremo limite da Suíça e Itália — escreve em agosto de 1872 a Gersdorff — estabeleci meu
retiro, e a verdade é que estou muitíssimo satisfeito com minha escolha. Uma rica, maravilhosa solidão, e os mais
admiráveis caminhos do mundo, pelos quais passeio meditando horas e horas, mergulhado nos meus pensamentos e
sem cair, não obstante, em nenhum precipício. E de cada vez que olho em torno de mim, encontro algo novo e
grande para ver. Os homens não passam por aqui senão nas horas da diligência. Faço as refeições com eles, e esse
é o nosso único contado. Passam diante do meu tugúrio como as sombras platônicas.

Até então, Nietzsche não gostava das altas montanhas. Preferia os vales médios e arborizados do Jura, que
lhe recordavam a paisagem do seu país natal e as colinas da Saale e da Boêmia. Em Splügen teve a revelação de uma
alegria nova: a alegria da solidão e da meditação solitária na diáfana atmosfera das alturas. Isto não durou senão um
relâmpago. Desceu à planície e esqueceu. Seis anos mais tarde, porém, só já para sempre, e sabendo disso, refugiado
em pobres hospedarias semelhantes àquela de Splügen, Nietzsche voltou a experimentar os mesmos sentimentos
líricos que descobrira em outubro de 1872.
Depressa abandonou seu asilo e voltou sem tédio a Basiléia, onde o chamavam os deveres profissionais. Ali
criara amizades e costumes. Gostava da cidade e suportava as pessoas; realmente, Basiléia se havia tornado o seu lar
definitivo.

Meus amigos de mesa, de casa e de idéias, Overbeck e Romundt — escrevia ele a Rohde — são a melhor
companhia do mundo. Pelo que se refere a isto, me abstenho de lamentações e rangidos de dentes. Overbeck é o
mais sério e mais livre dos sábios, e o mais simplesmente amável dos homens. Possui aquele espírito radical sem o
qual não posso me pôr de acordo com ninguém.

Sua primeira impressão, ao regressar a Basiléia, foi penosa. Seus alunos abandonaram-no, e Nietzsche não
teve dificuldade em compreender a razão desse abandono: os filólogos alemães haviam-no declarado "um homem
cientificamente morto". Haviam condenado sua pessoa e interditado seu curso.

A Santa Vehmgericht (*) cumpriu bem o seu dever — escreve ele a Rohde. — Façamos como se nada hou-
vesse sucedido. Mas que a pequena Universidade se prejudique por minha causa é coisa que me dá pena. Perdemos
vinte alunos inscritos nó último semestre. Mal e mal posso fazer um curso sobre a retórica grega e romana: tenho
dois alunos, um, germanista e o outro, jurista.

Afinal, teve um consolo: Rohde havia escrito em defesa do seu livro um artigo que revista alguma queria
publicar. Cansado das constantes negativas, refundiu seu estudo e editou-o sob a forma de carta dirigida a Richard
Wagner. Nietzsche agradeceu-lhe isto, e escreveu:

Ninguém se atrevia a publicar o meu nome, como se eu tivesse cometido um crime... e agora, o seu livro,
tão valoroso e fervoroso testemunho do nosso fraternal combatei Meus amigos sentem-se transportados de júbilo;
não se cansam de louvá-lo pelos detalhes e pelo j eito de sua polêmica, que classificam "lessingiana"...O que
mais me agrada é esse rumor profundo e ameaçador* como de uma poderosa cascata... Sejamos fortes, querido,
queridíssimo amigo! Eu sempre tenho fé no progresso, em nosso progresso, creio que cresceremos sempre em leais
ambições e em força; creio no êxito de nossa marcha para um destino cada vez mais nobre e distante. Sim. Alcançá-
lo-emos, e, logo, vencedores, descobrindo metas mais distantes, nos lançaremos à sua conquista, sempre fortes! Que
nos importa que sejam pouco numerosos, tão pouco numerosos os espectadores cujos olhos podem seguir a nossa
carreira? Que importa, se temos por espectadores aqueles cujas qualidades os fazem ser os únicos capazes de
julgar o combate? Todas as glórias que minha época possa dar, sacrifica-as, no que me respeita, por um único
espectador: Wagner.

A ambição de satisfazê-lo me anima mais e mais nobremente do que qualquer outro poder, pois Wagner é
difícil e diz tudo o que lhe agrada e o que não lhe agrada, e é para mim como uma boa consciência, que premia e
castiga.

(*) Tribunal secreto que funcionava na Idade Média.

Nos primeiros dias de dezembro Nietzsche teve a sorte de. encontrar seu mestre e, durante algumas horas,
viver com ele intimamente, o que lhe fez recordar os dias de Triebschen. Wagner avisou-o que passaria por
Estrasburgo, e Nietzsche correu a encontrá-lo. O encontro não foi perturbado por desacordo algum e essa harmonia
era, decerto, bastante rara, pois que Cosima Wagner, depois de fazê-lo notar em uma de suas cartas, exprime sua
esperança de que horas tão perfeitas como aquelas sejam bastante para dissipar e prevenir todas as dissenções.

Nietzsche trabalhou muito naqueles últimos meses de 1872. Seus estudos sobre os filósofos da Grécia
clássica estavam muito adiantados, mas ele interrompeu-os. Esses sábios haviam tornado a dar-lhe serenidade e
aproveitou a força que encontrara neles para considerar novamente os problemas do seu século, ou melhor, o
problema — já que ele só conhece um. Interroga a si mesmo: como fundar uma cultura, quer dizer, um conjunto de
tradições, regras e crenças, capaz de enobrecer o homem que a ela se submetesse? As sociedades modernas têm
como fim produzir uma certa comodidade; como fazer para substituí-las por sociedades que não satisfaçam o
homem, mas elevem-no?

Reconheçamos nossa miséria: achamo-nos desprovidos de cultura. Nossos pensamentos e atos não se regem
por autoridade de nenhuma espécie; a própria idéia de semelhante autoridade parece perdida para nós.
Aperfeiçoamos de maneira, extraordinária as disciplinas do saber, e parecemos ter esquecido que existem outras.
Acertamos ao descrever os fenômenos da vida e ao traduzir para uma linguagem abstrata o universo, e apenas nos
apercebemos de que, escrevendo e traduzindo assim, perdemos a realidade do universo e da vida. A ciência exerce
sobre nós uma "ação barbarizante" — escreve Nietzsche — e analisa essa ação:

O essencial de toda a ciência tornou-se acessório, ou falta completamente.

O estudo dos idiomas — sem a doutrina do estilo e da retórica.

Os estudos indígenas — sem a filosofia.

A antigüidade clássica — sem que se suspeite .como tudo, nela, está ligado aos esforços práticos.

As ciências naturais — sem aquela ação benfazeja e tranqüilizadora que Goethe encontrava nelas.

A história — sem entusiasmo, .

Enfim, todas as ciências sem sua aplicação prática, quer dizer, estudadas como o fariam homens verdadei-
ramente cultos. A ciência como meio de vida, ou ganha-pão.

É necessário, pois, reavivar o sentido da beleza, da virtude, e das paixões fortes e ordenadas. Como poderá
um filósofo se empregar em semelhante tarefa? Ah! a experiência da antigüidade nos instrui e desanima. O filósofo é
um ser híbrido, metade lógico e metade artista; um poeta e um apóstolo, que constrói logicamente seus sonhos e seus
mandamentos. Os homens escutam voluntariamente os poetas e os apóstolos, mas não ouvem os filósofos nem se
detêm comovidos por suas análises e deduções. Pensemos naquele grupo de gênios, os filósofos da Grécia trágica:
que conseguiram eles realizar? Suas vidas foram inúteis para a raça. Somente Empédocles comoveu as multidões,
mas porque era mago e filósofo; inventou mitos e poemas, foi eloqüente e formoso, e quem agiu foi a sua lenda e não
o seu pensamento. Pitágoras fundou uma seita: um filósofo não pode esperar mais que isso. Sua obra reúne uns
tantos amigos, uns tantos fiéis que passam sobre a massa humana como uma onda sobre o oceano. "Nenhum dos
grandes filósofos arrastou o povo consigo — escreve Nietzsche. — Onde fracassaram? Quem triunfará? É
impossível fundar uma cultura popular sobre a filosofia."

Qual é, pois, o destino dessas almas singulares? Sua força, com freqüência imensa, perde-se. Será o filósofo
sempre um ser paradoxal e inútil para os homens? Frederico Nietzsche, inquieta-se; realmente, ele está examinando a
utilidade de sua própria vida. Sabe, por fim, que jamais será um compositor tampouco poderá ser poeta; carece da
faculdade de conceber os entrechos, de animar um drama, de criar uniu alma. Uma noite ele faz essa confissão a
Overbeck, com tristeza que comove seu amigo. É, pois, por outra parte, um filósofo, muito ignorante; um amador da
filosofia; um lírico que não chega a ser artista. E pergunta a si mesmo: Que posso fazer, se não tenho, por arma de
combate senão meus pensamentos de filósofo? E responde: Posso ajudar. Sócrates não criava as verdades que o erro
mantinha prisioneiras nas almas dos seus interlocutores; o único título que pretendia era o de "parteiro". Tal é a
tarefa do filósofo, criador ineficaz, mas crítico eficacíssimo, que deve analisar as forças que se exercem em torno de
si, na ciência, na religião, na arte, e deve dar a orientação e fixar os valores e os limites. Tal será a minha tarefa.
Estudarei as almas dos meus contemporâneos e terei toda a autoridade para lhes dizer: nem a ciência, nem a religião
podem salvá-los. Recorram à arte, poder dos novos tempos, e ao artista, que é Richard Wagner.

"O filósofo do futuro? — escreve. — É preciso que ele seja juiz supremo de uma cultura estética, e censor
de todo o extravio."

Nietzsche foi passar o Natal em Naumburg. Recebeu ali umas linhas de Wagner, que lhe pedia que no
regresso a Basiléia se detivesse em Bayreuth. Nietzsche estava, porém, sobrecarregado de trabalho, um pouco
enfermo, talvez, e sem dúvida um seguro instinto o advertia de que a solidão convinha mais à meditação dos
problemas que só ele podia resolver. Escusou-se, pois. Por outro lado, naquelas últimas semanas havia tido
numerosas ocasiões de provar sua adesão ao mestre. Escrevera um artigo (o único de toda a sua obra) em resposta a
um alienista que se propusera demonstrar que Wagner era louco. Oferecera, também, uma soma em dinheiro para
ajudar a propaganda. Esta forma anônima e afastada de trabalhar era a única que lhe convinha então. Nu própria
Basiléia tratava de fundar um "Verein" wagneriano, Assim, ficou muito surpreendido ao saber que o mestre eslava
pouco satisfeito com a sua ausência. Já no ano anterior, uni convite igualmente declinado lhe valera uma ligeira
reprimenda:

"É Burckhardt quem o retém em Basiléia" - escrevera-lhe Cosima Wagner.

Nietzsche escreveu explicando as coisas, mas aquela impressão persistiu.

Tudo se acalmou — respondeu ao amigo que o prevenira;


— não posso, porém, esquecei- completamente. Wagner sabe que estou doente, absorvido pelo trabalho, e
que preciso de um pouco de liberdade... Daqui para diante, queira ou não queira, estarei ainda mais inquieto que
no passado... Deus sabe quantas vezes já o feri! Não obstante, de cada vez fiquei mais surpreendido, sem
conseguir nunca compreender perfeitamente qual é o ponto do desacordo.

Este penoso incidente não afetou o seu pensamento. Podemos segui-lo até nos detalhes, graças às notas
publicadas no décimo tomo de suas obras completas. Está perfeitamente ativo e fecundo. "Eu sou o aventureiro do
espírito — escreve mais tarde — vago pelo meu pensamento e vou até à idéia que me chama." Jamais andou tão
audazmente como durante essas primeiras semanas de 1873. Termina um belo e sóbrio ensaio, Ueber Wahrheit und
Lüge im aussermoralischen Sinne {Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral. É pena que seja preciso
traduzir estas expressões intraduzíveis, que damos palavra por palavra). Nietzsche sempre teve preferência pelas
palavras sonoras, e aqui não recua ante a palavra "mentira", exercitando-se em uma primeira "trans mutação de
valores". Ao verdadeiro, opõe o falso — é prefere-o. Exalta os mundos imaginários que os poetas misturam ao
mundo real: "Atreve-te a equivocar-te e a sonhar", dizia Schiller; Frederico Nietzsche repete este conselho. Tal foi a
feliz audácia dos gregos, que se embriagaram com suas divinas histórias e seus heróicos mitos, deixando que esta
embriaguez arrastasse suas almas até às grandes ações. O ateniense leal, persuadido de que Palas habitava a sua
cidade, vivia em um sonho. Teria sido ele mais forte, mais apaixonado e mais valoroso se houvesse sido mais
clarividente? A verdade é boa em proporção aos serviços que possibilita, e a ilusão é preferível, se presta serviço
maior. Por que divinizar a verdade? É esta a tendência dos modernos: Pereat vita, fiat ventas! (pereça a vida e salve-
se a verdade!). Porquê este fanatismo? A verdadeira lei dos homens é oposta: Pereat veritas, fiat vita!

Depois de transcritas estas fórmulas absolutas, Nietzsche não se detém nelas. Escreve constantemente e
assim trabalha e faz avançar a sua investigação. Não nos esqueçamos de que estas idéias de contornos tão firmes não
são senão o prelúdio de novas e talvez contrárias idéias. Frederico Nietzsche traz em si dois instintos opostos: o dó
sábio que se cinge à verdade, e o do artista que deseja criar. Quando procura sacrificar um dos dois, vacila indeciso,
pois o instinto do verdadeiro protesta em seu interior. Não abandona suas fórmulas, volta a elas, ensaia definições
novas, indica as dificuldades e as falhas. Seu pensamento sem véu nos permite seguir as investigações. Traduzamos
esta expressiva desordem :

O filósofo do conhecimento trágico liga o instinto desordenado do saber, não por uma metafísica nova.
Não estabelece novas crenças. Vê, com trágica emoção, que o terreno da metafísica se afunda sob seus pés e sabe
que o torvelinho desencontrado da ciência não o poderá satisfazer jamais. Se constrói uma vida nova, restitui à arte
os seus direitos.

O filósofo do conhecimento desesperado se abandona à ciência cega: saber a todo o custo.

Que a metafísica não seja mais que uma aparência antropomórfica, completa, para o filósofo trágico, a
imagem do ser. Aquele não é cético. Existe aqui uma idéia por criar, pois o ceticismo não é o fim. O instinto do
conhecimento levado até seus últimos limites, volta-se contra si próprio para se transformar em uma critica da
faculdade de conhecer. O conhecimento a serviço da melhor forma de vida. Deve-se,até desejar a ilusão, desejo que
constitui o trágico.

Qual será, então, o filósofo do conhecimento desesperado cuja atitude Nietzsche define em duas linhas? O
fato de lhe haver dado um nome tão formoso não é já uma prova de amor? Há aqui uma idéia por criar, escreveu
Nietzsche. Qual é, então, esta idéia? Parece que em muitas passagens, Nietzsche se compraz em contemplar,
despojada de seus véus, aquela realidade terrível cujo aspecto, por si só, segundo a lenda hindu, produz a morte.

Como — escreve ele — se atrevem a falar de um destino da terra? No tempo e no espaço infinitos não há
fins: o que é, será eternamente, quaisquer que sejam as formas. O que possa resultar para um mundo metafísico, é
coisa que não se sabe.

Sem apoio desta ordem, a humanidade deve resistir firmemente; terrível trabalho para um artista!

Terríveis conseqüências do darwinismo, que, por outra parte, tenho por verdadeiras. Respeitamos certas
qualidades que consideramos eternas, morais, artísticas, religiosas, etc.

Considerar como sobrenatural o espírito, que é uma produção do cérebro! Divinizar! Que loucura!

Pára mim é falso falar de um fim inconsciente da humanidade. Esta não é um todo, como o formigueiro.
Talvez se possa falar dos fins inconscientes dum formigueiro, mas... de todos os formigueiros da terra...!

O dever não consiste em procurar refúgio numa metafísica, mas em sacrificar-se ativamente à cultura
nascente. E, daqui, minha severidade contra o nebuloso idealismo.

Neste momento, e à custa de um intenso trabalho que o faz sofrer, Nietzsche quase alcançou suas idéias
finais. Suas enxaquecas, seus males da vista, e do estômago, tornam a assaltá-lo, a luz mais suave fere-o, e tem que
deixar de ler. Não obstante, seu pensamento não se detém nem por um instante. Ocupa-se novamente dos filósofos da
Grécia trágica; ouve essas vozes que chegam até nós abafadas pelos séculos, mas sempre firmes. Ouve o concerto
das, respostas eternas.

Tales — Tudo deriva de um elemento único.


Anaximandro — A fuga das coisas é o seu castigo.
Heráclito — Uma lei rege a fuga e a instituição das coitas.
Parmênides — A fuga e a instituição das coisas são mera ilusão. Só o Uno existe.
Anaxágoras — Todas as qualidades são eternas. Não há fim para elas.
Os Pitagóricos — Todas as qualidades são qualidades.
Empédocles — Todas as causas são mágicas.
Demócrito — Todas as causas são mecânicas.
Sócrates — Só o pensamento é incomovível.

Frederico Nietzsche sente-se emocionado por estas vozes discordes, por estes ritmos de pensamentos cujos
choques eternos acusam a natureza. ( "As vicissitudes das idéias e os sistemas dos homens me afetam mais
tragicamente que as vicissitudes da vida real", dizia Hölderlin. A impressão de Nietzsche é semelhante. Inveja e
admira aqueles seres primitivos que descobriram a natureza e encontraram as primeiras respostas. Deixa de lado o
prestígio da arte, e se coloca diante da vida como Édipo diante da esfinge, escrevendo, precisamente sob este título,
Édipo, um fragmento cuja misteriosa linguagem talvez possamos entender:

Édipo — Chamou-me o último filósofo, porque sou o último homem. Falo sozinho e ouço minha voz que
ressoa como a de um moribundo. Contigo, voz querida, cujo sopro me traz as últimas recordações de toda a feli -
cidade humana, deixa-me falar contigo ainda um minuto: tu enganarás a minha solidão, tu me darás a ilusão da
companhia e do amor, pois o meu coração não quer acreditar que o amor tenha morrido, nem pode suportar o
terror da mais solitária das solidões, e obriga-me a falar como se eu fosse dois. És tu a quem ouço, minha voz?
Murmuras e maldizes? E, no entanto, a tua maldição devia fazer arrebatar os entranhas do mundo! Ah! apesar de
tudo, o mundo subsiste, mais resplandecente e mais frio do que nunca! contempla-me como suas implacáveis
estrelas; existe, cego e surdo como antes; e só o homem morre. E não obstante, me falas ainda, voz amada! Não
morro sozinho neste universo — eu, o último homem: a última queixa, a tua queixa, morre comigo Oh! dor! tem dó
de mim! O último homem de dor, Édipo!

É como se, tendo chegado aos últimos limites do seu pensamento Nietzsche tivesse sentido subitamente
necessidade de repouso, desejo de conversar com amigos, de se sentir rodeado e distraído. As férias da Páscoa de
1873 deram-lhe quinze dias de liberdade. Partiu, pois para Bayreuth, onde não o esperavam.

Parto esta noite — escreveu à senhorita de Meysenbug. — Adivinha onde vou? Adivinhou. E, para cúmulo
da felicidade, encontrarei ali o melhor dos amigou, Rohde. Amanhã, pelas quatro e meia sentar-me-ei em
Dammalee (*) e serei absolutamente feliz. Falaremos muito de você e de Gersdorff. Você disse que ele copiou as
minhas conferências? Eis aí uma coisa que me emociona e que jamais esquecerei. Que excelentes amigos tenho! Ê,
realmente, vergonhoso! Espero encontrar em Bayreuth, ânimo e alegria, e sentir de novo tudo o que é bom. Sonhei a
noite passada que mandara encadernar novamente e com todo o cuidado, o meu Gradus ad Parnassum. Embora
bastante insípida, não deixa de ter certa significação esta mistura de simbolismo e encadernação. Mas é uma
verdade! De vez em quando convém que nos mandemos encadernar de novo, freqüentando homens mais valiosos e
mais fortes do que nós mesmos; de outra maneira perderíamos algumas de nossas páginas, depois outras, e outras,
até à completa caducidade. E que a nossa vida deve ser um Gradus ad Parnassum, lambem é uma verdade que
convém ser repetida com freqüência. O único futuro que desejo e alcançarei se tiver um pouco de sorte, trabalhar
muito para isso, estiver, também, muito tempo, é o de chegar a ser um escritor sóbrio, e, antes de tudo, cada vez em
maior grau, exercer mais sobriamente o meu ofício de homem de letras. De vez em quando sou atacado por uma
repugnância infantil pelo papel impresso; parece-me não ver nele senão papel manchado, e afiguro-me uma época
cm que se prefira ler menos e escrever menos ainda, mas em troca, pensar mais e trabalhar ainda mais. Pois tudo
vive, hoje, na expectativa desse homem operante, que, condenando em si mesmo e em nós nossas milenárias rotinas,
viverá melhor e nos oferecerá sua vida como exemplo

(*) Era o nome da casa que Wagner habitava antes de ser construída sua morada definitiva, a Wahnfried.
(nota do A.)

Frederico Nietzsche partiu para Bayreuth, e ali recebeu uma noticia inesperada. Faltava dinheiro. De um
milhão e duzentos mil francos que necessitavam, haviam conseguido somente, com grande dificuldade, oitocentos
mil. O empreendimento estava comprometido, e talvez inutilizado. Todos haviam perdido o ânimo. Só o mestre
continuava tranqüilo e confiante. Desde que chegara à idade viril, desejava possuir um teatro; sabia que uma vontade
constante acaba por prevalecer sobre todos os percalços, e, alguns meses de crise não o assustavam, depois de
quarenta anos de espera. Capitalistas de Berlim, Munich, Viena, Londres, e Chicago fizeram-lhe propostas, mas ele
respondeu-lhes pela negativa, desejoso de ter o teatro para ele somente e perto dele. "Não se trata do êxito de um
negócio — dizia — mas de despertar as forças latentes da alma alemã." Tanta serenidade, porém, não che gava para
fortalecer o valor dos demais. O pânico se apoderou de Bayreuth, e ninguém se atrevia a esperar coisa alguma.

Frederico Nietzsche olhou, ouviu, observou, e em seguida fugiu para Naumburg. "Meu desespero era tão
profundo — escreve — que tudo me parecia infeccionado de crime." Voltava ao mundo após dez meses de solidão, e
achava-o mais covarde, mais miserável, ainda] do que jamais o julgara. Sofrimento pior ainda: estava descontente
consigo mesmo. Recordava suas últimas meditações: "Chamo-me o último filósofo, porque sou o último homem..." e
interrogava-se: seria ele, realmente, "o último filósofo?" o "último homem?" Não sé havia favorecido demasiado ao
se atribuir esse papel tão grave e tão formoso? Não teria sido ele, também, ingrato, covarde e vil como os demais
homens ao abandonar a luta no momento decisivo, para se encerrar novamente em sua cela, e nos seus sonhos
egoístas? Não esquecera o seu mestre? Acusava-se e o remorso aumentou o seu desespero. "Não de via pensar em
mim — recriminava-se. — Só Wagner é herói, e tão grande em sua desgraça, como o fora em Triebschen... É a ele
que devo servir. Desde este momento, devo consagrar-me a ajudá-lo." Tendo a intenção de publicar alguns capítulos
de seu livro Os Filósofos da Grécia Trágica, privou-se desta alegria e guardou, não sem angústia, o manuscrito
quase terminado. Queria atuar, gritar, "cuspir fogo", injuriar e maltratar a Alemanha, já que, como um animal
estúpido, só cedia à brutalidade. "Regresso de Bayreuth em tão persistente estado de melancolia — escreve a Rohde
— que não há mais salvação para mim. senão na santa cólera."

Frederico Nietzsche não esperava satisfação alguma da tarefa que ia empreender. Atacar é reconhecer,
condescender, rebaixar-se, Preferiria não ter contato algum com a baixa humanidade. Era. porém, possível tolerar
que molestassem e pusessem obstáculos no caminho de Richard Wagner? Seria possível que os alemães o
entristecessem, como haviam feito com Goethe, que o destruíssem, como haviam feito com Schiller? Amanhã
nascerão outros gênios — não será necessário, então, combater desde hoje para assegurar a liberdade e o sossego de
suas vidas? Não é possível ignorar as massas que nos assediam.É um destino amargo, mas que não se pode refugar. É
o destino dos homens melhor nascidos, e sobretudo, dos melhores alemães, heróis engendrados e negados por uma
raça sensível ao belo. Frederico Nietzsche retivera a frase de Goethe sobre Lessing: "Tende piedade deste homem
extraordinário; tende piedade, por ter vivido em uma época tão lamentável que se viu obrigado a agir sempre por
meio de polêmicas." Aplicava-a a si próprio, mas a polêmica lhe aparecia como um dever para si, como o fora para
Lessing. Procurou, então, um adversário e encontrou na figura do ilustre David Frederico Strauss que representava,
naquele momento a filosofia oficial e pontificava pesadamente. Renunciando às investigações críticas, Strauss
afetava, em seus últimos dias, atitudes de pensador e desenvolvia seu Credo com falsas graças imitadas de Voltaire
ou de About.

Proponho-me, simplesmente — dizia ele em A Antiga e a Nova Fé — dizer como vivemos e como nos com-
portamos na vida desde muitos anos. Ao lado da nossa profissão — pois pertencemos às mais diversas profissões, já
que nem todos somos artistas ou sábios, mas também funcionários ou soldados, operários ou proprietários — e,
disse e repito, nosso número não é pequeno, somo muitos milhares e não dos piores — ao lado de nossa profissão,
repito, procuramos, até onde é possível, manter nossos espíritos alerta aos mais altos interesses da : humanidade;
nossos corações se sentem exaltados por esses destinos novos, inesperados, e magníficos designados pela sorte à
nossa pátria, antes tão menosprezada. Para melhor compreender essas coisas, estudamos a história, que com uma
porção de obras atraentes e populares, se torna fácil a todo o mundo. E procuramos ampliar logo o nosso
conhecimento da natureza, ajudados por manuais que estão ao alcance de todos. Por último, encontramos nas obras
dos nossos grandes poetas, e na audição das obras dos nossos grandes músicos, estimulantes para nosso espírito e
nosso sentimento, nossa imaginação e nosso coração; estimulantes que, em verdade, nada deixam a desejar. Assim
vivemos e caminhamos na felicidade.

Assim, pois, os filisteus são felizes. E com razão, pensa Nietzsche, pois achamo-nos na época do seu
poderio. E seguramente a espécie não é nova. A própria Ática teve seus fatores de "banausia", antes, porém, o filisteu
vivia humilhado. Era tolerado, mas não se falava dele, e ele não falava. Vieram, depois, tempos mais indulgentes;
ouviram-no, afagaram-se suas ridicularias, e acharam-no divertido. Isto bastou para que se enchesse de
fatuidade e se sentisse orgulhoso de sua hipocrisia. Hoje, já não é possível contê-lo — e triunfa. Torna-se fanático e
funda uma religião, a nova fé, cujo profeta é Strauss. Decerto, Frederico Nietzsche teria aprovado a classificação das
idades que naquele mesmo ano, Flaubert propunha: Paganismo, cristianismo e "abelhudismo" (ou "sem-
vergonhismo"). O filisteu dita seu gosto e impõe suas maneiras; se rebenta uma guerra, lê o seu jornal, interessa-se
pelas notícias e estas contribuem para o seu contentamento. Grandes homens sofreram e nos deixaram suas obras: os
filisteus conhecem estas obras, apreciam-nas, e seu bem-estar se faz maior. Por outra parte, aprecia com
discernimento. A. Sinfonia Pastoral entusiasma-o, mas condena o estrondejar exagerado da Sinfonia com coros.
David Strauss o diz claramente: não é possível "enganar este espírito penetrante» Frederico Nietzsche não vai mais
longe em suas buscas. Encontrou o homem que deseja destruir. Nos primeiros dias de maio está com todas as notas
preparadas, e sua obra pronta. Subitamente, faltam-lhe as forças; sua dolorida cabeça e seus olhos feridos pela luz,
atraiçoam o desejo de trabalhar; em poucos dias se encontra quase inválido, quase cego. Overbeck e Romundt
ajudam-no o mais que podem, mas tanto um como outro trabalham e têm o tempo contado pelos deveres
profissionais. Vem um terceiro amigo assistir ao enfermo. O barão de Gersdorff, independente é abnegado, viajava,
então, pela Itália. Ele fora condiscípulo de Nietzsche no colégio de Pforta, e desde aqueles dias longínquos, poucas
vezes o vira, continuando sua amizade, no entanto, a mesma — e apressa-se a ir a Basiléia. Era filho menor de uma
nobre família; tendo morrido seus irmãos maiores, um em 1866, na campanha da Áustria e o outro em 1871, na da
França, ele se vira obrigado a sacrificar seus gostos, a renunciar à filosofia e a aprender agronomia para administrar
um domínio da família na Alemanha do Norte. Era o único dos amigos de Nietzsche que não se entregara ao papel e
aos livros. "É um magnífico tipo de gentil-homem reservado e digno, embora de maneiras muito simples — escreve
em francês Overbeck; — no fundo, o melhor rapaz que se possa imaginar, e dá, desde o primeiro instante, a
impressão de um homem em quem se pode confiar absolutamente." Um amigo de Romundt, Paulo Rée, foi também
distrair o enfermo, o qual, confortado por tanta solicitude, conseguiu resistir aos seus males. Estendido numa sombra
constante, ele ditava e o fiel Gersdorff escrevia. Pelos fins de junho, o manuscrito foi enviado ao editor.

Frederico Nietzsche começou a melhorar logo que terminara seu trabalho. Sentia grande necessidade de ar
puro e de solidão. Sua irmã, chegada de Naumburg, levou-o para as montanhas de Grisons. Suas dores de cabeça se
atenuaram e sua vista restabeleceu-se um pouco. Descansou durante algumas semanas, corrigindo as provas, gozando
das forças recuperadas, mas perseguido sempre por seus furores e suas aspirações.

Um dia, passeando com sua irmã pelos arredores de Flimms, chegou às portas de um castelo de reduzidas
proporções, situado num recanto solitário e agradável. "Que retiro delicioso e que admirável lugar para instalar nosso
convento laico!" disse ele. O castelo estava à venda. A moça propôs que o visitassem, e entraram. Tudo os encantou:
o jardim; o terraço de onde se descortinava um amplo horizonte; o grande salão com sua chaminé de pedra lavrada;
as peças, não muito numerosas, mas suficientes: Esta seria para Richard Wagner; aquela, para Cosima; a outra, para
os visitantes, Jacob Burckhardt, ou a senhorita de Meysenbug. Gersdorff, Deussen, Rohde,- Overbeck e Romundt,
esses residiriam constantemente. Aqui — declarava Nietzsche — faremos um passeio coberto, uma espécie de
claustro, de modo que com qualquer tempo possamos conversar caminhando, pois falaremos muito, leremos pouco e
apenas escreveremos... Apresentava-se-lhe novamente o seu sonho familiar, a sua fraternal associação de discípulos
e mestres. A senhorita Nietzsche mostrava-se muito animada: Vocês vão ter necessidade de uma mulher para cuidar
de tudo isto, e essa mulher serei eu... E informou-se sobre o preço da propriedade, escrevendo, até, ao proprietá rio.
No entanto, o negócio não se realizou. "Talvez eu lhe tivesse parecido muito jovem — diz a senhorita Nietzsche que
é quem conta o caso — e o jardineiro não nos levou á sério." Que se há de pensar deste acontecimento? Nada
sabemos. Teria sido uma lembrança da moça, à qual Nietzsche se prestou por um momento? Ou, pelo contrário, um
pensamento sério? É provável. Seu espírito, pronto para abrigar todas as quimeras, não discernia muito bem os
convencionalismos da vida.

Nietzsche regressou a Basiléia; seu opúsculo fizera certa impressão. "Leio e releio o que você escreveu —
escrevia Wagner —e juro pelos meus deuses que o considero a única pessoa que sabe o que eu quero." "Seu panfleto
é uma brilhante ação! — escrevia Hans von Bulow. — Um Voltaire moderno deve escrever: écrasez 1'infame! A
estética internacional é para nós um adversário muito mais odioso que 08 bandidos vermelhos ou negros." Outros
bons juizes; alguns, homens idosos, aprovavam o jovem polemista: Erwald de Goltingne), Bruno Bauer, Karl
Hildebrandt, dieses letzten humaiicu Deutschen (este último dos alemães humanos), segundo Nietzsche, declararam-
se a seu favor. "Este livrinho — escrevia Hildebrandt — pode assinalar o retorno do espírito alemão para a seriedade
do pensamento e a paixão intelectual."

Estas vozes amigas não eram, porém numerosas. "O Império alemão — havia escrito Nietzsche —
extirpa ao espírito alemão..." Com isto, ferira o espírito de um povo vence dor, e não tardou em receber em
justa compensação, boa cópia de insultos e acusações de vileza e traição. "Seguindo o conselho de Stendhal — disse
ele alegremente — entro na sociedade com um duelo." Por stendhaliano que fosse ( e pelo menos, prezava-se disso)
Nietzsche não deixava de ser acessível à piedade. Tendo Strauss morrido poucas semanas depois da publicação do
seu opúsculo, imaginou que sua obra talvez tivesse matado o ancião, e sentiu verdadeiro desgosto. Em vão o
tentaram tranqüilizar a sua irmã e seus amigos; Nietzsche não conseguiu renunciar a seu remorso, por outro lado
glorioso.

Animado por este primeiro combate, planejou uma campanha mais vasta, e, com prodigiosa rapidez de
concepção, preparou uma série de folhetos que esperava publicar sob o título geral de Unzeitgemãsse Betrachtungen
(Considerações Extemporâneas). David Strauss havia sido o primeiro desses folhetos, e o segundo devia se intitular
A Enfermidade Histórica. Seguir-se-iam logo outros vinte, para cujo trabalho os seus amigos, sempre associados aos
seus sonhos, decerto concorreriam.

Franz Overbeck acabava de publicar um opúsculo intitulado: O Cristianismo de nossa moderna teologia, no
qual atacava os doutores alemães pensadores, demasiado modernistas, que debilitam o cristianismo e deixam cair no
esquecimento a irrevogável e grave doutrina dos primeiros cristãos. Nietzsche mandou encadernar juntos, o
Christlichkeit de Overbeck e seu David Strauss. Na primeira página escreveu esta sextilha:

Ein Zwillingspaar von einem Haas,


Ging muthig in die Welt hinaus,
Welt-Drachen zu zerreissen.
Zw'r Váter-Werk
Ein Wunder war'sl
Die Mutter doch des Zwülingspaars
Freundschãft ist sie geheissen.

"Dois gêmeos do mesmo berço — entram alegremente no mundo — para devorar os dragões do mundo. —
Dois pais e uma obra! Oh milagre! — A mãe destes dois gêmeos chama-se amizade." Frederico Nietzsche esperava
uma série de volumes semelhantes, inspirados por um só espírito, escritos por várias mãos. "Com uma centena de
homens atirados contra as idéias modernas e exercitadas no heroísmo — escrevia ele então — toda a nossa ruidosa e
tardia cultura seria reduzida ao silêncio eterno... Cem homens carregaram assim, em suas costas, a civilização da
Renascença..."

Dupla e vã esperança! Seus amigos falharam, e ele não escreveu também, os vinte folhetos. Conhecemos
apenas os seus títulos o umas poucas páginas de notas. Que nos teria dito ele sobre O Estado, A Cidade, A Crise
Social, A Cultura Militar, A Religião...? Moderemos nosso pesar por não haverem muitos escritos. Pouca coisa,
talvez; isto é, poucas coisas precisas, diferentes de seus desejos e de suas lamentações.

Também se ocupava, por aqueles dias, num trabalho que anunciava a Gersdorff em termos misteriosos:
"Que baste para você saber que um perigo terrível e imprevisto ameaça Bayreuth, e que me encarregaram de preparar
o contra-ataque ..." Efetivamente, Richard "Wagner lhe rogara que escrevesse um apelo supremo aos alemães, e
Nietzsche se aplicava em redigi-lo com toda a gravidade, profundidade e solenidade de que era capaz. Pedira a Erwin
Rohde ajuda e conselho: "Posso contar com você para me escrever, depressa, uma página redigida em estilo
napoleônico?" Erwin Rohde, homem precavido, recusou. "É preciso ser amável — disse ele — quando a única coisa
que convém à canalha é o insulto." Frederico Nietzsche, porém, não reparava em cortesias. Pelo fim de outubro, os
presidentes dos "Wagner-Verein", reunidos em Bayreuth, convocaram Frederico Nietzsche, que leu o seu manifesto:

APELO AOS ALEMÃES

Desejamos ser ouvidos; pois que falamos para fazer ama advertência, e aquele que adverte, seja quem for,
diga o que disser, tem sempre o direito de ser ouvido... Levantamos a voz porque estais em perigo, e porque, vendo-
vos tão mudos, tão indiferentes, tão insensíveis, tememos por vós. Falamo-vos com toda a sinceridade de coração, e
não procuramos nem queremos nosso interesse senão porque é também o vosso: a salvação e a honra do espírito
alemão e do nome alemão...

O manifesto vai se desenvolvendo nesse mesmo tom ameaçador e um pouco enfático, e a leitura é acolhida
num penoso silêncio. Nenhum murmúrio de aprovação, nenhum olhar de alento se dirigia a Nietzsche. Quando
terminou, algumas vozes comentaram. "É demasiado grave... não é suficientemente diplomático... Seria preciso
mudar alguma coisa... muita coisa." Outros opinaram: "É uma predica de monge." Nietzsche não quis discutir e
retirou o seu projeto de apelo. Somente Richard Wagner o apoiara com energia. Esperemos — disse ele — dentro de
pouco tempo, muito pouco, eles serão obrigados a voltar ao seu Apelo, e todos .estarão de acordo com você.

Nietzsche permaneceu poucos dias em Bayreuth. A situação, já grave na Páscoa, chegara ao desespero. O
público, que durante alguns meses caçoara da grande empresa, ignorava-a agora. Uma temível indiferença paralisava
os propagandistas e a cada dia que se passava mais difícil parecia reunir o dinheiro necessário. Todos os projetos de
empréstimos comerciais ou de sorteios, já haviam sido postos de lado. Um apelo escrito apressadamente para
substituir o de Nietzsche, fora distribuído por toda a Alemanha. Dos dez mil exemplares que se haviam editado,
apenas um número ínfimo foi vendido. Mandou-se uma carta a cem diretores de teatros alemães, na qual se solicitava
a cada um deles uma noite de benefício a ser invertida na subscrição de Bayreuth. Três responderam negativamente,
e os demais não responderam.

Frederico Nietzsche regressa a Basiléia e termina, ajudado por Gersdorff, a redação da sua segunda
"Extemporânea": A Enfermidade Histórica. Entrementes, escreve algumas cartas, algumas notas e não faz nenhum
projeto novo, de maneira que escapa, quase completamente, às nossas pesquisas. A dupla esperança de sua
juventude: assistir ao triunfo de Richard Wagner, e colaborar com ele — desmoronou-se, e o seu auxílio foi
recusado. Haviam-lhe dito: "seu apelo é demasiado grave, demasiado solene..." E ele pergunta a si mesmo: Que é,
então, a obra de Wagner? não é de uma gravidade e solenidade supremas? Sente-se triste, humilhado, ferido em seu
amor próprio e em seus sonhos. Durante as últimas semanas de 1873 vive encerrado no seu quarto em Basiléia. Vai a
Naumburg passar as festas de Ano Novo. Ali, a sós com os seus, recobra algumas forças. Sempre gostara desse re-
pouso dos aniversários, tão favorável ao recolhimento, e, quando mocinho, nunca deixava passar a festa de São
Silvestre sem escrever uma meditação sobre sua vida, suas recordações e suas perspectivas de futuro. Em 31 de
dezembro escreve a Erwin Rohde, e o tom de sua carta recorda o das antigas meditações:

As Cartas de um esteta herético, de Karl Hildebrandt, produziram-me grande prazer, e foram para mim uni
grande consolo. Leia-o e admire-o; é um dos nossos, é da sociedade dos que esperam. Oxalá possa, neste novo ano,
prosperar essa sociedade; oxalá possamos continuar sendo bons camaradas! Ah, querido amigo, não temos a
liberdade de escolher. É preciso ser dor r:.:c esperam, ou dos que desesperam! E uma vez por todas, decidi-me pela
esperança.

Continuemos sendo fiéis e ajudando-nos uns aos outros neste ano de 1874, e até ao fim dos nossos dias!

Seu

Frederico N*

Naumburg, São Silvestre, 1873-74.

Nietzsche volta ao trabalho nos primeiros dias de janeiro. Depois do penoso incidente de Bayreuth (sem
dúvida, a irritação de um autor cujo auxílio é desprezado explica estes imprudentes movimentos, se via atormentado
pelas inquietudes e as dúvidas, e queria esclarecê-las. Em duas linhas, que são como que a introdução de suas idéias
de então, faz entrar a arte wagneriana na história. "Tudo o que é grande é perigoso — escreve ele — especialmente
no início. Tem-se a impressão de um fenômeno isolado, que se justifica por si mesmo." E, assentada esta máxima,
aborda os problemas definitivos: "Que classe de homem é Wagner? Que significação tem sua arte?"

E veio então a catástrofe, como um desmoronamento fantasmagórico. O Esquilo, o Píndaro moderno,


desaparecem; os lindos enfeites metafísicos e religiosos vêem abaixo, e a arte de Wagner aparece tal como é em
realidade: flor tardia, magnífica e freqüentemente enfermiça, de uma humanidade velha de quinze séculos.

Perguntemos-nos seriamente — escrevia Nietzsche em notas que seus amigos não conheceram —
perguntemos-nos seriamente qual é o valor deste tempo que reconhece, na arte de Wagner, sua própria arte. É um
tempo radicalmente anárquico precipitado j ímpio, ávido, informe, inseguro em suas raízes, pronto para o
desespero, sem ingenuidade nem nobreza, consciente até á medula, violento e covarde. A arte amálgama
indistintamente em um bloco tudo o que ainda a atrai em nossas almas de alemães modernos: caracteres e
conhecimentos, tudo confusamente misturado. Uma monstruosa tentativa para se afirmar e dominar em uma época
anti-artística. Um veneno contra um veneno!

Em vez do semi-deus — o histrião! Desesperado, Nietzsche reconhece que havia cometido um erro e que se
deixara enganar pelas artimanhas de um gigante. Amara com a ingenuidade e o ardor da juventude, e haviam-lhe
dado o engano em troca. Em sua cólera havia ciúmes e um pouco desse ódio que nunca se acha muito longe do amor.
Havia deposto nas mãos de um homem o coração e a inteligência de que tanto se orgulhava — e esse homem havia
brincado com aqueles sagrados presentes.

Passemos, porém, por cima destas dores pessoais; havia outras, mais profundas ainda, que humilhava
Nietzsche. Sentia-se humilhado por haver traído a verdade. Tinha querido viver para ela, e agora percebia que
durante quatro anos vivera para Richard Wagner. Atrevera-se a repetir com Voltaire: "É preciso dizer a verdade e
imolar-se", e compreendia agora que a deixara de parte, que fugira dela, talvez, para se conso lar com as belezas de
uma arte. "Se desejas o repouso, crê; se desejas a verdade, investiga..." havia escrito a sua irmã alguns anos antes, e
eis que o dever que indicara então àquela menina — ele não o havia observado. Deixara-se seduzir por imagens, por
harmonias, por um prestígio verbal — havia-se nutrido de mentiras.

E o pior de tudo era que consentira em tal rebaixamento. O universo é mau — escrevera na Origem da
Tragédia — cruel como um acorde que dissona, e a alma do homem, dissonante como o universo, sofrendo por si
mesma, se desinteressaria da vida sé não inventasse alguma ilusão, algum mito que a engane mas acalme e lhe dê um
refúgio de beleza.

Em verdade, se se retrocede assim, se a gente cria os seus próprios consolos, onde se deixará conduzir? Não
há covardia que não se autorize, se se ouve a voz da própria debilidade. Aceitar a ilusão é colocar-se nas mãos do
ilusionista. Ilusão nobre? Ilusão vil? Que sabemos, se somos enganados, se pedimos que nos enganem? Um acesso
de remorsos turva as recordações de Frederico Nietzsche e enche de desalento seus projetos futuros.

A Enfermidade Histórica apareceu em fevereiro. É um ataque contra a História, ciência cuja invenção é o
orgulho dos modernos; é uma crítica dessa faculdade, recentemente adquirida pelos homens, de reanimar em si
mesmo os sentimentos dos séculos passados, com o risco de diminuir a integridade de seus instintos e de torcer o seu
rumo. Uma breve indicação mostra o espírito do livro:

O homem do futuro: original, vigoroso, ardente, infatigável, artista, inimigo dos livros.

Eu quisera expulsar do meu estado ideal, os homens que se chamam "cultos", como Platão queria fazer
com os poetas: seria esse o meu terrorismo.

Desta maneira, Nietzsche afrontava os dez mil "senhores professores" que haviam feito da história seu meio
de vida e dirigiam o público. Estes castigaram-no com o ódio e o silêncio. Ninguém falou do seu livro. Seus amigos
trataram de lhe conseguir leitores; Overbeck escreveu ao seu companheiro de estudos, Treischke, escritor político e
historiógrafo prussiano; "estou seguro de que você descobrirá nestas considerações de Nietzsche a mais profunda, a
mais séria e a mais instintiva devoção pela grandeza da Alemanha..." Treischke recusa seu assentimento e Overbeck
escreve de novo: "É de Nietzsche, do meu amigo sempre doente que quero e devo falar-lhe sobretudo..." Treischke
responde de mau humor, 6 a disputa se faz amarga: "Sua Basiléia — escreve ele — é um budoir de onde. se ofende a
cultura alemã!" "Se você nos visse, aos três, Nietzsche, Romundt e eu — diz Overbeck — veria três excelentes
companheiros. A diferença entre você c eu me parece um penoso símbolo... É um acidente tão freqüente, um traço
tão infeliz da nossa história alemã, o desacordo entro os políticos e homens cultos..." "Que desgraça para você —
replica Treischke — haver encontrado esse Nietzsche pelo caminho, esse anormal que tanto nos fala de suas idéias
obsoletas e que, no entanto, se acha corroído até mesmo ao mais atual de todos os vícios: a mania de grandeza!"

Overbeck, Gersdorff e Rohde assistem, desolados, ao fracasso do livro que tanto admiram. "É um novo raio
— escreve Rohde — que não fará maior efeito que um fogo de artifício, numa adega. Um dia, porém, se reconhecerá
e admirará essa valentia e precisão com que ele pôs o dedo sobre a pior das nossas chagas. Que forte é o nosso amigo
I" E Overbeck: "A sensação de isolamento que nosso amigo experimenta, vai crescendo de maneira penosa. Olhar
continuamente para os ramos da árvore sobre a qual nos sustemos ó algo que não se pode fazer sem graves
conseqüências." E Gersdorff: "O melhor que nosso amigo poderia fazer seria imitar os pitagóricos, passando cinco
anos sem ler nem escrever. Quando eu recobrar minha liberdade, dentro de dois ou três anos, regressarei às minhas
terras, e ali ele encontrará sempre um asilo."

Estes homens, cuja solicitude é tão comovente, inquietam-se pela sorte do seu amigo sem suspeitar a
verdadeira causa nem a intensidade de sua amargura. Lamentam-se da sua solidão, sem saber quão profunda ela é, e
sem saber que, mesmo ao lado deles, Nietzsche está só. Que lhe importa o fracasso de um livro do qual já o separa a
evolução do seu pensamento? "Apenas — escreve a Rohde — mal acredito que eu o tenha escrito.. ." Descobriu o
seu urro e a sua falta, e esta é a angústia que não se atreve a confessar.

"Neste momento — anuncia a Gersdorff — fermentam em mim muitas coisas fortes e atrevidas. Não sei até
que ponto me será permitido comunicá-las aos meus melhores amigos. De qualquer modo, porém, não as posso
escrever." No entanto, uma noite a paixão o arrastou. Achava-se a sós com Overbeck; a conversação recaiu sobre o
Lohengrin, e Nietzsche despedaçou com repentino furor, esta obra falsa e romântica. Estupefato, Overbeck ouvia-o.
Afinal, Nietzsche calou-se, e, desde então, tratou de vigiar melhor aquela dissimulação que o enchia de vergonha e
asco de si próprio.
Querido e fiel amigo — escreve a Gersdorff em abril de 1874 - oxalá você me estimasse muito menos do
que estimai Estou, quase seguro de que você perderá as ilusões que tem sabre mim, e eu quisera ser o primeiro a
abrir-lhe os olhos, explicando-lhe, sinceramente, que não mereço nenhum dos seus elogios. Se você pudesse saber
quão. radicalmente desanimado me acho, e que melancolia experimento em relação a mim mesmo} Não sei se serei,
jamais, capaz de produzir algo. De agora em diante desejo apenas procurar um pouco de liberdade, um pouco da
atmosfera real da vida, e me arma e rebelo contra todas as escuridões, numerosas, infinitamente numerosas, que me
aprisionavam... Consegui-lo-ei alguma vez? Dúvida sobre dúvida. O fim está demasiado longe, e, se conseguir
alcançá-lo um dia, terei consumido, então, o melhor de mim mesmo, em gran des esforços e grandes combates.
Serei livre, mas definharei como um efêmero ao crepúsculo. É este é o meu vivo temor. É uma desgraça
ser tão clarividente, tão consciente de suas próprias lutas!...

Esta carta é de l.o de abril. No dia 4 do mesmo mês escreve à senhorita de Meysenbug uma carta cheia de
melancolia, e, no entanto, menos desesperada:

Querida senhorita: que prazer você me proporciona, e como me comove! É a primeira vez que me en-
viam flores, e agora sei que estas cores vivas e inumeráveis, por mais mudas que aquelas sejam, falam-nos
perfeitamente. Estas anunciadoras da primavera floriram o meu quarto e pude gozar delas durante mais de uma
semana. Em nossas vidas, tão obscuras e dolorosas, há grande necessidade de que as flores venham divulgar
um segredo da natureza: elas nos impedem de esquecer que é sempre possível encontrar em alguma parte
do mundo vida, esperança, luz e cores. Com que freqüência se perde essa fé! E é uma admirável felicidade que
se experimenta quando os combatentes se ajudam mutuamente em seu valor e, pela remessa de símbolos, flores ou
livros, se recordam sua fé comum.

Minha saúde (permita que por um momento fale nisto) é satisfatória desde o Ano Novo,
excetuando a vista, sempre necessitada de cuidado.- Mas você sabe que existem estados de sofrimento físico
que são às vezes quase um bem, já que fazem esquecer o que se sofre em outras partes . Mais ainda: a gente
chega a dizer , que assim como há remédios para ò corpo, deve havê-los para a alma. É aqui está a minha
filosofia da enfermidade, que dá certa esperança à alma. E esperar não é, afinal, uma obra de arte?

Deseje-me a força suficiente para escrever as onze "Extemporâneas" cuja tarefa ainda falta. Terei, afinal,
dito tudo quanto nos oprime, e talvez depois desta confissão geral nos sintamos um pouco mais livres.

Acompanham-na os meus cordiais votos de felicidade, querida senhorita e amiga.

Frederico Nietzsche volta, por fim, ao trabalho. Seu instinto conduto para o filósofo que o sustentara nos
seus primeiros anos. Quer dedicar a Schopenhauer sua terceira "Extemporânea". Dez anos antes arrastava em
Leipzig uma existência miserável e Schopenhauer o salvara; sua estranha alegria, seu lirismo, aquela ironia com
que exprime seus mais ásperos pensamentos havia lhe devolvido o força de viver. Se Schopenhauer “te
perturba” e enlouquece, escrevia então a um camarada — se não tem força para te elevar e fazer-te chegar, através
das mais vivas dores da vida exterior, até esse estado de espírito doloroso, mas feliz, que nos acolhe quando ouvimos
uma música nobre, até esse estado de espírito no qual parece que as envolturas terrestres caem em volta de nós —
nesse caso, é que não entendo nada desta filosofia."

Voltou novamente a experimentar as impressões da juventude; recordou que as mais fecundas crises de sua
vida haviam sido as mais dolorosas, e, voltando à escola do seu velho mestre, reconquistou, o valor. "Faltam-me
cantar onze belas cantatas" — escreve a Rohde anunciando os trabalhos que seguiriam a este. E seu Schopenhauer é
uma cantata, um hino à solidão e ao valor de um pensador. Sua alma estava, então, toda impregnada de música.
Descansava de seu trabalho compondo um hino à amizade: "Canto-o para todos vocês" — escrevia a Erwin Rohde.

Em companhia de sua irmã, que o fora buscar, partiu de Basiléia indo instalar-se na campina, perto das
cascatas do Reno. Como em seus dias de infância, Frederico Nietzsche voltara à alegria, um pouco, sem dúvida, para
distrair a moça que tão ternamente viera procurá-lo — aliis laetus, sibi sapiens, segundo a máxima que se acha
escrita em suas notas daquela época — mas também porque realmente era feliz apesar de sua dor; feliz de se
pertencer a si próprio, de sentir-se livre e puro ante a vida. "Minha irmã está comigo — escreve a Gersdorff — e
todos os dias fazemos os mais belos projetos para a nossa vida futura, idílica, laboriosa e simples. Tudo vai bem;
sepultei toda a debilidade e toda!a melancolia no mais profundo do meu ser."

Passeava com sua irmã, conversava, ria, sonhava e lia. Que lia? Decerto, Schopenhauer; depois, Montaigne,
naquela elegante edição, transformada, agora, em triste recordação, que, fazia tempo, Cosima Wagner lhe oferecera
em gratidão pelas marionetes que levara às crianças. "O prazer de viver sobre a terra é mais vivo pelo simples fato de
que este homem tenha escrito — dizia Nietzsche referindo-se a Montaigne. — Desde que mantenho relações com
seu espírito livre e forte entre todos, tenho prazer em dizer o que ele dizia de Plutarco: "De cada vez que me cai nas
mãos, tiro dele um bom pedaço." (*). — Se me colocasse em posição de escolher, seria em sua companhia que
desejaria viver como comigo mesmo." Schopenhauer e Montaigne: ao lado desses dois ironistas, um confessando seu
desespero, e o outro diminuindo-o, que Nietzsche preparar-se para viver. Ao mesmo tempo, porém, lia com vivo
prazer a obra de um outro pensador mais terno e menos desfavorável às suas aspirações: a obra do confia do
Emerson, profeta jovem de uma terra jovem, que menor

(*) "Je ne le puis si peu raccointer que je n'en tire cuisse ou aile".

102 DANIEL HALÉVY

de suas frases exprime com felicidade a pura emoção que ilumina a adolescência dos homens. Frederico
Nietzsche já o lera em Pforta, e, ao encontrá-lo de novo na primavera de 1874, recomenda-o aos seus amigos.

"O mundo é jovem — escreve Emerson no final do seu "Representative Men". — Os grandes homens do
passado nos chamam afetuosamente. Nós também devemos escrever Bíblias, para unir novamente os céus ao mundo
terreno. O segredo do gênio consiste em não tolerar em torno de si a existência de ficção alguma; em realizar tudo o
que sabemos; em exigir sempre — nos refinamentos da vida moderna, na arte, na ciência, nos livros e nos homens —
a boa fé, a realidade, e um fim; e principalmente, por fim, sobretudo e antes de tudo — em honrar cada
verdade, vivendo-a."

Nietzsche precisava do consolo destas palavras, e ouviu-as apaixonadamente.

No início de junho terminou o manuscrito do seu Schopenhauer como educador. Intelectualmente achava-se
quase curado, mas experimentava outros sofrimentos. A senhora Förster-Nietzsche conta que, havendo um dia seu
irmão manifestado repugnância pelos romances e seu monótono amor, alguém lhe perguntou que outro sentimento
poderia apaixonar tanto como o amor. "A amizade — respondeu com vivacidade — a amizade, que determina
absolutamente as mesmas crises que o amor, porém numa atmosfera mais pura. Primeiro, é uma atração recíproca,
determinada por convicções comuns; a admiração e a glorificação mútuas: depois, de uma parte a desconfiança, e de
outra as dúvidas sobre a excelência do amigo e de suas idéias; a certeza de que uma ruptura é inevitável e que, no
entanto, será dolorosa... Na amizade existem todos estes sofrimentos, e ainda outros, impossíveis de exprimir."
Nietzsche os conheceu a todos, a partir de junho de 1874. Queria profundamente a Wagner, e jamais havia deixado
de o estimar. Seus erros intelectuais poderiam ser corrigidos. Richard Wagner não era um filósofo, nem um educador
da Europa, mas isso não impedia que fosse um maravilhoso artista, fonte de toda a beleza e de toda a felicidade, e
Nietzsche continuava a querê-lo como se quer a uma mulher que nos proporciona alegria. Qualquer idéia de
rompimento lhe era insuportável, e não confiava a ninguém seus pensametos.

A situação era incômoda e falsa. Em janeiro, no mais agudo da crise, teve que escrever a Wagner
felicitando-o por uma notícia tão extraordinária como imprevista. O rei da Baviera salvara a empresa de Bayreuth
oferecendo inesperadamente a .soma necessária. Simultaneamente, Nietzsche enviou-lhe o folheto sobre a
Enfermidade Histórica, no qual o mestre não aparecia citado uma vez sequer. Isto surpreendeu um pouco em
Bayreuth, e a senhora Cosima Wagner se encarregou do fazer uma discreta chamada à ordem:

Graças à parte que lhe foi dado tomar nos sofrimentos do gênio — escreveu ela — você se tornou capaz de
pronunciar um juízo de conjunto sobre a nossa cultura, e a esta circunstância devem também seus trabalhos esse
maravilhoso fervor que, estou certa, continuará agindo por muito tempo depois de se haverem extinguido nossas
estrelas de gás e querosene. Provavelmente, você não teria penetrado com um olhar tão seguro a desordem da
Aparência, se não se tivesse misturado tão profundamente a nossas vidas. Da mesma fonte brotou em você a ironia
e o humorismo, e este duplo fundo de sofrimentos compartilhados lhes dá uma força muito diferente daquela que um
simples jogo de inteligência lhes poderia dar.

"Veja! — dizia Nietzsche a sua irmã — como me estimam em Bayreuth!"

Em 22 de maio, aniversário do nascimento de Wagner, Nietzsche dirigiu-lhe algumas palavras de


congratulação. Wagner respondeu-lhe em seguida, convidando-o a passar alguns dias "em seu quarto". Nietzsche,
dando uma desculpa qualquer, declinou do convite. Alguns dias mais tarde escreveu a Wagner (suas cartas se
perderam, ou foram destruídas), recebendo a seguinte resposta:
Querido amigo:

Por que não nos vem ver?


Não seja tão retraído, ou do contrário, pensarei que nada poderei fazer por você.
Seu quarto está preparado.
Escrevo-lhe imediatamente depois de receber sua última carta.
De outra vez lhe escreverei mais longamente.

Seu do coração,
R. W.

Wahnfried, junho de 1874.

Provavelmente, Wagner quis Nietzsche até onde era capaz de querer. Rodeado de adoradores e de
discípulos demasiado dóceis, distinguia entre todos, aquele moço ardente, ávido de entregar-se e ávido de liberdade.
O mestre se impacientava freqüentemente, mas perdoava em seguida. Sem compreender exatamente o que se passava
no espírito do amigo, adivinhava que sua turbulenta vida fora sacudida por alguma trágica crise, e então escrevia-lhe
bondosamente. Isto, porém, não fazia senão aumentar os sofrimentos de Nietzsche, que mais vivamente sentia o
valor do que ia perder. Faltou-lhe a coragem, e pela segunda vez recusou o convite do mestre, o que suscitou em
Bayreuth uma indignação cujos ecos chegaram até ele.

Fiquei sabendo — escreve a um amigo — que se ocupam de mim novamente e que me julgam insociável e
com um humor igual ao de um cão sarnento. Realmente, não posso ser de outro modo, quando se trata de certas
pessoas que prefiro ver de longe do que de perto.

O leal Gersdorff, leal em tudo, tanto ao mestre como ao discípulo, escreveu a este, suplicando-lhe que fosse
a Bayreuth. Nietzsche afastou o insistente pedido com um gesto de protesto.

Como lhe pode ter ocorrido, querido amigo, a estranha idéia de me obrigar, sob ameaça, a passar em
Bayreuth uns dias deste verão?... Nós dois sabemos que Wagner é naturalmente inclinado à desconfiança, e não me
parece oportuno avivá-la mais ainda. Pense, enfim, que tenho deveres para comigo mesmo, deveres difíceis de
cumprir quando se tem uma saúde tão precária como a minha. Em verdade, ninguém tem o direito de me obrigar a
coisa alguma...

Estas rebeliões furavam apenas um momento; Nietzsche não tinha a força de romper. Desejava, de todo o
coração, conservar a amizade de Wagner. Se deixara de ir a Bayreuth, não o fizera sem se escusar, invocando
demoras inevitáveis e pretextando urgentes ocupações, procurando, assim, preparar os acontecimentos que pudessem
sobrevir de futuro. Pelos fins de julho, tendo recebido um novo convite, e cansado já de se defender, foi. Uma
singular idéia lhe ocorreu então. Desejava simplesmente afirmar a sua independência, ou queria corrigir Wagner? É
provável que, naquele momento, concebesse o sonho inaudito de influenciar seu mestre, purificá-lo e elevá-lo até à
altura das abnegações que ele mesmo havia inspirado. Tomou uma partitura de Brahms, a quem admirava e a quem
os ciúmes, às vezes cômicos, de Wagner perseguiam; colocou-a na maleta, e, desde a primeira noite que passou em
Bayreuth colocou-a ostensivamente sobre o piano. A partitura estava encadernada em vermelho vivo; Wagner viu-a
e, sem dúvida, compreendeu, mas teve a prudência de não dizer nada. No dia seguinte, Nietzsche recomeçou a ma -
nobra. Isto era já demais. O grande homem estourou; gritou, rugiu em um frenesi de ira, e saiu batendo com a porta.
Nisto, encontrou-se com a irmã de Nietzsche, que fora com ele, e, repentinamente caçoando consigo mesmo, contou
alegremente a anedota:

— "Seu irmão havia posto de novo a partitura vermelha sobre o piano e foi ela a primeira coisa que vi, ao
entrar no salão. Entrou imediatamente em furor, como um touro diante de um pano encarnado. Compreendi
claramente que Nietzsche queria fazer-me compreender que aquele homem, Brahms, também compusera boa
música, e estourei, o que se chama estourar!"

E Wagner ria ruidosamente enquanto a senhorita Nietzsche corria desolada em busca de seu irmão.

— Que é que você fez, Frederico? Que aconteceu?

— Ah, Lisbeth! Wagner não soube ser grande!... Tendo rido, Wagner acalmara-se e naquela mesma
noite

se reconciliou com enfant terrible. Nietzsche, porém, não tinha ilusões ao apertar a mão do mestre: o
abismo que os afastava era cada vez mais profundo, e mais ameaçadora a separação definitiva.
Partiu de Bayreuth. Sua saúde, que fora regular durante o mês de agosto, tornou a ressentir-se em setembro,
e, mal ou bem, trabalhou e corrigiu as provas de seu Schopenhauer\ que publicou em outubro.

Por meu livro, você perceberá perfeitamente — escreveu à senhorita de Meysenbug — as provações que ti-
ve de suportar neste ano, provações mais cruéis e mais graves do que você poderá adivinhar ao ler-me. Em suma,
minha vida está privada de sol, não obstante, porém, avanço, e já é uma grande felicidade avançar pelo caminho do
próprio dever... Agora estou tratando de me ilustrar sobre o sistema de forças antagônicas em que repousa o nosso
"mundo moderno". Felizmente, careço de toda a ambição política ou social; nenhum perigo me ameaça, nada me
inclina ou obriga a transigências nem delicadezas. Tenho, enfim, o campo livre na minha frente e algum dia saberei
até que ponto os nossos contemporâneos, tão orgulhosos de sua liberdade de pensamento, toleram os pensamentos
livres... Qual não será o meu ardor quando, enfim, me tenha despojado de tudo o que há em mim de negativo e de
indômito! E, no entanto, me atrevo a esperar que dentro de uns cinco anos estarei muito próximo desta meta!

Era esta uma esperança muito carregada de sombras. Frederico Nietzsche, ávido de possessão, impaciente
por agir, tinha que fazer frente a cinco anos de espera, de árido trabalho e de critica, "Trinta anos — escreve num
livro de notas. — A vida começa a converter-se num negócio difícil. Não encontro motivo algum de alegria, e, não
obstante, deve haver sempre um motivo de alegria."

Regressou a Basiléia, e reiniciou suas aulas. Esta tarefa," que sempre lhe havia sido pesada, se fez ainda
mais acabrunhadora, ao encarregarem-no de dar aulas de grego a uma turma de alunos mais jovens. Tinha
consciência do alto valor do seu tempo, e sabia que cada hora sacrificada à Universidade aumentava o prazo, já tão
dilatado, de cinco anos. Cada uma destas horas o fazia sofrer como um remorso, como uma falta ao seu dever de
escritor.

Tenho diante de mim material para cinqüenta anos de bom trabalho — escrevia a sua mãe no outono — e
eis que tenho de me submeter ao jugo, podendo apenas lançar uma olhadela para a direita ou para a esquerda, Ah!
(Suspiro). O inverno chegou depressa, muito depressa e muito rude. Provavelmente fará frio no Natal. Desgostá-la-
ia se a fosse ver? Sinto-me feliz só em pensar em voltar para a companhia de vocês, livre por dez dias deste maldito
trabalho da Universidade. , Prepare-me, então, para o Natal, um cantinho no campo, onde possa terminar a minha
vida em paz, escrevendo formosos livros. Ah! (Suspiro).

Nestes momentos de prostração voltavam a dominá-lo a lembrança de Wagner e da existência quase serena
que desfrutara em sua intimidade. A glória do mestre, diminuída por um momento, ressurgia com novo vigor; o
público inclinava-se ante o êxito, e Nietzsche, que havia lutado nas horas difíceis, tinha que se, deixar de lado na
hora do triunfo. A idéia de que a arte wagneriana estava ao seu alcance, oferecendo sempre o milagre dos seus
quinze mundos encantados; o pensamento de que o próprio Wagner ali estava, oferecendo-se também, sempre
genial, exuberante, cheio de regozijo, terno, sublime, acariciador, e criando em torno de si a vida, como um deus; o
pensamento de que ele, Nietzsche, havia possuído tanta beleza e que, com um pouco de covardia poderia possuí-la
ainda, mas que jamais a possuiria — eram, para Nietzsche, um perpétuo sofrimento. Afinal, cedendo a uma
necessidade de efusão cordial, escreveu ao único consolador, a Wagner. Como todas as suas outras cartas, esta se
perdeu, ou foi destruída, mas o tom daquela que acabamos de transcrever e o da resposta de Wagner ajudam a
imaginar qual foi a sua eloqüência. Wagner respondeu:

Querido amigo:

Sua carta inquietou-nos novamente a seu respeito. Em seguida, minha mulher lhe escreverá mais extensa-
mente do que eu o faço. Tenho, porém, um quarto de hora de descanso e quero — quem sabe se para o aborrecer
mais — consagrá-lo a deixá-lo mais ao corrente do que aqui falamos a seu respeito. Entre outras coisas me parece
que,jamais tive na minha vida a sociedade intelectual que você encontra em Basiléia para o regozijo dos seus
serões; não obstante, se todos os que a formam são hipocondríacos, confesso que a coisa não me parece demasiado
apetecível. Segundo parece o que falta a vocês, jovens de hoje, são as mulheres. Bem sei que há dificuldade em
consenti-las, pois, como dizia meu amigo Sulzer: "onde encontrar mulheres sem roubá-las?" Por outro lado, em
caso de necessidade, se poderiam roubar. Quero dizer que você deveria casar-se, ou compor uma ópera. Pára você
uma coisa seria tão boa, ou tão má como a outra. No entanto, considero melhor o matrimônio.

Entrementes, poderia recomendar-lhe um paliativo, pois sei que você põe acima de tudo o seu regime de
vida, de tal modo que nada se lhe pode dizer. Por exemplo: organizamos nossa casa aqui de tal forma que temos
para você um lugar como jamais se me ofereceu nos momentos mais difíceis da minha vida. Você devia vir passar
nele suas férias de verão. Mas, com muita prudência você já nos anunciou, desde o começo do inverno, que
resolvera ir passar as férias do estio no cimo de uma muito alta e muito solitária montanha da Suíça. Não tem isto o
ar de uma sagaz defesa contra um possível convite? Nós lhe poderemos ser úteis em alguma coisa. Porque despreza
o que se lhe oferece de tão boa vontade? Gersdorff e toda a turma de Basiléia se sentiriam muito à vontade aqui. Há
mil coisas interessantes para ver; eu passo em revista todos os meus cantores dos Nibelungos; o decorador decora,
o maquinista manipula, e, por fim, aqui estamos nós em carne e osso.

Mas, as extravagâncias do amigo Nietzsche já são conhecidas!

E, assim, não falarei mais de você, sabendo, como sei, que isso de nada lhe serve.

Por Deus! Case-se com uma mulher rica! Por que fatalidade pertencerá Gersdorff justamente ao sexo mas-
culino?! Case-se e viaje logo e enriqueça-se com todas essas magníficas impressões que tanto deseja, e em se-
guida... você comporá uma obra que, seguramente, será terrivelmente difícil de executar. Que Satanás foi que fez de
você um pedagogo?

E agora, para terminar: no próximo ano, no verão, ensaios completos (provavelmente com orquestra), em
Bayreuth. Em 1876, as representações. É impossível andar mais depressa.

Eu tomo banho diariamente; já não podia suportar à minha barriga. Banhe-se você também) Coma carne
também!

Seu de todo o coração.

Seu devoto,

R. W.

Wagner previra que sua carta seria inútil, mas não que seria prejudicial. Nietzsche se arrependeu de haver
provocado oferecimento tão ternos e que ele não poderia aceitar. Ao escrever ao mestre, cometera uma fraqueza de
que se envergonhava. Finalmente, o anúncio da proximidade dos ensaios de Bayreuth, acabaram de o transtornar.
Iria? Não iria? E se não ia, como se escusar. Devia, então, confessar tudo?

Havia começado uma quarta "Extemporânea", Nós, os filólogos; não tardou, porém, em abandoná-la,
alegando, para explicar esse abandono, a fadiga e o encargo de suas tarefas universitárias. Quando fala assim,
Nietzsche ou se engana, ou nos engana. Havendo chegado o Natal, vai passar os dez dias junto de sua mãe, em
Naumburg. Está livre, e poderia trabalhar, mas, ao invés de escrever, compõe e transcreve pára quatro mãos o seu
Hino à Amizade? Passa a festa de São Silvestre relendo suas composições da juventude; este exame lhe interessa.
"Sempre admirei — escreve à senhorita de Meysenbug, — a maneira como se manifesta na música a invariabilidade
do caráter. Aquilo que uma criança exprime musicalmente é, a tal ponto, a linguagem de sua natureza essencial, que
o homem, mais tarde, hão deseja corrigir nada."

Esta libertinagem musical é sinal de má disposição, de debilidade e temor diante de seus pensamentos. Duas
cartas, uma de Gersdorff e outra de Cosima Wagner, chegam para turbar sua solitária comemoração. O amigo e a
amiga lhe falam de Bayreuth. Este apelo desespera-o.

Ontem — escreve à senhorita de Meysenbug — primeiro dia do ano, vi o futuro com um estremecimento
real. É terrível e perigoso viver ... de bom grado invejaria a todo aquele que tivesse acabado de morrer de um modo
honrado. Além disso, estou resolvido a viver muito tempo, tenho muito que fazer. Não é, porém, a satisfação de viver
que me ajudará a chegar à velhice. Você, sem dúvida, compreenderá esta resolução.

Durante janeiro e fevereiro de 1875, Nietzsche não trabalha. Entrega-se, à depressão: "Em raros momentos
— escreve — dez minutos em cada duas semanas, componho um hino à solidão. Hei de mostrá-la em toda a sua
espantosa beleza."

Em maio, Gersdorff vai passar uma temporada em Basiléia. Animado com a sua chegada, Nietzsche ditou-
lhe algumas notas. Parecia um pouco aliviado de sua tristeza, mas vim novo pesar voltou a submergi-lo nela.

Havia contraído o costume muito doce e de acordo com seu gosto, de fazer vida em comum com seus dois
colegas Overbeck e Bomundt, que formavam aquela sociedade intelectual de que Wagner falava com tanta estima.
Em fevereiro do 1875, porém, Bomundt anunciou a Nietzsche e a Overbeck que ia separar-se deles para receber
ordens religiosas. Nietzsche teve um momento de estupor e de Indignação; desde muitos meses vivia com esse
homem, chamava-o seu amigo, e, no entanto, não havia suspeitado desta vocação secreta, repentinamente declarada.
Romundt se escondera dele; subjugado pela fé religiosa, havia faltado à boa fé mais elementar e àqueles deveres de
amizade que Nietzsche elevara à categoria de uni ideal exaltado.
A traição de Romundt recordou-lhe outra traição e lhe fez compreender melhor a notícia que se murmurava
entre os "wagnerianos: o mestre ia compor um mistério cristão, um Parsifal. Nada podia contrariar tanto Nietzsche,
como um retorno ao cristianismo; nada lhe parecia tão fraco e covarde como essa renúncia diante de todos os
problemas da vida.

Alguns anos atrás conhecera e amara os projetos diferentes com que Wagner entretinha seus íntimos; falava,
então, de Lutero, do grande Frederico; desejava glorificar um herói alemão e repetir o afortunado ensaio de Os
Mestres Cantores, Por que havia abandonado seus projetos? Por que preferia Parsifal a Lutero? E a religiosidade do
Santo Graal à vida rude e jocunda da Renascença germânica? Frederico Nietzsche compreendeu então e mediu os
perigos do pessimismo que acostuma às queixas, que debilita as almas e as predispõe às consolações místicas.
Censurou-se, então, por haver ensinado a Romundt uma doutrina demasiado cruel para a sua coragem, provocando,
assim, seu desfalecimento.

Ah! nossa atmosfera protestante, boa e pural — escreve a Rohde. — Jamais havia sentido tão intensamen-
te o quanto estou cheio do espírito de Lutero. E o desgraçado volve as costas a tantos gênios libertadores! Pergunto
se ele estará em seu perfeito juízo, se não seria necessário tratá-lo com água fria e duchas — de tal maneira é
incompreensível para mim que semelhante espectro se levante ao meu lado e se apodere de um homem que há 8
anos é meu camarada. E, para cúmulo, é sobre mim que pesa a responsabilidade desta conversão aviltadora. Deus
sabe que nenhum pensamento egoísta me leva a falar assim; porém, eu creio representar também uma coisa
sagrada, e sentiria profunda vergonha se merecesse a acusação de ter o menor contado com esse catolicismo que
odeio profundamente.

Tentou demover o convencer o seu amigo, mas nenhuma discussão era possível, pois Romundt Mp
respondia e mantinha sua resolução. Na data fixada, partiu. Nietzsche escreveu a Gersdorff e contou essa partida:

Aquilo foi terrivelmente triste: Romundt sabia e repetia-o constantemente que, desde então, toda a felici-
dade e o melhor de sua vida, ele já o havia vivido.

Chorava muito e pedia-nos perdão. Não podia ocultar sua tristeza. No último instante me senti possuído de
verdadeiro terror: os empregados fechavam .as portinholas dos vagões, e Romundt, para nos falar ainda, quis
abaixar o vidro, mas este resistia aos seus esforços; nosso amigo redobrou-os e, enquanto se atormentava inutilmen-
te para se fazer ouvir, o trem partiu lentamente e nós ficamos reduzidos a fazer sinais. O espantoso simbolismo de
toda esta cena me comoveu profundamente, como também a Overbeck (mais tarde ele confessou isso); era apenas
suportável; no dia seguinte fiquei deitado, com uma dor de cabeça que durou trinta horas, e numerosos vômitos de
bílis.

Aquele dia de doença foi o primeiro de uma longa crise. Nietzsche se viu obrigado a partir de Basiléia para
procurar repouso na solidão das montanhas e dos bosques. "Ando sempre só — escreve — esclarecendo muitas das
minhas idéias..." Quais eram essas idéias? Podemos pressenti-lo:

"Mande-me uma palavra de consolo — escreve a Rohde; — que sua amizade me ajude a suportar melhor
esta horrível história. Feriram-me no sentimento da amizade. Odeio mais que nunca essa insincera e hipócrita
maneira de ser de muitas amizades, e terei que ser mais circunspeto para o futuro."

A senhorita Nietzsche, que havia passado o mês de março em Bayreuth com os Wagner, foi buscar seu
irmão, cujo estado de ânimo a assustou. Parecia obcecado pela lembrança de Romundt. "Entre amigos, vivendo sob o
mesmo teto! — dizia constantemente — suceder uma tal desgraça! É espantoso!" Em realidade, Nietzsche pensava
no outro amigo, em Richard Wagner, o mestre que ia perder.

"Que perigo corri — dizia; — eu admirava, era ditoso, me entregava, seguia uma ilusão; mas todas as
ilusões estão ligadas entre si e são cúmplices; o wagnerismo confina com o cristianismo..." Sem cansar-se nunca,
ouvia sua irmã que falava das maravilhas de Bayreuth, da atividade, do entusiasmo e da alegria de todos. Um dia,
passeando com ele pelo jardim público contava-lhe, pela décima vez todas essas coisas, quando percebeu que seu
irmão a ouvia com uma emoção estranha. Interrogou-o, aborreceu-o com perguntas — e . o segredo que Nietzsche
guardava havia um ano, escapou numa grande e eloqüente queixa. De repente, calou-se. Observara que um
transeunte o seguia e espiava. Arrastou precipitadamente sua irmã, aterrado diante da idéia de que suas palavras iam
ser repetidas em Bayreuth. Alguns dias mais tarde, havendo reconhecido o transeunte curioso, soube seu nome: era
Ivan Turgueneff.

O mês de julho de 1875, época fixada para os ensaios da Tetralogia, se aproximava, e esses ensaios eram a
única preocupação dos amigos de Nietzsche, o único tema de suas cartas e de suas conversas. Ele continuava
dissimulando e não se atrevia a cortar pela raiz um mal que precisava resolver urgentemente. Iria ou não àqueles
ensaios? Seu nervosismo crescia todos os dias, com os sintomas de costume: dor de cabeça) insônia, vômitos, fortes
dores de estômago. Finalmente, ii saúde lhe serviu de desculpa. "Já que você vai a Bayreuth escreveu a Gersdorff —
diga a eles que eu não irei. Wagner ficará muito aborrecido e eu não o estou menos..." Desde os primeiros dias de
julho, enquanto seus amigos se aprontavam era direção a Bayreuth, e tendo a Universidade fechado as portas,
Nietzsche se retirou para uma pequena estância climatérica que o médico lhe recomendara, Steinabad, um lugar
perdido num vale da Floresta Negra.

Frederico Nietzsche possuía a faculdade de se superpor por alguns instantes, às suas dores e alegrias; sabia
gozar o espetáculo de suas crises como se fossem as vozes entrelaçadas de uma sinfonia. Cessava, então, de
sofrer e contemplava, com uma espécie de arroubo místico, o desenvolvimento trágico de sua existência. Tal foi
sua vida durante as poucas semanas de cura em Steinabad. Não obstante, sua saúde não lhe proporcionava nenhum
motivo de alegria; seu mal resistia a todos os remédios, e os médicos deixavam adivinhar uma causa idêntica,
inapreciável e misteriosa» como origem de todas as crises, file não ignorava qual" a enfermidade que destruíra seu
pai aos trinta e seis anos. Compreendia as meias palavras e sentia a ameaça, mas fazia entrar essa mesma amea ça no
espetáculo do sua vida e enfrentava-a valentemente.

Steinabad é próximo de Bayreuth; e novamente a tentação voltou a se apoderar de Nietzsche. Iria? Não iria?
Esta indecisão foi suficiente para que, pelos fins de julho, uma terrível crise, que o reteve dois dias na cama, pusesse
fim a suas dúvidas. Em primeiro de agosto, escrevia a Rohde: "Hoje, querido amigo, se não me. engano, vocês se
encontrarão todos em Bayeruth, sem mim, e notando minha falta. Em vão acreditei poder surgir de repente entre
vocês e gozar da surpresa. Em vim: hoje, cm meio do meu tratamento, posso dizê-lo com certeza . ."

A crise se atenuou. Pôde levantar-se e passear pelos bosques. Havia levado consigo o Dom Quixote, leu
esse livro, "amargo entre todos", burla de Iodos os esforços nobres. Não obstante, conservou o seu valor. Sem sentir
uma dor demasiado viva, recordou seu passado creio de alegrias; afrontou sem medo o futuro ameaçador; pensou
naquela grande obra sobre o helenismo, velho sonho que não abandonava; pensou na série interrompida das
Considerações Extemporâneas e, sobretudo, deliciou-se em conceber o "belo livro" que havia de escrever quando se
sentisse seguro de si mesmo. Devo sacrificar tudo a essa obra — pensava. Desde alguns anos tenho escri to muito,
demasiado; e enganei-me com freqüência. Agora devo me calar e consagrar muitos anos ao trabalho: sete, oito
anos. Viverei tanto tempo? Dentro de oito anos, terei quarenta. Meu pai morreu quatro anos antes. Não importa, devo
aceitar o risco e o perigo. O tempo do silêncio chegou para mim. Difamei muito os homens modernos, e, no en tanto,
sou um deles, sofro com eles e como eles, por causa do excesso, da desordem e de meus desejos. Já que devo ser seu
mestre preciso, antes de tudo, dominar-me a mim mesmo e reprimir minha desordem. Para dominar meus instintos
devo conhecê-los e julgá-los; devo sujeitar-me à análise. Critiquei a ciência e exaltei a inspiração, mas não analisei
as fontes da inspiração, e a que abismos não a segui! Minha juventude era a minha desculpa; agora, a juventude
terminou. Rohde, Gersdorff e Overbeck estão em Bayreuth; invejo-os, mas tenho pena deles. Já passaram da idade
dos sonhos, e não deveriam estar lá. Que tarefa devo empreender agora? Estudarei as ciências naturais, as
matemáticas, a física, a química, a história e a economia política. Acumularei um material imenso para conhecer o
homem; lerei velhos livros de história, novelas, correspondências... O trabalho será rude, mas terei constantemente
perto de mim Platão, Aristóteles. Goethe e Schopenhauer, e graças aos meus gênios bem amados, minha pena será
menos dura e minha solidão (menos solitária. ..

Quase todos os dias os pensamentos de Frederico Nietzsche eram distraídos por uma carta de Bayreuth que
recebia e lia sem amargura. Em algumas notas, escritas somente para ele, fixou a recordação das alegrias que devia a
Wagner; depois, respondendo a seus amigos, diz:

Durante as três quartas partes de meus dias estou com vocês em espírito pois dou voltas, como uma som -
bra, em redor de Bayreuth. Não receiem excitar a minha inveja contando-me todas as notícias, meus queridos
amigos. Durante os meus passeios, dirijo a mim mesmo páginas inteiras de música que sei de memória e logo
resmungo e blasfemo. Saúdem Wagner em meu nome, saúdem-no de todo o coração! Adeus, amigos queridissimos.
Quero-os a todos com toda minha alma.

Nietzsche regressou a Basiléia um tanto fortificado pelo repouso. Sua irmã ali se reuniu a ele e quis
permanecer ao seu lado. Entre os seus papéis, seus livros e seu piano, continuou levando a vida puramente de
meditação e quase ditosa de Steinabad.

"Sonho — escreve grifando estas palavras — com uma associação de homens absolutos, que não conheçam
dificuldade alguma e queiram ser chamados "os destruidores"; a tudo eles aplicarão a medida de sua crítica e se
sacrificarão á verdade! Tudo o que é suspeitoso e falso, deve ser trazido à luz!
Não queremos construir prematuramente. Não sabemos se poderemos construir, ou se mais vale não
construir. Há pessimistas covardes, resignados. Nós não queremos ser destes."

Começou os grandes estudos que se impusera. Começou por estudar o livro de Dühring O valor da vida.
Dühring é um positivista que dirige a batalha contra os discípulos de Schopenhauer e de Wagner:

"Todo o idealismo decepciona — diz ele; — toda a vida que se quer evadir da vida, entrega-se às
quimeras". Frederico Nietzsche nada objeta a (estas premissas. "A vida sã traz em si própria o seu valor — diz
Dühring —. O ascetismo é enfermiço e conseqüência de um erro..." Não! — responde Nietzsche — o ascetismo é
um instinto que os mais nobres e mais fortes dos homens sentiram! É um fato que se deve ter em conta se se quiser
apreciar o valor da vida, e mesmo se um erro prodigioso se escondesse no seu.fundo, a possibilidade de semelhante
erro deveria ser contada entre os obscuros traços do ser... O trágico da vida não é irredutível, diz Dühring; a
soberania do egoísmo não é senão aparente; os instintos altruístas trabalham a alma humana...

O egoísmo, uma aparência!... exclama Nietzsche. Aqui, Dühring cai no infantilismo.

Ich wollte, er machte mir hier nichts vor . Prouvera a Deus que isso fosse verdade! Infelizmente, carece de
sentido. "Se Dühring acredita seriamente no que diz, acha-se maduro para todos os socialismos." Nietzsche termina
por argumentar contra Dühring com a filosofia trágica que Heráclito e Schopenhauer lhe ensinaram. Não há evasão
possível, toda a evasão ,é engano e covardia, disse Dühring, e disse verdade. Atenua, porém, a tarefa apre sentando
uma imagem amenizada desta vida a (me estamos sujeitos. A vida é dura, e tudo o mais é tolice ou mentira

Frederico Nietzsche era ditoso ou parecia sê-lo. Como o cuidado com os seus olhos não lhe permitia
trabalhar de noite, sua irmã lhe lia romances de Walter Scott. Agradava--lhe neles a narração simples, "a arte serena,
o andante", segundo escreve. Agradavam-he também as aventuras heróicas, ingênuas e complicadas: "Que bons
moços! E que estômagos!" — exclamava ele? depois de ouvir a leitura relatando os intermináveis festins. E a
senhorita Nietzsche, que ú via em tão boa disposição, assombrava-se um instante mais tarde, ao ouvi-lo tocar e
desenvolver o seu Hino à Solidão.

E não se surpreendia a toa: a alegria de seu irmão era falsa e a tristeza verdadeira. Nietzsche dissimulava
diante dela, e, sem dúvida, diante de si próprio. Ele havia começado a estudar o livro de B. Stewart sobre a
conservação da energia, mas interrompera-se nas primeiras páginas. Era-lhe intolerável trabalhar assim, sem o
"consolo de uma arte nem a alegria real de uma esperança. Acreditou que se interessaria mais pela sabedoria hindu, e
pegou a tradução inglesa do Sutta Nipata; não compreendeu demasiado bem senão o seu niilismo radical:
"Quando estou doente, na cama — escreveu a Gersdorff em dezembro — deixo-me dominar pela crença de que a
vida não vale nada e de que nossos fins são ilusórios..." Estas crises eram freqüentes; a cada quinze dias era atacado e
moído por sua enfermidade: enxaquecas, fortes dores no estômago, pontadas nos olhos.

"Ando de cá para lá, só, como um rinoceronte!" — Nietzsche retivera e aplicava a si próprio, com triste
humorismo, esta frase que finaliza um dos capítulos do Sutta Nipata.

Seus melhores amigos casavam-se por aquela época. Nietzsche maldizia de bom grado o casamento e as
mulheres. Raramente a gente é sincera quando fala assim, 6 sabemos que ele não o era. "Tenho amigos mais
numerosos e melhores do que mereço — escrevia em outubro de 1874 à senhorita de Meysenbug — o que agora
desejo para mim mesmo, com urgência, digo-o a você confidencialmente, é uma boa esposa. Então, a vida ter-me-á
dado quanto poderia desejar dela; o demais é assunto meu." Frederico Nietzsche felicitou os noivos, Gersdorff,
Ronde, Overbeck, e regozijou-se com eles, sem deixar de sentir a diferença do seu destino. "Seja feliz — escreveu a
Gersdorff — você, que não andará mais errante, de um lado pára outro, como um rinoceronte."

Ia começar o ano de 1876, e as representações da Tetralogia estavam anunciadas para o verão. Frederico
Nietzsche sabia que sua irresolução deveria, então, estar terminada: "Achava-me dominado -- escreveu mais tarde —
pela tristeza de um inexorável pressentimento, do pressentimento de que, depois daquela desilusão, ver-me-ia
condenado a desconfiar mais profundamente, a desprezar mais profundamente e a viver mais profundamente só do
que antes."

A impressão das festas de Natal e São Silvestre, sempre forte nele, agravou sua melancolia. Caiu doente em
dezembro para não se levantar senão em março, e ainda muito fraco.

Serei breve, pois escrevo com esforço — escreve á Gersdorff em 18 de fevereiro de .1876. — Jamais
atravessei um Natal tão triste, tão doloroso e de tão temível presságio! Não posso mais duvidar: a enfermidade de
que estou atacado é cerebral: o estômago e os olhos não me fazem sofrer senão por causa de outro mal, cujo centro
se acha em outra parte. Meu pai morreu aos trinta e seis anos, de uma inflamação no cérebro. É possível que
comigo as coisas andem ainda mais rapidamente. Tenho paciência, mas estou cheio de dúvidas sobre o que me
aguarda. Alimento-me quase unicamente de leite. Este regime me deu bom resultado: durmo bem. 6 leite e o sono
são, agora, os meus bens mais preciosos.

Ao aproximar-se a primavera, desejou afastar-se de Basiléia. Gersdorff se ofereceu para o acompanhar e os


amigos se instalaram juntos, na margem do lago de Genebra, em Chillon.

Ali passaram quinze dias lamentáveis. Nietzsche, cujos nervos se irritavam com a menor variação
atmosférica, mais ou menos úmida, ou mais ou menos carregada de eletricidade, sofreu com o "Föhn", vento ligeiro
que derrete as neves em março. Deixou-se deprimir por sua branda temperatura, e não soube conter a dilaceradora
expressão de suas dúvidas e angústias. Gersdorff, obrigado a regressar à Alemanha, partiu, inquieto com o estado em
que deixava o seu amigo.

Nietzsche, porém, sentiu-se melhor logo que ficou só. Talvez o tenha ajudado um tempo mais propício;
talvez sentisse menos aflição não tendo perto de si aquele compassivo Gersdorff, sempre disposto a ouvi-lo. Seu
estado de ânimo se tornou menos amargo e o acaso lhe proporcionou um socorro decisivo, uma hora libertadora.

A senhorita de Meysenbug acabava de publicar suas Memórias de uma Idealista. Nietzsche metera na
mala os dois volumes da obra. Ele queria muito, e cada ano mais, àquela mulher de cinqüenta anos, sempre
enferma e valorosa, delicada e boa. Não a admirava como a Cosima Wagner. A superioridade do seu espírito
não era tão brilhante. Era, porém, grande de coração e Nietzsche estimava verdadeiramente esta mulher fidelíssima
ao verdadeiro gênio das mulheres. Começou a leitura do seu livro, sem dúvida como uma moderada
curiosidade; mas logo se sentiu dominado pela obra, um dos mais belos testemunhos do século XIX. A senhorita
Meysenbug vivera-o em todos os sentidos: conhecera todos os seus mundos, todos os seus heróis, todas as suas
esperanças. Nascera na velha Alemanha das pequenas cortes, numa das quais seu pai era ministro; em menina,
escutara os amigos de Humboldt e de Goethe; em moça, comovera-a a predicação humanitarista; afastada do
cristianismo, deixara de observar suas práticas. Os sonhos de 1848, os socialistas e suas tentativas de uma vida
mais nobre e fraternal, despertaram-lhe admiração e quis trabalhar com eles. Criticada pelos seus, afasta-se deles e
parte, sozinha, sem pedir ajuda nem conselhos. Idealista de ação, e não de fantasia, une-se aos comunistas de Ham-
burgo, institui com eles uma espécie de cortiço, uma escola racionalista em que os professores vivem juntos, e esta
escola, dirigida por ela, prospera. Ameaçada pela polícia, vê-se obrigada a fugir para Londres, obscuro refúgio dos
proscritos de todas as raças, e túmulo dos vencidos. Passa a ganhar a vida lecionando; conhece Mazzini, Louís
Blanc, Herzen; é a amiga e consoladora destes homens desgraçados. Logo depois, vem o Segundo Império,
Napoleão III, Bismarck e o silêncio dos povos, Paris e sua brilhante cultura. A senhorita de Meysebug encontra-se
com Richard Wagner; desde muito tempo admirava a sua música, e agora admira o homem, ouve-o, sofre a sua
ascendência, e, renunciando ao culto da humanidade, consagra o seu fervor ao culto da arte. No entanto exerce e
prodigaliza sempre sua bondade ativa. Herzen morre deixando dois filhos. A senhorita de Meysenbug adota-os, não
hesitando em arcar com as responsabilidades de uma dupla maternidade. Frederico Nietzsche conhecera as duas
crianças e com freqüência admirara a ternura de sua amiga, sua abnegação livre e jamais desmentida— não conhecia,
porém, os detalhes daquela vida totalmente consagrada à abnegação.

A leitura deste livro reanimou-o. A senhorita de Meysenbug reconcilia-o com a vida; e ele novamente
recobra a saúde e a confiança. "Minha saúde — escreve a Gersdorff — está ligada a minhas esperanças: sinto-me
bem quando espero." Abandona a pensão e vai passar alguns dias em Genebra. Encontra ali um amigo, o músico
Senger; trava conhecimentos, também, com alguns franceses, partidários da comuna, proscritos, com os quais lhe
agrada conversar. Estima aqueles fanáticos de cérebro quadrado, mas prontos ao sacrifício. Ao que parece, entabula
uma escaramuça amorosa com duas russas "excêntricas"; depois, regressa a Basiléia, e a primeira carta que escreve é
para a senhorita de Meysenbug:

Basiléia, Sexta-feira Santa, 14 de abril de 1876.

Querida Senhorita:

Faz quatro dias mais ou menos, encontrando~me só, na margem do lago de Genebra, passei todo um
domingo junto de você, desde a primeira hora da manhã, até á noite banhada de luar. Li seu livro de ponta a ponta,
com atenção maior em cada página e sem cessar de repetir a mim mesmo, que jamais havia passado um domingo
mais santo. Você fez chegar até mim uma impressão de pureza e de amor que não me deixou mais. A natureza, no
dia em que li sua obra, parecia um reflexo desta impressão. Você estava diante de mim, como uma forma superior
do meu ser, uma forma muito superior, e, que, não obstante, sem me humilhar, me animava; assim atravessava meus
pensamentos, e, comparando minha vida com a sua, compreendia melhor o que me faltava: tantas, tantas coisas!
Agradeço-lhe, muito mais do que o poderá fazer por um livro.

Eu estava doente, duvidoso de minhas energias e dos meus fins; acreditava que me seria necessário
renunciar a tudo, e meu maior temor era a duração de uma vida da qual só me sobrava um peso horrível depois de
renunciar aos seus fins mais elevados. Agora sinto-me mais são e mais livre, e considero, sem me torturar, os deve -
res que tenho pela frente. Quantas vezes desejei vê-la perto de mim para lhe fazer uma pergunta à qual só um ser
moralmente mais elevado, do que eu poderia responder. Seu livro traz resposta para algumas das ques tões
que me dizem respeito. Não creio que jamais possa me sentir satisfeito de minha conduta se não conseguir, antes, a
sua aprovação. É possível, porém, que seu livro aja para mim um juiz mais severo do que o seria voa 3 mesma. Que
deve fazer um homem se comparando a sua vida com a de você, não quer ser acusado de falta de virilidade? Faço
esta pergunta com freqüência: Deve fazer lado o que você fez, e nada mais? Mas não o conseguirá, decerto; falta-
lhe esse guia seguro, o instá-lo no amor constantemente disposto a dar-se. Um dos temas morais mais elevados
(eines der höchsten Motive), Que descobri graças a você, é o amor maternal sem vínculo físico entre a mãe e o
filho. É uma das mais esplêndidas manifestações da caritas. Conceda-me, querida senhora, e amiga, um pouco deste
amor e veja em mim num daqueles que maior necessidade têm de ser filhos de semelhante mãe.

Muitas coisas teremos que dizer em Bayreuth. Agora, torno a alimentar a esperança de poder voltar lá, ao
passo que nestes últimos meses afastava de mim até a idéia dessa possibilidade. Como eu gostaria de ser ago ra, o
mais são dos dois e sentir-me capaz de lhe prestar algum serviço! Porque não posso viver ao seu lado!

Adeus. Sou e continuo sendo seu sinceríssimo

Frederico Nietzsche.

A senhorita de Meysenbug respondeu imediatamente:

Se o meu livro só me houvesse produzido o prazer de suá carta, sentir-me-ia feliz em tê-lo escrito. Se passo
servi-lo em alguma coisa, quero fazê-lo. No] próximo inverno, deixe Basiléia. Procure um clima mais doce e mais
luminoso; sinto como você o pesar de nossa separação. No último inverno acolhi seu jovem discípulo de Basiléia,
Alfredo Brenner, sempre doente. Traga-o de novo. Eu saberei encontrar para vocês dois um asilo saudável.
Venha, prometa-mo.

Nietzsche escreveu sem demora: "Hoje não lhe responderei senão uma palavra: obrigado. Irei."

Tendo já um seguro refúgio, Frederico Nietzsche recobrou a segurança e a coragem.

Tornei a recuperar minha boa consciência — escreve a Gersdorff poucos dias depois do regresso. — Sei
que fiz até agora tudo o que pude para me. libertar e que, trabalhando assim, não trabalhei só para mim. Quero ca -
minhar novamente por esse mesmo caminho e nada me deterá mais; nem recordações, nem pressentimentos
desesperados...

Aqui está o que descobri: a única coisa que os homens respeitam e ante a qual todos se inclinam, é uma
ação nobre. Nunca, nunca transigir! O êxito profundo não se pode alcançar senão permanecendo-se fiel a si
mesmo. Já sei por experiência, a influência que exerço e que, se me tornasse mais fraco ou mais cético, diminuiria a
mim próprio e, ao mesmo tempo, a muitos homens que comigo se desenvolvem.

Nietzsche tinha necessidade desse orgulho para afrontar a crise iminente. Os discípulos do Mestre
ofereceram a este um banquete, ao qual Nietzsche não quis assistir, tendo que se desculpar. Escreveu, pois, uma
apaixonada carta, da qual talvez Wagner tivesse entendido as ocultas significações.

Faz sete anos que lhe fiz a minha primeira visita em Triebschen... E cada ano, neste mês de maio, neste
mesmo dia em que festejamos o aniversário do seu nascimento, eu festejo o aniversário do meu nascimento espi-
ritual, pois que, desde então, você vive e trabalha em mim sem cessar, como se uma nova gota de sangue ti vesse
penetrado minhas veias. Este elemento que de você me vem, me impele, me anima, me humilha, me aguiIhoa, e não
me permite um instante de repouso, a tal ponto que talvez o censurasse por esta inquietude eterna se não soubesse
que ela me impele, sem cessar para um estado melhor e mais livre.

Wagner respondeu-lhe imediatamente com algumas linhas exuberantes. Nelas narrava os brindes feitos por
sua glória e as divertidas respostas que dera, com tantos jogos de palavras, despropósitos e impenetráveis alusões,
que é necessário renunciar a traduzi-las.

Esta carta comoveu a Nietzsche. No momento em que a recebeu sentia-se absolutamente dono de si próprio
e absolutamente seguro de seu futuro. A história dos seus últimos anos lhe pareceu, de repente, uma formosa
aventura, para sempre encerrada. Considerou-a com um olhar indulgente, e, examinando as alegrias que devia a
Wagner, desejou expressar-lhe seu reconhecimento. No verão anterior, em Steinahad, achando-se em idêntica
disposição de ânimo, cobrira de notas algumas páginas. Apesar de uma fadiga nervosa da vista, que o impedia de
trabalhar sem auxílio, retomou as notas e se entregou ao esforço de tirar delas a substância de um livro. Tentativa
singular: desiludido, escreveu um livro entusiasta, ò mais formoso da literatura wagneriana. Mas um leitor prevenido
reconhece, página por página qual a idéia que Nietzsche procurou disfarçar. Escreve o elogio do poeta, mas não o
elogio do filósofo { para quem o sabe entender, nega o alcance educacional da obra de Wagner.

Para nós, Bayreuth significa a consagração no momento do combate — escreve ele. — O misterioso olhar
que a tragédia nos dirige não é um sortilégio enervante e paralisador, mas sua influência impõe o repouso. Pois que
a beleza não nos é dada para o momento do combate, mus para aqueles momentos de calma que o precedem g
interrompem; para aqueles instantes fugitivos nos quais, reanimando o passado e pressentindo o futuro, penetramos
todos os símbolos. Para aqueles instantes em que, com. a impressão de uma ligeira fadiga, nos subergimos num
sonho apaziguante. O dia e a luta vão começar, as sombras sagradas se desvanecem, e a arte se acha nova mente
longe de nós, mas o seu consolo ficou esparzido sobre o homem, como o orvalho matinal...

Há uma contradição radical entre estas idéias e as que inspiraram a Origem da Tragédia. A arte não é já
uma razão de viver, mas uma preparação para a vida, um repouso necessário. Três ameaçadoras linhas terminam o
opúsculo de Nietzsche: "Wagner não é, como nos poderíamos sentir tentados a acreditar, o profeta de um futuro, mas
sim o intérprete e glorificador de um passado." Nietzsche não pudera, reter certas confissões. Escassas e veladas, ele
esperava que não fossem compreendidas, e, em verdade, essa esperança foi certa. Apenas apareceu o folheto,
Wagner lhe escreveu:

Amigo,

Seu livro é prodigioso! Onde aprendeu a conhecer-me assim? Venha depressa, e fique aqui desde os
ensaios até às representações.

Seu,

R. W. 12 de julho. -

Em meados de julho começaram os ensaios e Nietzsche, que não queria perder nenhum deles, partiu, apesar
do precário estado de sua saúde, com uma impaciência que deve ter surpreendido sua irmã. Dois dias depois, ela
recebia uma carta: "Quase me arrependo de ter vindo. Até agora, tudo tem sido mesquinho... Assisti Segunda-feira ao
ensaio. Aquilo me desagradou. Tive. que sair."

Que teria acontecido? A senhorita Nietzsche aguardava com viva inquietação. Uma segunda carta veio
tranqüilizá-la um pouco: "Minha querida irmãzinha, as coisas já vão indo um pouco melhor..." A última frase,
porém, era estranha: "Não tenho outro remédio senão viver afastado de tudo, declinando todos os convites, inclusive
os de Wagner. Ele acha que eu me deixo ver muito pouco." E quase imediatamente, chegou a última carta: "Só
desejo partir. É uma insensatez permanecer aqui. Espero com espanto cada um destes intermináveis serões musicais,
e, no entanto, vou ficando. Não posso mais. Não estarei aqui nem para a primeira representação. Ainda não sei para
onde irei, mas tenho que ir. Tudo aqui me é insuportável."

Que teria acontecido? Será possível que o simples contato com as pessoas o tivesse afetado deste modo?
Nietzsche vivia, desde dois anos, uma difícil existência "de amigo dos enigmas e dos problemas"; esquecera os
homens e sofria ao encontrá-los novamente. Wagner, um titã, mantinha-os cativos, livres de todos os "enigmas", de
todos os "problemas" demasiado inquietantes, e nesta sombra eles pareciam satisfeitos, sem refletir sobre nada, mas
repetindo apaixonadamente as formas que lhes haviam sido ensinadas. Aos hegelianos que compareceram, Wagner
se ofereceu como uma reencarnação do seu mestre. Aos schopenhauerinos haviam dito que Wagner traduzira para a
música o sistema de Schopenhauer. A outros moços, que se chamavam "idealistas alemães puros", havia declarado:
"A minha arte assinala a vitória do idealismo germânico sobre o sensualismo gaulês." E todos, hegelianos,
schopenhauerianos e alemães puros, se punham de acordo no orgulho do triunfo: haviam triunfado! Triunfar! E
Nietzsche ouvia em silêncio esta palavra extraordinária. Que homem — pensava — que raça triunfará jamais? Nem
mesmo a Grécia, detida no seu ímpeto mais generoso. Qual o esforço que não fora vão? E, então, afastando o olhar
da comédia, Nietzsche examinava Wagner. Aquele distribuidor de felicidade continuaria, ao menos, sendo bastante
grande para se inquietar no momento da vitória? Não. Wagner era feliz porque havia triunfado; e a satisfação de um
homem semelhante era sempre mais estranha e mais triste do que a da multidão.

Mas a felicidade, por baixa que seja, não deixa de ser felicidade. Uma esquisita embriaguez se havia
apoderado de Bayreuth, e Nietzsche experimentara e compartilhara deslta embriaguez, e dela conservava o remorso e
o desejo. Assistiu a um ensaio: a entrada no teatro sagrado, a emoção do público, a presença de Wagner, a
obscuridade, as harmonias maravilhosas comoveram-no. Como continuava sendo sensível. ao contágio wagneriano!
Levantando-se apressadamente, saiu. E isto explica a sua carta: "A noite passada, assisti a um ensaio; aquilo me
desagradou, e tive que sair."

Um novo elemento veio aumentar a sua perturbação: Informaram-no de maneira precisa sobre o a obra
Parsifal. Wagner ia converter-se ao cristianismo. Assim, em dezoito meses, Nietzsche assistia a duas conversões;
mas, se Romundt era um débil e talvez a vítima de um acaso, Nietzsche sabia que Wagner não o era; nele tudo era
sério e correspondia às necessidades do século. O neo-cristianismo não existia ainda. Nietzsche pressentiu-o através
de Parsifal. Viu, então, o perigo que corria o homem moderno, tão inseguro de si mesmo e tentado.por essa fé cristã,
tão firme, que chama, promete e pode dar a paz. Se o homem não redobrar seus esforços para descobrir em si próprio
uma nova "possibilidade de vida", é fatal que recaia num cristianismo tão covarde como sua inspiração.

E então, Nietzsche viu aquele homem cuja felicidade instintivamente desprezara, ameaçados de um fracasso
definitivo e levados pela mão docemente para ele, pelo mestre, pelo impostor que os subjugara. Nenhum deles sabia
onde se dispunha a levá-los aquela mão poderosa; quase nenhum deles era cristão, mas todos estavam em vésperas
de o ser. Ah! como ia longe aquele dia de maio de 1872 em que Richard Wagner dirigia, neste mesmo Bayreuth, a
ode de Schiller e Beethoven à liberdade e à alegria!

Frederico Nietzsche foi clarividente por todos: o espetáculo daquelas vidas inconscientes desesperou-o
como o espetáculo do mundo desesperava os místicos da Idade Média que tinham sempre presente ante os olhos a
imagem acusadora e ensangüentada de Cristo. Tinha vontade de arrancar aquelas pessoas do torpor, adverti-las com
uma palavra, preveni-las com um grito. "Devo fazer isso — pensava — pois que sou o único que percebe o que vai
acontecer..."

Mas, quem lhe daria ouvidos? Calou-se, pois; dissimulou suas terríveis impressões e quis observar sem
fraqueza, sem desertar, a trágica solenidade. No entanto, não pôde. Fraquejou e teve que fugir. É uma insensatez
permanecer aqui. Espero, com espanto, cada um destes intermináveis serões musicais; e, não obstante, vou ficando.
Não posso mais... Ainda não sei onde irei, mas tenho que ir; tudo aqui é um suplício para mim...

As alturas que separam a Boêmia da Francônia elevam-se a. algumas léguas de Bayreuth; em meio aos
bosques que as cobrem acha-se situado Klingenbrunn, povoado para onde Nietzsche se retirou. A crise foi breve e
menos grave do que êle temera. Havia compreendido mais claramente os perigos da arte wagneriana, e visto mais
claramente o remédio. "Quando a religiosidade não é sustentada por um pensamento claro, provoca repugnância" —
escreveu. Renovou suas meditações de Steinabad e robusteceu as resoluções que tomara então: desprezar o passado,
resistir às seduções metafísicas, privar-se da arte, manter-se reservado sobretudo e começar duvidando, como
Descartes. Depois, se fosse possível recuperar alguma certeza, edificar a nova grandeza sobre alicerces imutáveis.

Percorreu longamente os bosques silenciosos, e sua severa paz lhe serviu de ensino:

"Se não dermos às nossas almas horizontes firmes e serenos como os das montanhas e dos bosques —
escreveu — nossa vida interior perderá toda, a serenidade. Será dispersiva e insaciável, como a do homem das
cidades, que não conhece a felicidade nem a pode dar." Depois, lançando de repente o grito de sua alma doente, diz:
"Eu restituirei aos homens a serenidade que é a condição de toda cultura. E também a simplicidade. Serenidade,
Simplicidade grandeza!"!

Senhor de si mesmo novamente, Nietzsche regressou em seguida a Bayreuth, corri coragem para terminar
sua experiência. Encontrou uma multidão ainda mais agitada do que no dia de sua partida. O velho imperador
Guilherme havia chegado, de passagem para as grandes manobras, e fazia a Wagner a honra de duas noites. De toda
a Baviera e da Erancônia, acudia o povo para saudar seu imperador, e quase se chegava a sentir fome na vila assim
invadida.

As representações começaram e Nietzsche assistiu a todas. Ouvia em silêncio as conversas dos fiéis, e
media o abismo que durante tanto tempo bordejara. Continuava freqüentando seus amigos: a senhorita de
Meysenbug, Miss Zimmern, Gabriel Monod, Édouard Schuré, Alfred Brenner, que não deixava de observar nele uma
reserva e uns- silêncios às vezes estranhos. Durante os entreatos, nas funções da tarde, iso lava-se com freqüência,
com uma espectadora amável e encantadora, Madame O ... meio-parisiense, meio-russa. Gostava da conversação fina
e imprevista das mulheres e perdoava a esta o ser wagneriana.

Schuré, que conhecera Nietzsche naquelas festas, traça-nos dele um retrato que merece ser transcrito:

"Ao falar com ele, fiquei surpreendido com á superioridade do seu espírito e a estranheza de sua fisionomia.
Fronte ampla, cabelos curtos e atirados para trás, em forma de escova, maçãs do rosto salientes, de eslavo. O farto
bigode caído e o talho audaz do rosto ter-lhe-iam dado o ar de um oficial de cavalaria, sem um não sei quê de tímido
e altivo ao mesmo tempo, que se descobria ao entabular relações com ele. A voz musical e a fala lenta denunciavam
sua organização de artista; suas maneiras prudentes e refletidas eram as de um filósofo. Nada mais enganador do, que
a aparente calma de sua expressão. O olhar fixo denunciava o doloroso trabalho do pensamento. Era, ao mesmo
tempo, o, olhar de um fanático, de um agudo observador e de um visionário. Este duplo caráter dava-lhe algo de
inquieto e de inquietante, tanto mais que seu olhar parecia sempre cravado em um único ponto. Nos momentos de
efusão, aquele olhar se bumedecia com uma doçura de sonho, mas depressa se tornava a fazer hostil... Durante os
ensaios gerais e as três primeiras representações da Tetralogia, Nietzsche parecia triste e como que angustiado..."

Cada sarau terminava num triunfo, e em cada um deles, Nietzsche sentia aumentar a sua angústia. O Ouro
do Reno, A Walkyria: essas obras antigas lhe recordaram a adolescência, seu entusiasmo por Wagner, a quem ainda
não conhecia nem se atrevia a esperar conhecer. Siegfried: recordações de Triebschen; Wagner terminava esta
partitura quando Nietzsche entrou em sua intimidade. Era o preferido de Nietzsche, entre todos os heróis
wagnerianos: Via-se a si mesmo naquele jovem aventureiro que jamais conhecera o medo. "Nós somos os cavaleiros
do espírito — escrevera então em suas notas — compreendemos o canto dos pássaros e seguimo-los..." Sem dúvida,
sentiu-se quase feliz ouvindo Siegfried, o único drama wagneriano que podia ouvir sem remorsos. Finalmente, O
Crepúsculo dos Deuses: Siegfried misturou-se a turba dos homens que o enganam; uma noite, conta-lhes
ingenuamente sua vida; um traidor fere-o pelas costas e mata-o. Os gigantes ficam destruídos e os anãos vencedores,
os heróis impotentes; os deuses abdicam, o ouro é devolvido às profundezas do Reno, cujas águas agitadas cobrem o
mundo, e os homens, esperando a morte, contemplam o desastre universal.

Este era o final. O pano caiu lentamente, a sinfonia se apagou na noite e os espectadores se puseram em pé e
gritaram para o palco as suas aclamações. Então, o pano subiu de novo e Richard Wagner apareceu, só, vestindo uma
sobrecasaca e calças de linho, fazendo ressaltar sua pequena figura. Reclamou silêncio com um sinal, e todos os
murmúrios cessaram.

— Mostramos-lhes o que queremos — exclamou — e o que podemos quando todas as vontades tendem
para um mesmo fim. Se vocês, por sua parte, me apoiarem — terão uma arte.

Retirou-se, para reaparecer uma porção de vezes, reclamado pelos aplausos. Nietzsche contemplava seu
mestre, em pé, sob a luz do palco, e era o único que não aplaudia.

— "Eis aí — pensava,— eis ai. o meu aliado..: o Homero secundado por Platão..." O pano caiu pela
última vez, e Nietzsche, silencioso e perdido entre a multidãa, seguiu a vaga, como um despojo à deriva.

CRISE E CONVALESCENÇA ,

Frederico Nietzsche regressou a Basiléia. Achando-se fraco e doente dos olhos, teve que aceitar o auxílio
que seus amigos lhe ofereciam. Um era um jovem estudante chama-- do Köselitz, a quem, por brinquedo, apelidara
Peter Gast — "Pedro, o hóspede", sobrenome que ficou — o outro era aquele Paulo Rée, judeu de espírito agudo,
que conhecera fazia dois anos. Graças à abnegação de ambos, pôde Nietzsche reler as notas escritas em
Klingenbrunn, nas quais esperava encontrar matéria para uma segunda Extemporânea. Paulo Rée publicava, então,
as suas Observações Psicológicas, reflexões inspiradas pelos mestres ingleses e franceses, por Stuart Mill e La
Rochefoucauld. , Frederico Nietzsche ouviu a leitura deste opúsculo e apreciou-o. Admirou a maneira prudente com
que nele se conduzia o pensamento; gozou-o como um repouso, depois das enfáticas cerimônias de Bayreuth, e
resolveu entrar na escola de Rée e de seus mestres. No entanto, continuava sentindo o enorme vácuo que nele
deixava a sua renúncia a Richard Wagner.

Neste momento, — escreve em 20 de setembro de 1876 — tenho todo o lazer necessário para recordar o
passado, o mais afastado e o mais próximo, pois meu oculistá me obriga a permanecer longo tempo sentado em um
quarto às escuras. O outono, depois de um verão semelhante, é para mim, e seguramente não só pára mim, mais
outono que nenhum outro. Depois do grande acontecimento me vem um acesso de melancolia mais negro, para sair
do qual nunca seria demasiado cedo fugir para a Itália, ou para o trabalho, ou para ambos de uma vez.

Conseguira a licença pedida e a única felicidade que havia em sua vida era a Certeza de se ver livre, por
alguns meses, de todo o trabalho profissional.

Pelos fins de outubro, deixou a Suíça, acompanhado de Alfredo Brenner e Paulo Rée. Os três alemães
desceram para Gênova, e um vapor os conduziu em seguida a Nápoles, onde eram esperados pela senhorita de
Meysenbug.

Encontrei Nietzsche decepcionado — escreve ela — pois a travessia e a chegada a Nápoles, em meio
àquele povo estrepitoso, gritão e importuno, tinham-no desagradado muito. No entanto, á tarde convidei-os a fazer
um passeio de carro até Possilipo. Era uma dessas tardes como só se vêem ali: o céu, a terra e o mar flutuavam em
uma glória de cores impossível de descrever, mas que enche a alma de algo como uma música encantadora, de uma
harmonia em que todas as notas discordantes desaparecem. Observei como a fisionomia de Nietzsche se iluminava
com uma alegre admiração quase infantil. Via-o dominado por uma emoção profunda, da qual saiu, por fim,
vociferando em exclamações entusiásticas, que eu saudei como o feliz augúrio de sua temporada ali.

A senhorita de Meysenbug havia alugado uma vila — antiga pensão — na lombada de uma colina que
levava até ao mar suas oliveiras, limoeiros, ciprestes e parreiras. "No primeiro andar — escreve ela — havia quartos
com terraços para

os cavaleiros; no segundo, dependências para mim e minha empregada e ainda um grande salão de uso
comum."

Instalou seus hóspedes naquele retiro por ela mesmo escolhido, mas não puderam gozar logo a vida
tranqüila que haviam vindo procurar. Um vizinho demasiado ilustre morava perto deles: Richard Wagner,
acompanhado dos seus, descansava em Sorrento, depois do esforço e do triunfo imensos de Bayreuth.

Não se descobria nele cansaço algum. Passava os, dias passeando e os serões conversando. A senhorita de
Meysenbug e seus amigos formavam-lhe uma espécie de corte. Esperava Frederico Nietzsche encontrar-se, assim, de
frente com o mestre? Não o sabemos. De qualquer modo, não se pôde esquivar de tomar parte nos passeios e nas
palestras, embora. sem deixar de mostrar certa reserva. Enquanto Richard Wagner falava de seus projetos de futuro,
de sua próxima obra e das idéias religiosas que desejava exprimir, Nietzsche se isolava com Paulo Rée, e com o
recente amigo falava de Chamfort e de Stendhal. Wagner observava essas conversas. Não era amigo dos judeus, e
Rée desagradava-lhe. "Desconfie — dizia a

Nietzsche — esse homem não lhe trará proveito algum"__

Nietzsche não modificou, por isso, sua atitude. Falava pouco ou, se tomava parte na conversação, mostrava
animação forçada, uma alegria que não conseguia parecer de todo natural. A senhorita de Meysenbug surpreendeu-se
mais de uma vez.

Mas não suspeitei -escreve ela — que se houvesse dado uma mudança em seus sentimentos e de todo o co-
ração me abandonei a estes prazeres que vinham completar os de Bayreuth. A alegria que experimentava de viver
em semelhante intimidade fêz-me citar, numa noite em que todos estávamos juntos em torno a mesa, um pen samento
de Goethe que me agradava muito: "Feliz aquele que, sem ódio, se afasta do mundo, estreita um amigo, ao peito e
com ele frua aquilo que os homens não sabem nem suspeitam — o que atravessa, pela noite, os labirintos do
coração." Os Wagner não conheciam esta citação, e ficaram tão encantados que tive de repeti-la. Ah! Eu não
suspeitava que os demônios, que também cruzam pela noite os labirintos do coração e contemplam com desagrado
o divino mistério da simpatia entre os espíritos nobres, já tinham posto mãos a obra para semear a discórdia e a
divisão.

Pelos fins de novembro, tendo já Richard Wagner partido de Sorrento, a senhorita de Meysenbug e seus
amigos puderam organizar proveitosamente suas vidas. Distribuíram o emprego das horas: até o meio-dia, trabalho e
solidão; ao meio-dia, almoço e logo, alguns momentos de conversação e passeios; pela tarde, trabalho e solidão, e,
finalmente, pela noite, leitura. Paulo Rée, único saudável naquela sociedade de intelectuais

126 DANIEL HALÉVY

doentes, lia em voz alta. Nietzsche e a senhorita de Meysenbug sofriam dos olhos; Brenner tinha os pulmões
afetados.

Quais eram os seus autores? Jacob Burckhardt, cujo curso sobre a cultura helênica, então inédito, estudavam
detidamente baseando-se nas notas de um estudante de Basiléia, que as emprestara; Michelet, Heródoto, Tucídides.
Uma pergunta, ou a expressão de uma dúvida, interrompia às vezes a leitura de Paulo Rée, e era quase sempre
Nietzsche quem encerrava o debate.

Que doçura, e que benevolência animavam então a Nietzsche! — escreve a senhorita de Meysenbug em sua
deliciosa descrição. — Como estava bem equilibrada a sua amável natureza, e boa a sua inteligência destrutora!
Gomo sabia ser alegre e rir de boa vontade diante das brincadeiras que com freqüência vinham interromper r
seriedade do. nosso pequeno círculo! Quando estávamos reunidos, à noite, Nietzsche comodamente instalado em
uma poltrona sob a proteção do quebra-luz; o doutor Rée, nosso amável leitor, sentado à mesa onde se achava a
lâmpada; o jovem Brenner junto à chaminé, à minha frente, ajudando-me a descascar as laranjas para a refeição,
dizia eu com freqüência, rindo: "Representamos, verdadeiramente, uma família ideal; aqui estamos, quatro pessoas
que mal nos conhecíamos antes, que não estão ligadas por laço de parentesco algum, que não possuem nenhuma
recordação comum — e que. fazem, agora, vida em comum, absolutamente de acordo, na mais completa liberdade
pessoal e em perfeito contentamento de espírito e de coração. Como é natural, bem depressa se esboçaram planos
para renovar e prolongar aquela feliz experiência.

Não seria possível voltar todos os anos àquela costa italiana, com alguns amigos, fundando, assim, um retiro
espiritual longe de toda a escola e de toda a igreja? Pelo ano de 1848 a senhorita de Meysenbug dirigira em
Hamburgo uma espécie de célula socialista, tema de um dos mais belos capítulos do seu livro e uma das mais
preciosas recordações de sua vida. Frederico Nietzsche não abandonava, de modo algum, o seu plano de uni claustro
laico. Assim, as recordações da velha senhorita concordavam com as esperanças do seu jovem camarada. E como
Paulo Rée e Alfredo Brenner concordaram com o projeto, os quatro amigos se puseram a estudá-lo com a maior
seriedade,

Já nos púnhamos em busca de um local apropriado — escreve a senhorita de Meysenbug — pois era em
Sorrento, no seio daquela deliciosa natureza, e não na atmosfera carregada de uma cidade, que o nosso projeto,
deveria tomar corpo. Junto à costa havíamos encontrado v& rias grutas espaçosas, aumentadas pela mão do
homem, verdadeiras salas de rocha e onde havia até uma tribuna que parecia especialmente preparada para um
conferencista. Era ali que pensávamos dar nossas lições nos cálidos dias do estio. Havíamos, também, concebido o
plano da escola mais em acordo com os moldes gregos do que com as idéias modernas, e a instrução deveria ser,
melhor dito, um ensinamento mútuo, à maneira peripatética...

Nietzsche escreve à sua irmã: "Minha idéia, a escola dos educadores — ou, se você Q prefere, o claustro
moderno, a colônia ideal, a universidade livre— flutua sempre no ar. Que será dela? Não o sabemos, mas, em
imaginação, já nomeamos o diretor e o administrador do nosso estabelecimento para quarenta pessoas."

Nos primeiros dias da primavera, Rée e Brenner partiram de Sorrento. A senhorita de Meysenbug e
Nietzsche, que haviam ficado sós, distraíram-se lendo alternadamente em voz alta, embora não tanto como
precisavam, por causa dos seus olhos. E assim, a maior parte do seu tempo se passava em conversação. Nietzsche
jamais se cansava de ouvir as narrações de sua companheira. Ela lhe descrevia os dias exaltados de 1848, o que
agradava muito a ele, especialmente quando falava de Mazzini.

Não se esquecia do acaso que, em abril de 1871, lhe dera como vizinho de diligência, durante a travessia
dos Alpes, o herói italiano. Nada de transigir. É preciso viver resolutamente na integridade, na plenitude, na
beleza... Mazzini citara esta máxima de Goethe e Nietzsche associava-se às suas recordações. A senhorita de
Meysenbug conhecera-o em Londres e admirara a sua autoridade no ordenar, sua exatidão na obediência, sua
solicitude em servir a todos os servidores de sua causa, tivessem o nome de Cavour ou de Garibaldi. Por outro lado,
Mazzini havia sofrido o castigo desta humildade: esquecido na hora da vitória, a lei do exílio fora mantida uni -
camente em relação a ele. Não obstante, quisera terminar seus dias na sua bem amada Ligúria, e ali fora morrer,
ocultando o nome e disfarçando a nacionalidade. O médico que tratava dele, pensando que era inglês, surpreendia-se
ao ouvi-lo falar üm italiano tão puro. "O senhor verá — dizia o moribundo —. que jamais alguém amou tanto a Itália
como eu."

Nietzsche ouvia estas histórias e dizia à senhorita de Meysenbug:

— O homem que mais venero é Mazzini.

Poderia ela adivinhar que o seu companheiro, aquele jovem alemão entusiasta e terno, acabava de declarar
em si próprio a guerra contra esses instintos de ternura e entusiasmo que prejudicavam a clareza de seus
julgamentos? Que Nietzsche,

128 DANIEL HALÉVY

o continuador de Schopenhauer, o amigo de Wagner, escolhia, agora por mestres a La Rochefoucauld, a


Chamfort, a Stendhal? Poderia adivinhar que esse amigo que ao seu lado sonhava fundar com ela um claustro laico
exercitava-se, em seus longos passeios, para enfrentar as tristezas de uma vida de rebelião e solidão? Nietzsche
formulava as regras de uma vida desse padrão:

Não deves amar nem odiar o povo. Não deves te ocupar de política. Não deves ser rico nem pobre. Deves
evitar o caminho dos ricos e poderosos. Deves tomar mulher fora de tua cidade. Deves deixar a teus amigos o
cuidado de educar teus filhos. , Não deves aceitar nenhuma das cerimônias da Igreja.

A senhorita de Meysenbug acabou conhecendo os pensamentos de Nietzsche. Um dia, ele colocou em suas
mãos um rolo de papéis e disse: "Leia isto. São as impressões que tive, aqui mesmo, ao pé daquela árvore sob cuja
sombra jamais me sentei sem recolher algum pensamento." Ela leu e descobriu um Nietzsche desconhecido, crítico e
negador. "Não publique isto por enquanto — disse ela. — Espere e reflita." Por toda resposta, Nietzsche sorriu. Ela
insistiu e a conversação se exacerbou um pouco. Não tardaram, porém, a fazer as pazes, lendo Tucídides.

No princípio de maio, Nietzsche, incomodado com o calor, quis partir. A senhorita de Meysenbug quis que
ele ficasse ainda uns dias e dominasse aquele primeiro cansaço antes de empreender a penosa viagem, mas o seu
amigo não a quis ouvir.

Nietzsche parte decididamente amanhã — escreve a senhorita de Meysenbug a Rêe — você bem sabe que
quando ele decide alguma coisa, executa-a, mesmo que o céu lhe mande as mais sérias advertências contrárias. Nis-
to, deixa de ser grego, pois que não dá atenção aos augúrios. Assim como o pior tempo não consegue dis-suàdi-lo
de uma excursão, assim parte agora, mortalmente cansado, apesar do vento violento que agita as ondas e que,
decerto, o fará enjoar espantosamente, pois que se obstinou em fazer por mar o trajeto de Nápoles a Gênova.

Sim. Partiu — escreve em outra carta. — Se o sortilégio de Sorrento, todo em flor, não conseguiu prendê-
lo — que é que o poderia ter convencido a ficar?. . . É para mim horrivelmente penoso deixá-lo viajar só. / Ele é tão
pouco prático e tão pouco hábil para se livrar de apuros!..., Felizmente o mar está hoje um pouco mais

Calmo. Ah... ele é bem digno de lástima! Faz apenas oito dias, esboçávamos os planos para seu futuro pró-
ximo e afastado. Teria sido a sua brusca resolução ditada pela premência febril de fugir da doença, que talvez lhe
tenha parecido ligada à temperatura primaveril e um tanto anormal — é certo — que reina aqui? Mas poderia ele
passar melhor em qualquer outra parte esta horrível primavera? Acredito que, no último instante ele mesmo
percebeu que sua partida era um tanto precipitada. Mas era demasiado tarde. Tudo isto, estas partidas tristes e
repetidas, me abateram muito...

Frederico Nietzsche foi fazer uma estação de águas em Rosenlau. Mas, apenas sentiu alguma melhora, seu
futuro próximo começou a preocupá-lo. Em setembro deveria recomeçar seu trabalho de professor. Afinal de contas,
era seu meio de vida e sua obrigação cotidiana, da qual, em certa maneira, temia ver-se afastado. Era, também, uma
tarefa, porém, cujo espantoso tédio ele bem conhecia. Haviam-lhe insinuado que as autoridades de Basiléia, em
consideração á seus serviços e à sua doença, concordariam em aposentá-lo com uma pensão suficiente. A senhorita
de Meysenbug aconselhava-o a retirar-se d.o trabalho; sua irmã» ao contrário, aconselhava que conservasse seu
posto, e Nietzsche inclinava-se mais por esta última. Quanto mais próxima, porém, se achava a data do regresso,
tanto mais viva era a sua rebelião.

Existe para mim um destino mais elevado; sei-o e sinto-o — escreve, então, a uma mulher que o ajudava
nos seus trabalhos, a sra. Maria Baumgarten, mãe de um dos seus discípulos. — Poderei me servir da filologia, mas
sou algo mais, que um filólogo. "Estou sedento de mim mesmo". Tal foi o tema persistente dos meus últimos dez
anos. Agora, depois de um ano de vida retirada, em que tudo se me mostrou tão visível e tão claro (não posso
definir o quanto me sinto rico e criador de alegria, apesar de todas as dores, tão depressa como me deixam a sós
comigo), agora, digo-lhe com toda a certeza, regresso a Basiléia, mas não para permanecer ali. Como se arranjará
isto? Não sei, mas, custe o que custar, conquistarei minha liberdade. Que sejam modestas minhas condições
materiais, é coisa que pouco me importa.

Sua irmã foi reunir-se com ele em Basiléia e ficou vivendo em sua companhia. No primeiro momento, seu
prazer foi muito grande, mas não tardou em reconhecer que apenas podia falar com aquela moça wagneriana dos pés
à cabeça, devota fervorosa das idéias de Bayreuth. Paulo Rée era o único homem cuja companhia desejava, mas ele
se achava retido na Alemanha do Norte por motivo de saúde e não lhe era possível, como Nietzsche esperara, ir a
Basiléia.

Oxalá me chegue logo a notícia de que os maus demônios da doença deixaram-no em paz — escrevia-lhe
Nietzsche. — Tudo o que lhe desejo para o ano que começa é que você continue sendo o que é, e que continua sendo
para mim, o que até agora tem sido... Permita-me que lhe diga que jamais a amizade me parecera tão doce como
neste último ano, graças a você. Quando ouço falar nos seus trabalhos, faz-se-me água na boca, de tal modo desejo
estar com você. Fomos criados para nos compreendermos, e, cada vez que nos encontramos, figura-se-me que
fazemos como dois bons vizinhos aos quais simultaneamente ocorreu a idéia de se fazerem uma visita, e que se
encontram nos limites de suas terras... Para quando uma boa palestra sobre as coisas humanas, uma palestra
pessoal e não epistolar?

Em dezembro, torna a escrever a Rée: "Desejo estar ao seu lado dez vezes por dia..."

Entretanto, termina seu livro, ou melhor, não o termina, pois deixa às suas notas a liberdade com que
haviam sido pensadas e escritas, uma atrás da outra, sem vinculo algum, tendo prazer, precisamente, em deixá-las
assim. Seu deplorável estado de saúde o impede, por outro lado, de lhes dar uma trama e impor-lhes uma ordem...
embora, realmente, para quê? E recorda-se daqueles franceses cuja lealdade tanto ama: Pascal, La Rochefoucauld,
Vauvenargues, Montaigne. Como eles, quer deixar a desordem e a interrupção em seus pensamentos. Deseja escrever
um livro simples, que faça prudentes aos entusiastas demasiado apressados. Em Bayreuth, ao redor de Wagner, são
inumeráveis as almas grandes. Frederico Nietzsche, que escapara de ser uma delas, quer-lhes fazer sentir,
conversando à maneira do velho Sócrates, o ridículo de sua fé. Humano, demasiado humano, foi o título que
escolheu. Pelo fim de sua vida consciente, ele mesmo nos declarou o propósito do seu livro:
\

Com uma tocha na mão, e na verdade a fumaça não velava a luz, projetei viva claridade sobre o mundo
subterrâneo do ideal. É a guerra, sim, más á guerra sem pólvora e sem fumaça, sem atitudes guerreiras, sem pathos,
sem membros deslocados — tudo isto seria idealismo. — Erro após erro, a todos apanhei e coloquei no gelo, e o
ideal nem sequer foi refutado: gelou-se. Aqui, por exemplo, gela-se o Gênio; neste outro canto gela o Santo; sob um
grosso tampão de gelo gela-se o Herói. E, finalmente, eis aqui a Fé congelada, e também a chamada Convicção; e
aqui também até a Piedade, consideravelmente esfriada. Em suma: quase por todas as partes congela-se a coisa-
em-si.

Qbra realmente paradoxal! Ninguém tão ardente como Frederico Nietzsche, ninguém tão crente em seu
trabalho, em sua missão, nos fins sublimes da vida, e, no entanto, obriga-se q escarnecer deles. Destrói todas as teses
que até então defendera: Pereat veritas, fiat vita! (pereça a verdade e faça-se a vida) escreverá ele. Agora, escreve:
Pereat vita fiat veritas! Acima do lirismo, coloca a ciência; acima de Esquilo, coloca o mesmo Sócrates que em outra
ocasião acusara. Sem dúvida tudo Isto não é mais que simulação, e ele o sabe; as idéias que exprime não são
realmente as suas; arma-se de ironia para um combate que será curto, pois que ele não é um ironista. Quer
achar e achará, pois disso está seguro, um lirismo desconhecido, que inspirará suas grandes obras. Humano,
demasiado humano é o signo de uma época de crise e de transição; que surpreendente crise, porém, e que difícil tran -
sição! "Aí está o livro — escreve Nietzsche — com grande surpresa daquele que jaz enfermo..."

Em 3 de janeiro de 1877, recebe, enviado por Wagner, o poema de Parsifal. Lê-o e mede melhor ainda a
distância cada vez maior que o separa do seu antigo mestre. Escreve ao barão de Seydlitz:

Impressão de primeira leitura: Mais de Lizst do que de Wagner; o espírito da contra-reforma; para mim,
demasiado acostumado á atmosfera grega, humana, tudo isso é de um cristianismo demasiado limitado; a psico-
logia é fantástica; não há carne, mas sim sangue demasiado (especialmente a Santa Ceia, que é sangrenta demais
para mim); não me agradam as camareiras histéricas .. O estilo parece tradução de uma língua estrangeira. Mas as
situações e o seu desenvolvimento — não são da mais alta poesia? Nunca músico algum deu à sua música missão
mais elevada.

Nesta carta, Frederico Nietzsche não diz tudo o que pensa. Algumas frases (sem carne e com sangue
demasiado) deixam adivinhar, já ativa e veemente nele, a repugnância que dez anos mais tarde exprimirá sem
rebuços. Não obstante, ama o mestre incomparável e pela primeira vez se vê obrigado a encarar claramente o
problema da ruptura. Recebeu o poema de Parsifal. Responderá? E, nesse caso, em que termos? Ou, mais simples
e francamente, não responderá?
Sofre novo assalto de dúvidas e preocupações. Como vive por aquela ocasião? Mal o sabemos. Já não se
confia a sua irmã, e as cartas que escreve a Paulo Rée, que sem dúvida nos interessariam, não foram publicadas.

A partir do Natal de 1877, tendo conseguido a redução da algumas horas no trabalho de ensinar,
Frederico Nietzsche goza, de mais tempo livre. Aproveita esta circunstância para se afastar de Basiléia todas as
semanas é passear, sozinho, nas zonas vizinhas. Geralmente não ia até às montanhas; gostava pouco daqueles
monstros, aos quais preferia o Jura e a Floresta Negra, cujas alturas arborizadas lhe recordavam a paisagem de sua
infância.

Quais eram seus pensamentos? Não é difícil conjeturar: só Wagner e seu livro o preocupavam. Um mês,
dois meses se passaram sem que "respondesse à remessa do Parsifal.

Humano, demasiado humano estava impresso e o editor esperava as suas ordens. Como, porém, prevenir o
mestre? Como prepará-lo para aquela surpreendente leitura? Seus fiéis haviam-no acostumado às mais obsequiosas
homenagens e à mais baixa deferência intelectual. Nietzsche sabia que a independência de sua obra escandalizaria os
devotos de Bayreuth. Nó momento de se declarar, sentia medo. O público inquietava-o tanto como o próprio
Wagner, e sentia, até, certa vergonha da filosofia que dava como sua. Escrevera aquelas páginas, e não se arrependia
de nada; havia seguido, como era seu dever, a lógica vital que regia seu espírito. Também sabia, porém, que esta
mesma lógica tornaria a levá-lo algum dia para um lirismo novo, e que seria conveniente dissimular um pouco o
intermédio de seus anos de crise. Concebeu, então, uma idéia singular: não assinaria o seu livro; publicá-lo--ia de
modo enigmático, sem nome de autor; Richard Wagner seria o único a conhecer o mistério e saberia que Humano,
demasiado humano era a obra de seu amigo, de seu discípulo, sempre fiel no fundo da alma. Com este intuito
escreveu um longo projeto de carta que foi conservado:

Envio-lhe este livro: Humano, demasiado humano, dizendo-lhe ao mesmo tempo, a si e sua nobre compa-
nheira, em toda a confiança, o meu segredo, que me convém que seja seu também: o livro é meu...

Encontro-me no estado de ânimo de um oficial que tomou um reduto e que, apesar de estar ferido, se en-
contra na parte mais alta dele, agitando seu estandarte: Mais alegria, muito mais alegria do. que dor, por mais
terrível que seja o espetáculo em torno.

Já lhe disse que não conheço ninguém que esteja de acordo com o meu pensamento. E, não obstante, ima -
gino que pensei, não como indivíduo, mas como representante de um grupo; o mais singular sentimento de solidão e
de sociedade...

.... O mais rápido arauto, que não sabe exatamente se a cavalaria vem atrás dele, nem mesmo se ela exis-
te...

Frederico Nietzsche teve que renunciar a esta idéia, que o editor não aceitou. E, por fim, precisou decidir-
se. A Europa se preparava para celebrar, em maio de 1878, o centenário da morte de Voltaire. Nietzsche resolveu
publicar então seu livro e dedicá-lo à memória do panfletário.

"Em Noruega se chamam tempos de obscuridade às épocas em que o sol permanece durante todo o dia
abaixo do horizonte — escrevia Nietzsche em 1879; — durante esse tempo, a temperatura baixa lenta e
constantemente. Que maravilhoso símbolo para todos os pensadores ante os quais o sol do futuro humano se
obscureceu por algum tempo!

Frederico Nietzsche conheceu seu tempo de obscuridade. Erwin Rohde desaprovou seu livro. Richard
Wagner não se manifestou, mas Nietzsche soube como o julgavam em torno do mestre. "O caricaturista de Bayreuth
— dizia-se — é um ingrato, ou um louco." Um desconhecido (não seria Gers dorff? Ao menos, suspeitava-se dele),
enviou de Paris uma caixa, da qual Frederico e Lisbeth Nietzsche tiraram um busto de Voltaire com um breve
bilhete: A alma de M. de Voltaire apresenta suas homenagens a M. Frederico Nietzsche. Lisbeth chorou, não
podendo tolerar a idéia de que seu irmão, germano de coração puro, se alistasse sob a bandeira de um francês— e de
que francês!

Sem duvida, alguns amigos julgavam de modo diferente. "Seu livro — dizia Jacob Burckhardt, — aumenta
a independência do espírito..." "Só um livro — escrevia Paulo Rée— me sugeriu tantas idéias como o seu: as
conversações de Goethe com Eckermann." Peter Gast permanecia fiel. Overbeck e sua esposa continuavam sendo
amigos seguros. Isto, porém, não fazia com que Nietzsche sentisse menos a sua derrota. Humano, demasiado
humano não tinha êxito algum. Assegurava-se que Richard Wagner se regozijava com a escassez da venda, caçoando
com o editor: "Bem vê que só se lê Frederico Nietzsche quando ele defende a nossa causa; do contrário, não!"
Em agosto de 1878, Humano, demasiado humano foi julgado e condenado no jornal de Bayreuth: "Todo o
professor alemão — escrevia o autor anônimo em quem Nietzsche reconheceu, ou julgou reconhecer Richard
Wagner — deve escrever uma vez na vida um livro que consagre sua celebridade. Mas, como não é dado a todo o
mundo encontrar uma verdade, ele se contenta, para obter o efeito procurado, em provar a radical insensatez das
idéias de um predecessor, e o efeito é tanto maior quanto mais considerável foi o predecessor que agora se infama."

Esta maneira baixa de julgar desolou Nietzsche. Ele se propunha então, precisamente a expor, em tom de
serenidade e de respeito, sua atitude com referência aos antigos mestres, Schopenhauer e Wagner. Pareceu-lhe,
porém, que o tempo das cortesias havia passado, e, voltando às suas notas de Sorrento, começou a escrever uma
continuação aos pensamentos de Humano, demasiado humano.

Sua irmã deixara-o só. Durante o mês de setembro, sua vida, de que conhecemos alguns detalhes, arrasta-se
lânguida e doentia. Evitam-no, temendo sua exaltação. Muitas vezes, à saída da Universidade, procura encontrar-se
com Jacob Burckhardt, mas o sábio historiador habilmente se esquiva, pois embora estime o seu colega, também o
teme. Em vão procura Nietzsche conseguir novos discípulos. "Dedico-me a caça de homens — escreve — como um
verdadeiro corsário, não para vendê-los como escravos, mas para levá-los comigo á liberdade."

Esta selvagem liberdade que ele oferece, não seduz os jovens. Um estudante, Schaffler, narra suas
recordações: "Seguia o curso de Nietzsche, mas conhecia-o muito pouco. Um dià em que o acaso nos reuniu,
companhia até à saída, e andamos juntos um pedaço. O céu estava cheio de nuvens claras. "Que formosas nuvens! —
exclamou Nietzsche -_ e que rápidas!" "Recordam as nuvens de Paulo Veronez — disse eu. Sua mão fechou-se de
repente em torno do meu braço. "Ouça — disse ele — daqui a pouco estaremos em férias. Por que não vai comigo
ver as nuvens de Veneza?" Surpreendido, balbuciei algumas palavras vacilantes. Imediatamente, Nietzsche se
afastou de mim, com fisionomia glacial, fechada e como que amortecida. Sem dizer uma palavra, foi embora,
deixando-me só."

A dor de separar-se de Wagner era sua maior e mais constante mágoa. "Um adeus semelhante — escreve —
que impõe a impossibilidade de todo acordo entre as maneiras de sentir e pensar, torna a nos colocar em contacto
com aquela outra pessoa, e com todas as nossas forças, nos chocamos contra o muro que o natureza levantou entre
nós e ela."

Em fevereiro de 1879, Lisbeth escreveu a Cosima Wagner. Teria seu irmão aconselhado isso? Teria
conhecimento? Aprovava? Ignoramos. Cosima respondeu com uma imperiosa e doce firmeza. "Não me fale de
Humano, demasiado humano — diz ela. — A única coisa de que me quero recordar, ao escrever-lhe, é que seu
irmão, em outros tempos, escreveu para mim algumas das mais belas páginas que conheço... Não lhe guardo rancor.
O sofrimento estraçalhou-o. Perdeu o domínio de si próprio, e isto explica sua felonia..." E acrescenta, com mais
graça do que sentido: "Quando a dizer: Seus trabalhos atuais não são definitivos, são as etapas de um espírito que se
procura a si mesmo — parece-me quase tão curioso como se Beethoven tivesse dito: Eis-me aqui em minha terceira
maneira. Por outra parte, o autor não se acha muito convencido de sua obra, e isto se percebe claramente ao lê-la;
toda ela não é mais que um sofisma sem engenho, que penaliza...”.

As Opiniões e sentenças, que formavam a continuação de Humano, demasiado humano, apareceram em


1879. Mas o escândalo deste segundo volume foi logo atenuado e como que

desviado, pela piedade que Nietzsche inspirava aos que o haviam conhecido anteriormente. Seu estado de
saúde se agravou. A cabeça, o estômago e os olhos atormentavam-no sem descanso. Os médicos começavam a
inquietar-se com aquela enfermidade que não podiam debelar, e com aquele enfermo, para eles incurável. Sua vista,
e talvez sua razão, pareciam--lhes em perigo. Nietzsche adivinhava aqueles temores. Viu-»se obrigado a renunciar à
sua viagem a Veneza, onde o chamava e esperava Peter Gast, e teve que se encerrar em, seu quarto de Basiléia, atrás
das venezianas fechadas e das cortinas corridas.

Que será dele? Rohde e Gersdorff, apiedados com o naufrágio daquele homem de quem tanto haviam
esperado, escrevem a Overbeck: "Ouvimos dizer que Nietzsche está perdido. Dê-nos informações." "Ah! —
responde Overbeck — "seu estado é desesperador." O próprio Richard Wagner recorda e se emociona. "Posso, por
acaso, esquecer — escreve a Overbeck — este amigo que sé separou de mim tão violentamente? Agora compreendo
que não era justo exigir certas atividades convencionais de uma alma desgarrada por tais paixões. É preciso calar e
ter pena. Não sei, porém, absolutamente nada de sua vida e de seus padecimentos, e isto me aflige. Serei indiscreto
pedindo-lhe que me dê notícias de nosso amigo?"
Teria Nietzsche visto esta carta? Não parece. Poucos meses antes escrevera, entre outras notas: "O
reconhecimento é uma virtude burguesa, que não se pode aplicar a um homem como Wagner." Grande teria sido sua
alegria se houvesse podido ler, escrito por seu mestre, esse pensamento idêntico ao seu: "não seria justo exigir certas
atitudes convencionais."

Overbeck e sua esposa assistem ao doente, e escrevem a sua irmã dizendo-lhe que deve vir para seu lado.
Imediatamente, Lisbeth vai para Basiléia e mal reconhece o homem encurvado, devastado, envelhecido dez anos em
uns poucos meses, que, com um gesto de mão, lhe agradece por ter chegado.

Frederico Nietzsche renuncia à sua profissão de professor, e apresenta sua demissão, que é aceita. Em
recompensa de seis serviços, receberá uma pensão de três mil francos.

Lisbeth leva-o consigo. Acreditando-se perdido, dita suas últimas vontades: "Faça-me uma promessa,
Lisbeth: que somente os meus amigos acompanhem meu corpo; que não haja curiosos, nem indiferentes. Eu já não
me poderei defender; defenda-mo você. Que nenhum sacerdote, que ninguém pronuncie sobre o meu ataúde palavras
insinceras. Faça com que me enterrem como um bom pagão, sem farsa."

Ele deseja os lugares mais desertos e silenciosos, e a mais absoluta solidão. Lisbeth leva-o aos vales da alta
Engadina, muito pouco freqüentados naquele tempo. Nietzsche descobre aquela longínqua Suíça e sente um bem-
estar inesperado. A leveza e a pureza do ar, acalmam-no; a luz, atenuada pelos montes próximos, é doce aos seus
olhos fatigados. Gosta daqueles lagos esparsos que fazem pensar na Finlândia, e daqueles pequenos povoados de
nomes musicais, e daqueles camponeses de raça apurada, vestígios, já, da Itália tão próxima, logo além das geleiras...
"Esta natureza me é familiar — escreve a Rée. — Não me surpreende. É como se já existisse entre nós uma antiga
confiança." Com a sensibilidade de um convalescente, começa a reviver; Quase não escreve cartas. Escreve para si
mesmo e é na sua obra que devemos procurar os dados anteriormente proporcionados pela corres pondência. Veja-
se como descreve a ascensão à Engadina:

Et in Arcadia ego. Por cima das colinas que se assemelham a ondas, através dos austeros pinheiros e dos
velhos abetos, olhei para uma lagoa de verdes águas lactescentes. Em torno de mim havia rochas de todas as
formas, e um solo coberto de ervas e flores. Â minha frente movia-se um rebanho, dispersando-se e concentrando-
se. Algumas vacas, agrupadas ao longe, sob um bosquezinho de pinheiros, destacavam-se à luz da tarde; outras,
mais próximas, pareciam manchadas de sombra. E tudo isto, muito tranqüilo sob a paz do crepúsculo próximo;
eram cinco e meia. O touro do rebanho caminhava pelo riacho branco de espuma; avançava lentamente, evitando,
às vezes, as águas escachoantes e outras vezes enfrentando-as. Encontrava naquilo, sem dúvida, uma selvagem
satisfação. Um casal de pele morena, de origem berganesa, apascentava o rebanho. A rapariga vestia-se quase
como um rapaz. À direita, por cima de um grande cinturão de bosques, fragmentos de rocha e campos de neve. A
esquerda, bem por cima de mim, dois enormes picos gelados, envoltos num véu de clara névoa. Tudo isso, grande,
tranqüilo, luminoso. Esta beleza, assim repentinamente, de um golpe de vista, emocionava até estremecer, até
suscitar na alma uma muda oração por aquele instante revelador. Instintivamente, como se fosse a coisa mais
natural, a gente sentia-se tentada a introduzir heróis, gregos naquele mundo de luz tão pura, de finos contornos,
livre de inquietação, de desejos, de anelos e de nostalgia. Era preciso sentir como Poussin e seus discípulos; de
maneira a lima vez heróica e idílica. Assim certos homens têm vivido e sentido a vida, demoradamente, em si
mesmos e fora de si, e entre eles distingo a um dos maiores que tenham existido— o inventor de um modo de
filosofar heróico e idílico: Epicuro.

Frederico Nietzsche permaneceu em Engadina até setembro, pobremente alojado, sobriamente alimentado,
privado de amigos, de música e de livros, mas, no fundo, contente. Seus sofrimentos não eram intoleráveis; podia
trabalhar e tomava nota a lápis em seis cadernos que logo ficaram cheios dos seus pensamentos sempre céticos, mas
hão amargos e como que serenados e temperados pela inesperada doçura.

No entanto, não tinha ilusões com respeito a essa trégua; sabia que era apenas uma trégua, e não baseou nela
esperança alguma. Agradava-lhe, não obstante, poder dizer, an-tes de desaparecer, a felicidade que lhe havia
proporcionado a simples contemplação das coisas, da natureza humana, das montanhas, do céu, e apressava-se em
colher esta derradeira felicidade. Nos primeiros dias de setembro, envia sua obra terminada a Peter Gast.

Meu querido, meu muito querido amigo — escreve-Ihe — quando você receber estas linhas, o meu manus-
crito estará em suas mãos. Talvez você conheça um pouco do prazer que eu mesmo senti ao pensar na mi nha obra,
agora terminada. Estou no fim dos meus trinta e cinco anos, "a metade da vida", dizia-se faz uns mil anos; a idade
em que Dante teve a sua visão, como nos diz nos primeiros versos do seu poema. Eis-me, pois, na metade da vida,
tão assediado pela morte, que pode me reclamar a cada momento; minha vida é tal que devo prever uma morte
rápida, num espasmo... E, assim, sinto-me semelhante a um homem muito velho; tanto mais que já fiz a obra de
minha vida. Verti uma gota de bom azeite, sei-o e isto será creditado na minha conta. No fundo, experimentei minha
maneira de viver; e muitos experimentá-la-ão depois de mim. Os contínuos e graves sofrimentos não alteraram, até
agora, meu humor. Ao contrário, parece que me sinto mais alegre e mais benévolo do que jamais o fui. De onde virá
esta influência que me fortifica e melhora? É claro que não vem dos homens, os quais, salvo raras exceções, "todos
se irritaram comigo" (*) e não sentem escrúpulo algum em fazer-me saber disso. Leia, meu querido amigo, do
principio ao fim este último manuscrito e veja se descobre nele alguma marca de dor ou depressão. Eu creio que
não, e esta crença me dá a certeza de que deve haver alguma força oculta nos meus pensamentos* e não a
impotência e lassidão que aqueles que não me aprovam, querem ver neles.

(*) Peter Gast acredita que nesta frase há uma reminiscência evangélica. As reminiscências das Sagradas
Escrituras são freqüentes na língua e no pensamento de Nietzsche. — (N. do A.).

Neste momento de sua vida, Nietzsche prepara-se para morrer. De que morte? Pode-se adivinhar sem muito
trabalho. Esse fim rápido, em um espasmo, sofrera-o seu pai em outros tempos, ao morrer louco. Nietzsche espera-o,
e um sentimento de piedade o faz regressar ao lar. Desligado das obrigações que o retinham em Basiléia, com
liberdade de escolher seu refúgio, não dá ouvidos a Peter Gast, que o chama a Veneza. Já não é tempo para conhecer
e amar uma beleza nova. "Não — diz ele. — Apesar de Overbeck, e apesar de minha irmã, que me incitam a ir ao
seu encontro* não irei. Creio que há certas circunstâncias em que convém a gente aproximar-se de sua mãe, do lar,
das recordações da infância..." E é para Naumburg que se retira.

Quer levar ali uma vida absolutamente tranqüila, distraindo-se de seus pensamentos por meio de um
trabalho material. Aluga uma simplíssima dependência numa das torres da antiga muralha. Ao pé do velho muro
estende-se um terreno vago, que ele arrenda para plantar. "Tenho — escreve ele — dez árvores frutíferas, roseiras,
lilases, cravos, morangos, groselhas e groselhas-bravas. Nos começos do ano próximo terei dez canteiros de
legumes em tratamento."

Estes projetos de doente, porém, falham bem depressa. O inverno foi rigoroso. Frederico Nietzsche não
pode suportar o brilho da neve, que lhe ofusca os olhos, nem o ar úmido, que o deprime e estraçalha seus nervos.
Numas poucas semanas perde tudo o que ganhara em Engadina.

O Viajante e sua Sombra, cujas provas haviam sido corrigidas por Peter Gast, surge então, e parece ser
melhor compreendido do que o haviam sido os volumes anteriores. Rohde escreve a Nietzsche uma carta que lhe
causa vivo prazer. Sem dúvida, não mostra nela uma admiração absoluta: "Essa visão clara, mas jamais emocionada,
da humanidade — diz ele — causa pena a quem o quer bem e em cada palavra ouve o amigo." Em suma, porém,
admira-o:

O que dá a seus leitores— escreve — é coisa que mal suspeitará, pois que você vive em seu próprio espí-
rito. Uma voz como a sua, porém, é coisa que nós jamais ouvimos, nem na vida, nem nos livros. Lendo-o, continuo
experimentando o que experimentava junto a você, nos tempos de nossa camaradagem; sinto-me elevado a uma
ordem superior e espiritualmente enobrecido... A conclusão do seu livro penetra a alma. Você pode e deve nos dar,
depois destas discordantes harmonias, acordes mais doces ainda, e mais sagrados... Adeus, meu querido amigo. É
sempre você quem dá, e eu sempre, quem recebe...

Nietzsche sente-se feliz: "Obrigado, meu querido amigo — escreve em 28 de dezembro de 1879 — o seu
antigo afeto, selado de novo, é o bem mais precioso que me trazem estes dias de estréia". Sua resposta, porém, é
breve e duas linhas finais explicam essa brevidade: "Meu estado de saúde voltou a ser terrível; minhas torturas são
atrozes; substineo, abstineo, e eu mesmo me assombro."

Estas palavras tão fortes, não são exageradas. Sua mãe e sua irmã, que o viram sofrer, confirmam os dias
terríveis que ele atravessa. Aceita o sofrimento como uma prova, como um exercício espiritual. Compara o seu
destino ao dos homens que foram grandes na dor. Aí está Leopardi; Leopardi, porém, não fora valente, pois que
difamara a vida quando se achava enfermo e — Nietzsche descobre esta severa verdade — um enfermo não tem o
direito de ser pessimista. Ai está Cristo; mas o próprio Cristo desfaleceu na cruz: "Meu Pai, por que me
abandonaste?" Frederico Nietzsche não tem Deus, nem pai, nem crença e nem amigos: negou-se todo o apoio, e, no
entanto, não fraqueja. Qualquer queixa, por fugaz que fosse, seria uma confissão de derrota, e ele recusa esta
confissão. A dor não o abate, mas, ao contrário, o instrui e estimula o seu pensamento.

O espírito preparado para se opor à dor — escreve — vê as coisas sob uma nova luz, e o indizível encanto
que acompanha toda luz nova, basta, ás vezes, para vencer a tentação do suicídio e fazer a vida desejável. Aquele
que sofre pensa com desprezo no mundo vago, fraco e cômodo em que se compraz o homem são; pensa com
desprezo nas ilusões mais nobres e mais queridas em que se deixou prender; este desprezo é o seu gozo, é o
contrapeso que o ajuda a suportar o sofrimento físico, contrapeso cuja necessidade sente então..., Seu orgulho se
rebela como jamais o havia feito: defende com deleite a vida contra um tirano como o sofrimento, contra todas as
insinuações desse tirano que desejaria obrigar-nos a nos colocarmos contra a vida. Representar a vida diante desse
tirano é uma tarefa de incomparável sedução (*).

Frederico Nietzsche acreditava estar muito próximo o seu fim. Em 14 de janeiro de 1880, desejando dirigir
a algum amigo um último sinal de seus pensamentos escreveu — com que esforço! — à senhorita de Meysenbug
uma carta que é um adeus e um testamento espiritual:

Embora escrever seja um dos frutos que mais proibidos me. são, quero que você receba ainda uma carta
minha — você, a quem quero e venero como a uma irmã. Esta será a última, pois o terrível e quase incessante mar-
tírio de minha vida me dá desejo de morrer. Por alguns sinais sei que já está próximo o acesso de febre que me há
de salvar. Sofri tanto, renunciei a tantas coisas, que não existe asceta, seja de que tempo for, a cuja vida eu não
tenha direito de comparar a que tenho levado durante este último ano. Não obstante, adquiri muitas coisas. Minha
alma ganhou em pureza e doçura, e não precisei, para isso, da religião nem da arte. (Você decerto observará que
me sinto um tanto orgulhoso: foi no meu estado de total abandono que pude descobrir, afi nal, as minhas fontes
íntimas de consolo). Creio ter feito a obra de minha vida, tal como a pode fazer um homem ao qual não se deixou
tempo para isso. Sei, porém, que para muitos homens verti uma gota de bom azeite; que muitos homens foram por
mim orientados para uma vida mais elevada, mais serena e mais lúcida. Dou-lhe este dado suplementar: quando a
minha humanidade tenha deixado de ser, dir-se-á o que eu acabo de lhe escrever. Dor alguma pôde, nem poderá
jamais, induzir-me a .dar um falso testemunho sobre a vida tal como eu a conheço.

A quem poderia eu dizer todas estas coisas senão a você? Acredito — não será, porém, falta de modéstia
dizê-lo? — que nossos caracteres se assemelham. Por exemplo: ambos somos corajosos e nem a angústia, nem o
desprezo podem nós afastar da rota que reconhecemos como boa. Ambos conhecemos, em nós e ao redor de nós,
muitas coisas cujo deslumbrante resplendor muito poucos contemporâneos nossos conseguiram ver. Esperamos pela
humanidade e silenciosamente nos oferecemos em sacrifício — não ê certo?

Tem boas notícias dos Wagner? Faz três anos já que nada sei deles. Também eles me abandonaram. Desde
muito tempo sabia que Wagner se afastaria de mim, tão depressa como tivesse reconhecido a diferença dos nossos
esforços. Disseram-me que ele escreve contra mim. Que o faça! De um modo ou de outro, é forçoso que a verdade
apareça! Penso nele com agradecimento constante, pois lhe devo algumas das mais fortes incitações à liberdade
espiritual. Você bem sabe que a senhora Wagner é a mulher mais simpática que já encontrei. Mas nossas relações
terminaram e seguramente não sou homem para reatá-las. É demasiado tarde. Receba, amiga querida que para
mim é uma irmã, as saudações do jovem velho a quem a vida não foi cruel, por muito que sinta desejo de morrer.

(*) "Aurora", cap. 114. Este livro, publicado em junho de 1881, contém indicações autobiográficas muito
seguras para a época que estamos estudando. (ST. do Autor)

Contra a expectativa, viveu. Paulo Rée foi vê-lo e soube distraí-lo com algumas leituras. O frio, que tanto
mal lhe fazia, atenuara-se, e o degelo derreteu a neve que deslumbrava seus olhos. Peter Gast, instalado em Veneza,
como no ano anterior, escrevia-lhe, chamando-o incessantemente. Em meados de fevereiro Nietzsche sentiu, com
surpresa, que suas forças despertavam; voltou a sentir seus desejos, suas curiosidades e partiu imediatamente.

Permaneceu um mês em Riva, na margem do lago de Guarda, de onde suas cartas, mais animadas, levaram
certa esperança aos seus. Em 13 de março partiu para Veneza. Este dia marca o fim da crise e o começo da
convalescença.

A Itália não lhe agradara ainda. Que regiões conhecera dela? — Os lagos; por sua timidez um tanto pesada,
assentavam-lhe mal, como também não lhe agradavam as harmonias demasiado doces. — Nápoles e seu golfo; sentia
repulsão pela turba dos napolitanos; o esplendor do espetáculo sem dúvida conquistara-o, mas não o encantara.
Nenhuma intimidade se estabelecera entre aquelas belezas deslumbrantes e suas paixões espirituais.

Veneza, ao contrário, seduziu-o desde o primeiro momento. Sem esforço, com um só olhar, encontrou nela
o que em outros tempos lhe haviam dado seus mestres gregos: Homero, Theogonis, Tucídides — a sensação de uma
raça lúcida, que vive sem sonhos nem escrúpulos. Contra os sonhos os escrúpulos e os prestígios de uma arte
romântica, vem Nietzsche lutando desde quatro anos. A beleza de Veneza liberta-o. Recorda suas angústias e sorri de
si mesmo. Mas qual o homem que, sofrendo, não acreditou nisso, não teve esse pueril orgulho?

Quando sobrevém essa primeira aurora de alívio, de cura — escreve — humilhamos, sem gratidão, o
orgulho que antes nos fizera capazes de suportar a dor; achamo-nos tolos e ingênuos, como se algo de excepcional
nos tivesse acontecido. Olhamos de novo para os homens e para a natureza com desejo: as luzes temperadas da vida
nos reconfortam e a saúde recomeça o seu jogo mágico. Contemplamos este espetáculo como se estivéssemos
transformados, benévolos e fatigados ainda. Neste estado, não se pode ouvir música sem chorar.

Peter Gast cuidava dele com uma bondade comovente; acompanhava-o em seus passeios; lia para ele;
tocava suas músicas preferidas. Frederico Nietzsche preferia a todas, naquele tempo, as músicas de Chopin,
descobrindo em suas rapsódias uma audácia e uma franqueza de paixão, que a arte alemã não produz. Convém,
sem dúvida, pensar em Chopin quando se lêem aquelas últimas palavras: Neste estado não se pode ouvir música
sem chorar.

Peter Gast faz também oficio, de secretário, pois Nietzsche recobrou seu ardor pelo trabalho, e dita
diariamente seus pensamentos. Desde o primeiro momento escolhe o título de seu novo livro (ao qual renunciará em
seguida) L'Ombra di Venezia, Não é, em verdade, a presença de Veneza que comunica ao seu espírito aquela riqueza,
aquela força, aquela sutileza? Tenta novas investigações. Será verdade, como escrevera, que um frio cálculo de
interesse determina as ações dos homens? Que um mesquinho desejo de conservação, de repouso, de comodidade
criou esse excesso de beleza de que uma Veneza é ò testemunho? Veneza é única, mas existe e é preciso explicá-la.
Um prodígio interior deve ser a causa deste prodígio visível. Quais são, então, as molas invisíveis que determinam
nossos atos? A vida, dizia Schopenhauer, é mera vontade de viver; todo o ser aspira a perseverar no ser. É dizer
pouco, pensa Nietzsche; a vida aspira constantemente a estender-se, a crescer; quer, não conservar-se a si mesma,
mas aumentar; um princípio de conquista e de exaltação deve estar ligado à sua essência. Como formular este
princípio? Nietzsche não o sabe ainda, mas tem presente em si a idéia e sente-se agitado por ela. Sabe que está nas
vésperas de uma descoberta, no umbral de um mundo desconhecido, e escreve, ou dita a seu amigo:

As ações não são, jamais, o que parecem ser. Custou-nos muito trabalho aprender que as coisas exteriores
não são tais como nos aparecem; pois bem — outro tanto nos sucede nó mundo interior. Os atos são, em realidade,
"algo diferente" — não podemos dizer mais — e todos os atos são essencialmente desconhecidos.

Em julho vai experimentar as águas de Marienbad; mora numa pequena hospedaria situada nos limites dos
bosques pelos quais vaga todo o dia.

Mergulho e escavo cuidadosamente nas minhas ruínas morais — escreve a Peter Gast — e me parece que
me vou transformando num ser absolutamente subterrâneo; parece-me, neste momento, haver encontrado uma
galeria, uma saída. Isto me acontecerá cem vezes, e outras tantas vezes ficarei decepcionado...

Em setembro, acha-se em Naumburg, aparentemente de humor alegre e conversador. Sua irmã Lisbeth
reconhece em seu rosto aquela expressão de doçura feliz que denuncia o trabalho interior, a plenitude e o afluxo das
idéias. Em 8 de outubro, temendo a neblina, desce novamente para a Itália, detendo-se em Stresa, na margem do lago
Maior; o clima, porém, não convém aos seus nervos, e perturba suas meditações.

Experimenta, com espanto, a tirania das influências exteriores, que o mantêm à sua mercê, e treme
indagando se poderá, com esta vida de constantes sofrimentos, exprimir as inumeráveis idéias filosóficas e líricas
que o assaltam. Pensa que o seu primeiro dever é conservar a saúde, e parte em direção a Sorrento.

Como Gênova estava em caminho, detém-se ali, e imediatamente se sente à vontade em seu ambiente. O
povo é vigoroso, frugal, e alegre. A.temperatura, em novembro, quase estivai. Gênova reúne em si a dupla energia da
montanha e do mar. Nietzsche admira seus palácios maciços, colocados de través nas vielas, monumentos levantados
à própria glória por mercadores corsários, cujos instintos não se detinham diante de escrúpulo algum. Seu espírito
visionário evoca-os; sente necessidade daqueles italianos de outros tempos, lúcidos, ávidos, muito pouco cristãos,
mentirosos para os outros, mas francos para consigo mesmos, e jamais corrompidos; sente necessidade deles para
reprimir aquele sonho romântico inextinguível nele. Deseja, como já o desejara Rousseau, um retorno à natureza.
Rousseau, porém, conhecia uma Europa que ofendia os sentimentos piedosos, a simpatia humana, a bondade.
Nietzsche conhece uma Europa diferente, uma pesada Europa dominada pelas massas e ofendendo a ou tros
sentimentos; outra, também, é a natureza oprimida que ele exalta e na qual procura â saúde e o alívio de sua alma.

Deseja instalar-se em Gênova. Depois de algumas tentativas, encontra um domicílio perfeito: uma mansarda
com boa cama, no alto de uma escada de 104 degraus, numa casa que dá para rua tão inclinada e pedregosa que
ninguém passa por ela, e entre cujas pedras cresce a erva: Salita delle Battistine,.

Organiza uma vida tão simples como seu domicílio, o que constituía uma de suas numerosas ilusões. Dizia
freqüentemente a sua mãe: "Como vive a gente do povo? Quisera viver assim também." Sua mãe ria-se: "Comem
batatas e toucinho e bebem mau café e álcool..." Nietzsche suspirava: "Ah... estes alemães —"

Em sua casa genovesa, habitada por gente pobre, os costumes são outros. Seus vizinhos vivem sòbriamente.
Nietzsche imita-os e se alimenta pouco; suas idéias se tornam mais fluidas e mais nítidas. Compra um fogareiro e,
ensinado pela patroa, ele próprio prepara o seu risotto, e frita as suas alcachofras. Torna-se popular na enorme casa.
As enxaquecas voltam com freqüência a atacá-lo e aborrecem-no; seus vizinhos, então, entram em seu quarto e se
interessam pelo seu sofrimento. "Não preciso de nada — responde ele com simplicidade — sono contento". Por
causa da vista, à noite permanece estendido no leito sem luz alguma. "Faz isso por economia; — dizem os vizinhos
—o professor alemão não é bastante rico para acender velas." Em vista disso, oferecem-lhe luz.

Ele sorri, agradece e explica. Chamam-no o santo, il piccolo santo. Nietzsche sabe disso e se regozija.
"Creio — escreve — que muitas destas pessoas, com seus costumes sóbrios e ordenados, com sua doçura e seu
sentido de retidão, seriam veneradas como santas, se fossem transportadas à semibarbárie dos séculos VI ao X."
Concebe e redige rapidamente uma regra de vida.

Uma independência que não moleste a ninguém; um orgulho doce, velado, e que, não invejando as honras
e as satisfações dos demais, e abstendo-se de zombarias, não incomode as pessoas... Um sono ligeiro, uns modos
livres e pacíficos; ausência de álcool, de amizades ilustres ou principescas, de mulheres e de jornais, de honras e de
sociedade que não seja a de espíritos superiores, e, à falta destes, de gente humilde (da qual é tão impossível
prescindir como da contemplação de uma vegetação sadia e.poderosa); os pratos mais fáceis de preparar, e, na
medida do possível, preparados por si próprio, ou que apenas tenham necessidade , de preparo.

A saúde era para Frederico Nietzsche um bem frágil, incessantemente conquistado, perdido e
reconquistado» e tanto mais precioso por isso mesmo. Cada dia favorável fazia-o experimentar essa surpresa que traz
felicidade aos convalescentes. Ao saltar da cama, vestia-se, metia em seu embornal um caderno de notas, algum
livro, frutas e pão. Em seguida partia ao acaso pelos caminhos próximos. "Assim que o sol se levanta — escreve —
subo a uma rocha solitária junto às ondas, e ali me estendo, sob o guarda-sol, imóvel como um lagarto, nada mais
tendo diante de mim que o mar e o puro céu." Permanecia assim largo tempo, até às horas extremas do crepúsculo,
-horas clementes para seus olhos enfermos, tão freqüentemente privados de luz, para aqueles olhos continuamente
ameaçados cujas menores alegrias ele saboreia.

Aqui está o mar — escreve. — Aqui podemos esquecer a cidade. É certo que seus sinos tocam sempre a
Ave Maria, são eles que fazem esse ruído fúnebre e insensato, más doce, no momento em que se cruza o dia com a
noite. Um instante mais e tudo fica em silêncio! O mar se estende, pálido e brilhante, sem poder falai: O céu brinca
com seus infinitos matizes o seu eterno brinquedo mudo da tarde, sem poder falar. As rochas e os recifes correm
pelo mar como procurando descobrir nele o lugar mais solitário, sem poder falar. E este enorme mutismo, que de
repente nos surpreende, é lindo e cruel e nos dilata a alma...

Quantas vezes celebrou ele esta hora em que, segundo suas palavras, "o mais pobre remador rema com
remos de ouro"!

Recolhe, então, os frutos do dia, escreve os pensamentos que lhe chegaram com a forma e o canto de suas
palavras. Continua as investigações iniciadas em Veneza: Que é a energia humana? Qual é o sentido dos seus
desejos? Como se explica a desordem de sua história, o lamaçal de seus costumes? Agora, já o sabe: a mesma força
ambiciosa e cruel atira o homem contra o homem e o asceta contra si próprio. "Nietzs che tem que analisar e definir
esta força para poder, afinal, regê-la. Tal é o problema que se propõe, e que espera resol ver algum dia. Tinha prazer
em se comparar aos grandes navegantes, àquele capitão Cook, que navegara, com a sonda na mão, durante três
meses, sobre recifes de coral. Nesse ano de 1881, seu herói era o genovês Cristóvão Colombo, o qual, quando ; ainda
não aparecia terra alguma reconheceu, sobre a água, ervas levadas dos prados até o mar alto pela água leitosa e ainda
doce de um rio desconhecido.

Onde queremos ir? — escreve. — Queremos franquear o oceano? Para onde nos arrasta esta poderosa
paixão que prevalece em nós sobre todas as paixões? Por que este desesperado vôo nessa direção para o ponto em
que, até agora, todos os sóis declinaram e se extinguiram? Talvez se diga também, algum dia, de nós, que com a
proa sempre orientada para Oeste, esperávamos alcançar uma Índia desconhecida, mas que o nosso destino era
fracassar diante do infinito... Para que, meus irmãos? Para quê? —

Nietzsche sentia predileção por esta página lírica, que coloca no fim do seu livro como um hino final. "Que
outro livro —. escreve — conclui com um para quê?

Pelos fins de janeiro termina seu trabalho; mas é incapaz de copiar novamente o manuscrito. Sua mão está
demasiado nervosa e sua vista muito fatigada. Envia-o, pois, a Peter Gast, Em 13 de março, a cópia está pronta, e
Nietzsche anuncia-o ao editor:

Querido senhor: aí tem o manuscrito do qual me é tão penoso separar-me... E, agora, rapidez, rapidez,
rapidez! Partirei de Gênova logo que o livro apareça, e “daqui até lá viverei sobre brasas. Apresse-se e apresse fo
impressor! Não poderá ele prometer-lhe por escrito que no fim de abril, o mais tardar, terei nas mãos o livro
terminado? Querido senhor Schmeitzner, que cada um de nós faça, neste momento, o mais que possa. O con -
teúdo do meu livro é tão importante! É para nós uma questão de honra que meu livro não tenha erro algum e
venha ao mundo dignamente e sem mancha. Suplico-Ihe que faça isto por mim: nada de propaganda. Poderia
lhe muitas outras coisas, mas o senhor compreenderá tudo por si mesmo, quando tiver lido o meu livro.

O editor leu, compreendeu mal e não manifestou o menor entusiasmo. Em abril, Nietzsche ainda em
Gênova, esperava as provas. Esperara surpreender os seus amigos com a remessa de uma obra inesperada, e a
ninguém dissera coisa alguma, exceção de Peter Gast. Afinal, renuncia ao prazer do segredo. "Boa nova — escreve a
sua irmã — um novo livro, um grosso volume...! Um livro decisivo, sobre o qual não posso pensar sem uma viva
emoção..." Em maio, reúne-se a Peter Gast, numa vila de Veneto, Rocoaro, junto aos Alpes. Sua impaciên cia cresce
dia a dia. A demora do seu editor impedem-no de ventilar as novas idéias que já o acossam.

Aurora — título finalmente escolhido — aparece no momento mais desfavorável: em julho.

VI. O TRABALHO DO "ZARATUSTRA"

I A CONCEPÇÃO DO ETERNO RETORNO

Frederico Nietzsche considerava Aurora como o exercício de uma convalescente que se diverte com os
desejos e as idéias e encontra em cada um sua diversão de amor ou malícia. Fora um jogo e devia terminar. Agora,
devo escolher entre as idéias entrevistas — pensava; devo pegar uma e exprimi-la em toda sua força — dando por
encerrados os meus anos de solidão e de espera. "Em tempo de paz — escreveu — o homem de instintos belicosos se
volta contra si mesmo". Apenas saído de seus combates, Nietzsche procura novas ocasiões de luta.

Até meados de julho, permanecera em Veneto, nos primeiros contrafortes dos Alpes italianos; mas não teve
remédio senão procurar um abrigo menos ardente. Não esquecera aqueles altos vales alpinos que, dois anos antes, lhe
proporcionaram alívio nos males e felicidade instantânea. Subiu até eles e se instalou de maneira rústica na
Engadina, em Sils--Maria. Mediante um franco diário conseguiu um quarto na casa de uns camponeses, e uma
pensão vizinha fornecia-lhe alimentação. Os viajantes eram raros e Nietzsche, quando se achava de humor
comunicativo, ia visitar o professor ou o cura, gente simples que nunca mais esqueceu aquele profes sor alemão, tão
singular, tão instruído, modesto e bondoso.

Ele refletia, então, sobre os problemas da filosofia naturalista. O sistema de Spencer era a novidade da
moda. Frederico Nietzsche desprezava aquela cosmogonia que, pretendendo suplantar o cristianismo, continuava
submetida a ele. Spencer ignora a providência, mas acredita no progresso. Ensina a realidade de um acordo entre os
movimentos das coisas e aspirações da humanidade; em um universo sem Deus conserva as harmonias cristãs.
Frederico Nietzsche seguira escolas mais viris: ouve Empédocles, Heráclito, Spinoza, Goethe, pensadores de olhar
sereno, que sabem estudar a natureza sem procurar nela nenhum assentimento de seus desejos. Continua obediente a
estes mestres e sente crescer e amadurecer dentro de si uma idéia grande e nova.

Pelas cartas que escreve, adivinhamos a emoção de que está possuído. Sente a necessidade de estar só, e
define a sua solidão. Paulo Rée quer ir contar-lhe a admiração que lhe causou Aurora. Quando sabe disso,
Nietzsche se desespera.

Minha boa Lisbeth — escreve ele a sua irmã: — não posso me resolver a telegrafar a Paulo Rée, dizendo-
lhe que não venha. No entanto, tenho que considerar como inimigo a qualquer pessoa que venha interromper o meu
trabalho do verão, meu trabalho de Engadina; quer dizer meu próprio dever, minha "única necessidade". Um
homem aqui, em meio aos pensamentos que brotam de todas as partes em torno de mim, seria uma coisa terrível; e
se não puder defender melhor a minha solidão, juro que abandonarei a Europa por muitos anos. Já não tenho mais
tempo para perder.

A senhorita Nietzsche preveniu Paulo Rée, que renunciou ao seu projeto.

Por fim, Nietzsche encontra aquela idéia cujo pressentimento o agitava com tanta violência. Um dia,
caminhando através dos bosques de Sils-Maria, em direção a Silvaplana, sentou-se, não longe de Surlee, ao pé de
uma rocha piramidal; e naquele momento, e naquele lugar, concebeu o Retorno Eterno. Pensou: o tempo, cuja
duração é infinita, deve repetir, de período em período, uma disposição idêntica das coisas. Isto é fatal. Portanto, é
fatal que todas as coisas voltem a ser. Dentro de tal número de dias, número incalculável, imenso, mas limitado —
um homem em tudo semelhante a mim, sentado à sombra de uma rocha, encontrará de novo esta mesma idéia. E esta
mesma idéia será novamente encontrada por este homem, não só uma vez, mas em número infinito de vezes, pois o
movimento que repete as coisas é infinito. Devemos, portanto, abandonar toda a esperança e pensar com firmeza:
nenhum céu receberá os homens, e nenhum futuro melhor os consolará. Somos a sombra de uma natureza cega e
monótona, os prisioneiros de todos os momentos. Não esqueçamos, porém, que esta tremenda idéia que nos proíbe
qualquer esperança, enobrece e exalta cada minuto de missa vida. Se o instante se repete eternamente e deixa de se
uma coisa passageira — o mínimo sol converte em monumento eterno, dotado de valor infinito e (se a palavra divino
tem algum sentido) divino. Que tudo se repita incessantemente — escreve-----é a extrema aproximação de um
mundo do futuro com um mundo do ser: ponto culminante da meditação (*)

A emoção do descobrimento foi tão viva, que ele chorou, permanecendo por longo tempo mergulhado em
lágrimas. Afinal, seu esforço não fora vão. Sem fraquejar diante da realidade, sem se separar do pessimismo, mas ao
contrário, levando às últimas conseqüências a idéia pessimista da realidade, Nietzsche descobrira esta doutrina do
Retorno, que, conferindo eternidade às coisas mais fugitivas, restaura em cada uma delas o poderio lírico e o valor
religioso necessário à alma. Em algumas linhas formula a idéia, e data-a: "Começos de agosto de 1881, em Sils-
Maria, a 6.500 pés sobre o nível do mar e muitos mais sobre o nível de todas as coisas humanas."

Durante algumas semanas viveu em um estado de arroubamento e de angústia. Os místicos conhecem, sem
dúvida, emoções semelhantes e seu vocabulário se adapta ao caso. Experimentava um orgulho divino, mas ao mesmo
tempo, temia e espantava-se, como esses profetas de Israel que tremem diante de Deus ao receber de seus lábios a
ordem de sua missão.

O homem desgraçado, tão ferido pela vida, contemplava com indizível terror a perpetuidade dos Retornos.
Isto era para ele uma espera insuportável e um suplício. Amava, porém, esse suplício e se impunha a idéia do
Retorno Eterno, como um asceta se impõe o martírio. Lux, mea crux — escreveu em suas notas — Crux, mea lux.
Sua agitação, que o tempo não apaziguava, fez-se extrema, chegando a atemorizá-lo, pois não ignorava a ameaça que
pairava sobre sua vida.

Algumas idéias se levantam em meu horizonte, e que idéias! — escreve a Peter Gast em 14 de agosto. —
Eu próprio não suspeitava de nada semelhante. Não digo mais, pois quero manter uma calma inalterável. _ Ah, meu
amigo! às vezes, certos pressentimentos atravessam meu : espírito. Parece-me que levo uma vida muito perigosa,
pois minha máquina é daquelas que podem explodir. A intensidade dos meus sentimentos me fazer rir e tremer; por
duas vezes já, me vi obrigado a permanecer no meu quarto por um motivo ridículo: tinha os olhos irritados. Por
quê? Porque passeando, chorara demais, não lágrimas sentimentais, mas lágrimas de alegria; e cantava, e dizia
disparates, possuído por uma nova idéia que devo propor aos homens...

A partir desse momento concebe uma nova missão. Tudo o que fez até então não passa de um desajeitado
ensaio, ou uma
(*) Esta fórmula encontra-se no Der Wille zur Macht, parágrafo 286. (N. do A.).

tentativa. Agora, porém, chegou o momento ide edificar a obra. Que obra? Nietzsche vacila: seus dons de
artista, de crítico e de filósofo, seduzem-no em diversos sentidos. Colocará a sua doutrina em forma de sistema? Não,
pois que é um símbolo que deve ser rodeado de lirismo e ritmo. Não poderia renovar aquela forma esquecida criada
pelos pensadores da mais antiga Grécia e de que Lucrécio nos transmitiu um modelo? Frederico Nietzsche acolhe
essa idéia. Agradar-lhe-ia traduzir a sua concepção da natureza em uma linguagem poética, uma prosa musical e
poemática. Continua procurando, e seu desejo de uma linguagem rítmica, de uma forma viva e como que palpável,
sugere-lhe uma nova idéia: não poderia introduzir no centro de sua obra uma figura humana e profética, um herói?
Um nome lhe vem ao espírito: Zaratustra, o apóstolo persa, mistagogo do fogo. Um título, um subtítulo e quatro
linhas rapidamente escritas, anunciam o poema:

MELODIA E ETERNIDADE

SINAL DE UMA VIDA NOVA

Zaratustra, nascido nas margens do lago Urmi abandona sua pátria aos trinta anos, dirige-se para a
província Ária e, em dez anos de solidão, compõe o Zend Avesta.

Desde esse momento, seus passeios deixaram de ser solitários; Frederico Nietzsche escuta e recolhe
incessantemente as palavras de Zaratustra. Em três dísticos de doce tom, quase terno, diz como este companheiro
chegou até sua vida:

SILS-MARIA

Eu estava ali sentado, à espera — à espera de coisa alguma


Gozava para lá do bem e do mal: tão pronto
Da luz, tão pronto da sombra abandonado
Ao dia, ao lago, ao meio-dia, ao tempo sem objeto.
Então, amigo de repente um se converteu em dois —
E Zaratustra passou junto de mim...

Em setembro, a estação se tornou repentinamente fria e nevosa. Nietzsche teve que abandonar Engadina.

Alquebrado pela intempérie, sua exaltação decaiu, e começou um longo período de depressão. Pensava
constantemente no Retorno Eterno, mas, desanimado e abatido, sentia somente o horror de sua idéia. "Revivi os dias
de Basiléia .— escreve a Peter Gast. — A morte me contempla por cima do ombro..." É breve em suas queixas: uma
palavra deve bastar para adivinhar seus abismos. Durante aquelas semanas de setembro e de outubro foi tentado três
vezes pelo suicídio. De onde lhe vinha essa tentação? Desejaria evitar o sofrimento? Não. Ele era valente. Desejaria
prevenir a destruição do seu espírito? Talvez esta segunda seja- a hipótese verdadeira.

Desceu até Gênova, e continuou sofrendo os ventos úmidos e os céus nublados de um caprichoso outono.
Suportava impacientemente a falta de luz. Uma nova tristeza completava sua infelicidade: Aurora não tivera o menor
êxito; os críticos haviam-na ignorado e os amigos apenas a haviam lido. Jacob Burckhardt externara uma opinião
cortês e prudente: "Leio algumas partes de seu livro como se fosse um homem velho e outras com uma sensação de
vertigem." Erwin Rohde, o mais querido, o mais estimado, não respondera à remessa do livro. Nietzsche escreveu-
lhe de Gênova, em 21 de outubro:

Meu velho e querido amigo:

Com certeza você é detido por algum escrúpulo. Suplico-lhe sinceramente: não me escreva. Isto nada mu-
daria entre nós, mas em troca, é-me insuportável pensar que, enviando um livro a um amigo, exerço sobre ele uma
espécie de pressão. Que importa um livro! O que tenho a fazer importa muito mais — ou então, não saberia para
que vivo. — O momento é duro para mim. Sofro muito.
Amistosamente seu

F. N.

Erwin Rohde nem sequer responde a esta carta. Como explicar o fracasso de Aurora? Trata-se, sem dúvida,
da velha história constante e universal; a irremediável desventura do gênio desconhecido — porque é gênio,
novidade, surpresa, escândalo. No entanto, talvez consigamos descobrir algumas razões particulares. Desde que
Nietzsche se separou dos círculos wagnerianos, não tem amigos; e um grupo de amigos é o intermediário mais
indispensável entre um grande espírito que se exercita e a massa do público. Nietzsche encontra-se só diante dos
leitores desconhecidos, aos quais suas constantes variações desconcertam; conta com a forma viva de sua obra para
os atrair e conquistar, mas até essa forma lhe é desfavorável. Nenhum livro é de mais difícil acesso do que um
conjunto de aforismos e pensamentos breves. O leitor tem que concentrar toda a atenção em cada página e decifrar
um pequeno enigma e o cansaço não tarda em se apoderar dele. É possível, ademais, que o povo alemão,
pouco sensível à arte da prosa; pouco capaz de surpreender suas belezas, acostumado aos esforços lentos.e
demorados, se achasse mal preparado para compreender uma obra tão imprevista.

Um formoso mês de novembro logra reanimar Frederico Nietzsche. "Ressurjo de entre os meus desastres"
— escreve ele. Percorre a montanha, a costa genovesa, volta a subir às rochas onde imaginara as páginas de Aurora,
e, aproveitando a doçura do tempo, banha-se no mar. "Sinto-me tão bem, tão orgulhoso, tão completamente príncipe
Dorial — escreve a Peter Gast. — Só me falta você, querido amigo. Você e sua música."

Desde as representações dos Niebelungen em Bayreuth, ou seja, 5 anos — Nietzsche se havia privado de
música. Cítve musiciam!, escrevia. Receava, se se abandonasse ao prazer dos sons, ser novamente dominado pela
magia da arte wagneriana. Conseguiu, afinal, livrar-se de seus temores. Seu amigo Peter Gast havia-lhe tocado, em
junho, em Rocoaro, cânticos e coros que se entretivera compondo sobre os epigramas de Goethe. Paulo Rée dissera-
lhe um dia: "Nenhum músico moderno seria capaz de pôr em música versos tão ágeis." Peter Gast aceitara o repto e
ganhara, segundo Nietzsche, encantado com a vivacidade dos seus ritmos. "Você deve perseverar w aconselhou-o;
— trabalhe contra Wagner músico, como eu trabalho contra Wagner filósofo. Esforcemo-nos, Rée, você e eu, em
libertar a Alemanha. Se você conseguir encontrar uma música adequada ao universo de Goethe (música que não
existe), terá feito uma grande coisa... Esta idéia reaparece erri todas as suas cartas. Seu amigo se acha em Veneza, ele
em Gênova. Nietzsche espera que naquele mesmo inverno a Itália os inspirará a ambos, alemães desarraigados, uma
metafísica e uma música novas.

Aproveita a melhoria de seu estado de saúde para ir ao t.entro. Ouve a Semíramis de Rossini e quatro vezes
a Julieta, de Bellini, Uma noite sentiu curiosidade de ouvir uma ópera francesa cujo autor lhe era desconhecido.

Hurra, meu amigo! — escreve a Peter Gast — fiz uma. nova e feliz descoberta: uma ópera de Georges
Bizet (quem é esse homem?): Carmen. Ouve-se como uma novela curta de Merimée, espiritual, forte, emocionante
em vários momentos. Um verdadeiro talento francês que Wagner não desorientou, um franco discípulo de Berlioz .
Não estou longe de pensar que Carmen é a melhor ópera que existe. Tanto tempo quanto vivermos, ela fará parte de
todos os repertórios da Europa.

A descoberta de Carmen é o acontecimento do seu inverno. Falava delas muitas vezes, e muitas voltava a
ouvi-la. Tendo escutado aquela música franca o apaixonada, sente-se melhor armado contra as seduções românticas,
sempre poderosas sobre a sua alma. “Carmen liberta-me" - escreverá.

Frederico Nietzsche volta a encontrar a felicidade que gozara no ano anterior; semelhante, mas baseada
numa emoção mais grave: o pleno meio-dia chega após a aurora. Pelos fins de dezembro atravessa e vence uma crise,
comemorada numa espécie de poema em prosa que traduzimos aqui. É a continuação daquelas meditações e daqueles
exames de consciência que escrevia, quando jovem, nos dias de São Silvestre:

Para o Ano Novo — ainda vivo, penso ainda. É preciso que viva ainda, pois ainda é preciso pensar. Sum,
ergo cogito; cogito, ergo sum. Hoje é o dia em que cada um encontra liberdade para exprimir seus desejos e seu
mais caro pensamento: Expressarei, pois, o desejo que se forma hoje em mim mesmo, e direi qual o pensamento que
trago no coração este ano, por cima de todos; que pensamento escolhi como razão, garantia e regozijo de minha
vida futura. Quero exercitar-me todos os dias em ver em cada coisa, o necessário como se fora uma beleza, e desta
maneira serei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati — seja este, daqui por diante, meu amorl Não
quero acusar, não quero, nem mesmo acusar os acusadores. Afastar meu olhar — seja esta a minha única negativa.
Em outras palavras, quero, em qualquer circunstância, ser sempre um afirmador.

Os trinta dias de janeiro se passam sem que uma nuvem escureça o seu céu. Em sinal de gratidão, Nietzsche
dedicará a este esplêndido mês o quarto livro de La Gaya Scienza, que intitula Sanctus Januarius, livro admirável,
rico em pensamento crítico, em íntimas sutilezas e dominado, da primeira à última página, por uma emoção sagrada:
Amor fati.

Em fevereiro, Paulo Rée, de passagem por Gênova, permanece uns dias com seu amigo, que lhe mostrou
seus passeios. preferidos e o conduziu até às enseadas rochosas "onde, dentro de seiscentos ou de mil anos —
escreve, caçoando, a Peter Gast — se levantará uma estátua ao autor de Aurora." Depois, Paulo Rée desceu para
Roma, onde o esperava a senhorita de Meysenbug. Rée sentia certa curiosidade em penetrar o mundo wagneriano,
fortemente agitado pela espera de Parsifal, o mistério cristão que se devia dar em Bayreuth, no mês de julho.
Nietzsche não quis acompanhar Paulo Rée. Cuidava zelosamente de sua solidão, e a iminente representação de
Parsifal fazia mais vivo o seu ardor pelo trabalho. Não tinha ele, também, uma grande obra para amadurecer? Não
tinha que escrever o seu mistério anticristão, o seu poema do Retorno Eterno? Este era seu pensamento constante,
pensamento que lhe proporcionava uma felicidade graças à qual podia recordar com saudade menos dolorosa o seu
mestre dos dias passados. Richard Wagner parecia-lhe, a um tempo, muito afastado e muito próximo dele. Muito
afastado, pelas idéias; mas que valem, para um poeta, as idéias? Muito próximo pelos sentimentos, os de sejos, a
emoção lírica; e não é isto o essencial? Todo o desacordo entre os líricos baseia-se apenas em matizes, pois por
alguma razão habitam um mesmo universo e trabalham com a mesma coragem para dar uma significação e um valor
supremos aos movimentos da alma humana. Leiamos esta página que Nietzsche escrevera naquela ocasião, e
compreenderemos melhor o estado de sua alma:

Amizade Estrelar — Éramos amigos e chegamos a ser estranhos um para o outro. Mas assim está bem, e
não queremos ocultar nada e nada dissimulamos; nada temos de que nos envergonhar. Somos dois navios, ca da um
com. seu porto e sua rota. Cruzamo-nos por acaso e celebramos juntos uma grande festa — e nossos dois animosos
navios repousaram tão tranqüilamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, que ambos pareciam ter alcançado a
meta que lhes era comum. Mas a força todo poderosa do nosso dever nos lançou de novo para mares e sóis
diversos, e talvez nunca mais nos tornemos a ver, ou talvez nos encontremos de novo sem que nos reconheçamos: os
mares e os sóis diversos nos terão transformado. Estava escrito em nossos destinos: tínhamos que nos tornar
estranhos um ao outro. Razão de mais para nos respeitarmos mutuamente! Razão de mais para santificar a idéia de
nossa amizade encerrada! Existe, sem dúvida, um astro afastado invisível e prodigioso, que dita uma lei comum ás
nossas pequenas evoluções. Elevemo-nos até este pensamento! Nossa vida, porém, é demasiado curta e nossa vista
demasiado fraca: não poderemos ser realmente amigos; teremos que nos contentar com essa possibilidade
sublime... E se for necessário ser inimigos sobre-a terra, acreditamos, apesar de tudo, em nossa amizade de
estrelas.

Que forma tomava, então, em seu espírito, a exposição lírica do Retorno Eterno? Ignoramo-lo. Nietzsche
não gostava de falar do seu trabalho; queria acabar antes de anunciar". Não obstante, gostava que seus amigos
conhecessem o novo movimento em que empenhava seu pensamento. Com este fim dirigiu uma carta à senhorita de
Meysenbug, na qual trotava Wagner sem deferência, acrescentando uma promessa um tanto misteriosa: "Se não
estou demasiado iludido com respeito ao meu futuro, será graças à minha obra que continuará o que de melhor há
na obra de Wagner — e daí, talvez, o cômico da aventura...

No começo da primavera, Nietzsche, seduzido por um capricho, embarcou com o capitão de um veleiro
italiano que zarpava para Messina e fez o cruzeiro do Mediterrâneo. A travessia foi terrível e Nietzsche esteve
gravemente doente. Mas sua permanência em Messina foi, em compensação, grata. Escreveu versos, prazer que,
desde muitos anos não experimentava. Eram impromptus e epigramas, inspirados, talvez naquelas felizes glosas
goetheanas que Peter Gast pusera em música. Nietzsche procurava, então, um canto da natureza e da humanidade
favorável à produção de sua grande obra. Sicília — bocal do mundo, onde mora a felicidade — segundo ensina o
velho Homero, pareceu-lhe um refúgio ideal, e, esquecendo depressa sua incapacidade para suportar o calor, decidiu
instalar-se em Messina por todo o verão. Alguns dias de siroco, pelos fins de abril, abateram-no, e viu-se obrigado a
preparar as malas.

Recebeu, entretanto, algumas linhas da senhorita Meysenbug, que lhe pedia encarecidamerite que se
detivesse em Roma. Sendo Roma uma de suas etapas normais, aceitou. Sabemos quais as razões da insistência da
senhorita de Meysenbug. Esta mulher admirável não se resignara nunca à desventura de seu amigo, cujo destino em
vão procurava tornar mais doce. Conhecia a delicadeza e a ternura do coração de Nietzsche, e com freqüência
quisera encontrar-lhe uma companheira. Não tinha, acaso, ele mesmo lhe escrito: "Digo-lhe, confidencial-mente, que
o que me faz falta é uma boa esposa"? Na primavera daquele ano de 1882, a senhorita de Meysenbug acreditou haver
encontrado o que precisava (*), e era este o objeto de sua carta. A senhorita de Meysenbug possuía o gosto e o cos -
tume da bondade, mas talvez não tivesse suficientemente em conta que a bondade é uma arte difícil e na qual as
derrotas são muito cruéis.
(*) Esta história íntima foi conhecida por poucas pessoas, na maioria desaparecidas' hoje. Duas mulheres
sobrevivem: uma, a senhora Förster-Nietzsche, publicou trechos que desejaríamos fossem mais serenos e mais
claros. A outra, senhorita Salomé, escreveu um livro sobre Nietzsche no qual são indicados alguns fatos e citadas
algumas cartas. A senhorita Salomé se negou a qualquer discussão sobre o assunto, que considera pertencer só a ela.
As tradições orais são contraditórias e numerosas. Umas, espalhadas na sociedade romana onde se desenrolou a
aventura, são menos favoráveis à senhorita Salomé, que nelas aparece como uma espécie de Maria Baschkirscheff,
uma aventureira intelectual demasiado empreendedora. As outras, espalhadas na Alemanha, entre os amigos da
senhorita Salomé, são muito diferentes. Tivemos em conta todas estas tradições: As primeiras influenciaram o
trabalho que publicamos nos Cahiers de Ia Quinzalne, caderno doze da décima série, págs. 24 e segs. As segundas,
que conhecemos mais tarde, nos parecem preferíveis. Convém, porém, afastar qualquer esperança de certeza. (N.
do A.)

A moça que a senhorita de Meysenbug encontrara chamava-se Lou Salomé. Tinha apenas vinte anos; era
russa, de admirável inteligência e de ardor intelectual; de uma beleza não perfeita, mas esquisita e extremamente
sedutora. E, freqüente verem-se surgir de repente em Paris, Florença ou Roma, moças exaltadas, originárias de
Bucarest, Filadélfia ou Kief, animadas de bárbara impaciência por se iniciarem na cultura e conquistar um lar em
nossas velhas capitais. Lou Salomé, com toda a certeza, tinha qualidades muitíssimo raras. Por outro lado, sua mãe a
seguia através da Europa levando seus abrigos e chalés. A senhorita de Meysenbug tomou-se de afeto por ela, deu-
lhe para ler as obras de Nietzsche, que Lou Salomé pareceu entender, falou-lhe muito daquele homem extraordinário
que sacrificara a amizade de Wagner para manter a sua liberdade, e disse-lhe: "É um filósofo muito rude, mas o mais
sensível e afetuoso dos amigos e para quantos o conhecem, a lembrança da sua vida solitária é um motivo de tris-
teza..." A senhorita Salomé mostrou grande entusiasmo e interesse em conhecê-lo, e declarou que se sentia destinada
a compartilhar espiritualmente uma existência como a de Nietzsche. De acordo com Paulo Rée, que, segundo parece,
conhecia-a de mais longo tempo e a estimava igualmente, a senhorita de Meysenbug escreveu a Frederico Nietzsche.

Este chegou, e ouviu o elogio da senhorita Salomé: fina, inspirada, corajosa; intransigente na investigação e
na afirmação; uma heroína, por todos os acontecimentos de sua infância; em suma, a promessa de uma grande vida.
Nietzsche concordou em vê-la. Ela lhe foi apresentada e conquistou-o imediatamente, certa manhã, na igreja de São
Pedro. Durante seus longos meses de meditação, esquecera o prazer de conversar e ser ouvido. A jovem russa, como
lhe chama era suas cartas, ouvia deliciosamente. Falava pouco, mas o seu olhar tranqüilo, seus movimentos seguros
e doces, suas menores palavras, não deixavam dúvida acerca da agilidade do seu espírito e da presença de,sua alma.
Nietzsche depressa a amou; talvez desde o primeiro instante. Disse à senhorita de Meysenbug: "Da ist eine seele
welche sich mit einem hauch ein Kõrperchen geschaffen hat" (Aqui está uma alma que com um sopro se transformou
num corpozinho). Já a senhorita Salomé não se deixou seduzir do mesmo modo. Sentiu, não obstante, a singular
qualidade do homem que lhe falava. Teve com ele longas palestras, e a violência do seu pensamento encheu de
perturbação até seus sonhos. A aventura que terminou em drama — começou imediatamente.

Poucos dias depois desta primeira entrevista, a senhora o a senhorita Salomé partiam de Roma. Os
dois, filosofou, Nietzsche e Paulo Rée, partiram com elas, ambos entusiasmados com a pequena. Nietzsche dizia a
Rée: "É uma mulher admirável; case-se com ela..." — "Não — respondia Rée. — Sou pessimista, e a idéia de
propagar a espécie humana me é odiosa. Você é quem se deve casar com ela; é a companheira que lhe falta..."
Nietzsche afastava esta idéia. Provavelmente dizia a seu amigo o mesmo que a sua irmã: "Casar! Nunca! Teria que
me acostumar a mentir." A senhora Salomé observava aqueles dois homens rondando em torno de sua filha;
Frederico Nietzsche inquietava-a; preferia Paulo Rée.

As duas mulheres e os dois filósofos se detiveram em Lucerna. Frederico Nietzsche quis mostrar à sua nova
amiga aquela casa de Triebschen onde conhecera Richard Wagner. Quem não pensava no mestre, então? Levou-a
até aos alamos cujas altas folhagens rodeavam os jardins; descreveu-lhe os dias inesquecíveis, as alegrias e as cóleras
magníficas do grande homem. Estavam sentados à beira do lago e ele falava em voz baixa, contida, mostrando uma
fisionomia transformada pela lembrança das alegrias a que renunciara. De súbito, calou-se, e a moça, olhando-o, viu
que chorava.

Nietzsche contou-lhe toda a sua vida: a infância, a casa pastoral, a misteriosa grandeza do pai, tão
rapidamente arrebatado; os anos piedosos, as primeiras dúvidas e o horror de um mundo sem Deus no qual é preciso
resolver-se a viver; a descoberta de Schopenhauer e de Wagner, o culto que lhes dedicara e que o consolara da perda
de sua fé.

— Sim — disse (e a senhorita Salomé confirma estas palavras) — assim começaram minhas aventuras, que
não terminaram ainda. Onde me conduzirão? No que me aventurarei ainda? Acabarei por voltar à fé, ou chegarei a
uma nova crença? — E, gravemente, terminou: — Em todo o caso, é mais verossímil uma volta ao passado do que a
imobilidade.

Frederico Nietzsche não confessara ainda o seu amor. Sentia-lhe a força, no entanto, e não podia resistir
mais. Mas faltou-lhe a coragem de se declarar. Por fim, pediu a Paulo Rée que falasse em seu nome, e afastou-se.

Em 8 de maio, havendo-se instalado por alguns dias em Basiléia, viu os Overbeck e se confiou a eles com
estranha exaltação. Uma mulher entrara em sua vida, o que era para ele uma felicidade e para seu pensamento um
bem; de agora em diante, este seria mais vivo, mais matizado, mais rico, mais rico, mais emocionante. Preferiria,
seguramente, não se casar com a senhorita Salomé, desdenhando, como desdenha, todo laço carnal. Mas terá, sem
dúvida, que lhe dar seu nome para deixá-la a salvo de murmúrios, e de sua união espiritual nascerá um filho
espiritual: o profeta Zaratustra. É pobre, o que é desagradável e um obstáculo. Mas não poderá vender em bloco a
algum editor, por uma soma considerável, toda sua obra Futura? É preciso pensar nesta possibilidade.

Estas efusões não deixaram de inquietar os Overbeck, que auguraram mal de uma união tão estranha e de
Um entusiasmo tão súbito.

Frederico Nietzsche teve, afinal, a resposta de Lou Salomé: ela não queria casar-se. Um desengano
sentimental que acabava de atravessar — dizia ela — deixava-a sem forças para conceber e alimentar um novo amor.
Negava-se, pois aos desejos de Nietzsche. Mas a negativa vinha amenizada: a única coisa-que ela lhe podia oferecer,
a amizade, o afeto espiritual — estava à disposição de Nietzsche.

Este regressou imediatamente a Lucerna. Viu Lou Salomé, instou para que lhe desse uma resposta mais
favorável: mas a moça repetiu sua negativa e seu oferecimento. Tendo que assistir em julho às festas de Bayreuth, de
que Nietzsche se empenhava em afastar-se, prometeu reunir-se a ele em seguida, e permanecer algumas semanas a
seu lado. Escutaria, então, suas lições e confrontaria o último pensamento do mestre com o do discípulo emancipado.
Nietzsche teve que acabar aceitando as condições e os limites que a moça impunha à sua amizade, e aconselhou-lhe a
leitura de um de seus livros: Schopenhauer como educador, obra da juventude, hino à valentia de um pensador e à
solidão voluntária que Nietzsche continuava aprovando.

— Leia-o — disse-lhe ele — e estará em condições de me ouvir.

Frederico Nietzsche partiu de Basiléia, regressando à Alemanha. Desejava, então, aproximar-se do seu país.
Tais desejos, absorventes e súbitos eram, como sabemos, familiares nele. Um suíço que encontrara em Messina,
elogiara-lhe a beleza de Grunewald, perto de Berlim. Desejando estabelecer-se ali, escreveu a respeito a Peter Gast,
ao qual, seis semanas antes anunciara Messina como sua residência estival.

Visitou Grunewald, que lhe agradou bastante. Mas, na mesma ocasião, viu Berlim e alguns berlinenses, que
lhe desagradaram em extremo. Percebeu que seus últimos livros não haviam sido lidos ali e que suas idéias eram
totalmente ignoradas; sabia-se somente que era o amigo de Paulo Rée e, decer to, seu discípulo. Tudo isto lhe
desagradou; partiu sem demora e passou umas semanas em Naumburg, onde ditou o manuscrito do seu próximo
livro, La Gaya Scienztí (*). Ao que parece falou discretamente de sua nova amiga a sua mãe e a sua irmã e aos seus..
Sua alegria maravilhava-os. Não souberam a causa e ignoraram que o seu estranho Frederico guardava no coração
um sentimento e uma esperança de felicidade que Lou Salomé não conseguira desalentar completamente.

A representação de Parsifal estava marcada para 27 de julho. Frederico Nietzsche foi passar uns dias
num povoado dos bosques turingíos, Tautenburg, pouco distante de Bayreuth, onde se iam encontrar todos os seus
amigos: os Overbeck, os Seydlitz, Gersdorff, a senhorita de Meysenbug, Lou Salomé e Lisbeth Nietzsche. Era ele o
único que faltava ao encontro. É provável que, naquele instante, uma única palavra do mestre bastasse para o atrair.
Talvez Nietzsche tenha esperado essa palavra.. A senhorita de Meysenbug pensou em fazer uma tentativa de
reconciliação, e, na verdade, chegou a nomear Nietzsche diante de Wagner; mas este impôs-lhe silêncio e saiu,
batendo a porta.

(*) O y na palavra Gaya, não parece italiano. Seguimos a ortografia de Nietzsche. (N. do A.)
Frederico Nietzsche, que sem dúvida ignorou sempre este incidente, permaneceu nos bosques em que já
passara àqueles penosos dias de 1876. Que desgraçado era então! E que feliz era agora, em troca! Reprimira suas
dúvidas; um grande pensamento animava-lhe o espírito e um grande amor o coração. Lou Salomé acabava de lhe
dedicar, em sinal de simpatia espiritual, um belo poema:

AN DEN SGHMERZ

Wer kann dich fliehn, den du ergriffen hast,


Wenn du die ernsten Blicke auf ihn richtest?
Ich will nicht flüçhten wenn du mich erfasst
Ich glaube nimmer, dass du nur vernichtest!
Ich weiss, durch jedes Erden-Dasein muss du ghen,
Vnd nichts bleibt unberührt von dir auf Erden:
Das Leben ohne dich — es würe schón,
Vnd doch — auch du bist werth gelebt zu werden!

À DOR

Quem dominado por ti, pode fugir,


Se sentiu teu grave olhar fixo em si?
Eu não fugirei se me tomares;
E jamais crerei que faças mais que destruir.
Sei que deves visitar tudo o que vive sobre a terra;
Nada, nela, pode fugir ao teu domínio.
Sem ti, a vida seria formosa;
No entanto, tu mereces, também que alguém te viva!

Tendo lido estes versos, Peter Gast acreditou que fossem de Nietzsche, que se regozijou com este erro.

Não — escreveu-lhe. — Essa poesia não é minha. É uma das coisas que exercem sobre mim poder tirânico
e que jamais pude ler sem chorar: tem o acento de uma voz que eu esperava, esperava desde a minha infância.
Quem a escreveu foi minha amiga Lou, de

quem decerto você não ouviu falar ainda. Lou é filha de um general russo; tem vinte anos; seu espírito é
penetrante como o Olhar de uma águia; tem a coragem de um leão, e, no entanto, é uma menina, muito feminina e
que talvez não viva muito...

Releu pela última vez o seu manuscrito de La Gaya Scienza, e mandou-o ao editor. Vacilava um pouco, na
ocasião de publicar esta nova coleção de aforismos. Sabia que seus amigos criticavam o número de seus volumes,
demasiado grande, seus ensaios demasiado curtos e seus esboços apenas formados. Ouvia estas criticas e respondia a
elas com aparente boa vontade de ser modesto. Esta boa vontade era, sem dúvida, dissimulada, pois que não podia se
resolver a acreditar que, por curtos que fossem seus ensaios, e por pouco completos que fossem seus esboços, não
valesse a pena serem lidos.

Pensava muito nos festivais de Bayreuth, mas dissimulava ou não confessava senão em parte o seu pesar.
"Estou muito contente por estar impedido de ir — escreve a Lou Salomé. — E no entanto, se pudesse estar ao seu
lado, em conversa, se pudesse dizer-lhe isto e outra coisa ao ouvido, ser-me-ia possível, até, suportar a música de
Parsifal (de outro modo seria impossível)."

Parsifal triunfou. Nietzsche acolheu a notícia em tom de troça. "Viva Cagliostro! — escreve a Peter Gast.
— O velho feiticeiro conseguiu novamente um êxito prodigioso; os senhores velhos soluçavam..."

Assim que terminaram as festas, a jovem russa veio reunir--se a ele, acompanhada de Lisbeth. As duas
moças se instalaram no hotel onde Nietzsche as esperava, e ele começou imediatamente a iniciação de sua amiga.

Lou Salomé ouvira em Bayreuth o mistério cristão, a história da dor humana, sofrida como uma prova e
finalmente consolada com a bem-aventurança. Nietzsche ensinou-lhe um mistério ainda mais trágico: a dor em nossa
vida e em nosso próprio destino; não esperemos passar através dele; aceitemo-lo mais plenamente do que os cristãos.
Detenhamos-nos nele. desposemo-lo, amemo-lo com um amor ativo; sejamos ardentes e implacáveis como ele, rudes
com os demais como para com nós próprios; aceitemo-lo com sua crueldade e brutalidade; atenuá-lo é ser covarde; e
para temperar o nosso valor, meditemos no símbolo do Retorno Eterno.

"São inolvidáveis para mim aquelas horas em que revelou seus pensamentos — escreve a senhorita Lou
Salomé. — Confiávamos como se fossem um mistério indizivelmente penoso de dizer; só em voz baixa e com toda a
aparência do mais profundo horror falava dele. E, realmente, a vida era para ele um sofrimento tão vivo, que sofria
do Retorno Eterno como de uma atroz certeza." A senhorita Lou Salomé ouvia estas confissões com uma inteligência
e uma emoção daquelas que não permitem duvidar das páginas que escreveu em seguida.

Nesses dias concebeu um breve hino, que dedicou a Frederico Nietzsche:

Como o amigo ama o amigo,


Assim te amo, vida surpreendente!
Que me alegre ou chore em ti,
Que me dês sofrimento ou alegria,
Te amo, com tua dita e tua dor;
E se me deves aniquilar,
Sofrerei ao separar-me de ti
Como o amigo que se arranca dos braços do amigo,
Estreita-me com toda minha força:
Se já não tens alegria alguma para mim,
Que me importa! Inda me fica a tua dor.

Encantado com a oferta, Nietzsche quis responder com outra. Fazia oito anos que se proibira de compor
música, criação que o enervava e esgotava; não obstante, se impôs a tarefa de compor um ditirambo doloroso sobre
os versos da senhorita Salomé. Este trabalho, demasiado emocionante, causou-lhe grandes transtornos: nevralgias,
crises de dúvida, de aridez e de saciedade. Viu-se obrigado a iv para a cama. De seu próprio quarto, dirigiu a Lou
Salomé curtos bilhetes: "De cama. Terrível acesso. Desprezo a vida."

Mas, estas semanas de Tautenburg têm a sua história secreta, que conhecemos mal. Lou Salomé — escreve
a senhorita Nietzsche — não foi, jamais, amiga sincera de,seu irmão: tinha curiosidade em ouvi-lo, mas sua paixão e
seu entusiasmo eram fingidos, e freqüentemente se sentia cansada com a terrível agitação de Nietzsche. Lou Salomé
escreveu isso a Paulo Rée, de quem a senhorita Nietzsche recebeu, surpreendida, umas linhas muito singulares: "Seu
irmão fatiga nossa amiga. Abrevie o encontro, se for possível."

Sentimo-nos inclinados a crer que a senhorita Nietzsche sentia ciúmes daquela iniciação que ela não
recebera, ciosa, também, da jovem eslava, de suas seduções um tanto misteriosas e da atenção com que era preciso
ouvi-la se se queria dar prazer a Nietzsche.

Sem dúvida, este atemorizou Lou Salomé com a violência de suas paixões e a magnitude de suas
exigências; ao oferecer-se como amiga, ela não previra as crises de uma amizade mais arrebatada que um amor
tempestuoso. Nietzsche reclamava absoluta submissão a todas as suas idéias e a moça se recusava a isso. Pode se dar
a inteligência, como o coração? Além disso, Nietzsche não admitia a sua orgulhosa reserva e reprovava como uma
falta essa independência que ela queria conservar. Uma carta enviada a Peter Gast deixa adivinhar estas dissensões:

Lou ficará ainda uma semana comigo — escreve em 20 de agosto de Tautenburg; — é a mais inteligente
de todas as mulheres. Cada cinco dias temos uma pequena cena trágica. Tudo o que sobre ela lhe escrevi é absurdo,
não menos absurdo, sem dúvida do que isto que escrevo agora.

Esta frase um pouco desconfiada e reticente, não indica um coração menos entusiasta. Lou Salomé parte de
Tautenburg;. Frederico Nietzsche continua a escrever-lhe cartas, muitas das quais conhecemos; confia-lhe seus
trabalhos e seus projetos: quer ir a Paris ou Viena, com intenção de estudar ciências físicas para aprofundar a teoria
do Retorno Eterno, pois não é bastante que seja surpreendente e bela, é preciso que seja também verdadeira. Tal
como o vemos, vê-lo-emos sempre: tentado pelo seu espírito critico quando segue uma inspiração lírica; tentado
(pelo gênio lírico quando realiza suas análises críticas. Conta-lhe o êxito feliz do Hino à vida, inspirado pelos seus
versos e que ele submeteu ao julgamento de amigos músicos. Um diretor de orquestra quase lhe prometeu uma
audição; inclinado à esperança, ele comunica a notícia. "Por este estreito caminho — escreve-lhe — po deremos
chegar juntos à posteridade, ficando, ainda, aberto qualquer outro caminho." Em 16 de setembro escreve, de Leipzig,
a Peter Gast: "últimas notícias: no dia 2 de outubro, Lou vem aqui; dois meses depois partiremos para Paris, e lá
permaneceremos, talvez, durante anos. Tais são os meus projetos."

Sua mãe e sua irmã criticam-no. Ele sabe, e essa hostilidade não o desgosta. "Todas as virtudes de
Naumburg estão contra mim — escreve — e convém que assim seja."

Dois meses depois, a amizade rompeu-se. Que aconteceu? Quem sabe se não é difícil imaginá-lo: Lou
Salomé foi reunir-se a Nietzsche em Leipzig, como prometera, mas Paulo Rée acompanhava-a. Sem dúvida, Lou
desejava que Nietzsche compreendesse que a amizade sempre oferecida tinha que ser livre e sem submissões; uma
simpatia e não uma consagração intelectual. Haveria Lou Salomé pensado bem nas dificuldades de semelhante
empresa e nos perigos de tal ensaio? Aqueles dois homens se haviam enamorado dela. Qual foi a sua atitude entre os
dois? Pode se assegurar que, ao tentar reter a ambos junto de si, não cedia a um instinto talvez inconsciente, de
curiosidade intelectual e de domínio feminino? Quem o poderia dizer? Quem, jamais, o saberá?

Frederico Nietzsche se tornou triste e desconfiado. Certo dia acreditou que seus companheiros, que falavam
em voz baixa, caçoavam dele. De outra vez, chega até ele uma história pueril que, no entanto, precisamos
transcrever, e que o agitou profundamente: Rée, Lou Salomé e Nietzsche haviam tirado juntos uma fotografia. Lou
Salomé e Rée haviam-lhe dito: "Suba nesta "charrete" de criança; nós seguraremos os varais; será o símbolo de
nossa união..." Nietzsche respondera: "Não. A senhorita Lou deve sentar-se na "charrete" e Paulo Rée e eu
seguraremos os varais..." Assim se fez e a senhorita Lou mandou a fotografia a muitos amigos seus, (pelo menos é o
que se contava) como um símbolo de sua supremacia.

Uma idéia mais cruel não demorou a torturar Frederico Nietzsche: Lou e Rée estão de acordo contra mim
— pensava; sua amizade atraiçoa-os: eles se amam e enganam-me... Assim, tudo se tornava vil e mesquinho em
torno de si. A aventura espiritual que havia sonhado terminava em lamentável disputa. Perdia sua estranha e sedutora
discípula e perdia o melhor e mais inteligente de seus amigos daqueles últimos oito anos. Finalmente, ferido e
abatido por estes acontecimentos degradantes, e faltando, ele próprio, aos deveres da amizade, denuncia Rée e Lou
Salomé: "É um espírito maravilhoso, mas débil e sem finalidade alguma. Isto, por causa de sua educação: todo. o
homem deve ser educado para se tornar, de um modo ou de outro, um soldado; e a mulher, de uma forma ou de
outra, a esposa de um soldado."

Nietzsche não tinha nem experiência nem resolução suficientes para cortar pela raiz essa situação
infinitamente penosa. Sua irmã, que detestava a senhorita Salomé, alimentava suas suspeitas e rancores, e acabou
intervindo de maneira brutal. Sem estar autorizada, segando parece, escreveu à moça uma carta que determinou a
ruptura. A senhorita Salomé ofendeu-se. Conhecemos o rascunho da última carta que Frederico Nietzsche lhe dirigiu,
rascunho que esclarece um pouco do acontecido:

Mas que cartas são essas, Lou? Meninas de escola irritadas é que escrevem assim. Que tenho eu que ver
com essas misérias? Compreenda-me: desejo que você se eleve diante de mim; não quero que diminua mais ainda.

Só reprovo o ter demorado tanto em perceber o que eu desejava de você. Em Lucerna dei-lhe o meu ensaio
sobre Schopenhauer dizendo-lhe que os meus pontos de vista essenciais estavam ali, e acreditando que eles seriam
também os seus. Você deveria, então, ter lido e dito: Não. (Nestes assuntos odeio toda a superficialidade). Teria,
assim, me poupado muitas coisas! A poesia À Dor, que você escreveu, é uma profunda negação da verdade.

Creio que ninguém pensa de você tanto mal e tanto bem como eu. Não se defenda. Eu já a defendi, diante
de mim e diante dos outros melhor do que você o poderia fazer. As criaturas de sua espécie não são suportáveis
pelos demais senão quando têm um fim elevado.

Que pobre é você em veneração, em reconhecimento, em piedade, em cortesia, em admiração e em


delicadeza! (Para não falar de coisas mais elevadas.) Que responderia, se eu lhe dissesse: É corajosa? É incapaz de
uma traição?

Então? Não compreende que quando um homem como eu se aproxima de você precisa fazer sobre si pró-
prio uma grande violência?... Você conheceu um dos homens mais generosos, mais benéficos que existem; mas,
contra os pequenos egoísmos e as pequenas fraquezas, meu argumento, saiba-o bem, é a repugnância. Ninguém é
tão rapidamente vencido pela repugnância como eu.

No entanto, não me iludi sobre coisa alguma; vi em você esse sagrado egoísmo que nos obriga a ceder o
que há de mais elevado em nós. Ajudada não sei por que malefício, você o trocou pelo seu oposto, o egoísmo do
gato que só quer a vida...

Adeus, querida Lou. Não a verei mais. Defenda sua alma de semelhantes ações e consiga com outros o que
comigo já é irreparável.

Não li sua carta até ao fim, mas, de qualquer modo, li demasiado. Seu

F. N.

Frederico Nietzsche abandonou Leipzig.

ASSIM FALAVA ZARATUSTRA

Sua partida foi rápida como uma fuga. Passa por Basiléia e se detém em casa de seus amigos Overbeck, que
ouvem as suas queixas. Foi desenganado de seu último sonho. Todos o traíram: Lou, Rée, fracos e pérfidos; Lisbeth,
sua irmã, inconsciente e grosseira. De que traição se queixa, é de que acontecimento? Não o diz, mas prossegue na
sua amarga queixa. Os Overbeck desejam retê-lo ao seu lado durante alguns dias, mas ele foge. Quer trabalhar, e
vencer sozinho a tristeza de ter sido enganado e a humilhação de haver-se enganado. Talvez queira, também, tirar
proveito do estado de paroxismo e do sursum lírico a que o levara o seu desespero. Parte e diz a seus amigos: "Hoje
entro em absoluta solidão."

Parte e para, primeiro, em Gênova. "Frio; doente. Sofro", escreve laconicamente a Peter Gast. Abandona
essa cidade em que talvez o importunem as recordações de um tempo melhor, e afasta-se, seguindo a costa. Na época
de que falamos, Nervi, Santa Margarida, Rapallo, Zoagli, eram lugares desconhecidos dos turistas, simples aldeias
habitadas por pescadores que ao anoitecer recolhiam seus barcos ao fundo das enseadas, e cantando remendavam
suas redes. Frederico Nietzsche descobriu estes magníficos lugares e escolheu o mais magnífico, Rapallo, para nele
humilhar a sua miséria. Em uma página muito simples, descreve as circunstâncias de sua permanência ali:

Passei o meu inverno de 1882-83 na graciosa baia de Rapallo que chanfra a Riviera, não longe de Gênova,
entre o cabo de Portofino e Chiavari. Minha saúde não era dás melhores; o inverno, frio e chuvoso; uma pequena
hospedaria (*), situada bem à beira do mar, me oferecia um abrigo bem pouco satisfatório, sob todos os pontos de
vista. Apesar disso — veja-se aqui um exemplo da minha máxima que afirma que tudo o que é decisivo acontece
apesar de— foi neste inverno e em meio a este desconforto que nasceu o meu Zaratustra. Todas as manhãs me
dirigia para o sul pelo magnífico caminho que sobe até Zoagli entre pinheiros e dominando o imenso mar, e (à
medida que a saúde mo permite) chegava até Portofino, bordeando a baía de Santa Margherita. Andando por esses
caminhos é que me veio toda a primeira parte do Zaratustra (fiel mir em); mais ainda, o próprio Zaratustra como
tipo; ou, mais exatamente, Zaratustra caiu sobre mim (überfiel mich...).

Em dez semanas ele concebe e termina seu poema. É uma obra nova e, se se pretender seguir a gênese de-
suas idéias, surpreendente. Ele meditava, sem dúvida, uma onra lírica, um livro sagrado, mas a doutrina essencial
desta obra devia ser dada pela idéia do Retorno Eterno. Pois bem, na primeira parte do Zaratustra, a idéia do Retorno
Eterno não aparece. Nietzsche segue uma outra, diferente e contrária — a idéia do Super-homem, símbolo de um
progresso real que modifica as coisas, promessa de uma evasão possível para além do acaso e da fatalidade.

Zaratustra anuncia o Super-homem — é o profeta de uma boa nova. Em sua solitude descobriu uma
promessa de felicidade, e traz esta promessa; sua força é doce e benfazeja e prediz um grande futuro em recompensa
de um grande trabalho. Em outras ocasiões, Frederico Nietzsche o fará empregar uma linguagem mais áspera. Leia-
se, porém, esta primeira parte, procurando não confundi-la com as que vêm em seguida, e sentir-se-á o tom cheio
de santidade e a doçura.

Qual seria a causa do abandono da idéia do Retorno Eterno? Nietzsche não nos diz uma única palavra capaz
de esclarecer este mistério. A senhorita Lou Salomé nos assegura

(*) Albergo Ia Posta (dado fornecido por M. Lanzky). (N. do A.).


que em Leipzig, durante seus curtos estudos Nietzsche havia compreendido a impossibilidade de
fundamentar em razões as suas hipóteses. Isso, porém, não diminuía o seu valor lírico — do qual, um ano mais
tarde ele saberá tirar partido — e, de qualquer modo, não explica a aparição de uma idéia contrária. Que pensar,
então? Talvez o seu estoicismo se tenha sentido vencido pela traição dos amigos. "Apesar de tudo —
escreve a Peter Gast em 3 de dezembro — não desejaria reviver estes últimos meses." Sabemos que ele não cessava
de experimentar em si próprio a eficácia de seus pensamentos. Incapaz de suportar o símbolo cruel, julgou
impossível propô-lo aos homens sem mentir, e inventou um símbolo novo, o Ubermensch, "o Super-homem".
"Não quero recomeçar.— Escreve em suas notas— (ich will das Leben nicht ivieder). Como pude suportar?
Criando, fitando o Super-homem que diz sim à vida. Ah! Eu também procurei dizer sim!"

Frederico Nietzsche quer responder ao grito da sua juventude: Ist Veredlung moglich? "É possível o
enobrecimento?" E quer responder: sim. Deseja e consegue crer no Super-homem. Consegue apoderar-se dessa
esperança que convém aos desígnios da sua obra. Que é que se propõe? Entre tantas veleidades que o tentam, esta é a
mais forte": deseja responder ao Parsifal, obra contra obra. Richard Wagner desejou mostrar a humanidade salva de
sua fraqueza pelo mistério eucarístico, o sangue impuro dos homens renovado pelo sangue eternamente vertido de
Cristo. Frederico Nietzsche quer mostrar a humanidade salva de sua fraqueza pela glorificação de sua própria
essência, pelas virtudes de um grupo escolhido que purifica e renova seu sangue voluntariamente. Será esse todo o
seu desejo? Certamente que não. Assim falava Zaratustra é algo mais que uma resposta ao Parsifal. As idéias de
Nietzsche têm origens sempre graves e longínquas. Qual será sua vontade final? Quer orientar e dirigir a atividade
dos homens; quer criar costumes, indicar aos humildes sua tarefa, aos fortes, seu dever e seus mandamentos — e
elevá-los a todos para um sublime destino. Desde menino, de adolescente e de moço, teve essa aspiração. Aos trinta e
oito anos, neste momento de crise e decisão, torna a encontrá-la, é quer agir. O Retorno Eterno já não o satisfaz, pois
não tolera o viver prisioneiro dentro da natureza cega. A idéia do Super-homem, que é um princípio de ação e uma
esperança de salvação, ao contrário — seduz-o.

Qual é o sentido desta idéia? É uma realidade, ou um símbolo? Uma ilusão, ou uma esperança? Impossível
dizê-lo. O espírito de Nietzsche é rápido e sempre oscilante. A veemência da inspiração que o arrasta não lhe deixa
nem tempo, nem força para definir; antes de compreender perfeitamente as idéias que o agitam — ele mesmo as
interpreta em diversos sentidos. Às vezes, ó Super-homem lhe parece uma realidade muito séria; com maior
freqüência, porém, parece descuidar ou desdenhar toda a crença literal, e sua idéia não é senão uma fantasia lírica
que ele usa para animar a baixa humanidade. É uma ilusão, Uma ilusão útil e benfazeja, diria, se ainda fosse
wagneriano e se atrevesse a empregar de novo o vocabulário dos seus trinta anos. Nesses momentos gosta va de
repetir a máxima de Schiller: "Atreve-te a sonhar e a mentir..." Acreditamos que o Super-homem é, sobretudo, o
sonho é a mentira de um poeta lírico. Cada espécie tem seus limites, é não os pode franquear. Nietzsche sabe-o e o
escreve. Foi um trabalho penoso. Um tanto refratário a conceber esperanças, Nietzsche rebelava-se freqüentemente
contra a tarefa que se impusera. Todas as manhãs, ao sair de um sono que o cloral fazia doce, voltava à vida com
uma horrível amargura; vencido pela tristeza e o rancor, escrevia páginas que em seguida se obrigava a ler
atentamente, corrigindo ou suprimindo. Temia aquelas horas malignas em que a cólera o possuía como uma vertigem
e lhe escurecia as melhores idéias. Evocava então seu herói, Zaratustra, sempre nobre, sereno e procurava junto dele
alivio e conforto. Numerosas passagens do seu poema são a expressão desta angústia. Zaratustra fala-lhe:

Sim, conheço o teu perigo, Mas, por meu amor e minha esperança, te rogo: não arrojes de ti teu amor e tua
esperançai

O homem nobre está sempre em perigo de se converter num insolente, num caçoísta e num destruidor. Ah!
Conheci homens nobres que perderam suas mais altas esperanças, e, desde então, caluniaram todas as mais altas
esperanças.

... Por meu amor e minha esperança te rogo: não arrojes o herói que há em tua alma; crê na santidade de
tua mais alta esperança!

O combate sente-se continuamente. Não obstante, Nietzsche avança em seu trabalho. Tem que aprender
diariamente e de novo a sabedoria e moderar, destruir ou enganar seus desejos. Mas ele já está acostumado a este
rude combate, c consegue trazer sua alma novamente a um estado de serenidade e fecundidade. Termina um poema
que não é senão o começo de um poema mais vasto. Zaratustra, voltando às suas montanhas, abandona os homens.
Ainda duas vezes terá que descer até eles, antes de lhes ditar as tábuas de sua Lei. O que ele diz, porém, é suficiente
para deixar entrever as formas essenciais de uma humanidade obediente às minorias escolhidas. Ela se divide em três
castas: a mais baixa, a casta popular, abandonada às suas crenças humildes; acima desta, a casta dos chefes,
organizadores e guerreiros; e acima destes, a casta sagrada, os poetas que criam as ilusões e indicam os valores.
Recordemos o ensaio de Richard Wagner sobre a

arte, a religião e a política, tão admirado, havia tempo, por Nietzsche. Nele se propõe uma hierarquia
semelhante.

Em seu conjunto, a obra é serena; é a mais formosa vitória de Frederico Nietzsche. Ele reprime suas
tristezas; exalta a força, não a brutalidade; a expansão, não a agressão. Nos últimos dias de fevereiro de 1882,
escreve essas páginas finais que são, talvez, as mais belas e mais religiosas que o pensamento naturalista tenha já
inspirado:

Meus irmãos! Permanecei fiéis à terra, com toda a força do nosso amor! Que o vosso pródigo amor e o
vosso conhecimento concordem com ò sentido da terra. Eu vos suplico e vos rogo.

Não deixeis nossa virtude voar longe das coisas terrestres e debater-se contra muros eternos! Ah! Houve
sempre tanta virtude extraviada!

Como eu, trazei de novo á terra a virtude extraviada; sim, trazei-a à carne e à vida, a fim de que dê á terra
seu sentido — um sentido humano!

Enquanto Nietzsche, na costa genovesa acabava de compor esse hino, Richard Wagner morria em Veneza.
Nietzsche recebeu a notícia com grave emoção, e reconheceu uma espécie de providencial acordo na coincidência
dos acontecimentos. O poeta de Siegfried morrera! Pois bem, a humanidade não ficaria um momento sem lirismo,
pois que Zaratustra já havia falado!

Fazia seis anos que não dava sinal de vida a Cosima Wagner; mas, naquele momento quis lhe dizer que não
esquecera nada dos dias passados e que compartilhava de sua dor. "Estou seguro de que você me aprovará" —
escreveu à senhorita de Meysenbug (*).

Em 14 de fevereiro, escreveu ao editor Schmeitzner:

Hoje tenho algo para lhe dizer: acabo de dar um passo decisivo, quero dizer, proveitoso pára o senhor
mesmo. Trata-se de um opúsculo de cem páginas apenas intitulado: Assim falava Zaratustra. Um livro para todos e
para ninguém. É um poema, ou um quinto evangelho, ou qualquer outra coisa que não tem nome; além disso, a mais
séria, a mais feliz, também, de minhas produções— e acessível a todos...

(*) Carta inédita fornecida por M. Romain Rolland (N. do A.).

Escreve a Pe r Gast e à senhorita de Meysenbug, dizendo-lhes que nesse ano renunciaria a toda a sociedade
e que irá diretamente de Gênova a Sils.

O mesmo fizera Zaratustra, que deixara a grande cidade regressando às montanhas. Mas, Frederico
Nietzsche não é Zaratustra. É fraco, e a solidão exalta-o e espanta-o. Passam-se várias semanas. O editor
Schmeitzner é lento. Nietzsche se impacienta e modifica seus projetos para o verão; deseja ouvir uma voz humana.
Sua irmã, que se encontra em Roma, ao lado da senhorita de Meysenbug, adivinhando que ele está cansado e
acessível, aproveita o momento para tentar uma aproximação. Nietzsche hão se defende, e promete ir a Roma.

Ei-lo em Roma. A sua velha amiga entrá-lo, imediatamente, numa brilhante sociedade, a que pertencem
Lembach e - também aquela brilhante Donhoff, hoje princesa von Bulow, mulher amável e grande compositora.
Frederico Nietzsche sente com desagrado quão diferente é daqueles alegres conversadores; percebe o quanto é
desconhecido deles, e compreende a diferença que existe entre o seu mundo e este. "É um homem estranho, curioso e
profundamente excêntrico" — pensam todos de Nietzsche. Um grande espírito? — Ninguém se atreve a lançar este
julgamento audaz. E Frederico Nietzsche, tão orgulhoso quando se encontra sozinho, se admira, se perturba e se
humilha. Dir-se-ia que carece da força necessária para desprezar esta gente que não o entende. Inquieta-se e começa
a temer por Zaratustra, seu bem-amado filho.

"Desgosta-me pensar— escreve a Gast — que lerão o meu livro e até que, possivelmente, falem dele.
Quem, porém, é bastante grave para me compreender? Se eu tivesse a autoridade do velho Wagner, meus assuntos
estariam em melhor situação; tal como estão as coisas, ninguém me poderá salvar dos homens de letras. Para o
diabo!

Outros dissabores vêm atormentá-lo. Durante o inverno acostumara-se ao uso do cloral para combater a
insônia, e privando-se dele agora, não conseguia recuperar um sono normal. O editor Schmeitzner imprime
lentamente Assim falava Zaratustra. Por que esta demora? Nietzsche se informa e respondem-lhe que é preciso,
primeiro, tirar quinhentos mil exemplares de um hino para as escolas dominicais. Espera ainda uma semana, sem
receber nada. Pergunta de novo e dão-lhe outra desculpa: a coleção de hinos está pronta, mas ó preciso tirar e lançar
um grande lote de folhetos anti-semitas. Chega junho, e o Zaratustra não apareceu ainda. Nietzsche se irrita e sofre
pelo seu herói cujos passos são impedidos pela dupla necessidade da beatice e do anti-semitismo.

Desanima de escrever e deixa depositadas na estação suas malas com os livros e manuscritos que trouxera:
cento e quatro quilos de papel. Tudo em Roma o enfadava: a mesquinha plebe de bastardos filhos de padres e os
padres mais feios ainda que seus bastardos; as igrejas, "cavernas de cheiro insípido". Seu ódio ao catolicismo é
instintivo e vem de longe; cada vez que se aproxima dele, estremece. Não é o filósofo que julga e reprova: é o filho
do pastor luterano, que não suporta a outra igreja cheia de incenso e de ídolos.

Ouve elogiar a beleza de Aquila e sente o desejo de abandonar Roma. Frederico de Hohenstaufen,
imperador dos árabes e dos judeus, o inimigo dos papas, residiu ali, e Nietzsche também gostaria de fazer o mesmo.
No entanto, o quarto que ocupa em Roma é formoso e bem situado — piazza Rarberini — na parte mais alta de uma
casa. Ali pode esquecer a cidade; o murmúrio da água que um tritão deixa escorrer do seu búzio, disfarça o rumor
humano e encobre sua tristeza. Nesse quarto, é que ele improvisou, uma noite, a mais comovedora expressão de
desespero e solidão:

Sou luz. Ah! se eu fosse noite! Estar rodeado de luz é a minha solidão.
Por que não serei sombra e trevas? Como beberia, então, nos seios da luz!
... Mas vivo em minha própria luz e bebo as chamas que se levantam de mim.

Assim falava Zaratustra — Um livro para todos e para ninguém, apareceu enfim, nos primeiros dias de
junho.

"Movimento-me muito — escreve Nietzsche. — Vivo numa agradável sociedade, mas assim que me sinto
só, sinto-me mais emocionado que nunca." Em breve conhece a sorte de seu livro. Seus amigos apenas lhe falam
dele; ninguém se interessa por esse Zaratustra, estranho profeta que ensina a incredulidade em tom bíblico. "Como
é amargo!" dizem a senhorita Nietzsche e a senhorita Meysenbug, cristãs de coração, que se sentem feridas pelo
livro. "É eu — escreve Nietzsche a Peter Gast — eu, que sinto o meu livro tão doce!"

O calor dispersou aquela sociedade romana. Nietzsche não sabia para onde ir. Esperara dias tão diferentes!
Realmente, abrigara a convicção de que comoveria a Europa letrada e de que enfim, conquistaria um público, ou
(talvez mais exatamente) que não ele tão fraco, mas sim Zaratustra, tão forte, conquistaria um grupo de discípulos e
talvez de fiéis. "Para este verão — escrevia em maio a Peter Gast — tenho um projeto: escolher, no meio de qualquer
bosque, um castelo preparado antigamente pelos beneditinos para as suas meditações, e enchê-lo de companheiros e
de homens escolhidos... Não tenho outro remédio senão começar a procurar novos amigos”.

Mas em 23 de junho, aterrado pela perda de suas esperanças, subiu para o seu retiro predileto da Engadina.

Lisbeth Nietzsche, que regressava à Alemanha, acompanhou-o. Jamais sua irmã o viu tão brilhante e alegre
como naquelas poucas horas de viagem. Improvisava epigramas, "bouts-rimés" cujos temas eram propostos por sua
irmã; ria como um menino e, temendo os intrusos que teriam perturbado sua alegria, em cada estação chamava o
chefe de trem e subornava-o para que os deixassem a sós.

Frederico Nietzsche não vira Engadina desde o verão de 1881, quando concebida a idéia do Retorno Eterno
e as palavras de Zaratustra. Dominado pelas recordações e pela repentina solidão, arrastado por um prodigioso
movimento de inspiração, escreveu em dez dias a segunda parte de sua obra.

Esta segunda parte é amarga. Frederico Nietzsche não pode reprimir por mais tempo os rancores que já no
inverno anterior o haviam ameaçado; já não sabe unir a força à doçura. Antes, Zaratustra dizia: "não sou caçador de
moscas", e desdenhava de seus adversários. Falou, então, como um benfeitor, e não o ouviram. Nietzsche empresta-
lhe, agora, outra linguagem: "Zaratustra justiceiro — escreve em suas curtas notas — uma manifestação da justiça
em sua forma mais grandiosa; da justiça que forma, que edifica, e que, portanto, tem que destruir."

Zaratustra justiceiro só tem insultos e lamentações em seus lábios. Canta aquele canto noturno que
Nietzsche improvisara uma noite em Roma para si só.

Sou luz. Ah, se fosse noite! Estar rodeado de luz é a minha solidão...

Já não é aquele herói que Frederico Nietzsche criara tão superior a toda a humanidade. É um homem
desesperado — é Nietzsche, em suma, demasiado fraco para exprimir outra coisa senão sua irritação e suas queixas:

Em verdade, meus amigos, caminho entre os homens como entre fragmentos e membros de homens!

Nada tão espantoso para os meus olhos como ver os homens despedaçados e dispersos como se estivessem
estendidos num campo de matança.

E quando meus olhos do presente fogem para o passado, encontram sempre o mesmo: fragmentos,
membros e espantosos acasos — nada de homens,

Ah, meus amigos: o presente e o passado sobre a terra são, para mim, as coisas mais insuportáveis; e não
me seria possível viver se não tivesse a visão do que fatalmente há de vir.

Um visionário, um criador, futuro ele próprio, e ponte para o futuro, ah! e de certo modo, um doente tam-
bém, em pé sobre essa ponte: Isto é que é Zaratustra.

Caminho entre os homens, fragmentos do futuro, desse futuro que contemplo nas minhas visões.

Nietzsche difama os mandamentos morais que ampararam a velha humanidade e deseja aboli-los para
implantar os seus. Conheceremos, afinal, esta nova Lei? Nietzsche demora em divulgá-la. "As qualidades do Super-
homem se fazem cada vez mais visíveis" — escreve em suas notas. Desejaria que assim fosse, mas poderá ele acaso,
invadido pelo descontentamento e pela amargura, enunciar e definir uma forma de virtude, um novo bem e um novo
mal, como prometera? Pelo menos, tenta fazê-lo. Um humor áspero e violento arrasta-o, e a virtude que exalta é a
força crua, não disfarçada pelos homens; é o ardor selvagem que as prescrições morais quiseram constantemente
atenuar, matizar ou vencer* Atraído por esta força, cede ao seu influxo:

Contemplo com arroubo os milagres que o ardente sol faz florescer — diz Zaratustra. — Tigres, palmeiras,
serpentes cascavéis... Em verdade, há um futuro até para o mal e o homem não descobriu ainda o mais ardente
meio-dia... Um dia, virão ao mundo dragões maiores.... Vossa alma está tão longe do que é grande, que o Super-
homem lhes padeceria espantoso fim sua bondade!

Com esta enfática frase, cujas palavras são mais sonoras que fortes, parece Nietzsche querer dissimular algo
que não consegue satisfazê-lo em seu pensamento: não volta a insistir sobre esse evangelho do mal, e, prefere marcar
o difícil momento em que o profeta anunciará sua lei. Zaratustra deve, primeiro, terminar sua tarefa de justiceiro e
de destruidor dos fracos. Tem que golpear, mas com que arma? Nesta segunda parte, Nietzsche emprega a idéia do
Retorno Eterno, que desprezara na primeira, modificando, porém, o sentido e a aplicação. Já não é um exercício de
vida espiritual, nem um processo de edificação interior — mas um martelo, segundo ele próprio declara, um
instrumento de terror moral, um símbolo que dispersa o sono.

Zaratustra reúne seus discípulos e quer lhes comunicar a doutrina, mas sua voz desfalece e morre.
Repentinamente sacudido pela piedade o próprio profeta sofre ao evocar a espantosa idéia; vacila no instante de
destruir as ilusões de um futuro melhor, as esperanças de vida futura e de beatitudes espirituais que com suas nuvens
escondem aos homens a miséria do seu estado. Perturba-se. Um corcunda, que adivinha o que se passa no seu
interior, interpela-o, rindo divertida-mente: "Por que Zaratustra fala a seus discípulos de modo diferente daquele com
que fala consigo próprio?" Zaratustra compreende seu erro, e procura novamente a solidão. E assim termina a
segunda parte.

Em 24 de junho daquele ano de 1882, Nietzsche se havia instalado em Sils; antes de 1 de julho, escreve a
sua irmã:

Suplico-lhe, suplico-lhe urgentemente, que procure Schmeitzner e obtenha dele, verbalmente ou por escrito,
como achar melhor, a promessa de que, assim que receba o manuscrito, mande imprimir a segunda parte do
Zaratustra— Esta segunda parte ê hoje uma realidade. Por maiores esforços que você faça para a imaginar, não
fará uma imagem exagerada da veemência de sua criação. Em nome do céu, peço-lhe que arrume bem as coisas
com Schmeitzner; eu sou demasiado irritadiço para o fazer.

Schmeitzner compromete-se e cumpre a palavra. Em agosto, as provas chegam às mãos de Nietzsche, que,
sem forças para este trabalho, deixa a Peter Gast e a sua irmã o cuidado de as corrigir. As coisas terríveis que disse e
as mais terríveis ainda, que estão por dizer, aniquilam-no.

Outras preocupações se juntam à tristeza do seu pensamento. Certa conduta indiscreta de sua irmã
reanimara os dissentimentos. do verão anterior; na primavera, ao reunir-se--lhe, e sabendo que ela tem certo costume
de enredar as coisas, dissera-lhe: "Prometa-me não tocar de novo naquela história de Lou Salomé e de Paulo Rée."
Durante três meses ela se contivera, mas, em seguida, faltou à sua promessa e falou. Ignoramos o que disse, e, de
novo a obscuridade desta história nos envolve. "Lisbeth, — escreve Nietzsche à senhora Overbeck — quer se vingar
a todo o custo da jovem russa. ." Sem dúvida, Lisbeth lhe relatara algum fato, ou alguma con versa que ele ignorava.
Uma irritação doentia apoderou-se dele, e, sob seu influxo, escreveu a Paulo Rée a seguinte carta, da qual se achou
um rascunho (embora não seja seguro que tenha sido enviada tal como aqui a lemos):

Com grande atraso, quase com um ano de atraso, vim a saber o papel que o senhor desempenhou nos
acontecimentos do último verão, e jamais tive a alma tão cheia de asco como a tenho agora, ao pensar que um
indivíduo da sua espécie, insidioso, embusteiro e falso, pôde, durante anos, chamar-se de meu amigo. A meu ver,
isto / um crime, e não somente contra mim, mas antes e, sobretudo, contra a amizade, contra essa vazia palavra
amizade.

... Teria um grande prazer em lhe dar uma lição de moral prática, com um par de pistolas; talvez conse -
guisse, na melhor das hipóteses, interromper definitivamente seus trabalhos sobre a moral. Nestes trabalhos, é
preciso ter as mãos limpas e não os dedos sujos, senhor doutor Paulo Rée!

Esta carta não é suficiente para condenar Paulo Rée. Nietzsche escreveu-a arrebatado pela cólera e
atendendo a informações de sua irmã, quase sempre mais arrebatada do que verídica. A carta tem valor como
testemunho precioso da impressão causada em Nietzsche pelo caso; mas é um fraco testemunho dos antecedentes
mal conhecidos da questão.

Qual foi a conduta de Paulo Rée, quais as suas culpas e quais os seus direitos? Em abril de 1883, seis meses
depois das dificuldades de Leipzig, Rée propusera a Nietzsche dedicar-lhe uma obra sobre as origens da consciência
moral — Obra totalmente inspirada nas idéias nietzschianas. Nietzsche recusara esta homenagem pública,
escrevendo a Peter Gast: "Não quero que se me confunda com ninguém". Uma carta escrita por Jorge Brandes, em
1888, mostra-nos Paulo Rée vivendo em Berlim com a senhorita Salomé "fraternalmente", segundo ambos dizem.
Não é de duvidar que Rée ajudasse a senhorita Salomé, em 1893, a escrever o seu livro sobre Frederico Nietzsche,
livro muito inteligente e muito nobre. Inclinamos-nos a crer que entre aqueles dois homens só houve um
contratempo: o amor comum que a mesma mulher lhes inspirou. ,

Frederico Nietzsche escreve longas cartas febris. Lamenta ver-se, depois dos quarenta anos, traído por seus
amigos. Franz Overbeck, inquieto, sobe a Sils para o distrair da solidão em que ele se debate e se consome. Sua irmã,
pessoa prudente, de gostos burgueses, dá-lhe conselhos em resposta às suas lamentações. "Está sozinho, é certo, mas
você não procurou a solidão? Entre a serviço de alguma Universidade; quando tiver um título e alunos, será
conhecido e seus livros já não cairão no vácuo..." Nietzsche ouve de mau humor estes conselhos, mas acaba
aceitando-os e se dirige ao reitor da Universidade de Leipzig, o qual, sem demora, aconselha-o a que não tente, pois
que nenhuma Universidade alemã poderia aceitar entre os seus professores um ateu, um anticristão declarado. "Esta
resposta me devolveu a coragem" — escreve ele a Peter Gast, e manda a sua irmã uma carta em termos rudes, que fe-
rem Lisbeth:

Sem dúvida convém que eu seja ignorado; mais ainda: convém que eu próprio vá ao encontro da calúnia e
do desprezo. Meus "próximos" são os primeiros a se porem contra mim: assim o compreendi no último verão, e,
magnificamente, tive consciência de que me achava no meu caminho. Quando me ocorre pensar "não posso
suportar mais a solidão" — sinto-me em rebelião contra o que há de mais elevado em mim.

Em setembro dirigiu-se a Naumburg, onde tinha o propósito de se demorar algumas semanas. Sua mãe e sua
irmã inspiravam-lhe sentimentos complexos que escapam à análise. Amava-os por serem seus e porque ele era terno
e fiel, e infinitamente sensível às recordações. Mas cada uma de suas idéias, cada um de seus desejos afastavam-no
deles e seu espírito desprezava-os. Não obstante, a velha casa de Naumburg era o único lugar do mundo onde ainda
encontrava — com a condição de não se demorar nela muito tempo — certa doçura da vida.

Encontrou a mãe e a filha em plena discórdia. Lisbeth havia-se enamorado de um tal Förster, agitador,
ideólogo germanista, anti-semita e que organizava uma empresa de colonização no Paraguai. Lisbeth queria casar-se
com ele e segui-lo e sua mãe, desesperada, tentava retê-la. A senhora Nietzsche recebeu seu filho como um salvador
e narrou-lhe os insensatos projetos de Lisbeth. Nietzsche ficou consternado. Conhecia aquele homem e suas idéias e
desprezava as paixões baixas e torpes que sua propaganda suscitava; desconfiava, até, que esse tal Förster falara mal
de sua obra. Que Lisbeth, sua companheira de infância seguisse aquele homem, era mais do que podia suportar.
Chamou-a e falou-lhe com violência. Ela, porém, replicou com energia. A moça, embora franzina

Em meados de novembro, abandona Gênova, e, seguindo a costa ocidental, põe-se em busca de um retiro
para o inverno. Deixa para trás San Remo, Menton, Mônaco e detém-se em Nice, que o encanta. Encontra ali esse ar
vivo, essa plenitude de luz e esses dias transparentes que tão necessários lhe são. "Luz, luz, luz! — escreve. — Eis-
me aqui de novo em equilíbrio." Desagrada-lhe a cidade cosmopolita, e de início, aluga um quarto numa casa da
velha cidade italiana, não Nice, mas Nizza, como ele escreve sempre. Tem por vizinhos gente do povo,
trabalhadores, pedreiros, empregados e todos, falam italiano. Foi em condições semelhantes que em Gênova, em
1881, encontrara certa felicidade.

Afugenta os pensamentos vãos e faz um enérgico esforço para terminar o Zaratustra. Mas eis aqui o maior
de seus infortúnios: a dificuldade do seu trabalho é extrema, talvez insuperável. Terminar o Zaratustra? A obra é
imensa. Trata-se de um poema invocado para fazer esquecer os poemas de Wagner; de um evangelho que deverá
fazer esquecer os Evangelhos. Durante seis anos, de 1875 a 1881, Frederico Nietzsche havia examinado todas as
morais e mostrado a ilusão que lhes serve de base; definiu sua idéia do universo, apresentando-o como um
mecanismo cego, como uma roda que gira eternamente sem objeto. Não obstante, ele quer ser um profeta anunciador
de virtudes e de fins: "Eu sou aquele que dita os valores para mil anos", diz ele nessas notas em que seu orgulho
relampeja. "Imprimir sua mão nos séculos, como sobre cera; escrever sobre a vontade dos milênios como sobre o
bronze, mais duro que o bronze, mais nobre que o bronze - eis aqui (dirá Zaratustra) a beatitude do criador."

Que leis, que tábuas quererá Nietzsche ditar, que valores escolherá para honrá-los ou desprezá-los, e qual é
o seu direito de escolher e construir uma ordem de beleza e de virtude, dentro da natureza, regida por uma ordem
mecânica? Sem dúvida, Frederico Nietzsche nos responderia que o seu direito é o. direito do poeta cujo gênio,
criador de ilusões, impõe à imaginação dos homens tal amor ou tal ódio, tal Bem ou tal Mal; mas não por isso deixa
de reconhecer a dificuldade de sua empresa, como confessa na segunda parte, últimas páginas de seu poema: "O
perigo está — diz Zaratustra — em que o meu olhar se dirige para cima ao mesmo tempo em que minha mão
desejaria se agarrar e suster... nó vazio!"

Nietzsche quer alcançar a meta que se propôs. Neste mesmo verão sentiu a trágica ameaça que pesa sobre
sua vida, e sente impaciência por terminar uma obra que deverá ser, afinal, a expressão de seus últimos desejos, de
seu último pensamento. Tivera a intenção de acabar o seu poema em três partes; mas duas já estão escritas e ele não
disse ainda quase nada. O drama não está sequer esboçado. É preciso mostrar Zaratustra em contacto com os
homens, anunciando o Retorno Eterno, humilhando os fracos, fortificando os fortes, destruindo a velha humanidade;
é preciso mostrar o Zaratustra legislador, ditando suas Tábuas, morrendo, afinal, de piedade e de alegria, na
contemplação de sua obra. Sigamos as notas de Nietzsche:

Zaratustra alcança, ao mesmo tempo, o extremo desespero e a maior felicidade. No mais terrível instante
do contraste, sucumbe.

A história mais trágica, com um desenlace divino.

Zaratustra se faz gradualmente, maior. Sua doutrina se desenvolve à medida que ele cresce.

O Retorno Eterno brilha como um sol poente sobre a última catástrofe.

Na última parte, grande síntese de quem cria, ama e destrói.

No mês de agosto, Nietzsche, imaginara um desenlace. Suas disposições intimas eram, então, adversas, e o
trabalho ressentira-se disso. Volta, pois ao esquema, e procura tirar partido dele. O que deseja escrever é um drama.
Situa a ação num lugar antigo, numa cidade devastada pela peste. Os habitantes desejam iniciar uma nova era;
procuram um legislador, e chamam Zaratustra, que desce até eles seguido de seus discípulos.

— Vão — diz-lhes — e anunciem o Retorno Eterno... Os discípulos têm medo, e confessam-no:

— Nós podemos suportar a tua doutrina — dizem — mas podê-lo-á também esta multidão?

— Devemos fazer um ensaio com a verdade! — responde Zaratustra. — Essa verdade deve destruir a
humanidade, pois bem, que assim seja!

Os discípulos continuam vacilando. E então, Zaratustra ordena:


— Eu pus em vossas mãos o martelo que há de forjar a humanidade — utilizai-o!

Mas os discípulos temem o povo, e abandonam seu mestre. Zaratustra, então fica só. A multidão se espanta,
se irrita e enlouquece ouvindo-o:

Um homem suicida-se, outro enlouquece. Um divino orgulho de poeta anima Zaratustra: Tudo deve ser
trazido à luz. Mas, no momento em que, simultaneamente, anuncia o Retorno Eterno e o Super-homem, cede à pie-
dade.

Todos o renegam. É preciso — dizem — sepultar esta doutrina e matar Zaratustra.

Já não há no mundo alma alguma que me ame — murmura este — como poderia eu amar a vida?

E morre de tristeza, ao descobrir o sofrimento de que é causa.

— Por amor, causei a mais violenta dor; agora, sucumbo à dor que causei.

Partem todos, e Zaratustra, que permaneceu só, toca com a mão sua serpente: Que me aconselha a minha
sabedoria? A serpente morde-o; a águia destrói a serpente, o leão se precipita sobre a águia, e Zaratustra morre
presenciando a luta entre seus animais.

Quinto ato: os louvores.

A liga de fiéis que se sacrificam sobre a tumba de Zaratustra. Os fiéis haviam fugido, c agora, vendo-o
morto, tornam-se herdeiros de sua alma e elevam-no à sua altura.

Cerimônia fúnebre: Nós é que o matamos. Os louvores.


O grande meio-dia — Meio-dia e Eternidade.

Não obstante as grandes belezas que este plano deixa entrever, Frederico Nietzsche abandona-o. Desagrada-
lhe mostrar a humilhação de seu herói? É provável, e, assim, vemo-lo procurando um desenlace (triunfal. Mas
esbarra, principalmente, com uma dificuldade de fundo, que talvez não conceba claramente: os dois símbolos sobre
os quais repousa o seu poema, o Retorno Eterno e o Super-homem, constituem, em conjunto, um desacordo que torna
impossível o acabamento da obra. O Retorno Eterno é uma áspera verdade, que suprime toda esperança; o Super-
homem é uma esperança e uma ilusão. Não há ponte alguma de um a outro, e a contradição é completa. Sé Zaratustra
ensina o Retorno Eterno, não poderá despertar nas almas uma crença apaixonada na super-humanidade; e se ensina o
Super-homem não poderá propagar o terrorismo moral do Retorno Eterno. Não obstante, obrigado a. refugiar-se
neste absurdo pela desordem e premência de seus pensamentos, Nietzsche impõe a Zaratustra essa dupla tarefa.

Compreenderá claramente o problema? Ignoramo-lo. Jamais confessa estas reais dificuldades em que
tropeça. Se não as vê claramente, porém, sente certo temor e procura uma saída.

Escreve um segundo plano, que não deixa de ser habilidoso : a mesma decoração, a mesma cidade açoitada
pela peste, consumida pelas chamas; a mesma súplica a Zaratustra, que vai até àquele povo dizimado. Vai, porém,
como benfeitor, e evita anunciar a terrível doutrina. Desde inicio, dita as suas leis e fará-las aceitar. Mais tarde, só
mais tarde anunciará o Retorno Eterno. Quais são as leis que ele ditou? Frederico Nietzsche indica-as. Aqui está uma
das páginas, bem raras, pela qual discernimos a ordem que ele sonhou:

a) O dia, novamente dividido; exercícios físicos para todas as idades da vida. A competição como prin -
cipio.
b) Â nova nobreza e sua educação. Unidade obtida por seleção. Uma festa para fundação de cada família.
c) . Os ensaios. (Para os maus, castigo). A caridade renovada pela preocupação das gerações futuras. —
Os maus, respeitáveis como destruidores, pois a destruição é necessária. E também como fonte de força.
Deixar-se instruir pelos maus e não lhes proibir a concorrência. Utilizar os degenerados. O castigo se
justifica quando se utiliza o criminoso como objeto de experiência (para .uma nutrição neva). O castigo é
consagrado assim...
d) Salvar a mulher, mantendo-a mulher.
e) Os escravos (colméia). As crianças e suas virtudes. Aprender a suportar o repouso. Multiplicação das
máquinas. Transformação das máquinas em beleza.
Para vocês, fé e servidão!
f) As épocas de solidão. Divisão do tempo e dos dias. A Alimentação. Simplicidade. Um laço de união
entre os pobres e os ricos.
A solidão necessária de quando em quando, para que o ser penetre em si mesmo e se concentre..

A Ordenação das Festas, fundada sobre um sistema de universo: festas das relações cósmicas, festa da ter-
ra, festa da amizade, do grande meio-dia.

Zaratustra explica as suas leis e as faz amar por todos; repete nove vezes as suas predicações, e anuncia,
por fim, o Retorno Eterno. Fala ao povo, e suas palavras têm um acento de prece.

O grande problema. No princípio foram dadas todas as leis. Tudo está preparado para o anúncio do Super-
homem — grandioso e terrível instante! — Zaratustra revela a doutrina do Retorno Eterno — que agora pode ser
suportada; ele próprio a suporta pela primeira vez.

Momento decisivo: Zaratustra interroga toda aquela multidão reunida para a festa:

— Quereis que tudo isto recomece?


— Sim!
Zaratustra morre de alegria.

Ao morrer, está abraçado á terra. E embora ninguém tivesse dito coisa alguma, todos souberam que
Zaratustra estava morto.

É um belo desenlace, mas Nietzsche não demora em achá-lo demasiado fácil e demasiado bonito. Aquela
aristocracia platônica, instituída um pouco às pressas, deixa-o em dúvidas. Corresponde exatamente aos seus desejos.
Mas, corresponderá aos seus pensamentos? Hábil em destruir todas as morais anteriores, Nietzsche não acredita ter o
direito de propor tão depressa uma moral nova. Inquieta-o, também, a aclamação final. Todos respondem: Sim! Será
isto concebível? As sociedades humanas arrastarão sempre após si uma turba imperfeita, à qual só se fará obedecer
pela força, ou pelas leis. Frederico Nietzsche não o ignora: "Sou um visionário — escreve em suas notas; — mas
minha consciência ilumina inexoravelmente minha Visão e sou eu próprio quem duvida dela." Termina renunciando
a este último plano. Jamais contará a vida ativa, nem a morte de Zaratustra.

Nenhum documento nos permite penetrar o segredo de sua tristeza: nenhuma carta, palavra alguma a
expressam. Consideremos este silêncio como uma confissão de sua angústia c de sua humilhação. Não são, por
acaso, certas? Frederico Nietzsche desejava sempre escrever uma obra clássica, — um livro de história, um sistema,
um poema — digna dos antigos gregos que escolhera por mestres, mas jamais pudera dar forma a esta ambição. Ao
finalizar aquele ano de 1883, acabava de fazer uma tentativa quase desesperada; a abundância e a importância de
suas notas permitem-nos medir a grandeza que foi absolutamente estéril. Ele nem consegue fundar sim meia moral
nem compor o seu poema trágico. Frustra, ao mesmo tempo, suas duas obras e vê desvanecer-se seu sonho.
Que é ele, afinal de contas? Um infeliz, capaz, unicamente, de esforços breves, de cantos líricos e de lamentações.

O ano de 1884 começava tristemente. Alguns dias formosos que por acaso fez em janeiro, reanimaram-no.
Subitamente, ele improvisa: nada de cidades, nem de povos, nem de leis; uma desordem de queixas, apelos e de
fragmentos morais que se diria escombros subsistentes da maior obra em ruínas. Tal é a terceira parte do Zaratustra.
Como Nietzsche, o profeta vive só, retirado na montanha. Fala para si próprio, ilude-se, esquece que está só. Ameaça
e exorta uma humanidade que nem o teme, nem o escuta. Preconiza o desprezo das virtudes habituais, o culto do
valor, o amor da força e das gerações que nascem. Não desce, porém, até ela, e ninguém ouve a sua predica. O
profeta sente-se triste e deseja morrer. E então, a Vida, que surpreende o seu desejo, chega até ele e reanima-o:

— Oh, Zaratustra! — diz a deusa — não estales o teu chicote, porque esse som é insuportável! Tu bem
sabes que o ruído assassina os pensamentos... E se soubesses que pensamentos tão ternos me ocorrem! Ouve: não me
és bastante fiel, não me amas tanto como dizes; sei que pensas me abandonar.

Zaratustra ouve a reprimenda, sorri, e demora em responder.

— Confesso — diz afinal. — Mas tu sabes tão bem como eu que.

E inclinando-se para a deusa diz-lhe algo ao ouvido. Adivinhamos á palavra segredada: Que importa que eu
morra! Nada se separa e nada se aproxima, pois cada instante tem o seu retorno — cada instante é eterno.

— Como! — responde a deusa — tu sabes disso, Zaratustra? Mas... se ninguém o sabe!...

Seus olhares se cruzam. Olham-se. Olham juntos para o prado que ondula sob o frescor da tarde; choram, e,
depois, silenciosos, ouvem e compreendem as onze sentenças do velho sino que bate meia-noite na montanha.
Uma! Oh, homem, alerta!
Duas! Que diz a profunda meia-noite?
Três! Tenho dormido... tenho dormido!...
Quatro! De um pesado sono despertei!...
Cinco! O mundo é profundo.
Seis! Mais profundo do que o dia imaginava.
Sete! Profunda é sua dor...
Oito! Mais profunda, porém, do que a aflição, é a alegria.
Nove! A dor diz: Passa e termina!
Dez! Mas toda a alegria deseja a eternidade...
Onze! Deseja a profunda eternidade!
Doze!

Então, Zaratustra se põe em pé. Recobrou a segurança, a doçura e a força. Toma novamente seu cajado e
desce, cantando, para os homens, Um mesmo versículo termina as sete estrofes do seu hino:

"Nunca encontrei a mulher com a qual desejaria ter filhos, afora esta mulher que amo — pois eu te amo, oh,
Eternidade!

Eu te amo, oh, Eternidade!"

No começo do poema, Zaratustra entrava na grande cidade, "a vaca multicolor" (assim a chama ele) e
iniciava seu apostolado. Ao fim da terceira parte, Zaratustra, desce para a grande cidade, para recomeçar, nela, seu
apostolado. Frederico Nietzsche, lutador vencido, em dois anos de esforço e de canseiras — retrocedeu... Era 1872
enviava à senhorita de Meysenbug a série interrompida de suas conferências sobre o futuro das Universidades: "Isto
dá uma sede terrível! — dizia — e, depois, nada para beber!" Estas mesmas palavras se podem aplicar ao seu poema.

A VISITA DE HEINRICH VON STEIN

No mês de abril de 1884 Frederico Nietzsche publica simultaneamente as segunda e terceira parte do
Zaratustra. Nesse momento parece feliz.

"Tudo chega a seu tempo — escreve a Peter Gast em 5 de março — tenho quarenta anos e me encontro
exatamente no ponto que me propunha aos vinte. Foi uma grande, formosa e formidável viagem!"

"Com você — escreve a Rohde — que é um homo literatus não quero reter esta confissão: parece-me que
com esse Zaratustra levei ao seu ponto de perfeição a língua alemã. Depois de Lutero e de Goethe, havia um terceiro
passo a dar. Diga-me, velho e querido camarada, se a força, a flexibilidade e a beleza do som já estiveram alguma
vez tão bem combinadas em nossa língua... Meu estilo é um bailado: jogo com simetria de toda espécie e até a
própria escolha das vogais é um jogo."

Esta alegria dura pouco. Nietzsche não sabe que novo trabalho iniciar, e seu ardor, sem ocupação, converte-
se em cansaço. Escreverá o seu sistema, ou alguma “filosofia do futuro”? Pensa nisso um instante: Mas não. Cansado
de pensar e de escrever, gostaria de descansar ao som de uma bela música. Que música escolher, porém? Ah! Aquela
que ele poderia amar, não existe. A italiana é suave; a alemã, pedante — nenhuma para o seu gosto. Nenhuma
bastante lírica e viva, grave e delicada, rítmica, irônica e apaixonada. Carmen agrada-lhe bastante; no entanto, à
Carmen prefere as composições de seu discípulo Peter Gast. "Sua música! — escreve-lhe — tenho necessidade de
sua música..."

Peter Gast achava-se instalado em Veneza; Nietzsche deseja reunir-se-lhe, mas Veneza é úmida, e ele não
se atreve a abandonar Nice até meados de abril. A luz chegou a ser para ele uma exigência de enfermo, cada ano
mais imperiosa; um dia sem luz entristece-o; oito dias sem luz destroem-no.

Em 21 de abril chega a Veneza. Peter Gast instala-o não longe de Rialto. A janela do seu quarto abre-se
sobre o Grande Canal e dali ele pode gozar o espetáculo da admirável cidade, depois de uma ausência de quatro
anos. Sua alegria é realmente a de uma criança. Vaga por aquele dédalo veneziano, animado pelas surpresas do sol e
da água, pela graça de um povo discreto e alegre, os jardins imprevistos, os musgos e as flores crescidos entre as
pedras. "Cem profundas solidões — anota — juntas compõem Veneza — e dai, sua magia. Um símbolo para os
homens do futuro." Caminha pelas vielas estreitas, como se andasse pelas montanhas, durante quatro ou cinco horas
diárias. Tão depressa se mistura com a multidão italiana, como se isola, e sem cessar reflete nas di ficuldades do seu
trabalho.

Pergunta a si mesmo o que escreverá. Pensara comentar, numa série de folhetos, alguns versículos do seu
poema. Mas ninguém se dignou ler as palavras de Zaratustra. Seus amigos já o leram. Ele espera suas cartas, mas não
recebe nenhuma — triste silêncio que o surpreende continuamente. Um jovem escritor, Heinrich. von Stein é quase o
único que lhe dirige palavras calorosas. Nietzsche renuncia ao seu propósito, sentindo o ridículo que seria comentar
uma Bíblia ignorada pelo público.

Pelos meados de junho sai de Veneza. Ocupam-no diferentes projetos: pensa muito seriamente na sua
"filosofia do futuro" e decide abandonar, ou pelo menos adiar o poema, para poder se dedicar a longos estudos —
"cinco ou seis anos, talvez, de meditação e de silêncio" — e chegar a formular seu sistema de maneira precisa e
definitiva. Dirige-se à Suíça, a fim de ler livros de ciência histórica e natural na biblioteca de Basiléia; mas a sua
permanência ali é curta. O calor sufocante deprime-o; os amigos de Basiléia não o satisfazem: ou não leram o Assim
falava Zaratustra, ou leram-no muito mal. "Encontrava-me entre eles como entre vacas", escreve a Peter Gast — e
dirige-se para Engadina.

Em 20 de agosto recebeu umas linhas de Heinrich von Stein anunciando-lhe sua chegada.

Quem era este visitante? Um homem muito jovem; pois que tinha apenas vinte e seis anos, mas não havia
na Alemanha um escritor no qual se tivessem depositado maiores esperanças. Em 1878 publicara um pequeno
volume intitulado Die Ideale des Materialismus, Lyrisçhe Philosophie. Frederico Nietzsche, reconhecendo neste
ensaio uma tentativa análoga à sua, entabular relações com o autor, acreditando haver en contrado um espírito
semelhante ao seu, e um companheiro de trabalho; uma vez mais, porém, sua esperança frustrou-se. A senhorita de
Meysenbug, mais benévola do que perspicaz (era este, talvez, seu único defeito), acreditou não poder fazer nada
melhor do que conduzir Heinrich von Stein para o circulo de Wagner, e lhe abriu as portas do mestre, sendo ele
admitido como o fora Nietzsche dez anos antes. Von Stein viveu naquele ambiente, e em vão Nietzsche o preveniu
várias vezes. "Você admira Wagner. Muito bem. Mas cuidado para que isso não dure demasiado tempo." Heinrich
von Stein não soube resistir nem emancipar-se. Wagner fala e ele ouve devotadamente. Sua busca intelectual, até
então inquieta e fecunda, se detém; Stein fecha seus cadernos de notas: foi conquistado por um homem demasiado
grande; foi, por assim dizer, aspirado, esgotado. As obras que publicou (Stein morreu aos trinta anos) são penetrantes
e sóbrias; falta-lhes, porém, uma qualidade — a mesma qualidade que deu tanto valor aos Seus primeiros ensaios: a
audácia e a temeridade, o encanto das idéias nascentes, inseguras e apressadas.

Frederico Nietzsche continuara interessando-se por Stein, é vigiava seus trabalhos e amizades. "Heinrich
von Stein — escrevia em julho de 1883 à senhora Overbeck, — é agora o adorador da senhorita Salomé. Meu
sucessor neste emprego como em tantas outras coisas." O perigo em que se achava o moço fazia-lhe pena. Heinrich,
no entanto, lia e apreciava os livros de Nietzsche, coisa que este sabia com natural complacência. Quando recebeu a
carta de Stein, sentiu-se estranhamente emocionado.

Qual a razão dessa visita? Stein parecia haver compreendido Assim falava Zaratustra; haveria esse livro
lhe inspirado um desejo de liberdade? Iria Nietzsche conquistar para a sua causa, em compensação de tantos amigos
perdidos, a este que por si só valia mais que todos os outros juntos? Iria conquistar o discípulo de Wagner, o filósofo
de Bayreuth? Podia, realmente, esperar esta desforra? Respondeu sem demora a Stein, dando-lhe as boas vindas, e
assinou: "O solitário de Sils-Maria".

Talvez possamos atribuir a esta visita uma razão secreta que Nietzsche não suspeitara. Se Heinrich von
Stein, íntimo e fiel amigo de Cosima Wagner foi procurar Nietzsche, seguramente não o fez sem a aprovação e os
conselhos desta mulher tão prudente. Até aquele momento de sua vida, Nietzsche não atacara Wagner, limitando-se
apenas a separar-se dele. Por outra parte, em julho de 1882 parecia consentir numa reconciliação. A tentativa da
senhorita de Meysenbug, autorizada ou não por ele, fazia-o pensar. Mais tarde, em fevereiro de 1883, por motivo da
morte de Wagner, Nietzsche escrevera a Cosima. Realmente, até então, soubera evitar as palavras irreparáveis, e sua
última obra, o final do próprio Zaratustra, de um lirismo impreciso, permitia a esperança de um acordo. Esta era, pelo
menos, a esperança de Stein, que, em maio de 1884, escrevia a Nietzsche:

Como desejo que o senhor venha a Bayreuth neste verão para ouvir Parsifal!... Quando penso nesta obra,
imagino uma forma de beleza pura, uma aventura espiritual puramente humana, o desenvolvimento de um ado-
lescente que se converte em homem. Para mim não há no Parsifal o menor pseudo-cristianismo, e me parece a
menos tendenciosa das obras de Wagner. Expresso-lhe o meu desejo — com audácia e timidez ao mesmo tempo —
não porque seja wagneriano, mas porque desejo para o Parsifal um ouvinte como o senhor, e a um espectador como
o senhor, desejo o Parsifal.
Cosima Wagner não errava em seu juízo. Conhecia o valor de Nietzsche. Carregando, como carregava sobre
si próprio o peso de uma herança esmagadora, obrigada a manter uma glória e a continuar uma tradição, é lógico que
lhe ocorresse que, atraindo de novo aquele homem raro e singular, extenuado em solitários esforços, podia ajudá-lo
ao mesmo tempo em que se ajudava a si mesma. Teria sido ela quem escolhera Heinrich von Stein como emissário e
conciliador? Pelo menos, é de se supor que conheceu de antemão e não desaprovou a tentativa do moço.

Se existia algum wagneriano capaz de tal empresa, era seguramente este. Stein era o mais livre dos
discípulos. Não aceitava como religião definitiva o misticismo duvidoso que o Parsifal propagara, e encerrava numa
mesma tradição Schiller, Goethe e Wagner, criadores de mitos, educadores de seu século e de sua raça. O teatro de
Bayreuth era para ele não a apoteose de uma obra, mas a promessa e o instrumento de obras novas — o signo de uma
tradição lírica.

Que se passou na entrevista? Não é difícil imaginá-lo. Stein procurou cumprir sua delicada missão, mas
pouco falou. Nietzsche é que tomou a palavra e se fez ouvir. Que disse ele? Talvez isto:
;

— Você admira Wagner? Mas quem não o admira? Eu o conheci, venerei e escutei tanto como você, mais
do que você. Aprendi com ele não o estilo de sua arte, mas o estilo de sua vida: o valor da iniciativa. Sei que me
acusam de ingrato. Mas esta é uma palavra que não entendo. Prossegui no meu trabalho. Sou, no melhor sentido da
palavra, um discípulo. Você freqüenta Bayreuth, e sabe quanto aquilo é agradável; realmente, agradável demais.
Wagner nos oferece o gozo de todas as lendas, de todas as crenças do passado, germânicas, celtas, pagas e cristãs.
Mas este gozo é nefasto para um espírito que investiga. Aqui está a razão do meu afastamento. E esta é a razão pela
qual você deve se afastar. Entenda-me bem. Eu não maldigo a arte nem a religião. Creio que voltará o tempo de uma
e de outra. Nenhum dos antigos valores será abandonado; todos reaparecerão, transfigurados, sem dúvida mais
poderosos, mais intensos, num mundo iluminado até ao fundo pela ciência. Tudo o que, em meninos e adolescentes
amamos; tudo o que sustentou e exaltou a nossos pais — tudo tornaremos a encontrar. Voltaremos a encontrar um
lirismo e uma bondade, as virtudes mais sublimes e também as mais humildes — cada uma em sua gló ria e em sua
dignidade. Antes, porém, é preciso concordar com a noite, é preciso renunciar e procurar... As promessas são
inauditas, mas eu me sinto fraco, à força de solidão. Ajude-me. Fique, ou, pelo menos, volte aqui a seis mil pés
acima de Bayreuth! (*).

Stein ouvia Nietzsche. Seu diário deixa ver a crescente vivacidade de suas impressões: "24, VIII, 84, Sils-
Maria. Passo a noite com Nietzsche. Espetáculo desolador. — 27. Sua liberdade de espírito, sua palavra cheia de
imagens; grande impressão. Neve e vento de inverno. Dores de cabeça. À noite vejo-o sofrer. — 28. Ele não dormiu,
mas sente-se cheio de ardor, como um mocinho. Dia de sol, magnífico."

O jovem emissário partiu após três dias, muito emocionado pelas horas que acabava de passar. Prometeu a
Nietzsche encontrar-se com ele em Nice; pelo menos, assim o entendeu Nietzsche, e teve a sensação de haver
conseguido uma grande vitória. "Um encontro como o nosso não pode deixar de ter grandes conseqüências —
escreve a Stein alguns dias após sua partida. —Pelo menos, podemos ficar seguros de uniu coisa: que desde este
momento, você pertence ao pequeno número daqueles cujo destino, para o bem e para o mal, se encontra ligado ao
meu destino." Stein respondeu: "Os dias de Sils-Maria são para mim uma grande recordação, um grave e solene
instante da vida..." Mas não escreve: "Sim, sou seu..." Fala, com prudência, de seus trabalhos e de sua profissão, que
o retém.

(*) Esta última frase foi tirada de uma passagem de Ecce Homo. (N. do A.).

Achava-se o espírito de Nietzsche bastante claro para perceber esta reserva? Não parece. Fazia projetos
maravilhosos e sonhava, de novo, com o claustro ideal. Escreve à senhorita de Meysenbug propondo-lhe, com
simplicidade, que fosse passar o inverno em Nice, ao seu lado.

Em setembro desce para Basiléia, e um acaso nos permite sondar os abismos de sua alma.

Overbeck vai visitá-lo ao hotel. Nietzsche se encontra de cama, com enxaqueca e muito deprimido. No
entanto, fala, e a confusão de suas palavras inquieta o amigo. Nietzsche quer iniciá-lo no mistério do Retorno Eterno:
"Um dia voltaremos a nos encontrar novamente: eu, outra vez doente como agora; você, como agora surpreendido
com as minhas palavras. .."

Seu rosto está mudado. Fala em voz baixa e trêmula, como nos descrevera Lou Salomé. Overbeck ouve com
doçura, evita toda a discussão e se retira com mau pressentimento. Já não voltaria a ver seu amigo até ao trágico
encontro de Turim, no mês de janeiro de 1889.

Frederico Nietzsche apenas atravessou Basiléia. Sua irmã, que não o via desde os distúrbios do outono
passado, combinara com ele encontro em Zurich. Queria lhe anunciar o seu casamento, realizado em segredo fazia
já alguns meses.

E realmente, diz-lho. Já não é a senhorita Nietzsche, mas sim a senhora Förster, que se prepara para partir
para o Paraguai com os colonos que seu marido dirige. Frederico Nietzsche não discute nem a recrimina por um fato
consumado; ao contrário, esforça-se por ser amável pela última vez com sua irmã, já definitivamente perdida para
ele.

"Encontrei meu irmão em estado muito favorável — escreve Lisbeth — encantador e alegre. Vivemos
juntos oito dias, falando e rindo de tudo."

E descreve esses dias que ela crê — ou finge crer — ditosos. Frederico Nietzsche vê na vitrina de uma
livraria as obras de um poeta popular e medíocre, Freiligrath, e na capa do volume, estas palavras: 38a. Edição. "Este
— exclama Nietzsche com solenidade cômica — este é um verdadeiro poeta alemão: os alemães compram seus
versos!" E, sentindo-se também um bom alemão naquele dia, compra um volume, lê-o e diverte-se muito com ele,
Declama os pomposos hemistíquios:

Wüstenkõnig ist der Lõwe,


Will er sem Gebiet durchstreifen...

(O leão é o rei dos desertos;


Deseja percorrer os seus domínios...)

Diverte-se improvisando, sobre todos os gêneros de temas, versos à Freiligrath, e o hotel de Zurich ressoa
com suas risadas infantis.

— Que é que os faz rir tanto? — pergunta um velho general aos dois irmãos. — Só de os ouvir, a gente fica
com vontade de rir também.

A verdade, porém, é que Frederico Nietzsche não tinha grandes motivos para riso. Poderia, acaso, pensar
sem amargura nas trinta e oito edições de Freiligrath? Naqueles dias mesmo ia à biblioteca de Zurich e percorria as
coleções de revistas e jornais, procurando nelas seu nome. Que não haveria dado para ver sua obra julgada por um
bom juiz, para ver seu pensamento refletido por um outro espírito! Desejo vão:

"O céu aqui está formoso, digno de Nice, e isto já dura há vários dias — escreve ele a Peter Gast em
setembro. —~ Minha irmã está comigo; é muito agradável fazer-se bem mutuamente, quando faz tempo que não nos
fazíamos senão dano... Tenho a cabeça repleta dos mais extravagantes poemas que hajam em qualquer tempo
freqüentado o cérebro de um lírico. Recebi uma carta de Stein. Este ano me trouxe muitas coisas boas, e Stein é um
dos seus dons mais preciosos: um novo e sincero amigo.

Enfim, vivamos cheios de esperança, ou, para nos expressarmos melhor, digamos, com o velho Keller:
Trinkt, o Augen, "was die Wimper hält Von dem goldnen Ueberfluss der Welt! (Bebei, ó meus olhos, o que vossas
pestanas encerram Do dourado excesso do mundo!) Os dois irmãos partem de Zurich dirigindo-se, uma para
Naumburg e o outro para Nice. De passagem, Nietzsche faz alto em Mento. "O lugar é magnífico — escreve, apenas
instalado. — Já descobri oito passeios. Que ninguém me venha visitar. Necessito desta absoluta tranqüilidade."

Que faz ele? Recordará o projeto que fizera nos começos do verão: "seis anos de meditação e de silêncio"?
Não! A meditação longa e silenciosa supõe uma força de vontade que ele não tem. Emocionado pela esperança de ter
um amigo e pela perda de uma irmã, não pode conter sua paciência lírica e, cedendo ao instinto, improvisa cantos
lieder, estâncias breves, epigramas. Quase todos os poemas se encontram em suas últimas obras — versos ligeiros,
dísticos mordazes, insertos na segunda edição de La Gayá Scienza, grandiosos Cantos Dionisíacos — foram
terminados ou concebidos durante aquelas semanas. E de novo pensa na obra ainda sem concluir, no Assim falava
Zaratustra. "São inevitáveis uma quarta, uma quinta e uma sexta partes — escreve.— De qualquer modo, é forçoso
que conduza meu filho Zaratustra até sua morte bem-aventurada. Realmente, ele não me dá sossego."
Outubro passou. Nietzsche deixa Menton, onde se aflige com o grande número .de doentes, e dirige-se
para Nice.

Um imprevisto companheiro logo se reúne a ele: Paulo Lanzky, um intelectual que fazia vida de vagabundo,
alemão por nascimento e florentino por gosto. Um acaso pusera em suas mãos as obras de Nietzsche e ele as
compreendera. Com o intuito de conhecer o endereço do autor, escrevera ao editor Schmeitzner. "O senhor Frederico
Nietzsche vive solitário na Itália. Escreva-lhe para Gênova, Posta Restante" — haviam-lhe respondido. Assim fizera,
e o filósofo, sem dúvida menos selvagem e solitário do que se dizia, respondera pronta e afàvelmente: "Venha a Nice
neste inverno, e falaremos..." Esta troca de cartas dera-se durante o outono de 1883. Lanzky, que nó momento não se
encontrava livre, desculpou-se, mas em outubro de 1884, correu ao encontro marcado. Entrementes, tivera ocasião de
conhecer as duas últimas partes do Zaratustra, e publicado, em um magazine de Leipzig e na Revista Européia de
Florença, resenhas muito inteligentes das ditas obras.

Na mesma manhã de sua chegada, Lanzky foi bater à porta de Nietzsche, que lhe foi aberta por um homem
doce e sorridente.

— Also Sie sind gekommenl — exclamou Nietzsche — (Ei-lo aqui, afinal!).

E agarrou-o por um braço, desejoso de examinar detidamente aquele leitor dos seus livros.

— Bem, vamos ver que tal é o senhor.

E fitou-o com aqueles olhos antigamente tão formosos e que o eram ainda, uma ou outra vez, embora
empanados pelos prolongados sofrimentos.

Lanzky, que fora apresentar suas homenagens a um temível profeta, assombrou-se de encontrar o mais
afável, mais simples e, em aparência, mais modesto dos professores alemães.

Os dois homens saíram juntos. Lanzky confessou sua surpresa.

— Mestre. .. — disse.

— É o senhor o primeiro que me chama assim! — exclamou Nietzsche sorrindo. Mas, como sabia que era
mestre, deixou-o continuar,

— Mestre, como se adivinha pouco do senhor através dos seus livros! Explique-me...

— Não. Hoje, não. O senhor não conhece Nice. Vou fazer-lhe as honras do seu mar, de suas montanhas e
dos seus passeios... Outro dia, se quiser, falaremos.

Só voltaram para casa às seis da tarde, e Lanzky soube, pelo menos, que infatigável andarilho era o seu
profeta.

Organizaram sua vida comum: Frederico Nietzsche tomava só, ai pelas seis e meia da manhã, uma xícara de
café que ele mesmo preparava; às oito, Lanzky batia-lhe à porta, perguntava-lhe como passara a noite
(freqüentemente dormia mal) e no que empregara a manhã. Nietzsche começava quase todos os dias folheando os
jornais num salão público de leitura; em seguida, dirigia-se à praia, Lanzky reunia-se, então, a ele, ou então
respeitava o seu passeio solitário. Ambos tomavam a primeira refeição na sua pensão. À tarde, passeavam juntos e à
noite, Nietzsche escrevia ou Lanzky lia para ele em voz alta, em geral um livro francês: as cartas do abade Galiani,
o Vermelho e Negro, A Cartuxa de Parmá ou Armancia, de Stendhal.

Mais de uma vez Lanzky teve que se surpreender com a maneira de ser de Frederico Nietzsche. Aquele
solitário de mesa redonda construíra para si mesmo uma atitude fictícia, e quase disfarçada, uma verdadeira arte de
viver cortesmente sem revelar o segredo de sua vida. Certo domingo, uma moça perguntou-lhe se estivera no
templo.

— Não. Hoje não estive — respondeu amavelmente.

Lanzky admirou esta resposta prudente. Frederico Nietzsche explicou-lhe: "Nem todas as verdades são boas
para todos. Eu ficaria desolado se tivesse perturbado os pensamentos dessa moça. . ."

Às vezes, divertia-se anunciando sua glória futura:


— Dentro de quarenta anos serei ilustre na Europa — afirmava aos seus vizinhos de mesa.

— Empreste-nos seus livros — pediam. E Nietzsche negava-se terminantemente.

— Meus livros não devem ser lidos pelos primeiros que aparecem — explicava a Lanzky.

— Por que os manda imprimir, então, Mestre?

E parece que a esta razoável pergunta não se deu resposta alguma satisfatória.

Nietzsche, porém, dissimulava até com o próprio Lanzky. Gostava de repetir e desenvolver diante dele o seu
velho sonho de uma sociedade de amigos, espécie de falanstério idealista, semelhante àquele em que vivera
Emerson. Levava-o freqüentemente até à peninsulazinha de São João:

— Aqui — dizia ele parafraseando uma frase pública — "aqui levantaremos nossas cabanas"

Havia, até, escolhido um grupo de pequenas "vilas" que lhe pareciam adequadas ao seu desígnio. Que
hóspedes aceitaria?

Esta questão permanecia um tanto vaga, e o nome de Heinrich von Stein, o único amigo, o único discípulo
que ele ardentemente desejara, nunca foi pronunciado diante de Lanzky.

Stein não anunciava a sua chegada, nem dava sinal de vida. Qual seria, no momento, o seu estado de ânimo?
Ele fora a Sils-Maria para tentar a reconciliação dos dois mestres. Mas um deles lhe dissera: é necessário escolher
entre os dois. Talvez Stein tivesse vacilado por um instante, mas regressara à sua Alemanha, tornara a ver Cosima
Wagner, e, pois que Nietzsche exigira que escolhesse, permanecia fiel a Wagner.

Nietzsche pressentiu a nova deserção. Teve medo, e cedendo a um humilde e triste impulso, escreveu em
forma de poema um doloroso apelo que dirigiu ao moço:

Oh Lebens Mittag! Feierliche Zeit!


Oh Sommergarten!
Unruhig Glück in Stehn und Spáhn und Warten!
Der Freunde karr' ich, Tag und Nacht bereit;
Wo bleibt ihr, Freunde? Kommt! s'ist zeít! s'ist zeití

Oh meio-dia da vida, Momento Solene!


Oh jardim de verão!
Felicidade inquieta: aqui estou, à espreita, esperando!
Noite e dia vivo esperando o amigo;
Onde estais, amigos? Vinde! Já é tempo! Já é tempo!

Heinrich von Stein viu-se obrigado a responder, e escreveu :

Querido senhor:

A um apelo como o seu só convém uma resposta: Ir entregar-me inteiramente, dedicar, como à mais no bre
das tarefas, todo o meu tempo à inteligência das coisas novas que o senhor tem para dizer. Isto me é vedado.
Ocorreu-me, porém, uma idéia: Todos os meses reúno em torno de mim dois amigos e leio com eles um artigo do
Wagner-Lexicon, tomando-o como texto e conversando com eles sobre o mesmo. Estas conversações são cada vez
mais elevadas e livres. Ultimamente, encontramos esta definição da emoção estética: uma passagem para. o
impessoal, através da própria plenitude da personalidade. Creio que o senhor gostaria destas conversações, e ocor-
reu-me a seguinte idéia: Não seria excelente que Nietzsche nos enviasse de vez em quando um texto para as nossas
palestras? Quererá o senhor comunicar-se assim conosco? Não quereria ver em uma conversação assim a
introdução, o início de seu claustro ideal?
É á carta de um bom aluno. Stein cita Wagner não sem certa intenção, naturalmente, e indica o texto de suas
meditações, essa enciclopédia wagneriana, súmula de uma teologia ridícula e pueril. Nietzsche sentiu-se exasperado;
de novo encontrava diante dele, contra ele, esse adversário simulador de idéias e sedutor da juventude. Förster, que
lhe arrebatava a irmã, era um wagneriano, e eis que Heinrich von Stein lhe recusa sua devoção por causa de Wagner.
Somente à custa de um combate do qual saíra ferido, ele pudera conquistar uma cruel liberdade. Escreveu a sua
irmã:

"Que estúpida carta me escreveu Stein e em resposta a que poesia! Sinto-me penosamente afetado.
Encontro-me novamente doente e novamente recorro ao antigo remédio (*) Odeio a todos os homens que conheci,
inclusive a mim mesmo. Durmo bem, mas ao despertar tenho acessos de misantropia e rancor. E, no entanto, poucos
homens existem mais bem dispostos e mais benévolos do que eu."

Lanzky notou, sem adivinhar a causa, a perturbação de Nietzsche. A crise foi muito forte, mas apesar de
tudo, ele não se deixou esmagar e trabalhou energicamente. Nestes dias passeava a sós com mais freqüência do que à
chegada de Lanzky, e este via-o caminhar com passo incerto pelo Passeio dos Ingleses, ou pelos caminhos da
montanha, saltando, fazendo, às vezes, uma ou outra cabriola, e detendo-se de repente para anotar a lápis algumas
palavras. Que trabalho empreendia? Lanzky ignorava-o.

Certa manhã de março, em que Lanzky, como de costume, entrou no quartinho do filósofo, encontrou-o
deitado ainda, apesar do avançado da hora.

— Estou doente — disse-lhe Nietzsche — acabo de dar é luz.

— Que está dizendo? — murmurou Lanzky, muito inquieto.

— A quarta parte do Zaratustra está escrita.

Que nos diz esta quarta parte? Surpreenderemos, afinal, algum progresso na obra, alguma precisão de
pensamento? Não. Lemos, apenas, um singular fragmento, um intermédio, como o chama Nietzsche — um episódio
na vida do seu herói; estranho episódio que desconcertou a mais de um leitor. Talvez nos seja mais facilmente
compreensível se pensarmos na decepção que acabava de atingir a vida de Nietzsche.

Os "homens superiores" sobem até Zaratustra e surpreendem-no na solidão de sua montanha: um velho
papa, um velho historiador, um velho rei, seres desventurados, que sofrem

(*) O cloral. (N. do A.)

por seu envilecimento e que vão pedir socorro ao sábio cuja força pressentem. — Pensemos em Stein,
naquele distinto jovem extenuado pela atmosfera de Bayreuth: não foi assim que ele subiu até Nietzsche?

Zaratustra admite em volta de si aqueles "homens superiores"; por amor deles reprime o seu humor
selvagem, fá-los sentar em sua gruta, compadece-se de suas inquietações, ouve--os e fala-lhes. — Pensemos em
Nietzsche: não foi assim que ele recebeu Heinrich von Stein?

Zaratustra, cuja alma é, no fundo, menos rude do que devia ser, deixa-se seduzir pelo mórbido encanto, pela
delicadeza dos "homens superiores"; sente compaixão, esquece que sua miséria é irremediável e cede ao prazer de
esperar. Serão, afinal, estes "homens superiores" os amigos que ele espera? — Pensemos em Nietzsche: não esperou
certa ajuda de Stein?

Zaratustra deixa seus hospedes a sós por alguns momentos e se interna sozinho na montanha. Logo regressa
à gruta e que vê? Todos os "homens superiores" de joelhos diante de um asno ao qual adoram. Ê o velho papa diz
missa diante do novo ídolo. — Pensemos em Stein: Não foi em semelhante posição que o surpreendeu Nietzsche,
interpretando com seus dois amigos uma bíblia wagneriana?

Zaratustra expulsa seus hóspedes: ele deseja obreiros novos para um mundo novo. Encontrá-los-á? Ao
menos, chama-os:

Filhos meus, raça de meu sangue puro, minha formosa raça nova; que é o que retém meus filhos em suas
ilhas?

Não será já tempo, tempo demais — ao teu ouvido eu o murmuro, bom espírito das tempestades — para
que voltem, por fim para junto de seu pai? Não saberão, acaso, que meus cabelos embranquecem enquanto espero?

Vai, vai, espírito das tempestades, indomável e bondoso! Abandona as gargantas da tua montanha, preci-
pita-te sobre os mares, e antes que chegue a noite, bendiz aos meus filhos.

Leva-lhes a bênção de minha alegria, a bênção desta coroa de rosas bem-aventuradas! Deixa cair estas ro-
sas sobre as suas ilhas e que ali fiquem como um signo que interroga: De onde pode vir tal felicidade?

Finalmente, perguntarão: "Vive ainda nosso pai Zaratustra? Como? É verdade que ainda vive nosso pai
Zaratustra? Nosso velho pai Zaratustra ama ainda a seus filhos?"

O vento sopra, o vento sopra, a lua resplandece.

Oh! meus filhos longínquos, longínquos! Por que não estais aqui junto de vosso pai? O vento sopra;
nenhuma nuvem cruza o céu; o mundo dorme... Oh felicidade! Oh felicidade!

Frederico Nietzsche não conservou esta página na sua obra; talvez tenha sentido vergonha de uma confissão
tão triste e tão clara.

A quarta parte de Zaratustra não encontrou editor. Schmeitzner, que poucos meses antes havia dito
a Nietzsche que o público não quer ler os seus aforismos", escreveu-lhe, sem mais rodeios, que o público queria
ignorar seu Zaratustra.

Nietzsche fez, de início, algumas tentativas, que o humilharam sem o menor resultado, mas logo adotou um
partido mais altivo: pagou com seu dinheiro a impressão do manuscrito, cuja tiragem limitou a quarenta exemplares.
Para dizer a verdade, seus amigos não eram tantos. Procurando muito, encontrou sete destinatários, dos quais
nenhum era realmente digno. Quem foram esses sete? Vamos presumir, se é possível:

Sua irmã, (da qual não cessava de se queixar); a senhorita de Meysenbug, (que não entendia coisa alguma
de seus livros); Overbeck, (amigo certo, leitor inteligente, mas reservado); Burckhardt, o historiador de Basiléia,
(este respondia sempre aos obséquios de Nietzsche, mas era tão polido que não se descobria o que ele pensava);
Peter Gast, (o discípulo fiel, a quem, talvez Nietzsche considerasse demasiado obediente e fiel); Lanzky, (bom
camarada daquele inverno); Rohde, (que apenas conseguia dissimular o tédio que lhe causava estas leituras
forçadas).

Tais foram, presumimos, os que receberam — embora nem todos se dessem ao trabalho de a ler — esta
quarta e última parte, este intermédio que termina mas não acaba o Assim falava Zaratustra.

VII

A ÚLTIMA SOLIDÃO

ALÉM DO BEM E DO MAL

A obra lírica foi abandonada. Frederico Nietzsche não lhe dará importância por algum tempo, e quererá
voltar a ela, mas serão apenas breves veleidades: "Daqui por diante —escreve, e desta vez a afirmação é exata —
serei eu quem fala, e não Zaratustra."

O trabalho ficou inacabado. Nietzsche sabe-o, e as inúmeras idéias que não divulgou entristecem-no
como um remorso.

Deseja tentar outra prova, e volta, sem a menor complacência, à filosofia, procurando exprimir, em termos
abstratos o que, como poeta não soube dizer. Começa novos cadernos. Experimenta alguns títulos: "Vontade de
domínio, nova interpretação da natureza.. .Vontade de domínio, ensaio de uma nova interpretação do Universo..."
Estas fórmulas, as primeiras que encontrou, ficaram. Frederico Nietzsche torna á tomar entre as mãos e a
desenvolver, aqui, o tema Schopenhaueriano. O fundo das coisas — pensa — não é uma cega vontade de viver; viver
é estender-se, crescer e conquistar; o fundo das coisas, melhor definido, é uma cega vontade de domínio, e todos os
fenômenos que se desenvolvem na alma humana devem ser interpretados como função desta vontade.

É um imenso trabalho de prudente reflexão. Nietzsche enfrenta-o medrosamente. Como distinguir na alma
dos homens o que é força e o que, sem dúvida, é fraqueza? Talvez a cólera de Alexandre seja fraqueza e a exaltação
do místico força. Nietzsche esperara que seus discípulos, filósofos ou fisiólogos, fizessem para ele esta análise; o
auxílio de Heinrich von Stein ser-lhe-ia precioso. Mas, encontrando-se, como se encontra, sozinho, tem que se
encarregar de todos os trabalhos. Entristece. Despojado de lirismo, o pensamento carece de atrativo para ele. Ama a
força instintiva, a delicadeza, a graça, os sons ordenados e rítmicos; ama Veneza, em suma, e sonha com os dias
claros que lhe permitirão fugir daquela pensão de Nice ; onde a alimentação e a companhia são más. Em 30 de
março de 1885, escreve a Peter Gast:

Querido amigo: Já não me acontece ter prazer ao pensar numa troca de lugar. Desta vez, porém, ao pen-
sar que em breve estarei em Veneza e junto de você, sinto-me animado, extasiado, e é para mim uma espe rança de
cura depois de uma longa e espantosa enfermidade. Fiz a seguinte descoberta: Veneza é o único lugar que até hoje
me foi constantemente suave e benéfico... Sils-Maria, como lugar de passagem, me convém muito, mas como
residência não. Ah, se eu pudesse organizar ali uma digna existência de solitário e de eremita!... Mas... Sils-
Maria está se tornando moda!

Meu querido amigo e mestre, Veneza e você se acham, para mim, indissolúvelmente ligados. Nada me
agrada tanto como sua persistente predileção por essa cidade. Quanto pensei em você durante todo este tempo! Lia.
as memórias do velho Brosses (1739-40) sobre Veneza e sobre o Mestre que ali se admirava então, Hüsse (il detto
Sassonne). Não se aborreça, porque não tenho nenhuma intenção de fazer entre vocês dois qualquer comparação
desrespeitosa.

Acabo de escrever a Malwida: graças a Peter Gast, os senhores comediantes, embora pretensos gênios
da música, deixarão, dentro em pouco, de corromper o gosto. "Dentro em pouco" é, talvez, um grande exagero.
Numa época democrática poucos homens discernem a beleza: pulchrum paucorum est hominum. Alegra-me ser para
você um desses poucos. Os homens profundos e ditosos que me agradam, como suas ames mélancoliques et folies
(*) como meus defuntos amigos Stendhal e o abade Galiàni, não teriam podido suportar sua permanência na terra
se não tivessem amado algum compositor da felicidade (Galiani sem Puccini, Stendhal sem Cimarosa e Mozart).

Ah, se soubesse como estou agora tão só no mundo! E como me é preciso representar uma comédia para
não cuspir, às vezes, de pura sociedade, no rosto de alguém! Felizmente, algo da maneira cortês de meu filho
Zaratustra existe também em seu aloucado pai.

Quando estiver com você, porém, e em Veneza, cessara, então, por algum tempo toda a "cortesia", e a "co-
média" e a "sociedade" e todas as maldições nicenses... não é verdade, meu caro amigo?

Não se esqueça de que teremos que comer baicoli!

Cordialmente,

F. N.

Durante abril e maio, Nietzsche reside em Veneza com a satisfação que previra. Percorre as ruelas
sombreadas e ruidosas e contempla a formosa cidade. Ouve a música de seu amigo. Os pórticos da praça de São
Marcos o resguardam em seus passeios, e são comparados por Nietzsche àqueles pórticos de Éfeso, aos quais ia
Heráclito para esquecer a agitação dos gregos e as sombrias ameaças do Império persa. "Que bem se está aqui —
pensa — para esquecer o sombrio império, ó nosso. Não difamemos a nossa Europa, que ainda oferece alguns belos
refúgios! Esta Piazza San Marco é o meu melhor gabinete de trabalho..." Esta curta alegria desperta suas disposições
poéticas; quer cantar o triunfo e a morte de Zaratustra, arrancado ao esquecimento por algumas horas. Escreve um
rascunho, logo abandonado, que é o último .

Junho leva-o de novo a Engadina. O acaso da vida de hotel proporciona-lhe um secretário, uma tal senhora
Rödér, desconhecida, se oferece para ajudá-lo. Nietzsche dita e procura fixar mais exatamente seu problema. Quais
são os seus fins? Criticar essa quantidade de julgamentos morais, de preconceitos e de rotinas que encadeiam os
modernos europeus: avaliar seu calor vital, isto é, a quantidade de energia que exprimem, e fixar, assim, uma ordem
de virtudes. Quer, afinal, realizar a "Umwerthung aller Werthe" (fórmula que encontra então) "a reavaliação de
todos os valores". Todos — escreve. Seu orgulho não se contenta com menos. Reconhece então, e consegue definir,
certas formas de virtude que os moralistas profissionais não sabem observar: o domínio de si mesmo, a dissimulação
dos sentimentos íntimos, a cortesia, a alegria, a exatidão na obediência e no mando, a deferência, a exigência do
respeito, o gosto pelas responsabilidades e perigos — tais eram os usos e as tendências, hoje desprezadas, da antiga
vida aristocrática, e as fontes de uma moral mais viril e mais produtiva do que a nossa.

(*) Em francês no original nietzschiano.

É provável que ele fizesse, então, leituras muito sérias. Estudou os Problemas Biológicos de Rolph, nos
quais pôde encontrar a análise desse crescimento vital que é o fundamento de sua metafísica. Talvez tenha relido
então algum livro de Gobineau (admirava o homem e a obra); podemos, pelo menos, aventurar a conjetura. Que
importam, porém as leituras e que peso têm as influências? Nietzsche tem quarenta e dois anos; passou já da idade de
aprender e suas idéias estão todas nele mesmo. As leituras favorecem e alimentam suas meditações, mas não as
dirigem. Seu trabalho é terrivelmente penoso e a insônia aniquila-o. Não obstante, persevera e se nega a triste alegria
de beijar pela última vez sua irmã Lisbeth, que vai acompanhar o esposo para a América. "Vi-verás, pois, lá longe —
escreve-lhe — e eu aqui, em uma solidão mais inatingível do que todos os Paraguai. Minha mãe terá que viver só, e
todos precisaremos ter muito ânimo... Quero-te, e choro — Frederico."

Passam oito dias e novos projetos são forjados. Negocia com seu editor recolher todos os seus livros e
publicá-los de novo. É um pretexto que aproveita para ir à Alemanha. "Um negócio que exige a minha presença vem
ajudar os meus desejos" — escreve, e, sem demora, se dirige a Naumburg.

O encontro é penoso. O irmão e a irmã falam com ternura na véspera de uma separação que sabem ser
definitiva. Nietzsche não oculta as dificuldades de sua vida. "Encontro-me sozinho diante de um imenso problema —
diz ele;— é um bosque em que me perco, uma selva virgem; "Wald und Urwald". Preciso de auxílios, de discípulos,
de um mestre. Ser-me-ia tão grato obedecer! Se me achasse perdido numa montanha, obedeceria ao homem que
conhecesse a montanha; doente obedeceria ao médico, e se encontrasse um homem capaz de me esclarecer sobre o
valor de nossas idéias morais, eu o ouviria e seguiria. Mas não encontro ninguém, nem discípulos, nem muito menos
mestres... Estou só." A irmã responde com o conselho de sempre: Que volte a uma Universidade qualquer; os moços
sempre o escutaram, e uma vez mais o escutarão e compreenderão. "Os moços são tão estúpidos! — responde
Nietzsche — e os professores ainda o são mais. Além disso, todas as Universidades da Alemanha me repelem.
Onde poderia eu ensinar?" Em Zurich, sugere a irmã. Mas ele replica: "Não posso tolerar senão uniu cidade:
Veneza."

Vai a Leipzig conversar com o seu editor, que o recebe sem consideração alguma: seus livros não se
vendem. Regressa a Naumburg, diz adeus definitivo a Lisbeth, e parte. Qual será o seu refúgio no inverno? No ano
passado sofrerá a ruidosa multidão de Nice. Onde irá? Talvez a Vallombrosa. Lanzky recomendara-lhe este formoso
bosque dos Apeninos toscanos e espera-o em Florença.

Antes de sair da Alemanha, Nietzsche, de passagem por Munich visita seu amigo de outros tempos, o barão
de Seydlitz, que o apresenta à sua esposa e lhe mostra sua coleção de objetos japoneses. A mulher é jovem e
encantadora, e a coleção interessa a Nietzsche, que descobre a arte japonesa e gosta dessas estampas, desses miúdos
objetos impudicos e cheios de regozijo, tão pouco conformes ao triste gosto moderno, e ao triste gosto alemão menos
ainda que a qualquer outro. Seydlitz é perito em coisas belas e em viver bem. Nietzsche inveja-o um pouco. "Talvez
seja tempo, querida Lisbeth — escreve a sua irmã — de me procurares uma es posa. Filiação: alegre, bonita, jovem;
em resumo: um pequeno ser corajoso à Ia Irene de Seydlitz (com a qual quase nos tratamos por tu."

Ei-lo já na Toscana. Lanzky recebe-o, acompanha-o e o conduz ao observatório de Arcetri, nas alturas de
San Miniato, onde mora um homem excêntrico: um leitor dos seus livros. Leberecht Tempel, guardava, junto à sua
mesa e aos seus estranhos instrumentos, as obras de Frederico Nietzsche, das quais sabia de memória e costumava
recitar não poucas passagens. Leberecht Tempel era um caráter singularmente nobre, verídico e desinteressado. Os
dois homens falaram durante meia hora, e, ao que parece, se entenderam. Nietzsche retirou-se muito emocionado.

— Gostaria que este homem não tivesse conhecido os meus livros — disse a Lanzky. — É demasiado
sensível, demasiado bom. Eu lhe causarei dano.

Pois ele sabia as terríveis conseqüências de suas idéias e temia, para os que as lessem, sofrimentos iguais
aos seus.

Não permaneceu na Toscana, pois o ar rude e frio que sopra das montanhas sobre Florença, incomodava-o.
De novo o assaltaram as recordações de Nice. Nice, a cidade dos cento e vinte dias de sol.
De Nice escreve a sua imã, em 15 de novembro de 1885:

"Não se assombre demais, querida irmã, se o seu irmão, que tem em suas veias sangue de toupeira e de
Hamlet, lhe faz sinais, não de Vallombroso, mas de Nice. Foi admirável para mim haver experimentado quase
simultaneamente o ar de Leipzig, de Munich, de Florença, de Gênova e de Nice. Você não pode imaginar até que
ponto Nice vence as demais neste concurso. Como no ano passado, vim parar na Pensão de Genebra, viela de Santo
Estevão. Encontrei-a reformada, mobiliada de novo, pintada, muito agradável. Meu vizinho de mesa é um bispo, um
"monsignore" que fala alemão. Penso muito em você.

Seu

Prinz Eichhorn."

"Eis-me de volta a Nice — escreve em outra carta — quer dizer, à razão!" Sua satisfação é tal que observa
com indulgência a cidade cosmopolita, divertindo-se com o espetáculo.

Minha janela dá para o "square" dos Focenses — escreve a Peter Gast. — Que prodigioso cosmopolitismo
nesta aliança de palavras/ Não o faz rir? E é muito certo, aqui viverem os focenses. Ouço no ar o rumor de triunfo e
de super-heroísmo — uma voz que me inspira confiança e me diz: aqui estás tu em teu lugar... Quão longe a gente
se sente, aqui, da Alemanha! "Ausser-deutch" — é coisa que eu não saberia dizer com bastante força.

Empreende de novo as suas habituais caminhadas ao sol pelos campos brancos que dominam o mar. Sete
anos de recordações ligam o seu pensamento a este mar, a estas costas, a estas montanhas. Sua fantasia desperta, ele
ouve-a e segue-a. Nenhuma hora passa em vão; todas são afortunadas e deixam, como lembrança e testemunho da
felicidade que trouxeram, um epigrama, um poema em prosa, uma máxima, um "lied", ou uma canção.

Difama os modernos, não só por gosto, mas também — pelo menos é o que pensa — cumprindo seu dever
de filósofo que, falando para o futuro, deve contradizer o seu tempo. No século XVI o filósofo que elogiava a
obediência e a cultura tinha razão. No século XIX, em nossa Europa desvalorizada pelos parisienses e pelos
wagnerianos alemães, nesta enfraquecida Europa que procura constantemente o concurso das massas e a
unanimidade, o menor esforço e o sofrimento menor — o filósofo deve elogiar outras virtudes, e deve afirmar:
"Aquele que sabe ser o mais solitário, o mais escondido, o mais distante, que sabe viver para além do bem e do mal,
senhor de suas virtudes e poderoso em sua vontade — esse é o verdadeiramente grande, pois que nisso reside a
grandeza." E esse homem deve indagar constantemente de si mesmo: "É possível a grandeza?" — "Ist Veredlung
möglich?" Não deixamos de ouvir esta pergunta, formulada aos vinte e seis anos.

Difama também os alemães, o que constitui o seu segundo prazer, mais íntimo e mais vivo; A Europa
germanizada esqueceu a franqueza; dissimula suas malícias, seus impudores, suas astúcias. É preciso que recobre o
espírito do velho mundo, o espírito daqueles franceses dos tempos antigos, que viviam com uma clarividência, uma
liberdade e uma força tão belas. "É preciso mediterraneizar a música — diz ele — como também nossos modos e
preferências." Através destas páginas de Nietzsche é fácil ouvir os conselhos de seus "defuntos amigos", Stendhal
e o abade Galiani.

"Os homens de tristeza profunda — escreve — denunciam-se quando são felizes: agarram sua felicidade
como se a quisessem abrasar e sufocar num acesso de ciúme... Ah! Sabem muito bem que a felicidade foge diante
deles!"

Pelos fins de dezembro, na proximidade das festas cujas recordações comovem o seu fiel coração, Nietzsche
viu fugir diante de si a felicidade. O prazer das idéias vivas e das belas imagens não o satisfaz por completo. Outras
necessidades protestam, e afinal, se vingam; a "profunda tristeza" recobra seus direitos e seu poder. A multidão
nicense já não o diverte, nem o "square" dos focenses. Que lhe importa o "Gai Saber" e seus preceitos? E a luz, e o
vento, e as canções provençais? Ele é um alemão, filho de um pastor protestante, e vê aproximar-se com o coração
oprimido, os veneráveis dias de Natal e São Silvestre.

Sente-se aborrecido na mesquinha pensão onde mora, com seus móveis tocados por muitas mãos, com seu
quarto aviltado pela comunidade. Chegam os dias frios. Sendo pobre, não pode ter calefação. Regela-se e lamenta
amargamente a falta das estufas da Alemanha. Lamentáveis lugares nos quais não se pode, sequer, estar só. À direita,
um menino atormenta um piano com suas escalas; em baixo, dois amadores se exercitam ao clarim e ao violino.
Cedendo ao desespero, Nietzsche escreve a sua irmã, que passa em Naumburg o último Natal:

Que estúpido é não ter ninguém aqui que possa rir comigo! Se eu estivesse melhor de saúde e fosse mais
rico, gostaria de ir morar no Japão, para ter um pouco de alegria. Em Veneza sou feliz porque ali se pode viver à
japonesa sem demasiado esforço. Todo O resto da Europa é pessimista e triste. A horrível perversão da música,
feita por Wagner, é um caso particular da perversão e confusão universais. Aí está de novo o Natal, e dá pena
pensar que tenho que continuar vivendo, como o faço há sete anos, a modo de um proscrito ou um cínico
desprezador dos homens. A ninguém importa, já, minha existência. O Lama tem "algo melhor" em que pensar, ou,
pelo menos, tem algo de sobra em que pensar...

O quê? Não é alegre a minha carta de felicitação Pascoal? Yiva o Lama!

Teu F.

Por que não vais para o Japão? Lá a vida é mais sensata, e tão alegre!

Oito dias mais tarde, escreve uma carta mais serena, arrependido, talvez, de sua confissão:

Querida, o tempo está hoje magnífico e é forçoso que teu Fritz te faça de novo boa cara, embora tenha
passado nestes últimos tempos dias e noites muito melancólicos. Por sorte, o meu Natal foi um verdadeiro dia de
festa. Ao meio dia recebi os vossos amáveis presentes apressando-me a pendurar ao pescoço a corrente do relógio e
a colocar no bolso do paletó o lindo calendário. Quanto ao "dinheiro", se é que vinha na carta (nossa mãe assim o
escreveu) escapou-me das mãos. Perdoem a este animal cego que desfez o pacote na rua. Seguramente, alguma
coisa caiu quando eu abria impacientemente as cartas. Esperemos que alguma velha, ao passar por ali tenha
encontrado o "seu pequeno Menino Jesus". Depois de me inteirar de tudo o que disseram, fui à minha península de
São João, fazendo a pé uma grande caminhada pela costa, e instalei-me, enfim, não longe de alguns soldados que
jogavam bola. Rosas recém--abertos, gerânios nas sebes — tudo verde! tudo quente! Nada do norte! Ali o teu Fritz
bebeu três copos bem cheios de um doce vinho do lugar, e talvez se tenha embriagado um pouquinho. .. Pelo menos,
pôs-se a falar ás ondas, e quando estas, ao desfazer-se com demasiada força desmanchavam-se em espuma e lhes
dizia como se diz às galinhas: "Psstl Psst Psst!" Depois, voltei a Nice e à noite comi principescamente na pensão,
contemplando a resplandecente árvore de Natal. Acredita que encontrei um padeiro de luxo que sabe o que são os
"Quackkuchen"? Disse-me ele que o rei de Wurtemberg mandara prepará-los iguais como os que me agra dam, para
o dia de seu aniversário. Lembrei-me disto ao escrever a palavra "príncipescaménte"... In alter Liebe, teu F.

N.B. — Aprendi novamente a dormir ("sem narcóticos).

Janeiro, fevereiro, março de 1886: sua tristeza parece menos viva. Dá forma à sua obra, às notas que sua
fantasia ditou. Faz quatro anos que deixou de publicar seus aforismos. A matéria que os seus cadernos lhe oferecem é
imensa, e ele se propõe a extrair dela um volume. Todos os seus esforços são empregados em ordenar e escolher.

Teria esquecido a obra sistemática em que pensara no inverno anterior. Não. Ele sente constantemente a
proximidade e a necessidade desta obra. Quer desculpar diante de si próprio a demora, sob o pretexto de que precisa
se divertir com um livro leve, antes de se lançar a tão grande empresa. Encontra um título: Além do bem e do mal, e
um subtítulo: Prelúdio de uma filosofia do futuro. Deste modo, anunciará a obra mais importante e constantemente
adiada — engana-se a si mesmo ao ligar com um vínculo fictício a diversão e o dever.

Lembremos-nos daquele entusiasmo alegre e confiado com que ele anunciava em outro tempo a conclusão
de um livro. Já não existe confiança nem alegria: ele sabe que ninguém o lera. Sua ventura, porém, excede sempre à
esperança, e Nietzsche, ainda desta vez não previu a prova que teria de suportar. "Além do bem e do mal" não
encontra editor. Nietzsche entra em conversação com uma casa de Leipzig, que declina suas propostas; escreve a
Berlim, sem melhor resultado. Seu livro é repudiado em todos os lugares. Que fará? Pensa em dividi-lo em folhetos,
porque assim talvez cheguem mais facilmente ao público. E escreve um ensaio de prefácio:

Estes folhetos constituem a continuação dás Considerações Extemporâneas, que publiquei há uns dez anos
para atrair "meus semelhantes" até mim. Eu era, então, bastante jovem para ir assim, pescando, com uma impa-
ciente esperança. Hoje, depois de cem anos — meço o tempo com o meu metro! — "não sou, ainda bastante velho"
para ter perdido toda a esperança e toda a confiança.

Não demora, porém, em abandonar esta idéia. "Já não tenho outro recurso — escreve a sua irmã — senão
amarrar o meu manuscrito e guardá-lo numa gaveta."

Seguindo o seu costume, vai passar a primavera em Veneza, mas não encontra ali o seu amigo, que, na
ocasião, percorre as cidades da Alemanha tentando, em vão, colocar sua música. Peter Gast compôs uma ópera: O
Leão de Veneza — que é recusada, de teatro em teatro. Nietzsche escreve-lhe, consolando-o e dando-lhe coragem.
Um e outro, alemães de nascimento, mediterrâneos de vocação, habitando, um em Nice e outro em Veneza, têm a
mesma ambição e o mesmo infortunado destino.
Volte — escreve-lhe Nietzsche — volte à solidão em que ambos sabemos viver, em que só nós sabemos vi-
ver. .. O wagnerismo é que lhe fecha o caminho, além dessa grosseria e teimosia alemãs, que desde o "Império"
não têm cessado de crescer. Será preciso que nos coloquemos em guarda e em armas, para impedir que nos façam
morrer de silêncio — a você e a mim...

Frederico Nietzsche sente sua solidão diminuída por esta camaradagem na vida difícil. A infelicidade de
Peter Gast é semelhante à sua, e isto lhe permite falar-lhe como a um irmão. Peter Gast é pobre: "Que a minha bolsa
nos seja comum — diz-lhe Nietzsche — compartilhemos o que tenho..." Peter Gast perde o ânimo e duvida de si
próprio. Nietzsche conhece essa angústia, sabe quanto é necessária a confiança para o homem que trabalha, e como o
enfraquece depressa o desdém público.

"Coragem — escreve-lhe; — não se deixe deprimir. Esteja certo, pelo menos, de que eu creio em você;
preciso de sua música — sem ela, não poderia viver..." Não duvidemos da sinceridade de Nietzsche quando fala
assim. Sua capacidade de amor e de admiração, que é imensa, foi colocada neste último companheiro que lhe resta, e
sua amizade transfigura a música de Peter Gast.

Na própria Veneza ele é infeliz: a luz excessiva fere-lhe os delicados nervos dos olhos. Gomo em outra
ocasião em Basiléia, tem que se encerrar, com as venezianas fechadas, e negar-se o prazer dos esplêndidos dias
italianos. Onde encontrará refúgio? Recorda os bosques alemães, tão vastos, sombrios e benéficos para vista, e cede à
nostalgia da pátria. Embora se irrite, embora se rebele contra ela, ama-a; e como poderia não a amar? Sem sua divina
música, que regulou o ímpeto de seus primeiros desejos — sua alma seria outra. Sem sua língua, difícil e esplêndido
instrumento — seu pensamento seria outro. Schopenhauer e Wagner, dois alemães, foram seus verdadeiros mestres,
e continuam a sê-lo (como em segredo se confessa). Seus verdadeiros discípulos, se é que existirão algum dia,
nascerão na Alemanha, nesta pátria cruel que ele não pode renegar.

Por esse tempo recebe da Alemanha notícias que o comovem: Rohde foi nomeado professor na
Universidade de Leipzig. Nietzsche sente-se feliz e felicita-o em termos esquisitos. No entanto, não se pode defender
de certas idéias e comparações melancólicas. "Agora — escreve a Peter Gast — a faculdade de filosofia se compõe
pela metade, de meus "bons amigos" (Zarncke, Heinze, Leskian, Windisch, Rohde, etc.)".

Repentinamente, sente desejo de partir. Quer ver sua mãe abandonada pelos filhos; quer ouvir as lições do
seu velho amigo; quer, afinal, enfrentar aqueles editores famosos que imprimem vinte mil volumes por ano e
repudiam os seus. Abandona Veneza e parte diretamente para Leipzig.

Vai à casa de Erwin Rohde, mas escolhe mal a hora. Encontra um homem ocupado e preocupado, que
recebe com desatenção e aborrecimento aquele singular personagem que frustrou sua própria vida. "Vi Nietzsche —
escreve Rohde mais tarde, numas poucas linhas em que explica seu frio acolhimento. — Toda sua pessoa mostrava a
marca de uma indescritível estranheza, que me inquietou profundamente. Havia nele algo que eu jamais conhecera, e
daquele Nietzsche que eu conhecia, haviam desaparecido uma porção de traços. Parecia estar chegando de um país
onde ninguém habitasse."

Nietzsche disse-lhe: "Queria ouvir você falar." Rohde leva-o consigo e o faz sentar-se em meio àqueles
moços que ignoram a sua obra e até seu nome. Nietzsche ouve e depois se retira. "Ouvi Rohde na Universidade —
escreve brevemente a sua irmã. Já não posso me comunicar com pessoa alguma. É evidente que Leipzig não é um
lugar de refúgio, nem de repouso para mim".

Fugiria de Leipzig como fugira de Nice ou de Veneza, mas algumas penosas ocupações obrigam-no a ficar.
Um após outro, sonda vários editores, tentando colocar seu livro, até que, enfim, sua dignidade se rebelasse,
desejando que sua obra apareça, resolve pagar as despesas da impressão, não obstante a pesada carga que isso
representa.

Sua mãe espera-o em Naumburg onde, desde a partida de sua filha, vive só. Nietzsche sente por ela uma
piedade vivíssima. Sabe.que está desolada com o abandono de seus filhos, e desesperada com as impiedades que ele
escreve em seus livros. "Não os leia. Ignore-os — diz-lhe ele constantemente; — não é para si que os escrevo." Mas
ela não pode reprimir a curiosidade, e o seu descontentamento, assim, jamais se apazigua.

Não querendo abandonar novamente a Alemanha sem lhe proporcionar nem que seja uma curta alegria,
Nietzsche vai passar uma semana ao seu lado, mas não tem a força suficiente para conter a confidencia dos seus
dissabores e lamenta-se, exalta-se, entristecendo com isso a pobre mulher, a quem deixa, afinal, mais infeliz do que a
encontrara à sua chegada.

Ao passar por Munich procura encontrar-se novamente com o barão de Seydlitz e sua esposa, desejoso de
descansar junto desses amáveis amigos. Mas o barão está ausente, e a casa fechada.

Deixando aquela Alemanha que não tornará a ver, Nietzsche viaja até à Alta Engadina, onde sempre espera
encontrai" algum alívio. Mas, ao chegar ali, em pleno julho, encontra apenas brumas glaciais que lhe provocam uma
grande crise do nevralgias e de melancolia.

II

A VONTADE DE DOMÍNIO

Poderemos dizer que Nietzsche encontra amigos na Engadina? Convirá tal palavra a essas figuras incertas,
essas mulheres russas, inglesas, suíças, judias, que, vendo regressar, a cada estação, aquele homem encantador,
sempre doente e só, não lhe podem recusar uma fugaz simpatia? São elas: as senhoras Rõde e Marusoff; as
senhoritas Zimmern e von Silas-Marschlins (esta, amiga da senhorita de Meysenbug), e outras que se deixam
adivinhar, mas cujos nomes permanecem desconhecidos.

Como o julgavam estas pessoas delicadas e afáveis? Nietzsche evitava cuidadosamente as palavras que
pudessem surpreendê-las ou fazer-lhes pena. Continha suas idéias perigosas; queria e sabia ser para elas um
companheiro amável e instruído, refinado e discreto. Uma destas amigas, uma inglesa de saúde delicada, a quem
Nietzsche visitava e distraia com freqüência, disse-lhe um dia:

— Sei que o senhor escreve, senhor Nietzsche. Gostaria de conhecer seus livros.

Nietzsche sabia que essa inglesa era uma católica fervorosa.

— Não. Não quero que a senhora os conheça. Se fôssemos acreditar no que escrevo, uma pobre criatura
doente, como a senhora, não teria direito algum à vida.

E, como de outra vez ela lhe dissesse: — Já sei, senhor Nietzsche, porque hão nos deixa ler seus livros. Em
um deles, o senhor escreveu: "Se vais com as mulheres, não esqueças o chicote".— Ele respondeu, com voz
desolada, tomando entre as suas as mãos da senhora que assim o censurava:

— Por Deus, minha amiga! Asseguro-lhe que minhas palavras não têm esse sentido!

Admiravam-no estas mulheres? É preciso um juízo muito seguro para se atrever a admirar um autor
desconhecido, e, sem dúvida, elas não tiveram tanta audácia. Estimavam e tinham certo afeto ao seu companheiro de
hotel; reconheciam seu singular gênio de conversador, e na mesa redonda procuravam o lugar mais próximo ao seu.
Tudo isto era muito pouco, se pensarmos em sua glória atual, mas era muito então, para ele. Graças a estas amigas,
tornava a encontrar, na Engadina, algo dessa confiança que era tão necessária à sua alma, e que perdia assim que
entrava na Alemanha. Durante o verão de 1886, alguns bons músicos passaram por Sils. Descobriram que Nietzsche
era um ouvinte de raras qualidades, e quiseram ser ouvidos por ele. Esta gentileza comoveu-o. "Observo — escreve a
Peter Gast — que nossos artistas cantam e tocam só para mim. Se isto continuasse, acabariam botando-me a perder."

Certa lenda oriental relata as aventuras de um soberano que excursionava disfarçado pelos seus domínios.
Ninguém o reconhece, mas adivinham-no, e um respeito instintivo acolhe sua chegada. Nietzsche, naquele hotel da
montanha, faz pensar no soberano disfarçado e adivinhado a meias.

Fraco consolo, porém. Poderiam estas mulheres adivinhar uma angústia cuja profundidade eram incapazes
de medir? Nietzsche atravessava esse grave momento em que todo o homem, por muito que resista à verdade, tem,
afinal, que saber o que lhe nega e lhe oferece o destino com uma inexorável constância. De boa ou má vontade,
chegara o momento em que ele devia arrancar do coração as últimas esperanças. "Nestes tempos, — escreve a Peter
Gast — tenho-me sentido indizivelmente triste, e as preocupações tiram-me o sono." Este dado é breve, mas, a sua
irmã ele confessa mais, escrevendo-lhe páginas e páginas terríveis de força e de monotonia.

Onde estão aqueles velhos amigos aos quais antigamente me sentira tão estreitamente ligado? Habitamos
mundos diferentes e falamos línguas diferentes! Como um estranho, como um proscrito, vago entre eles sem que me
dirijam uma palavra ou um olhar. Calo-me, pois que ninguém compreende minhas palavras... Ah, bem posso dizer:
jamais me compreenderam! É espantoso ver-se condenado ao silêncio quando se tem tanto que dizer,.. Teria eu sido
criado para a solidão, para não encontrar nunca uma pessoa para me fazer ouvir? A incomunicabilidade é, em
verdade, a mais espantosa das solidões. Ser diferente é trazer uma máscara de bronze mais dura do que todas as
máscaras de bronze. A amizade perfeita só é possível inter pares. Inter pares: palavras embriagadoras! Que
confiança, que esperança, que perfume, que beatitude promete a um homem fatal e constantemente só! a um homem
que é diferente, que jamais encontrará ninguém semelhante! E, no entanto, este homem é um bom indagador, e
procurou muito... Ah, loucura fugaz destas horas em que o solitário acredita encontrar um amigo, e estreita-o entre
seus braços: presente dos céus, dom inestimável! Mas não se passou ainda uma hora, quando já o repudia com
repugnância e se afasta com asco de si mesmo, como se se sentisse desonrado, diminuído, doente com sua própria
companhia.

Um homem profundo tem necessidade de amigos, a menos que tenha um Deus. E eu não tenho nem Deus,
nem amigos. Ah, irmã! esses que você designa com essa palavra, em outro tempo foram meus amigos. Porélh, e
agora?

Perdoe-me este acesso de paixão; a cansa disto foi minha última viagem.. . Minha saúde não é boa e nem
má. Só a pobre alma é que se encontra ferida e ávida.

Dê-me alguns homens que consintam em me ouvir e me compreendam — e me sentirei são e salvo!

Aqui, tudo segue seu curso. As duas inglesas e d velha russa (a compositora) voltaram; esta última, mui to
doente...

Nietzsche voltou a se ocupar do projeto da Wille zur Macht. Sua infeliz passagem pela Alemanha,
modificara seus propósitos. Pensava: Para que escrever obras de combate? Sem aliados e sem leitores, nada posso
contra o aviltamento da Europa; cumpra-se, pois o destino. Algum dia, esse aviltamento encontrará seu fim; dia
longínquo, que eu não verei. Então, descobrirão meus livros e eu terei leitores. Hoje não posso lutar, pois nem sequer
tenho inimigos...

Em julho, ao sair daquela Alemanha que pusera tão à prova sua capacidade de paciência, havia redigido um
plano detalhado. Em setembro, escreve:

Anuncio, para os próximos quatro anos, o término de minha obra em quatro volumes. Só ó título já é para
dar medo: Vontade de Domínio, ensaio de uma reavaliação de todos os valores. Necessito de todas as minhas forças
— saúde, solidão, e bom humor — e, talvez, também, uma mulher.

Para onde se retirará ele para compor essa nova obra? Gênova inspirara-lhe os dois livros de convalescente:
Aurora e La Gaya Scienza; Rapallo e Nice inspiraram-lhe o Zaratustra. Agora, pensa na Córsega. Desde muito
tempo sente curiosidade por essa ilha selvagem, e, nela, por uma cidade: Corte.

Ali foi concebido Napoleão — escreve. — Que lugar, pois, mais apropriado para empreender a
reavaliação de todos os valores?... Também para mim se trata de uma concepção.

Ah... esta obra napoleônica, cujo simples título deve assustar, começa por assustar o seu autor. Nietzsche
não ignora onde o leva esta "via mala des conséquences" (*) que segue desde algum tempo. Posto que uma força
ávida e conquistadora reside no coração da natureza, todo o ato que não corresponda a esta força é inexato e fraco.
Di-lo e escreve-o, e tal é, exatamente, seu pensamento: o homem nunca é tão grande como quando reúne em si a
presteza e o refinamento do espírito a uma certa rudeza e crueldade ingênita dos instintos. Assim foi
compreendida a virtude pelos gregos e a virtú pelos italianos. Os políticos franceses do século XVII, e depois
deles, Frederico II, Napoleão e Bismarck; agiram de acordo com estas máximas. Perturbado por suas dúvidas e
extraviado em seu problema, Nietzsche faz firme finca-pé nesta verdade fragmentária, mas segura: É preciso ter a
coragem da nudez psicológica. Exercita-se o mais possível para isso, mas fica insatisfeito. Seu espírito é
invencivelmente claro, sua alma invencivelmente sonhadora, e esta definição dos homens mais fortes é pequena e
gelada para os seus sonhos. Já não admirará Schiller e Mazzini que antes escolhera para mestres? Não duvidemos:
jamais alma alguma foi tão constante como a sua. Mas receia, seguindo-os, ceder a uma fraqueza, e os mestres que
escolheu agora chamam-se Napoleão e César Bórgia. Mais uma vez se afasta de sua missão e ilude as afirmações
peremptórias.

(*) Sic, no texto.


O editor Fritzsch concorda, mediante um auxilio pecuniário, em publicar uma segunda edição de A Origem
da Tragédia, de Aurora e de La Gagá Scienza. Havia muito tempo que Nietzsche desejava acrescentar um prefácio a
estas obras antigas, corrigi-las e talvez aumentá4as. Empreende imediatamente este novo trabalho e se absorve nele.

Já não irá à Córsega. Regressando à costa genovesa, detém-se em Rufa, não longe de Rapallo, acima de
Portofino, cuja crista arborizada se adianta pelo mar. Torna a encontrar os passeios e os lugares em que Zaratustra
lhe falara. Como se sentia triste naquele tempo! Acabava de perder seus dois últimos amigos, Lou Salomé e Paulo
Rée; não obstante, prosseguia em seu trabalho, e criava, no próprio momento de sua grande dor, sua obra mais
corajosa. Deixa-se comover pelo passado e cede à emoção de suas recordações.

Por esses dias recebe uma carta que é o primeiro sinal de sua próxima glória. Em agosto de 1886,
desesperando de ver-se compreendido por seus compatriotas, enviara seu livro Além do Bem e do Mal a dois
estrangeiros — o dinamarquês Jorge Brandes e o francês Hipólito Taine. O primeiro não respondeu, mas Taine
escreveu, em 17 de outubro de 188(1, uma carta que trouxe a Nietzsche um pouco de alegria:

Meu senhor:

Ao regressar de uma viagem encontrei o livro que ò senhor teve a amabilidade de me enviar. Como o se-
nhor diz, está cheio de "pensamentos posteriores"; a forma, tão viva, tão literária, ó estilo apaixonado, o curso com
freqüência paradóxico, abrirão os olhos do leitor que deseje entender. Eu recomendaria aos filósofos especialmente
o seu primeiro trecho sobre ós filósofos e a filosofia (págs. 14, 17, 20, 25); mas os historiadores e os críticos
acharão também um rico espólio de idéias novas, (por exemplo, 41, 75, 76, 149, 150, etc.). O que o senhor diz do
gênio e dos caracteres nacionais em seu oitavo ensaio, é extraordinariamente sugestivo, e hei de reler este pedaço,
embora se encontre nele uma frase demasiado lisonjeiro para mim. O senhor me faz grande honra em sua carta,
colocando-me ao lado do senhor Burckhardt, de Basiléia, a quem admiro infinitamente. Creio ter sido o primeiro
em assinalar, na imprensa francesa a sua grande obra sobre a Cultura do Renascimento na Itália...

Aceite, com minha cordial gratidão, a segurança dos meus melhores sentimentos.

H. Taine.

Paulo Lanzky foi se encontrar com Nietzsche em Ruta. Não o vendo fazia 18 meses, ficou assombrado com
a mudança que observou nele. O corpo parecia prostrado, as feições alteradas. Mas o homem continuava sendo o
mesmo: por amarga que fosse agora a sua vida, continuava tão afetuoso e ingênuo como antes, e tão pronto para o
riso como um menino. Arrastava Lanzky consigo para a montanha que, a todos os momentos oferece pontos de vista
tão grandiosos sobre o mar e os Alpes nevados. Juntos descansavam nos lugares mais belos e, logo, recolhendo
alguns sarmentos de outono e alguns ramos secos, acendiam fogueiras cujas labaredas e fumarada Nietzsche acolhia
com gritos de júbilo.

Foi então, naquela hospedaria de Ruta, que Nietzsche redigiu os prefácios de Aurora e de La Gaya Scienza
nos quais conta, com tão estranha vivacidade sua odisséia espiritual: Triebschen, a amizade de Wagner; Metz e a
descoberta da guerra; Bayreuth, a esperança e a desilusão; o rompimento com Richard Wagner; o estraçalhamento de
seu amor; os cruéis anos que atravessou, privado de lirismo e de arte; finalmente, Itália, que lhe devolve um e outra;
Veneza e Gênova, as duas cidades que o salvaram, e a costa da Ligúria, berço de Zaratustra.

Quando Nietzsche escrevia assim, lutando contra a depressão — tomaria drogas que favorecessem a
excitação indispensável para o trabalho? Certos testemunhos parecem afirmá-lo. Sabemos que tomava cloral e um
extrato de cânhamo indico que, em pequenas doses, lhe proporcionava repouso mas que, ao contrário, o excitava se
tomado em doses fortes. Embora seja possível que manejasse, em segredo, uma farnia-copéia mais complicada,
como é muito freqüente com os nervosos.

Nietzsche amava aquela costa italiana. "Imagine-se — escreve a Peter Gast — uma ilhota do arquipélago
grego trazida até aqui pelos ventos. É uma costa de piratas, inclinada, dissimulada, perigosa..." Propunha-se passar
ali o inverno, mas não tardou em modificar seus projetos e querer regressar a Nice. Em vão tratou Lanzky de o
segurar.

— O senhor queixa-se do seu abandono — disse-lhe. — Mas, de quem é a culpa? O senhor mesmo
desalenta seus discípulos. Chama-me para cá, chama Peter Gast, e, de repente, vai-se embora!

— A luz e o ar de Nice são-me indispensáveis — respondia. — Tenho necessidade da baía dos Anjos.

Partiu só. Durante o inverno acabou de escrever os seus prefácios, releu e retocou suas obras. Ao que parece
viveu num singular estado de abandono, de indecisão e de melancolia. Enviou seus manuscritos a Peter Gast, como
fazia sempre, mas o seu pedido de conselho tem um desusado acento de humildade e inquietação: "Leia-me com
maior desconfiança que nunca — escreve, em fevereiro de 1887 — e diga-me simplesmente: tal coisa está bem; tal
não o está; isto me agrada; por que não isto de preferência?, etc."

Lê, e suas leituras parecem dirigidas por uma curiosidade mais livre e menos ordenada pela rigidez das
idéias preconcebidas. Familiariza-se com as obras dos decadentes franceses; aprecia os trabalhos de Baudelaire sobre
Richard Wagner, e os Ensaios de Psicologia Contemporânea de Paul Bourget; lê os contos de Maupassant, e admira
"esse grande latino". Folheia alguns volumes de Zola, e não se deixa seduzir por esse pensamento puramente
popular, por essa arte absolutamente decorativa. Compra e comenta a lápis nas margens o Esboço de uma moral sem
obrigação nem sanção. Guyau verá, como Frederico Nietzsche, e ao mesmo tempo que ele, a idéia de fundar uma
moral sobre as modalidades expansivas da vida; Guyau porém, interpretava-as em outro sentido, e compreendia
como força do amor o que para Nietzsche era força conquistadora. O acordo inicial, não obstante, é seguro, e
Nietzsche estima a obra inteligente e pura do filósofo francês. A notoriedade dos novelistas russos começava por
aqueles tempos. Nietzsche interessa-se por esses poetas de uma raça jovem, violenta e sutil, cujo encanto Sempre
sentiu.

"Conhece Dostoievsky? — escreve a Peter Gast — Ninguém, afora Stendhal, me satisfez e deleitou tanto.
Eis aqui um psicólogo com o qual me entendo." Aponta o novo autor a todos os seus correspondentes. O fervor
religioso daqueles eslavos interessa-o e merece a sua indulgência. Não é um sintoma de debilidade — pensa — mas
o desvio de uma energia que não pode aceitar os frios limites da sociedade moderna e cuja rebeldia adota a forma de
um cristianismo revolucionário. Aqueles bárbaros, violentados em seus instintos, perturbam-se e acusam; entram
num período de crise que não terminou ainda. Nietzsche escreve:

"Esta consciência inquieta é uma enfermidade, mas uma enfermidade do gênero da gravidez..."

Pois que Nietzsche espera sempre. Defende obstinadamente suas idéias contra suas repugnâncias; quer que
seus pensamentos permaneçam livres, benévolos e confiantes, e quando sente crescer dentro de si e subir até eles o
ódio à Europa e a seus povos aviltados, quando tem medo de ceder ao seu humor amargo, controla-se em seguida,
Não — repete a si mesmo — jamais foi a Europa tão rica em homens, idéias e aspirações; jamais esteve tão bem
preparada para as grandes obras como o está hoje, e é preciso, contra toda a aparência, esperar tudo destas multi dões,
por mais que a sua fealdade pareça dever matar toda a esperança.

Durante os primeiros meses de 1887, Frederico Nietzsche entabulou relações com uma certa senhora V. P.
com a qual foi a San Remo e Monte Cario. Ignoramos o nome desta mulher e não conhecemos nenhuma carta escrita
por ela, ou a ela dirigida. Há em tudo isto certo mistério, e talvez amor. Pelo menos, não é despropósito supô-lo. (*)

Sem dúvida, Nietzsche acompanhava a senhora V. P. quando ouviu nos concertos do cassino de Monte
Cario o prelúdio de Parsifal. Ouviu sem ódio, com a repentina indulgência de um lutador fatigado. "Gostei muito de
Wagner — escreve em setembro a Peter Gast — e ainda gosto..." Sim! é claro que ainda gosta dele, quando pode
falar assim da sinfonia que acaba de ouvir:

Não quero saber se esta arte pode ou deve servir a algum fim — escreve a Peter Gast; — contento-me,
agora, em perguntar: Teria jamais Wagner feito algo melhor? E encontro a mais extremada consciência e precisão
psicológica na maneira de dizer, de exprimir e de comunicar a emoção; a forma mais curta e mais direta; cada
matiz sentimental definido com uma brevidade quase epigramática; uma clareza descritiva tal que, escutando esta
música se pensa em um escudo maravilhosamente cinzelado; por fim, um sentimento, uma experiência musical da
alma, extraordinária e sublime; uma "elevação", no sentido formidável da palavra; uma simpatia, uma penetração
que entram como um punhal na alma, e uma infinita piedade pelo que descobriu e julgou no fundo desta alma.
Tais belezas se encontram em Dante e em

mais ninguém. Que pintor pintou jamais um tão melancólico olhar de amor como Wagner nos últimos
acentos do seu prelúdio?

(*) Os costumes são bastante livres nas pensões mediterrâneas, e sem dúvida, não conhecemos todos os
episódios da vida de Frederico Nietzsche, e não nos está autorizada a hipótese. Segundo um testemunho que
pudemos recolher, sua conduta na Engadina jamais deu motivo a qualquer murmúrio. Parece, pelo contrário, que
evitava as moças. (N. do A.)
Que fácil lhe seria chegar a ser um grande critico; de agudeza igual; mas muito superior amplitude de vistas,
à desse Sainte-Beuve tão estimulado por ele! Nietzsche sabe que o "diletantismo da análise" (a expressão é sua) tem
seduções a que ele, por sua parte, mal ? consegue resistir. Seus melhores leitores observaram isso com freqüência.
"Que historiador é 6 senhor!" lhe dizia em outro tempo Burckhardt, e Taine o repete, embora o cumprimento pouco
satisfaça a Nietzsche. Despreza a função do historiador e do crítico. Um jovem alemão conhecido em Nice lhe diz
que os professores de Tubinga o consideram como um espírito dissolvente e um negador radical. Isto entristece-o. Se
se afastou violentamente do romantismo do amor e da piedade, não foi para chafurdar no romantismo inverso da
violência e da energia. Admira Stendhal, mas não quer ser stendhaliano. Ais crendices cristãs nutriram sua infância;
as doutrinas de Pforta amadureceram--no; Pitágoras, Platão e Wagner aumentaram e elevaram seus desejos. Quer ser
poeta e moralista, inventor de virtudes, de veneração e de serenidades — nenhum de seus leitores, nenhum de seus
amigos compreendeu esta intenção. Corrigindo ás provas de Aurora, relê esta antiga página, cuja verdade subsiste:

Adora-se a força de joelhos — segundo o velho costume dos escravos — e, no entanto, quando ê preciso
determinar o grau de venerabilidade, o que importa é o grau de razão na força; é preciso avaliar em que medida foi
superada a força e a que fins obedece como instrumento e como meio. Para semelhantes avaliações, porém, existem
ainda muito poucos olhos; a gente chega até a considerar como uma blasfêmia a avaliação do gênio. Assim, o
espetáculo mais belo se acha, talvez, condenado à obscuridade, e, apenas surgido, desaparece na noite eterna;
refiro-me ao espetáculo dessa força que o gênio emprega, não em obras, mas no desenvolvimento de si mesmo
como tal obra, quer dizer, no domínio de si próprio, na ordenação e seleção das inspirações, e dos esforços que
surgem. O grande homem permanece invisível, como uma estrela longínqua, no que tem de mais admirável: sua
vitória sobre a força fica sem testemunhas, e não é glorificada, nem cantada...

Ah! para vencer a força é preciso ter algum apoio exterior — a razão, ou a fé. Nietzsche negando a uma e a
outra todos os seus direitos, desarmou-se para o seu combate.

Pelos começos de março um forte tremor de terra assustou os desocupados cosmopolitas de Nice. Frederico
Nietzsche admirava estes movimentos da natureza que recordam ao homem a sua insignificância. Dois anos antes, a
catástrofe do Krakatoa, que fez perecer em Java duzentas mil pessoas, haviam-no entusiasmado: "Que formosura —
dizia a Lanzky, que a seu pedido, lhe lia as notícias — duzentas mil pessoas destruídas de um só golpe! É magnífico!
Eis aí como deveria terminar a humanidade, como terminará algum dia!" E externou o seu desejo de que uma
gigantesca onda suprimisse, pelo menos, Nice e seus habitantes. "Mas — observou Lanzky — nós também seríamos
suprimidos." "Que importa!" —respondeu Nietzsche.

Seu desejo, quase realizado, regozijou-o. Mas nem por isso apressou de um só dia sua partida.

Até agora — escreve em 7 de março r— tenho vivido com um sentimento de ironia e de fria curiosidade em
meio destes milhares de seres em estado de demência. Mas ninguém pode responder por si mesmo; talvez amanhã
eu seja tão pouco razoável como qualquer outro. Há nisto um imprévi que não deixa de ter seu encanto.

Em meados de março havia terminado os seus prefácios, e, como diz num deles: "Que nos importa o senhor
Nietzsche, suas doenças e suas curas? Falemos claramente, vamos direito ao problema." Está bem.. Vamos direito ao
problema. Determinemos, entre os inumeráveis fins que se propôs o homem, quais são os que realmente o elevam e
enobrecem; saibamos, afinal, ganhar nossa vitória sobre a força. Em 17 de março escreve um plano:

Livro primeiro — O Niilismo Europeu Livro segundo — Crítica dos valores superiores Livro terceiro —
Princípio de uma nova avaliação Livro quarto — Disciplina e seleção.

É quase a mesma disposição que indicara em julho de 1886: dois livros de análise e de crítica e dois livros
de doutrina e afirmação; no total, quatro livros, quatro tomos.

A primavera afundava-o todos os anos em um estado de incerteza e de mal-estar; não sabia onde encontrar,
entre Engadina e Nice, um lugar onde o ar fosse bastante puro e não fizesse demasiado calor; onde a luz fosse suave
e não lhe molestasse os olhos. Naquele ano de 1887 deixou-se tentar pelos lagos da Itália, e, abandonando Nice,
dirigiu-se ao Lago Maior. Este Mediterrâneo em miniatura, encerrado entre montanhas, agradou-lhe
extraordinariamente, em princípio. "Este lugar me parece mais formoso e emocionante do que todos os da Riviera
— escreve. — Como é possível que eu tenha demorado tantos anos em descobri-lo? O mar, como todas as coisas
enormes, tem algo de estúpido e de indecente que não existe aqui.
Corrige as provas da La Gaya Scienza; relê Humano, demasiado humano, e de novo se detém em considerar
com ternura sua obra desconhecida.

No entanto, se refaz. Só a próxima obra importa! Obriga-se a recomeçar suas meditações; e imediatamente
se enerva e se sente esgotado. De repente renuncia a uma visita a Veneza, que havia projetado. "Minha saúde me
impede — escreve a Peter Gast. — Sou indigno de ver coisas tão belas."

Para cúmulo de seus males surge uma disputa epistolar entre Erwin Rohde e êle. Nietzsche tivera ocasião de
escrever algumas linhas ao amigo mais íntimo de outros tempos, e não resistira ao prazer de apontar,
maliciosamente: "Só me entendo, já, com gente velha, como Taine e Burckhardt; você não é bastante velho para
mim. .." Isto ofendeu a Erwin Rohde. Professor, ao passo que Nietzsche não é nada; com reputação na Europa culta,
ao passo que Nietzsche continua ignorado, apesar de seus livros extravagantes — não admite a irreverência e
defende sua dignidade. Sem dúvida a sua carta devia ser muito rude, pois que fê-la restituir mais tarde e a destruiu.

Este contratempo foi muito nocivo para Nietzsche. Tão minada e em ruínas se achava a sua saúde, que
resolveu seguir um tratamento de banhos e massagens em um estabelecimento . especial de Coira, na Suíça, onde se
entregou documente às mãos dos médicos.

No entanto, trabalhou e fez um enérgico esforço para descobrir e definir aqueles valores morais que
desejava propor. Mas foi tudo em vão. Apesar de seus esforços, o problema do seu terceiro livro — Princípio de
uma nova avaliação — continuava de pé diante dele. Transcrevamos aqui a definição mais precisa que nos
proporciona outro plano:

Terceiro livro — Hipóteses do legislador. Vincular de novo as forças desordenadas, de maneira que não
se destruam mais em seus choques; permanecer atento, ao acréscimo real da força.

Que quer dizer isto? Que acréscimo real, que direção real das coisas nos designam estas palavras? Um
crescimento de intensidade? Então, todo o movimento da energia, sempre que esta seja intensa, .será bom. Mas não é
assim que se deve entender. Nietzsche escolhe, prefere, exclui. Este acréscimo é, pois, o sinal de uma ordem, de uma
hierarquia natural. Mas em toda a hierarquia se faz necessário um critério que distribua os graus. Qual será esse
critério? Em outro tempo, Nietzsche teria dito: a crença que eu tenha oferecido; minha afirmação lírica. Pensará
ainda assim? Sem dúvida, suas idéias pouco variam. Sua audácia, porém, está diminuída pelo sofrimento, e as
prolongadas indecisões fizeram mais exigente o seu espírito crítico. Deseja, procura, e parece pedir à ciência, ao
"médico filósofo", a base real que todos os seus costumes intelectuais lhe negam.

A má notícia acaba de arruinar sua coragem: Heinrich von Stein morreu, antes de fazer trinta anos, de uma
paralisia do coração.

Esta noticia me pôs fora de mim — escreveu Nietzsche a Peter Gast; —• eu lhe tinha realmente um grande
afeto. Sempre me pareceu que me estava reservado para o futuro. Pertencia a esse pequeno grupo de homens cuja
existência me regozija; e êle também tinha grande confiança em mim... Quanto rimos, aqui mesmo! Sua visita de
dois dias a Sils, foi uma das mais raras e delicadas homenagens que já recebi. Isto causou aqui grande impressão.
Êle dissera no hotel: Se venho aqui não é precisamente por causa da Engadina.

Passam-se três semanas. Êle se queixa da amarga disposição em que se encontra, e das suscetibilidades que
lhe rebaixam a alma. No entanto, anuncia outro trabalho. Que novo trabalho poderá ser este?

Não é a Vontade de domínio. Sua impaciência, aumentada pelo trabalho, se submete com dificuldade à
lentidão do pensamento. Seu gênio de improvisador e polemista é o único que sobrevive de seus antigos dotes. O sr.
Widmann, critico Suíço, acaba de escrever um estudo sobre o Além do Bem e do Mal, obra em que só havia visto um
manual de anarquismo: "Este livro é dinamite", declara. Frederico Nietzsche quer replicar e escreve em seguida, de
uma vez, em quinze dias, um, dois, três curtos ensaios cujo conjunto intitula: "Zur Genealogie der Moral" {(Para a
Genealogia da Moral). Esta obra, escreve Nietzsche no frontispício, é "destinada a completar é esclarecer a anterior:
Além do Bem e do Mal."

Eu disse — escreve — em suma, que me coloco para além do bem e do mal — Gut und Bóse. —Mas
quererá isto- dizer que desejo me emancipar de toda categoria moral? De maneira alguma. Recuso a exaltação e a
doçura a que chamam o bem; e a difamação da energia a que chamam o mal; mas a história da consciência humana
— sabem os moralistas que existe tal história? — nos descobre uma porção de outros valores morais, de outras
maneiras de ser bom, de outras maneiras de ser mau, e numerosos matizes de honra e desonra. Neste mesmo terreno,
a realidade é movediça, e livres as iniciativas: é preciso procurar e inventar.
Mas Nietzsche desenvolve ainda mais o seu pensamento: "Eu quis — escreve meses mais tarde, a propósito
deste livro —disparar um tiro de canhão com pólvora mais sonora." Expõe a distinção entre as duas morais: uma
ditada pelos amos e a outra pelos escravos; pretende reconhecer nas raízes verbais o sentido antigo do bem e do mal.
Bônus, buonus, diz, vem de duonus, que significa guerreiro: malus vem de mêlas negro: os loiros arianos,
antepassadas dos gregos, designavam com esta palavra a maneira habitual de trabalhar de seus escravos e vassalos,
os mediterrâneos com sangue cruzado de negros e semitas. Frederico Nietzsche não recusa estas noções primitivas
do nobre e do vil.

Em 8 de junho, numa carta escrita de Sils-Maria, anuncia a Peter Gast a nova obra:

Estes últimos dias, que foram melhores, empreguei--os energicamente na redação de um breve ensaio que,
ao que creio, põe em plena luz o problema do meu último livro. Todo o mundo se queixou de que "não se me com -
preendia", e os cem exemplares vendidos não me permitem duvidar de que, em realidade, não me entendem. Você
sabe que em três anos gastei cerca de quinhentos táleres em despesas de impressão — tudo isso, sem a menor re-
muneração, preciso que o saiba! E tenho quarenta e três anos e quinze livros! Mais ainda: depois de um exame e de
muitas e penosas diligências que não posso dizer, comprovei ser um fato que nenhum editor alemão quer editar
meus livros (mesmo que eu ceda os direitos de autor). É possível que este folheto que hoje termino faça com. que se
adquiram alguns exemplares do meu livro anterior (quando penso no pobre Fritzsch, que carrega sobre si todo o
peso de minha obra, sinto pena). Talvez os meus editores se beneficiem algum dia. Quanto a mim, sei muito bem
que, quando me começarem a entender, já não poderei recolher benefício algum.

Em 20 de julho manda o manuscrito ao editor. Em 24 pede a devolução, por telegrama, a fim de lhe
aumentar algumas páginas. Todo o verão transcorre entre doenças, tristezas e a correção de seu livro, que não cessa
de retocar, aumentando-o e fazendo-o cada vez mais vivo. Pelos fins de agosto, vendo um espaço em branco na
última página da primeira parte, Nietzsche acrescenta esta curiosa nota, na qual indica os problemas não estudados e
que não terá, já, tempo nem forças para abordar:

NOTA — Aproveito a ocasião que esta primeira dissertação me oferece para exprimir, pública e
formalmente um voto o qual, até agora, não comuniquei senão a alguns sábios, ao acaso das conversações. Seria de
desejar que uma faculdade de filosofia; mediante uma série de concursos acadêmicos, coadjuvasse a propagação
dos estudos da história da moral. Talvez este livro sirva para dar um impulso vigoroso nesta direção.. Eu
proporia a seguinte questão:

Que indicações nos fornecem a lingüística e especialmente as investigações etimológicas, para a história da
evolução dos conceitos morais?

Por outra parte, não seria menos necessário interessar no estudo destes problemas os fisiólogos e os
médicos. Realmente, antes de tudo seria preciso que todas as tabelas de valores, todos os imperativos de que falam
a história e os estudos etnológicos, fossem esclarecidos e explicados pelo seu lado fisiológico, antes de se tratar de
sua interpretação pela psicologia... A pergunta: "Que vale tal ou qual tabela de valores, tal ou qual moral?" precisa
ser examinada dos mais diferentes pontos de vista. Em nada se deveria colocar mais discernimento e delicadeza do
que no estudo da finalidade dos valores. Aquilo, por exemplo, que tenha um valor evidente no que concerne á maior
capacidade de duração de uma raça, não teria, de modo algum, o mesmo valor quando se tratasse de criar um tipo
de força superior. O bem da maioria e o bem da minoria são dois pontos de vista de valorização absolutamente
opostos. E que a ingenuidade dos biólogos ingleses considere, se lhe agrada, o primeiro como superior em si...
Todas as ciências deverão preparar, de agora em diante, a tarefa do filósofo do futuro, que consiste em resolver o
problema dos valores, em determinar a hierarquia dos valores.

Chega setembro. As provas estão corrigidas, e começa a fazer frio na Engadina. O filósofo errante tem que
procurar novo refúgio e novo trabalho.

Para dizer a verdade — escreve a Peter Gast — vacilo entre Veneza e Leipzig. Talvez devesse ir trabalhar
em Leipzig, pois que ainda me falta aprender muito, interrogar e ler, para o grande pensum de minha vida, que já
agora não posso deixar de levar a cabo. Mas isso não seria coisa para um outono e sim para todo um inverno
passado na Alemanha... E, tudo bem pesado, minha saúde me dissuade de empreender este ano semelhante tarefa.
Assim, pois, será Veneza ou Nice, e, de certo ponto de vista puramente interior, talvez seja preferível. Tenho maior
necessidade de viver só e recolhido do que de ler e investigar cinco mil problemas.

Peter Gast está em Veneza e Veneza, como se poderia prever, acaba ganhando a partida contra Leipzig e
Nice. Nietzsche vive umas semanas ocioso e quase feliz na cidade das "cem profundas solidões". Não escreve coisa
alguma. Peter Gast nos informa que os seus dias decorrem em ócio. Não municiou às bibliotecas de Leipzig para se
fechar num quarto de Veneza. Passeia, freqüenta as míseras trattorie, nas quais come ao meio-dia o mais humilde e
cortês dos povos. Nas horas de mais intensa claridade, vai repousar seus olhos nas sombras da Basílica, e quando
começa a declinar o dia, reinicia seus eternos passeios. Então pode, sem sofrimento, contemplar San Marco e o
revoar de suas pombas, a lagoa, com suas ilhas e seus templos. No entanto, não pára de pensar em sua obra. Imagina-
a lógica e livre, simples no plano, numerosa em detalhes, luminosa num certo mistério, e com certa sombra em cada
linha. Desejaria, enfim, que fosse semelhante a esta cidade dileta, a esta Veneza cuja vontade soberana se alia a todos
os jogos da fantasia e da graça.

Leiamos esta página de notas, escrita em novembro de 1887, e compreenderemos o quanto é sensível nela a
Uombra di Venezia:

O Livro perfeito; ter em conta:

1 —A forma. O estilo. Um monólogo ideal. Tudo o que tiver uma aparência douta, absorvido nas profun-
dezas. Todos os acentos da paixão profunda, da inquietação e também da debilidade. Cores suaves, manchas de sol
— a felicidade curta, a sublime serenidade. — Ir além das demonstrações. Ser absolutamente pessoal sem
empregar a primeira pessoa. ■. Uma espécie de memórias; dizer as coisas mais abstratas da maneira mais concreta
e mais cruel. A história inteira como se tivesse sido vivida e sofrida pessoalmente... Até onde seja possível, coisas
visíveis, precisas e exemplos... Nenhuma descrição; todos os problemas transpostos ao sentimento, até à paixão.

2 — Termos expressivos. Vantagem dos termos militares. Procurar expressões para substituir os termos
filosóficos...

Em 22 de outubro, acha-se em Nice.

Dois acontecimentos (sem dúvida, a palavra não é demasiado forte) encheram suas primeiras semanas de
permanência naquela cidade: Perdeu seu mais antigo amigo e adquiriu um leitor.

O amigo perdido foi Erwin Rohde. O desentendimento iniciado na primavera anterior, consumou-se então.
Nietzsche escreveu a Rohde, sem que sua intenção inicial fosse molestá-lo: "Não se afaste de mim tão à toa — dizia-
lhe anunciando-lhe a remessa de seu último livro A Genealogia da Moral. — Na minha idade e na minha solidão,
não posso me resignar sem pena a perder os poucos homens em quem confiava antigamente..." Não pôde, porém,
limitar-se a essas palavras. Recebera de Hipólito Taine uma segunda carta muito amável (*), e Erwin Rohde, em sua
carta de maio, tratara Taine com pouco respeito. Nietzsche quis defender seu correspondente francês, e acrescentou:

N. B. — Suplico-lhe que julgue mais razoavelmente ao sr. Taine. As grosserias que você diz e pensa dele,
mortificam-me. Posso perdoar ao príncipe Napoleão, mas não ao amigo Rohde. É-me difícil crer que quem não
compreenda esta raça de espírito severo e de grande coração, possa compreender qualquer coisa de minha obra.
Por outro lado, você jamais me escreveu uma palavra que me permitisse pensar. Você percebe o destino que pesa
sobre mim... Tenho quarenta e três anos vividos, e me encontro tão só como se fosse uma criança.

Todas as relações ficaram interrompidas.

O novo leitor que adquiriu foi Jorge Brandes, que acusou o recebimento da Genealogia com uma carta
maravilhosamente inteligente e viva:

Respiro em seus livros um espírito novo e original. Nem sempre compreendo perfeitamente o que leio, nem
sempre percebo até onde o senhor quer chegar, mas muitos pontos se acham de acordo com as minhas idéias e
minhas simpatias. Como o senhor, aprecio pouco o ideal ascético; a mediocridade democrática me inspira, como ao
senhor, uma repugnância profunda; aprecio o seu radicalismo aristocrático. O desprezo que o senhor sente pela
moral da piedade é algo que não consigo ver muito claramente... Nada sei sobre o senhor. Vejo, com assombro, que
é professor, doutor. Em todo o caso, felicito-o de todo o coração por ser, intelectualmente, tão pouco professor... O
senhor pertence ao pequeno número de homens com quem eu gostaria de falar.

Ao que parece, Nietzsche devia ter sentido vivamente o consolo, o conforto que representava o haver
encontrado, afinal, dois testemunhos do seu trabalho, de tão rara qualidade como Taine e Brandes. Não se inteirava,
também, naqueles dias, de que Brahms lia com grande prazer Além do Bem e do Mal? Mas a amargura tomara-lhe a
alma, e a faculdade de

(*) Fico muito satisfeito — escrevera Taine — em saber que os meus artigos sobre Napoleão lhe hajam
parecido verdadeiros, e nada pode mais exatamente resumir a minha impressão do que as duas palavras alemãs de
que o senhor se serviu: Unmensch und Ubermensch, (Carta de 12 de julho de 1887.) (N. do A.)

sentir as impressões propícias, parecia ter-se extinguido nele. Perdera essa alegria interior, essa
serenidade que resiste a toda a prova, de que outras vezes se sentira tão orgulhoso e suas cartas não revelam
senão tristeza.

É um desastre do qual só sobrevive a atividade do espírito, que se exercita com singular energia. Mal
podemos enumerar os motivos que o preocupam.

Peter Gast transcreve para orquestra o seu Hino á Vida. Nietzsche vigia este trabalho, e às vezes corrige.
Sobretudo, porém, admira ingenuamente esta nova forma de sua obra. Aparece, então, o Diário dos Goncourt. Ele lê
esta interessantíssima novidade" e senta-se, em pensamento, àquela mesa de Magny que congrega Flaubert, Sainte-
Beuve, Gautier, Taine, Gavarni e Renan. Todas essas distrações não impedem que comece resolutamente a sua
grande obra, a obra decisiva, em que a sua sabedoria e não a sua cólera há de falar. A obra serena, na qual a polemica
não encontrará lugar. Em poucas linhas define o seu desígnio:

Ter percorrida toda a extensão da alma moderna, ter comido em um cada um de seus recantos: meu orgu-
lho, minha tortura, minha alegria.

Superar efetivamente o pessimismo, e, afinal, um olhar goethiano, cheio de amor e de boa vontade.

Nesta nota, Nietzsche aponta Goethe como inspirador do seu último trabalho. Para dizer a verdade,
nenhuma natureza é mais dissemelhante à sua, mas esta mesma diferença é que determina a escolha. Goethe não
humilhou nenhuma forma da atividade humana, nem excluiu a menor idéia de seu mundo intelectual; recebeu e
administrou, como um dono benévolo, a imensa herdade das culturas humanas. Tal 6 o último ideal, o último sonho
de Nietzsche. Deseja, no tini de sua vida (pois que ele conhece seu destino) derramar, como um sol descambante, as
mais doces claridades; interpenetrar tudo, justificar tudo, esclarecer tudo, sem que subsisti) uma sombra à superfície
das coisas, nem uma tristeza no interior das almas.

Determina, sem dificuldade, as idéias diretrizes dos dois primeiros volumes: O Niilismo Europeu e a Crítica
dos Valores Superiores. Desde quatro anos não escrevera unia única linha que não pertencesse a esta análise ou a
esta critica, Escreve rapidamente, e se irrita. "Um pouco de ar puro! — exclama. — Este absurdo estado em que se
acha a Europa, não pode durar muito tempo..." Não é mais que uni grito logo reprimido. Nietzsche expulsa a
impaciência como uma fraqueza. Com um canto de amor é que ele tem que responder aos ataques da vida. Quer
voltar, e volta, realmente, a pensamentos mais serenos; e pergunta: Será certo ser absurdo o estado da Europa?
Talvez exista uma razão para esses fatos, uma razão que não percebemos. Talvez convenha reconhecer nessa
atonia da vontade, nesse relaxamento democrático, uma certa utilidade e um certo valor conservador. Parecem
irreprimíveis e talvez sejam necessários. Embora sejam hoje deploráveis para nós, talvez acabem por ser benéficos:

Reflexão — É insensato imaginar que toda esta vitória dos valores possa ser antibiológica. É preciso pro-
curar explicá-la por um interesse vital para a superveniência do tipo "homem", embora este deva ser alcançado
pela preponderância dos fracos e deserdados. Talvez que, se as coisas fossem de outro modo, o homem já não exis -
tisse. — Problema.

A elevação do tipo é perigosa para a conservação da espécie. Por que?

As raças fortes são raças pródigas... Encontramo--nos aqui diante de um problema de economia.

Reprimindo toda a repugnância, vedando-se toda a maldição, Nietzsche quer e consegue considerar com
serenidade, estas tendências à reprovação. Reflete: Deveremos negar às massas o direito de procurar suas verdades e
suas crenças vitais? E, privados das massas, que seriam os senhores? Esses precisam que aquelas sejam felizes.
Sejamos pacientes, suportemos que nossos escravos, rebeldes e por alguns momentos nossos amos, inventem as
ilusões que lhes sejam favoráveis. Que acreditem na dignidade do trabalho! Se com isso se tornarem mais dóceis ao
trabalho, sua crença é saudável.

O problema — escreve Nietzsche — está em fazer o homem o mais utilizável possível, e aproximá-lo, até
onde seja possível, à máquina que nunca se engana: para isso é preciso armá-lo com as virtudes da máquina, e en -
siná-lo a suportar o aborrecimento, a dar ao aborrecimento um encanto superior..., É preciso que os sentimentos
agradáveis sejam relegados a uma categoria inferior... A forma maquinai da existência, considerada como a mais
nobre e elevada, deve se adorar a si própria.

Uma cultura elevada não se pode edificar senão num vasto terreno, sobre uma sadia mediocridade
fortemente consolidada.

Por muito tempo ainda, o fim único deve consistir na diminuição do homem, pois é preciso, antes de tudo,
criar uma grande base sobre a qual se possa elevar a raça dos homens fortes...

O apequenamento do homem europeu é um processo ao qual não se deveriam opor entraves; antes, pelo
contrário, conviria acelerá-lo ainda mais. É a força ativa que permite esperar o advento de uma raça mais forte, de
uma raça que possua até ao excesso essas mesmas

qualidades que faltam à espécie desvalorizada (vontade, responsabilidade, certeza, faculdade de se fixar
um objetivo).

Pelo fim de 1887, Nietzsche conseguira terminar o primeiro esquema do trabalho de síntese que se
propusera. Concede, neste esquema, uma certa dignidade e um certo direito àqueles motivos que em outro tempo
difamara. Os projetos finais de Zaratustra já nos haviam dado indicações semelhantes: "Os discípulos de Zaratustra
dão aos humildes e não a si mesmos, a expectativa da felicidade... Distribuem as religiões e os sistemas segundo a
hierarquia...." Com intenção semelhante, ele escreve agora: As tendências humanitárias não são antivitais, pois
convém às massas que vivem com lentidão, e convindo a elas, convém à humanidade, que precisa da satisfação das
massas. As tendências cristãs são igualmente benfazejas, e nada é tão desejável como a sua permanência, pois
convém a todos os que sofrem, a todos os fracos, e é necessário para a saúde das sociedades humanas que o
sofrimento e as debilidades inevitáveis sejam recebidas sem rebelião, submissamente e, se possível, amorosamente.
"Diga o que disser do cristianismo — escrevia a Peter Gast em 1881 — não posso esquecer-me de que lhe devo as
melhores experiências da minha vida espiritual, e espero não ser jamais ingrato com ele, no fundo do coração..."

Este pensamento e esta esperança nunca o abandonaram, e ele fica satisfeito por haver encontrado, afinal,
uma palavra de justiça para o culto de sua infância — o único que se oferece às almas.

Em 14 de dezembro de 1887, Nietzsche dirige a um antigo correspondente dos dias de Basiléia, Carl Fuchs,
uma carta de acento altaneiro:

Vai ser preciso apagar quase tudo o que escrevi. Durante estes últimos anos a veemência das minhas agi-
tações interiores tem sido terrível. Hoje, no momento em que devo ainda mais me elevar, o meu primeiro tra balho é
o de me modificar novamente, despersonalizar--me para formas mais elevadas.

Sou velho? Não sei. Não sei, também, que juventude me seria ainda necessária.

Na Alemanha se queixam muito das minhas excentricidades. Más, como ignoram onde está colocado o meu
centro, é difícil que possam discernir onde e quando sou excêntrico.

Pelas datas de suas notas, parece que Nietzsche abordava um problema diferente no mês de janeiro de 1888.
Aquelas humildes multidões, cujos direitos admite e mede, não mereceriam viver se suas atividades não estivessem,
em última instância, regidas por um grupo selecionado, e não fosse utilizada para fins gloriosos. Quais serão as
virtudes desse grupo e que fins servirá? Deste modo, Nietzsche volta a encontrar-se com o problema que o
atormenta. Definirá, afinal, essa grandeza desconhecida, talvez inexeqüível, à qual há tanto tempo aspira sua alma?
De novo é dominado pela tristeza; uma vez mais se queixa de sua irritabilidade e de sua desconfiança, a tal ponto
extremada que cada dia, à hora do correio, vacila e estremece antes de abrir suas cartas.

Jamais a vida me pareceu tão difícil... — escreve a Peter Gast em 15 de janeiro. — Já não sei me acomo-
dar a nenhuma espécie de realidade. Quando não consigo esquecê-las, despedaçam-me... Há noites em que não me
agüento mais, de angústia. E tenho ainda tanto por fazer! — tudo posso dizer. — É forçoso, pois, que me mantenha
de pé. E para isso faço todos os esforços, pelo menos pela manhã. Nestes dias a música tem--me dado sensações que
eu não sentira nunca. Alivia-me, desembriaga-me de mim mesmo. É como se eu me visse a mim próprio desde uma
grande altura, como se me sentisse de uma grande altura. Assim, torna-me mais forte, e, normalmente, depois de
cada serão musical (ouvi a Carmen quatro vezes), tenho uma manhã cheia de descobertas e de idéias enérgicas. É
uma coisa admirável. É como se eu me tivesse banhado em um elemento mais natural. A vida sem música é
simplesmente erro, cansaço, exílio.

Procuremos segui-lo em seu trabalho. No momento, limita-se a uma investigação histórica e se esforça por
descobrir a classe social, a raça ou o partido que autorizem a esperança de uma humanidade mais nobre. Aqui está o
europeu moderno:

Como poderá sair dele uma raça de homens fortes? Uma raça de gostos clássicos? O gosto clássico é a
vontade da simplificação, da acentuação... a nudez psicológica. .. Para se elevar daquele caos a esta organização, é
preciso ver-se obrigado por uma necessidade. É preciso não poder escolher: desaparecer, ou impor-se. Uma raça
dominadora não pode ter senão origens terríveis e violentas. Problemas: onde estão os bárbaros do século XX? É
evidente que não poderão aparecer e impor-se senão depois de terríveis crises socialistas. E estes serão os
elementos capazes da maior rudeza com relação a si mesmos, e capazes de garantir a vontade mais persistente.

Será possível discernir na Europa moderna estes elementos predestinados à vitória? Nietzsche esforça-
se para isso, e anota nos seus cadernos os resultados da investigação:

Os entraves mais favoráveis e os remédios contra o modernismo.

E, principalmente:

l.o O serviço militar obrigatório, com guerras verdadeiras, que façam cessar toda a espécie de gracejos;

2.o A estreiteza nacional, que simplifica e concentra. Essa indicação é corroborada por estas outras:

A manutenção do estado militar é o último meio que nos deixaram, tanto para conservar as grandes
tradições como para a implantação do tipo superior do homem — o tipo forte. E todas as circunstâncias que
perpetuam a inimizade e o afastamento entre os Estados se encontram, assim, justificadas...

Que imprevista conclusão para as polêmicas nietzschianas. Nietzsche, que havia desonrado o nacionalismo,
neste grave momento procura um apoio — e encontra o nacionalismo ! Descoberta ainda mais imprevista:
continuando suas investigações, Nietzsche prevê, define e aprova a constituição de um partido que não pode ser
senão uma forma ou reforma da democracia positivista. Discerne as linhas gerais de duas agrupações vigorosas e sãs,
suficientes para disciplinar os homens:

-Um partido da paz, nada sentimental, que proíbe

a guerra a si mesmo e aos seus membros; que os proíbe, também, de recorrer aos tribunais; que provoca
contra si a luta, a contradição, e a perseguição; um partido dos oprimidos, pelo menos por algum tempo; e logo o
grande partido oposto aos sentimentos de rancor e de vingança.

Um partido da guerra, que, com a mesma lógica e a mesma severidade contra si mesmo, procede em
sentido oposto.

Deveremos reconhecer nestes dois partidos as forças organizadas que trarão essa era trágica da Europa que
Nietzsche anuncia? Talvez, mas tenhamos cuidado em hão exagerar a importância destas notas, que não passam de
rápidos apontamentos; como surgiram e passaram pelo espírito de Nietzsche, devem surgir e passar diante de nós.
Sua vista penetra em todos os sentidos, mas não se detém em nenhum. Nenhum puritanismo trabalhador pode
satisfazê-lo, pois sabe que o esplendor das culturas humanas se acha ligado aos privilégios das aristocracias. Nenhum
nacionalismo pode satisfazê-lo, amando, como ama, a Europa e suas inumeráveis tradições.

Que recurso lhe resta? Limitou-se a procurar, em sua própria época, os pontos de apoio de uma cultura mais
elevada; por alguns momentos, acreditou tê-los encontrado. Mas enganara-se, e, em vista disso, afastou-se desses
pontos que impõem direções estreitas que seu espírito não tolera. Em 1875 — e a antigüidade do texto prova a
permanência do conflito — escrevera: "Na vida do pensador há isto de extraordinário: duas inclinações contrárias
obrigam-no a seguir, ao mesmo tempo, duas direções diferentes, mantendo-as sob seu jugo; por uma parte, ele quer
saber, e, abandonando sem se cansar o terreno firme que sustem a vida dos homens, aventura-se nas regiões incertas;
por outra parte, quer viver, e, sem se cansar nunca, procura um lugar onde firmar-se...

Nietzsche tinha abandonado Wagner, e errado pelas regiões incertas. Agora, procura um último refúgio
seguro, e que encontra? O estreito reduto nacionalista. Mas Nietzsche se afasta dele, pois se bem possa ser um
grosseiro recurso, um artifício útil para manter certa solidez nas massas, certo princípio de gosto e severidade, não
pode, nem deve ser a doutrina da elite européia, elite disseminada, inexistente, sem dúvida, à qual se dirigem seus
pensamentos.
Deixa, assim, de pensar no nacionalismo, que é o expediente de um século pobre, e sem se limitar, já, à
investigação das crenças benfeitoras para os humildes — que lhe importam estes? — pensa em Napoleão e em
Goethe, ambos superiores ao seu tempo e aos preconceitos de seus respectivos países. Napoleão desdenha a
revolução, mas capta a sua energia; despreza a França, mas dirige-a; sua ambição é a conquista e a reforma da
Europa. Goethe não tem grande estima pela Alemanha, e pouco se interessa pelas suas lutas: quer possuir e reanimar
todas as idéias e todos os sonhos dos homens, e conservar e enriquecer a vasta herança dos valores morais que a
Europa criou. Napoleão conhecia a grandeza de Goethe, e Goethe observava com alegria a vida do conquistador, ens
realissimum. O soldado e o poeta — um, mantendo os homens na submissão, no esforço e no silêncio; o outro, assis -
tindo, contemplando e glorificando — formam o par ideal que vemos reaparecer em todos os instantes decisivos da
vida de Nietzsche. Este admirou a Grécia de Theogonis e de Píndaro, a Alemanha de Bismarck e de Wagner; um
grande rodeio condu-lo novamente ao seu ideal, a essa Europa irrealizada, da força e da beleza, da qual Napoleão e
Goethe foram, no dia seguinte ao da Revolução, os solitários representantes.

Por uma carta dirigida a Peter Gast em 13 de fevereiro de 1887, sabemos que Nietzsche se achava, nesta
data, pouco satisfeito com o seu trabalho. "Não saí das tentativas, das introduções e das promessas de toda a
espécie..." — escrevia ele; e ajuntava: "O primeiro rascunho do meu Ensaio de uma Reavaliação de Valores está
pronto. Afinal de contas, foi uma tortura, e nem sequer tenho coragem de pensar nele.

Dentro de dez anos farei algo melhor." Qual é a causa desta insatisfação? Ter-se-á cansado dessa tolerância,
dessa condescendência para com as necessidades dos fracos e das massas, que se impusera três meses antes? Sentir-
se-á impaciente por desabafar sua cólera?

As cartas que dirige então a sua mãe e sua irmã (nem todas foram publicadas), permitem-nos chegar até ele
de modo muito íntimo. Escreve a essas duas mulheres de que se encontra separado, com uma ternura que torna difícil
a simulação e até a coragem. Abandona-se como se encontrasse prazer em voltar a ser uma criança para elas. É doce
e obediente para sua mãe, e assina sua carta: "teu vetusto filho". Fala a sua irmã como um camarada, e como se
tivesse esquecido completamente todas as faltas de que antes a acusara. Sabe que ela jamais regressará do longínquo
Paraguai, sente a sua falta e quer-lhe mais do que nunca, por saber que a perdeu. Lisbeth é enérgica e arrisca
valentemente sua vida. Nietzsche admira nela essas virtudes que estima acima de todas e que são, a seu ver, as
virtudes de sua raça, a nobre raça dos condes Nietzki. "Em tudo o que dizes e fazes — escreve-lhe — sinto
intensamente que um mesmo sangue corre por nossas veias..." Ouve-a amàvelmente, mas ela não deixa de lhe dar
conselhos talvez demasiado judiciosos. Já que se queixa de solidão, que procure uma cátedra, que se case. Para
Nietzsche, a resposta é fácil: Onde encontrar uma esposa? E, se por acaso encontrasse alguma teria direito de lhe
pedir que compartilhasse sua vida? E, não obstante, ele sabe a doçura que uma mulher traria à sua vida, e o diz.
Ouçamo-lo:

Nice, 25 de janeiro de 1888.

É preciso que eu te conte uma pequena aventura: Ontem, quando fazia o meu costumeiro passeio, ouvi, não
longe de mim, uma voz e um riso cálido e franco (parecia-me estar ouvindo o teu riso), e, quando a pessoa em
questão passou junto a mim, vi uma encantadora moça de olhos escuros, delicada como uma corça. Isto reanimou
por um momento o meu coração, meu velho coração de filósofo solitário: pensei nos seus, conselhos matrimoniais,
e, durante todo o passeio, não pude mais afastar de mim a imagem daquela jovem e amável criatura. Não há dúvida
de que me seria muito proveitoso ter ao meu lado um ser tão delicioso; mas, para ela, seria igualmente proveitoso?
Não faria esta moça desgraçada com as minhas idéias? E meu coração não se despedaçaria (supondo que a
amasse), ao ver sofrer uma criatura tão encantadora? Não, não! nada de casamento!

Não será por esse tempo que lhe açode ao espírito uma idéia singular e maléfica? A cada instante se
representa in, mente as alegrias de que se acha privado: glória, amor, amizade;

pensa com rancor naqueles que as possuem, e, sobretudo, em Richard Wagner, cujo gênio se vira sempre
tão bem recompensado. Que formosa era, quando Nietzsche a conhecera em Triebschen, aquela incomparável
mulher, Cosima Liszt, que, embora casada, desafiando a maledicência do povo, viera viver com Richard Wagner,
compartilhando suas lutas e ajudando-o no trabalho! Atenta e lúcida, ativa e eficaz, assegurava-lhe o repouso que até
então lhe faltara. Que teria sido dele sem ela? Teria conseguido dominar seu ânimo agitado, impaciente e inquieto?
Teria sido capaz de realizar aquelas grandes obras que sempre anunciava? Cosima apazigua-o e o dirige; graças a ela,
termina a tetralogia, edifica Bayreuth, escreve Parsifal... Nietzsche recorda aqueles admiráveis dias de Triebschen,
quando Cosima o acolhia, ouvia suas idéias e seus projetos, lia seus manuscritos e se mostrava benévola e atenta.
Nietzsche exalta-se. O sofrimento e a irritação deformam suas recordações. Interroga-se: não teria amado Cosima? E
ela mesma, não o teria amado? Nietzsche gostaria de acreditar nisso e, efetivamente, acaba acreditando. Sim, houve
amor entre eles, e Cosima tê-lo-ia salvo como salvara Wagner, se, por um favorável acaso, o tivesse conhecido al-
guns anos antes. Mas o acaso sempre fora adverso a Nietzsche, e também nesta ocasião Wagner o despojara, ficando
com tudo: glória, amor e amizades.

Nas últimas obras de Frederico Nietzsche se adivinha este estranho romance. Um mito grego ajuda-o a
expressar e velar o pensamento: o mito de Ariadne, Teseu e Baco. Teseu se extraviara; Ariadne, encontrando-o,
conduzira-o até ao fundo do labirinto; mas" Teseu é pérfido, e abandona sobre uma rocha a mulher que o salvara; e
Ariadne morreria, só e desesperada, se Baco não tivesse acudido, Baco-Dionísio, que a ama. O enigma dos três
homens ,é bastante transparente: Ariadne é Cosima; Teseu, Wagner e Baco-Dionísio, Nietzsche.

Em 31 de março escreve novamente, e a sua linguagem é a de um homem perdido:

Estou perdido, oprimido noite e dia de maneira insuportável, pelo dever que me foi imposto (mir gestellt
ist), e pelas condições de minha vida, absolutamente contrárias ao cumprimento deste dever. É nisto, sem dúvida,
que reside a causa da minha angústia.

... Minha saúde, graças a um inverno extraordinariamente benigno, a uma boa alimentação e aos passeios
que dou, continua muito boa. Só a pobre alma está doente. Por outro lado, não ocultarei que este inverno foi muito
rico em aquisições espirituais para a minha grande obra; assim, não é õ espírito que está enfermo, nem nenhuma
outra coisa, com exceção da pobre alma...

No dia seguinte, Nietzsche abandona Nice. Antes de subir a Engadina, quer fazer uma tentativa em Turim,
cujo ar seco e espaçosas ruas lhe haviam elogiado. Viaja com dificuldade, perde suas maletas, irrita-se, discute com
os empregados e permanece dois dias doente em Sampierdarena, perto de Gênova. Imediatamente depois, passa três
dias em Gênova descansando, com o espírito ocupado pelos recursos felizes que ali encontra. "Dou graças ao meu
destino — escreve a Gast — por me haver conduzido a esta cidade onde a vontade se eleva, e a covardia não é
possível. Jamais me senti tão satisfeito como nesta peregrinação a Gênova..."

No sábado, 6 de abril, chega a Turim, morto de cansaço. "Já não sou capaz de viajar só — escreve a Gast,
na mesma carta. — Agito-me demais e tudo me afeta estupidamente..."

III. EM DIREÇÃO AS TREVAS

Suspendamos nosso relato e previnamos o leitor: o pensamento de Nietzsche, cuja história temos seguido
até aqui, já não tem história. Uma influência, que não vem do espírito, mas do corpo, altera-o. Dizem alguns que
Nietzsche já estava louco de há muito, o que é aceitável, dada a impossibilidade de precisar o diagnóstico. Mas, pelo
menos, a vontade e a reflexão não tinham desaparecido nele. Ainda sabia se conter e corrigir-se. Na primavera de
1888 perde estas faculdades; sua inteligência não se obscurecera ainda e não escreve uma só palavra que não seja
penetrante e clara. Sua lucidez é extrema, mas desastrosa: só se exercita para destruir. Quando se estudam os últimos
meses desta vida, é como se se assistisse ao trabalho de uma máquina de guerra que a mão humana já não governa.

Frederico Nietzsche abandona aquelas investigações morais que sustiveram, enriqueceram e elevaram a sua
obra até então. Recordemos a carta dirigida a Peter Gast em fevereiro de 1888: "Encontro-me num estado de
irritabilidade crônica, sobre o qual me concedo, nos melhores momentos, uma espécie de trégua, que não é,
seguramente, das mais gratas, adotando, como adota, a forma de um excesso de rudeza..." Estas palavras esclarecem
os três próximos livros: O Caso Wagner, O Crepúsculo dos ídolos e O Anticristo.

Apressemos a história destes meses em que Nietzsche deixa inteiramente de ser ele próprio.

Em 7 de abril chegou-lhe a Turim uma carta imprevista: Jorge Brandes comunicava-lhe a intenção de
consagrar a sua filosofia uma série de conferências: "Irrita-me o falo de ninguém o conhecer aqui, e quero fazê-lo
conhecido de um só golpe. "Eis aqui, em verdade, meu caro senhor, uma surpresa! — responde Nietzsche. —
Como encontrou coragem para falar em público de um vir obscurissimus? Imaginará o senhor, talvez, que eu seja
conhecido no meu país? Muito longe disso! Tratam-me, nele, como algo singular e absurdo que não é preciso levar a
sério... A longa resistência exasperou um pouco o meu orgulho — acrescenta para terminar. — Sou um filósofo?
Que importa!"

A carta de Brandes deveria ter sido para ele uma grande alegria e, se estivesse em estado favorável, talvez
fosse a sua salvação. Pelo menos, é quase seguro que deve ter-lhe dado certa satisfação; embora, para dizer a
verdade, apenas se encontrem rastos dela. É tarde, e Nietzsche já entrou no caminho a que o arrasta o seu destino.
Durante esses dias de fadiga e tensão, fez uma das mais importantes leituras de sua vida — a última. Desejando
conhecer o modelo dessas sociedades hierarquizadas cuja renovação esperara, consegue uma tradução dás leis de
Manu. Lê e sua esperança não se vê traída. Este código, que estabelece os costumes e a ordem de quatro castas; esta
linguagem, tão bela, tão simples e tão humana na sua severidade; esta constante nobreza e, por fim, esta impressão de
segurança e de doçura que se desprendem do conjunto do livro — entusiasmaram-no. Leiam-se certos mandamentos
de suas primeiras páginas:

Quando nasce um menino varão, antes de se cortar o cordão umbilical, prescreve-se a seguinte cerimônia:
dé-se-lhe mel e manteiga clarificada em uma colher de ouro, recitando as palavras sagradas.

Que seu pai faça cumprir a cerimônia de lhe dar um nome no décimo ou undécimo dia, ou em um dia lunar
propicio, em um momento favorável, sob a influência de um astro venturoso.

Que o nome de um brâmane exprima, com o primeiro dos seus nomes, o favor propício; o de um kchatrya,
o poder; o de um vaisya, a riqueza; o de um sudra, a abjeção.

Que o nome de uma mulher seja fácil de se pronunciar, doce, claro, agradável, e propício; que termine em
vogais longas e seja semelhante a palavras de bênção...

Nietzsche admira e copia não poucos trechos. No velho texto hindu reconhece esse olhar goethiano, cheio
de amor e de boa vontade; e nele ouve esse Canto d'amore que ele mesmo havia querido cantar.

Mas, ao mesmo tempo em que admira, julga. Esta ordem hindu tem por fundamento uma mitologia que
jamais conseguiria enganar os sacerdotes que a interpretam. "Estes sábios . escreve ele —não acreditam em nada
disso; de outro modo não o poderiam inventar..." As leis de Manu são mentiras hábeis e formosas. Coisa
indispensável: posto que a natureza é um caos, uma irrisão de todo o pensamento e( de toda a ordem, aquele que
aspirar à fundação de uma ordem deverá afastar-se dela e conceber um mundo ilusório. Estes mestres construtores,
os legisladores hindus, são também mestres na arte de mentir, e, se Frederico Nietzsche não se pusesse em guarda,
seu gênio o teria arrastado pelo caminho da mentira.

Eis aqui o instante de uma crise da qual só conhecemos a origem e o fim. Nietzsche está só em Turim;
ninguém assiste ao seu trabalho e ele a ninguém se confia. Que pensa? Estuda, sem dúvida, e medita sem cessar neste
velho livro ário que lhe oferece o modelo de suas idéias. Más, se o código de Manu é o mais belo monumento de
perfeição estética e social, é também o mais belo monumento de picardia intelectual, e nada há que Nietzsche possa
amar mais e detestar mais. Reflete, se assombra, e suspende o trabalho. Quatro anos antes, uma dificuldade
semelhante impedira-o de terminar o Zaratustra. Nem uma palavra já, do Super-homem e do Retorno Eterno. As
fórmulas ingênuas foram abandonadas; más as tendências que elas encobriam: uma — lírica, ávida de instruções e de
ordem, por ilusória que fosse; a outra — Crítica, ávida de destruição e de lucidez — são invariáveis e se exercitam
aqui. Nietzsche vacila: afinal, que fará? Dará ouvidos àqueles brâmanes, àqueles sacerdotes, astutos condutores de
homens? Não. A lealdade é uma virtude a respeito da qual não admite transações. Mais tarde, muito mais tarde, tal -
vez dentro de alguns séculos, os homens, mais conscientes do sentido de suas vidas, da origem e do valor dos seus
instintos, do mecanismo das hereditariedade — possam tentar novas legislações. Hoje não o podem, pois só
conseguiriam acrescentar mentiras e hipocrisias às velhas mentiras e às velhas hipocrisias que já lhes servem de
empecilho. Nietzsche se afasta das idéias que desde seis meses seguia com tanta energia, e torna a se encontrar
subitamente, como quando tinha trinta anos, indiferente a tudo o que não seja o serviço da verdade.

"Tudo o que é suspeito e falso deve ser trazido à luz — escrevia então. — Não queremos construir
prematuramente, não sabemos se podemos construir e se não é preferível não construir nada. Há pessimistas
covardes e resignados; não queremos ser destes."

Quando assim falava, Nietzsche possuía a força suficiente para contemplar com calma um trabalho
atenuado pela esperança. Essa força de sua juventude e essa serenidade dos dias de antigamente, perderam-se em 15
anos, e toda esperança o abandonou. Sua alma enferma não resiste à irritabilidade. Um acontecimento esclarece e
finalmente, põe ponto final às nossas conjeturas: Nietzsche renuncia a compor :i sua grande obra e dedica-se ao
trabalho de escrever um libelo.

A época da serenidade passou. Ferido de morte, Nietzsche quer devolver golpe por golpe. Volta-se contra
Richard Wagner, o falso apóstolo "do Parsifal, o ilusionista que seduzira sua época. Antigamente, Nietzsche serviu-
o. Agora, é preciso que o combata e o vença. A paixão é o dever impelem--no á isso. "Eu criei o wagnerianismo —
pensa — eu o devo destruir." Quer libertar, mediante um ataque violento, os seus contemporâneos, que, menos fortes
que ele, continuam submetidos ao prestigio daquela arte. Necessita humilhar aquele homem ao qual tanto quisera, e
ao qual quer ainda; necessita difamar o mestre que tão benéfico lhe fora nos anos de juventude; necessita, enfim,
(estaremos enganados?) vingar-se de uma felicidade perdida. Insulta Wagner: é um decadente, um farsante, um
Cagliostro moderno. Esta indelicadeza — fato inaudito na vida de Nietzsche — bastaria para provar a sua
enfermidade latente.

Não sente o menor escrúpulo. Uma alegre excitação favorece e abrevia o seu trabalho. Os alienistas
conhecem estes estados singulares que precedem as últimas crises da paralisia geral- Frederico Nietzsche parece
abandonar-se a uma superabundante alegria. Atribui esse bem-estar ao clima de Turim, que experimenta pela
primeira vez.

Turim, meu querido amigo — escreve a Peter Gast — , é uma descoberta capital. Falo-lhe disso pensando
que também você poderá aproveitar, Meu humor é bom, trabalho desde a manhã até à noite — um folheto sobre a
música ocupa os meus dedos — digiro como um semi-deus; durmo, apesar do barulho noturno dos carros: outros
tantos sintomas da adaptação de Nietzsche a Turim.

Achando-se na Engadina em julho, algumas semanas úmidas e frias fazem-lhe mal. Perde o sono. A
exaltação alegre desaparece, ou se transforma em humor amargo e febril. A senhorita de Salis-Marschlins que contou
suas recordações num interessante folheto, viu-o então, depois de uma separação de dez meses, e notou a mudança.
Observando-o com atenção, viu que ele passeava sempre sozinho, e com estranha precipitação. Cumprimentava,
também, muito depressa, detendo-se apenas um instante, ou, mais geralmente ainda, passando de largo, a grandes
passos, como que espicaçado pela pressa de voltar à hospedaria para anotar as idéias que durante o caminho lhe
tinham acudido ao espírito. Nietzsche fez algumas visitas à senhorita de Salis-Marschlins, e não lhe es condeu suas
preocupações. Receava as aperturas pecuniárias, pois o capital que havia constituído sua pequena fortuna estava
quase esgotado; e poderia, com os três mil francos de pensão que lhe concedia a Universidade de Basiléia, atender às
necessidades da sua vida e à publicação, sempre onerosa, de seus livros? Em vão diminuía suas viagens e
em vão se limitava às acomodações mais econômicas e à alimentação mais simples: seus recursos chegavam
ao fim.

Termina o O Caso Wagner, acrescenta ao seu texto uma; introdução e um post-scriptum, um segundo post-
scriptum, e um epílogo. Dir-se-ia que sente a necessidade de aumentar sua obra em cada dia, e cada dia fazê-la mais
áspera. Nó instante, não se acha satisfeito, e sente, depois de haver escrito, certos remorsos.

Que este folheto tão ousado— escreve a Peter Gast, em 11 de agosto de 1888 — lhe tenha agradado, é
para mim um considerável alivio. Há momentos, sobretudo durante a noite, em que não me sinto bastante corajoso
para tantas loucuras e rudezas. Tenho dúvida com respeito a algumas passagens; talvez tenha ido demasiado longe
(não nas coisas, mas no modo de as exprimir). Talvez se pudesse suprimir a nota em que falo das origens familiares
de Wagner...

Por esta mesma época, dirige à Senhorita de Meysenbug uma carta que dá bastante que pensar:

Dei aos homens o livro mais profundo e isto se paga caro... Ser imortal custa algumas vezes a vida. E sem-
pre em meu caminho o cretinismo de Bayreuth! O velho sedutor Wagner, embora morto, continua me roubando
aqueles poucos homens que a minha ação podia influenciar. No entanto, na Dinamarca — é absurdo dizê-lo! —
celebraram-me neste inverno. O doutor Jorge Brandes, de espírito tão vivo, atreveu-se a falar de mim na Uni-
versidade de Copenhague. E com êxito brilhante! Sempre mais de trezentos ouvintes! Em Nova- York prepara-se
algo semelhante. Sou o espírito mais independente que existe na Europa, e o único escritor alemão — e isto já é
alguma coisa!

E acrescenta, em post-scriptum: "É preciso ter uma alma grande para suportar o que escrevo. Assim, tenho a
sorte -de irritar contra mim tudo o que é fraco e virtuoso." A indulgente senhorita de Meysenbug compreendeu que
nestas linhas havia uma censura dirigida a ela, mas respondeu docemente, como era seu costume: "Diz que tudo o
que é fraco 6 virtuoso está contra você? Não seja tão paradóxico. A virtude não é fraqueza, mas força, como já o
dizem exaustivamente as palavras. E não é você a viva contradição de tudo p que diz? Pois você é virtuoso, e o
exemplo de MUI vida, se os homens a pudessem conhecer, havia de convencê-los melhor que seus livros. Não tenho a
menor dúvida-" Nietzsche respondeu-lhe: "Li com verdadeira emoção sua encantadora carta, minha querida amiga;
sem dúvida, você tem razão e eu também..."

Que vida precipitada! Durante o dia caminha, compondo suas frases e aguçando suas idéias; à noite
trabalha, e muitas vezes está ainda escrevendo quando, às primeiras luzes da madrugada, o dono da hospedaria se
levanta e sai sem fazer ruído, para seguir na montanha, a pista dos cabritos monteses. "Mas não serei eu também, um
caçador de cabritos moriteses?" — pensa Nietzsche sem interromper o seu trabalho.

O Caso Wagner está terminado. Nietzsche começa um outro libelo, não contra um homem, mas contra as
idéias, contra todas as idéias que os homens encontram para orientar seus atos. O mundo metafísico não existe, e os
racionalistas sonham; não existe o mundo moral, e os moralistas sonham. Que resta, pois? "O mundo das aparências,
talvez? Não! Com o mundo da verdade, abolimos o mundo das aparências". Existe, apenas, a energia renovada a
cada instante: Incipiet Zaratustra. Nietzsche procura um título para este novo folheto. Sua primeira idéia é chamá-la
ócios de um psicólogo. Em seguida, imagina: O Crepúsculo dos ídolos, ou a filosofia do martelo.

Em 7 de setembro manda o manuscrito ao editor, dizendo--lhe que esse livrinho deverá comover,
escandalizar, pôr em tensão os espíritos e prepará-los para receber sua grande obra.

Pensa nela constantemente, e apenas terminado o segundo folheto recomeça o trabalho. Mas já não se
reconhece a obra serena e goethiana que o autor projetara. Ensaia novos títulos: Nós, os imoralistas, Nós, os
hiperbóreos, mas acaba de decidindo pelo título antigo: Vontade de domínio, ensaio de uma reavaliação de todos
os valores.

De 3 a 30 de setembro, em vinte e sete dias, escreve uma primeira parte: O Anticristo, e é o seu terceiro
libelo. Desta vez fala claramente; indica-nos o seu sim e o seu não, sua linha reta, seu fim; exalta a mais brutal
energia. Todos os imperativos morais, tenham sido ditados por Moisés ou por Manu, pelo povo ou pelas minorias
selecionadas — são falsos. A Europa esteve perto da grandeza, escreve ele, quando, nos primeiros anos do século
XVI foi possível esperar que César Bórgia se apoderasse do papado.

Devemos aceitar como definitivas estas idéias, por serem as últimas expressadas por Nietzsche?

Ao mesmo tempo em que escreve o Anticristo, volta aos seus Poemas Dionisíacos, esboçados em 1884, e
terminados. Neles encontramos a expressão segura dos pressentimentos que então o agitavam:

Descamba o sol.

Logo não terás mais sede,

coração abrasado!

Uma frescura impregna o ar:

aspiro os sopros de bocas desconhecidas;

O grande frio chega...

Ao meio-dia, o sol fixo e escaldante cai sobre minha cabeça.

Eu vos saúdo, a vós que chegais,

oh ventos rápidos,

oh frescos espíritos do entardecer!

O ar circula, sereno e puro. Não me lançou um olhar oblíquo e sedutor esta noite?

Permanece firme e animoso, coração! Não me perguntes: por quê?

Anoitecer de minha vida! Descamba o sol.

Em 21 de setembro, ele se acha em Turim. Em 22 aparece nas livrarias O Caso Wagner. Aqui está, afinal,
um livro de que os jornais dizem alguma coisa. Mas os seus comentários exasperam Nietzsche. Salvo um autor suíço,
Carl Spitteler — ninguém o compreendeu. Cada palavra lhe permite medir a ignorância em que o público se encontra
de sua obra. Desde dez anos procura e segue idéias encontradas somente por ele. Os críticos alemães não o
entenderam; sabem, apenas, que um tal senhor Nietzsche, discípulo de Wagner, escrevera, havia tempo, algumas
coisas em louvor de seu mestre; assim, quando lêem, agora, O Caso Wagner a única coisa que lhes ocorre dizer é que
o senhor Nietzsche acaba de romper com seu mestre. Isto, no entanto, não o incomoda muito; mas, em troca,
chegam-lhe ao vivo, as censuras de alguns dos poucos amigos que ainda tem. Jacob Burckhardt não se manifesta, e a
senhorita de Meysenbug escreve uma carta indignada e severa:
Estas são coisas — responde-lhe Nietzsche — sobre, as quais não posso admitir contestação. Sou, em
questões de decadência, a instância mais alta que há sobre a terra; estes homens de hoje, com seu instinto
lamuriento c degenerescente, deviam sentir-se muito satisfeitos por lerem junto a si alguém capaz de lhes Oferecer
um vinho generoso nos mais sombrios momentos. Seguramente, O fato de Wagner ter conseguido fazer com que
acreditas sem nele é uma prova de gênio, mas este é o gênio de mentira... e eu tenho a honra de ser o contrário: um
gênio da verdade.

Apesar desta agitação, suas cartas exprimem num felicidade inaudita. Não há nada que não admire. O
outono esplêndido, as ruas, as galerias, os palácios, os cafés de Turim, são magníficos; as refeições, suculentas; os
preços, módicos. Digere bem, dorme maravilhosamente. Ouve algumas operetas francesas e nada lhe parece tão
perfeito como este gênero ligeiro, "paraíso de todas as delicadezas". Assiste a um concerto no qual cada obra, seja de
Beethoven, Schubert, Rossaro, Goldmark, Vilbac ou Bizet — lhe parece igualmente sublime. "Não parei de chorar...
— escreve a Peter Gast. — Creio que Turim, tanto do ponto de vista musical, como de todos os. outros, é a cidade
mais sólida que conheço."

Poder-se-ia esperar que esta embriaguez evitasse a Nietzsche a consciência do destino que o aguarda, mas
não é assim. Algumas palavras, poucas mas esclarecedoras, indicam sua clarividência. Sente a aproximação do mal.
Sua razão foge-lhe. e ele percebe a fuga. Em 13 de novembro de 1888, manifesta a Peter Gast o desejo de o ver ao
seu lado, e sua pena pela impossibilidade de ele vir; é essa a sua queixa constan te, cuja mesma constância diminui
seu alcance. Nietzsche, que o sabe, previne o amigo: "Interprete como trágico o que lhe digo." Em 18 de novembro
escreve uma carta que parece transbordante de alegria. Fala das operetas que acaba de ouvir, de Judie e de Milly
Meyer: "Para nossos corpos e nossas almas, querido amigo, a salvação é uma pequena intoxicação parisiense." E
acrescenta, ao terminar: "Peço-lhe que também interprete como trágica esta carta."

Assim, o estado de alegria física a que o leva a demência iminente, não impede nem os pensamentos, nem a
angústia. Deseja reunir pela última vez as recordações e as impressões que a vida lhe deixara, e compõe uma obra
estranha, triunfal e desesperada. Vejamos os títulos dos capítulos. Porque sou tão prudente; Porque sou tão sábio;
Porque escrevi tão bons livros; Porque sou uma fatalidade; Glória e Eterni dade... Esta última obra tem o titulo:
Ecce Homo. Que quer dizer com isso? Que é um Anticristo, ou um novo Cristo? Ambos ao mesmo tempo. Como
Cristo, crucificou-se Cristo é homem e Deus; venceu as tentações a que se fizera acessível. Nietzsche é homem e
super-homem: conheceu todos os desejos fracos e todos os pensamentos covardes — e repudiou-os. Ninguém antes
dele fora tão terno e tão rude ao mesmo tempo; nenhuma realidade o atemorizou. Tomou sobre si não os pecados dos
homens, mas todas as suas paixões em toda a sua força. "Jesus crucificado — escreve — é um anátema contra a vida;
Dionísio despedaçado é uma promessa dê vida, de vida indestrutível, eternamente renascente..." O solitário cristão
tinha seu Deus; Nietzsche vive só e sem Deus. O sábio antigo tinha seus amigos; Nietzsche vive só e sem amigos. O
estóico tinha fé no sentido do seu esforço; Nietzsche vive no esforço e sem fé. E, no entanto, vive e consegue cantar
naquele cruel momento supremo, seus hinos dionisíacos. "Não sou um santo — escreve — mas um sátiro...
Escrevi tantos livros, e tão belos — como não deveria ser grato à vida?"

Isto não é verdade. Nietzsche não é um sátiro, mas um santo, um santo ferido que deseja morrer. É grato à
vida, diz, mas isso não é certo; sua alma está cheia de amargura. Mente, mas a mentira é às vezes, uma vitória — a
única que resta ao homem. Quando Arria, moribunda em conseqüência do ferimento que se infligirá a si própria, diz
ao esposo, passando-lhe a arma: Pete, non dolet..., mentiu, mas esta mentira foi a sua glória. "Sua santa mentira —
escrevia Nietzsche em 1879 — obscurece todas as verdades que os moribundos ,têm proferido." Não seria esta a
ocasião de repetir um juízo semelhante? Frederico Nietzsche não triunfa: Ecce Homo. Está destruído, mas não o
confessa. E poeta e deseja que o seu grito de agonia seja um canto; um último transporte lírico eleva sua alma e lhe
dá força para mentir:

Dia de minha vida!

Eis que resvalas já para a noite!

Já teu olho brilha

meio cego;

já as gotas de teu orvalho

saem espalhadas como lágrimas;

já se estende, serena, sobre o mar leitoso,


tua amada púrpura,

tua última e tardia serenidade...

Em torno, tão só as vagas e seu jogo.

O que antes fora difícil

naufragou num azul olvido.- —

Inativa, ali vaga a minha barca.

Tempestades, viagens... quão esquecidos!

Os desejos e as esperanças submergiram;

a alma e o mar estão imóveis.

Sétima solidão!

Jamais senti

tão perto de mim a doce segurança,

nem mais cálidos os raios do sol.

— E não brilha ainda a neve do meu cume?

Prateado e rápido, um peixe

resvala e foge, ao lado de meu barco...

No entanto, sente chegar até ele a glória tanto tempo desejada. Jorge Brandes, que vai repetir e imprimir
suas conferências, consegue-lhe um novo leitor, o sueco Augusto Strindberg. Cheio de alegria, Nietzsche dá a notícia
a Peter Gast: Strindberg escreveu-me — diz "- "pela primeira vez recebo uma carta na qual encontro um acento
histórico e mundial (Welthistorik)." Em São Petersburgo preparam uma tradução do seu Caso Wagner, e em Paris,
Hipólito Taine lhe arranja um correspondente: João Bourdeau, redator de Débats e da Revue des Deux Mondes.
"Afinal — escreve Nietzsche — o grande canal de Panamá para a França está aberto..." Seu antigo camarada,
Deussen, manda-lhe dois mil francos, oferta de um desconhecido que deseja ajudar a publicação de suas obras. A
senhorita de Salis-Marschlins oferece, com o mesmo fim, mais mil. Talvez Nietzsche fosse feliz, mas já era
demasiado tarde.

Gomo se passaram esses últimos dias? Ignoramo-lo. Vivia em casa de uma família modesta, que lhe
proporcionava moradia e, se o quisesse, refeições. Corrigia as provas de Ecce Homo acrescentando ao texto primitivo
um post-scriptum e, depois, um poema ditirâmbico; ao mesmo tempo, preparava a publicação de um novo opúsculo:
Nietzsche contra Wagner.

"Antes de lançar o primeiro volume de minha grande obra — escreve ao editor — é necessário preparar o
público; é necessário criar uma verdadeira tensão; ou acontecerá o que aconteceu com o Zaratustra...." Em 8 de
dezembro escreve a Peter Gast: "Reli Ecce Homo pesando cada palavra em uma balança de ouro; esta obra divide,
por assim dizer, a história da humanidade em duas partes: o mais alto superlativo da dinamite."" Em 29 de dezembro
escreve ao editor: "Penso como o senhor: não passemos de mil exemplares para Ecce Homo; para uma obra de
grande estilo, mil exemplares já é um número pouco razoável na Alemanha. Na França, digo-Ihe com a maior
seriedade, conto com uma tiragem de 80.000, ou 40.000 exemplares." Em 2 de janeiro, um novo bilhete (os
caracteres da escrita são grossos e disformes): "Devolva-me o poema: adiante cora Ecce!

Segundo uma tradição difícil de comprovar, durante estes últimos dias, Nietzsche tocara freqüentemente
para seus hospedeiros fragmentos de Wagner, dizendo-lhes: "Eu o conheci", e falando-lhes de Triebschen.
Realmente, não é improvável que estas recordações de seus melhores dias 6 tenham visitado então, impelindo-o a
contá-los àquela pobre gente que nada sabia de sua vida. Acabava de escrever, em Ecce Homo:

Já que falo aqui das horas de gás que encontrei na minha vida, sinto necessidade de exprimir minha grati-
dão pelo que foi, e muito, o mais profundo e mais satisfatório dos meus repousos. Tal foi, sem dúvida alguma, minha
intima amizade com Richard Wagner. Faço justiça ao resto de minhas relações humanas; mas por coisa alguma
deste mundo desejaria esquecer os dias de Triebschen, dias de confiança, de alegria, de sublimes acasos, de
profundo olhar... Ignoro o que Wagner foi para outros. Pelo nosso céu jamais passou uma nuvem.

Em nove de janeiro de 1889, achando-se Franz Overbeck com sua esposa à sacada de sua casinha de
Basiléia, viu o velho Burckhardt bater à sua porta. Como Burckhardt não era dos seus íntimos, Overbeck teve o
pressentimento de que Nietzsche, amigo comum, era a causa daquela visita. Desde algumas semanas ele vinha
recebendo de Turim cartas inquietantes. Burckhardt confirmou esses temores. Trazia uma carta muito longa, e que
não deixava lugar a dúvidas: Nietzsche enlouquecera: "Eu sou Fernando de Lesseps — dizia; —sou Prado; sou
Chambige (os dois assassinos de que falavam, então, os jornais de Paris); fui enterrado duas vezes este outono. .-."

Poucos momentos depois, Overbeck recebia uma carta semelhante, e, todos os amigos de Nietzsche se
inteiraram, de modo igual, da catástrofe. Ele escrevera a todos.

Amigo Jorge! — escreveu a Brandes — desde que tu me descobriste, já não é raro me encontrar; o difícil,
agora, é perder-me!

O crucificado.

Peter Gast recebeu umas palavras cujo trágico significado não compreendeu:

Ao meu mestre Pietro.

Canta-me um novo canto. O mundo é claro, e todos os céus se regozijam.

O crucificado.

"Amo-te, Ariadne" — escreveu a Cosima Wagner.

Overbeck sé pôs imediatamente em marcha. Encontrou Nietzsche vigiado pelos seus hospedeiros,
martelando no piano com o cotovelo, cantando e gritando sua glória dionisíaca. Conseguiu conduzi-lo a Basiléia e
fazê-lo entrar, sem muito trabalho, num sanatório, onde não demorou a vir buscá-lo sua mãe.

Ainda viveu dez anos. Os primeiros foram terríveis, e os últimos um pouco melhores. Às vezes chegou-se a
ter, até, alguma esperança. De vez em quando, Nietzsche se recordava de sua obra:

— Não escrevi livros muito lindos? — perguntava.

E quando lhe mostravam algum retrato de Wagner, dizia:

Gostei muito desse homem.

Estas voltas à consciência podiam ter sido atrozes, mas parece que não o foram. Um dia, sua irmã, que se
achava sentada junto dele, não pôde conter as lágrimas.

— Porque choras, Lisbeth? — disse ele. — Acaso não somos felizes?

A inteligência destruída não pôde ser salva, mas a alma permaneceu inalteravelmente doce e encantadora,
acessível às impressões puras.

Certo dia (um jovem, que trabalhava na edição de seus livros acompanhava-o nos curtos passeios), viu
Nietzsche na beira do caminho uma mocinha cujo aspecto deve tê-lo atraído singularmente. Parou diante dela,
separando com as mãos os cabelos caídos sobre o rosto, e contemplando com um sorriso aquela cândida face, disse:

— Não se diria a própria imagem da inocência?

Frederico Nietzsche morreu em Weimar, em 25 de agosto de 1900.

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