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Schola semper reformanda

CURSO DE LICENCIATURA EM MÚSICA

VITOR LEANDRO KAIZER

UMA SINFONIA PLATÔNICA: A MÚSICA DE GUSTAV MAHLER COMO


CONCRETIZAÇÃO DA FILOSOFIA ESTÉTICO-MUSICAL DE PLATÃO

IVOTI
2017
VITOR LEANDRO KAIZER

UMA SINFONIA PLATÔNICA: A MÚSICA DE GUSTAV MAHLER COMO


CONCRETIZAÇÃO DA FILOSOFIA ESTÉTICO-MUSICAL DE PLATÃO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


como requisito parcial para obtenção do título
de Licenciado, pelo Curso de Licenciatura em
Música do Instituto Ivoti.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Vagner Soares


Pastorini.

IVOTI
2017
Dedico este trabalho ao meu irmão Platão, pelo seu silêncio e
compreensão ilimitados.
AGRADECIMENTOS

Ao meu atencioso orientador professor Dr. Eduardo Vagner Soares Pastorini, por
acreditar nos meus propósitos e possibilitar a concretização deste trabalho que sempre existiu
dentro de mim.
Aos meus pais e amigos, Umberto Leandro Kaizer e Maria Salete Klassmann Kaizer,
por haverem me dado o que só o amor sabe dar.
Ao meu irmão e amigo, Éverton Felipe Kaizer, por me fazer acreditar mais uma vez
naquele meu antigo sonho de música.
À minha esposa, irmã e amiga, Daiane Machado Kaizer, por acreditar em mim e tornar
a minha vida quase completa.
À feliz memória da minha amada vó Edi, a minha “segunda mãe”.
Aos benditos Mestres da música, em especial a Bach, por sua divina Ária da corda Sol
que tocou na hora e no lugar exato.
Por fim, à Gnosis, por haver reacendido a flama do meu coração.
“O melhor da música não se pode achar nas notas.”
Gustav Mahler
RESUMO

Neste trabalho se inquiriu sobre as concepções artístico-filosóficas do compositor


Gustav Mahler para verificar se estão, ou não, em acordo com os ideais da filosofia musical
de Platão, pois este último outorga à música a capacidade de infundir na alma – na psique
humana –, as virtudes que essa deixou de possuir depois de haver perdido a sua conexão com
o mundo espiritual. Para se chegar às respostas foi necessário, primeiro, conhecer os
principais conceitos platônicos sobre música, e arte em geral, e posteriormente debatê-los com
as opiniões de pensadores contemporâneos para que não restem dúvidas quanto a essas
concepções. Em seguida, essas ideias platônicas foram sintetizadas em apenas seis conceitos e
apresentados em um quadro – que chamei de Modelo Platônico. Após esses procedimentos,
pesquisaram-se três importantes biógrafos do compositor com o intuito de comparar as
concepções de Platão e de Mahler quanto à música. Neste trabalho, de cunho qualitativo, foi
efetuada uma pesquisa bibliográfica baseada nos preceitos metodológicos de análise de
conteúdo, de Lawrence Bardin e se concluiu que as concepções artísticas Mahler são análogas
aos pressupostos filosóficos do modelo platônico idealizado nesta pesquisa.

Palavras-chave: Arte. Música. Filosofia. Estética musical. Platão. Gustav Mahler.


RESUMEN

En este trabajo se inquirió sobre las concepciones artístico-filosóficas del compositor


Gustav Mahler para verificar si están o no de acuerdo con los ideales de la filosofía musical
de Platón, pues este último otorga a la música la capacidad de infundir en el alma – en la
psique humana –, las virtudes que ésta dejó de poseer después de haber perdido su conexión
con el mundo espiritual. Para llegar a las respuestas fue necesario, primero, conocer los
principales conceptos platónicos sobre música, y arte en general, y posteriormente debatirlos
con las opiniones de pensadores contemporáneos para que no queden dudas en cuanto a esas
concepciones. En seguida, esas ideas platónicas se sintetizaron en sólo seis conceptos y
presentados en un cuadro - que llamé de Modelo Platónico. Después de estos procedimientos,
se han investigado tres importantes biógrafos del compositor con el fin de comparar las
concepciones de Platón y de Mahler en cuanto a la música. En este trabajo, de cuño
cualitativo, se efectuó una investigación bibliográfica basada en los preceptos metodológicos
de análisis de contenido, de Lawrence Bardin y se concluyó que las concepciones artísticas de
Mahler son análogas a los presupuestos filosóficos del modelo platónico idealizado en esta
investigación.

Palabras clave: Arte. Música. Filosofía. Estética musical. Platón. Gustav Mahler.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Escola de Atenas ..................................................................................................... 20


Figura 2 – Pensadores contemporâneos da estética da música ................................................. 52
Quadro 1 – Principais conceitos de Platão e suas correspondentes da estética musical
contemporânea .......................................................................................................................... 53
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 10
2 REVISÃO DE LITERATURA ............................................................................ 12
3 A MÚSICA E A SUA ORIGEM DIVINA .......................................................... 16
4 A MÚSICA SEGUNDO PLATÃO ...................................................................... 20
5 O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO DA ESTÉTICA DA MÚSICA ..... 26
5.1 A MÚSICA NA VISÃO DE HEGEL ..................................................................... 26
5.2 A MÚSICA NA VISÃO DE HANSLICK.............................................................. 29
5.3 A MÚSICA NA VISÃO DE DAHLHAUS ............................................................ 32
5.4 A MÚSICA NA VISÃO DE EGGEBRECHT ....................................................... 33
5.5 A MÚSICA NA VISÃO DE FUBINI .................................................................... 35
5.6 A MÚSICA NA VISÃO DE RIEMANN ............................................................... 36
5.7 A MÚSICA NA VISÃO DE PAHISSA ................................................................. 41
6 METODOLOGIA ................................................................................................ 48
6.1 FERRAMENTA METODOLÓGICA .................................................................... 48
6.2 MODELO ESTÉTICO PLATÔNICO .................................................................... 50
7 A MÚSICA SEGUNDO MAHLER .................................................................... 54
7.1 RELIGIOSIDADE ................................................................................................. 59
7.2 SENTIDO ÉTICO .................................................................................................. 63
7.3 FORMA .................................................................................................................. 66
7.4 TÉCNICA............................................................................................................... 71
7.5 MÚSICA ................................................................................................................ 74
7.6 ARTISTA................................................................................................................ 82
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 86
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 90
10

1 INTRODUÇÃO

As concepções de que a música é um dom divino proveniente das Musas, de que os


poetas cantam porque se sentem inspirados e que, como abelhas, colhem o néctar-melodia das
flores para entregá-lo aos humanos, que as melodias que eles cantam não vêm das suas
mentes, mas, sim, da divindade por intermédio das suas mentes e, sobretudo, a visão de que a
música foi dada aos seres humanos para que esses, que caíram na desgraça, pudessem ter
contato com a harmonia dos mundos e com o ritmo do universo, são todas premissas
filosóficas e espirituais presentes em Platão e sustentadas por diversas tradições mitológicas.
Quando se realiza o estudo aprofundado dessas concepções filosóficas e as contrasta
com a ótica de grandes compositores da música erudita, podem-se vislumbrar muitos dos
mesmos princípios platônicos permeando as suas vidas e, consequentemente, as suas obras.
Com base nisto propus, neste trabalho, investigar as principais concepções estético-musicais
de Platão e depois compará-las aos ideais artísticos do compositor austríaco Gustav Mahler,
isto para responder à inquietante pergunta: Pode-se considerar os ideais artísticos e filosóficos
de Mahler alinhados aos pressupostos que embasam o pensamento estético-musical de Platão?
Justifico esta pesquisa no meu grande interesse pela filosofia de Platão e na minha
imensa admiração à música de Mahler. Contudo, considero que tenha sido dispensável a
minha prévia percepção de que a música deste compositor seja, realmente, muito especial –
no sentido de ser uma música transformadora.
Tendo estabelecido o objetivo de conhecer os principais conceitos estético-musicais de
Platão e de vinculá-los, ou não, às concepções artísticas de Mahler, realizei uma pesquisa de
cunho bibliográfico. Inquiri o pensamento estético-musical de Platão nos livros A República,
As Leis, Íon e Timeu-Crítias. A partir disto, relacionei as considerações do filósofo, que
entendi como as que melhor expressam as suas ideias, com o pensamento estético-musical
contemporâneo, analisando bibliografias dos pensadores Hegel, Hanslick, Riemann, Pahissa,
Eggebrecht, Dahlhaus e Fubini. Procedi desse modo com o objetivo de melhor interpretar as
concepções platônicas e esquematizar possíveis analogias entre este filósofo e os demais
pensadores contemporâneos.
Após construir um modelo estético-musical que chamei de Modelo Platônico, pude
investigar as mais destacadas concepções artísticas de Mahler para, finalmente, cruzá-las com
o modelo previamente elaborado. Para isto, inquiri três importantes biografias de Mahler
escritas pelos autores Bruno Walter, José Luis Pérez de Arteaga e Theodor W. Adorno, ambos
11

destacados pesquisadores das obras e da vida do compositor. Assim cheguei aos resultados
finais da pesquisa.
De modo a dar o devido ao assunto abordado nesta pesquisa, esquematizei este
trabalho em oito capítulos. O capítulo I enquadra este presente introdução. No capítulo II
exponho uma importante revisão de literatura onde apresento pesquisas que tratam da música
de Mahler e da filosofia grega, em especial de Platão. Realizo isto na tentativa de encontrar
trabalhos que abordam a temática aqui proposta e que possam orientar esta pesquisa.
Já no capítulo III exponho os primórdios do pensamento racional, como também, de
onde surgiram as primeiras indagações sobre o que vem a ser arte e quais as suas funções.
Apresento uma significante relação entre as tradições esotéricas e mitos antigos para o
desenvolvimento da filosofia grega, mas principalmente do pensamento platônico. No
capítulo IV adentro nos textos de Platão e apresento consideráveis visões deste filósofo sobre
a arte, em geral, e sobre a música.
Em seguida, no capítulo V, percorro as ideias de alguns dos expoentes do pensamento
contemporâneo da música na tentativa de encontrar semelhanças entre as suas visões e às de
Platão. A partir deste momento consigo eleger seis conceitos básicos do pensamento estético
da música por haver constatado que a maioria desses autores analisados trata dos mesmos
pontos, seja para afirmá-los ou refutá-los. Desta forma, por meio da análise e do cruzamento
desses dados encontrados, pude construir um modelo estético. Este modelo e a instrumentação
metodológica utilizada para chegar a esses pré-resultados e aos resultados seguintes, foi
minuciosamente descrita no capítulo VI.
Depois destas etapas preliminares, foi possível investigar, no capítulo VII, os escritos
dos biógrafos de Mahler. Nesse momento procurei referências que pudessem ligar cada um
dos conceitos-chave do Modelo Platônico, às concepções do compositor em questão.
Organizei de tal forma este capítulo que tratei cada conceito do modelo em uma subseção
particular; também nestas subseções, procedi com uma análise comparativa entre as
concepções platônicas e as concepções de Mahler, de modo que ficassem evidentes para os
leitores. Por último, no capítulo VIII, apresento os resultados finais desta pesquisa e teço as
minhas considerações finais.
12

2 REVISÃO DE LITERATURA

Até o presente momento desta revisão de literatura não foram encontradas pesquisas
que envolvam os conceitos musicais de Platão com as concepções artísticas de Gustav
Mahler. Contudo, alguns trabalhos serviram para contextualizar o estado da arte desta
temática. Dentre esses estudos algumas pesquisas voltadas à análise formal da música de
Mahler foram consideradas.
O estudo de Penteado (2014) tem como objetivo vincular a análise formal do primeiro
movimento da Sinfonia n.3 de Gustav Mahler com a sua análise processual. Penteado (2014,
p. 6) afirma que, “[...] [esse processo se fundamenta na] ótica da vertente que considera a
forma como um processo, no tempo.” Desta forma o autor busca relacionar os aspectos
formais da peça com uma pesquisa que, “[...] leve em conta a experiência musical no tempo,
que busque a maneira pela qual um elemento determinado se torna o que é [...].”
(PENTEADO, 2014, p. 38).
Este tipo de análise é explicado por Penteado (2014, p. 38, grifo do autor) como,

análise musical processualmente baseada [pois entende que] [...] para consolidar
uma Forma Sonata, Mahler constrói um caminho não trivial, que vai se revelando
aos poucos no decorrer da escuta e pelo qual seus elementos, em sua
individualidade, necessitam ser constantemente reinterpretados retrospectivamente,
quando um elemento formal projeta uma determinada função que não se confirma
não entrada de um elemento subsequente.

Dentre os diversos fatores de importância que o pesquisador encontrou como para a


aplicação da sua metodologia está o fato de que,

[Mahler,] compositor de nove sinfonias (sem contar sua inacabada Sinfonia n.10),
seu principal meio de expressão composicional, [...] foi ávido leitor, e amante da
literatura e filosofia – as quais foram importantes estímulos do seu impulso criador.
(PENTEADO, 2014, p. 9, grifo do autor).

Devido a estes fatores o pesquisador vê a necessidade de vincular a análise formal da


peça à compreensão dos fatores temporais que levaram Mahler a desenvolver o seu processo
de construção artística, pois entende que seja um desprestígio desvincular a análise formal dos
aspectos filosóficos que tangenciam a obra. Não encara as questões filosóficas existentes na
obra como foco da sua pesquisa. Através deste prisma Penteado (2014, p. 177, grifos do
autor) chegou à conclusão de que,
13

[...] a influência do panorama cultural da época de Mahler, principalmente as


questões de literatura e filosofia vão muito além de abordagens programáticas, que
na sinfonia Wunderhorn foram abandonados definitivamente após a gênese da
Sinfonia n.5, e dominam a estrutura musical.

Deste modo, o estudioso percebe nas obras de Mahler uma tentativa de expressão dos
seus princípios literários e filosóficos. Contudo, percebe-se que um estudo pormenorizado de
quais sejam esses “princípios” mahlerianos fica em aberto para a pesquisa.
Outra importante pesquisa é a de Lian (2003). Com esse trabalho o estudioso afirma
que, “[buscou] compreender a obra de arte musical como um universo de complexas
significações metafóricas e inter-relações [sic] com outras formas de manifestação artística e
cultural [...].” (LIAN, 2003, p. 3). Pois não vê sentido em analisar a obra de Mahler como uma
mera significação formal. Devido a isto Lian (2003) se vê na obrigação de analisar a obra do
compositor sob duas dimensões: a gramatical e a semântica.
O pesquisador entende que, enquanto a gramática seja o discurso – a estrutura técnica
facilmente constatada pela análise –, a semântica diz respeito ao significado da música
(LIAN, 2003). Com base nisto chegou à conclusão de que,

[...] Mahler põe o seu discurso musical em favor de causas não especificamente
musicais, transformando sua música em uma grande divagação filosófica sobre o
sentido e o destino do homem [...]. (LIAN, 2003, p. 134-135).

Quer dizer, o compositor se esmerou em dar vida às suas causas filosóficas por meio
da música. Por isto Lian (2003, p. 135) enfatiza que, “não é [...] exagero afirmar-se que em
Mahler a obra de arte deixa de ser um suporte para a comunicação de uma ideia para,
pioneiramente, transformar-se, ela mesma, na própria ideia.” Pois, para Mahler, a música é
tida como um meio de expressão a uma ideia. Lian (2003, p. 135) confessa que, “[com Mahler
surgiu] a música filosófica [...].”
A pesar destas importantes e significativas considerações, o pesquisador, assim como
Penteado (2014), não apresenta evidências de quais sejam essas divagações filosóficas
presentes nas obras de Mahler. Ambas as pesquisas evidenciam as obras de Mahler como
manifestação das percepções filosóficas do compositor e deixam entrever a ideia de que essas
visões justificam o seu pensamento musical.
Com o objetivo de especular quais seriam as concepções filosóficas de Mahler,
busquei estudos que vinculem música à filosofia como meio de sondagem às possíveis fontes
do pensamento mahleriano. Neste sentido a pesquisa de Nascimento (2003) contribuiu com
importantes apontamentos.
14

Essa pesquisadora busca revelar o pensamento musical platônico e indaga, como um


dos objetivos da sua pesquisa, se para Platão a música era entendida como uma arte ou uma
ciência, pois entende que, para o filósofo a música possa funcionar entre o mundo real e o
mundo aparente (NASCIMENTO, 2003). O procedimento metodológico adotado pela
pesquisadora é o de exposição das concepções de Platão. Os resultados apresentados se
fundamentam no entendimento de que, para o filósofo, a música é entendida como uma fonte
de saberes, pois promove a educação.
Nascimento (2003) conclui que, Platão concebeu a música como a mais elevada
manifestação filosófica. Destes resultados é hipoteticamente possível que Mahler tenha sabido
desse potencial da música e que, devido a isso, compôs almejando revelar os seus próprios
pensamentos e sentimentos.
O estudo de Rocha Júnior (2007) articula no mesmo sentido e faz uma breve reflexão
a respeito do valor que a música adquire no entendimento de Platão e de Aristóteles. O
estudioso, inclusive, remete o leitor às principais obras desses pensadores com o intuito de
que possa inquirir diretamente nelas. Dentre as concepções de Rocha Júnior (2007, p. 33) está
a de que,

[...] Platão tinha, como base de sua compreensão da música, uma concepção mágica
e irracional do fenômeno musical. Porém, essa visão, que poderíamos chamar de
religiosa, nos leva a uma via racional de análise. Desse modo, percebemos que a
música, além de ser algo divino e de aproximar seus apreciadores da divindade,
também aproxima seus ouvintes e seus praticantes da philosophía.

Com isto o autor percebe que, para Platão, a música assume o caráter de aproximar o
ouvinte da divindade, pois transita entre o mundo da forma (racional) e mundo mágico
(irracional). Quanto ao pensamento de Aristóteles o pesquisador destaca que, “[esse] se
interessa pela música, primeiramente, porque ela tem funções recreativas e catárticas, que são
de grande importância para ele e que serão tratadas com destaque no livro VIII da Política.”
De qualquer forma se pode entender que ambos os pensadores conferem à música importantes
funções, mas que, principalmente, nos livros de Platão essas funções são estabelecidas e
refletidas.
Outro importante estudo que especifica a importância da música na cultura grega é o
de Nasser (1997). Neste artigo a autora salienta que,

na antiga Grécia a música era uma atividade vinculada a todas as manifestações


sociais, culturais, e religiosas. Dentre todas as artes, era a mais relevante. Para os
gregos a música era tão importante e universal como o próprio idioma. Como forma
de expressão, tinha o poder de influenciar e modificar a natureza moral do homem e
do estado. (NASSER, 1997, p. 241).
15

Destas concepções é possível se depreender a ideia de que na Grécia antiga a música


tenha sido amplamente estudada e que desses estudos tenham sido feitas inúmeras inferências
sobre a arte musical. Dentre as ideias que a autora salienta está a de que,

na concepção de Platão, a música expressa as relações intrínsecas existentes entre as


progressões musicais e os movimentos da alma. A função da música, acima de tudo,
era buscar o equilíbrio da alma, assim como produzir um conjunto harmônico de
conhecimentos. (NASSER, 1997, p. 242).

Ou seja, a música era tida por Platão como aliada ao equilíbrio da alma e capaz de
produzir conhecimentos. Nasser (1997) explica que, esta compreensão atingiu o seu expoente
máximo com a doutrina do ethos. Essa doutrina deve ser entendida como,

a ordenação, diferenciação e o equilíbrio dos componentes rítmicos, melódicos e


poéticos. A sincronicidade de todos esses elementos constituía um fator
determinante na influência da música sobre o caráter humano. Essa concepção
revela o porque [sic] a música era considerada como um atributo fundamental no
sistema político e educacional do estado. De acordo com a doutrina do ethos, a
música tem o poder de agir e modificar categoricamente os estados de espírito nos
indivíduos. Pode induzir à ação; fortalecer ou de modo contrário enfraquecer o
equilíbrio mental; ou ainda gerar um estado de inconsciência, onde a força de
vontade fica totalmente ausente nos indivíduos. (NASSER, 1997, p. 243, grifo da
autora).

Com estas definições percebe-se que para os gregos a música influencia animicamente
o ouvinte, sendo capaz inclusive de agir e modificar profundamente o seu estado de espírito.
De todas estas pesquisas apresentadas sobre a música de Mahler e a filosofia grega,
podem-se deduzir importantes implicações: primeiro, que há fortes indícios de que Mahler
tenha almejado, através da sua música, despertar o ouvinte para determinadas realidades
filosóficas. As pesquisas apontam que a sua música foge de todos os padrões sem perder o seu
poder discursivo, permanecendo carregada com uma enorme capacidade persuasiva.
Uma segunda implicação refere-se ao fato das pesquisas apontarem que Platão atribuía
grandes virtudes à música, inclusive de promover a educação e, sobretudo, de ser a mais alta
forma de convencimento filosófico e aproximação à divindade.
Por fim, as pesquisas sobre música e filosofia não sistematizam as principais
concepções platônicas sobre música. Deste modo, cruzar informações na tentativa de
encontrar possíveis analogias entre esse pensador e as concepções de Mahler se torna uma
tarefa impraticável.
16

3 A MÚSICA E A SUA ORIGEM DIVINA

Desde tempos remotos quando o homem conquistou o posto de personagem central do


seu destino se tornando o agente da sua própria vida, grandes pensadores questionaram e
teorizaram sobre a essência da arte. Contudo, somente no ano de 1750 o filósofo alemão
Baumgarten escreveu especificamente sobre a questão e, devido a isso, atribui-se a ele a
fundação da estética da arte como área autônoma da filosofia. Segundo Tomás (2005, p. 07),
a estética da arte deve ser entendida como, “[a busca por uma] teoria do conhecimento
sensível.”, ou seja, um conhecimento que se difere do conhecimento intelectual e lógico. Do
fato desse conhecimento se diferenciar do conhecimento “comum” é que deriva a sua
importância e foi na busca de significar melhor essa forma de conhecimento, que tantos
pensadores refletiram sobre a questão.
Para o estudioso Olmedo os primeiros registros existentes contendo reflexões estéticas
pertencem a Sócrates e Platão, pois afirma que,

Rosenfield (2009) aponta Sócrates e Platão como iniciadores de algumas


problemáticas da estética que caminha posteriormente pelo neoplatonismo cristão, e
que por ventura estão presentes até hoje, a problemática grega associava o belo com
o bem, o valor moral do indivíduo: “o indivíduo que tem valor moral é suscetível
belo e tem a possibilidade de atos moralmente bons”; Platão parte desses costumes,
que são ao mesmo tempo religiosos, políticos e linguísticos e sintetizam as diversas
facetas semânticas do termo “belo”. (OLMEDO, 2013, p. 579-580).

Logo, o pioneirismo do pensamento sobre a arte e das questões envolventes do tema é


creditado a ambos os filósofos. Porém deve-se ter em conta que mesmo antes do advento da
era racional principiada por estes filósofos, em conjunto com Aristóteles, algumas antigas
mitologias já vinculavam a arte com determinadas manifestações espirituais. Neste sentido
Alencar (2008) assegura que, a palavra música é oriunda do grego musiké téchne, ou seja: a
arte das Musas.
De maneira mais específica o tradutor e comentarista dos textos Ilíada e Odisseia de
Homero afirma que,

as Musas são filhas de Zeus com Mnemosine (Memória), a pedido dos deuses para
que Zeus criasse divindades que os louvasse com o canto. São elas, Calíope (voz
harmoniosa), que preside à poesia épica; Clio (célebre), à história; Polímnia (muitos
cantos), à retórica; Euterpe (alegre), à música; Terpsícore (alegria da dança), à
dança; Érato (amável), à lírica coral; Melpômene (canto), à tragédia; Talia
(abundância), à comédia; Urânia (celeste), à astronomia. Há, como em todos os
mitos, variantes a essas funções e ao seu número. (NUNES, 2015, p. 414, grifos do
autor).
17

Este autor cita o mito homérico de tal forma que torna evidente o pensamento grego
em relação às forças espirituais promotoras da arte, as Musas. Posteriormente na história
grega, século VI A.C., Pitágoras desenvolve uma forma de racionalização desses mesmos
mitos e busca por meio da matemática e de experimentos científicos constatar suas
manifestações. O vínculo de Pitágoras com as antigas doutrinas religiosas e mitos é
confirmado por Huffman (2008, p. 121, grifo do autor) ao inferir que,

este se revela em sua autoridade em assuntos religiosos, sua habilidade de fazer


milagres, seu amplo apelo como mestre de um modo de vida rigorosamente
estruturado, que não era senão uma combinação de tabus quasi-mágicos e preceitos
morais. A autoridade religiosa de Pitágoras funda-se em sua ligação com a antiga
sabedoria egípcia.

Além destas similitudes entre o pensamento de Pitágoras e as vertentes mitológicas,


atribui-se aos pitagóricos a ordenação racional dessas mesmas concepções doutrinárias e
mitológicas. Aristóteles (Metamorfoses, I, 5, 985b, apud BORNHEIM, 1972, p. 50) entende
que, “[...] tôdas [sic] as concordâncias que encontravam nos números e harmonias [os
pitagóricos] relacionavam com as manifestações e partes do universo, assim como a ordem
social.” Dentre as concepções que assumem grande importância dentro do pensamento
pitagórico está a música.
Nietzsche, o filósofo alemão do século XIX, define o pensamento pitagórico como,

[sendo] a música [...] o melhor exemplo do que queriam dizer os pitagóricos. A


música, como tal, só existe em nossos nervos e em nosso cérebro; fora de nós ou em
si mesma (no sentido de Locke), compõem-se somente de relações numéricas quanto
ao ritmo, se se trata de sua quantidade, e quanto à tonalidade, se se trata de sua
qualidade, conforme se considere o elemento harmônico ou o elemento rítmico. No
mesmo sentido, poder-se-ia exprimir o ser do universo, do qual a música, do qual a
música é, pelo menos em certo sentido, a imagem, exclusivamente com o auxílio de
números. (NIETZSCHE, 1973, p. 62, grifo do autor).

Deste modo, pode-se depreender que as revelações e descobertas feitas por Pitágoras
são de extrema importância, mas o que realmente marca o pensamento pitagórico são as suas
especulações acerca dos intervalos musicais. Destes estudos originou-se a chamada Escala
Diatônica Pitagórica. Tomás (2005, p. 14) reforça estas afirmações ao enfatizar que, “a
musicologia reporta a Pitágoras [...] o papel de ter sido o primeiro filósofo a organizar aquilo
que, posteriormente, se chamará em linhas gerias, de teoria musical [...].” Apesar disto Tomás
(2005) confessa que, música na antiguidade grega ultrapassava em muito o sentido comum de
música como um fenômeno simplesmente audível.
18

Outra concepção pitagórica que assumiu grande relevância para a história da música é
a ideia de música das esferas, ou música celestial. O dicionário Groove de Música define o
termo como,

doutrina grega (pitagórica) antiga, postulando uma relação harmoniosa entre os


planetas, governados pelas proporções entre suas órbitas e sua distância fixa da
Terra. O conceito pode remontar a crenças judaicas sobre uma ordem cósmica, que
representa um hino de louvor a seu criador. A ideia continuou a atrair filósofos da
música até o final do Renascimento, influenciando eruditos de muitos tipos,
inclusive humanistas; o último trabalho original sobre o assunto foi publicado por
Kepler em 1619, mas a imagística pitagórica persistiu em alguns pensadores
posteriores e, para músicos do séc. XX, como Hindemith, a música das esferas
continuou a ser um conceito vital, ainda que metafórico. (SADIE, 1994, p. 634, grifo
do autor).

Assim, independente de concepções póstumas sobre música das esferas, um grande


número de eruditos, dentre esses compositores, sentiu-se fortemente atraído pela ideia de uma
música que pudesse abarcar o universo. Quanto à permanência dos ideais pitagóricos e a sua
influência sobre a música, Tomás (2005, p. 14, grifo da autora) salienta que,

em diversos períodos (Idade Média, Barroco e mesmo no século XX), encontram-se


referências a ele [Pitágoras] e às suas teorias, o que cumpriria o papel de sustentar e
comprovar novas idéias [sic], mostrando assim que, a bem da verdade, elas já
estavam inscritas em um pensamento mais antigo, e que, portanto, têm seu fundo de
verdade.

Tomás, deste modo, argumenta definitivamente que os pensamentos pitagóricos têm


seu fundo de verdade por estarem embasados em pensamentos mais antigos. Esta autora
entende que,

[...] não é de se estranhar que a história do termo harmonia coincida, em parte, com a
história de outros conceitos importantes do universo da filosofia grega, como, por
exemplo, os conceitos de cosmos (universo) e logos [sic] (palavra, razão, relação
matemática, fundamento, entre outros). Em um momento posterior, a harmonia,
entendida como medida e proporção, ficará restrita ao universo da música e será
compreendida como um sinônimo desta. (TOMÁS, 2005, p. 15, grifos da autora).

Portanto, para se compreender o pensamento de Pitágoras é necessário ter em mente


que os termos música das esferas, harmonia, etc. não eram restringidos unicamoente ao
universo da música, mas também ao próprio cosmos. Tomás (2005, p. 15, grifo da autora)
destaca a abrangência das concepções pitagóricas ao afirmar que,
19

um outro aspecto da harmonia, entendida aqui como equilíbrio, se relaciona também


com o aspecto educativo e ético da música. Essas associações encontram-se
presentes nas idéias [sic] de Damon, um filósofo-músico do século V que teorizou
sobre a questão da existência de um vínculo entre o mundo dos sons e o mundo
ético. Essa associação, que já se encontrava nas narrativas mitológicas e que também
fora desenvolvida e firmada por Pitágoras, se justifica com base na convicção de que
a música exerce uma influência profunda e direta sobre os espíritos, e
consequentemente, na sociedade em seu conjunto.

Com isto se entende que, na visão desses pensadores gregos, a música assume
significativa importância. Ela confirma as narrativas mitológicas ao fazer o enlace entre o
mundo ético e o mundo físico, ou seja: entre o mundo espiritual e os seres humanos. Todas
essas relações foram mais tarde evidenciadas e discutidas por Platão.
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4 A MÚSICA SEGUNDO PLATÃO

A influência da Escola Pitagórica foi tão grande para a filosofia que algumas das suas
concepções perpetuaram de uma geração a outra. Um dos grandes expoentes do legado
pitagórico foi Platão (427-347 A.C.). A fundação da Academia de Atenas – a primeira
instituição de educação superior do mundo ocidental – é um dos feitos memoráveis deste
filósofo. Todavia, as suas contribuições mais importantes se fundamentam em suas
articulações filosóficas, onde, geralmente por meio de discursos, apresenta as suas concepções
ou as de seu mestre Sócrates.

Figura 1 – Escola de Atenas

Fonte: Google imagens (2017). In: Rafael Sanzio, Stanza della Segnatura, 1509-1511.

Platão aborda muitas questões de relevância científica e filosófica. Contudo, as suas


considerações sobre música assumem, para o escopo deste trabalho, uma posição de destaque.
Dentre os seus pensamentos sobre música há uma preocupação em relacionar a música com o
corpo. Tomás (2005, p. 16) entende que, “[para Platão] a música não só pode educar o espírito
como também corrigir as más inclinações: a música imita uma determinada virtude e quando
escutada elimina o vício ou inclinação que a antecedeu.” Disto se depreende que, para esse
filósofo, a música exerce forte influência sobre o caráter humano.
Neste sentido Platão afirma que,
21

[...] para aquele que se relaciona com as Musas com o intelecto, a harmonia, feita de
movimentos congêneres [sic] das órbitas da nossa alma, não é um instrumento para
um prazer irracional – como agora se julga ser – mas, em virtude de as órbitas da
nossa alma serem desprovidas de harmonia desde a geração, aquela foi concedida
pelas Musas como aliado da alma para a pôr em ordem e em concordância. E o
ritmo, por a maioria de nós ser privada de medida e falta de graça, foi-nos
concedido como auxiliar, pelas mesmas razões e com os mesmos fins. (PLATÃO,
Timeu-Crítias, 47 d-e, grifo nosso).

Nesta sentença Platão manifesta conceitos muito importantes. Em primeiro lugar,


reafirma o mito grego que considera as Musas como as forças espirituais que promovem o
fazer artístico e musical. Disto depreende que para aquele que se relaciona com tais forças, a
harmonia é compreendida como um meio de organizar e de por em concordância o ser
humano, enquanto que o ritmo, para promover o seu equilíbrio e graça. Estas concepções
metafísicas de Platão estão em consonância com os pensamentos de Aristóteles. Esse último
também entende que,

quanto à música, sua utilidade não é igualmente reconhecida. Muitos hoje a


aprendem apenas por prazer. Mas os antigos fizeram dela, desde os primeiros
tempos, uma parte da educação, pois a natureza, como já dissemos várias vezes, não
procura apenas dar exatidão às ações, mas também dignidade ao repouso. A música
é o princípio de todos os encantos da vida. (ARISTÓTELES, A Política, p. 56).

Aqui os princípios platônicos são tratados com a mesma seriedade por Aristóteles. O
filósofo acredita que a utilidade da música não é reconhecida, principalmente, por ser
considerada apenas pelo prazer que proporciona. Também vê na música o poder de embelezar
a vida. Estas importantes concepções aristotélicas se encontram consolidadas no pensamento
platônico onde, por meio de um diálogo entre Sócrates e Glauco, o filósofo sustenta que,

Sócrates — [...] não devemos, ao contrário, procurar artistas de mérito, capazes de


seguirem a natureza do belo e do gracioso, a fim de que os nossos jovens, a
semelhança dos habitantes de uma terra sadia, tirem proveito de tudo que os rodela
[rodeia], de qualquer lado que chegue aos seus olhos ou ouvidos uma emanação das
obras belas, tal como uma brisa transporta a saúde de regiões salubres, e
predispondo-os insensivelmente, desde a infância, a imitar e a amar o que é reto e
razoável?
Glauco — Seria uma excelente educação.
Sócrates — E, decerto, por esta razão, meu caro Glauco, que a educação musical é a
parte principal da educação, porque o ritmo e a harmonia têm o grande poder de
penetrar na alma e tocá-la fortemente, levando com eles a graça e cortejando-a,
quando se foi bem-educado. (PLATÃO, A República, III, p. 95, grifo nosso).

Neste diálogo Platão apresenta a sua concepção sobre o papel educativo da música. O
pensador entende que os efeitos da harmonia e do ritmo, sobre o ouvinte, contribuem para a
sua educação. Deixa claro que uma educação de excelência encontra suas principais razões na
música. Ou seja, concebe que somente o ritmo e a harmonia têm o poder de adentrar na alma
22

e tocá-la, isto pelo motivo de que ambos estão carregados da graça proveniente das Musas.
Estas concepções guardam imensa semelhança com o pensamento de Einstein (1981, p. 14) de
que, “a arte, mais do que a ciência, pode desejar e esforçar-se por atingir o aperfeiçoamento
moral e estético.” O cientista, assim como Platão, entende que o aperfeiçoamento moral e
estético – a educação – possa ser atingido através da arte, porém determina que, para tanto, a
arte deva fazer um esforço.
Dentre os benefícios da música apresentados por Platão está o de amenizar
sentimentos negativos como, por exemplo, a ira. O filósofo afirma que,

quando um homem permite que a música o encante com o som da flauta e lhe
derrame na alma, pelos ouvidos, essas harmonias suaves, moles e plangentes [...],
passa a vida distraído, exultante de alegria pela beleza do canto: em primeiro lugar,
suaviza o elemento irascível da sua a]ma [alma] [...]. (PLATÃO, A República, III, p.
106, grifo nosso).

Essas capacidades de abrandar as emoções negativas e proporcionar repouso à mente


são, também, para Platão uma forma de educação, entendendo que isso possa ocorrer ao
ouvinte que permita que a música o encante. Quer dizer, para Platão a música exerce o poder
de educar, porém, para que esse poder se manifeste, o ouvinte deve possibilitar que a música o
comova. Sobre essa relevante dependência o compositor Beethoven (2017) afirmou que,
“quem entende a minha música nunca mais será infeliz.”, pois confere à sua música o poder
de modificar certos estados de ânimo, desde que o ouvinte permita. Nesta sentença o
compositor deixa entrever a ideia de que, assim como para Platão, o poder da música só é
percebido por quem a entende ou, quem sabe, por quem permita que esse fenômeno aconteça
dentro de si – isto é: o ouvinte deve ser capaz de perceber, na música, razões maiores que um
simples prazer irracional.
Para Platão os efeitos da música não se restringem a uma mera sensação temporal.
Pelo contrário, vê neles um poder educativo perdurável. Visão esta que é ratificada pela
afirmação de que, “[o guardião da virtude no ser humano é] a razão aliada à música. Só ela,
quando entranhada na alma, se mantém toda a vida como defensora da virtude.” (PLATÃO, A
República, VIII, p. 262). Aqui o filósofo determina que a música, sendo utilizada
racionalmente e não como um instrumento de prazer irracional, torna-se a defensora da
virtude no ser humano por toda a vida.
Em várias obras o filósofo defende esta mesma concepção. Mas a torna muito clara ao
enfatizar que,
23

quando alguém afirmar que o prazer é o critério da música, nós decididamente


contestaremos tal afirmação, e consideraremos tal música como a menos séria de
todas [...] e preferiremos àquela que detém semelhança em sua imitação do belo.
(PLATÃO, As Leis, II, p. 124).

O filósofo acredita firmemente que a música, sendo tomada como um mero prazer
irracional, não é capaz de promover a educação, isto porque essa música não séria não almeja
o belo, mas o prazer bruto.
Platão (A República, III, p. 97) vai ainda mais além e garante que, “[...] a música deve
culminar no amor ao belo.” É assim que o filósofo encerra a discussão sobre a função
educadora da música. Enfatiza que a música enquanto manifestação da beleza espiritual deve
educar o ser humano a ponto de esse aspirar pelo belo. Porém, para que esse amor ao belo
possa ocorrer, o artista deve saber dar a sua arte o tratamento adequado. Sobre este ponto
decisivo o filósofo garante que,

todos os artistas épicos de excelência compõem e performam essas suas belas obras
não por causa de suas habilidades, mas sim porque estão inspirados e possuídos.
Assim também os líricos de excelência, como Coribantes que dançam quando estão
em delírio, eles estão fora de si ao compor e performar suas belas obras. E se
entregam aos sons e aos ritmos, extasiados e possuídos como as bacantes que,
quando possuídas, bebem leite e mel dos rios, o que não fazem quando estão em si.
Assim é a alma dos artistas líricos, segundo eles mesmos falam. Pois afirmam sem
dúvida alguma que colhem para nós trazer seus versos de fontes de mel, jardins e
vales da Musa, como as abelhas, voando. Como dizem a verdade! Pois o artista é
uma coisa leve, alada e sagrada, que só faz alguma coisa se antes estiver inspirado
ou fora si, a razão não mais nele. (PLATÃO, Íon, apud MOTA, 2007, p. 193, grifos
nossos).

Ou seja, o pensador entende como um fazer musical de excelência aquele que deriva
não de habilidades ou técnicas, mas da inspiração. Não concebe a técnica como a essência do
fazer musical, pois admite que seja por meio da inspiração que o artista entra em contato com
a verdade das Musas. Por isto considera o artista como algo sagrado, um intérprete das
Musas. Essa relação do artista com as divindades lhe confere a graça falar a verdade e das
suas obras sempre se manifestarem como belas.
O artista, o músico ou o compositor devem estar extasiados para que a obra “fale”
através deles. Estas afirmações são enfatizadas por Platão ao concluir que,

Sócrates – [...] prá mim, realmente, nesse caso parece bem claro que o deus nos
demonstra, para que não tenhamos dúvida alguma, que essas belas realizações não
são humanas, nem feitas por homens, mas que são divinas e feitas pelos deuses, e
que os artistas não passam de intérpretes dos deuses, cada um deles possuído pela
divindade que o inspira. Para comprovar isso é que o deus deliberadamente faz que a
mais bela melodia seja cantada pelo artista mais medíocre. (PLATÃO, Íon, apud
MOTA, 2007, p. 194, grifos nossos).
24

Ou seja, Platão declara de uma vez por todas a sua concepção de que por meio da
inspiração o artista não fala por si, mas pela divindade que o inspira. O compositor Arnold
Schoenberg (2011, p. 404, grifos do autor) revela uma concepção muito semelhante ao
enfatizar que,

é um erro acreditar que a arte possa ser calculada, e é completamente falsa a noção
que os estetas possuem do “trabalhar” do artista “pensante”, segundo a qual se
deveria achar que a sua realização consiste apenas em selecionar, com muito gosto e
melhor cálculo, a mais eficaz dentre as possibilidades disponíveis.

Aqui o compositor admite que o fazer musical é muito mais um trabalho de inspiração,
que um mero fazer intelectual ou técnico. Acredita, assim como Platão, que o artista deva se
entregar à inspiração para que essa lhe guie. Neste sentido, em que música adquire a sublime
função de ser a porta voz do divino, por intermédio do artista inspirado, o escritor Gibran
(2017) contribui com a sua poesia para melhor aclarar o que vem a ser música:

Divina música!

Filha da Alma e do Amor.


Cálice da amargura
e do Amor.
Sonho do coração humano,
fruto da tristeza.
Flor da alegria, fragrância
e desabrochar dos sentimentos.
Linguagem dos amantes,
confidenciadora de segredos.
Mãe das lágrimas do amor oculto.
Inspiradora de poetas, de compositores
e dos grandes realizadores.
Unidade de pensamento dentro dos fragmentos
das palavras.
Criadora do amor que se origina da beleza.
Vinho do coração
que exulta num mundo de sonhos.
Encorajadora dos guerreiros,
fortalecedora das almas.
Oceano de perdão e mar de ternura.
Ó música.
Em tuas profundezas
depositamos nossos corações e almas.
Tu nos ensinaste a ver com os ouvidos
e a ouvir com os corações.

Através destes inspirados pensamentos o autor revela algumas das peculiaridades da


música. Gibran identifica na música, assim como Platão, a capacidade de afetar
profundamente a alma dos ouvintes, desde que esses aprendam a ouvir com os corações. O
autor também entende que, “a música é a linguagem dos espíritos.” (GIBRAN, 2017, grifo
25

nosso), contribuindo com a concepção platônica de que a música tem origem divina, ou seja:
proveniente das Musas, pois é a linguagem utilizada pelos seres celestiais.
Estas concepções de Schoenberg e Gibran conferem às ideias de Platão a legitimação
contemporânea e, consequentemente, maior credibilidade e aceite. Ambos os pensadores
contribuem com os pensamentos do filósofo ao conceberem música como uma linguagem
sublimada, a qual não provém, unicamente, de técnicas ou habilidades intelectuais, mas de
uma fonte profunda e misteriosa: a inspiração.
26

5 O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO DA ESTÉTICA DA MÚSICA

Neste capítulo se investigará alguns dos mais destacados nomes do pensamento


contemporâneo da estética da música, isto com o intuito de melhor compreender e tratar os
ideais estéticos de Platão, pois, como se sabe, a estética da música como área autônoma da
filosofia só ganhou espaço exclusivo a partir de Baumgartem, no século XVIII. Assim, nada
mais persuasivo que analisar as concepções de um filósofo do século IV A. C. a partir de
conceitos estéticos contemporâneos.
Para tanto, as concepções de Hegel, Hanslick, Dahlhaus, Eggebrecht, Fubini, Riemann
e Pahissa fornecerão a esta pesquisa uma importante discussão sobre a temática e,
consequentemente, uma perspectiva que, quiçá, possa aproximar os ideais platônicos às
concepções filosóficas e artísticas de Gustav Mahler. Como critério de escolha destes
pensadores levou-se em conta dois aspectos importantes. O primeiro aspecto foi a cronologia:
foram selecionados apenas os pensadores da Contemporaneidade. O segundo foi em relação
ao assunto tratado: neste caso, foram levados em conta apenas os pensadores que tratam
especificamente sobre estética da música. Anexou-se, a estes dois critérios, o fato de serem
todos pensadores europeus, pois, como se sabe, foi na Europa que a música de tradição
austro-germânica apresentou grandes transformações. Com isto, entendeu-se que estes
estudiosos poderiam corroborar de grande maneira a esta pesquisa.
Por mais divergentes que possam ser as concepções estéticas que serão apresentadas, a
grande maioria dos pensadores demonstra grande deferência pela questão estética da música.
Esta compreensão é evidenciada pela nítida percepção de que uma obra de arte manifesta
determinados valores, os quais – supostamente – interagem com o ouvinte. Esses valores são
interpretados de formas muito singulares por cada pensador: alguns o definem de um modo
análogo, outros de uma forma totalmente distinta. Devido a isto se torna indispensável
inquirir os principais escritos desses autores para poder encontrar, neles, o que entendem
como valor de uma obra musical.

5.1 A MÚSICA NA VISÃO DE HEGEL

Georg Wilhelm Friedrich Hegel, 1770-1831, foi um proeminente esteta alemão.


Escreveu, dentre outros, um importante livro chamado Curso de estética, publicado
postumamente em 1835. O livro, dividido em quatro tomos, manifesta algumas das suas
27

principais opiniões sobre estética da arte em geral. Porém, é especificamente no volume III
que Hegel aborda de forma bastante aprofundada o problema estético da música.
Dentre as opiniões de Hegel está o entendimento de que,

a tarefa principal da música consistirá [...] em deixar ressoar não a objetividade


mesma, mas, ao contrário, o modo no qual o si-mesmo [sic] mais íntimo é movido
em si mesmo segundo sua subjetividade e alma ideal. (HEGEL, 2002, p. 280).

Assim o autor sustenta a ideia de que a música por si própria tem a capacidade de
levar o ouvinte à introspecção para que, assim, possa navegar rumo às suas aspirações mais
íntimas. Hegel (2002, p. 280) entende que, “os sons apenas ressoam na alma mais profunda,
que em sua subjetividade ideal é comovida e colocada em movimento.” Nesta citação Hegel
confirma a visão platônica de que a música exerce profundas influências sobre o ouvinte.
Enquanto que Platão considera essa influência como um fenômeno educacional, Hegel não o
conceitua especificamente da mesma forma. Porém ao compartilhar do entendimento de que a
música age sobre a psicologia é possível evidenciar, entre ambos, uma analogia.
Hegel reforça estas suas opiniões inferindo que,

se em termos gerais podemos ver a atividade no âmbito do belo como uma liberação
da alma, uma libertação da opressão e do caráter limitado – na medida em que a arte
mesma suaviza os destinos trágicos mais violentos por meio do configurar teórico e
os deixa se tornarem um prazer – assim a música conduz esta liberdade para o ponto
máximo. (HEGEL, 2002, p. 284).

Aqui Hegel destaca a capacidade da música em conduzir a alma até ponto mais
elevado de libertação. De modo similar Platão considera a música como a educadora por
excelência, isto porque acredita que na contemplação do belo a alma pode se libertar das suas
vicissitudes.
No que diz respeito à forma musical Hegel afirma que,

[...] em época mais recente a música, rompendo com o Conteúdo por si mesmo já
claro, retornou assim ao seu próprio elemento, mas para isso perdeu também tanto
mais poder sobre todo interior, na medida em que o prazer que ela pode oferecer
apenas se volta para um lado da arte, ao mero interesse, a saber, para o que é
puramente musical da composição e sua habilidade, um lado que é apenas questão
para especialista e importa menos ao interesse artístico universalmente humano.
(HEGEL, 2002, p. 284-285, grifos nossos).

Aqui o olhar crítico do autor distingue conteúdo de forma. Entende que a música tenha
rompido com o seu interior: o conteúdo e, em decorrência disso, tenha deixado de exercer a
sua função artística de interesse universal. Também considera o lado técnico da composição e
a habilidade como questões secundárias e sem valor de interesse humano. Deste modo,
28

enquanto que Platão vê o conteúdo da música como a sua capacidade de imitação do belo,
Hegel entende que a música apartada do seu conteúdo fica sem a sua principal função.
Devido ao afastamento entre conteúdo e forma Hegel considera que,

[ela] permanece vazia, sem significado e, já que lhe falta o lado principal de toda a
arte, o conteúdo e a expressão espiritual, ela ainda não pode ser considerada como
arte. Apenas quando no elemento sensível do som e em sua figuração variada se
expressa algo de espiritual de modo adequado, a música também se eleva à
verdadeira arte [...]. (HEGEL, 2002, p. 289).

Com estas sentenças o autor relaciona conteúdo e expressão espiritual com o sentido
ético da música, pois acredita que sem estes elementos ela não pode ser considerada arte.
Além destas importantes relações Hegel vê na música algo espiritual. Esta identificação com
o espiritual é análoga à percepção de Platão de que as Musas se manifestam por meio da
música, a qual detém semelhança com o belo.
Hegel (2002) admite que, a música deva ser porta-voz de sentimentos como alegria,
tranquilidade, gracejo, júbilo da alma, angústia, aflição, tristeza, dor, saudade, respeito,
adoração, amor, etc. Entende que esses elementos sejam a forma na qual o ouvinte percebe a
música. Isto porque Hegel (2002) relaciona esses sentimentos com as formas de manifestação
humana: grito, dor, suspiro, alegria, etc. e assegura que, esses sejam os meios de
exteriorização dos estados de alma. Esta visão também pode ser comparada à de Platão.
Enquanto que Platão define que a forma da música é o resultado da inspiração artística
e por isto é a manifestação do belo, Hegel entende que a música deva manifestar os
sentimentos humanos. Hegel (2002, p. 291-292, grifos do autor) ainda destaca que,

[o efeito da música] nem prossegue para considerações intelectuais [verständigen]


nem dispersa a autoconsciência para intuições isoladas, e sim está acostumado a
viver na intimidade [Innigkeit] e na profundidade não aberta do sentimento.

Com isto o autor enfatiza que os sentimentos evocados pela música não necessitam de
definições precisas, pois só dizem respeito à intimidade do ouvinte. No que diz respeito ao
conteúdo Hegel entende que,

uma vez que a expressão musical tem por seu Conteúdo o interior mesmo, o sentido
interior da coisa e o sentimento, e o som em sua existência sensível pura e
simplesmente passageiro que na arte pelo menos não progride para as figuras
espaciais, então ela penetra com os seus movimentos imediatamente na sede interior
de todos os movimentos da alma. (HEGEL, 2002, p. 293, grifos nossos).
29

O autor endossa as suas concepções manifestando que a música cumpre com uma
função muito específica, uma vez que acredita ser o conteúdo da obra o seu sentido interior.
Para Hegel é este que age diretamente na sede interior da alma.
Todas estas relações apresentadas e significações que Hegel atribui à música se
mostram muito similares às principais concepções de Platão. Esse fato pode ser facilmente
percebido ao se verificar que, ao mesmo tempo em que Platão vislumbra uma relação entre o
artista e as divindades – por meio da inspiração –, Hegel afirma que a música deva ser uma
manifestação espiritual. Enquanto Platão entende que o artista deva sempre falar a verdade
através das Musas, Hegel reconhece que a obra deva ter conteúdo e expressão espiritual. Para
Platão a forma na qual a música se manifesta sempre será a beleza, enquanto que para Hegel
será sentimentos íntimos. No pensamento platônico a técnica não é o essencial, no hegeliano
também não. Platão entende que o objetivo último da obra musical é a educação - o
aprimoramento da alma –, enquanto que para Hegel é movimentar, comover e liberar a alma.
Da mesma forma em que Platão vê no artista um sujeito que – quando inspirado – interpreta
as divindades, Hegel entende que o artista seja um sujeito capaz de manifestar emoções.

5.2 A MÚSICA NA VISÃO DE HANSLICK

Eduard Hanslick, 1825-1904, foi um importante pensador austríaco que contribuiu


para a reflexão sobre a estética musical. Em um dos seus livros de maior destaque intitulado
Do Belo Musical, de 1854, o autor questiona os fundamentos da estética musical sustentando
que, “o tratamento filosófico da estética, que por uma via metafísica tenta aproximar-se da
essência do belo e registra os seus elementos últimos, é uma aquisição dos tempos modernos.”
(HANSLICK, 2011, p. 7). A partir deste entendimento, Hanslick propõe à estética um
tratamento mais científico.
Hanslick (2011) acredita que, a música não tenha a ver com os sentimentos e entende
que, estes não representem o seu conteúdo. Deste modo rebate as principais concepções
hegelianas sobre a música. Para Hanslick (2011, p. 10) há o entendimento que, “a peça sonora
flui da fantasia do artista para a fantasia do ouvinte.” Ou seja, percebe a música simplesmente
como uma fantasia que suscita no ouvinte outra fantasia. Porém confessa que, “entre os
mistérios mais formosos e salubres conta-se precisamente o facto [sic] de a arte poder suscitar
tais emoções sem causa terrena, como quem diz, por graça divina.” (HANSLICK, 2011, p.
15). Com isso reforça a opinião platônica e hegeliana de que a música manifesta determinadas
propriedades metafísicas.
30

Em se tratando das suas concepções acerca do belo, Hanslick (2011, p. 40, grifos
nossos) afirma que, “o elemento originário da música é o som agradável, a sua essência o
ritmo.” Deste modo o autor apoia a visão platônica de que a harmonia e o ritmo sejam
elementos da música, porém não os relaciona à manifestação de forças espirituais como faz
Platão. Essas discordâncias, como se pode ver, evidenciadas entre a filosofia hanslickiana e
platônica, se caracterizam mais como contrastes de opiniões voltadas à orientação religiosa.
Nesse sentido Hanslick deixa transparecer a sua visão concretista ao admitir que,

os limites da música não são de modo algum estreitos, mas sim estritamente
estabelecidos. A música nunca pode “elevar-se à linguagem” – rebaixar-se, deveria
em rigor dizer-se do ponto de vista musical – já que a música deveria ser
manifestamente uma linguagem sublimada. (HANSLICK, 2011, p. 58).

Com estas afirmações o autor demonstra um inquietante interesse em desconstruir


concepções metafísicas, porém não apresenta novos fatos comprobatórios das suas opiniões.
Platão fundamenta as suas concepções filosóficas nas descobertas e experiências nos
“Antigos”, pois cita nos seus livros pensadores como Homero, Heráclito e Parmênides. Porém
Hanslick não revela a origem histórico-científica das suas concepções.
Numa tentativa de desconstruir o pensamento antigo de que os sentimentos constituem
o conteúdo de uma obra musical o autor questiona:

porque é que as mulheres, as quais, por natureza, dependem sobretudo do


sentimento, nada produzem em matéria de composição? A razão – para lá das
condições gerais que mantêm as mulheres mais longe das produções espirituais –
reside precisamente no momento plástico do compor, que exige uma exteriorização
da subjectividade [sic] em não menor grau, embora em direcção [sic] diferente, do
que as artes plásticas. (HANSLICK, 2011, p. 62, grifo do autor).

Aqui visão de Hanslick se mostra mais uma vez infactível. Ao assegurar que as
mulheres não tenham produzido nada em questão de composição musical, Hanslick
negligencia a existência de um razoável número de mulheres compositoras, inclusive os
exemplos de Fanny Mendelsohnn e Clara Schumann. Portanto, percebe-se que a
fundamentação dos argumentos de Hanslick se mostra frágil e carente dos subsídios
científicos evocados como pretexto para a concepção do seu livro.
Referindo-se ao ouvinte que aprecia música pelas emoções que essa suscita, Hanslick
afirma que,

aninhados e semidespertos no seu sofá, aqueles entusiastas deixam se levar e


embalar pelas vibrações dos sons, em vez de os examinarem com olhar acutilante.
Quando eles crescem e aumentam cada vez mais, quando diminuem, quando
irrompem em júbilo ou, trémulos [sic], se apagam, transportam esses entusiastas
31

para um estado sensitivo indeterminado que eles, ingénuos [sic], julgam puramente
espiritual. (HANSLICK, 2011, p. 80-81, grifos nossos).

Nestas sentenças o autor deixa transparecer nitidamente os seus julgamentos de valor.


É um verdadeiro absurdo filosófico e científico afirmar que um ouvinte passivo seja um
“ingênuo” e/ou que esteja “semidesperto” durante uma audição musical. Por meio destas
críticas, Hanslick não consegue embasar as suas teorias, apenas transparecer uma intenção
antiespiritualista e, no mínimo, antiética. Não se aferra à cientificidade estética, mas a
julgamentos de valor e à depreciação dos sentimentos que a música provoca em determinados
ouvintes.
Porém a opinião de Hanslick vai mais além. O autor questiona Beethoven fazendo
perceber que, “[esse] exigia que a música ‘pegasse fogo no espírito’ do homem. Mas um fogo
originado e alimentado pela música não viria, porventura, a restringir como um obstáculo o
desenvolvimento do homem, na sua força de vontade e de pensamento?” (HANSLICK, 2011,
p. 83). Por ora Hanslick se mostra preocupado com os efeitos metafísicos da música que ainda
a pouco refutava, pois questiona a intenção invocada por Beethoven de uma música capaz de
atear fogo no espírito. O autor faz estes questionamentos com base na crença de que,

assim como os efeitos físicos da música se encontram num relação directa [sic] com
a irritabilidade doentia do sistema nervoso que lhes responde, assim aumenta a
influência moral dos sons com a incultura do espírito e do carácter [sic].
(HANSLICK, 2011, p. 83, grifo do autor).

Aqui o esteta vincula os efeitos físicos da música com pretensas discussões sobre
doenças nervosas – discussões essas que nem ao menos apresenta para os seus leitores como
prova científica. Deste modo empreende a tentativa de considerar os sentimentos, evocados
pela música, como prejudiciais alegando que a música influencie negativamente apenas as
pessoas sem cultura ou então doentes.
Todos estes apontamentos apresentados constituem o embasamento de algumas das
principais concepções de Hanslick. Como o foco deste trabalho não é a comprovação da
veracidade científica destas concepções, mas a busca por um entendimento dos princípios
estéticos de Platão, não serão feitas maiores digressões a respeito da sua veracidade. Porém,
de qualquer forma, se verifica entre o pensamento estético hanslickiano e platônico uma
enorme disparidade. Essa diferença se deve, especialmente, aos distintos pressupostos em que
ambos se baseiam. Hanslick não apresenta novos fatos à estética, nem discussões com um
embasamento mais científico como assina empreender com o seu livro. O que sobressalta no
seu livro é, através de críticas mordazes e julgamentos de valor, uma tentativa de
32

desconstrução do pensamento filosófico até então estabelecido. Contudo, percebe-se que não
existem, essencialmente, pontos análogos entre a linha desse pensador e à de Platão.

5.3 A MÚSICA NA VISÃO DE DAHLHAUS

Carl Dahlhaus, 1928-1989, foi um musicólogo alemão que contribuiu de grande forma
para a interpretação do fenômeno estético-musical com uma amplitude que vai desde a época
da Grécia Antiga até os tempos atuais. É o autor de mais de vinte e cinco livros que abordam
as mais variadas questões que envolvem música. O livro O que é música é um importante
compêndio das principais pesquisas e interpretações do autor em coautoria de Eggebrecht.
Nesse livro Dahlhaus defende a ideia de que,

o costume de apreender uma relação estreita entre os desvios do texto – as pequenas


variantes que definem o carácter [sic] de uma interpretação – e o significado musical
funda-se na sensação de que a música diz alguma coisa, sem que seja claro e
inequívoco o que ela realmente expressa. (DAHLHAUS, 2011, p. 10, grifo nosso).

Com isto o autor explica a visão do ensino da música, que vincula a interpretação
musical com os significados da obra, como algo fundamentado na sensação de que a música
diz algo, mesmo que essa mensagem não seja clara ou inequívoca. Dahlhaus complementa
essa sua percepção afirmando que,

[...] se o significado da música – o seu sentido específico, aconceptual e não


figurável – não é tanto o que é expresso quanto a própria expressão, então o modo
de execução, as diferenciações agógicas e dinâmicas introduzidas, ganham um
acento graças ao qual a forma existencial estética de uma obra musical se distingue,
em princípio, da de uma obra poética – abstraindo das formas extremas da lírica que
tendem a anular os significados das palavras. (DAHLHAUS, 2011, p. 10).

Pode-se entender, através destas inferências, que Dahlhaus atribui dois significados à
obra musical. O primeiro diz respeito ao próprio significado da música, o qual não pode ser
figurado, conceituado ou demonstrado, enquanto que o segundo está relacionado à
interpretação propriamente dita. Disto depreende-se que caso o primeiro não se torne
manifesto através da interpretação, então o segundo será acentuado. Com estas observações
este pensador deixa transparecer seu entendimento de que a música tenha um conteúdo, o
significado, e uma forma, a estrutura na qual a obra fora concebida.
Para que se entenda melhor essa visão, Dahlhaus (2011, p. 12) enfatiza que, “o
significado da música, entendido no sentido da lógica harmônica e motívica, não está
ancorado, de modo directo [sic] ou indirecto [sic], na realidade objectiva [sic].” Aqui o autor
33

destaca as suas concepções de que o significado lógico, como o harmônico e o motívico, não
esteja preso à realidade objetiva da obra musical, pois constituem a sua forma e não o seu
conteúdo. Quer dizer, entende as relações lógicas da construção musical como algo subjetivo,
enquanto que as significações mais profundas como uma realidade objetiva. Nestas
concepções, cujo olhar é mais técnico, Dahlhaus manifesta um entendimento muito parecido
ao de Platão. Pois, como se evidenciou, este último difere técnica, ou habilidade, musical com
a motivação inspirativa que levou o artista a compor ou interpretar a obra, contrapondo,
assim, forma a conteúdo. Acerca desta questão é que Dahlhaus transcorre com inúmeras
reflexões no seu livro, mas o que realmente toca para esta pesquisa é reconhecer pontos em
comum entre as visões deste estudioso com as de Platão.
Ambos os pensadores admitem que a música tenha uma dupla realidade: uma sensível
– forma (a lógica artística) – e outra metafísica – conteúdo (as significações aconceptuais).
Enquanto que Dahlhaus constata as duas, mas não se posiciona a favor de uma ou de outra,
Platão destaca a importância metafísica da música e a ascendência, dessa, sobre a lógica
formal. Contudo, as revelações de Dahlhaus não apresentam diretrizes estéticas que possam
ser contrastadas às de Platão, apenas evidenciam constatações similares às do filósofo.

5.4 A MÚSICA NA VISÃO DE EGGEBRECHT

Hans Heinrich Eggebrecht, 1919-1999, foi um musicólogo alemão que, no seu livro de
coautoria com Dahlhaus O que é a Música, expõe de forma muito clara e direta as suas
principais concepções acerca da estética da música. Dentre os seus argumentos que mais
chamam a atenção está o de que, “[não se deve esperar que] no fim deste livro, surja uma
definição [do que é música].”, pois o autor acredita que não haja uma definição exata. Para o
autor existem três características específicas que definem o conceito de música e as entende
como,

a emoção é, por assim dizer, o centro da natureza sensível do homem. A mathesis é o


instrumento capaz de descobrir e constituir a harmonia (ordenação), ou seja, a
dimensão que se encontra perante este centro e se lhe contrapõe, embora seja por ele
constantemente ansiada. Mas o tempo é aquilo em que as outras duas se tornam
realidade como música, e é para o homem a mais real de todas as realidades.
(EGGEBRECHT, 2011, p. 6, grifos do autor).

Ou seja, Eggebrecht relaciona emoção, mathesis e tempo com as suas contrapartes


humanas. Define que a primeira característica, emoção, é o centro da natureza sensitiva do
homem; a mathesis (ou seja, matemática) é a ferramenta que revela a ordenação (harmonia);
34

e, por último, o tempo, que na música é o que torna real as duas expressões anteriores. Com
isto afirma que,

estas três características dizem todas respeito ao homem no centro da sua existência
[pois] o seu elemento peculiar é a determinação abstracta [sic] e aconceptual [sic]
com que consegue acolher em si e fazer compreender com potencialidade infinita o
existencial do ser humano, sendo ela própria existencial. (EGGEBRECHT, 2011, p.
6).

Estas afirmações denunciam uma visão similar à de Platão, já que o autor também
entende a música como fundamental na vida humana. Eggebrecht vai mais além e expõe as
suas convicções afirmando que,

a música é – de modo incomparável no seu gênero [sic] e na sua ambivalência –


imagem do cosmos e quinta-essência da representação da paixão humana, voz
angélica em louvor de Deus e instrumento do demônio [sic], promotora e
destruidora do bem e do mal. Como nenhuma outra arte, ela pode sarar e consolar,
embelezar e exaltar, estimular e pacificar, seduzir e fortificar. Sendo existencial
neste sentido, consegue obter em grau máximo o efeito geral da arte: atrair a si e ao
seu mundo – um outro mundo – o homem na sua esfera de existencial.
(EGGEBRECHT, 2011, p. 7, grifos nossos).

O autor salienta com isto que a música seja um reflexo do cosmos. Levanta a ideia de
que a música tem, acima de todas as outras artes, a capacidade inigualável de dar vida aos
mais variados sentimentos humanos. Entende que a música possa promover ou destruir a ideia
de bem ou mal, pois ela se encontra mais além de ambos os conceitos. Estas visões são
análogas à perspectiva platônica de que a música representa uma ideia e seja a manifestação
das divindades.
O autor entende que, a música seja algo sem conceitos (EGGEBRECHT, 2011), pois,
por mais que se façam respeitáveis apreciações a seu respeito, substancialmente esses
conceitos permanecem na inobjetividade. Devido a isto e à irracionalidade que oculta a
música, o estudioso destaca que, nisto reside o seu poder e os seus limites (EGGEBRECHT,
2011). Este autor vê na música o infinito e acredita que ela não possa ser definida de forma
racional, apenas através da experiência que proporciona ao ouvinte. Todas estas inferências
endossam a consistência da especulação platônica de que a música seja de origem divina.
Em meio a esse mistério indecifrável da música Eggebrecht (2011, p. 8) entende que,
“a pergunta ‘que é a música?’, à luz da insistência com que é feita desde a antiguidade, é de
natureza excepcional. Esta pergunta constitui, ainda hoje, a reacção [sic] a um vazio que nos
inquieta.” Com isto o pensador finaliza as suas reflexões apresentadas salientando que as
múltiplas interpretações acerca do que é a música revelam um fato muito significativo: de que
paira sobre a questão um profundo desconhecimento. Esta argumentação do autor faz lembrar
35

o pensamento platônico de que a música esteja associada ao mundo espiritual. Contudo, as


reflexões estéticas de Eggebrecht não apresentam conceitos objetivos que possam se
relacionar aos de Platão, por mais que a visão de ambos seja similar.

5.5 A MÚSICA NA VISÃO DE FUBINI

Enrico Fubini nasceu em 1935, na Itália. No exercício da investigação estética o


pensador realiza um aprofundado estudo sobre a música que vai, desde a Antiguidade até a
Contemporaneidade. Em seu livro La estética musical desde la Antigüidad hasta el siglo XX,
Fubini salienta a ideia de que,

a fascinação que a música sempre exerceu e a capacidade enigmática que se


reconhece nela derivam-se, sobre tudo, do tipo de expressividade que a caracteriza:
se expressa sem que se possa jamais apreender o seu objetivo. A complicada
linguagem que a música utiliza não diz nada a cerca de nada; apesar disto, todos – e,
de um modo ou de outro, também os formalistas mais rigorosos – concordam, ao
atribuir àquela, certo poder expressivo, ainda que sem saber nunca precisar o que é
que realmente expresse a música e nem de que maneira o faz. (FUBINI, 1999, p. 36,
tradução nossa)1.

Com isto o autor revela que a música possui uma natureza enigmática imperscrutável à
razão humana. Esta opinião reforça as convicções de Platão que consideram a música como
algo misterioso e relacionado ao divino. Fubini (1999, p. 523, tradução nossa)2 ainda
acrescenta que, “[...] a estética musical agrupa muitos, quem sabe demasiados enfoques
conceituais, radicalmente diferentes e heterogêneos: experiências de pensamento que partem
de exigências, às vezes especulativas, que aparentemente não têm nada em comum.” Apesar
dessas contradições, vistas como a fragilidade do pensamente estético, este autor compreende
que,

1
“La fascinación que siempre ha ejercido la música y la capacidad enigmática que se le ha reconocido se han
derivado, sobre todo, del tipo de expresividad que la caracteriza: se expresa sin que se pueda jamás aprehender
su objeto. El complicado lenguaje de que hace uso la música no dice nada acerca de nada; a pesar de esto, todos
– y, de un modo u otro, también los formalistas más rigurosos – concuerdan al atribuir a aquélla cierto poder
expresivo, aunque sin saber nunca precisar qué es lo que realmente exprese la música ni de qué manera lo haga.”
2
“[...] la estética musical agrupa muchos, quizás demasiados enfoques conceptuales, radicalmente diferentes y
heterogéneos: experiencias de pensamiento que parten de exigencias, a veces especulativas, a veces prácticas,
que aparentemente no tienen nada en común.”
36

[...] a música é, por essência, um objeto multiforme; o que há de comum entre as


distintas questões sobre as quais se insiste é o feito, precisamente, de que todas elas
se centram sobre o mesmo objeto, o qual, à semelhança de um prisma de muitas
faces, pode ser assimilado e analisado desde perspectivas muito diversas que, ainda
sendo diversas, se integram umas com as outras de algum modo e captam em
uníssono o problema de que se trate. (FUBINI, 1999, p. 524, tradução nossa)3.

Aqui o autor faz uma abordagem extremamente respeitosa quanto às diferentes


concepções estéticas. Afirma que elas sejam apenas diferentes pontos de vista de uma mesma
coisa: a música. Com estas inferências, salienta a importância da discussão filosófico estética
e fomenta uma abordagem crítica construtiva. Fubini (1999) também destaca que, as visões
sectárias da estética e da filosofia, da matemática, da literatura ou da acústica, complementam
e agregam aquilo que não foi detectado por uma dessas áreas em específico. Por conseguinte,
o empreendimento deste trabalho de conclusão, em apresentar as principais concepções
estéticas de Platão e contrapô-las aos diferentes pontos de vista, enaltece o debate filosófico e
promove a discussão construtiva.

5.6 A MÚSICA NA VISÃO DE RIEMANN

Karl Wilhelm Julius Hugo Riemann, 1849-1919, nasceu na Alemanha e foi um


proeminente esteta da música que escreveu diversos livros sobre a temática. Seus estudos vão
desde a teoria da música à filosofia da arte. No seu livro Elementos de Estética Musical,
Riemann (1914, p. 5, tradução nossa)4 afirma que,

Fechner disse muito bem que toda obra de arte é, em última análise, uma livre
manifestação do espírito; por isto a contemplação de tal obra é um feito de
experiência cujo efeito, se admitirmos o máximo de sensibilidade dos órgãos de
percepção, varia de intensidade não somente segundo o poder da vontade, senão que
também segundo as faculdades de realização do criador.

Nesta sentença em que o autor se remete ao pensamento de Fechner, Riemann sustenta


que toda obra de arte é uma manifestação espiritual. Com isto entende que o nível de
contemplação de tal obra é uma experiência artística que varia, não só segundo o poder da
vontade do que contempla, mas, também, do poder do seu criador. Essa constatação está
3
“[...] la música es, por esencia, un objeto multiforme; lo que hay de común entre las distintas cuestiones sobre
las que se ha insistido es el hecho, precisamente, de que todas ellas se centran sobre el mismo objeto, el cual, a
semejanza de un prisma de muchas caras, puede ser asimilado y analizado desde perspectivas muy diversas que,
aun siendo diversas, se integran unas con otras de algún modo y captan al unísono el problema de que se trate
[...].”
4
“Fechner dice muy bien que tuda obra de arte es, en último análisis, una libre manifestación del espíritu; por
esto la contemplación de tal obra es un hecho de experiencia cuyo efecto, si admitimos el máximum de
sensibilidad de los órganos perceptores, varía de intensidad, no solamente según el poder de la voluntad, sino
también según las facultades de realización del creador.”
37

intimamente ligada ao pensamento de Platão no qual entende a música como capaz de


penetrar e agir sobre a alma do ouvinte, porém que, para isso, esse deva ser capaz de se deixar
influenciar por ela.
Riemann (1914, p. 7, tradução nossa)5 compreende que, “toda manifestação do espírito
não é obra de arte; porém Fechner tem designado muito bem, com estas palavras, duas das
qualidades essenciais de toda obra de arte verdadeira.”, as quais define como, liberdade e
homogeneidade (FECHNER apud RIEMANN, 1914). Deste modo Riemann sustenta a ideia
de que exista uma arte verdadeira e uma arte falsa. Para distinguir entre ambas é necessário se
levar em conta que a arte verdadeira se caracteriza como liberdade e unidade, pois mescla a
espontaneidade artística com o senso de coesão da ideia representada.
Dentre outras opiniões de Riemann está a visão de que, a forma na qual uma obra de
arte se revela seja a manifestação de uma ideia do seu criador, logo, a forma deve estar
submetida ao seu conteúdo ou ideia subjacente (RIEMANN, 1914). Esta mesma concepção é
enfatizada constantemente por Hegel no seu Curso de Estética III e também se relaciona ao
pensamento platônico de que o conteúdo da obra seja a verdade proveniente das Musas. Outra
importante concepção de Riemann (1914, p. 8, tradução nossa)6 é a de que, “[...] a criação tem
sua origem no próprio espírito do artista.” Paralelamente a esta ótica Platão entende que o
artista evoca, através da inspiração, as divindades do mundo espiritual para que a sua música
tenha sentido e conteúdo humanos. Estas concepções presentes no pensamento de Riemann
são enfatizadas ao afirmar que, “a arte tende à alta vida espiritual que encerra o mundo
expressado por ele [o artista], e tende a este fim, não na medida em que esse mundo somente
fere os sentidos, senão na medida em que penetra na alma e é fonte de emoção.” (SCHUTZ,
1825 apud RIEMANN, 1914, p. 9, 1825, tradução nossa)7. Quer dizer, o autor sugere que a
arte provenha do mundo espiritual – no qual foi concebida – e que regressa a esse mesmo
mundo na proporção em que consegue penetrar e motivar a alma do ouvinte.
Do ponto de vista da criação musical Riemann (1914) percebe que, é pela educação
musical, ou até mesmo por uma inclinação fisiológica, que tão somente o lado técnico da
música é apropriado pelo compositor, em detrimento da imaginação criadora. Como resultado
dessa desproporção o estudioso entende que, há um perigoso afastamento entre a inspiração e
a técnica artística (RIEMANN, 1914). Com esta relação Riemann reforça a concepção

5
“Toda manifestación del espíritu no es obra de arte; pero Fechner ha designado muy bien, com estas palabras,
dos de las cualidades esenciales de toda obra de arte verdadera.”
6
“[...] la creación tiene su origen en el espíritu mismo del artista.”
7
“La arte tiende a la alta vida espiritual que encierra el mundo expresado por él, y tiende a este fin, no en la
medida en que este mundo hiere solamente los sentidos, sino en la medida en que penetra en el alma y es fuente
de emoción.”
38

platônica de que o essencial para o fazer artístico não é a técnica ou a habilidade, mas a
inspiração criadora.
O esteta também destaca o ponto de vista de que,

[...] toda obra de arte, sem exceção alguma, é a expressão de um sentimento


humano, de um pouco da vida da alma; representa manifestações da consciência
vital do homem, manifestações que repercutem na alma dos demais seres
organizados de um modo semelhante, e que, como tais, têm um valor estético
determinado. (RIEMANN, 1914, p. 16, tradução nossa) 8.

O autor compreende que a música seja a expressão de um sentimento da alma e, com


isto, seja capaz de repercutir na alma daquele ouvinte organizado psicologicamente do mesmo
modo, ou de um modo semelhante. Tal consideração é análoga à perspectiva platônica de que
a música mova as órbitas da alma, proporcionando-lhe equilíbrio e organização.
Riemann (1914, p. 17, tradução nossa)9 também entende que, “[...] a arte, enquanto
expressão, deve ser antes de tudo uma homenagem à verdade.” Com isto deixa claro a sua
visão ética sobre a música, inferindo que, antes de tudo, ela deva reverenciar a verdade. De
um modo muito similar, Platão destaca que o artista inspirado é aquele capaz de falar a
verdade proveniente das Musas.
Ao retornar à questão do que vem a ser arte o autor destaca que,

[...] está aqui a solução do enigma que se propõe, quando perguntamos como é
possível distinguir a arte falsa da arte verdadeira; este cria formas que lhe são
próprias, o outro não mais que hipocrisia, posto que toma emprestadas as formas
pelas quais se manifesta. (RIEMANN, 1914, p. 19, tradução nossa) 10.

Nesta sentença Riemann é categórico ao conceber como algo muito simples distinguir
a arte falsa da verdadeira: a primeira é caracterizada pelo artista que toma emprestado as
formas pelas quais sua arte se manifesta, enquanto que a outra cria as formas que lhe convêm.
A virtude do artista em se manifestar por meio da forma é compreendida por Riemann (1914)
como, ética artística.
No que diz respeito às relações psicológicas provocadas pelos sons e,
consequentemente, pela música, Riemann enfatiza que,

8
“[...] toda obra de arte, sin excepción alguna, es la expresión de un sentimiento humano, de un poco de la vida
del alma; representa manifestaciones de la conciencia vital del hombre, manifestaciones que repercuten en el
alma de los demás seres organizados de un modo semejante, y que, como tales, tienen un valor estético
determinado.”
9
“[...] el arte, en cuanto expresión, debe ser ante todo un homenaje a la verdad.”
10
“[...] he aqui la solución del enigma que se propone, cuando preguntamos cómo es posible distinguir el arte
falso del arte verdadero; este crea formas que le son propias, el otro no es más que hipocresía, puesto que toma
prestadas las formas bajo las cuales se manifiesta.”
39

sons que aumentam ou diminuem, que sobem ou baixam, que se sucedem com
lentidão ou com rapidez, em um movimento igual ou desigual, sons graves ou
ligeiros, tímidos, rudes ou atenuados, chamados também choques, palpitações,
suspiros, ondas de emoção ou de alegria... despertam em nossa alma movimentos
análogos. (HERDER apud RIEMANN, 1914, p. 25, tradução nossa) 11.

A concepção do estudioso, como se pode perceber, é a de que os diferentes sons


provocam na alma do ouvinte oscilações análogas. Do mesmo modo Platão acredita que a
música incide e atue sobre a alma. Quanto a isto Riemann (1914) reforça ainda que, esses
movimentos inerentes à música não produzem apenas reações psicológicas no ouvinte, mas
também emoções congêneres aos próprios movimentos sonoros. Para apresentar uma ideia
mais ampla destas suas concepções Riemann (1914) aponta que, o homem canta porque a
emoção lhe impulsiona, justamente por isso que a música, através dos seus movimentos,
consegue expressar sensações congêneres.
Com base nestas opiniões o pensador confronta, de maneira respeitosa, a opinião de
Hanslick afirmando que,

esta clara demonstração da ação direta da música sobre nossa alma é, ao mesmo
tempo, uma resposta à questão de saber se existe uma beleza natural para a música;
não bastam estas indicações para desmascaram a debilidade e a superficialidade da
negação de Hanslick? (RIEMANN, 1914, p. 27, tradução nossa) 12.

Riemann refere-se às concepções de Hanslick presentes no livro Do Belo Musical,


onde esse autor busca desconstruir concepções que ele entende como não científicas. Porém,
Riemann concebe que, diferente das opiniões de Hanslick, a música incide sobre a alma do
ouvinte. Para que não restem mal entendidos, Riemann (1914, p. 27, tradução nossa)13 apura a
sua apreciação afirmando que, “é verdade que [Hanslick] demonstra que a música representa
o elemento dinâmico das emoções, a mobilidade de suas formas; porém não nota que é
também a interpretação do ser íntimo, da alma [...].” Com isto o pensador resume a questão
inferindo que a música, em última instância, afeta a alma do ouvinte e que as suas
manifestações sonoras são interpretadas, não só pelo compositor ao concebê-la, mas também
pelo ouvinte.
Para entendimento desta ótica, deve-se partir da suposição de que,

11
“Sonidos que aumentan o disminuyen, que suben o bajan, que se suceden con lentitud o con rapidez, en un
movimiento igual o desigual, sonidos graves o ligeros, tímidos, rudos o atenuados, llamados también choques,
palpitaciones, suspiros, olas de emoción o de alegria... despiertan en nuestra alma movimientos análogos.”
12
“Esta clara demostración de la acción directa de la música sobre nuestra alma es, al mismo tiempo, una
respuesta a la cuestión de saber si existe una belleza natural para la música; ¿no bastan estas indicaciones para
desenmascarar la debilidad y la superficialidad de la negación de Hanslick?”
13
“Es verdad que este último demuestra que la música representa el elemento dinâmico de las emociones, la
movilidad de sus formas; pero no nota que es también la interpretación del sér íntimo, del alma [...].”
40

o efeito das vibrações sonoras, ou melhor, a eleição deste procedimento para


exteriorizar a vida do ser íntimo, deve ter sua origem no feito de que o sentimento
mesmo é um fenômeno vibratório [...]. (KOESTLIN, 1857 apud RIEMANN 1914, p.
32-33, grifos do autor, tradução nossa)14.

Riemann, deste modo, demonstra que a busca por um método de manifestar as coisas
íntimas, por meio dos efeitos que o som produz, se fundamenta no fato de que o sentimento é,
também, um fenômeno vibratório. Então fica fácil se entender que som e sentimentos estejam
diretamente associados. Riemann (1914, p. 94, tradução nossa)15 ainda enfatiza a ideia de que,
“a expressão da sensação se faz, portanto, para o indivíduo que a realiza, uma representação,
um objeto cuja contemplação é uma fonte fecunda de atividade e, por conseguinte, de gozo
espiritual.” Disto que se pode entender que para ele, assim como para Platão, a finalidade da
música se fundamenta na espiritualidade.
Quanto à capacidade formativa da música o autor sustenta a opinião de que,

a unidade na diversidade, isto é o que o espírito humano reclama em toda forma de


arte destinada à lhe proporcionar algum gozo espiritual. A unidade sem a diversidade
não seria senão uniformidade, a diversidade sem a unidade não seria mais que caos
informe; estas duas noções separadas carecem de valor e de interesse [...].
(RIEMANN, 1914, p. 207, tradução nossa) 16.

Assim Riemann reafirma a sua concepção de que a música tem como finalidade
proporcionar o regozijo espiritual ao ouvinte, uma vez que é isso o que o espírito humano
reclama. Também entende que o interesse artístico deva ser o de compatibilizar a diversidade
com a unidade, pois um elemento apartado do outro ficaria carente de valor.
Em todas estas definições aqui apresentadas se pode evidenciar grande similaridade
conceitual entre este autor e Platão. Para ambos a música é uma manifestação espiritual, pois
enquanto Platão entende a música como uma revelação da verdade, Riemann afirma que o
obra de arte deva ser uma homenagem à verdade. No que diz respeito à forma, Platão percebe
nela a manifestação do belo, Riemann uma expressão da consciência artística e de emoções.
No que se relaciona às técnicas e habilidades artísticas, Platão não as vê como
essenciais, ao mesmo tempo em que Riemann afirma que elas não devam se sobrepor à
imaginação criadora, nem à inspiração. Platão entende que a música produza na alma

14
“El efecto de las vibraciones sonoras, o mejor, la elección de este procedimiento para exteriorizar la vida del
sér íntimo, debe tener su origen en el hecho de que el sentimiento mismo es un fenómeno vibratorio [...].”
15
“La expresión de la sensación se hace, por tanto, para el individuo mismo que la realiza, una representación,
un objeto cuya contemplación es una fuente fecunda de actividad y, por consiguiente, de goce espiritual.”
16
“La unidad en la diversidad, esto es lo que el espíritu humano reclama en toda forma de arte destinada a
proporcionarle algún goce estético. La unidad sin la diversidad no sería sino uniformidad, la diversidad sin la
unidad no sería más que caos informe; estas dos nociones aisladas carecen de valor y de interes [...].”
41

movimentos análogos, os quais viabilizam a educação do ser humano, enquanto que Riemann
entende que a música tenha a capacidade de afetar e enobrecer a alma.
Por fim, Platão vê no artista um sujeito inspirado, ao mesmo tempo em que Riemann
vê um sujeito ético e comprometido com a verdade artística. Todas estas relações constituem
um importante objeto de análise para esta pesquisa.

5.7 A MÚSICA NA VISÃO DE PAHISSA

Jaime Pahissa, 1880-1969, no seu livro Los Grandes Problemas de La Música,


apresenta importantíssimas contribuições para a compreensão da estética da música. Nele,
Pahissa (1945) afirma que, uma obra só é digna de ser chamada “arte” quando tem vida, e que
sem esta condição não seria arte. Para compreender esta digressão sobre arte o autor sustenta
a ideia de que,

[...] se diz que ‘está cheia de vida’, para afirmar que é obra de arte, de valor
essencial e fundamentalmente estético, ainda que logo se discutam seu estilo, sua
escola, sua forma, sua correção, sua técnica, seu aspecto mais ou menos agradável,
sua profundidade, sua grandeza, mil qualidades que poderão ou não prestar e que
serão mais ou menos dignas de ser consideradas, porém que, por si, não poderiam
dar a obra de arte o valor de tal, e que unicamente o concede essa vibração especial,
que não sabemos assimilar a outra coisa que à vida. (PAHISSA, 1945, p. 39-40,
tradução nossa)17.

O pesquisador entende que seja por meio da essencialidade do conteúdo – a vida – que
a obra adquire a condição de arte. Através deste prisma o autor defende a ideia de que, por
mais que se discutam questões de forma, técnica, tendência, etc. uma obra só pode ser
considerada arte ao manifestar vida, pois é esta quem lhe confere a dignidade artística. Ao
tratar mais especificamente de criação artística Pahissa (1945, p. 40, tradução nossa)18
defende que, “[...] é necessário que o autor, ao criá-la, esteja inspirado.” Isto deve-se ao
entendimento de que,

17
“[...] se dice que ‘está llena de vida’, para afirmar que es obra de arte, de valor esencial y fundamentalmente
estético, aunque luego se discutan su estilo, su escuela, su forma, su corrección, su técnica, su aspecto más o
menos agradable, su profundidad, su grandeza, mil qualidades que podrá o no presentar y que serán más o menos
dignas de ser consideradas, pero que, por sí, no podrían dar a la obra de arte el valor de tal, y que únicamente se
lo concede esa vibración especial, que no sabemos asimilar a outra cosa que a la vida.”
18
“[...] es necesario que el autor, al crearla, esté inspirado.”
42

a inspiração é um agente obscuro e misterioso. Ao receber o hálito da inspiração o


artista entra em um estado especial, difícil de descrever. Sua mente se aviva e se
ilumina, seu olhar se perde no infinito, seu pulso bate com mais força e rapidez, e na
sua imaginação aparecem as visões de arte, claras e evidentes, como se uma janela
tivesse se aberto sobre um mundo superior, como se lhe tivessem ditado as ideias
que apenas tinha pressentido, e que, em estado normal, de consciência serena, por
caminhos lógicos e intelectivos, não teria nunca chegado a descobrir nem a alcançar.
(PAHISSA, 1945, p. 40, tradução nossa)19.

Para o autor o mistério da inspiração é o grande efeito artístico que faz do artista um
ser luminoso capaz de dar vida à sua obra, pois é ela quem coloca a mente do artista num
estado superior. Esta percepção é análoga à de Platão que concebe a inspiração como o meio
do artista manifestar a verdade, a qual provém unicamente das divindades. Pahissa (1945)
entende que, o artista tem à sua disposição a inspiração, da mesma forma que Deus tem o
“hálito” capaz de dar vida à matéria inanimada. Contudo destaca que, “nem todo mundo é
capaz de lograr a inspiração.” (PAHISSA, 1945, p. 41, tradução nossa)20.
Neste sentido o autor esclarece que,

não será um verdadeiro artista o que não seja capaz ou, melhor dito, digno, de
receber o hálito da inspiração. Em virtude deste sopro celestial – já os gregos
chamaram “alento das musas”, seres semidivinos, à inspiração – o artista infunde a
vida em suas obras terrenas: repete o mistério da criação, que na terra é coisa divina,
e, como Deus, no símbolo do gênesis, com seu sopro deu a vida ao homem feito de
barro, o artista, com o sopro da inspiração, faz viver a matéria das suas obras.
(PAHISSA, 1945, p. 41, grifo do autor, tradução nossa)21.

Com isto fica ainda mais evidente a semelhança entre o pensamento de Pahissa e
Platão, pois o autor vincula a inspiração com o divinal. Afirma que através da inspiração o
artista repete o mistério da criação e, como Deus, infunde vida nas obras de sua criação.
Pahissa (1945) vai mais além e define que, existem duas formas de inspiração: a apolínea e a
dionisíaca. A primeira é serena, concentrada, contida e tranquila; a segunda é agitada, cheia

19
“La inspiración es un agente oscuro y misterioso. Al recibir el hálito de la inspiración el artista entra en un
estado especial, difícil de describir. Su mente se aviva y se ilumina, su mirada se pierde en el infinito, su pulso
bate con más fuerza y rapidez, y en su imaginación aparecen las visiones de arte, claras y evidentes, como si uma
ventana se le abriera sobre un mundo superior, como se le dictaran las ideas que apenas hubiera presentido, y
que, en estado normal, de consciencia serena, por caminos lógicos e intelectivos, no hubiera nunca llegado a
descubrir ni a alcanzar.”
20
“No todo el mundo es capaz de lograr la inspiración.”
21
“No será un verdadero artista el que no sea capaz o, mejor dicho, digno, de recibir el hálito de la inspiración.
En virtud de este soplo celestial – ya los griegos llamaron ‘aliento de las musas’, seres semidivinos, a la
inspiración – el artista infunde la vida en sus obras terrenas: repite el misterio de la creación, que en la tierra es
cosa divina, y, como Dios, en el símbolo del génesis, con su soplo dió la vida al hombre hecho de barro, el
artista, con el soplo de la inspiración, hace vivir la materia de sus obras.”
43

de entusiasmo, ardente e arrebatadora. Disto, Pahissa (1945, p. 42, tradução nossa)22


depreende que,

a inspiração do músico, pois, é dionisíaca, porque se move por sentimentos


exaltados e extremos: o entusiasmo desatado, a melancolia profunda. E é, sem
dúvida alguma, a inspiração musical a mais etérea porque irradia sobre ideias
incorpóreas e irreais: por isso, à música, se chama arte divina. Poderíamos dizer que
a música é inspiração pura, é a inspiração própria.

Ao sustentar estas ideias o autor define que música seja a manifestação de ideias
incorpóreas e irreais e que, justamente por essas características, ela é distinguida desde a
antigüidade, entre as demais artes, como sendo a arte divina. O autor não se detém somente
em opiniões. Expõe as suas concepções artísticas e dá inúmeros exemplos de compositores
prolíficos. Ao realizar uma análise da vida desses compositores e as suas técnicas de
composição Pahissa (1945) destaca que, compunham como um ofício. Devido a isso, quer
estivessem inspirados ou não, eram obrigados a criar sem se dar conta ou aceitar que a
inspiração seria fundamental para um resultado de qualidade. Articulando nesse sentido o
pesquisador percebe que,

[...] todos eles compunham um grande número de obras, a maioria das quais foram
escritas unicamente sob o ditado das regras da técnica e obedecendo às mais corretas
leis da composição. Só de vez em quando a inspiração, com seu quente alento, as
dotava de vida. Por isso, também, são poucas as obras que se tocam destes músicos,
em proporção ao grande número que compuseram. (PAHISSA, 1945, p. 56, tradução
nossa)23.

Para Pahissa fica clara a distinção entre técnica compositiva e inspiração criadora. O
autor destaca que os compositores, ao não conseguirem se inspirar, concebiam as suas obras
unicamente de maneira técnica, pois conheciam perfeitamente as “leis” da composição
musical. Um importante exemplo que o autor traz para reflexão é o de Bach, afirmando que,

22
“La inspiración del músico, pues, es dionisíaca, porque se mueve por sentimientos exaltados y extremos: el
entusiasmo desatado, la melancolía profunda. Y es, sin duda alguna, la inspiración musical la más etérea porque
irradia sobre ideas incorpóreas e irreales: por eso, a la música, se la llama arte divina. Podríamos decir que la
música es inspiración pura, es la inspiración misma.”
23
“[...] todos ellos componían gran número de obras, la mayoría de las cuales fueran escritas bajo el solo dictado
de las reglas de la técnica y obedeciendo a las más correctas leyes de la composición. Sólo de vez en cuando la
inspiración, con su cálido aliento, las dotava de vida. Por eso, también, son pocas las obras que se tocan de estos
músicos, en proporción al gran número que compusieron.”
44

este extraordinário compositor escreveu, durante toda sua vida, sem descanso,
rodeado de todos os incômodos, entre o barulho familiar dos seus numerosos filhos,
e sempre compondo obras por encargo e à prazo fixo; e apesar de tantas dificuldades
e inconvenientes, pode, em todas as obras, imprimir uma emoção profunda, como
produzida por uma alta inspiração, constante e inesgotável. Tanto é que o
temperamento musical de Bach foi de uma capacidade e de uma qualidade nunca
igualadas. (PAHISSA, 1945, p. 59, tradução nossa) 24.

Nesta significante exemplificação o autor sustenta a ideia de que as obras de Bach são
fonte de inexprimível sensibilidade emocional, por mais que possam ter havidos inúmeros
obstáculos durante os seus processos de criação. Pahissa entende que o compositor era um
prolífico conhecedor das técnicas compositivas, mas que, apesar desse fato, não dispensou de
forma alguma a inspiração. Referindo-se à Mozart o estudioso afirma que,

[...] o puro e equilibrado Mozart, compôs sempre aguçado pela necessidade de


dinheiro. Esta o obrigava a trabalhar dia e noite. Em poucos meses terminava as suas
óperas para poder cobrar, de uma vez, os poucos florins que lhe ofereciam os
empresários. [...] Porém a infinidade de obras que compôs, a imensa maioria são
produto, belo e elegante, é verdade, de um ofício e de uma hábil mão, qualidades
que possuía por dom natural; de vez em quando, entre o trabalho quotidiano e
obrigado, a luz da inspiração brilha em puríssimas melodias. É nelas que se
encontra todo o valor que faz imortal o nome de Mozart. (PAHISSA, 1945, p. 59-61,
grifos nossos, tradução nossa)25.

Aqui são destacadas as obras de Mozart. O estudioso entende que elas, na sua grande
maioria, foram o resultado de um grande domínio técnico e de habilidades artísticas, porém
não vincula o imenso valor e graça de algumas dessas obras ao puro conhecimento técnico.
Quanto ao caso de Beethoven o autor sustenta que,

[esse compositor nasceu no mundo artístico quando a música ainda era tida como
um ofício,] suas primeiras obras estão concebidas e desenvolvidas com este conceito
de arte. Há nelas muito de composição acadêmica. Porém na alma de Beethoven se
acumulam os grandes sentimentos, uma força de humanidade cada vez mais
poderosa vai dominando sua vida interior. Já para escrever não se satisfaz do
trabalho moldado e em acordo às regras aprendidas. Se seu coração não bate com
mais ímpeto, se seus sentimentos não são reflexo de uma emoção mais profunda, se
suas ideias não respondem à uma tensão de espírito mais vibrante, não irá querer
fixá-los no papel. Não lhe basta o domínio de um ofício e de todos os recursos da
arte, necessita, para compor, a guia palpitante e segura da inspiração, necessita

24
“Este extraordinário compositor escribió, durante toda su vida, sin descanso, rodeado de todas las
incomodidades, entre el barullo familiar de sus numerosos hijos, y siempre componiendo obras por encargo y a
plazo fijo; y a pesar de tantas dificultades e inconvenientes, pudo, en todas las obras, imprimir una emoción
profunda, como producida por una alta inspiración, constante e inegotable. Y es, que el temperamento musical de
Bach fué de una capacidad y de una calidad nunca igualadas.”
25
“[...] el puro y equilibrado Mozart, compuso siempre acuciado por la necesidad del dinero. Ésta le obligava a
trabajar día y noche. En pocos meses terminaba sus óperas para poder cobrar, por una sola vez, los pocos florines
que le ofrecían los empresarios. [...] Pero de la infinidad de obras que compuso, la inmensa mayoría son
producto, bello y elegante, es verdad, de un ofício y de una hábil mano, cualidades que poseía por don natural;
de vez en cuando, entre el trabajo cuotidiano y obligado, la luz de la inspiración brilla en purísimas melodias. Es
en ellas que se concentra todo el valor que hace el nombre de Mozart.”
45

encher de vida e de humanidade suas concepções. (PAHISSA, 1945, p. 61, tradução


nossa)26.

Desta forma Pahissa esclarece que Beethoven rompeu com os padrões artísticos
acadêmicos, pois, sendo impulsionado fortemente pela motivação interior – a inspiração –,
não compõe porque sabe compor, mas porque sente e vive a música dentro de si. A música de
Beethoven é o resultado da sua sensibilidade como ser humano e do seu amor ao próximo, já
que a sua motivação de criar vem da necessidade de dar, pelo menos um pouco, daquilo que
tem dentro de si. Referindo-se ainda à Beethoven e à sua crescente habilidade compositiva, o
autor admite que,

[as] suas obras, à medida que são mais avançadas no tempo, são também mais
completas e menos ligadas a uma forma estabelecida e disposta. Em violentas
manifestações de inspiração rompe os moldes conhecidos e surpreende com formas
e ideias inesperadas. (PAHISSA, 1945, p. 61, tradução nossa) 27.

Beethoven, compelido por violentas manifestações de inspiração, rompe com os


formatos artísticos usuais, pois subentende que a forma deva estar subjugada ao conteúdo.
Sobre o discutido processo de concepção artística moderna, Pahissa (1945) entende que,
muitos compositores modernos têm retornado no tempo para compor música sem inspiração,
pois, dominados pelas possibilidades técnico-artísticas cada vez mais divulgadas, eles têm se
afastado dos princípios da inspiração.
Nesse sentido Pahissa (1945, p. 64, tradução nossa)28 exemplifica a sua visão
afirmando que,

um dos compositores atuais de mais prestígio e fama, Strawinski [sic], disse que seu
ideal é escrever música cada dia, sem preocupações nem obseções de caráter
emotivo, da mesma maneira, disse, que um sapateiro faz sapatos. Porém Strawinski
[sic], em outra página das suas memórias, explica que necessita do piano para
compor, e um lugar quieto e recolhido.

26
“Sus primeras obras están concebidas y desarrolladas con este concepto del arte. Hay en ellas mucho de
composición acadêmica. Pero en la alma de Beethoven se ensanchan los grandes sentimientes, una fuerza de
humanidad cada vez más poderosa va dominando su vida interior. Ya para escribir no se satisface del trabajo a
molde y acordado a las reglas aprendidas. Si su carazón no late con más ímpetu, si sus sentimientos no son
reflejo de una emoción más honda, si sus ideas no responden a una tensión de espíritu más vibrante, no querrá
fijarlos en el papel. No le basta el domínio del oficio y de todos los recursos del arte, necesita, para componer, la
guia palpitante y segura de la inspiración, necesita henchir de vida y de humanidad sus concepciones.”
27
“Por eso sus obras, a medida que son más avanzadas en el tiempo, son también más completas y menos
ligadas a una forma establecida y dispuesta. En violentas ráfagas de inspiracion rompe los moldes conocidos y
sorprende con formas e ideas inesperadas.”
28
“Uno de los compositores actuales de más prestigio y fama, Strawinski, dice que su ideal es escribir música
cada dia, sin preocupaciones ni obsesiones de carácter emotivo, de la misma manera, dice, que um zapatero hace
zapatos. Pero Strawinski, em outra página de sus memórias, explica que necesita el piano para componer, y un
lugar quieto y recogido.”
46

Esse gesto do compositor é entendido por Pahissa (1945) como, para se inspirar nas
notas e harmonias, pois esse compositor não necessitaria utilizar o piano, já que domina as
técnicas de composição perfeitamente. Com este e outros exemplos de compositores famosos
o autor sustenta as suas mais variadas opiniões e conclui insistindo que,

[...] enquanto a inspiração sopre sobre o artista, seja em hálito ardente ou sereno
passa, seja sobre obra de pedra ou de vibração alada, sempre o resultado será uma
criação artística, dotada de vida e que perdurará através do tempo e das gerações
para gozo e aperfeiçoamento do seu espírito. Pela inspiração o artista engendra obras
perduráveis, e pela inspiração o artista adquire uma faculdade nova, do mesmo
gênero da intuição, que lhe faz adivinhar e repetir, por meio da sua arte, e sem
titubeios ou equívocos, as formas de beleza superior e imortal. (PAHISSA, 1945, p.
66 e 71, tradução nossa)29.

Esta afirmação de Pahissa ilustra de maneira incisiva e muito objetiva a sua percepção
sobre a inspiração. Sustenta que ela, ao exercer no artista as suas influências, promove obras
imortais onde o gozo e o aperfeiçoamento do espírito é a mais alta aspiração. O autor também
indica que somente a inspiração é capaz de manifestar formas de beleza superiores e divinais,
pois essas formas dependem, exclusivamente, do sentimento artístico inspirado.
No âmbito geral das concepções de Pahissa é possível verificar constantemente
diversos princípios do pensamento platônico. O autor relaciona a música com o espiritual, do
mesmo modo que Platão a relaciona com as Musas; deslumbra um sentido ético na obra de
arte quando essa manifesta a vida através da inspiração, assim como Platão que vincula o
artista inspirado como aquele sujeito capaz de falar a verdade; Pahissa entende que a forma
deve manifestar princípios espirituais, enquanto que Platão vê na arte, sempre que o artista
esteja inspirado, uma forma de manifestação de beleza; para Pahissa a técnica não é o
fundamental, mas sim a inspiração, do mesmo modo que Platão; o autor percebe na música a
capacidade de irradiar ideias incorpóreas e irreais (ideias espirituais), ao mesmo tempo em
que Platão, devido a essa mesma constatação, vê na música um poder formativo: a educação;
por fim, Pahissa infere que o artista, aquele capaz de infundir vida à suas obras, é um sujeito
inspirado, no mesmo sentido em que Platão vê no artista inspirado um arauto das Musas e dos
seres divinais.

29
“[...] mientras la inspiración sople sobre el artista, sea en hálito ardiente o sereno paso, sea sobre obra de
piedra o de vibración alada, siempre el resultado será una creación artística, dotada de vida y que perdurará a
través del tiempo y de las geraciones para goce y perfeccionamiento de su espíritu. Por la inspiración el artista
engendra obras perdurables, y por la inspiración el artista adquiere una facultad nueva, del mismo género que la
intuición, que le hace adivinar y repetir, con médios de su arte, y sin titubeos ni equivocaciones, las formas de
belleza superior e inmortal.”
47

Feitas estas análises, os pensadores que corroboram para construção do modelo


estético-musical platônico serão Hegel, Riemann e Pahissa. A partir do capítulo seguinte se
retomarão as concepções destes pensadores, às quais serão cruzadas com os ideais de Platão.
48

6 METODOLOGIA

Neste ponto do trabalho se entende como necessária uma breve descrição dos
procedimentos metodológicos que adotei para a análise de conteúdo, do que até aqui foi
apresentado e discutido. Além de esclarecer os métodos empregados para isso, se tratará de
fornecer os dados obtidos até aqui, os quais constituirão o modelo estético platônico. Somente
depois de especificadas essas importantes informações, será possível se proceder com uma
investigação acerca das concepções filosóficas e estéticas de Gustav Mahler, isto com a
intenção de verificar se há, entre Platão e Mahler, analogia conceitual.

6.1 FERRAMENTA METODOLÓGICA

As ferramentas utilizadas na pesquisa científica devem garantir a integridade das


informações colhidas e indicar os possíveis resultados. Almejando a maior credibilidade
possível, nesse processo se realizará uma análise de conteúdo das informações levantadas, até
agora, com base nas diretrizes metodológicas de análise de conteúdo de Bardin.
Bardin (2011, grifos nossos) entende que, a sutileza do método de análise de conteúdo
está relacionada diretamente a dois pontos de grande relevância: a superação da incerteza e o
enriquecimento da leitura. Somente desse modo, compreende o autor, se preencherão os
requisitos rigor e necessidade de conhecer. Como consequência dessa perícia se atingirá o
objetivo final do trabalho: levantar provas suficientes para afirmar ou infirmar a hipótese
sugerida.
Segundo Bardin a análise de conteúdo possui duas funções indissociáveis. Essas
funções são entendidas como,

uma função heurística: a análise de conteúdo enriquece a tentativa exploratória,


aumenta a propensão para a descoberta. É a análise de conteúdo “para ver o que dá”.
Uma função de “administração da prova”. Hipóteses sob a forma de questões ou de
afirmações provisórias, servindo de diretrizes, apelarão para o método de análise
sistemática para serem verificadas no sentido de uma afirmação ou de uma
infirmação. É a análise de conteúdo “para servir de prova”. (BARDIN, 2011, p. 35-
36, grifos do autor).

Aqui Bardin faz referência direta aos propósitos da análise de conteúdo, considerando
que essa possui uma função de facilitadora da descoberta e outra de administradora. Como
neste trabalho se primou pela descoberta e pela cientificidade comprobatória, a proposta de
análise de conteúdo aqui apresentada se mostra essencial e prolífera.
49

Bardin (2011) entende o trabalho do analista como, análogo ao do arqueólogo, pois


ambos trabalham com vestígios. Para o autor tais vestígios – os documentos – podem estar
sob duas formas possíveis: “documentos suscitados pela necessidade de estudo [bem como]
documentos naturais, produzidos espontaneamente na realidade [...].” (BARDIN, 2011, p. 45).
Para fins desta pesquisa realizei a investigação de livros diversos, pesquisas, artigos,
documentários, etc. buscando encontrar nesses documentos inferências da filosofia musical
platônica presente na vida e na obra de Mahler.
O autor entende que, “o peso do desenvolvimento das técnicas documentais tem-se
mantido relativamente discreto no campo científico.” (BARDIN, 2011, p. 51). Com isto,
percebe que a área da análise documental se mantém ainda muito discreta ao “profano”.
Contudo, o autor afirma que,

[...] alguns procedimentos de tratamento da informação documental apresentam tais


analogias com uma parte das técnicas da análise de conteúdo que parece conveniente
aproximá-los para melhor diferenciar. A finalidade é sempre a mesma, a saber,
esclarecer a especificidade e o campo de ação da análise de conteúdo. (BARDIN,
2011, p. 51).

Bardin entende que as técnicas de análise documental e de conteúdo são muito


similares, sendo a mesma finalidade. O autor afirma que a análise documental pode ser
definida como, “uma operação ou um conjunto de operações visando representar o conteúdo
de um documento sob uma forma diferente da original, a fim de facilitar, num estado ulterior,
a sua consulta e referenciação.” (CHAUMIER, 1988 e 1989 apud BARDIN, 2011, p. 51).
Bardin (2011) considera que, uma pré-análise consiste numa sistematização e
facilitação das operações seguintes, aquelas que conduzirão à obtenção dos resultados. A fim
de operacionalizar a análise dos conteúdos, este trabalho já procedeu com a pré-análise
através de uma organização estrutural do mesmo. Sendo de cunho qualitativo, a presente
pesquisa demandou um tratamento apropriado, pois Bardin (2011, p. 145) acredita que,

a análise qualitativa apresenta características particulares. É válida, sobretudo, na


elaboração das deduções específicas sobre acontecimento ou uma variável de
inferência precisa, e não em inferências gerais.

Com isto Bardin (2011) esclarece que, a análise qualitativa deva estar alinhada à
compreensão exata do sentido daquilo que se quer analisar.
Finalizando estas importantes aclarações, deve-se compreender que a essência das
concepções de Platão, apresentadas no capítulo IV, constituem os parâmetros da análise. Por
outra parte, as concepções estéticas dos pensadores contemporâneos, apresentadas e
50

discutidas no capítulo V, constituem o objeto a ser analisado. Através do cruzamento dessas


diferentes percepções estéticas se chegou aos resultados. Somente a partir dos dados
resultantes desse confronto será possível se inquirir se as concepções artísticas e filosóficas de
Gustav Mahler são, ou não, similares às de Platão, conforme veremos no decorrer dos
próximos capítulos.

6.2 MODELO ESTÉTICO PLATÔNICO

Constatou-se, no decorrer do presente trabalho, a enorme influência da mitologia


grega no pensamento platônico. Platão tomou como base para as suas especulações marcantes
nomes ligados ao pensamento ancestral. O filósofo menciona constantemente nos seus
escritos esses pensadores, chegando, inclusive, a chama-los de “Os Antigos”. Dentre esses,
figura Homero, tomado como um dos personagens centrais do pensamento platônico e,
sobretudo, como um ponto de partida seguro à investigação filosófica devido à credibilidade
que a sua obra inspira.
No que tange à cientificidade das articulações homéricas, Pitágoras, como se viu no
capítulo III, teve a ousadia de procurar nelas as suas possíveis comprovações. As intervenções
científicas de Pitágoras e dos seus sucessores, fundamentaram-se em grande parte na busca
por uma argumentação científica que pudesse contribuir com a veracidade dos mitos.
Pitágoras almejou a comprovação da fonte mitológica tendo o mito como uma verdade, ainda
que a ciência não o tenha certificado. Dentre as contribuições pitagóricas que mais prestigiam
o discurso sobre a música, destaca-se o seu legado no campo da harmonia e do próprio debate
estético dessa arte.
Enquanto que Homero vinculou as diferentes expressões artísticas às Musas do Monte
Olimpo, Pitágoras tratou de garantir a presença dessas mesmas divindades no discurso
científico. Somente mais tarde no tempo Platão retomou a questão da arte, inferindo-lhe novas
perspectivas e repercussões, ainda que não contrastantes ao pensamento “antigo”.
No capítulo IV foram apresentadas algumas das mais relevantes percepções platônicas
sobre música e como o filósofo inquiriu sobre elas se remetendo constantemente aos mitos
para embasar a sua cientificidade. Dentre as mais significantes atribuições à música que
Platão faz, encontra-se a revelação de que, enquanto o artista seja um ser inspirado, a música
estará ligada ao divino e, consequentemente, terá a capacidade de conectar o ser humano a
esse princípio espiritual, pois terá a virtude que chamo de religiosidade.
51

Outra destacada concepção platônica diz respeito ao sentido ético. Para ele a ética
artística é exercida quando o artista, conectado às Musas por meio da inspiração, consegue
manifestar, através da sua obra, a verdade proveniente do mundo espiritual. A forma também
é um dos pontos relevantes dentro do pensamento platônico. O filósofo garante que a forma
da obra musical deva ser sempre bela, pois entende que a música é um esforço na busca de
uma educação cuja finalidade seja sempre o amor ao belo.
A concepção de Platão sobre a técnica artística tem grande significação estética,
contudo, para ele, a técnica é um dos elementos de menor importância artística. O pensador
garante que o essencial ao fazer musical não seja a técnica nem, tampouco, a habilidade, pois
reconhece os dois como fatores secundários à função religiosa da música. Platão estabelece a
inspiração como a habilidade primária ao fazer musical, já que é por intermédio dela que o
artista entra em contato com aquilo que o ouvinte deve saber: a verdade das Musas.
O pensamento estético de Platão se mostrou ser absolutamente objetivo e prático. O
filósofo define música como sendo uma manifestação espiritual capaz de educar com
excelência. Isto porque vê nela dois argumentos que são, ao mesmo tempo, físicos e
cósmicos: a harmonia e o ritmo. Platão entende estes dois elementos sensíveis como meios de
por o homem em concordância com as leis do universo, às quais imitam: a harmonia imita a
ordem; o ritmo, o equilíbrio. Deste modo o filósofo compreende que a música seja a mais alta
forma de educação, pois considera como sendo a única que possui a capacidade de imitar a
perfeição cósmica, chamada por ele de beleza.
Por fim, um dos conceitos estéticos chave, dentro da filosofia platônica, é o que trata
do artista. O filósofo sustenta que o artista seja um ser inspirado, pois tem o dom de
intermediar entre o mundo espiritual e o mundo físico no qual está o ouvinte. Sem a
inspiração ele não poderia “falar o que fala”, pois é a inspiração que “fala” por ele. A partir
destes seis conceitos constatados no capítulo IV, e denominados como religiosidade, sentido
ético, forma, técnica, música e artista, pré-organizou-se o capítulo V afim de que as
concepções dos pensadores contemporâneos, referentes a esses mesmos conceitos, pudessem
ser discutidas e interpretadas. A figura abaixo ilustra as consequências dessa discussão:
52

Figura 2 – Pensadores contemporâneos da estética da música

Fonte: Elaborado pelo autor. A figura apresenta a posição dos autores em relação à filosofia da música de Platão.

Como se pode constatar na imagem, é possível notar grande semelhança conceitual


entre Platão e Hegel, Riemann e Pahissa. Ambos os pensadores admitem que a substância
primordial do fazer musical consista exatamente nos mesmos fundamentos. Ou seja, os quatro
autores acolhem as percepções referentes à religiosidade, sentido ético, forma, técnica,
música e artista de um modo muito similar e têm, sobretudo, a convicção de que estes
elementos sejam imprescindíveis ao fazer musical.
As visões de Dahlhaus, Eggebrecht e Fubini se mostraram neutras em relação aos
ideais platônicos, pois esses autores não apresentam as suas concepções pessoais a respeito da
substância do fazer musical. Hanslick foi o único autor cujas opiniões contrastam
fundamentalmente em relação aos princípios estéticos de Platão.
O quadro abaixo apresenta os seis conceitos fundamentais, verificados na estética
platônica, e as suas relativas concepções contemporâneas:
53

Quadro 1 – Principais conceitos de Platão e suas correspondentes da estética musical


contemporânea
Pensador/
Platão Hegel Riemann Pahissa
Conceitos
O artista deve se A música é
A música está A verdadeira arte
1. relacionar com as uma
ligada à deve ser capaz de
Religiosidade Musas através da manifestação
espiritualidade manifestar a vida
inspiração espiritual
A obra deve ser É o artista
2. A obra deve falar A obra deve uma inspirado que
Sentido ético a verdade ter conteúdo homenagem à atribui valor à sua
verdade obra
Deve Deve manifestar Deve manifestar a
3. Deve manifestar o
manifestar consciência e inspiração do
Forma belo
sentimentos emoções artista
Não é o essencial, Não deve se
Não é o essencial,
nem a habilidade, Não é de sobrepor à
4. se dá a partir da
pois o interesse imaginação
Técnica necessidade
fundamento é a humano criadora nem à
artística
inspiração inspiração
Deve promover o
equilíbrio e a Deve Deve provocar o
5. organização da movimentar, Deve enobrecer regozijo da alma e
Música alma; é a mais comover e a alma aperfeiçoar o
alta forma de liberar a alma espírito
educação
Deve ser um
6. Deve ser um sujeito capaz Deve ser um Deve ser um
Artista sujeito inspirado de expressar sujeito ético sujeito inspirado
sentimentos
Fonte: Elaborado pelo autor. Contém a síntese do pensamento estético de cada autor.

Com base nos dados apresentados no quadro acima, se pode visualizar que, para
ambos os pensadores, o mesmo conceito recebe um tratamento significativamente
equivalente. Nota-se nele a coexistência de pontos de vista análogos tratando os mesmos
conceitos. Com estas revelações, o empreendimento de relacionar as concepções platônicas às
visões de Mahler não será dificultado, pois as opiniões do compositor poderão ser facilmente
inqueridas a partir deste modelo platônico.
54

7 A MÚSICA SEGUNDO MAHLER

“Meu tempo está por chegar.”, foi o que afirmou, segundo Arteaga (2007), o
compositor Gustav Mahler referindo-se à aceitação de suas obras. De acordo com este autor,
alguns anos mais tarde o maestro Leonard Bernstein confirmou a proposição do compositor,
admitindo que,

o seu tempo já chegou. Só depois de cinquenta, sessenta, setenta anos de holocaustos


mundiais, de simultâneo avanço da democracia unido à nossa crescente impotência
para eliminar as guerras, de magnificação dos nacionalismos e de intensiva
resistência à igualdade social; só depois de haver experimentado tudo isto, podemos,
finalmente, escutar a música e entender o que ele já havia sonhado. Através dos
vapores de Auschiwitz, das selvas assoladas do Vietnam, da Hungria, da Suécia, do
assassinato de Dallas, dos processos de Sinyavsky e Daniel, da praga do
macarthysmo, da carreira de armamentos, [...] só depois de tudo isto. (ARTEAGA,
2007, p. 10, grifo nosso, tradução nossa) 30.

Estas palavras de Bernstein se encarregaram de dar a resposta à proposição do


compositor sobre a sua música. Por meio desta afirmação o maestro exalta a magnitude das
obras de Mahler, admitindo que somente depois do mundo haver experimentado as mais
terríveis catástrofes é que foi possível se ter uma noção do que o compositor quis exprimir
através dessas obras.
Gustav Mahler nasceu no dia 7 de julho de 1870 na cidade de Kalischt, Boêmia –
Império Austro-Húngaro, atual República Tcheca. Desde muito cedo vivenciou, dentro do seu
próprio lar, os horríveis tratamentos do seu pai para com toda a família, especialmente, com a
sua mãe. Arteaga (2007) entende que, todos estes fatos contribuíram e instigaram o
compositor na sua admiração e devoção pela mãe. A pesar disto, este autor destaca que,
existem inúmeras especulações paramusicais sobre Mahler que relacionam a sua conturbada
vida familiar com a complexidade da sua música, mas que, no entanto, não passam de
“especulações”.
Poucos anos após o nascimento de Gustav, a família Mahler se translada para a cidade
de Iglau (Jihlava), República Tcheca, a qual era rodeada de destacamentos militares imperiais.
Referindo-se a essa cidade, Arteaga (2007, p. 18, tradução nossa)31 afirma que, “das janelas se

30
“Su tiempo ha llegado ya. Sólo después de cincuenta, sesenta, setenta años de holocaustos mundiales, de
simultáneo avance de la democracia unido a nuestra creciente impotencia para eliminar las guerras, de
magnificación de los nacionalismos y de intensiva resistencia a la igualdad social; sólo después de haber
experimentado todo esto, podemos, finalmente, escuchar la música y entender lo que él había soñado ya. A
través de los vapores de Auschwitz, de las junglas asoladas de Vietnam, de Hungría, de Suez, del asesinato de
Dallas, de los procesos a Sinyavsky y Daniel, de la plaga del macarthysmo, de la carrera de armamentos, […]
sólo después de todo esto.”
31
“Desde las ventanas se escuchaba música: cantos de soldados, orquestas de domingo y bandas militares.”
55

escutava música: cantos de soldados, orquestras de domingo e bandas militares”. Foi


exatamente neste laboratório sonoro em que, o compositor desenvolveu as suas aptidões
musicais – as quais os seus pais logo souberam reconhecer (ARTEAGA, 2007).
Este autor afirma que, com apenas cinco anos de idade o jovem Mahler já estava tendo
aulas de música em Iglu. Aos seis anos esteve sob a supervisão do Kapellmeister da vila e
também aprendeu um pouco de violino. Com oito anos de idade já ministrava aulas para outro
menino de sete – ao qual abandonou por dizer que este não lhe prestava atenção – e aos dez
deu o seu primeiro recital de piano (ARTEAGA, 2007). Daí pode-se perceber a relevância
que a música tinha na vida do jovem Mahler.
Com relação ao seu passado trágico, Mahler mais tarde percebeu que, “agora as
pálidas figuras da minha vida desfilam ante mim, como sobras de uma felicidade perdida, e a
canção de anelo soa de novo nos meus ouvidos.” (MAHLER apud ARTEAGA, 2007, p. 20,
tradução nossa)32. A pesar de tanta desgraça e desatinos das circunstâncias e dos homens, sua
história pessoal nunca o desmotivou. Neste sentido Arteaga (2007, p. 20, tradução nossa)33
admite que,

ele usou da arte com pano de lágrimas, como lenço em branco onde plasmou seus
mais profundos estados anímicos. Nunca um músico – nem sequer Beethoven –
tenha refletido tão claramente os alto-e-baixos e complexidades da sua vida nos
pentagramas da partitura.

Este autor garante que toda a tragicidade vivida pelo compositor lhe serviu como
inspiração para a sua arte, revelando nela os seus mais profundos estados de ânimo.
Arteaga (2007) afirma que, de 1876 a 1880 o jovem Mahler passou estudando música
em Viena, além de se integrar à vida cultural e agitada da cidade. Durante esse tempo, Mahler
dedicou-se exclusivamente à música, dava algumas aulas particulares e estudava. Este autor
ainda afirma que,

32
“Ahora las pálidas figuras de mi vida desfilan ante mí, como sombras de una felicidad perdida, y la canción
del anhelo suena de nuevo en mis oídos.”
33
“El uso del arte como paño de lágrimas, como lienzo en blanco donde plasmará sus más profundos estados
anímicos. Nunca un músico – ni siquiera Beethoven – iba a reflejar tan claramente los altibajos y complejidades
de su vida personal en los pentagramas de la partitura.”
56

[Mahler] sentia uma veneração quase religiosa por Beethoven, do qual se


considerava herdeiro, em especial das suas últimas obras [e que para ele] a sinfonia
era a forma ideal, a que lhe permitia tudo, e que só a ele estava reservado ir mais
além dos logros conseguidos pela [Sinfonia] Coral. (ARTEAGA, 2007, p. 27,
tradução nossa, grifo do autor)34.

Aqui o autor revela a admiração de Mahler por Beethoven e por suas obras, admitindo
também que o compositor via na sinfonia uma forma ideal, capaz de lhe autorizar a exprimir
tudo aquilo que gostaria que a sua música expressasse. Arteaga (2007) lembra ainda que,
outra grande admiração de Mahler foi Wagner, no qual contemplava, acima de tudo, a sua
universalidade.
Mahler, cada vez mais, no decorrer dos anos e ao passo em que aprimorava a técnica
da composição, ia desenvolvendo uma atitude mística de contato com a natureza. Numa carta
o compositor, retratando suas experiências pessoais, revelou que,

tenho estado no prado, sentado no pasto junto à Farkas, o pastor, escutando o som da
sua charamela. Ai, que triste e, sem mais, apaixonado êxtase palpitava nessa melodia
popular! O Sol me sorri de novo, já se vai o gelo do meu coração, vejo outra vez os
céus azuis e as flores oscilantes, e meu enganador desprezo se dissolve em lágrimas
de amor. E uma vez mais tenho que amar a este mundo, com seu falso brilho, sua
inconsciência, seu eterno riso! Ai, como desejaria ver este mundo totalmente
desnudo, sem vestimentas, sem adornos, tal como jaz ante seu Criador!”.
(MAHLER, 1879 apud ARTEAGA, 2007, p. 28, tradução nossa) 35.

Aqui o compositor revela sua enorme capacidade de introspecção, de inspiração e de


sensibilidade musical. Nestas afirmações de Mahler estão os seus mais profundos sentimentos
a respeito do mundo e da vida, como também a exteriorização do seu drama interno, o qual
vivia constantemente. Percebe-se com estas palavras que há um anseio por descobrir um
mundo perfeito, sem falsas aparências, sem sofrimentos, o qual concebe como possível apenas
na presença do divino.
Referindo-se as concepções estéticas de Bruckner, um grande amigo de Mahler, o qual
considerava de sobremaneira o respeito às regras musicais, Arteaga (2007, p. 32, tradução
nossa)36 infere que, “em Mahler não se dá tal respeito reverencial às regras, e a tentação do
atonal se vislumbra assiduamente.” Ou seja, as técnicas eram vistas pelo compositor apenas

34
“Sentía una veneración casi religiosa por Beethoven, del que se consideraba heredero, en especial de sus
últimas obras [...] consideraba que la sinfonía era la forma ideal, la que lo permitía todo, y que sólo a él le estaba
reservado ir más allá de los logros conseguidos por la Coral.”
35
“Son las seis de la mañana. He estado en el prado, sentado en el pasto junto a Farkas, el pastor, escuchando el
sonido de su caramillo. ¡Ay, qué triste y sin embargo apasionado éxtasis palpitaba en esa melodía popular! El
Sol me sonríe de nuevo, se va ya el hielo de mi corazón, veo otra vez los cielos azules y las flores oscilantes, y
mi burlón desprecio se disuelve en lágrimas de amor. ¡Y una vez más tengo que amar a este mundo, con su
oropel, su inconsciencia, su eterna risa! ¡Ay, cómo desearía ver a este mundo totalmente desnudo, sin vestidos,
sin adornos, tal como yace ante su Creador!”
36
“En Mahler no se da tal respeto reverencial a las reglas, y la tentación de lo atonal se vislumbra asiduamente.”
57

como um meio de expressão, podendo ser facilmente quebradas em decorrência da sua


necessidade de expressão.
Dentre as concepções de Mahler, por aquela época de estudante, estava o
entendimento de que,

[ele] não podia permanecer para sempre como estudante, ainda que ignorasse como
ganhar dinheiro com a música. Só queria avançar, levado pelo instinto da sua arte,
expressar suas ideias, demonstrar que algumas coisas que haviam lhe ensinado não
eram válidas, que tinham ficado obsoletas. (ARTEAGA, 2007, p. 35, tradução
nossa)37.

Deste modo, percebe-se que já havia naquele período uma necessidade de expressão
artística intrínsica em Mahler e uma constante busca pelos meios de se chegar a tanto. Arteaga
(2007) sustenta que, ao aceitar uma proposta para trabalhar como diretor de orquestra, Mahler
pensou que teria, com essa profissão, mais tempo para poder se dedicar à composição, mas
não foi o que acontedeu.
Nessa sua nova carreira de regente, Mahler encontrou muitas dificuldades, porém
Arteaga (2007, p. 37, tradução nossa)38 admite que, “[Mahler havia se] impregnado de ideias
nitzscheanas, o que não lhe matava lhe fortalecia, e seria sempre um perfeccionista capaz de
pôr o coração e a alma no seu trabalho.” Com isto, Mahler foi ganhando a notoriedade e a
fama que lhe são atribuídas até os dias atuais.
Mahler é o autor de um pequeno número de obras se comparado, por exemplo, à
Beethoven. No entanto, a relevância desse compositor não se estriba no número das suas
composições, mas sim no teor artístico dessas mesmas obras. Segundo Arteaga (2007), as
principais composições de Mahler são:

 Das Klagend Lied: versão original em 3 movimentos (1880);


 Das Klagend Lied: versão revisada em 2 movimento (1899);
 Lieder eines fahrenden Gesellen (Canções de um camarada errante): versão
com orquestra;
 Lieder aus “Des Knaben Wunderhorn” (Canções de “O menino da trompa
mágica”): versão com orquestra;

37
“No podía permanecer para siempre haciendo vida de estudiante, aunque ignoraba cómo ganar dinero con la
música. Sólo quería avanzar, llevado por el instinto de su arte, expresar sus ideas, demostrar que algunas cosas
que le habían enseñado no eran válidas, que habían quedado obsoletas.”
38
“[...] impregnado de ideas nietzscheanas, lo que no le mataba le fortalecía, y sería siempre un perfeccionista
capaz de poner el corazón y el alma en su trabajo.”
58

 Lieder aus “Des Knaben Wunderhorn” (Canções de “O menino da trompa


mágica”): versão com acompanhamento pianístico;
 Kindertotenlieder (Canções pela morte dos meninos): versão com orquestra;
 Rückert Lieder (Canções sobre texto de Rückert): versão com orquestra;
 Rückert Lieder (Canções sobre texto de Rückert): versão com
acompanhamento pianístico;
 Sinfonia n.1 “Titã”: versão original de Budapeste em 5 movimentos;
 Sinfonia n.1 “Titã”: versão revisada em 4 movimentos;
 Sinfonia n.2 em Dó menor, “Ressureição”;
 Sinfonia n.3;
 Sinfonia n.4;
 Sinfonia n.5;
 Sinfonia n.6 em Lá menor, “Trágica”;
 Sinfonia n.7;
 Sinfonia n.8;
 Das Lied von der Erde (A Canção da Terra): Sinfonia para tenor e contralto –
ou barítono, com orquestra;
 Sinfonia n.9;
 Sinfonia n.10: obra inacabada.

Como se pode constatar, Mahler compôs basicamente seis canções para voz e
orquestra e onze sinfonias, tendo-se em vista que a sua Décima ficou inacabada em
decorrência da sua morte, no ano de 1911. Contudo, para que se faça uma justa apreciação das
concepções pessoais desse compositor, uma investigação dos seus ideais filosóficos e
artísticos foi necessária. Para isto, examinei se os seus critérios estéticos, aqueles relacionados
aos conceitos religiosidade, sentido ético, forma, técnica, música e artista, recebem o
tratamento preconizado por Platão. Deste modo, no decorrer de cada subcapítulo serão
apresentadas as concepções do compositor a respeito de cada critério estético para, ao término
da seção, analisar os dados apresentados no intuito de relacioná-los ao pensamento estético-
musical de Platão.
59

7.1 RELIGIOSIDADE

A religiosidade é um dos seis conceitos que configuram a essência do pensamento


estético-musical de Platão, o qual foi apresentado no capítulo IV. Neste sentido, Arteaga
(2007) assegura que, Mahler foi um judeu que se converteu ao cristianismo, tanto por
questões profissionais, quanto de aceitação social. Todavia, este autor acrescenta que, o
compositor concebia a vida de maneira muito filosófica, sempre inquirindo sobre o seu
sentido (ARTEAGA, 2007).
Referindo-se as visões filosóficas do compositor, Arteaga (2007, p. 121, tradução
nossa)39 salienta que,

[...] o Destino – com letra maiúscula – lhe havia situado em um lugar onde teria que
alcançar a meta que se havia proposto. Porém aqui nascem algumas das constantes
perguntas que ocuparão o músico durante toda a sua vida de maneira recorrente.
Qual devia ser essa meta? O triunfo sobre o mundo? A eternidade? A harmonia com
a natureza? A integridade moral? A obra artística? O amor eterno? A glória? A
transcendência mística? As respostas ficaram no ar, porém suas elucubrações se
transformaram em música.

Segundo o autor, essas perguntas perpassaram a vida do compositor, fazendo-se


presentes até mesmo nas suas obras. Em alusão a essas inquietações o pesquisador Adorno
(1999, p. 10, tradução nossa)40 destaca que, “[Mahler foi aos poucos compreendendo que] é
impossível conseguir: a eternidade de viver e compreender mais além da vida.”, contudo o
compositor não deixou de manifestar os seus impulsos espirituais.
Sobre esse âmbito religioso, Adorno (1999, p. 62, tradução nossa)41 afirma que, “em
vão se buscará em Mahler algo que esteja afastado do espírito.”, pois a inspiração é um fator
de grande relevância para o compositor. Arteaga (2007, p. 57, tradução nossa)42 inclusive
afirma que,

39
“[...] el Destino – con mayúscula – le había situado en um lugar desde el cual tenía que alcanzar la meta que se
había propuesto. Pero aquí nacen algunas de las constantes preguntas que ocuparán al músico durante toda su
vida de manera recurrente. ¿Cuál debía ser esa meta? ¿El triunfo sobre el mundo? ¿La eternidad? ¿La armonía
con la naturaleza? ¿La integridad moral? ¿La obra artística? ¿El amor eterno? ¿La gloria? ¿La trascendencia
mística? Las respuestas quedarán em el aire, pero sus elucubraciones se transformarán en música.”
40
“[...] es imposible conseguir: a eternidad de vivir y comprender más allá de la vida.”
41
“En vano se buscará en Mahler nada que esté alejado del espíritu.”
42
“El proceso creativo era algo absolutamente individual, que Mahler apenas comentaba: el ruido más pequeño
se convertía en molestia y hasta los sonidos de la naturaleza (donde encontraba tanta inspiración) interrumpían
su tarea. Para el artista que una vez dijera ‘no compongo, soy compuesto', el arte llegaba de lo más profundo del
alma, la música era la manifestación involuntaria del espíritu, a la que debía someterse.”
60

o processo criativo era algo absolutamente individual, que Mahler apenas


comentava: o menor ruído se convertia em moléstia e até os sons da natureza (onde
encontrava tanta inspiração) interrompiam sua tarefa. Para o artista que uma vez
disse: “não componho, sou composto”, a arte chegava do mais profundo da alma, a
música era a manifestação involuntária do espírito, à qual deveria se submeter.

Ou seja, o compositor tratava a música, e todo o processo compositivo, como um


fenômeno de manifestação espiritual, chegando a declarar que,

“todos os que vivem comigo devem aprender isto”, escreveu. “Quando estou
compondo não me pertenço a mim mesmo. Não pode ser de outro modo. O criador
deve dedicar muitas horas à solidão e à ausência, durante as quais está perdido em si
mesmo e cortado com qualquer comunicação com o mundo exterior”. (MAHLER
apud ARTEAGA, 2007, p. 57, tradução nossa) 43.

Desta forma se percebe claramente a relação que o compositor tinha com os seus
processos de inspiração e de criação artística, chegando inclusive a enfatizar que, ao compor,
não pertence mais a si. No que diz respeito especificamente à espiritualidade de Mahler, o
biógrafo Walter enfatiza que,

como não se mantinha firme em nenhuma experiência espiritual, nen sequer nas
adquiridas a um alto preço, não posso, apesar da sua religiosidade e dos seus
misticismos intermitentes, dizer que era crente. O tumulto das suas emoções podia
suscitar nele verdadeiros arrebatamentos de fé, porém a certeza serena lhe resultava
inacessível. O sofrimento de uma criatura lhe afetava demasiado profundamente; as
atrocidades do reino animal, a crueldade do homem com seu próximo, as
enfermidades do corpo humano, a constante ameaça do destino, tudo contribuía para
cavar os fundamentos da sua fé. (WALTER, 1983, p. 61, tradução nossa) 44.

Com estas palavras fica ainda mais clara a relação que havia entre Mahler e a
espiritualidade, podendo-se entender que o compositor, apesar da sua forte ligação com os
mistérios espirituais, não se manteve em nenhuma experiência religiosa. Contudo, numa carta
redigida ao crítico vienense Kalbeck, Mahler revela os seus pensamentos de que,

realmente não posso compreender como você – com alma de músico-poeta – não
possua essa fé-conhecimento. O que é, então, o que te deleita quando escuta música?
O que te faz otimista e livre? O mundo é menos complicado se você o constrói
evitando esse tema? Há alguma explicação que possa derivar-se da tua visão do
universo como uma interação de forças mecânicas? O que é força, energia? Quem
realiza essa ação? Você crê na “conservação da energia”, na indestrutibilidade da

43
“‘Todos los que viven conmigo deben aprender esto’, escribió. ‘Cuando estoy componiendo no me pertenezco
a mí mismo. No puede ser de outro modo. El creador debe dedicar muchas horas a la soledad y la ausencia,
durante las cuales está perdido en sí mismo y ha cortado cualquier comunicación con el mundo exterior’.”
44
“Como no se mantenía firme en ninguna experiencia espiritual, ni siquiera en las adquiridas a un alto precio,
no puedo, a pesar de su religiosidad y de sus misticismos intermitentes, decir que era creyente. El tumulto de sus
emociones podía suscitar en él verdaderos arrebatos de fe, pero la certidumbre serena le resultaba inaccesible. El
sufrimiento de una criatura le afectaba demasiado profundamente; las atrocidades del reino animal, la crueldad
del hombre con su prójimo, las enfermedades del cuerpo humano, la constante amenaza del destino, todo
contribuía a socavar los fundamentos de su fe.”
61

matéria? Não é isso também imortalidade? Troque o problema em qualquer plano


que você deseje – ao fim chegará você sempre a um ponto em que “sua filosofia”
comece a “sonhar”. (MAHLER apud ARTEAGA, 2007, p. 74, tradução nossa)45.

Aqui, mais do que manifestar uma mera visão religiosa, Mahler decreta a sua
convicção pessoal, a qual, segundo ele, baseia-se mais em uma profunda reflexão sobre as
questões insolúveis que perfazem a existência humana e o universo, do que em uma crença
religiosa vazia. No trecho da carta apresentado, o compositor expõe as suas considerações
sobre o assunto e demonstra com isso a sua íntimidade com o caráter religioso – palavra que
deve ser entendida como sinônimo de espiritual, pois não faz referência a algum credo em
específico.
No que diz respeito à imerssão do princípio religiosidade nas suas obras, Adorno
(1999, p. 10, grifos do autor, tradução nossa)46 aponta que,

por duas vezes, em sua Segunda e em sua Oitava sinfonia, Mahler tratará de afirmar
o impulso motor, a necessidade inicial, que fora do tempo, levou ao espírito criador
– a Deus – a sair de Si mesmo, a devenir tempo e afirmação: porém o Urlicht está
expresso em condicional: “sou de Deus e retornarei a Deus; Ele me dará um raio de
luz e me guiará até a vida e a paz eternas...”.

Aqui o autor faz uma importante revelação acerca da espiritualidade de Mahler contida
nas suas obras, afirmando que as concepções espirituais do compositor estejam implícitas na
Segunda e Oitava sinfonias. Neste sentido, o próprio texto cantado na Segunda Sinfonia, com
tradução de Fonseca (2017)47, elucida esta concepção, como segue:

45
“Realmente no puedo comprender cómo usted – con alma de músico-poeta – no posee esa fe-conocimiento.
¿Qué es, entonces, lo que le deleita cuando escucha música? ¿Qué le hace optimista y libre? ¿Es el mundo menos
complicado si usted lo construye eludiendo ese tema? ¿Hay alguna explicación que pueda derivarse de su visión
del universo como una interacción de fuerzas mecánicas? ¿Qué es fuerza, energía? ¿Quién realiza esa acción?
Usted cree en la “conservación de la energía”, en la indestructibilidad de la materia. ¿No es eso también
inmortalidad? Cambie el problema a cualquier plano que usted desee – al final llegará usted siempre a un punto
en el que ‘su filosofía’ comience a ‘soñar’.”
46
“Por dos veces, en su Segunda y en su Octava sinfonía, Mahler tratará de afirmar el impulso motor, la
necesidad inicial, que, fuera del tiempo, llevó al espíritu creador – a Dios – a salir de Sí mismo, a devenir tiempo
y afirmación: pero el Urlicht está expresado en condicional: ‘... soy de Dios y retornaré a Dios; Él me dará un
rayo de luz y me guiará hacia la vida y la paz eternas...’.”
47
“O Röschen rot!/Der Mensch liegt in größter Not!/Der Mensch liegt in größter Pein!/ Je lieber möcht' ich im
Himmel sein./Da kam ich auf einen breiten Weg:/Da kam ein Engelein und wollt’ mich abweisen./ Ach nein! Ich
ließ mich nicht abweisen!/Ich bin von Gott und will wieder zu Gott!/ Der liebe Gott wird mir ein Lichtchen
geben,/Wird leuchten mir bis in das ewig selig Leben! /Aufersteh'n, ja aufersteh'n wirst du,/ Mein Staub, nach
kurzer Ruh!/Unsterblich Leben/Wird, der dich rief, dir geben./ Wieder aufzublüh'n, wirst du gesät!/Der Herr der
Ernte geht/Und sammelt Garben/Uns ein, die starbe!/O glaube, mein Herz, o glaube:/Es geht dir nichts verloren!/
Dein ist, ja dein, was du gesehnt,/Dein, was du geliebt, was du gestritten!/O glaube: Du wardst nicht umsonst
geboren!/Hast nicht omsonst gelebt, gelitten!/Was entstanden ist, das muß vergehen!/Was vergangen,
auferstehen!/Hör auf zu beben!/Bereite dich zu leben!/ O Schmerz! Du Alldurchdringer!/Dir bin ich entrungen./
O Tod! Du Allbezwinger!/Nun bist du bezwungen!/Mit Flügeln, die ich mir errungen,/In heißem
Liebessreben/Werd ich entschweben/Zum Licht, zu dem kein Aug gedrungen!/Mit Flügeln, die ich mir
errungen,/Werd ich entschweben!/Sterben wird ich, um zu leben!/Aufersteh'n, ja aufersteh'n wirst du,/Mein
Herz, in einem Nu!/Was du geschlagen,/Zu Gott wird es dich tragen!”
62

Contralto:
Ó pequena rosa vermelha!
O homem jaz na maior miséria!
O homem jaz no maior sofrimento!
Como eu gostaria de estar no céu!
Eu vim por um largo caminho:
Chegou um anjo que me quis afastar.
Ah, não! Não deixei que me afastasse!
Eu venho de Deus e hei-de regressar a Deus!
O bom Deus dar-me-á uma pequena luz.
Iluminar-me-á até à vida eterna!

Coro e Soprano:
Ressuscitarás, sim ides ressuscitar,
Cinzas minhas, depois de um curto repouso!
A vida imortal
Ser-te-á dada por Aquele que vos chamou!
Estais semeadas, para florir de novo!
O Senhor da colheita
Vai recolher os feixes de nós,
Que morremos!

Contralto:
Crê pois, meu coração, crê!
Nada irás perder!
É teu, sim é teu o que sentiste.
É teu o que desejaste, aquilo por que lutaste!

Soprano:
Crê: não nasceste em vão,
Não viveste e não sofreste em vão!

Coro e Contralto:
O que aconteceu tem de passar
O que passou, tem de ressuscitar!
Deixa de tremer!
Prepara-te para viver!

Soprano e Contralto:
Ó sofrimento! Tu, que penetras em tudo,
Já te escapei!
Ó morte, tu que tudo conquistas,
Agora estás derrotada!
Com as asas que ganhei,
Na ardorosa luta do amor,
Levantarei voo
Em direção à luz que nenhum olho penetrou.

Coro:
Com as asas que ganhei
Levantarei voo
Morrerei para viver de novo!
Ressuscitarás, sim ressuscitarás,
Meu coração, num instante!
O teu caminho
Levar-te-á para Deus!

Com este texto fica evidente o senso religioso de Mahler e, sobretudo, o seu interesse
em manifestá-lo através das suas obras. Deste modo, pode-se inferir que existem diversas
63

evidências que ligam os seus ideais às concepções platônicas referentes à religiosidade.


Enquanto Platão enfatiza a necessidade do artista, através da inspiração, se relacionar com as
divindades para que possa “falar a verdade”, constata-se que Mahler, por meio da inspiração,
busca infundir nas suas obras as suas ideias a respeito da vida, do universo, da natureza e,
inclusive, sobre Deus. O compositor não se preocupa em apresentar respostas exatas às
questões, mas sim em chamar a atenção do ouvinte para essas questões de cunho espiritual.

7.2 SENTIDO ÉTICO

Encontram-se significantes indícios presentes na vida de Mahler no que diz respeito ao


quesito sentido ético. O biógrafo Walter, amigo íntimo do compositor, se referindo às suas
vivencias com Mahler, afirma que,

[para ele] a desolação, o assombro, o horror, surgiam numa efervescência de


palavras análogas; parecia realmente um gêiser. Os esgotantes esforços que fazia
para penetrar no sentido da existência nunca lhe trouxeram repouso. Sem dúvida sua
atividade incansável lhe distraía destes pensamentos; seu sentido de humor lhe
ajudava a rechaçar este peso, e o contínuo interesse que manifestava por todas as
questões intelectuais lhe davam forças e lhe ajudavam a apaziguar a sede
inextinguível de saber e de compreender. (WALTER, 1983, p. 60, tradução nossa48).

Nota-se uma insaciável necessidade espiritual latente no compositor. Estas afirmações


revelam um artista consciente da sua realidade como indivíduo, que lutava contra os
antagonismos da vida e contra os seus próprios. Neste contexto, as palavras de Mahler (apud
WALTER, 1983, p. 60, tradução nossa)49 confirmam esta visão ao afirmar que, “[...] sinistras
trevas se escondem por baixo da existência!” Isto demonstra duas importantes questões: a
grande sensibilidade humana do compositor e o seu incansável compromisso de buscar o real,
por mais que às vezes tenha constatado apenas “trevas”. Walter vê nesses questionamentos
que perfazem e destroçam a vida de Mahler, uma manifestação divina; que, por algum motivo
divino, o compositor tenha sido beneficiado pelas desventuras que passou, pois foram elas
que o instigaram a levar a sua arte ao extremo da sensibilidade.
Deste modo, as palavras de Walter contribuem ao afirmar que,

48
“La desolación, el asombro, el horror, surgían en una efervescencia de palabras análogas; parecia realmente un
geiser. Los agotadores esfuerzos que hacía para penetrar en el sentido de la existência nunca le aportaban reposo.
Sin duda su actividad incansable le distraía de estos pensamientos; su sentido del humor le ayudaba a rechazar
este peso, y el continuo interés que manifestaba por todas las cuestiones intelectuales le daba fuerzas y le
ayudaba a apaciguar la sed inextinguible de saber y de comprender.”
49
“¡[...] siniestras tinieblas se esconden bajo la existencia!”
64

[Mahler] conhecia tanto a exaltação apaixonada do espírito como a tristeza


profunda. Uma gama de emoções tão extensa é um dom divino, mais precioso até
mesmo que a felicidade. Inclusive na dor, sua fiel companheira em toda sua
existência, encontrava o consolo de que fala Tasso: “Ainda que, se o homem sofre
em silêncio, um Deus me tem dado o dom de expressar minha dor.” Mahler
expressava a sua em um idioma que conhecia perfeitamente: seus sofrimentos e seus
desejos se convertiam em música. Renascendo constantemente, se transformavam
em obras de arte. (WALTER, 1983, p. 61, tradução nossa)50.

Estas contribuições do biógrafo revelam os pensamentos que habitavam a intimidade


do compositor. Nelas o autor constata que, tanto a dor, como a exaltação espiritual, tornaram-
se para Mahler o objeto da sua arte, pois ele as transformava em música.
Ao mencionar a forma na qual o compositor costumava criar, Walter (1983, p. 23,
tradução nossa)51 dstaca que, “[ele] já estava familiarizado com a atmosfera espiritual da obra
muito tempo antes de conhecer o conteúdo.” Como se percebe, o compositor criava como
uma reação à suas necessidades espirituais, já que a sua arte era uma resposta a uma
determinada circunstância que havia vivido previamente.
Neste contexto, o biógrafo Adorno enfatiza que,

para captar a riqueza de conteúdo das sinfonias mahlerianas resultam insuficientes as


considerações de tipo de análise de temática; estas, ao limitarem-se ao que acontece
na composição, descuidam a própria composição. Mas também seriam insuficientes
as considerações que quisessem capturar o composto, ou, para dizê-lo com a gíria da
autenticidade, a mensagem. (ADORNO, 1999, p. 19, tradução nossa) 52.

Adorno traz uma importantíssima contribuição para compreensão das obras de Mahler,
apontando que seria necessário analisar as obras do compositor levando em conta dois
requisitos: a temática e a composição em si – a mensagem.
Seguindo estas indicações, as palavras de Schoenberg prestam uma importante
contribuição ao fazerem referência à Terceira Sinfonia de Mahler, onde afirma que,

50
“Conocía tanto la exaltación apasionada del espíritu como la tristeza profunda. Una gama de emociones tan
extensa es un don divino, más precioso todavía que la felicidad. Incluso en el dolor, su fiel compañero en toda su
existencia, encontraba el consuelo del que habla Tasso: ‘Aunque, si el hombre sufre en silencio, un Dios me ha
dado el don de expresar mi dolor.’ Mahler expresaba el suyo en un idioma que conocía perfectamente: sus
sufrimientos y sus deseos se convertían en música. Renaciendo constantemente, se transformaban en obras de
arte.”
51
“Estaba ya familiarizado con la atmosfera espiritual de la obra mucho tiempo antes de conocer el contenido.”
52
“Para captar la riqueza de contenido de las sinfonías mahlerianas resultan insuficientes las consideraciones del
tipo de los análisis temáticos; éstos, al limitarse a lo que acaece en la composición, descuidan la composición
misma. Mas también serían insuficientes las consideraciones que quisieran atrapar lo compuesto, o, para decirlo
con la jerga de la autenticidad, el mensaje. Si alguien pretendiera apoderarse inmediatamente de este.”
65

para expressar a inaudita impressão que me deixou a sua sinfonia, não posso falar-te
como que de músico a músico, senão de homem a homem. Porque vi a tua alma
desnuda, completamente desnuda. Jazia em minha frente como que uma misteriosa e
agreste paisagem com seus abismos angustiosos e ao lado disto, prados ensolarados,
alegres e graciosos, lugares idílicos de descanso. Senti-a como um fenômeno da
natureza com seus sustos e desastres e por vez com seu arco íris prazeroso e
radiante. Que importa que depois tenham me falado do seu programa, este não
parecia coincidir com minhas impressões! Importa se eu interpreto bem ou mal o
significado das sensações que em mim têm sido um acontecimento. E creio que
tenho sentido sua sinfonia. Experimentei a luta pelas ilusões, senti a dor do
desiludido, vi a luta de forças boas e más, vi um homem esforçar-se angustiosamente
por conseguir a harmonia interior, senti um homem, um drama, uma verdade, uma
verdade brutal. (SCHOENBERG apud ARTEAGA, 2007, p. 92, tradução nossa) 53.

No trecho desta carta endereçada à Mahler, Schoenberg revela que ficou


profundamente tocado pela sua Terceira Sinfonia, enfatizando que, independente da
interpretação formal e técnica, ela tem sido para ele um acontecimento pessoal. O autor relata
que, por mais que se fale do seu programa musical, a sua interpretação é puramente
sentimental e que, ao ouvi-la, pôde experimentar a luta das ilusões, a dor do desiludido, a luta
das forças do bem e do mal; viu nessa obra um homem se esforçando para conseguir a sua
harmonia interior, um homem envolto por um drama e por uma verdade.
Mahler só admite que a sua obra seja construída sob os alicerces da experiência, pois,
como artista, sente-se com o compromisso ético de “falar a verdade”. Tendo em vista que,
para Mahler, a arte é tida como uma forma de exteriorização das suas vivências mais íntimas,
Arteaga enfatiza que,

[as obras desse compositor] são verdadeiros “experimentos de autobiografia


espiritual”. Para Mahler, suas Sinfonias deviam ser o reflexo das suas experiências
humanas, tanto no alegre como no trivial, no trágico e no profundo. As sinfonias
constituem, pois, um mundo interior próprio, com suas próprias leis de nascimento,
desenvolvimento e extinção. (ARTEAGA, 2007, p. 185, tradução nossa) 54.

Este autor reafirma a concepção de que Mahler reflete nas suas obras as suas
experiências mais íntimas. Por este motivo as vê como verdadeiros “experimentos

53
“Para expresar la inaudita impresión que me ha hecho su sinfonía, no puedo hablarle como de músico a
músico, sino como de hombre a hombre. Porque he visto su alma desnuda,completamente desnuda. Yacía delante
de mí como un misterioso y agreste paisaje con sus abismos angustiosos y al lado de esto, prados soleados,
alegres y graciosos, lugares idílicos de descanso. La sentí como un fenómeno de la naturaleza con sus sustos y
desastres y a la vez con su arco iris plácido y radiante. ¡Qué importa que cuando después me hablaron de su
programa, éste no pareciera coincidir con mis impresiones! Importa si yo interpreto bien o mal el significado de
las sensaciones que en mí han sido un acontecimiento. Y creo que he sentido su sinfonía. Experimenté la lucha
por las ilusiones, sentí el dolor del desilusionado, vi la lucha de fuerzas buenas y malas, vi a un hombre
esforzarse angustiosamente por lograr la armonía interior, senti un hombre, un drama, una verdad, una verdad
brutal.”
54
“[...] son verdaderos ‘experimentos de autobiografía espiritual’. Para Mahler, sus Sinfonías debían ser el
reflejo de sus experiencias humanas, tanto en lo alegre como en lo trivial, en lo trágico y en lo profundo. Las
Sinfonías constituyen, pues, um mundo interior propio, con sus propias leyes de nacimiento, desarrollo y
extinción.”
66

autobiográficos” da espiritualidade do compositor. O autor também destaca que as sinfonias


do compositor são, na verdade, o seu próprio mundo interno e, por isto, respeitam as suas
próprias leis. Estas ponderações evidenciam, uma vez mais, o compromisso ético de Mahler
em compor segundo as leis da sua consciência e em acordo com as suas próprias vivências.
Neste sentido, Arteaga ainda destaca que,

para Mahler a Sinfonia não é um modelo formal, já que ele o rechaçaria e


desintegraria em várias de suas composições. Porém tampouco é um meio
programático, um poema sinfônico estritamente falando: indo à raiz romântica da fé,
para Mahler, como ele mesmo disse, a Sinfonia será um Todo possibilístico, a única
maneira em que o compositor pode dar espaço às suas aspirações internas e
inquietudes espirituais. Nela, a trama da narração será a Summa Filosófica, a
confissão se converterá em psicanálises e a ampliação dos meios e da forma se
tornará cosmologia: “Imagine que todo o universo comece a soar. Já não só vozes
humanas, senão planetas e sóis girando em torno de suas órbitas”, dirá o compositor
a Mengelberg acerca da Oitava Sinfonia. (ARTEAGA, 2007, p. 184-185, grifos do
autor, tradução nossa)55.

Com estas palavras o biógrafo reafirma o seu entendimento de que, para o compositor,
a obra não é uma mera construção formal. Para Mahler a música assume a grandeza de revelar
algo, de “falar” ao mundo. Ela é a manifestação filosófica das suas concepções, pois está
repleta de intencionalidades e sentidos, os quais foram previamente vivenciados pelo artista.
Esta é a ética de Mahler: falar somente a verdade. De modo algum este compositor
demonstra ser capaz de se inspirar em “padrões”, em algo que não seja a própria vida ou as
suas próprias experiências internas. Enquanto que a estética platônica recomenda ao artista,
como sujeito ético, “falar a verdade” com a sua música, Mahler assume a mesma postura e só
admite por na partitura aqueles signos que correspondam às suas experiências. Portanto,
deduzo que a ética artística deste compositor é similar à de Platão.

7.3 FORMA

Para Mahler o conceito forma possui um sentido muito especial. Sobre este aspecto,
Arteaga (2007, p. 184, grifo do autor, tradução nossa)56 endente que,

55
“Para Mahler la Sinfonía no es un modelo formal, ya que él lo rechazaría y desintegraría en varias de sus
composiciones. Pero tampoco es un medio programático, un poema sinfónico estrictamente hablando: yendo a la
raíz romántica de la fe, para Mahler, como él mismo dice, la Sinfonía será un Todo posibilístico, la única manera
en que el compositor puede dar cabida a sus aspiraciones internas e inquietudes espirituales. En él, la trama de la
narración será la Summa Filosófica, la confesión se convertirá en psicoanálisis y la ampliación de los medios y
de la forma se tornará cosmología: ‘Imagine que todo el universo comienza a sonar. Ya no son sólo voces
humanas, sino planetas y soles girando en tomo a sus órbitas’, dirá el compositor a Mengelberg acerca de la
Octava Sinfonía.”
56
“No es exagerado afirmar que la sinfonía, como forma reina de la música occidental desde Haydn y Mozart en
el terreno instrumental, llega a su posición de máxima expansión y grandeza —entendida como grandiosidad y
67

não é exagerado afirmar que a sinfonia, como forma rainha da música ocidental
desde Haydn e Mozart no terreno instrumental, chega à sua posição de máxima
expansão e grandeza – entendida como grandiosidade e grandiloquência – através
das criações de Mahler. Ao contrário, se a sinfonia conheceu um aniquilador ou anjo
exterminador – termo acunhado por Chapa Brunet –, este também seria ele. Porque
o sinfonismo clássico-romântico conhece as últimas exacerbações possíveis de
forma e sintaxe não nos edifícios musicais de Bruckner, senão nos conglomerados e
tractati de Mahler, que não são senão pronunciamentos filosóficos e expressões da
sua própria consciência.

Pode-se evidenciar nesta citação o tipo de tratamento que Mahler dá à forma musical.
Segundo este biógrafo, o compositor levou a sinfonia tanto ao seu apogeu, quanto à sua
destruição, de modo que essa pudesse lhe servir da melhor forma e estar condizente com as
manifestações da sua própria consciência. Sobre estes significados, Mahler (apud ARTEAGA,
2007, p. 184, tradução nossa)57 entende que, “[...] a palavra ‘sinfonia’ significa construir um
mundo com todos os meios ao meu alcance.” Esta sentença define bem o pensamento do
compositor e o seu ideal artístico de expressar, por meio da sinfonia, as suas concepções.
Sobre as convicções filosóficas e artísticas de Mahler, Arteaga (2007, p. 184, tradução
nossa)58 enfatiza que, “[...] perto do final da sua vida, na primeira década do século XX,
confessará a Jean Sibelius, no único encontro entre ambos os artistas, que ‘a Sinfonia deve
abarcar o todo’.” Com isto, nota-se que havia uma ânsia muito grande no compositor em tratar
de dar “voz” ao todo do universo e que esse ideal possa ser alcançado através da forma
sinfônica.
Neste contexto, Walter sustenta que,

[há em Mahler] um universo musical interior muito agitado, uma humanidade


apaixonada, uma imaginação poética, um pensamento filosófico e um sentimento
religioso conviviam nele. Como possuía não só um coração sensível senão também a
capacidade e o poder de dar forma à sua paixão, tinha aptidões para subordinar sua
pessoal linguagem musical à tirania da forma sinfônica. Esta chegou a dominar toda
sua criação artística e teve que desenvolver no seio de formas sinfônicas muito
claras um conteúdo cuja variedade e riqueza raiavam com o caos. (WALTER, 1983,
p. 46, tradução nossa)59.

grandilocuencia— a través de las creaciones de Mahler. A la inversa, si la sinfonía ha conocido un aniquilador o


ángel exterminador —término acuñado por Chapa Brunet—, éste sería también él. Porque el sinfonismo clásico-
romántico conoce las últimas exacerbaciones posibles de forma y sintaxis no en los edificios musicales de
Bruckner, sino en los conglomerados y tractati de Mahler, que no son sino pronunciamientos filosóficos y
expresiones de su propia existencia.”
57
“[...] la palabra ‘sinfonía’ significa construir un mundo con todos los medios a mi alcance.”
58
“[...] cerca del final de su vida, en la primera década del siglo XX, confesará a Jean Sibelius, en el único
encuentro entre ambos artistas, que ‘la Sinfonía debe abarcarlo todo’.”
59
“Un universo musical interior muy agitado, una humanidad apasionada, una imaginación poética, un
pensamiento filosófico y un sentimiento religioso convivían en él. Como poseía no sólo un corazón sensible sino
también la capacidad y el poder de dar forma a su pasión, tenía aptitudes para subordinar su personal lenguaje
musical a la tiranía de la forma sinfónica. Esta llegó a dominar toda su creación artística y tuvo que desarrollar
en el seno de formas sinfónicas muy claras un contenido cuya variedad y riqueza rayaban con el caos. Un
68

Verifica-se aqui que o “modelo formal” de Mahler se dá conforme a sua sensibilidade.


É justamente essa necessidade interna que lhe dita o modelo de criação artística, pois o
compositor tinha uma grande habilidade em “subordinar sua pessoal linguagem à tirania da
forma sinfônica”, ou seja, de expressar a sua mensagem pessoal, mesmo que nas entrelinhas
do “poema”. Devido a tão alto domínio da forma, o biógrafo entende que o compositor tenha
chegado a proclamar, dentro de uma forma tão estabelecida como a sinfonia, um conteúdo de
grandes proporções e variedades.
Por essas capacidades construtivas, Walter (1983, p. 51, tradução nossa)60 assinala que,
“a instrumentação de Mahler merece ser estuda. Uma análise teórica da forma em que
ampliou a ideia sinfônica e desenvolveu sua ciência polifônica e harmônica, seu estilo
temático e sua técnica da variação poderia também resultar frutífero.” Aqui o autor sustenta
que o compositor tenha desenvolvido um estilo e técnicas muito peculiares, com isto sugere
que o estudo das suas obras possa contribuir para o aprendizado compositivo.
Com uma visão mais restrita à forma construtiva de Mahler, Walter enfatiza que,

a obra de Mahler forma um todo que não apresenta a menor fissura na sua
continuidade ou em sua estrutura. E, sem mais, não seria justo avaliá-la ou apreciá-la
somente do ponto de vista estritamente musical, porque surgia da sua vida interior
toda. É preciso ver mais bem a expressão, na música, de uma grande alma e levar em
conta tanto os valores humanos como os estéticos, caso se queira extrair plenamente
seu significado. (WALTER, 1983, p. 51, tradução nossa) 61.

Este o autor assinala que a música de Mahler, além da sua estética muito própria, tem
um sentido extramusical que deve ser apreciado, no intuito de extrair dela o seu mais puro e
profundo significado. Ao fazer referência à Segunda Sinfonia, por exemplo, Walter enfatiza
que,

universo musical interior muy agitado, una humanidad apasionada, una imaginación poética, un pensamiento
filosófico y un sentimiento religioso convivían en él. Como poseía no sólo un corazón sensible sino también la
capacidad y el poder de dar forma a su pasión, tenía aptitudes para subordinar su personal lenguaje musical a la
tiranía de la forma sinfónica. Esta llegó a dominar toda su creación artística y tuvo que desarrollar en el seno de
formas sinfónicas muy claras un contenido cuya variedad y riqueza rayaban con el caos.”
60
“La instrumentación de Mahler merece ser estudiada. Un análisis teórico de la forma en que ha ampliado la
idea sinfónica y desarrollado su ciência polifónica y armónica, su estilo temático y su técnica de la variación
podría también resultar fructífero.”
61
“La obra de Mahler forma un todo que no presenta la menor fisura en su continuidad o en su estructura. Y, sin
embargo, no sería justo evaluarla o apreciarla sólo desde un punto de vista estrictamente musical, porque surgía
de su vida interior toda. Hay que ver más bien la expresión, en música, de un alma grande y tener en cuenta tanto
los valores humanos como los estéticos, si se quiere extraer plenamente su significado.”
69

nos três primeiros movimentos, esse mundo forma um simples plano de fundo de
sentimentos diversos, sem a menor continuidade no pensamento, sem uma influência
persistente das emoções sobre a música, a qual vive sua própria vida; nela se acham
emoções e pensamentos diluídos, transformando-se em sons puros. (WALTER,
1983, p. 52-53, tradução nossa)62.

Deste modo, o biógrafo entende que a música de Mahler tem muito a dizer e, além do
seu sentido estético e formal, ela também deve ser cuidadosamente analisada do ponto de
vista interior do ouvinte, pois é uma música muito expressiva. Em referência a estas
observações, este autor ainda infere que,

adiantado em espírito, Mahler conquistou para a música novos territórios, porém à


medida em que os anos passam suas obras causam cada vez menos sensação ainda
que, curiosamente, seguem excitando paixões, devido à que a profundidade dos
sentimentos em Mahler e sua necessidade irresistível de entregar-se têm uma força
demasiado pura para que sua música possa fazer-se comodamente familiar e parecer
completamente natural. Basta ouvir algumas notas para que apareça a chama do seu
ousado espírito. (WALTER, 1983, p. 59, tradução nossa) 63.

Este autor refere-se à “força” que existe nas criações artísticas de Mahler, entendendo
que por ser uma música muito íntima, e com isto extremamente pura, ela tem cada vez menos
chamado a atenção do público por não lhe soar natural. Considera-a uma música que necessita
de certa “entrega” por parte do ouvinte. Contudo, o autor enfatiza a sua percepção de que
basta ouvir apenas algumas notas para que se consiga entrever o espírito do compositor.
Sobre as circunstâncias internas que levaram Mahler a esgotar as possibilidades da
forma, Adorno (1999) constata que, a sua música é uma revolução da forma. Neste sentido a
afirmação de Soler (apud ADORNO, 1999, p.11, tradução nossa64), sobre a Oitava e Nona
sinfonias de Mahler e também sobre seu Das Lied von der Erde, contribui ao enfatizar que,

estas três obras, nunca ouvidas pelo seu autor, vivas só depois da sua morte, são o
monumento funerário mais extraordinário que o mundo da música – a mais sutil e
profunda de todas as artes – jamais tenha conhecido.

Soler enfatiza, com isto, que essas três obras sejam construções artísticas ímpares,
marcos da história da música, pois revelam a engenhosidade deste compositor que, mesmo

62
“En los tres primeros movimientos, este mundo forma un simple telón de fondo de sentimientos diversos, sin
la menor continuidad en el pensamiento, sin uma influencia persistente de las emociones sobre la música, la cual
vive su propia vida; en ella se han diluido emociones y pensamientos, transformándose en sonidos puros.”
63
“Adelantado del espíritu, Mahler ha conquistado para la música nuevos territorios, pero a medida que los años
pasan sus obras causan cada vez menos sensación aunque, curiosamente, siguen excitando pasiones, debido a
que la profundidad de los sentimientos en Mahler y su necesidad irresistible de entregarse tienen una fuerza
demasiado pura para que su música pueda hacerse cómodamente familiar y parecer completamente natural.
Basta con oír algunas notas para que aparezca la llama de su osado espíritu.”
64
“Estas tres obras, nunca oídas por su autor, vivas sólo después de su muerte, son el monumento funerario más
extraordinario que el mundo de la música – la más sutil y profunda de todas las artes – haya jamás conocido.”
70

após a sua morte, deu mostras da sua sublimidade artística. Adorno colabora com estas
opiniões e sintetiza a concepção musical deste compositor afirmando que,

[Mahler era um] antiformalista, aos meios de compor prefere a música composta, a
tal ponto que não segue um caminho histórico retilíneo. Já na sua época, essa classe
de caminho ameaçava com a nivelação das qualidades individuais – ou melhor, o
que ele não queria esquecer –, rebaixando-as à mera unidade de organização.
(ADORNO, 1999, p. 39, tradução nossa)65.

Com estas afirmações do autor é possível perceber que Mahler não submeteu os seus
ideais a um mero padrão musical. Por mais que o compositor fosse ciente dos perigos dessa
escolha, ele permaneceu fiel ao seu sentido de compor, exclusivamente, a “música já
composta”, a sua música interior. Indiferente às concepções da sua época, soube extrair da sua
intimidade os princípios puros que constituíram a sua música.
Adorno (1999, p. 19-20, tradução nossa)66 colabora com estas visões ao concluir que,
“é ao gesto da sua música que Mahler se aferra; a Mahler compreenderia quem conseguisse
fazer falar os elementos da estrutura musical, porém que ao mesmo tempo localizasse também
na técnica as suas intenções, que brilham um momento como relâmpagos, da expressão.”
Com estas palavras o autor evidecia que para entender a linguagem musical deste compositor,
torna-se necessária uma focalização em seus gestos musicais, gestos estes percebidos por
Adorno como elementos que constituem a estrutura das suas obras e dizem respeito às
intenções e à expressividade do compositor.
É possível notar que, para Mahler, o aspecto forma é tido como um fator
composicional secundário. O compositor não permite que a forma musical domine e,
consequentemente, ofusque a ideia que a antecede – a inspiração –, admitindo com isto a
visão platônica de que a forma deve manifestar um conteúdo preciso. Ao mesmo tempo em
que Platão afirma que a música deva revelar o belo por meio da inspiração, Mahler entende
que ela tenha a função essencial de dar forma à inspiração. Sob este prisma constato que
ambas as visões encontram-se intimamente ligadas.

65
“Antiformalista, a los medios de componer prefiere la música compuesta, hasta tal punto que no sigue un
camino histórico rectilíneo. Ya en su época, esa clase de camino amenaza con nivelar las calidades individuales
– lo mejor, que él no quería olvidar –, rebajándolas a mera unidad de la organización.”
66
“Al gesto de su música es a lo que Mahler se aferra; a Mahler lo comprendería quien lograse hacer hablar a los
elementos de la estructura musical, pero a la vez localizase en la técnica las intenciones, que brillan un momento
como relámpagos, de la expresión.”
71

7.4 TÉCNICA

Entender o conceito técnica sob o viés da música de Mahler é o mesmo que investigar
os pormenores dos pensamentos e das intenções deste compositor. Segundo Arteaga (2007),
Mahler estudou música com, Bruckner e Epstein, dentre outros. Contudo, por mais que ele
tivesse grandes referências e um ótimo desempenho na maioria das disciplinas técnicas e
específicas da música, Mahler teve problemas no estudo do contraponto. Sobre isto, Arteaga
(2007, p. 23, tradução nossa)67 constata que,

ele foi consciente toda a sua vida das suas lacunas técnicas nesta matéria. O próprio
Mahler fala destas carências nas cartas à sua amiga Natalie Bauer-Lechner quando
lhe refere: “Agora compreendo porque, tal como sabemos, Schubert tratou de
estudar seriamente contraponto pouco antes da sua morte. Era consciente do que lhe
faltava no aspecto técnico. E posso imaginar muito bem o que sentia, pois eu mesmo
tenho deficiências nesta matéria, já que, durante meus anos de estudante, perdi a
oportunidade de adquirir algumas bases sólidas neste aspecto. Certamente, o
intelecto sai em ajuda ao compositor num caso como o meu, porém o desperdício de
energias que se necessita para paliar esta descompensação é desproporcional.”.

Com isto, o autor destaca que o próprio compositor reconhecia as suas falhas no
aspecto técnico da composição. Apesar disto, pode-se perceber que Mahler admite haver
desenvolvido alguma outra habilidade para compensar essas “faltas” técnicas.
Quanto à formação do compositor, este autor ainda sustenta que,

Mahler sabia que suas aptidões lhe conduziam até a música, e investiu muito de si
mesmo para completar sua formação, combinando os elementos e técnicas que
exigiam o molde da sua personalidade artística. Selecionava entre as distintas
disciplinas e escolhia as que melhor se adaptavam às suas qualidades e aspirações,
porém ia também fazendo descartes. (ARTEAGA, 2007, p. 23, tradução nossa) 68.

Segundo este autor é possível verificar que, enquanto estudante de música, Mahler era
consciente das suas aptidões e sabia selecionar aquelas disciplinas que melhor
correspondessem às suas expectativas.

67
“Él fue consciente toda su vida de sus lagunas técnicas en esta materia. El propio Mahler habla de estas
carencias en las cartas a su amiga Natalie Bauer-Lechner cuando le refiere: ‘Ahora comprendo por qué, tal como
sabemos, Schubert trató de estudiar seriamente contrapunto poco antes de su muerte. Era consciente de lo que le
faltaba en el aspecto técnico. Y puedo imaginarme muy bien lo que sentía, pues yo mismo tengo deficiencias en
esta materia, ya que, durante mis años de estudiante, perdí la oportunidad de adquirir unas bases sólidas en este
aspecto. Ciertamente, el intelecto sale en ayuda del compositor en un caso como el mío, pero el derroche de
energías que se necesita para paliar esta descompensación es desproporcionado’.”
68
“Mahler sabía que sus aptitudes le llamaban hacia la música, y puso mucho de sí mismo para completar su
formación, combinando los elementos y técnicas que requerían el modelado de su personalidad artística.
Seleccionaba entre las distintas disciplinas y elegía las que mejor se adaptaban a sus cualidades y aspiraciones,
pero iba también haciendo descartes.”
72

Referindo-se mais especificamente à técnica desenvolvida pelo compositor, Arteaga


afirma que,

Mahler começa sua Quinta Sinfonia em 1901, em um momento em que ele mesmo
reconhece ter um enorme domínio de técnica e poderes: “Não haverá em minha obra
elementos românticos, ou místicos; será a expressão, simplesmente, de um poder
sem paralelo, da atividade de um homem, à luz do sol, que tem alcançado seu clímax
vital”. (ARTEAGA, 2007, p. 230, grifo do autor, tradução nossa)69.

Aqui Arteaga sustenta que o compositor manifesta na sua Quinta Sinfonia uma
grandiloquência artística. Nela, o seu domínio técnico e poderes de criação são apresentados.
Ainda em relação a esta obra, o biógrafo enfatiza que,

é nesta música, a mais objetiva e absoluta escrita por Mahler até esse instante, onde
com mais paradoxa força aparece um “eu-Mahler”, onde o programa narrativo passa
a ser o mesmo compositor. Há uma subjetividade que voltará a manifestar-se em
suas sinfonias com pujança crescente. (ARTEAGA, 2007, p. 230-231, tradução
nossa)70.

Nota-se a visão clara do biógrafo em reconhecer que o compositor passou a ser o


próprio “programa” desta sinfonia. Em parte isto talvez se deva ao fato de que nesta obra não
há texto que apoie o programa narrativo (o sentido da obra). Deste modo, o compositor teve
de utilizar todos os recursos e técnicas artísticas ao seu dispôr para conseguir ilustrar as suas
intenções.
Neste sentido, onde Mahler apresenta já ter adquirido um grande domínio técnico e
uma incrível engenhosidade, a visão de Walter (1983) contribui ao identificá-lo como, um
homem e um compositor original. Apesar disto, no que diz respeito exclusivo à técnica,
Adorno (1999, p. 111, grifo nosso, tradução nossa)71 entende que,

69
“Mahler comienza su Quinta Sinfonía en 1901, en un momento en que él mismo se reconoce un enorme
dominio de técnica y poderes: ‘No habrá en mi obra elementos románticos, o místicos; será la expresión,
simplemente, de un poder sin paralelo, de la actividad de un hombre, a la luz del sol, que ha alcanzado su clímax
vital’.”
70
“Es en esta música, la más objetiva y absoluta escrita por Mahler hasta ese instante, donde con más paradójica
fuerza aparece un ‘yo-Mahler’, donde el programa narrativo pasa a ser el mismo compositor. Hay una
subjetividad que volverá a manifestarse en sus sinfonías con pujanza creciente.”
71
“Dado que la comodidad compositiva se compagina mal con las nada confortables intenciones de Mahler, éste
tampoco maneja la técnica con aquella soberana maestría con que la maneja Richard Strauss, el alumno modelo
del Conservatorio en el papel de genio. Con gran esfuerzo, estudiando, por ejemplo, en edad madura las obras de
Bach, tiene Mahler que adquirir aquello que ya traen consigo compositores que están tan impregnados de su
cultura como Debussy.”
73

dado que a comodidade compositiva se relaciona mal com as nada confortáveis


intenções de Mahler [como, por exemplo, a intenção de “criar um mundo com todos
os recursos possíveis”], este tampouco maneja a técnica com aquela soberana
maestria com a que maneja Richard Strauss, o aluno modelo do Conservatório no
papel de gênio. Com grande esforço, estudando, por exemplo, em idade madura as
obras de Bach, Mahler tem que adquirir aquilo que já trazem consigo compositores
tão impregnados da sua cultura como Debussy.

Aqui o autor se refere às intencionalidades de Mahler em se expressar por meio da


música, de modo que essa pudesse responder às suas demandas pessoais. O compositor,
mesmo não exercendo uma maestria técnica como Richard Strauss ou Debussy, esmera-se em
estudar as obras de Bach já em idade madura. Com isto, Adorno (1999, p. 112, tradução
nossa)72 entende que,

Mahler esboça uma ideia modificada da técnica, a ideia integral, a ideia da


quintessência do contexto compositivo. Nesse contexto entram como elementos
parciais todas as dimensões musicais; nenhuma delas deixa de ser submetida à
crítica.

O autor enfatiza a essência das concepções artísticas de trabalho deste compositor,


enxergando nele um artista crítico e seleto em relação à técnica. Mahler procura, através de
um pensamento mais abrangente, outros recursos além das técnicas capazes de articular as
suas demandas artísticas. Deste modo, Adorno (1999, p. 112, tradução nossa)73 destaca que,
“cada obra de Mahler critica a precedente; isto faz dele o compositor evulutivo por
excelência”. Registra-se, mais uma vez, a necessidade latente do compositor em absorver os
meios necessários à clareza do seu discurso musical.
Sobre a importância desta “técnica” de composição o artista desenvolveu ao longo da
sua vida, Adorno (1999, p. 114, tradução nossa)74 destaca que,

sua inteligência musical, como haviam feito antes as de Beethoven e Brahms, se


objetiva mediante a autorreflexão; porém não se objetiva como uma propriedade
subjetiva do compositor, senão como uma propriedade do objeto mesmo; este
adquire consciência de si e ele se faz “outro”. As contribuições da técnica de Mahler
são as contribuições da sua inteligência musical: preocupação por lograr uma
composição plástica e, com ela, uma apresentação real da música.

72
“Mahler esboza una idea modificada de la técnica, la idea integral, la idea de la quintaesencia del contexto
compositivo. En ese contexto entran como elementos parciales todas las dimensiones musicales; ninguna de ellas
deja de ser sometidas a crítica.”
73
“Cada obra de Mahler critica la precedente; esto hace de él el compositor evolutivo por excelencia.”
74
“Su inteligencia musical, como lo habían hecho antes las de Beethoven y Brahms, se objetiva mediante la
autorreflexión; pero no se objetiva como una propiedad subjetiva del compositor, sino como una propiedad del
objeto mismo; éste adquiere consciencia de sí y con ello se hace ‘outro’. Las aportaciones de la técnica de
Mahler son las aportaciones de su inteligencia musical: preocupación por lograr una composición plástica y, con
ello, una presentación real de la música.”
74

Esta importante referência justifica a “subjetividade” do compositor em reflexionar


sobre técnica, como um elemento “objetivo” que busca inquerir pelo melhor meio de
realização da sua vontade consciente. Com isto, o autor enfatiza a sua percepção de que as
técnicas compositivas de Mahler sejam o resultado de um rigoroso exame prévio, o qual se
volta para a argumentação de uma música em busca da sua verdadeira natureza e
representação.
Todos estes argumentos aqui apresentados revelam aspectos de grande relevância para
a compreensão da ótica artística de Mahler. Segundo as afirmações dos autores, o compositor
desenvolveu uma técnica compositiva única. Essa técnica baseia-se na constante autorreflexão
e criticidade técnica, pois, necessitando “dizer algo” através da sua música, precisou apenas
encontrar os melhores meios para tanto. O compositor esforçou-se na busca de dominar os
meios técnicos e expressivos que mais perfeitamente respondessem às suas intenções (o
conteúdo musical). Desta forma, foi possível evidenciar uma analogia bastante consistente
entre as concepções deste compositor e o pensamento de Platão sobre o quesito técnica do
modelo construído para o escopo desta pesquisa.
Platão, como apontado no capítulo VI, entende a técnica como um elemento não
essencial ao fazer musical, delegando ao artista inspirado o seu fundamento. A inspiração é
um aspecto que o filósofo vê como fator crucial para a arte, pois entende que somente através
dela o artista seja capaz de “falar a verdade” que provém das divindades. De um modo muito
similar ao pensador, Mahler fundamenta o seu fazer musical na criatividade, considerando a
sua necessidade espiritual e íntima como a essência a ser revelada por meio dos sons. Para
tanto, realiza a complicada tarefa de subjugar as técnicas de composição à inteligência
criadora, ordenando a elas que obedeçam à sua mais íntima inspiração.

7.5 MÚSICA

Ao se inquirir sobre as ideias de Mahler sobre o conceito música, é possível constatar


que o compositor tinha uma concepção muito abrangente e, ao mesmo tempo, objetiva.
Arteaga (2007, p. 121, tradução nossa)75, referindo-se ao entendimento do compositor sobre
este conceito, faz notar que,

75
“Gustav Mahler estaba lejos de considerar la música como una forma artística sin misión u objetivo,
justificada por sí misma. Más bien al contrario. Para el artista era la manera de expresar sus más íntimos anhelos
y, al mismo tiempo, la forma de demostrar su genialidad estética y su capacidad de romper las normas; era el
grito de su derecho a ocupar un puesto protagonista en la historia de la música. Sentía desde joven una vocación
musical mesiánica [...].”
75

Gustav Mahler estava longe de considerar a música como uma forma artística sem
missão ou objetivo, justificada por si mesma. Muito pelo contrário. Para o artista era
a maneira de expressar seus mais íntimos anelos e, ao mesmo tempo, a forma de
demonstrar sua genialidade estética e sua capacidade de romper as normas; era o
grito do seu direito de ocupar uma posição protagonista na história da música. Sentia
desde jovem uma vocação musical messiânica [...].

O autor demonstra a sua percepção sobre as considerações de Mahler em relação à


música. O biógrafo enfatiza que o compositor sustenta firmemente que a música não deva ser
justificada como por si mesma, ou seja, admite que ela tenha uma missão muito clara e
objetiva. O compositor vê nela a função de articular importantes conhecimentos, já que a
música é uma forma de conhecimento. Com isto, esmera-se em manifestar ao mundo toda a
sua intimidade como ser humano – ser sensível – através da sua genialidade, sem a qual não
conseguiria romper com as limitações estéticas e formais, nem dar o seu grito de “liberdade”.
Na visão de Walter (1983, p. 88, grifo do autor, tradução nossa)76 há o entendimento
de que,

no fundo tudo o que Mahler pensava e dizia, lia ou compunha, dava voltas ao redor
das questões da origem, do fim, dos fins últimos do homem. Havia momentos de fé
aprazivel, lhe agradavam as belas palavras do pedreiro na audaz peça de
Anzengruber: “Pode não te acontecer nada”, porém a atmosfera da sua alma era
excitada e fecunda como surpresas: um sorriso alegre de um menino deixava marcas,
sem motivo exterior algum, de um súbito espasmo interno, como um jorro de dor
selvagem e desesperado. Ele me fez descobrir Dostoiewsky, cujo gênio se apoderó
de minha alma, foi ele quem despertou meu interesse por Nietzsche, cujo Zaratustra
lhe apaixonava então e, quando se deu conta de minha inclinação pela filosofia, me
deu, no Natal do ano de 1894, as obras de Schopenhauer, abrindo-me assim um
mundo ao qual sempre fui fiél.

Conforme o apontamento deste autor, toda a vida interior de Mahler gravitava em


torno dos mistérios da vida e do homem. Devido a sua condição de músico e da sua grande
inclinação à filosofia, Mahler desenvolve uma sensibilidade sem igual, capaz de lhe pôr em
consonância com as coisas mais “singelas”, chegando ao extremo de sentir-se tocado
profundamente por um simples sorriso de criança. O autor também revela aqui a forte
tendência do compositor pela filosofia nietzscheana, principalmente pelo seu livro Assim
Falava Zaratustra, e também por Dostoiévski e por Schopenhauer.
Outra importante referência que este autor faz o compositor é de que,

76
“En el fondo todo lo que Mahler pensaba y decía, leía o componía, daba vueltas alrededor de las cuestiones del
origen, del fin, de los fines últimos del hombre. Había momentos de fe apacible, le gustaban las bellas palabras
del picapedrero en la audaz pieza de Anzengruber: ‘Puede no pasarte nada’, pero la atmósfera de su alma era
excitada y fecunda en sorpresas: una risa alegre de niño dejaba paso, sin motivo exterior alguno, como por una
súbita crispación interna, a un brote de dolor salvaje y desesperado. El me hizo descubrir a Dostoiewsky, cuyo
genio se apoderó de mi alma, él fue quien despertó mi interés por Nietzsche, cuyo Zaratustra le apasionaba por
entonces y, cuando se dio cuenta de mi inclinación por la filosofía, me regaló, en las Navidades del año 1894, las
obras de Schopenhauer, abriéndome así un mundo al que siempre he sido fiel.”
76

[...] na casa de Mahler não se encontrava somente espiritualidade, filosofia e música.


A alegria reinava também, com essa finura austríaca que, com a primeira palavra no
dialeto vienense na boca de Mahler ou de suas irmãs, senti tão perto do meu
coração. (WALTER, 1983, p. 89, tradução nossa)77.

Aqui é possível perceber claramente que o compositor vê na espiritualidade, na


filosofia e na música, mais do que meras teorias, pois as vivia intensamente e manifestava isso
por meio da alegria que reinava em sua casa.
Como Mahler não era capaz de conceber música de forma alheia às suas próprias
vivências mais íntimas, sua música tornou-se uma imagem sonora fiel dessa concepção. Neste
sentido, Walter (1983, p. 56, tradução nossa)78 enfatiza que,

as quatro primeiras sinfonias de Mahler revelam uma parte importante da sua


história interior. Nelas a força da linguagem musical responde à força da experiência
espiritual, e todas dão fé de um intercâmbio incessante entre o mundo dos sons e o
das ideias, dos pensamentos e das emoções.

Com isto o autor torna evidente que estas primeiras sinfonias revelam uma “história
interior”. Também acrescenta a sua visão de que nelas exista uma linguagem musical
correspondente às experiências espirituais do compositor. Contudo, este autor vai mais além
com as suas reflexões e destaca que,

na Primeira a música reflete as emoções atormentadas de uma experiência subjetiva;


a partir da Segunda há questões metafísicas que exigem respostas e soluções. A
resposta é tripla e se dá cada vez desde o ponto de vista diferente. A Segunda
Sinfonia buscava o sentido que pode ter a trágica condição humana: a resposta,
muito clara, é sua justificação pela imortalidade. Apaziguada, a música se volta na
Terceira à natureza e, depois de ter recorrido seu ciclo, chega à feliz convicção de
que a resposta está no amor todo-poderoso, “que tudo forma e tudo abarca”. Na
Quarta, com um beático sonho acerca da felicidade da vida eterna se afirma e nos
afirma que estamos salvos. (WALTER, 1983, p. 56, grifos do autor, tradução
nossa)79.

Neste ponto podem ser observados importantes conceitos presentes nas obras de
Mahler. O autor comenta que a Primeira Sinfonia reflete as caóticas emoções que lutavam

77
“[...] en casa de Mahler no se encontraba sólo espiritualidad, filosofía y música. La alegría reinaba también,
con esa finura austríaca que, con la primera palabra en dialecto vienés en boca de Mahler o de sus hermanas,
sentí tan cerca de mi corazón.”
78
“Las cuatro primeras sinfonías de Mahler revelan una parte importante de su historia interior. En ellas la
fuerza del lenguaje musical responde a la fuerza de la experiencia espiritual, y todas dan fe de un intercambio
incesante entre el mundo de los sonidos y el de las ideas, de los pensamientos y de las emociones.”
79
“En la Primera la música refleja las emociones atormentadas de una experiencia subjetiva; a partir de la
Segunda hay cuestiones metafísicas que exigen respuestas y soluciones. La respuesta es triple y se da cada vez
desde un punto de vista diferente. La Segunda Sinfonía buscaba el sentido que puede tener la trágica condición
humana: la respuesta, muy clara, es su justificación por la inmortalidad. Apaciguada, la música se vuelve en la
Tercera hacia la Naturaleza y, después de haber recorrido su ciclo, llega a la feliz convicción de que la respuesta
está en el amor todopoderoso, ‘que todo lo forma y todo lo abarca’. En la Cuarta, con un beatífico sueño acerca
de la felicidad de la vida eterna se afirma y nos afirma que estamos salvados.”
77

dentro do compositor. A Segunda exprime determinadas questões metafísicas que pairavam na


sua mente, contudo ela mesma apresenta a possível solução. Após essas “forças” entram em
equilíbrio, surge a Terceira: a sinfonia da natureza. Finalmente, a Quarta manifesta o sonho da
felicidade eterna. Com estas interpretações do biógrafo fica fácil compreender que as obras
deste compositor estejam carregadas de significados metafísicos e espirituais.
Seguindo a linha do pensamento compositivo de Mahler, o mesmo biógrafo enfatiza
que,

a partir [da Quarta Sinfonia] a luta por chegar, em termos musicais, a uma nova
visão do Universo, se suspende. Agora, em plena possessão dos seus meios e
sintindo-se à altura das exigências da vida, Mahler está preparado para escrever
música como músico. Mirando à vida e à realidade, sua Quinta Sinfonia transborda
força e uma saudável confiança em si mesmo. (WALTER, 1983, p. 56, grifo nosso,
tradução nossa)80.

Com isto, percebe-se que o compositor, somente depois da sua Quarta Sinfonia,
conseguiu levar ao máximo, tanto as suas concepções filosóficas, quanto a sua música.
Mahler apresenta na sua Quinta Sinfonia uma resolução para os problemas metafísicos e
espirituais que, até a pouco, lhe sondavam. Por meio de uma força destruidora contida nessa
obra, os problemas passados são reduzidos a nada.
Walter sintetiza as suas concepções acerca do conteúdo das obras de Mahler,
afirmando que,

em certo sentido a Quinta, a Sexta e a Sétima [sinfonias] pertencem todas a mesma


linha. As duas últimas são tampouco metafísicas como poderia ser a música; com
elas o compositor busca antes de tudo ampliar a ideia sinfônica. De todas as formas
a Sexta é de um pessimismo arrepiante; a taça da vida transborda nela a sua
amargura. Contrastando nitidamente com a Quinta, esta obra diz “não”,
especialmente no último movimento, onde a música expressa algo que se parece
muito à implacável luta de “todos contra todos”. “A existência é uma carga, a morte
é desejável e a vida odiosa”, poderia ser seu lema. Mahler a chamava de sua
[sinfonia] “Trágica”. A tensão crescente e os paradoxos do último movimento
recordam, por sua lúgubre força, as ondas desmedidas de um oceano que termina
por afundar e destruir o barco; a obra conclui com o desespero e a noite da alma.
Non placet parece ser o veredito de Mahler com respeito a este mundo; o “outro
mundo” não se menciona em nenhum momento. A Sétima [Sinfonia] também forma
parte do grupo das obras intrinsicamente musicais e puramente sinfônicas.
(WALTER, 1983, p. 57, grifos do autor, tradução nossa) 81.

80
“A partir de entonces la lucha por llegar, en términos musicales, a una nueva visión del Universo, se suspende.
Ahora, en plena posesión de sus medios y sintiéndose a la altura de las exigencias de la vida, Mahler está
preparado para escribir música como músico. Mirando hacia la vida y hacia la realidad, su Quinta Sinfonía
rebosa fuerza y una saludable confianza en sí mismo.”
81
“En cierto sentido la Quinta, la Sexta y la Séptima pertenecen todas a la misma línea. Las dos últimas son tan
poco metafísicas como puede serlo la música; con ellas el compositor busca ante todo ampliar la idea sinfónica.
De todas formas la Sexta es de un pesimismo escalofriante; la copa de la vida rebosa en ella su amargura.
Contrastando netamente con la Quinta, esta obra dice ‘no’, especialmente en el último movimiento, donde la
78

Aqui, pode-se vislumbrar claramente que a música deste compositor tenha sido
impregnada com o conteúdo extramusical dos seus “estados de alma”. Com isto, o biógrafo
enfatiza que a Quinta, a Sexta e a Sétima Sinfonia tenham sido concebidas segundo critérios
estéticos similares: a vida, com toda sua força e contradições. No que diz respeito à Oitava
Sinfonia, este autor sustenta que,

nenhuma outra obra expressa tão plenamente o “si” apaixonado pela existência. O
proclama a massa coral do Hino que Mahler funde, com mão mestra, em um
movimento sinfônico construído como um templo. Todavia ressoa no texto de
Fausto e através da torrente de música em que Mahler derramou toda sua exaltação.
Ao chegar à idade madura, este buscador de Deus confirma, em um plano mais
elevado, a certidão que seu coração juvenil havia proclamado nos acentos
entusiastas da Segunda Sinfonia. Na Oitava, a relação entre a ideia e música é
absolutamente clara, desde o princípio a palavra toma corpo, e desde o começo
também a eternidade levanta a questão da qual nasce a sinfonia e a que responde.
(WALTER, 1983, p. 57, grifos do autor, tradução nossa) 82.

Com estas afirmações, Walter planteia a questão da Oitava Sinfonia vendo-a como
uma obra magistral que manifesta as profundas inspirações do compositor, tanto que o
biógrafo a definiu como sendo “um movimento sinfônico construído como um templo”,
tamanha a magnitude sonora. O autor também enfatiza a ideia de que esta obra manifesta a
maturidade de um homem em busca de Deus, o qual agora pode confirmar as suas
expectativas já reveladas na Segunda Sinfonia.
Referindo-se à sinfonia Das Lied von der Erde, Walter (1983, p. 58, grifos do autor,
tradução nossa)83 infere que,

música expresa algo que se parece mucho a la implacable lucha de ‘todos contra todos’. ‘La existencia es una
carga, la muerte es deseable y la vida odiosa’, podría ser su lema. Mahler la llamaba su ‘Trágica’. La tensión
creciente y los paroxismos del último movimiento recuerdan, por su lúgubre fuerza, las olas desmesuradas de um
océano que terminan por hundir y destruir el barco; la obra concluye con la desesperación y la noche del alma.
Non placet parece ser el veredicto de Mahler respecto a este mundo; el ‘otro mundo’ no se menciona en ningún
momento. La Séptima forma también parte del grupo de obras intrínsecamente musicales y puramente
sinfónicas.”
82
“Ninguna otra obra expresa tan plenamente el «sí» apasionado a la existencia. Lo proclama la masa coral del
Himno que Mahler funde, con mano maestra, en um movimiento sinfónico construido como un templo. Resuena
todavía en el texto de Fausto y a través del torrente de música en el que Mahler ha derramado toda su exaltación.
Al llegar a la edad madura, este buscador de Dios confirma, en un plano más elevado, la certidumbre que su
corazón juvenil había proclamado en los acentos entusiastas de la Segunda Sinfonía. En la Octava, la relación
entre la idea y la música es absolutamente clara, desde el principio la palabra toma cuerpo, y desde el comienzo
también la eternidad plantea la cuestión de la que nace la sinfonía y a la que responde.”
83
“La tierra desaparece, el músico respira otro aire, una luz nueva brilla sobre él, y entonces lo que compone es
una obra totalmente original por su estilo de composición, su invención musical, su instrumentación, su
estructura de los diferentes movimientos y por su subjetividad [...]. En ella, oíamos el Yo connatural a un joven
apasionado cuya experiencia personal le impedía ver el mundo; aquí, mientras el mundo se desvanece
lentamente, es el ‘Yo’ mismo el que se convierte em experiencia; un campo ilimitado de emociones se abre al
que pronto va a abandonar la tierra. Cada una de las notas traduce su voz más íntima. Cada una de las palabras,
aunque están inspiradas em poemas milenarios, le son propias. La canción de la tierra es la creación más
personal de Mahler, y acaso la más personal de toda la historia de la música. La capacidad inventiva que, desde
79

[nela] a terra desaparece, a música respira outro ar, uma luz nova brilha sobre ele, e
então o que compõe é uma obra totalmente original pelo seu estilo de composição,
sua invenção musical, sua instrumentação, sua estrutura dos diferentes movimentos
e por sua subjetividade [...]. Nela ouvimos o Eu conatural a um jovem apaixonado
cuja experiência pessoal lhe impedia de ver o mundo; aqui, enquanto o mundo se
desvanece lentamente, é o “Eu” mesmo o que se converte em experiência; um
campo ilimitado de emoções se abre ao que de pronto vai abandonar a terra. Cada
uma das notas traduz sua voz mais íntima. Cada uma das palavras, ainda que estejam
inspiradas em poemas milenares, são-lhe próprias. A canção da terra é a criação
mais pessoal de Mahler, e acaso a mais pessoal de toda a história da música. A
capacidade inventiva que, desde a Sexta Sinfonia contava menos consigo mesma que
com o material a dar forma, adquire aqui uma profunda originalidade. Nesse sentido
é exato afirmar que Das Lied é a mais “mahleriana” de todas suas obras.

As palavras do biógrafo revelam o entendimento de que, na sinfonia Das Lied von der
Erde, paira uma paisagem totalmente nova, com outra luz, outros ares; é uma obra totalmente
original. No decorrer dela é possível perceber que o mundo vai se dissolvendo lentamente, ao
mesmo tempo em que todo o ser do compositor vai assumindo a “forma”. Essas ideias íntimas
impregnam tanto a obra que, por mais que o seu texto esteja inpirado em poemas milenares,
eles soam como que próprios. Neste sentido, o autor enfatiza que a obra seja a criação “mais
pessoal de toda a história da música”.
Ainda em relação a esta obra, o mesmo autor indica que,

a partir de um material temático que lhe é próprio, o [primeiro] movimento se


desenvolve nesta forma sinfônica que só Mahler sabe, a partir de agora, construir, e
esta grandiosa paráfrase do Abschied [Adeus] adquire um carater trágico comovedor.
O movimento está submergido em um clima de transfiguração criado pela singular
transição que se opera entre a dor do adeus e a visão da irradiação celeste; e se sente
que o compositor não recorre aqui à imaginação, senão que é um sentimento intenso
e forte o que lhe inspira. Do ponto de vista da criação, este movimento é tipicamente
mahleriano como Das Lied. O segundo movimento, que não é outro que o velho e
familiar scherzo baixo uma nova forma – esta vez o tempo principal é mais amplo –,
revela uma grande riqueza de variações, porém uma corrente de tristeza subjacente
penetra através da alegria: “A festa terminou”. O agitado desafiante do terceiro
movimento demonstra uma vez mais o assombroso grau de maestria contrapontística
de havia alcançado Mahler. Por fim, o último movimento pronuncia um aprazível
adeus, com suas últimas notas as nuvens se dissipam num azul do firmamento.
(WALTER, 1983, p. 58, grifos do autor, tradução nossa) 84.

la Sexta Sinfonía contaba menos en sí misma que como material a dar forma, adquiere aquí una profunda
originalidad. En ese sentido es exacto afirmar que Das Lied es la más ‘mahleriana’ de todas sus obras.”
84
“A partir de um material temático que le es propio, el movimiento se desarrolla en esta forma sinfónica que
sólo Mahler sabe desde ahora construir, y esta grandiosa paráfrasis del Abschied adquiere un carácter trágico
conmovedor. El movimiento está sumergido en un clima de transfiguración creado por la singular transición que
se opera entre el dolor del adiós y la visión de la irradiación celeste; y se siente que el compositor no recurre aquí
a la imaginación, sino que es un sentimiento intenso y fuerte el que le inspira. Desde el punto de vista de la
creación, este movimiento es tan típicamente mahleriano como Das Lied. El segundo movimiento, que no es otro
que el viejo y familiar scherzo bajo una nueva forma - esta vez el tempo principal es más amplio -, revela una
gran riqueza de variaciones, pero una corriente de tristeza subyacente penetra a través de la alegría: ‘La fiesta há
terminado’. El agitato desafiante del tercer movimiento demuestra una vez más el asombroso grado de maestría
contrapuntística que había alcanzado Mahler. Por fin, el último movimiento pronuncia um apacible adiós, con
sus últimas notas las nubes se disipan en el azul del firmamento.”
80

Com esta análise do Das Lied von der Erde que o biógrafo faz, tornam-se evidentes
algumas das mais importantes visões artísticas de Mahler em forma de música. O autor infere
que o primeiro movimento da obra, a qual o compositor concebeu como se fosse a sua última
sinfonia, assume um caráter extremamente trágico, mas também comovedor: é o início do seu
Adeus! ao mundo. No segundo movimento a alegria se manifesta, contudo, a música
submerge, pouco a pouco, num ambiente de tristeza, como que dizendo: - A festa chegou ao
fim! Para o biógrafo, o agitato do terceiro movimento revela o nível de maestria no
contraponto ao qual o compositor chegou. Por fim, o último movimento é uma aprazível
exalação do Adeus... Nele aparece, por trás das nuvens, o firmamento azul que o compositor
tanto ansiou durante toda a sua vida.
Walter (1983, p. 59, tradução nossa)85 conclui as suas aprofundadas observações
asseverando que,

se a imortalidade coroou as obras dos mestres prometeicos, há que buscar a razão


em sua potência criadora, em sua profundidade de sentimentos e, acima de tudo, em
sua beleza. Porque a beleza é imortal e pode ela só salvar da ruína e do
esquecimento o encanto efêmero do que só é “interessante”. Assim, o que constitui o
valor supremo da obra de Mahler não é a novidade do seu carater frequentemente
tão surpreendente, ousado e inclusive excêntrico, senão que essa novidade se plasme
em uma música bela e inspirada que possui, por sua vez, as qualidades
imperecedouras da Arte e uma profunda humanidade. Isto lhe faz seguir sempre viva
e garantida sua sobrevivência.

O autor revela aqui o seu entendimento quanto à nobreza das obras dos grandes
mestres da música. Destaca que é, justamente por serem belas, que essas obras devem ser
consideradas como eternas, pois a beleza é imortal. Essas obras não são meramente obras
“interessantes”, já que o interessante pode ser efêmero. Com isto, enfatiza que as obras de
Mahler se enquadram no sentido das obras imortais, ainda que sejam ousadas e excêntricas,
pois o compositor conseguiu configurar em uma música bela e inspirada as qualidades eternas
da Arte, sem jamais perder o seu espírito essencialmente humano.
Todas estas articulações que gravitam ao redor das obras e das concepções de Mahler
são enfatizadas por Arteaga (2007, p. 121-122, tradução nossa)86 ao sustentar que,

85
“Si la inmortalidad ha coronado las obras de los maestros prometeicos, hay que buscar la razón en su potencia
creadora, en su profundidad de sentimientos y, por encima de todo, en su belleza. Porque la belleza es inmortal y
puede ella sola salvar de la ruina y del olvido el encanto efímero de lo que sólo es ‘interesante’. Así, lo que
constituye el valor supremo de la obra de Mahler no es la novedad de su carácter a menudo tan sorprendente,
osado e incluso excéntrico, sinó que esa novedad se plasme en una música bella e inspirada que posee, a la vez,
las cualidades imperecederas del Arte y una profunda humanidad. Esto le hace seguir siempre viva y garantiza su
supervivencia.”
86
“En su obra, como en el Hombre en general, hay desesperación y esperanza; vida y muerte; profundidad y
vulgaridad; belleza y fealdad; placer y dolor; amor y odio. No una cosa tras la otra, sino todo a la vez. Los temas
surgen según le llegan: si se le han aparecido así, ¿quién es él para alterar este orden? ¿Acaso no dijo: ‘No
81

[na obra deste compositor], como no Homem em geral, há desespero e esperança;


vida e morte; profundidade e trivialidade; beleza e feiúra; prazer e dor; amor e ódio.
Não uma coisa depois da outra, senão que tudo de uma vez. Os temas surgem
segundo lhe chegam: se lhe aparecem assim, quem é ele para alterar esta ordem?
Acaso não disse: “Não componho, sou composto”? Quem é ele para modificar o
verdadeiro fluir dos acontecimentos, das danças, das marchas, da música exterior
que lhe rodeia? E quem é ele para rechaçar a reação espiritual que provocam estas
músicas? É só questão de separar os temas mediante uma pausa de semibreve.

Aqui o biógrafo revela importantes questões presentes na obra de Mahler. Entende que
o compositor tenha expressado, através da sua música, o drama comum que perfaz a vida do
homem, pois em ambos há desespero e esperança, vida e morte, profundidade e trivialidade,
beleza e feiúra, prazer e dor, amor e ódio, etc. Deste modo, a sua música pode ser
compreendida como uma revelação dos mistérios da existência ou, quem sabe, como uma
música filosófica.
É possível vislumbrar com estas significativas visões apresentadas aqui, que a palavra
música é concebida por Mahler sob um ponto de vista especial. O compositor utiliza a sua
criatividade artística como fonte, quase inesgotável, de manifestação das suas concepções,
tanto espirituais, quanto humanas. Nas suas criações artísticas, a música passa a ter um
sentido e uma função: sensibilizar o homem para as questões essenciais da vida e da
espiritualidade. Contudo, essa sua motivação não parte de algo infundado, mas das suas
próprias experiências, boas ou ruins. É por meio desse conflito entre as forças antagônicas
existentes dentro do homem que o compositor consegue revelar uma verdade que obteve a
alto preço: o equilíbrio.
Neste sentido, verifica-se uma consistente relação entre as concepções de Mahler e os
propósitos estéticos da filosofia platônica. Platão entende que a função da música é a
educação. Levando-se em conta a analogia que há entre os seus elementos essenciais –
harmonia e ritmo – e o cosmos, a música é entendida como a educadora por excelência, pois
revela concordância com a perfeição cósmica, com a beleza. De uma forma similar, Mahler
manifesta os seus estados de ânimo através da música, incluindo aí dor e prazer, alegria e
tristeza, animação e tédio, superficialidade e profundidade, amor e ódio, etc. Todavia, o
compositor aspira representar, por meio desses combates, dramas da vida, a síntese de tudo: o
equilíbrio, o qual deve ser conquistado após incansáveis batalhas.
Conforme foi possível notar através das palavras dos seus biógrafos, a música deste
compositor está repleta de significações humanas e espirituais, as quais merecem atenção por

compongo, soy compuesto’? ¿Quién es él para modificar el verdadero fluir de los acontecimientos, las danzas,
las marchas, la música exterior que le rodea? ¿Y quién es él para rechazar la reacción espiritual que provocan
estas músicas? Sólo es cuestión de separar los temas mediante un silencio de blanca.”
82

parte do ouvinte, devido à sensibilização que são capazes de lhes suscitar. Da mesma forma
Platão entende a música como o mais elevado meio de pôr o homem em concordância consigo
mesmo – através do equilíbrio e ordem da sua alma – e, como consequência, com o cosmos.

7.6 ARTISTA

Para que seja possível compreender as concepções de Mahler sobre o artista, faz-se
indispensável recorrer às suas próprias manifestações artísticas, pois são elas que, mais do que
as suas palavras, articulam nesse sentido. Desta forma, ao tratar das intencionalidades que o
compositor deu à sua Oitava Sinfonia, Arteaga (2007) entende que, ele acreditava que
somente o poder da luz do espírito era capaz de tirar a humanidade do fundo do abismo das
suas desgraças e sofrimentos. O fato de este compositor pensar assim revela a sua
sensibilidade para com as desgraças e sofrimentos alheios, pois entende que somente através
da luz, ou quem sabe: da luz da sua música, é que os seres humanos podem ser salvos desse
terrível fosso.
Seguindo as coordenadas da sua própria consciência, Arteaga (2007, p. 122, tradução
nossa)87 sustenta que,

indiferente às críticas, Mahler necessita explicar, contar, demonstrar ao mundo que é


um Titã, porém um Titã que também sofre e ama e enferma. Em sua vida terrena
vive a pobreza e a morte desde sua mais terna infância [...].

Quer dizer, o compositor aproveita-se dos seus dramas vividos para demonstrar ao
mundo que há a possibilidade de “redenção”. As suas próprias obras contribuem nesse
sentido, pois buscam trazer significados à vida e à existência do ser humano. Algumas dessas
obras chegam, inclusive, a fazer referência textual a Deus, como é o caso já apresentado da
Segunda Sinfonia.
Ilustrando algumas dessas intenções do compositor, Arteaga (2007, p. 298, tradução
nossa)88 revela que, “Mahler anotou no pentagrama [de uma partitura] expressões como
‘Piedade!!’, ‘Oh, Deus!!, por que me abandonaste?’, ‘Morte!’, e ao final do movimento ‘Faça-
se tua vontade’”, como forma de revelação das suas preocupações, intensões e, sobretudo, da
sua relação com os mistérios espirituais.

87
“Indiferente a las críticas, Mahler necesita explicar, contar, demostrar al mundo que es Titán, pero un Titán
que también sufre y ama y enferma. En su vida terrena vive la pobreza y la muerte desde su más tierna infancia
[...].”
88
“Mahler ha anotado en el pentagrama expresiones como ‘¡¡Piedad!!’, ‘¡¡Oh, Dios!!, ¿por qué me has
abandonado?’, ‘¡Muerte!’, y al final del movimiento ‘Hágase tu voluntad’.”
83

Todas estas significativas revelações ilustram uma pequena porcentagem das


aspirações de um compositor que lutou constantemente contra as desilusões do mundo e os
traumas da vida. Arteaga (2007, p. 102-103, tradução nossa)89 amplia esta visão destacando
que,

igual ao que ocorreu com as mortes de outros seres queridos, Mahler não
exteriorizou a dor pela perda da sua filha. Virtualmente ignorou o tema na sua
correspondência. Como em tantas outras ocasiões anteriores, guardou para si; só
veio a compartilhar com o mundo seu estado de ânimo através da música.
Exteriormente, tratou de manter a calma e permanecer perto de sua mulher e de sua
sogra, porém por dentro sofreu uma comoção que só é possível compreender através
da trilogia das suas obras finais.

Aqui o biógrafo revela que o compositor era capaz de transformar tudo o que sentia,
até as suas emoções mais profundas, em música. Neste sentido o autor aponta que, por
exemplo, a dor de perder a sua filha, a qual o compositor não havia exteriorizado
anteriormente, está plasmada nas suas três últimas sinfonias.
Contudo, o compositor também soube manifestar através das suas obras as suas mais
altas inspirações. Arteaga (2007) afirma que, Mahler pôs na sua Terceira Sinfonia toda a
natureza que estava à sua volta. Sobre essas referências à natureza que o compositor manifesta
nessa sua sinfonia, Arteaga (2007, p. 211, grifos do autor, tradução nossa)90 as exemplifica,
inferindo que,

[...] o esquema [original da Terceira Sinfonia], com títulos, que Mahler havia
planejado para os movimentos da nova composição [são]: 1. Avança o verão. 2. O
que me dizem as flores no prado. 3. O que me dizem os animais do bosque. 4. O que
me diz a noite (o homem). 5. O que me dizem os sinos da manhã (os anjos). 6. O que
me diz o amor. 7. O que me diz o menino. “A todo este conjunto chamarei ‘Minha
alegre sabedoria’, porque é isso justamente!”, o compositor anotava finalmente.

Com isto, vislumbra-se a imensa relação deste compositor inspirado, com tudo o que
lhe rodeava, pois o programa original da sua Terceira Sinfonia exibia títulos como referências
à natureza e às suas próprias experiências.

89
“Al igual que ocurrió con las muertes de sus otros seres queridos, Mahler no exteriorizó el dolor por la pérdida
de su hija. Virtualmente ignoró el tema en su correspondencia. Como en tantas otras ocasiones anteriores, lo
guardó para sí; sólo se avino a compartir con el mundo su estado de ánimo a través de la música. Exteriormente,
trató de mantener la calma y permanecer cerca de su mujer y de su suegra, pero por dentro sufrió una conmoción
que sólo es posible comprender a través de la trilogía de sus obras finales.”
90
“[...] el esquema completo, con títulos, que Mahler ha planeado para los movimientos de la nueva composición
[...]: 1. Avanza el verano. 2. Lo que me dicen las flores en el prado. 3. Lo que me dicen los animales en el
bosque. 4. Lo que me dice la noche (el hombre). 5. Lo que me dicen las campanas de la mañana (los ángeles). 6.
Lo que me dice el amor. 7. Lo que me dice el niño. ‘A todo este conjunto lo llamaré “Mi alegre sabiduría”,
¡porque es eso justamente!’, anotaba finalmente el compositor.”
84

Sobre essa habilidade de inspiração do compositor e da sua busca pela mesma, Walter
(1983) aponta que, Mahler encontrava inspiração nas suas caminhadas e escaladas de
montanha. Com isto, contextualiza-se a sua procura cotidiana por essa faculdade promotora
da criatividade artística. Este autor ainda sustenta que,

nas sinfonias de Mahler o material temático reflete a inspiração de um autêntico


músico, sincero e vigoroso, incapaz de erigir uma importante construção temática a
partir de motivos por si mesmos insignificantes ou artificiais. Para os prolongados
desenvolvimentos de suas obras sinfônicas, necessitava ser aguçado constantemente
por uma ideia inspirada, por um tema encontrado no curso de um desses períodos
felizes de iluminação interior. Em música, no sentido amplo do termo, tudo se baseia
na invenção: tanto o “material” em si como o seu desenvolvimento sinfônico. A
capacidade criativa de Mahler está marcada, acima de tudo, com o selo de uma
personalidade a qual ninguém pode negar a originalidade. (WALTER, 1983, p. 49,
tradução nossa)91.

Segundo este biógrafo, todo o material temático utilizado nas suas sinfonias, inclusive
os seus longos desenvolvimentos, são consequências das mais íntimas intenções do
compositor, o qual jamais seria capaz de construir a sua música sobre uma superficialidade
artificial. O autor ainda destaca que essa relação entre arte e as experiências interiores de
Mahler, revela-se nas suas obras como um imenso valor artístico.
Ao fim da sua curta existência, o compositor revelou que,

se quero voltar a encontrar o caminho até mim mesmo, tenho que aceitar a angústia
da solidão. Falo enigmaticamente porque você não pode saber nada do que tem
passado e do que passa em meu interior. Não é desde logo, um medo hipocondríaco
pela morte, como você supõe. Sei desde muito tempo que terei que morrer... sem
tratar de explicar nem de descrever uma coisa para a qual não existam
provavelmente palavras, digo simplesmente que de repente perdi toda a calma e a
paz interiores que havia alcançado. Encontro-me vis-á-vis de ríen [frente a frente de
nada] e a partir de agora, ao chegar ao término da minha existência, devo começar a
aprender a andar e a me sustentar de pé. (MAHLER apud WALTER, 1983, p. 68,
grifos do autor, tradução nossa)92.

91
“En las sinfonías de Mahler el material temático refleja la inspiración de un auténtico músico, sincero y
vigoroso, incapaz de erigir una importante construcción temática a partir de motivos por sí mismos
insignificantes o artificiosos. Para los prolongados desarrollos de sus obras sinfónicas, necesitaba ser
aguijoneado constantemente por una idea inspirada, por un tema encontrado en el curso de uno de esos períodos
felices de iluminación interior. En música, en el sentido amplio del término, todo se basa en la invención: tanto
el «material» en sí como su desarrollo sinfónico. La capacidad creativa de Mahler está marcada, por encima de
todo, con el sello de una personalidad a la que nadie puede negar la originalidad.”
92
“‘Si quiero volver a encontrar el camino hacia mí mismo, tengo que aceptar la angustia de la soledad’, me
escribió en julio de 1908; ‘hablo enigmáticamente porque usted no puede saber nada de lo que ha pasado y lo
que pasa en mi interior. No es, desde luego, un miedo hipocondríaco a la muerte, como usted supone. Sé desde
hace mucho tiempo que tendré que morir… Sin tratar de explicar ni de describir una cosa para la que no existen
probablemente palabras, digo simplemente que de repente he perdido toda la calma y la paz interiores que había
alcanzado. Me encuentro vis-á-vis de ríen y a partir de ahora, al llegar al término de mi existencia, debo empezar
a aprender a andar y a sostenerme de pie’.”
85

Aqui o compositor expressa, através destas palavras carregadas de emoção, uma


percepção humana que vai muito além dos fatos triviais da vida. O artista admite que não
existam palavras para contextualizar os “acontecimentos” que viveu internamente. Contudo,
revelam os anseios de um homem que buscou desvendar os seus próprios mistérios e que,
nessa busca interior, segredou ao mundo, por meio da sua música, verdades que até então não
haviam sido reveladas.
Neste sentido é possível constatar em Mahler um entendimento sobre quem é o artista
que vai além da própria arte. Este compositor não revelou ser capaz de compor, simplesmente
por compor, pois, acreditando que a música deva brotar de dentro do artista, entende que a sua
tarefa seja unicamente a de “falar” a verdade. Com isto, verifico entre Mahler e Platão
importantes analogias quanto à compreensão do papel do artista para com a sua obra.
Enquanto que Platão enfatiza que o artista deva ser um indivíduo inspirado, vendo
nessa faculdade o meio pelo qual o artista se relaciona com as divindades e de,
consequentemente, “falar” a verdade, Mahler compreende que a sua função como artista seja
a de exprimir os seus sentimentos mais íntimos. Para isto, este último busca constantemente
na inspiração a luz e o fundamento da sua arte.
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8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente trabalho investigou-se a possibilidade das concepções artísticas e


filosóficas de Gustav Mahler serem análogas aos conceitos estético-musicais platônicos. Com
a finalidade de viabilizar esta pesquisa, foi necessário consultar as obras de Platão que mais
articulam sobre a temática. Para tanto, as obras A República, As Leis, Íon e Timeu-Crítias,
constituíram o principal eixo da investigação, pois foi possível encontrar nelas relevantes
caracterizações do pensamento estético do filósofo.
A ação seguinte foi investigar o pensamento estético contemporâneo de Hegel,
Hanslick, Fubini, Eggebrecht, Dahlhaus, Riemann e Pahissa, isto com o objetivo de encontrar
possíveis analogias entre estes autores e as concepções de Platão. Ao chegar-se a esse ponto
da pesquisa se reconheceu haver determinados princípios estéticos que, tanto se faziam
presentes em Platão, quanto em alguns dos pensadores contemporâneos. Notou-se também
que esses conceitos descobertos, que a título de organização nomeou-se como, religiosidade,
sentido ético, a forma, a técnica, a música e o artista, constituem o centro de gravitação do
pensamento estético, seja pela tentativa de afirmá-los ou refutá-los.
A partir dessas descobertas e discussões estéticas, da análise dos dados obtidos através
do confronto entre as principais visões desses pensadores contemporâneos e as de Platão,
obtiveram-se os resultados. Esses resultados, por sua vez, serviram para conformar um
modelo estético-musical baseado nas premissas de Platão, o qual foi apresentado em forma de
quadro no capítulo VI. Nesse modelo estético-musical platônico é possível consultar os
conceitos supracitados e as referentes considerações feitas por Platão, como também as dos
pensadores afins: Hegel, Riemann e Pahissa. Deste modo, verificou-se em ambos os autores
um pensamento comum em relação aos conceitos: religiosidade da obra, ao seu sentido ético,
à forma musical, à técnica, à música (no aspecto geral) e, finalmente, quanto ao artista.
A respeito do conceito religiosidade: Platão considera que o artista deva se relacionar
com as Musas através da inspiração; Hegel e Riemann veem a música como uma
manifestação divina; já Pahissa considera como arte verdadeira somente aquela que seja capaz
de manifestar a vida. Com isto se evidenciou que ambos os pensadores atribuem à música um
caráter espiritual.
Sobre o sentido ético: Platão afirma que a obra deva falar a verdade; Hegel, que ela
deva ter conteúdo; Riemann, que ela deva ser uma homenagem à verdade; e Pahissa, que é o
artista inspirado que atribui valor à sua obra. Neste quesito os autores concordam na
concepção de que a obra musical deva ter valor, o qual provém da inspiração do artista.
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No que diz respeito à forma da obra musical: Platão entende que esta deva sempre
manifestar o belo, pois é um esforço em simular a perfeição divina; Hegel, que ela deva
manifestar sentimentos; Riemann, que ela deva manifestar consciência e emoções; e Pahissa,
que ela deva manifestar a inspiração do artista. O ponto de conjugação destas diferentes
afirmações é a ideia comum de que a forma da obra seja apenas a exteriorização da intimidade
do artista.
Sobre a técnica musical: Platão sustenta que, nem ela, nem a habilidade, sejam o
essencial do fazer artístico, já que o fundamento é a inspiração; Hegel considera que a técnica
não seja de interesse humano; Riemann, que esta não deva se sobrepor à imaginação criadora,
nem à inspiração; e Pahissa entende que a técnica não seja o essencial, pois essa se dá a partir
da inspiração. Aqui, a relação baseia-se no entendimento de que as técnicas ou habilidades
musicais não sejam o fundamento artístico. O interesse destes pensadores volta-se muito mais
à capacidade da música em “falar” algo relevante que dê sentido à existência humana, do que
à discussão das técnicas artísticas, pois ambos entendem as técnicas como simples
ferramentas à disposição da inspiração do artista.
Quanto ao conceito música: Platão infere que esta deva promover o equilíbrio e a
organização da alma e, também, que ela é a mais alta forma de educação; Hegel entende que a
música deva ser capaz de movimentar, comover e de libertar a alma; Riemann, que a música
deva enobrecer a alma; e Pahissa, que a música deva provocar o regozijo da alma e
aperfeiçoar o espírito. Neste critério as quatro opiniões podem ser facilmente conjugadas pela
atitude comum de ambos os pensadores, pois todos entendem a música como portadora de
uma função muito especial: de aprimorar a alma.
Sobre o conceito o artista: Platão vê no artista um sujeito inspirado; Hegel vê um
sujeito capaz de expressar sentimentos; Riemann sustenta que o artista deva ser um sujeito
ético; e, por fim, Pahissa o vê como um sujeito inspirado. Quanto a este conceito, percebe-se
uma preocupação dos pensadores com a identidade do artista. Nele, ambos idealizam o artista
como um sujeito de grande sensibilidade que, devido à sua dignidade e capacidade de
inspiração, é capaz de representar valores.
Com base nestes dados que conformam o modelo estético-musical platônico, foi
possível partir para a investigação biográfica de Gustav Mahler. Tendo como fundamento as
biografias de Adorno, Arteaga e Walter, onde ambos os autores reúnem importantes
informações acerca da vida e obra de Mahler, se inquiriu sobre o tratamento que o compositor
dá aos mesmos conceitos estético-musicais do modelo platônico: religiosidade, sentido ético,
a forma, a técnica, a música e o artista. A partir do cruzamento entre o modelo platônico
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desta pesquisa como o pensamento de Mahler, chegou-se aos resultados finais da presente
pesquisa.
Segundo os dados apresentados no capítulo VII, pode-se afirmar que Mahler tenha
sido um dos compositores de maior ousadia e originalidade da história da música. Contudo, as
suas obras não representam apenas estes dois atributos, pois vão muito mais além. Percebeu-
se que este compositor fundamentou a sua música no seu próprio drama de vida, quer dizer: a
suas obras são as reflexões sonoras da intimidade de um ser humano introspectivo e sensível à
vida. Mahler transformou a sua vida em música e a sua música em vida. Este compositor deu
voz às eternas questões filosóficas: o que é a vida? quem sou? de onde vim? para onde vou?
etc. A partir das quais teve a ousadia de inquirir sobre o seu papel frente à si mesmo e à vida,
transformando esses seus anseios em música.
Neste sentido vislumbra-se uma ampla semelhança entre este compositor e o conceito
estético de Platão referente à religiosidade. O filósofo argumenta que o a artista deva se
relacionar com as Musas através da inspiração, pois somente assim ele pode “falar a verdade”.
De maneira similar, as revelações dos biógrafos de Mahler indicam que ele era um compositor
inspirado, que mergulhou no seu universo interior em busca das grandes verdades da vida e
do homem, para revelá-las ao mundo na forma de sons.
Viu-se que, assim como Platão indica que a obra deva falar a verdade, as concepções
de Mahler que articulam sobre o mesmo sentido ético não lhe permitiam, de forma alguma,
compor algo que não fosse experimentado e sentido: que não fosse a mais pura verdade.
O conceito forma, também, revela similitude entre as ideologias estéticas de Platão e
as de Mahler. Ao passo em que Platão enfatiza que a obra deva manifestar o belo, Mahler luta
contra as convenções artísticas da época e contra os “padrões” que limitam a arte musical à
superficialidade da forma. O compositor rompe com essas tiranias que subjugam a arte para
poder criar livremente sob um único critério: a inspiração. Mahler põe cada coisa em seu
devido lugar e obriga à forma a dar sentido à inspiração, ou seja: ao conteúdo que lhe
antecede. É justamente por esse sentido que o compositor dá a sua música, que o seu
pensamento pode ser comparado ao do filósofo que clama pelo belo, pois Platão entende a
capacidade da música em estar em concordância com o mundo dos espíritos, o qual é
alcançado pela inspiração dos artistas.
O mesmo ocorre com o conceito técnica, o qual Platão insiste não ser o essencial do
fazer musical, pois para ele o fundamento é a inspiração. De um modo muito semelhante, o
compositor admite que a essência do seu fazer musical seja a inspiração, pois esta obedece às
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próprias necessidades íntimas e espirituais suas. E estes são, para Mahler, os elementos que
justificam o uso de tal ou qual técnica compositiva.
No conceito música, evidenciaram-se em Mahler elementos que justificam semelhança
com as ideias de Platão. Enquanto que o filósofo admite que a música sirva para o
aprimoramento da alma, Mahler dá significados espirituais e humanos à sua música na
tentativa de chamar à atenção do ouvinte para a essência da vida e de si mesmo – sua alma.
Por último, quanto ao conceito artista, há entre o filósofo e o compositor, fortes
evidências de analogia conceitual. Ao mesmo tempo em que Platão enfatiza que, sobretudo, o
artista deva ser um sujeito inspirado, Mahler se destaca pelo seu compromisso de “falar
apenas a verdade” através da sua música. O compositor não se vê como um sujeito capaz de
inventar razões que justifiquem as suas obras, pois acredita firmemente que elas devam nascer
de uma necessidade íntima, forte o bastante para lhe provocar a inspiração criadora.
De todas estas relações apontadas evidencio, sobretudo, o caráter educativo e
espiritual da música de Gustav Mahler, pois, analisada à luz da consciência estética de Platão,
ela é capaz de promover a ordem e o equilíbrio da psique (alma) do ouvinte. Como também, o
que de forma alguma deve ser deixado de lado, o fato de que a música de Mahler, segundo os
seus biógrafos, reflete os valores mais íntimos da vida de um homem engajado em
compreender o seu papel frente ao mundo e a si mesmo.
Portanto, diante de todos estes fatos, concluo o presente trabalho com a satisfação de
se haver encontrado evidências de que as concepções artísticas de Mahler são a concretização
do pensamento estético-musical de Platão, de acordo com o modelo construído nesta
pesquisa, o qual estabeleceu critérios específicos da estética da música com base no
pensamento platônico, sob a luz de estetas contemporâneos e a cientificidade com que
trataram essa ramificação da filosofia – estética da música. As proporções às quais as
considerações deste trabalho podem chegar dependem, exclusivamente, das futuras pesquisas
e também de suas abrangências e enfoques.
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