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Prova de Aptidão Artística

Francisco João de Soares Faria

MÚSICA E EMOÇÃO
Como pode "mero som" organizado provocar emoções?

Orientador:
Prof.ª Isabel Ferreira

2022/2023
MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

Francisco Faria | Escola de música da Póvoa de Varzim 2


MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

1 ÍNDICE
1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 5

2 PESQUISA TEÓRICA .......................................................................................... 7

2.1 Abordagem conceptual .................................................................................. 7

2.2 Perspetivas multidisciplinares ........................................................................ 8

2.3 O papel do compositor ................................................................................... 9

2.4 O papel do intérprete .................................................................................... 11

3 PESQUISA EMPÍRICA....................................................................................... 12

3.1 Análise dos questionários ............................................................................ 14

3.1.1 Prelude, 5 Bagatelas - Gerald Finzi ......................................................... 15

3.1.2 Fantasia para clarinete e piano – Carl Nielsen ......................................... 19

3.1.3 Sonatina para clarinete e piano – Malcolm Arnold .................................. 23

3.1.4 Oblivion – Astor Piazzolla, arr. Dmitryi Varelas ..................................... 27

3.1.5 Blues, Um americano em Paris – George Gershwin ................................ 30

3.2 Considerações finais .................................................................................... 34

3.2.1 Perceção de uma mensagem emocional nas obras ................................... 34

3.2.2 Perceções racionais ou sentimentos genuínos.......................................... 34

3.2.3 Emoções básicas e pulsação..................................................................... 35

3.2.4 Ideias específicas e complexidade ........................................................... 35

3.2.5 Reações físicas e alegria .......................................................................... 35

3.2.6 Associações e memórias .......................................................................... 36

3.2.7 Influência da idade ................................................................................... 36

3.2.8 Influência da formação musical ............................................................... 37

4 CONCLUSÕES ................................................................................................... 39

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 40

ANEXOS ................................................................................................................... 42

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1. INTRODUÇÃO

Até ao momento, não foi encontrada uma única civilização na qual a música não tivesse
um papel a representar. As pinturas paleolíticas e flautas de osso, sobreviventes nas cavernas,
são testemunhas de que a arte musical é inerente à condição humana. Entende-se a música
como sendo uma linguagem que comunica algum tipo de informação emocional, no entanto, o
assunto é mais ambíguo quando tentamos perceber de que forma o faz. (STORR, 1992) De
acordo com o estudo de Charles Darwin (1872), aprendemos, ao longo da vida, como diferentes
cenários soam – do perigo ao conforto, existem pistas acústicas que levam a nossa mente a
fazer associações quase imediatas. Torna-se, assim, particularmente relevante compreender
esta relação íntima entre a música e a emoção de forma a melhor definir o conceito de “música”
e aquilo que faz com que esta seja considerada arte.
Esta é uma questão que tem sido respondida através de perspetivas multidisciplinares
que, em conjunto, foram construindo aquele que é o nosso conhecimento atual sobre o efeito
do som na nossa mente. Nomeadamente na psicologia onde se tenta compreender a função
particular de cada elemento de uma obra; Na filosofia, que questiona se as diferentes obras
musicais têm qualidades emocionais inerentes a si ou se a reação que provoca é puramente
subjetiva e culturalmente construída; E até na biologia, como é o caso de Darwin referido
previamente, que procura entender, de um ponto de vista evolucionário, de que forma esta
surgiu no auxílio à sobrevivência.
Com este projeto pretende-se ter uma melhor compreensão dos fatores que motivam o
tipo de reações que sentimos quando escutamos música respondendo à questão investigativa
“Como pode mero som organizado provocar emoções?”. Desta forma, será estudado o papel
dos três principais intervenientes numa obra musical: os compositores, e de que forma usaram,
ao longo da história, o entendimento da emoção na sua escrita; o intérprete, e quanto do que o
compositor pretende que uma obra transmita, cai na responsabilidade de quem a executa; e o
ouvinte, tanto de um modo geral, percebendo o que é intrínseco à compreensão da música pelo
Homem, como de modo particular, procurando perceber que fatores individuais podem
influenciar a experiência musical de pessoa para pessoa.

“Do coração – que vá de novo ao coração” – L. V. Beethoven 1

1
Escrito como dedicatória na cópia da Missa Solemnis presenteada a Rodolfo da Áustria.

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De forma a atingir estes objetivos escolheram-se cinco obras para clarinete e


acompanhamento, com características e de épocas diferentes, sobre as quais foi feito um
questionário destinado a pessoas de diferentes idades e nível musical com o intuito de averiguar
as emoções, associações e reações no geral provocadas por cada excerto.

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2 PESQUISA TEÓRICA

2.1 Abordagem conceptual

As composições que constituem a tradição da música erudita no mundo ocidental têm


várias e diferenciadas funções. Entre estas encontra-se, indubitavelmente, a expressão ou
comunicação emocional, fazendo com que a música seja muitas vezes considerada a
“linguagem das emoções” (COOKE, 1959). Isto significa, essencialmente, que quando
aficionados da música erudita assistem a um concerto ou escolhem uma obra para escutar nos
seus aparelhos eletrónicos, geralmente esperam ser “movidos” de alguma forma. Ademais, os
ouvintes acreditam que as suas reações emocionais são aquelas que o compositor tinha intenção
de transmitir – que a obra é um meio para comunicação emocional. (IDEM, 1959)
O que torna estas expectativas interessantes é o facto de a música ser uma forma de
expressão estética bastante abstrata. De facto, as salas de concerto são tradicionalmente
dominadas por formas puramente instrumentais, nas quais nenhuma palavra ou programa nos
dá pistas em relação ao que a peça retrata. Além disso, olhar para uma partitura de uma
composição não a torna menos abstrata, pelo contrário, a notação musical é bastante mais
precisa do que qualquer outra forma artística. Pelo menos superficialmente, uma partitura tem
mais em comum com uma prova matemática do que com uma pintura, poema ou escultura.
(SIMONTON, 2011)

“A música é a aritmética do som como a ótica é a geometria da luz” – C. Debussy 2

Estas observações levam-nos à pergunta, e questão investigativa deste trabalho –


“Como pode “mero” som organizado provocar emoções?”. Existem várias formas de abordar
este problema. Uma opção é fazendo uma análise musicológica detalhada, semelhante ao que
fez Leonard Meyer (1956) no seu célebre livro Emotion and meaning in music. Outra
possibilidade é a de realizar uma experiência empírica na qual as respostas emocionais dos
ouvintes são aferidas diretamente, como temos o exemplo do estudo psicofisiológico de
Krumhansl (1997), onde estudou a reação de estudantes universitários a obras de música
erudita. Apesar de representarem as duas formas mais comuns de abordar a relação da música

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Citado em Greatness: Who Makes History and Why, de Dean Keith Simonton

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com a emoção, existem inúmeras alternativas para o fazer, no entanto, adotar-se-á neste
trabalho um conjugar de ambos os métodos de forma a responder da forma mais completa à
questão investigativa proposta.

2.2 Perspetivas multidisciplinares

A música normalmente carrega associações poderosas, sejam estas circunscritas ao


indivíduo ou amplamente reconhecidas culturalmente. Não precisamos de entender uma obra
musical para reagirmos emocionalmente à mesma. Esta ideia gerou grande interesse em várias
disciplinas do conhecimento. (DAVIES, 1994)
Na psicologia, por exemplo, o estudo passa pela explicação do comportamento e dos
processos da mente humana de um ponto de vista individual. As emoções básicas são
atualmente o foco principal dos estudos psicológicos e referem-se a emoções como felicidade,
tristeza, raiva e medo. Consideramo-las reações inatas, semelhantes a reflexos, que causam um
padrão comportamental e fisiológico distinto e reconhecível, sendo que a maioria dos
especialistas acredita que a música as possa induzir (KRUMHANSL, 1997). Assim sendo, se
a comunicação musical das emoções básicas está biologicamente preparada, esta deveria
provocar as mesmas sensações independentemente do contexto sociocultural. No entanto, a
linguagem musical é vasta - consideramos frequentemente que uma determinada peça nos
provoca sensações profundas, nomeadamente remetendo-nos a memórias - sendo precisamente
nestas sensações que surge o interesse de outras áreas. (PERETZ, 2011)
Já a sociologia, tem como principal debate a forma como a música pode ser usada para
construir identidade pessoal e para criar uma variedade de estados emocionais. Este tema
aborda a organização estética de cenas e cenários, e a distribuição de emoções convencionais
dentro de ambientes sociais particulares. O tema centra-se em como os indivíduos emergem ou
se tornam agentes sociais com estilos e posturas emocionais específicas. A sociologia responde
a esta questão dizendo-nos que as emoções provocadas pela música são “socialmente
construídas”. (DENORA, 2011)
No cenário filosófico, por sua vez, a tentativa de compreender os efeitos da música
assenta, fundamentalmente, em dois pontos. O primeiro, reflete sobre a razão da nossa reação
a uma obra musical ter tendência a espelhar o carácter da mesma, ainda que o ouvinte não
receba os gatilhos emocionais tradicionais – quando nos entristecemos pelo carácter

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melancólico de uma peça, não acreditamos, por exemplo, que esta sofre. Já o segundo questiona
o porquê de regressarmos recorrentemente a uma música que consideramos que nos deixa
tristes. Algo que tem vindo a ser justificado pela falta de entendimento dos efeitos da música
em nós próprios. (LEVINSON, 1997)

2.3 O papel do compositor

Como já mencionado, existem três intervenientes imprescindíveis numa obra musical.


O primeiro trata-se do compositor, cujo papel na construção da mensagem musical é estudado
compreendendo que fatores na estrutura da obra contribuem para que as emoções que esta
transmite sejam as verificadas. Esses fatores são geralmente representados por designações da
notação musical convencional (marcações de andamento, dinâmicas, tom, intervalos, modo,
melodia, ritmo, harmonia). Os compositores que escrevem com intenção de transmitir uma
mensagem emocional, usam estas noções de modo a fazê-lo da melhor forma possível.
(GABRIELSSON & LINDSTRÖM, 2011)

“Um compositor conhece as formas das emoções e consegue manuseá-las, ‘compô-las’.”


– Susanne K. Langer (1941)

Modo
Vários estudos comprovam aquela que é a noção que temos de que acordes maiores têm
uma conotação positiva e acordes menores, negativa (HEINLEIN, 1928). Assim, os
compositores usam, geralmente, modos maiores e menores para provocar esse tipo de
inclinação. No entanto, um modo maior não é necessariamente condição para entender uma
obra como sendo positiva, da mesma forma que uma peça menor com um andamento rápido
pode, muito facilmente, transmitir alegria. Badinerie, da segunda Suíte orquestral de J. S. Bach
é um ótimo exemplo disto – encontra-se na tonalidade de Si menor mas, tendo em conta o
andamento, é dificilmente associada a emoções negativas.

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Figura 1 - Badinerie, Suite orquestral II, J. S. Bach - Compassos 1-9 da partitura de flauta

Ritmo e tempo
O tempo de uma obra é geralmente considerado o aspeto mais importante na expressão
emocional da música – principalmente o tempo subjetivo, que se refere não só à pulsação como
também à densidade de notas e outros fatores rítmicos. Andamentos mais rápidos costumam
provocar uma sensação de maior alegria do que os lentos, no entanto, esta perceção não é
absoluta, dependendo bastante do contexto, isto é, outros elementos estruturais.
(GABRIELSSON & LINDSTRÖM, 2011)

Propriedades melódicas
Falar das diferentes formas como uma melodia pode influenciar a perceção emocional
de uma obra, seria suficiente para dedicar todo o projeto a analisá-las. Um dos aspetos mais
notórios é o da noção de linhas melódicas ascendentes e descendentes – uma linha melódica
descendente provoca uma ideia de introspeção, quer positiva ou negativa, sendo que quando
esta é ascendente provoca a sensação oposta. (GABRIEL, 1978)

Intensidade
Música mais forte está associada a expressões de intensidade, excitação, tensão, raiva
e alegria; múscia mais piano com paz, descontração, tristeza e receio (GABRIELSSON &
LINDSTRÖM, 2011).

Timbre
A forma como cada timbre provoca diferentes sensações está, em grande parte
relacionada aos harmónicos – som com muitos, e mais presentes, harmónicos, provocam uma
sensação de maior agressividade, de um modo muito abrangente, relativamente a timbres com
menos harmónicos (IDEM, 2011).

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Se estas expressões refletem, ou não, os próprios sentimentos do compositor,


provavelmente dependerá dos diferentes compositores e situações. Tchaikovsky, normalmente
considerado um compositor extremamente emocional, tomou uma opinião clara neste assunto:
"Aqueles que imaginam que um artista criativo pode expressar os seus sentimentos no
momento em que é movido, cometem o maior dos erros” (citado em Fisk, 1997, p. 157).

2.4 O papel do intérprete

A primeira questão a ser colocada sobre a influência do intérprete na comunicação


emocional de uma obra é, precisamente, se o intérprete pode “falar” ao ouvinte, de todo. Num
estudo pioneiro, Kotlyar e Morozov (1976), descobriram que quando se requisitava a cantores
de ópera que cantassem a mesmo melodia, procurando um carácter diferente em cada versão,
os ouvintes percebiam a ideia pertendida. Concluiu-se, portanto, que os intérpretes podiam
alterar significativamente o carácter das obras, mesmo sem fugir ao que se encontrava escrito
pelo compositor. (GABRIELSSON & LINDSTRÖM, 2011)
A partir daí, vários estudos foram feitos com o intuito de explorar o intérprete como
fator determinante na mensagem emocional da música, que vieram confirmar e aprofundar a
noção de imprescindibilidade deste. Hoje, sabemos que esta capacidade do músico intérprete
provocar diferentes emoções dentro da mesma obra, se deve muito às notas que este enfatiza –
se uma nota específica na estrutura melódica é considerada como sendo especialmente feliz, o
intérprete pode enfatizá-la se pretender salientar esta ideia ou escondê-la um pouco para
preservar uma eventual ideia de tristeza. Para além deste aspeto, alguma irregularidade no
tempo ou nuances de dinâmicas e articulações podem fazer com que a mensagem emocional
transmitida por uma obra se altere consideravelmente se o intérprete entender fazê-lo. (IDEM,
2011)

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3 PESQUISA EMPÍRICA

Tendo como base metodológica um inquérito realizado a uma amostra de 296 pessoas,
a análise dos dados, naturalmente, não tem como objetivo fazer descobertas inovadoras, nem
tão pouco investigar áreas menos estudadas no assunto. Esta secção cumpre a função de “papel
do ouvinte”, no seguimento lógico dos dois subcapítulos anteriores (papel do compositor e
papel do intérprete)
Utilizou-se esta pesquisa tendo como base cinco obras para clarinete, de modo a
compreender melhor de que forma cada uma delas “fala” ao ouvinte, com a intenção de as
analisar teoricamente, a posteriori, e compreender melhor o que provocou os resultados obtidos.
Na escolha das obras para objeto de inquérito, procurou-se obter variedade não só no
carácter da obra, como também das características teóricas. O objetivo passou, em grande parte,
por verificar se existia coerência em relação ao que se poderia deduzir com uma simples análise
teórica e com os resultados efetivos do questionário. Para manter esta parte do projeto objetiva,
escolheram-se quatro aspetos fundamentais no entendimento das reações que cada peça
provoca: o carácter da mensagem da obra de um ponto de vista racional; as respostas
emocionais genuínas dos ouvintes; tipos de reação física que possam ter sido provocadas; e
associações figurativas ou de memória que possam ter ocorrido ao escutar o excerto. Estes
pontos fora aferidos através das seguintes perguntas:

- Sentiu que o excerto tinha uma mensagem emocional clara?


Com esta pergunta, os participantes deixam imediatamente claro se sentiram que a
música pretendia “dizer” algo, ou não. Isto não garante que o ouvinte tenha algum tipo de
reação – podemos sentir um agrado estético mesmo que não consideremos ser claro aquilo que
a música pretende transmitir, aliás, esta não compreensão pode levar a que o ouvinte se sinta
insatisfeito, uma reação igualmente válida.

- Falando de forma abrangente, que emoção é suscitada pelo excerto?


A esta pergunta, os participantes tinham a opção de escolher entre Alegria, Tristeza,
Raiva, Excitação, Tranquilidade ou Nada. Não se espera que estas opções de resposta sejam
suficientes para relatar o que a obra transmite a determinada pessoa. No entanto, ao falar em
termos mais abrangentes, torna-se mais fácil avaliar o quão objetiva e unânime é a mensagem
emocional da obra. Um ouvinte pode caracterizar o que ouviu como sendo lúdico, enquanto
outro prefere o termo otimismo, mas, no fundo, acabam ambos por enquadrar a sua perceção
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na alegria. Ao dar as opções excitação e tranquilidade, salvaguarda-se a precisão do inquérito


- alguém que escute uma peça energética estará mais inclinado para caracterizá-la dentro da
alegria caso esta esteja num modo maior, ou na raiva caso esteja num modo menor, mesmo que
não sintam que esse sentimento esteja a ser transmitido – mas a opção Excitação dá a
possibilidade de ser mais preciso na resposta.

- O excerto suscita que ideias específicas?


É nesta pergunta que se tenta aferir especificamente como os participantes caracterizam
a obra. O objetivo foi precisamente o de dar maior possibilidades de resposta, precisamente
para obter variedade nas respostas. Ter 90% dos participantes a considerar triste um andamento
lento, em modo menor, com articulações suaves e valores longos é um resultado, de certo modo,
esperado. Pelo contrário, se 70% mencionar solidão, já se torna bastante pertinente analisar o
motivo pelo qual isto acontece, exatamente por se tratar de uma perceção mais específica.

- Como é a que a música o fez sentir fisicamente?


Quando se questiona acerca de sensações físicas, refere-se essencialmente a arrepios na
pele, aceleração cardíaca, descontração, calafrios ou qualquer outra reação física ao escutar a
música apresentada. Esta é a primeira questão do inquérito onde se questiona o ouvinte de
reações reais do seu corpo e não simples interpretações racionais da obra.

- Acha que a sua resposta emocional foi um sentimento genuíno ou uma perceção
racional do que escutou?
Esta pergunta é, provavelmente, a de maior relevância de todo o questionário. A
interpretação de um relato de uma pessoa em relação à carga emocional de uma obra, pode
tomar dois sentidos completamente diferentes caso o inquirido afirme ter realmente sentido as
emoções, ou apenas tê-las reconhecido na obra. A verdade é que grande parte das pessoas tem
a sensação de que as suas emoções ao escutar uma obra espelham o carácter da mesma, no
entanto, isto levantou grandes debates na filosofia da música, nomeadamente a questão já
referida neste trabalho de “como é que podemos considerar que música de carácter triste
efetivamente nos entristece quando recorrentemente ouvimo-las voluntariamente e gostamos
de o fazer?”.

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- Enquanto escutava a música, a sua mente acedeu a alguma memória ou criou


algum tipo de associação?
Por fim, esta pergunta analisa a capacidade de cada uma das obras provocar sensações
ainda mais fortes como acesso a memórias ou associações figurativas. Afinal, uma memória
está por si associada a emoções como as questionadas anteriormente, e também a sensações
físicas como a descontração, ou até mesmo sensações térmicas. O mesmo acontece com as
associações, até porque estas têm uma relação íntima com a experiência empírica. Para além
desta questão, deu-se a possibilidade dos participantes descreverem uma eventual associação
que fizessem, com o propósito de identificar respostas recorrentes. Independentemente da
existência destes padrões, é um ótimo ponto de partida para compreender o que diferencia uma
obra que provoca unanimidade nas associações e outra que esteja mais sujeita à interpretação
individual.
Estas questões foram repetidas para todos os excertos, sendo que no último, pede-se
especificamente que o ouvinte tente associar o excerto a algo. Para além das questões
relacionadas às peças, perguntou-se também a idade e o nível de ensino musical dos
participantes de forma a compreender se estes fatores são relevantes na forma como uma pessoa
reage à música.

3.1 Análise dos questionários

Como já foi referido, o objeto do questionário realizado foram cinco obras para
clarinete a acompanhamento das quais apresentou-se apenas o início de forma a preservar a
objetividade das respostas obtidas.
Assim sendo, são ainda mais evidentes as diferenças entre os excertos: o primeiro
andamento das Cinco Bagatelas de Gerald Finzi, Prelude, onde a composição assenta em
melodias simples com articulação leve, predominantemente em dó maior mas com polarizações
a diferentes tonalidades, energizando ainda mais um por si só enérgico Allegro Deciso; a
Fantasia para clarinete e piano de Carl Nielsen, um Andante Cantabile introspetivo, onde a
melodia tem valores mais longos e articulação suave, com auxílio da tonalidade de sol menor
e mudanças de dinâmicas extremas; a Sonatina para clarinete e piano de Malcolm Arnold onde
os dois instrumentos têm um diálogo algo agressivo nas dinâmicas, ritmo, melodia, articulação
e a própria harmonia, por ser bastante dissonante; um arranjo para clarinete e acordeão da obra

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Oblivion de Astor Piazzolla, caracterizado pelo uso de harmonia rica em torno de dó menor e
melodia esticada nos valores rítmicos; e uma versão para clarinete acompanhado por acordeão,
guitarra, contrabaixo e percussão do arranjo de Michele Mangani da obra Blues – do filme Um
americano em Paris – de George Gershwindo, obra num Tempo di Blues com características
jazzísticas em torno da tonalidade de mi bemol maior com melodias cativantes e memoráveis.

3.1.1 Prelude, 5 Bagatelas - Gerald Finzi

3.1.1.1 Emoções Básicas

Este excerto corresponde ao primeiro andamento da obra e foi bastante consensual no


que toca à emoção básica que suscita – 74% dos participantes consideraram que esta transmitia
alegria. No entanto, havia a opção de escolher mais do que uma resposta e neste caso, essa
liberdade fez com que se obtivesse um resultado particularmente interessante. Isto, porque
41,9% dos participantes consideraram que o excerto era excitante, enquanto 18,6% relatou o
contrário, descrevendo-o como tranquilizante. Apesar de existir uma diferença considerável de
13 pontos percentuais, 55 pessoas não só discordaram, como responderam no sentido contrário
de 124 outros participantes. O motivo mais provável de isto acontecer, vai de encontro ao que
diz Kivy (1989) em relação a confundirmos, por vezes, o carácter de uma obra com aquilo que
esta nos faz sentir, e vice-versa. Muitas obras podem ter um carácter efusivo mas, como nos
geram agrado num nível estético, deixam-nos uma sensação de satisfação ou descontração. O
mesmo pode ter acontecido em relação a esta peça, principalmente por ser a primeira pergunta
do questionário, no entanto, não podemos deixar de parte a possibilidade de este grupo de
participantes ter efetivamente sentido que a obra tinha um carácter de tranquilidade sem terem
sido influenciados pela sua reação pessoal.

Tabela 1 – Prelude, Finzi - Emoções básicas

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Apesar destas considerações, a obra foi, essencialmente, descrita como sendo alegre, e
uma peça que transmite alegria geralmente tem as seguintes características:

Tonalidade
As composições em tonalidades maiores comunicam uma sensação de brilhantismo e
otimismo. Como verificado nos estudos de Heinlein (1928)3 e Kastner com Crowder (1990)4,
tonalidades, acordes e escalas maiores estão normalmente associadas a emoções positivas e
edificantes.

Figura 2 – Prelude, Finzi - Compassos 4-6

Imediatamente com a entrada do clarinete podemos verificar que estas características


se verificam no excerto. A melodia está fortemente baseada na escala de dó maior (de efeito),
aliás, a melodia começa exatamente dessa forma, com a escala. O piano reforça ainda mais a
força gravitacional em torno da tonalidade, com os acordes de dó maior (I), ré menor (ii), fá
maior (IV) e sol maior (V).

Andamento
Um estudo demonstrou que o andamento é um fator ainda mais importante na perceção
emocional de uma peça do que o modo (DALLA BELLA, PERETZ, & GOSELIN, 2001).

3
Heinlein investigou a reação de ouvintes a acordes maiores e menores com diferentes
intensidades e tons.
4
Kastner e Crowder apresentaram 12 melodias em tonalidades maiores e menores a crianças
do ensino pré-escolar e primário e pediram que estes associassem o que ouviram a uma de quatro
expressões faciais - feliz, satisfeita, triste, zangada

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Andamentos mais rápidos e ritmos vivazes provocam sensações de energia e excitação,


enaltecendo uma possível perceção de felicidade (MOTTE-HABER, 1968). Prelude, é um
Allegro Deciso, indo, portanto, de encontro com o conhecimento que temos sobre andamento.

Contornos melódicos
Obras que transmitam felicidade, frequentemente possuem melodias cativantes e
memoráveis com um sentido de otimismo e flutuabilidade. Os compositores criam estas
características de várias formas, nomeadamente, escrevendo melodias com saltos, movimentos
ascendentes ou com um fio condutor que nos leve gradualmente ao ponto culminante da obra
em vez de este surgir de forma repentina (GABRIEL, 1978).

Figura 3 – Prelude, Finzi - Compassos 10-15

Talvez por alguma coincidência, este excerto é o exemplo perfeito daquilo que Clive
Gabriel (1978) considera ser comum numa peça alegre. Finzi escreveu melodias repletas de
movimento ascendentes com alguns saltos que fornecem leveza à música e repete ideias
melódicas com pequenas nuances, criando alguma tensão que faz com que os pontos
culminantes soem ainda mais positivos.

3.1.1.2 Ideias específicas


As respostas mais obtidas relativamente às ideias específicas suscitadas pelo excerto
foram, naturalmente, ramificações da alegria. Curiosamente, as duas respostas mais comuns –
otimismo (61,5%) e energia (60,8%) – não estão particularmente próximas em termos de
significado, mas aproximam-se bastante das duas respostas mais escolhidas seguintes – sonho
(28,4%) e lúdico (32,4%).

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Tabela 2 – Prelude, Finzi - Ideias específicas

3.1.1.3 Sensações físicas


Talvez o aspeto mais curioso em relação aos relatos de reações físicas seja que 52% dos
ouvintes se sentiram descontraídos ao escutar a peça. Isto reforça ainda mais a possibilidade de
as respostas sobre o carácter da obra estarem influenciadas pelas reações dos participantes. E
não é como se as pessoas que responderam que a obra tinha um carácter de excitação não
coincidam com as que se sentiram descontraídas, aliás, quase metade (44,4%) dos participantes
deu ambas as respostas. De salientar que apenas 10% afirmou não receber nenhum tipo de
reação física.

3.1.1.4 Memórias ou associações


A esta pergunta, 58,8% dos participantes afirmou ter acedido a uma memória ou feito
algum tipo de associação enquanto escutavam a música. No entanto, ao analisar as associações
dos participantes que escolheram partilhá-la, verifica-se que 25% das respostas mencionaram
a infância e 34,4% mencionaram elementos da natureza como florestas, campos ou jardins. Ao
refletir sobre estes valores, é impossível não questionar o porquê de estas associações serem
tão comuns. “A corrida descontraída de uma criança aos saltinhos” e “Uma altura em que estava
à descoberta num bosque em Caminha por flores e a árvore mais bonita” – uma associação
figurativa e uma memória – são exemplos de respostas obtidas. O segundo exemplo representa
muito bem o tipo de resposta de quem fez associações à natureza – momentos em cenários
bucólicos que, apesar de não mencionarem especificamente a infância, mencionam aspetos
como a abstração, despreocupação e genuinidade, característicos dessa fase da vida. Este acaba
por ser o maior ponto de interseção em grande parte das respostas.

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3.1.2 Fantasia para clarinete e piano – Carl Nielsen

3.1.2.1 Emoções básicas


Neste segundo excerto obteve-se, novamente, uma grande uniformidade de respostas
no que toca às emoções básicas que este comunica – 72% dos participantes consideraram que
este transmitia tristeza. Ao contrário do que aconteceu com a primeira obra, apenas uma outra
emoção foi evocada em número significativo – descontração (36,5%). Também de referir que
9 pessoas entenderam o termo “tristeza” como sendo limitador e como tinham a possibilidade
de acrescentar uma opção, escreveram melancolia, uma palavra menos forte.

Tabela 3 – Fantasia, Nielsen – Emoções básicas

Entendemos, assim, que esta obra transmitiu uma mensagem de tristeza de um modo
geral, mas, mais inclinada para a melancolia.

Tonalidade
Composições em tonalidades menores comunicam uma sensação de tristeza, saudade e
introspeção que podem contribuir para um sentimento de melancolia (KASTNER &
CROWDER, 1990).

Figura 4 – Fantasia, Nielsen - Compasso 9-12

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MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

A Fantasia de Nielsen está marcadamente na tonalidade de sol menor harmónico. No


início da intervenção do clarinete, o piano faz um acompanhamento baseado numa harmonia
vertical sobre os acordes de sol menor (i), ré maior (V) e dó menor (iv). A tonalidade evidencia-
se ainda mais com a linha melódica do clarinete com uma frase constituída por um primeiro
fraseado com condução para a tónica, e um outro em resposta com a alteração na nota ré a
funcionar como sensível da dominante.

Andamento
Andamentos lentos têm tendência a provocar um sentimento de introspeção que pode
facilmente ser levado para emoções como a paz e tranquilidade, no entanto, quando associado
a uma tonalidade menor, a tendência é a obra em questão evocar sensações mais próximas da
tristeza (MOTTE-HABER, 1968). O andamento da Fantasia de Nielsen é um Andante
Cantabile, o que não é particularmente lento mas, pelo carácter da obra, uma grande parte dos
intérpretes opta mesmo por aproximar-se mais de um Adagio, o que foi o caso na versão
escolhida para o questionário.

Melodia e harmonia
Peças que evocam melancolia contêm, frequentemente, linhas melódicas com
movimentos descendentes, passagens modelantes ou cromatismos dentro da tonalidade. A
harmonia, por sua vez, cria tensão com sons dissonantes ou acordes não resolvidos, dando
profundidade emocional à música e um sentimento agridoce. Composições associadas à
melancolia tendem também a empregar dinâmicas mais suaves, criando uma sensação de
intimidade e vulnerabilidade. Passagens delicadas evocam um sentimento de introspeção e
sensibilidade (GABRIEL, 1978).

Figura 5 – Fantasia, Nielsen - Compasso 13-16

Francisco Faria | Escola de música da Póvoa de Varzim 20


MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

Este andamento possui, em grande parte, aquilo que se considera essencial para que

uma peça transmita uma mensagem de melancolia. Como podemos observar na imagem,

Nielsen usa, efetivamente, movimentos descendentes, cromatismos com função de sensível à

mediante e dominante, bem como algumas dissonâncias no piano e acordes não resolvidos

(cadência suspensiva). No entanto, nesta passagem específica, vemos um crescendo que

culmina numa repetição da nota ré por parte do clarinete e chegada em fortíssimo ao si bemol,

algo que não pode ser enquadrado na tendência de passagens delicadas e dinâmicas suaves das

obras com carácter de tristeza.

No entanto, este tipo de passagem é possivelmente o que provocou a distinção de vários

participantes entre tristeza e melancolia – o acorde de mi bemol maior (VI) em fortíssimo,

constitui um momento de descompressão e gera um sentimento que pode ser descrito como

“otimismo”, no entanto é um otimismo fútil, pois a peça rapidamente nos leva de volta para o

carácter melancólico inicial. Claro que é uma especulação, mas há uma forte possibilidade de

ser estes momentos de descompressão frequentes que levaram várias pessoas a acrescentar a

opção “melancolia” nas respostas ao invés de escolher a opção mais próxima.

3.1.2.2 Ideias específicas


Ao pedir uma ideia específica que esta obra comunique, dificilmente a tendência de
resposta seria mais clara do que o obtido. Novamente com a ausência da opção melancolia,
2,8% decidiu acrescentá-la – o que pode não parecer muito, mas essa perceção muda quando
temos em conta a grande quantidade de opções dadas. Apesar deste dado, o destaque foi a
“solidão”, resposta que foi escolhida por arrebatadores 65,8% dos participantes. “Dor” foi a
segunda ideia emocional mais relatada (41,2%), quase na totalidade por ouvintes que também
escolheram solidão.

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MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

Tabela 4 – Fantasia, Nielsen - Ideias específicas

3.1.2.3 Sensações físicas


Relativamente às sensações físicas provocadas por esta obra, 31% relatou uma reação
de descontração e 11,8% de arrepios na pele. No entanto, o maior destaque vai, novamente,
para o sentimento de melancolia, que apesar de não ser propriamente uma reação física, foi tão
presente nos ouvintes que 3% acrescentou essa opção.

3.1.2.4 Memórias ou associações


As associações ou memórias descritas como resposta para esta secção foram de
encontro com as ideias específicas suscitadas – 31,33% dos participantes que escolheram
responder a esta questão, fizeram uma associação que envolvesse, de certa forma, a solidão.
Curiosamente, talvez pela especificidade, é que 8,43% mencionou a chuva, mais
especificamente – e apenas não aplicável a um caso – o estar em casa nos dias de chuva. São
exemplos interessantes das respostas obtidas: ”A música transportou-me para momentos de
solidão, de tristeza e angústia... Talvez uma despedida dolorosa...” representando as
associações fortemente baseadas em memórias, “Velhice… uma senhora a fazer os seus
afazeres na solidão de sua casa” enquadrando-se mais às ligações com o real, ou “Um jovem
triste e solitário, passeando no jardim da cidade ao fim de tarde, olhando para as árvores e a
paisagem de outono” na ordem das associações quase cinematográficas.

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MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

3.1.3 Sonatina para clarinete e piano – Malcolm Arnold

3.1.3.1 Emoções básicas


Este excerto (primeiro andamento da obra) foi, notoriamente, aquele que gerou mais
concordância nos ouvintes no que toca a emoções básicas. Pode parecer contraditório, mas isto
deve-se bastante ao carácter ambíguo da obra. Muitas opiniões divergiram na distinção entre
alegria e raiva, precisamente pela menor facilidade de interpretar uma mensagem emocional,
no entanto, é inegável a energia e explosividade do andamento. Assim, 83,1% dos participantes
responderam que a obra tinha um carácter de excitação. A escrita de Malcolm Arnold, fez com
que o excerto onde, teoricamente, seria mais difícil o ouvinte relatar aquilo que sente, fosse a
que obtém uma maior unanimidade de resposta no que toca a emoções básicas.

Tabela 5 – Sonatina, Malcolm Arnold - Emoções básicas

Torna-se, dessa forma, pertinente, compreender que elementos o compositor usou na


sua obra para que esta tivesse um carácter tão marcado.

Tonalidade e harmonia
A tonalidade é algo que, numa peça tumultuosa como a que estamos a analisar, acaba
por não ser tão determinante, por conta de outros fatores que se sobrepõe. No entanto, existem
aspetos da composição musical que, não sendo essenciais para a transmissão de uma mensagem
de excitação, contribuem neste sentido. Uma harmonia forte e dissonante, podendo usar
acordes de agrupamento de tons ou mudanças repentinas do polo tonal, ajuda na produção de
tensão e intensidade numa obra que almeja ser explosiva (GABRIELSSON & LINDSTRÖM,
THE ROLE OF STRUCTURE IN THE MUSICAL EXPRESSION OF EMOTIONS, 2011).

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MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

Figura 6 – Sonatina, Malcolm Arnold - Compassos 1-3

Imediatamente, no início do andamento, podemos identificar alguns dos elementos


referidos. Trata-se de uma peça que se encontra na tonalidade de lá menor, algo que podemos
comprovar olhando para a linha melódica do clarinete. No entanto, se tivéssemos em conta o
piano, a tonalidade seria mais ambígua, sensação provocada pelos acordes de harmonia por
quartas. Esta técnica de harmonização foi bastante utilizada por Schoenberg e é, naturalmente,
percetivelmente dissonante e atonal. Com o auxílio da dinâmica, valores curtos e
imprevisibilidade dos momentos de intervenção, o piano cumpre um papel quase de percussão
que transmite ainda mais tensão e explosividade.

Andamento
Naturalmente, a excitação estará associada a música com andamentos rápidos. Esta
associação foi explicada em vários estudos da psicologia que demonstraram que o ser humano
adapta a sua frequência cardíaca ao andamento de uma peça que esteja a escutar. (JUSLIN,
LILJESTRÖM, VÄSTFJÄLL, & LUNDQVIST, 2011)
Malcolm Arnold idealizou este andamento num Allegro com brio, com indicação de
semínima igual a 138, o que não só é adequado ao carácter deste, como acrescenta à mensagem
de euforia.

3.1.3.2 Melodia
Uma melodia energética deve focar-se em vários aspetos: complexidade rítmica,
especialmente quando associada a acentos, cria um sentimento de urgência e força; passagens
virtuosísticas que, normalmente, são sinónimas de maior densidade de notas, logo, intensidade;
contraste extremo nas dinâmicas; linhas melódicas com grandes saltos, súbitas mudanças de

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MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

direção e contornos irregulares (IDEM, 2011). Todos estes aspetos podem ser constatados nas
três frases presentes na seguinte imagem, justificando, em grande parte, os resultados obtidos
no questionário.

Figura 7 – Sonatina, Malcolm Arnold - Compassos 22-33

3.1.3.3 Ideias específicas


Se no que toca a emoções básicas, este excerto foi o que gerou mais consenso, nas ideias
específicas aconteceu precisamente o contrário. De facto, é impossível negar a energia da obra
mas, para descrever o carácter emocional de uma peça musical, acaba por ser bastante vago.
Nove ideias específicas foram escolhidas por mais de 15% dos participantes, sendo que
nenhuma delas ultrapassou os 56,8% de “energia”, que como já foi referido, é algo vago, tal
como a segunda resposta mais obtida – tensão (34,8%). Só depois das duas respostas mais
selecionadas, é que entramos no campo das ideias verdadeiramente específicas, com mistério
(28%), lúdico (23,3%), surpresa (23%) e triunfo (20,9%). Não seria fácil encontrar três ideias
emocionais tão distantes umas das outras como “mistério”, “lúdico” e “triunfante”, o que
enfatiza ainda mais a noção de que não existem ideias óbvias neste andamento – existe sim,
música com altos níveis de energia cabendo a cada ouvinte individualmente relatar para onde
sentem que essa energia está direcionada.

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MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

Tabela 6 – Sonatina, Malcolm Arnold- Ideias específicas

3.1.3.4 Sensações físicas


Pelos motivos investigados em relação aos excertos anteriores, seria de esperar que o
andamento rápido e energético da obra fizesse com que a aceleração cardíaca fosse a reação
física mais relatada, o que se confirmou – 43,6% dos participantes relatou uma aceleração do
ritmo cardíaco. É particularmente interessante o dado dos 11,8% que se sentiram descontraídas
com a música, algo que tem como hipótese de resposta o agrado estético já abordado.

3.1.3.5 Memórias ou associações


Nos excertos anteriores, as associações descritas pelos participantes foram sempre de
encontro com aquilo que eram as ideias específicas mais identificadas na obra. Seria natural
que na Sonatina, não tendo atingido consenso nesse sentido, não se encontrasse nenhum
padrão. No entanto, foi surpreendente verificar que 15,71% de quem respondeu a esta questão
mencionou especificamente o termo perseguição. É ainda mais relevante tentar compreender a
origem desta associação pelo carácter ambíguo da obra, e podemos fazê-lo lendo algumas das
respostas: “Antigos episódios de Charlie Chaplin”; “Desenhos animados”; “Aparece com uma
nuvem de pó, um homem, que corre desenfreadamente atrás de uma galinha”; “Fez-me lembrar
uma típica cena dos antigos filmes a preto e branco num registo cómico-frenético”; “Parecia
música de um filme”; “Pantera cor-de-rosa”; “Tom & Jerry”.
Pondo a questão nesta perspetiva, torna-se bem mais clara a origem desta associação –
uma construção da cultura ocidental que, através de filmes cómicos como os de Charlie Chaplin
e de Buster Keaton, bem como nos desenhos animados, criaram a ligação entre música com

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MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

características semelhantes à do primeiro andamento da Sonatina de Arnold, e as cenas de


perseguição típicas da comédia da época. Apesar de algumas pessoas terem feito a associação
a filmes e desenhos animados, enquanto outras relacionaram à própria cena da perseguição, a
origem de ambas as respostas é a mesma.

3.1.4 Oblivion – Astor Piazzolla, arr. Dmitryi Varelas

3.1.4.1 Emoções básicas


Primeiramente, é importante referir que o excerto escutado pelos participantes do
questionário não corresponde à partitura que irá ser analisada nesta parte do trabalho. A
diferença reside na instrumentação – o acompanhamento do clarinete na faixa de áudio foi feito
por um acordeão e as partituras são para clarinete e piano, no entanto, aquilo que os
instrumentos fazem é virtualmente o mesmo.
As emoções básicas que os ouvintes reconheceram na obra foram bastante semelhantes
às relatadas na Fantasia de Nielsen à exceção de um menor destaque da resposta “tristeza” que,
ainda assim, foi a mais votada com 58,8% das repostas. Para além disto, as únicas diferenças
consideráveis entre os resultados obtidos neste excerto em relação ao segundo foi uma
percentagem substancialmente maior de ouvintes que reconheceram um carácter de raiva na
obra de Piazzolla (7,1%).

Tabela 7 – Oblivion, Piazzolla - Emoções básicas

De facto, quando observamos os excertos lado a lado, vemos mais semelhanças do que
diferenças. A Fantasia de Nielsen, como já analisado, encontra-se numa tonalidade menor, num
Andante, caracterizado por melodias expressivas e harmonia dissonante com acordes não
resolvidos. Todos estes aspetos encontram-se no Oblivion.

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MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

Figura 8 – Oblivion, Piazzolla - Compassos 16-22

Vemos na parte do piano uma harmonia extramente dissonante, criando enorme tensão
sem necessidade de recorrer a ritmo ou dinâmicas agressivas. No entanto, há uma característica
que se evidencia assim que observamos a partitura – uma densidade baixíssima de notas por
parte do clarinete. Para além de provocar uma sensação de maior lentidão, uma menor
densidade de notas enaltece alguma característica de introspeção que a obra já possa possuir
(SCHELLENBERG, 2001).

3.1.4.2 Ideias específicas


Também nesta questão, as respostas obtidas espelharam o que se verificou no segundo
excerto – os dois adjetivos mais escolhidos foram, igualmente, a solidão (40,2%) e dor (31,4%).
Uma ligeira diferença será o facto de ter provocado uma maior variedade de ideias – com
destaque aos termos tensão (16,2%), sonho (19,9%) e mistério (31,4%) – e menos consenso
relativamente à solidão e à dor.

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MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

Tabela 8 – Oblivion, Piazzolla – Ideias específicas

Os ouvintes reconheceram, em grande parte, ideias emocionais negativas de carácter


introspetivo, em prol de emoções mais pronunciadas – o próprio conceito de sonho, que destoa
da tendência por ter uma carga positiva, trata-se de uma ideia altamente introspetiva sendo-o,
aliás, mais do que qualquer outra. Quando procuramos compreender os elementos do excerto
que fazem com que este tenha uma mensagem de introspeção, percebemos que a melodia, por
si só, não seria capaz de o fazer. No entanto, quando se junta o piano, que durante as notas
longas da melodia demonstra uma harmonia complexa e intensa, cria-se um ambiente pesado
e intenso.
Alguns estudos mostram-nos que quando fazemos associações da música com emoções
do dia-a-dia, é frequente pensarmos na melodia como o que demonstramos para o exterior e na
harmonia com o que realmente sentimos (GABRIELSSON & LINDSTRÖM, THE ROLE OF
STRUCTURE IN THE MUSICAL EXPRESSION OF EMOTIONS, 2011) – como neste caso
a melodia do clarinete é simples e espaçada, estando toda a tensão da obra concentrada na
harmonia do piano, isso explica o porquê das ideias específicas mais sentidas serem as
negativas de carácter introspetivo.

3.1.4.3 Sensações físicas


Este foi, por uma margem ainda larga, o excerto que provocou menos sensações físicas
aos ouvintes – 19,6% afirmou não ter sentido nada enquanto 25% julga ter reagido de alguma
forma, não sabendo explicar como. Apesar disto, Oblivion gerou o maior número de sensações
físicas intensas – 17,6% relatou arrepios na pele enquanto um número surpreendente de 5,7%
dos participantes sentiu calafrios. É bastante interessante esta oposição de reações – como pode

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MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

o excerto que provoca mais reações físicas intensas ser aquele que leva mais gente a não relatar
nenhuma sensação?

3.1.4.4 Memórias e associações


As associações descritas relativamente a este andamento foram, naturalmente,
condizentes com as emoções e ideias suscitadas. As ligações a um “desgosto amoroso” foram
as mais comuns, tendo 14,67% dos participantes descrito algo que se enquadre neste conceito.
A explicação mais plausível é a da conotação que o timbre do acordeão tem na cultura ocidental,
por ser associada na tradição folclórica da europa e américa latina ao tema do amor. Quando o
timbre do acordeão suscitada a associação ao amor, numa peça em tonalidade menor, com
melodia constituída por valores longos e notas suspensas, bem como harmonia dissonante, é
natural que a mente crie a ligação à vertente trágica do amor. Exemplos de respostas

3.1.5 Blues, Um americano em Paris – George Gershwin

3.1.5.1 Emoções básicas


Para além da emoção básica mais transmitida neste excerto, a alegria (62,5%),
verificaram-se números tão próximos quanto possível no que toca à excitação (34,5%) e
descontração (34,8%), sendo que a segunda obteve apenas mais uma resposta. Como já
mencionado, isto pode ser justificado por reações genuínas que influenciam a perceção do
carácter da obra, como um espelhar da ligeireza da obra no caso da excitação, e uma satisfação
estética no caso da descontração.

Tabela 9 – Blues, Gershwin - Emoções básicas

Tonalidade
Também esta peça se enquadra perfeitamente nas características tradicionais da música
que suscita emoções semelhantes, estando na tonalidade de mi bemol maior, algo evidenciado

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MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

pela progressão harmónica inicial com os acordes de dó menor com sétima (vi6/5), mi bemol
maior com uma interessante sétima da dominante na tónica (I4/3), fá menor com sétima (ii7) e
quinto grau com sétima (V7), regressando ao primeiro grau.

Figura 9 – Blues, Gershwin - Compassos 1-3

Andamento
Como podemos observar na imagem, a indicação de andamento dada é de um Tempo
di blues que é um andamento com movimento, mas não muito acelerado. Apesar de não ter
indicação nesse sentido, muitos intérpretes optam por pensar num swing, como é o caso de
Corrado Giufreddi, o intérprete da gravação inserida no questionário. O swing enaltece ainda
mais o carácter jazzístico da obra, bem como uma sensação de fluidez contagiante e
flutuabilidade que cria um carácter lúdico.

Contornos melódicos e harmonia


A melodia é, provavelmente, o elemento mais importante desta peça de Gershwin. Esta,
contém saltos frequentes que enaltecem ainda mais o carácter lúdico da obra, passagens com
cromatsimos para criar magnetismo nas notas de chegada da linha melódica e um uso
recorrente de glissandos que transmitem uma sensasão de enorme otimismo. Ao empregar o
efeito swing, todas estas características acabam por ser exaltadas.
A harmonia, por sua vez, é brilhante e envolvente, sendo que o uso imprescindível dos
acordes de sétima fornece um tom jazzístico e torna a obra mais imersiva.

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MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

Figura 10 – Blues, Gershwin - Compassos 18-23

3.1.5.2 Ideias específicas


Para analisar as ideias específicas suscitadas pelo Blues, o melhor será mesmo observar
o gráfico.

Tabela 10 – Blues, Gershwin - Ideias Específicas

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MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

Visualmente, podemos observar um bloco consistente na metade superior do gráfico


(referente às emoções positivas) e uma metade inferior (emoções negativas) quase desértica.
Sete conceitos obtiveram mais de 15% de respostas sendo que os valores mais altos encontram-
se no otimismo (50%) e paixão (49,3%), seguidos pelas ideias de energia (33,1%), lúdico (26%)
e erotismo (24%). A abundância de perceções positivas provocada pela obra de Gershwin, tem
como explicação a análise superficial, já realizada, da obra. Falando mais concretamente, o
otimismo pode surgir por conta da despreocupação transmitida pelos elementos como o swing,
glissandos e melodia memorável. A noção de paixão neste excerto tem, por sua vez, a mesma
origem da associação a desgostos amorosos no Oblivion – o uso do acordeão, que como se
tornou claro, assumiu uma forte associação ao amor na cultura ocidental. Ao contrário do que
se passou no excerto anterior, o timbre do acordeão está associado a características musicais
extremamente alegres, sendo a associação feita para a vertente mais otimista do amor – a paixão.

3.1.5.3 Sensações físicas


A maioria dos participantes (54,4%) afirmou ter-se sentido descontraído ao escutar a
obra, sendo o número de pessoas a quem a música não provocou nenhuma reação física (9,5%)
bastante baixo. O dado mais curioso em relação a esta questão é provavelmente os 2,4% que
escolheu acrescentar a hipótese “vontade de dançar” – algo que é bastante natural pelas
características de imersividade e ânimo contagiante da obra.

3.1.5.4 Memórias ou associações


Para este excerto fez-se uma pequena alteração na questão relacionada às associações
figurativas: ao invés de questionar se o ouvinte fez alguma associação e dar a opção de
descrevê-la, pediu-se que todos os participantes tentassem relacionar o excerto a algo. Esta
alteração foi incentivada pelo título da obra que nos dá pistas sobre uma possível associação
intendida pelo próprio autor, sem precisarmos de procurar mais sobre esta – neste caso existe
todo um filme para justifica-lo. Isto não acontece em mais nenhum dos excertos, pelo que se
aproveitou para constatar se os participantes efetivamente se aproximariam do título “Blues de
Um americano em Paris”.
Efetivamente, verificou-se concordância das respostas com esta pista de programa –
25% dos participantes referiram Paris ou França, 22,29% falou na década de 20 ou nos loucos
anos 20, e 11,15% mencionou os Estados Unidos, alguns mais concretamente mencionando
Nova Iorque ou Nova Orleães. A particularização frequente destas cidades nas respostas que
estabeleceram uma ligação do excerto aos Estados Unidos da América, demonstra-nos
Francisco Faria | Escola de música da Póvoa de Varzim 33
MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

imediatamente o motivo de esta ser feita – tratam-se dos dois maiores polos do jazz no mundo
e, como já analisado, esta obra contém vários elementos jazzísticos. Apesar do jazz também ter
raízes bem assentes em França, e este ser certamente um motivo da associação ser feita, outro
fator é ter o acordeão, ícone da cultura francesa – instrumento levado para França por
imigrantes italianos, rapidamente aceite e amplamente usado na música dos cafés e cabarés. Já
a associação aos anos 20 pode ser explicada pelas duas associações anteriores – foi uma época
de grande proeminência, tanto do jazz nos EUA, como dos cabarés na França.
Algumas respostas mencionaram e, de certa forma, comprovam, a origem destas
associações: “Pensei num ambiente tipo Cabaret, com dançarinas e muitas pessoas a
divertirem-se, músicos a atuarem ao vivo. Anos 1920, talvez.”; “Estados Unidos nos anos 20
do século 20. Novas oportunidades, tertúlias, música e dança nos cafés.”

3.2 Considerações finais

Ao realizar um questionário, é difícil não ter espectativas para as respostas que se vai
obter e, apesar de muitas vezes estas especulações se terem confirmado, os resultados
acabaram por, em várias ocasiões, desafiar o esperado.

3.2.1 Perceção de uma mensagem emocional nas obras


O primeiro aspeto de relevo está relacionado a uma das questões que ainda não foi
mencionada – se os ouvintes consideraram, ou não, que os excertos continham uma mensagem
emocional clara. Mais de 85% dos ouvintes respondeu positivamente em todos os casos, sendo
os valores mais baixos os obtidos em relação ao Blues e Oblivion, com 85,5% em ambos. Por
sua vez, o valor mais alto verificou-se no Prelude das Bagatelas de Finzi (91,9%). O facto de
os valores se encontrarem todos tão próximos dificulta tirar conclusões, no entanto, esta
tendência demonstra uma de duas possibilidades: ou que, na escuta musical, existe grande
facilidade em associar a obra a uma mensagem emocional, ou que os excertos não foram
suficientemente diversos para obter diferenças significativas nas respostas.

3.2.2 Perceções racionais ou sentimentos genuínos


Outra questão cujas respostas foram uniformes, foi pedindo aos participantes que
distinguissem as suas reações entre perceções racionais ou sentimentos genuínos, ao que cerca

Francisco Faria | Escola de música da Póvoa de Varzim 34


MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

de 62% respondeu ter o seu estado de espírito genuinamente influenciado pela música. No
entanto, existem duas exceções: no Prelude, onde os valores foram consideravelmente mais
baixos (51%), e no Blues onde estes atingiram valores bastante superiores (72,3%)

3.2.3 Emoções básicas e pulsação


No que toca a emoções básicas, o Oblivion de Astor Piazzolla foi o menos consensual,
tendo a Sonatina de Malcolm Arnold ocupando a posição na vertente oposta. É curioso observar
que o Oblivion corresponde ao excerto mais lento e sereno dentro das cinco obras estudadas,
sendo que a Sonatina é a mais rápida e explosiva. Aliás, se ordenarmos todas as obras em
termos de pulsação relativa – influenciada pelos valores rítmicos utilizados – esta coincide com
a ordem dos excertos que obtiveram maior consenso nas respostas básicas, à exceção da
Fantasia e do Blues que trocaram na terceira e quarta posição: Sonatina-Prelude-Fantasia-
Blues-Oblivion.

3.2.4 Ideias específicas e complexidade


O mesmo pode ser feito relativamente à concordância em termos de ideias específicas
e a complexidade dos excertos. A obra mais simples, tanto harmónica como melodicamente, é
sem dúvida, a Fantasia de Carl Nielsen, sendo este o excerto cuja ideia mais respondida teve
maior destaque das restantes (simples não significa de menos qualidade, a Fantasia de Nielsen
é o exemplo perfeito de que menos pode ser mais). Neste caso, a relação proposta entre os
resultados e as características das obras é infalível: a ordem Fantasia-Prelude-Blues-Oblivion-
Sonatina é aplicável tanto a uma ordem do excerto mais simples ao mais complexo, como da
maior à menor concordância em termos de ideias específicas.

3.2.5 Reações físicas e alegria


Outra relação interessante no questionário é aquela que se estabelece entre a alegria de
uma obra e as reações físicas relatadas pelos participantes. As obras que obtiveram uma maior
percentagem da resposta “alegria” à questão da emoção básica foram, sem exceção, as que
provocaram maior número de relatos de sensações físicas.
É necessário compreender que uma grande parte das pessoas ao responder ou estão
totalmente focadas no que lhes está a ser questionado – provocando um favorecimento, ainda
que inconsciente, das perceções racionais em relação às emocionais – ou estão a conciliá-lo
com outras atividades – impedindo a disponibilidade emocional necessária para que a música
lhes “diga” algo. Daí as obras que transmitem alegria serem aquelas em que é menos difícil
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MÚSICA E EMOÇÃO – COMO PODE “MERO” SOM ORGANIZADO PROVOCAR EMOÇÕES?

provocar reações físicas visto que, como nos dizem estudos como o de Alf Gabrielsson (2011),
peças de carácter triste ou próximo disso, exigem-nos uma disponibilidade emocional maior
do que os de carácter alegre.

3.2.6 Associações e memórias


Ao compreender que as respostas obtidas para cada pergunta estão intrinsecamente
ligadas às características específicas da obra, podia se esperar que o mesmo acontecesse nas
associações ou memórias acedidas pelos ouvintes. Porém, todas as peças provocaram-no a
cerca de 50% dos ouvintes, o que nos demonstra que as associações figurativas ou ao nível da
memória possam depender da personalidade e particularidade do indivíduo, e não da obra.

3.2.7 Influência da idade


Relativamente à idade dos participantes, podemos verificar que as pessoas com mais
de 55 anos foram as que mais relataram sentir que os excertos tinham uma mensagem
emocional clara, sendo as idades compreendidas entre os 16 e 34 as mais exigentes neste
aspeto.

Tabela 11 - Percentagem de pessoas de cada faixa etária que respondeu positivamente à questão:
Sentiu que o excerto continha uma mensagem emocional clara?

Verificou-se também que quanto mais velho o ouvinte, maior a probabilidade de uma
possível associação figurativa ao escutar música ir em concordância com a maior tendência de
resposta. Ou seja, as associações que a música provoca a pessoas mais jovens está mais sujeita
à personalidade do que nas pessoas mais velhas, com a particularidade dos participantes com
idade acima dos 64, onde 46,15% que escolheu descrever uma associação, fê-lo da forma mais
comum em todos os participantes. Este dado é algo surpreendente – podíamos esperar que, por

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ter mais tempo de vida, estes participantes fariam associações baseadas em memórias ou
experiências pessoais e não na conotação construída culturalmente.
Para além destes aspetos, notou-se também mais relatos de que a música não provocou
sensações físicas quanto mais jovem a amostra, demonstrando ou uma maior abertura
emocional por parte das gerações mais velhas ou de facto um maior impacto da música nesta
faixa etária.
Finalmente, algo a ser referido é que a faixa etária dos 35 aos 44 foi aquela que
considerou menos as suas reações como sendo um sentimento genuíno (52,76% em média)
enquanto os participantes entre os 55 e os 64 foram os mais crentes na veracidade das suas
emoções (82,4% em média). Apesar dos dois valores das extremidades se encontrarem
consideravelmente distantes, as respostas dos restantes grupos etários esteve bastante próxima,
sendo que nenhum padrão pôde ser verificado. No entanto, um dado que, apesar de não ter
números concretos nem ter sido averiguado no questionário, é o de que uma grande parte dos
inquiridos com idades compreendidas entre os 55 e 64 possuem formação e trabalho em áreas
artísticas não musicais – algo que não aconteceu noutros grupos etários. Isto deve-se à forma
como a partilha do inquérito foi feita mas, de qualquer modo, teria sido interessante perguntar
a área de trabalho ou formação diretamente no questionário para que se pudesse averiguar a
influência deste fator de forma mais concisa.

3.2.8 Influência da formação musical


A formação musical, foi um outro aspeto questionado com o propósito de separar a
amostra em diferentes grupos.
Ao longo dos diversos excertos, 86,07% dos participantes sem estudos musicais, em
média truncada, consideraram que as obras continham uma mensagem emocional clara – uma
diferença consideravelmente menor para os 87,77% dos ouvintes com estudos até ao quinto
grau, do que destes segundos para os 93,43% de quem foi para além desse patamar de ensino
musical.
Curiosamente, as associações mais comuns nos diferentes excertos foram feitas, em
grande parte, pelos ouvintes com menor formação musical. Isto pode estar associado a um
conhecimento musical influenciado pela cultura ocidental, que através da ópera e, mais
recentemente, cinema foram criando associações entre aspetos do dia-a-dia e a música.
Para além destas duas considerações, nada mais pôde ser associado à formação dos
ouvintes na área, o que também é uma conclusão de relevo. Pelo menos no tipo de pergunta

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mais superficial utilizado nesta parte do trabalho, não se verificou a diferença esperada entre
estudantes e não estudantes de música.

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4 CONCLUSÕES

Um ótimo ponto de partida para a conclusão deste projeto, é uma das respostas obtidas
relativamente à descrição de eventuais associações ou memórias provocadas pela música:
“Lembrei-me de momentos em que me sinto assim” – o “assim” referindo-se ao carácter da
obra. Ora, o carácter emocional de uma obra não é factual, mas em grande parte dos casos
provocam sensações tão marcadas que se torna difícil acreditar que não seja unânime a todas
as pessoas. Apesar de não responder da forma mais adequada ao que foi solicitado na questão,
esta resposta representa o aspeto definidor da relação do ser-humano com a música – a crença
de que a linguagem desta é objetiva apesar de, como referido no trabalho, ser a mais abstrata
das artes.
Com a pesquisa teórica, compreendemos que não podemos ter música erudita sem
compositor (é este quem idealiza a obra e mensagem emocional que esta deverá carregar),
intérprete (que está encarregue de transmitir a mensagem do compositor, com a liberdade de
lhe a sua própria interpretação, “falando” da forma que entende tocar mais ao ouvinte – de lhe
dar vida), e ouvinte (sem ouvintes não há música, são um elemento imprescindível da obra
musical, sendo eles quem determina que emoções esta contém, por muito que um compositor
as possa idealizar – o carácter da obra é, nada mais, do que aquilo que o ouvinte sente).
No que toca à pesquisa empírica, esta veio confirmar os conhecimentos que temos sobre
a música e a forma como os fatores estruturais provocam diferentes reações – isto aconteceu
mesmo quando os resultados foram surpreendentes. Esta parte do projeto, quando conciliada
com a informação teórica recolhida, foi essencial para que possamos responder à questão
“como pode ‘mero’ som organizado provocar emoção?”: fá-lo a partir de reações biológicas à
música que criam paralelismos a situações e emoções reais (uma peça energética associa-se a
momentos intensos, provocando uma aceleração do ritmo cardíaco, a reação natural a essas
ocasiões); construções culturais e sociais da noção de certos conceitos teóricos (como o caso
do timbre do acordeão estar associado ao amor, ou do carácter frenético da Sonatina de
Malcolm Arnold com cenas de perseguição no cinema); e através de uma relação íntima entre
o compositor, intérprete e ouvinte (o compositor escreve uma mensagem de emoções que é
“declamada” pelo intérprete para que o ouvinte a possa receber).

“Do coração – que vá de novo ao coração” – L. V. Beethoven

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ANEXOS

Anexo 1 – Questionário Música e Emoção

Ligação para questionário: https://forms.gle/gVuxB1W3d2uMC42Z7

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Anexo 2 – Partitura oferecida a Rodolfo da Áustria, com a dedicatória “Von Herzen – Möge
es wieder- Zu Herzen ghen!”

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