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Mauro Betti
São Paulo State University
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Os saberes da Educação Física nas perspectivas dos alunos do ensino fundamental (2o ciclo) e médio View project
Processos colaborativos e formativos permanentes da educação física escolar: implicações à complexidade didático-pedagógica, sistematização curricular, dinâmica teórico-metodológica e intervenção de professores(as)-
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Mauro Betti
2006
SUMÁRIO
PARTE I
4 OBJETIVO .............................................................................................. 21
PARTE II
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................... 91
PARTE IV
1 ESCOVAR AS PALAVRAS
ESCOVA
(...). Logo pensei de escovar palavra. Porque eu havia lido
em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores
antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que
estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia
também que as palavras possuem no corpo muitas
oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas.
Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro
esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo
que ainda bígrafos.
(Manoel de Barros. In: Memórias inventadas - a infância.
São Paulo: Planeta, 2003)
1.1 Introdução
1
Já que “cultura”, conforme Abbagnano (2000, p. 228), indica, em sentido especialmente usado por
sociólogos e antropólogos, “o conjunto dos modos de vida criados, adquiridos e transmitidos de uma
geração a outra”.
3
Por sua vez, a “Educação Física”, embora envolva atividade física e exercício,
parece necessitar de um estatuto epistemológico próprio, cujos contornos foram
amplamente debatidos na literatura nacional e internacional, em especial nas décadas de
1980 e 1990 (e. g. BROOKS, 1981; ELLIS, 1998; LAWSON, 1984; LOVISOLO, 1996;
NEWELL,1990; SÉRGIO, 1989; TANI, 1996). Tal debate levou à polarização em torno de
dois entendimentos: a matriz científica, que concebe a Educação Física como área de
conhecimento científico, e a matriz pedagógica, que a concebe como prática pedagógica,
com características de uma prática social de intervenção (BETTI, 1996). Tal dicotomia
agregou as ambigüidades com que a Educação Física tem pensado a si mesma: teoria ou
prática?; corporal/físico/motor ou cognitivo?; natureza ou cultura?
que declara que os objetos existem fora do espaço ou simplesmente que sua existência é
duvidosa e indemonstrável, ou falsa e impossível” (p. 523). Já Hegel, no contexto da
filosofia romântica que se originou na Alemanha pós-kantiana, esclarece que: “A
proposição de que o finito é o ideal constitui o idealismo. O idealismo da filosofia consiste
apenas nisto: em não reconhecer o finito como verdadeiro ser” (citado por
ABBAGANANO, 2000, p. 524).
A ‘falha idealista’, por assim dizer, presente em Betti (1983) consiste em que o
esporte e o jogo (poder-se-ia acrescentar dança, ginástica) não são aceitos em si como
conteúdos/meios da Educação Física, pois seriam dotados de uma certa irracionalidade
(por exemplo, o esporte pode ser prejudicial à saúde, determinado jogo pode não alcançar
suficiente intensidade de movimentação corporal) face a um conceito de Educação Física
que é pré-determinado. Tratar-se-ia, então, de descobrir, no ‘finito’ (esporte, jogo, dança
etc.), a presença do ‘infinito’ (a Educação Física). Portanto, para a concepção idealista de
Educação Física, o esporte, o jogo, a dança etc. devem ser adaptados para se tornarem
conteúdos/meios da Educação Física.
Betti (1983) tem a seu favor a existência implícita de um ‘projeto educativo’ para a
Educação Física, que toma como base o fenômeno lúdico, o qual, todavia, acaba por
funcionar também como uma idéia-norma, assim como a idéia de saúde envolvida, pois o
jogo e o esporte devem adaptar-se a elas. Embora tal adaptação faça parte do projeto
educativo, ela não se faria a partir das condições de existência real do esporte, da
ginástica etc., mas do que eles deveriam ser. Em suma, aplica-se o diagnóstico de Fourez
(1995): “as idéias conduzem o mundo” (p. 240): é idealismo.
6
Bracht (1999) realizou significativo avanço para a compreensão das relações entre
a matriz científica e a matriz pedagógica, ao perceber a Educação Física como campo
acadêmico responsável pela teorização da prática pedagógica que tematiza
manifestações da cultura corporal de movimento. O objeto da Educação Física é o saber
específico de que trata essa prática, e a definição desse objeto/saber específico define o
tipo de conhecimento buscado para sua fundamentação, e este por sua vez determina a
função atribuída à Educação Física. Haveria três entendimentos desse saber próprio da
Educação Física:
cultura, mas também possibilitada por ela; é linguagem, que na qualidade de cultura
habita o mundo do simbólico.
Bracht (1999) ao abordar a mesma questão, esclarece que, quando a teoria crítica
da Educação Física propõe a cultura corporal de movimento como objeto, para além de
um “fazer corporal” há implicado um saber sobre o movimentar-se humano que deve ser
transmitido ao aluno, e logo surge o ‘pré-conceito’ que se está propondo transformar a
Educação Física num discurso sobre o movimento, retirando-o do centro da ação
pedagógica da mesma.
Com base em C. Geertz, Daolio (2002) conclui que “a visão semiótica de cultura
como conjunto de padrões de significados” permite “considerar todos os homens como
agentes de cultura” e “ampliar o conceito de cultura para um processo simbólico
absolutamente dinâmico” (p. 91).
Mesmo que se concorde com tal posição, resta ainda perguntar de onde vem o
novo. Porque a cultura se transforma? Porque ela é dinâmica? Seria suficiente responder
que todos os seres humanos são agentes de cultura, porque “enredam-se” diferentemente
na “teia de significados” da cultura, e portanto “re-significam” a cultura, conforme a
interpretação corrente que se faz na Educação Física? Ora, quando se fala em “re-
significação”, está pressuposta uma “significação” inicial... De onde ela vem? E novas
significações, seriam possíveis? Como elas se produzem?
Não é por outro motivo que Kunz (1991, 2001) refere-se ao “mundo do movimento”
ou “cultura de movimento” das crianças, no qual ainda há a possibilidade de um “se-
movimentar” mais espontâneo, ainda não totalmente colonizado pelos “objetivações
culturais” provenientes em especial das mídias e das ciências que se ocupam do estudo
do movimento humano. Contudo, a “cultura de movimento” a que se refere Kunz não é
similar à “cultura corporal” ou “cultura corporal de movimento” tais como aparecem em
Betti (1994) e Bracht (1999), e como Daolio (2002, 2004) os retoma. A noção de cultura
em Kunz guarda relação com o “mundo da vida” de que fala a fenomenologia2; de fato, a
2
Segundo Thiele (1990), Husserl caracteriza o “mundo da vida” (“Lebenswelt”) como um “estilo global” que
diferencia as pessoas no cotidiano de mundos especiais ou do próprio ambiente em que vivem; o
“Lebenswelt” representa, assim, a “redução” fenomenológica do mundo cotidiano e, ao mesmo, tempo, um
horizonte não tematizado de todo indivíduo.
11
expressão alemã “Bewegungwelt” de se vale Kunz (1991, 2001) seria melhor traduzida
por “mundo do movimento”, para diferenciar da perspectiva antropo-sociológica que
inspirou aqueles outros autores.
Sérgio (1987) tratou das relações entre corpo, motricidade e cultura, apontando
implicações para a Educação Física. O autor trata do tema do corpo valendo-se do
conceito de corpo-próprio e de motricidade, presentes na fenomenologia de M. Merleau-
Ponty, para quem, a fenomenologia ocupa-se do estudo das essências, e estas devem
ser situadas na existência, pois só se pode compreender o Ser Humano a partir da sua
facticidade. Na fenomenologia é também central a noção de intencionalidade, já que toda
consciência é consciência de alguém ou de alguma coisa – a consciência não é um
horizonte de possibilidades ilimitadas, mas um projeto do Mundo. Desde que haja
consciência, “é preciso que algo aconteça de que ela seja consciência” (MERLEAU-
PONTY, 19453, apud SÉRGIO, 1987, p. 87). A consciência só pode ser entendida como
ato significante que dá e encontra sentido, e portanto desemboca na existência,
3
MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception.
12
4
MERLEAU-PONTY, M. Les sciences de l’homme et la phenomenology.
5
MERLEAU-PONTY, M. Le primat de la perception et ses consequences philosophiques.
13
e nunca a objetos sem espaço e sem tempo. A consciência é um ato de significação, que
encontra a sua possibilidade na própria existência, ao se orientar para algo – o objeto
intencional. Daí Merleau-Ponty (19456 apud SÉRGIO, 1987, p. 91) conceber a motricidade
como “intencionalidade original”, como intencionalidade operante que se articula
originariamente como um mundo denominado fundo ou horizonte.
6
MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception.
7
Idem.
8
Idem.
9
MERLEAU-PONTY, M. La prose du monde.
14
está prenhe de significação e, mais do que ponte entre o implícito e o explícito, ela põe-se
em ação e, como tal, é sentido.
Ainda para Sérgio (1987, p. 91), em conclusão: “O Homem, em si e para si, está
dotado de uma orientação de uma capacidade de intercâmbio com o Mundo e toda sua
motricidade é uma procura intencional do Mundo que o rodeia, para realizar, para realizar-
se”.
Além disso, como o Ser Humano não possui alto grau de especialização orgânica,
é a cultura que, como mecanismo de adaptação, enriquece as capacidades adaptativas
do organismo; é por meio da cultura que o Ser Humano recebe a experiência do passado
e aprende a preparar o futuro e a preparar-se para ele. Esta tese Sérgio foi buscar na
antropologia filosófica de Gehlen (1973) para quem o Homem é um ser práxico (quer
dizer, transformador) porque é um ser carente, e daí a motricidade humana se
caracterizar por um número infindo de movimentos não-animais; ainda para esse autor,
10
MERLEAU-PONTY, M. Signes.
11
CANTISTA, M.J. Racionalismo em crise.
15
sem a cultura, as disposições naturais e hereditárias não podem funcionar – por isso o
Homem é um ser cultural.
Então, o conceito de motricidade para Sérgio (1987, p.109-110) supõe que: (i) o
Ser Humano é um ser não-especializado e carente, aberto ao mundo, aos outros e à
transcendência; (ii) o ser humano é um ser práxico, que procura encontrar (e produzir) o
que lhe permite a unidade e a realização; (iii) como ser práxico, é agente e criador de
cultura, “projeto originário de todo sentido”. Por isso a motricidade humana constitui
processo adaptativo de um ser não-especializado, cujo ritmo evolutivo é lento; constitui
processo evolutivo de um ser com predisposição à interioridade e à cultura, que integra,
progressivamente, padrões de comportamento necessários à criação e manutenção de
um meio artificial necessário à sua sobrevivência e desenvolvimento; e constitui processo
criativo de um ser, “em que as práxis lúdicas, agonísticas, simbólicas e produtivas
traduzem a vontade e as condições de o Homem se realizar como sujeito, ou seja, como
autor responsável dos seus actos”.
“nenhum saber lhe pré-existe” (SÉRGIO, 1987, p. 144). A linguagem corporal “é uma
surpresa do ser, porque apresenta uma densidade própria e se inicia por um ato de
vontade criadora” (SÉRGIO, 1987, p. 144).
Kunz (1991, 2001) critica a visão que concebe o movimento humano apenas como
fenômeno físico, que pode ser reconhecido e esclarecido de forma simples e objetiva,
independente do próprio Ser Humano que o realiza. Em contraposição, considera que
nenhum movimento pode ser estudado isoladamente dos objetos ou do ser que se-
movimenta, em determinada situação e sob determinadas condições. O movimento,
assim entendido é então uma “ação em que o sujeito, pelo seu ‘se-movimentar’, se
introduz no Mundo de forma dinâmica e através desta ação percebe e realiza os
sentidos/significados em e para o seu meio” (TREBELS, 1983 apud KUNZ, 1991, p. 163).
De acordo com Tamboer (1985 apud KUNZ, 2001), o movimento humano implica sempre
uma “compreensão-de-mundo-pela-ação”, nosso mundo é sempre um mundo vivido, e o
movimento é sempre uma conduta para algo, e passa a ser visto como um diálogo entre o
Homem e Mundo. Como em Merleau-Ponty (1999), aparece aí uma unidade primordial de
Ser Humano e Mundo, na qual os sujeitos do movimento e o mundo dos movimentos se
envolvem de tal forma que o mundo e os objetos se tornam um ‘para algo’, ou seja, ‘para
a realização de algo’ (correr, nadar, jogar etc.) – isto é, há uma inerente relacionalidade
intencional do sujeito em seu se-movimentar.
18
Sob a perspectiva semiótica, Betti (1994) já apontou como questão crucial para a
Educação Física a problemática relação entre a teoria e a prática, na qual fica sempre
implícita a questão da linguagem. Para aquele autor, o recurso à Lingüistíca estruturalista
de F. Saussure e E. Benveniste, ao elegerem a língua como sistema de signos ideal,
acaba impondo maior distanciamento entre a teoria e prática, já que a primeira só pode
exprimir-se pela língua, ao passo que a prática da Educação Física é corporal e, portanto,
“as teorias da Educação Física estariam condenadas a falar sobre o corpo e o
movimento, sem jamais atingi-los” (BETTI, 1994, p. 28).
A Semiótica pode ser genericamente definida como “ciência que tem por objeto de
investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos
modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de
significado e sentido” (SANTAELLA, 1983, p. 15), e portanto poderia tratar de todas as
formas de linguagem não-verbal, inclusive a linguagem corporal.
verbal (um quadro, uma dança, um filme) e ensina a “ler” o mundo verbal em ligação com
o mundo não-verbal.
4 OBJETIVO
1. O QUE É A FENOMENOLOGIA?
1.1 Introdução
Assim, partilhando também com Dartigues (1973, p. 14) a imagem das primeiras
obras de Edmund Husserl (1859-1938) como a “fonte” da fenomenologia, da qual nasceu
“um rio de múltiplos braços que se cruzam sem se reunir e sem desembocar no mesmo
estuário”, iremos aqui, nessa apresentação bastante introdutória da fenomenologia, e
tendo vista os propósitos específicos do nosso estudo, limitar a exploração ao próprio
Dartigues (1973), didático expositor dos fundamentos da fenomenologia e seus
desdobramentos, e ao conhecido prefácio da obra “Fenomenologia da Percepção”, de
Merleau-Ponty (1999), herdeiro este, pelo menos até certo ponto, da tradição inaugurada
1
RICOUER, P. Sur la phénoménologie.
2
Idem.
24
3
Idem.
25
tematiza “o ato de nascimento que faz surgir o aparecer às custas do ser ou tendo como
fundo o ser”
Estaria aí, para Dartigues (1973, p. 17-18), “uma posição estratégica forte”, pois, se
é possível descrever o fenômeno tal como ele é, tal obedece às exigências do
positivismo, “que exclui todo conhecimento que não venha da experiência” e, por outro
lado, permite “aceder ao concreto e à vida que a ciência tinha tendência a esquecer”.
4
DILTHEY, W. Idées.
26
imediato, que não exige reconstrução, “mas somente uma descrição” (DARTIGUES, 1973,
5
p. 18). Daí a famosa distinção estabelecida por Dilthey : “Nós explicamos a natureza,
poderia “calcular sobre a sensação, a percepção, a memória, etc., sem ter previamente
elucidado o que quer dizer sensação, percepção, memória?”.
Segundo Dartigues (1973), se, por um lado, Husserl buscou salvar a lógica e a
atividade de pensamento da redução a que lhes submeteram as ciências empíricas,
também não desejou voltar às concepções filosóficas do passado, às filosofias “prontas e
acabadas”. A fenomenologia husserliana propõe uma “via média” entre essas duas
alternativas, ou seja, pensar os dados da experiência em sua totalidade, segundo a sua
natureza e nuanças – “e portanto sem jamais ultrapassá-los (...): Todo o fenômeno e nada
mais que o fenômeno” (DARTIGUES, 1973, p. 20). O postulado que funda tal
empreendimento é que:
racional, o logos, deve sê-lo também e Husserl acaba então por conceber
uma filosofia nova que realizaria enfim o sonho de toda filosofia: tornar-se
5
Idem.
6
HUSSERL, E. La philosophie comme science rigoureuse.
27
Entre a metafísica e as ciências positivas, Husserl propõe uma “terceira via” que,
“antes de todo raciocínio, nos colocaria no mesmo plano da realidade, ou [...] das “coisas
mesmas” (DARTIGUES, 1973, p. 21). Para tal, o discurso filosófico deve permanecer em
contato com a intuição originária, “fonte de direito para o conhecimento”, que Husserl
denomina “princípio dos princípios” (DARTIGUES, 1973, p. 21).
Mas, “voltar às coisas mesmas” (HUSSERL, 1961, apud DARTIGUES, 1973, p. 21)
não é limitar-se às impressões sensíveis, pois “se é verdade que os fenômenos se dão a
nós por intermédio dos sentidos”, eles se dão sempre como dotados de um sentido ou de
uma ‘essência’ [...] para além dos dados dos sentidos, a intuição será uma intuição da
essência ou do sentido” (DARTIGUES, 1973, p. 21). Dito de outra maneira: a intuição da
essência “condiciona o sentido do sensível” (DARTIGUES, 1973, p. 24).
7
HUSSERL, E. Recherches logiques.
28
etc. Em qualquer caso poderei dizer que ouvi a ‘IX Sinfonia’, mas ela não se reduz a
nenhum desses casos, embora esteja presente neles. Por isso:
uma realidade, como um fato, mas como uma pura possibilidade. Não
compasso dirá que a forma vagamente oval que traçou em seu caderno é
Dartigues (1973) nos explica que há uma essência de cada objeto que percebemos
(árvore, mesa, casa etc.) e das qualidades que atribuímos a eles: verde, rugoso,
confortável etc. Adverte, contudo, que a essência não é a coisa ou a qualidade, mas o ser
da coisa ou da qualidade, isto é, um puro possível para cuja definição a existência não
entra em conta, e portanto:
tendo sua estrutura e suas leis próprias. Elas são a racionalidade imanente
do ser, o sentido a priori no qual deve entrar todo mundo real ou possível e
29
1.2.2 Intencionalidade
imaginado, etc. [...]. Consciência e objeto não são, com efeito, duas
8
HUSSERL, E. Idées directrizes pour une phenomenology.
31
já que, fora dela, não haveria nem consciência nem objeto. (DARTIGUES,
1973, p. 26)
Mas, retomando o exemplo da macieira, Dartigues (1973, p. 27) afirma que, como
ninguém sabe o que são a macieira em si e sua miniatura representada, “seria melhor não
levá-las em conta, ou, como diz Husserl, ‘reduzi-las”.
termos de “uma correlação mais original que a dualidade sujeito-objeto e sua tradução em
interior-exterior, já que é no próprio interior da correlação que se opera a separação entre
interior e exterior” (DARTIGUES, 1973, p. 27). Mas essa dimensão primordial só é acessada
se a consciência “suspende sua crença na realidade do mundo exterior para se colocar,
ela mesma, como consciência transcendental, condição de aparição desse mundo e
doadora de seu sentido” (DARTIGUES, 1973, p. 27-28), uma nova atitude que Husserl
chamou de atitude fenomenológica.
a árvore percebida não existe senão enquanto percebida, isto é, como pólo
árvore. Esta certeza ou ‘crença’, como dirá Husserl, não é uma qualidade
p. 30)
estruturas, Husserl dirá que eles são constituídos, e a fenomenologia torna-se então o
estudo da constituição do mundo na consciência, ou fenomenologia constitutiva; constituir
quer dizer “remontar pela intuição até a origem na consciência do sentido de tudo que é,
origem absoluta já que nenhuma outra origem que tenha um sentido pode anteceder a
origem do sentido” (DARTIGUES, 1973, p. 30). Assim, a fenomenologia pode alcançar tudo
34
Se, destaca Dartigues (1973) a redução fenomenológica fez aparecer como resíduo
(que não pode ser reduzido), a vivência da consciência, esta é vivida por um sujeito, ao
qual se referem os objetos do mundo e de onde provém as significações. A análise da
consciência, voltando-se para o seu lado-sujeito (noético) torna-se então análise da vida
do sujeito no qual e para o qual se constitui o sentido do mundo, sujeito este que pode ser
considerado uma totalidade fechada sobre si mesma e da qual não poderíamos sair. A
fenomenologia se tornaria assim “exegese de si-próprio”, ciência do Eu ou Egologia.
Dartigues (1973, p. 39) aponta aí o perigo de se cair na introspecção, ou seja, “fazer
passar por objetiva a descrição de um estado psíquico pelo próprio sujeito que o vive”,
pois esses dados internos “não são suscpetíveis de nenhum controle objetivo, não
comportam nenhum critério que pudesse premunir o sujeito contra a ilusão”. O erro que
se comete aí é não realizar a ‘redução eidética’; é confundir “a essência do fenômeno com
seu estado de consciência atual, com o fato psíquico através do qual sua essência se dá”,
é considerar a consciência “como se ela não fosse intencional [...] e não tivesse, por
essência, o poder de visar através de seus conteúdos particulares uma verdade universal,
por definição comum a todos e a todos acessível”.
Todavia, o “eu” de que se fala não é o “eu psíquico” ou “mundano”, que é de fato
uma parte ou região do mundo, com suas vivências concretas particulares, mas “a
essência geral do Eu, distinguindo-se do eu psíquico como a essência de um fenômeno
se distingue de suas manifestações contingentes”, que Husserl denominou “Sujeito ou Eu
transcendental”, mas como “em sua multiplicidade, as vivências que fluem na consciência
9
HUSSERL, E. Idées directrizes pour une phenomenology.
35
se referem sempre à mesma fonte, é óbvio que ele não poderia ser acessível senão no eu
concreto” (DARTIGUES, 1973, p. 32).
Para Dartigues (1973) a meta de Husserl era não somente promover a renovação
de método nas ciências humanas, mas fundar seu sentido. Todavia, a fenomenologia,
como reflexão que abarca toda atividade e conhecimento humanos, traz implicações para
a ciência em seu conjunto, mesmo porque, no pensamento husserliano, as ‘ciências
eidéticas’ têm o mesmo objeto que as ciências empíricas. Embora distintos, esse dois
tipos de ciências, para Husserl, segundo a apreensão de Dartigues (1973, p. 36) não
seriam absolutamente separados, “como se pudéssemos desenvolver as ciências
eidéticas sem jamais nos referirmos às ciências empíricas e como se essas últimas não
recorressem jamais, ainda que o ignorassem, a uma intuição das essências”.
10
MERLEAU-PONTY, M. Les sciences de l’homme et la phenomenology.
37
Dartigues (1973, p. 37) que, nos dois casos “chegamos a uma possibilidade ideal, o que é
precisamente a definição que Husserl dá da essência”, com a ressalva de que “se o
próprio de uma possibilidade é o de não ser um fato real, ela tem também por
característica ser realizável, ter portanto uma vocação para o real e o conhecimento desta
pode nos conduzir ao conhecimento do real”. Segundo o próprio Husserl11 (1950 apud
DARTIGUES, 1973, p. 37): “A antiga doutrina ontológica, segundo a qual o conhecimento
do possível dever preceder o conhecimento do real, permanece a meu ver uma grande
verdade, desde que seja entendida corretamente e que seja empregada de maneira
correta”.
11
HUSSERL, E. Idées directrices pour une phenomenology.
38
Desse objeto diremos que deve ser compreendido, isto é, situado no meio
um enigma, isto é, como uma questão dirigida ao autor ausente que deixou
sobre sua obra o vestígio de uma intenção desaparecida: o que quis ele
Porém, alerta Dartigues (1973, p. 53), para captar a intenção profunda de uma
atitude ou ato – ou seja, compreendê-los – não é suficiente a impressão causada por sua
aparência imediata, pois:
A consciência não constitui seus objetos “ex nihilo”, mas a partir de uma
Nas palavras de Husserl12 (1953 apud DARTIGUES, 1973, p. 54): “É a forma final
das explicitações que poderiam constituir o objeto enquanto nossa posse permanente,
enquanto sempre e de novo acessível. Essa forma final... remete ela própria à sua
formação inicial. Tudo o que é conhecido remete a uma tomada de consciência original”.
É por isso que, em sua “teoria da constituição”, Husserl, conforme Dartigues (1973,
p. 54) afirmou que não somente o mundo é constituído, mas que o próprio sujeito se
constitui, que ele deve se conquistar pela reflexão sobre sua própria vida irrefletida, o que
o levou a distinguir duas espécies de intencionalidade: (i) intencionalidade temática, que é
“saber do objeto e saber deste saber sobre o objeto”; e (ii) intencionalidade operante ou
‘em exercício’, que é “a visada do objeto em ato, não ainda refletida”:
12
HUSSERL, E. Méditations cartésienes.
41
que existimos, e que trazemos ligados a nós antes de qual objetivação [...].
Opondo-se a Piaget, Merleau-Ponty (1999, p. 476) não crê que “os pensamentos
bárbaros da primeira idade” se desvanecem, mas, ao contrário permanecem “sob os
pensamentos da idade adulta como um saber adquirido indispensável, se é que deve
haver para o adulto um mundo único e intersubjetivo”, assim como, completa Dartigues
(1973, p. 64) a doxa originária (saber pré-racional) é o fundo obscuro sobre a qual se
fundará a ciência. Vislumbra-se assim, para Dartigues (1973, p. 64), a dupla tarefa da
fenomenologia: (i) explicitar, à medida que as ciências se desenvolvem, o elemento vivido
que constitui seu objeto, já que “elas criam novos métodos de análise”, mas não “seu
objeto enquanto fato psíquico ou fato social”, e este deverá “não somente ser explicado,
mas compreendido em sua essência de fenômeno vivido”; e (ii) explicitar a própria
atividade compreensiva, já “é ela própria obra do homem situado e encarnado e não de
um espírito puro”, e já que “o sentido que dá aos fenômenos se apóia sobre uma
experiência vivida original que funda as descrições fenomenológicas, as quais iluminam
por seu lado as racionalizações científicas”.
Esse cogito a que se deve voltar – esclarece Dartigues (1973, p. 65) – “não é um
pensamento puro, o pensamento de si mesmo”, mas é “rico de toda essa experiência
primitiva do mundo e de outrem sem a qual nenhuma descrição fenomenológica seria
possível”. Tal retorno permite também apreender que esta “camada primária de
experiência”, que dá seu sentido ao pensamento objetivo, “não é uma camada ‘pré-lógica
ou mágica’, como se a razão representasse um domínio autônomo e separado, como se o
Logos viesse de alhures” (DARTIGUES, 1973, p. 65). O pensamento vem das “profundezas
da vida que o precede e o envolve”, estando entendido, porém, “que suas construções
não conseguirão jamais conquistar e esclarecer perfeitamente aquilo que constitui sua
própria fonte”. Por isso Merleau-Ponty (1999, p. 489) pode dizer que:
possível o conhecimento.
manter tal distância significa que a situação intersubjetiva não pode ser
1973, p. 66)
13
MERLEAU-PONTY, M. Sens et non-sens.
46
Se, para Husserl14 (1948 apud Dartigues, 1973, p. 73), “As ciências dos fatos puros
e simples produzem homens que só vêem puros e simples fatos”, as ‘próprias ciências do
espírito’, observa Dartigues (1973, p. 73), “na medida em que querem ser objetivas,
evitam toda tomada de posição normativa, contentando-se em constatar o que é, sem
apreciá-lo e sem sugerir o que deve ser”. A crise das ciências apontada por Husserl se
manifesta “o esquecimetno das origens”, “como a ruptura de um mundo: o mundo da
ciência, tal como a ciência o constitui e o vê, se destacou do mundo da vida (Lebenswelt)”
(DARTIGUES, 1973, p. 74).
14
HUSSERL, H. La crise des sciences européennes et la phénomenologie transcendentale.
47
objetivo, “tal discurso é considerado como sendo não dito, no final das contas, por
ninguém, como sendo o discurso do ser sobre si próprio e, portanto, sua verdade
absoluta” (DARTIGUES, 1973, 74).
Tal esquecimento foi possível, segundo Husserl15 (apud DARTIGUES, 1973, p.75)
pela “matematização da natureza” iniciada por Galileu no século XVII, que edificou a física
moderna sobre o terreno teórico já elaborado pela geometria e matemáticas da
Antigüidade, terreno o qual, contudo, “desceu pronto do céu, ele nasceu da experiência e
do mundo sensível onde encontraremos corpos com formas imperfeitas” (DARTIGUES,
1973, p. 75). As formas puras ou “formas-limites” da geometria (retas, triângulos, círculos
etc.) foram inicialmente concebidas com uma finalidade técnica, a de medir, para fins
práticos, as formas reais cujas particularidades não podiam ser levadas em conta; mas
daí se duplicou um interesse teórico, “já que essas formas ideais comportavam
propriedades e leis próprias que podiam ser estudadas por si mesmas” (DARTIGUES,
1973, p. 75). Ademais:
elas transmitiam sua exatidão aos fenômenos reais quando lhe eram
“objetivas” que a realidade sensível, já que era somente por seu intermédio
15
HUSSERL, H. La crise des sciences européennes et la phénomenologie transcendentale.
48
Desse modo, “a natureza inteira em sua realidade concreta, com todas as suas
propriedades e suas qualidades, podia ser traduzida em linguagem matemática”, as
qualidades sensíveis (cores, odores, sons etc.) puderam “ser reduzidas indiretamente a
grandezas mensuráveis e ser assim conhecidas e dominadas em vez de ser
simplesmente percebidas” (DARTIGUES, 1973, p. 76). Segundo o próprio Husserl16 (apud
DARTIGUES, 1973, p. 76):
16
HUSSERL, H. La crise des sciences européennes et la phénomenologie transcendentale.
49
O mundo da ciência é sem vida, pois nele estão proscritos os predicados práticos,
axiológicos, culturais, pelos quais os objetos assumiam sentido e valor para nós; nele, é
preciso também fazer abstração dos sujeitos, “é um mundo inabitado e inabitável”
(DARTIGUES, 1973, p. 77).
Para superar tal ilusão objetivista, é preciso fazer reaparecer “o liame que liga a
ciência ao mundo da vida, isto é ao mundo quotidiano em que vivemos, agimos, fazemos
projetos, entre outros o da ciência, em que somos felizes ou infelizes” (DARTIGUES, 1973,
p. 78). Há duas formas de desvelar tal liame, segundo Dartigues (1973):
(i) Pelo fato de mesmo as expressões mais teóricas e abstratas só tem sentido se
relacionadas a um tipo de experiência que Husserl denominou ‘antepredicativa’ – anterior
a toda formulação em conceitos e em juízos – que é a experiência da percepção sensível,
percepção do mundo no qual vivemos e dos objetos que ele contém, sobre o
“fundamento” do qual constituem conceitos e juízos. As próprias categorias matemáticas
(relação, número etc.) derivam da idéias de ‘alguma coisa em geral’, que remete por sua
vez à percepção da coisa singular despojada de suas determinações singulares e
específicas. É isso que permite ao pensamento mais abstrato e formal conservar um
sentido e possibilitar sua aplicação: “Toda aquisição da ciência funda seu sentido na
experiência imediata e remete ao mundo dessa experiência” (HUSSERL17, apud
17
HUSSERL, H. La crise des sciences européennes et la phénomenologie transcendentale.
50
DARTIGUES, 1973, p. 78). Conclui Dartigues (1973, p. 78): “A ciência, mesmo se sua
linguagem em nada se assemelha à do mundo quotidiano, não fala de um outro invisível e
mais real; se ela quer dizer alguma coisa, ela fala deste mundo aqui, do mundo de nossa
experiência viva no qual nasceu”.
(ii) Pelo fato de que o próprio cientista fala neste mundo, no exercício de seu trabalho
científico ele não abandona o mundo da vida. As próprias formulações científicas são
“engastadas na linguagem cotidiana, que fornece o primeiro sentido daquilo de que se
procura uma inteligibilidade superior”; é preciso saber de antemão o que quer dizer luz,
velocidade, tempo, “tal como estes fenômenos se dão à intuição pré-científica, se
queremos saber de que fala uma teoria física sobre a luz, o espaço-tempo, etc.”
(DARTIGUES, 1973, p. 79). Embora a teoria falará disso com uma nova inteligibilidade que
18
HUSSERL, E. L’origine de la géométrie.
51
esse mundo da experiência primordial do qual a ciência não terá jamais acabado de falar”,
e que a ciência “repousa sobre o ‘mundo da vida’ e não no ‘ar” (DARTIGUES, 1973, p. 80).
Assim, a filosofia busca devolver a ciência à liberdade do sujeito que a cria, “para lhe
devolver seu objetivo ao lhe devolver sua origem” (DARTIGUES, 1973, p. 80). Reencontrar-
se-ia, então, segundo Husserl19 (1957 apud DARTIGUES, 1973, p. 80) o sentido exato
“desta vestimenta de idéias que nos faz tomar pelo ser verdadeiro o que não é senão um
método”, mesmo que esse método seja de grande valor e eficácia.
19
HUSSERL, E. Logique formelle et logique transcedantale.
52
definição não é mais proporcionada por uma percepção sensível, “pois meus sentidos não
poderiam perceber o quadrado em geral, mas por uma percepção intelectual”, e tal objeto
“cuja percepção vai produzir a evidência, fundamento da verdade, pode ser igualmente
um objeto ideal cuja essência e, portanto, estrutura essencial, se dá segundo sua
especificidade ao espírito que a examina” (DARTIGUES, 1973, p. 83). Mas é preciso
lembrar “que tais objetos ideais, como os seres matemáticos ou as categorias lógicas,
repousam em última instância, mediante um certo número de intermediários, sobre a
percepção sensível que confere aos “objetos de grau superior” sua validez lógica e suas
“leis de essência” (DARTIGUES, 1973, p. 83).
a verdade está toda na presença o ente, o qual se dá, unicamente por essa
presença, com sua essência ou seu sentido e não como uma realidade indefinida
que um pensamento vindo de algum outro lugar deveria vir informar. A cor se dá
tal como vista, o som como ouvido e, em seu nível, as formas se dão segundo o
Tal conclusão não é espantosa, já que o ser não se oculta sob o fenômeno “como
um em-si inacessível ou somente a acessível a um pensamento desencarnado, o que
reduziria o fenômeno a uma aparência enganosa”; ao contrário, no fenômeno “a verdade
aparece ‘em pessoa’, já que ela e o seu modo de aparição constituem uma só coisa”
(DARTIGUES, 1973, p. 84. Mas isso não significa – explica Dartigues (1973) que estamos
resposta é que a verdade pode se dissimular ao mesmo tempo que se dá, porque “a
consciência para a qual há presença e, portanto, evidência, é uma consciência submetida
à temporalidade para a qual, portanto, o objeto presente se modifica incessantemente,
confirmando ou infirmando a evidência na qual ela se dá a nós” (DARTIGUES, 1973, p. 84).
Exemplifica Dartigues (1973): vejo uma forma no nevoeiro, da qual não sei dizer com
evidência do que se trata; aproximo-me e percebo um homem, mas com maior
aproximação verifico que a forma que tomava por homem era uma árvore. O objeto é
sempre o mesmo, mas numa presença que não é pontual, “que se enriquece
incessantemente com aspectos novos como se o que houvesse para ser visto no objeto
para que ele me fosse dado na evidência se dissimulasse na mesma visão” (DARTIGUES,
1973, p. 84). Possuir um objeto na evidência “é atualizar todas as suas virtualidade”, e
assim “uma percepção invoca a outra, uma experiência invoca outra a tal ponto que a
evidência aparece como um termo em direção ao qual tendemos sem que jamais
estejamos certos de tê-lo atingido plenamente” (DARTIGUES, 1973, p. 85). Por isso, a
evidência não nasce de uma única experiência, mas da síntese de uma infinidade de
experiências concordantes”, mas, paradoxalmente, como a evidência funda-se sobre o
dado imediato do objeto na experiência, permito-me crer “que me encontro de imediato
numa situação de evidência”, mas ela é “sempre precária e de alguma maneira apenas
presumida” (DARTIGUES, 1973, p. 85).
(i) Todas as maneiras pelas quais a consciência relaciona-se com um objeto só tem
sentido a partir desta maneira ao mesmo tempo fundamental e ideal que é a relação na
evidência. Se sei que me represento confusamente um objeto, ou que me lembro dele, ou
que o imagino, é porque “esses modos da visada que são a representação confusa, a
lembrança, a imaginação são apenas modificações intencionais do modo original que é a
evidência na percepção”; imaginar um centauro, por exemplo, “é visá-lo como o que não é
e nunca foi percebido no mundo comum de nossas evidências perceptivas; lembrar-se de
um amigo é visá-lo como sendo não mais atualmente percebido, se bem que tendo-o
54
sido, etc.” (DARTIGUES, 1973, p. 85). Já o pensamento simbólico, por signos, que exerce
quotidianamente na linguagem, remete também à percepção: “a intenção significante,
com efeito, só tem sentido se ela se refere a uma experiência que virá ou pelo menos
poderia vir a preencher o vazio da intenção; e “significar” é: “antecipar pela mediação de
um signo a experiência intelectual ou sensível que me daria exaustivamente o objeto
visado” (DARTIGUES, 1973, p. 85). Mas “a palavra não é a coisa”, se ela antecipa a
experiência, “é que esta ainda não se realizou, ou pelo menos não me está inteiramente
presente quando a viso por intermédio do signo”, o qual “aponta em direção’ ao objeto
atualmente ausente, sendo a significação como que a designação vazia de uma presença
que ela chama para receber sua plenitude” (DARTIGUES, 1973, p. 86). Tal presença pode
não ocorrer, ou mesmo jamais ter ocorrido para mim, e ainda assim poderei passar
adiante palavras, “mas eu não conhecerei o seu sentido enquanto ignorar justamente que
visão de objeto elas pressupõem, a que tipo de experiência me convidam” (DARTIGUES,
1973, p. 86).
(ii) Como a evidência é sempre provisória, nunca alcançamos uma verdade absoluta ou
definitiva, pois se “o ser-verdadeiro não é jamais senão o seu ser-verificado, há sempre
lugar para verificações imprevisíveis que me impedem de absolutizar a verdade desde o
primeiro momento” (DARTIGUES, 1973, p. 86). Como a verdade reside apenas na
atualidade das vivências de consciência e no esforço e tensão em direção a experiências
novas, “não pode mesmo ser considerada acabada para alguém”, porque “é do estilo da
percepção só oferecer perspectivas cuja síntese não é jamais acabada”, e cada momento
da percepção “desempenha o papel de uma significação já que, por sua incompletude, ele
é invocação dos momentos complementares a vir, aos quais remete (DARTIGUES, 1973, p.
86). Em conseqüência, os objetos só podem ser captados “sobre um horizonte de
indeterminações e sabemos que é o próprio de um horizonte é estar fora de alcance, já
que ele recua à medida que avançamos em sua direção”. Mas, se a evidência fundada
sobre a intuição sensível é precária, o mesmo não se dá com a evidência que se funda
sobre uma intuição intelectual, lembra Dartigues (1973, p. 86), pois se vejo negro um
objeto que depois, melhor iluminado, me aparecer vermelho, “é ‘por essência’ impossível
55
Por isso, conclui Dartigues (1973), a verdade total do mundo é um ideal em direção
ao qual não podemos senão tender infinitamente. Segundo Husserl20 (apud DARTIGUES,
1973, p. 87):
20
HUSSERL, E. Méditations cartésiennes.
56
aponta como o próprio Husserl chamou forma a unidade intencional pela qual, por
intermédio do fluxo de sensações internas (sensação de verde, de rugoso etc.) que
constituem a matéria sensível da percepção, visamos o mesmo objeto distinto e exterior a
nós (por exemplo, a árvore que está a minha frente):
que, ela própria, não é afetada pelo tempo. (DARTIGUES, 1973, p. 41).
Uma forma será tanto mais perceptível, quanto mais ‘pregnante’ ela for,
pensamento viria por ordem com o auxílio da linguagem, mas ele é pré-
Contudo, Dartigues (1973, p. 42-43) aponta uma diferença entre a forma de que
falam os gestaltistas e a essência tal como concebida no pensamento husserliano:
enquanto esta última é “o sentido ideal do objeto produzido pela atividade da
consciência”, aquela primeira tendeu a tornar-se “uma realidade psicofísica [...] que a
consciência não constitui, mas que a ela se impõe como preexistente a toda atividade de
síntese”. Ou seja, “ao idealismo husserliano das essências se contrapõe, na
Gestalttheorie, um realismo das formas” (DARTIGUES, 1973, p. 43).
um espaço primordial no qual aparecem pólos que irão lhe dar sua
Contudo, alerta Dartigues (1973) não se pode considerar o ‘campo’ como estático;
pelo contrário a própria idéia de campo evoca um dinamismo. Os próprios estudos do
comportamento, iniciados por Watson, logo levaram à conclusão de que ele só pode ser
compreendido “em sua natureza de ato finalizado, se for considerado como uma forma
que se desenvolve no tempo e que recobre simultaneamente o organismo e o meio ao
58
21
GUILLAUME, P. La psychologie de la forme.
59
47)
Husserl, aponta Dartigues (1973), jamais aceitou essas conclusões, que tendem a
reduzir a consciência e o sujeito a uma simples dinâmica de estruturas naturais, e
portanto tratar-se-ia de um retorno ao psicologismo que ele tanto combateu.
22
MERLEAU-PONTY, M. La structure du comportement.
60
- É uma filosofia que ambiciona ser uma “ciência exata”, mas é também “um relato
do espaço, do tempo, do mundo ‘vividos”; é a tentativa de “uma descrição direta de nossa
experiência tal como ela é”, sem referência à sua gênese psicológica e às explicações
causais que dela possam fornecer as ciências.
menos de encontrar uma filosofia nova do que de reconhecer aquilo que eles esperavam”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 2). Por fim, como “A fenomenologia só é acessível a um
ciência.Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir
expressão segunda. A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido
de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma
a fonte absoluta; minha experiência não provém de meus antecedentes, de meu meio
físico e social, ela caminha em direção a eles e os sustenta, pois sou eu quem faz ser
para mim [...] essa tradição que escolho retomar”. Retornar às coisas mesmas é então:
Como o mundo “está aí antes de qualquer análise que eu possa fazer dele”, tornar-
se-ia artificial “fazê-lo derivar de uma série de sínteses que ligariam as sensações, depois
os aspectos perspectivos do objeto, quando ambos são justamente produtos da análise e
não devem ser realizados antes dela” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 5). Se o real “deve ser
descrito, não construído ou constituído” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 5), não se pode,
então, assimilar a percepção às sínteses que são da ordem do juízo, dos atos ou da
predicação:
23
Talvez se compreenda melhor o raciocínio se substituirmos o termo “significativa” (de “significação”), por
“signitiva” (de “signo”).
63
1.4.2 Redução
“enquanto algo tem sentido para mim”, não me distinguiria de uma ‘outra’ consciência, “já
que nós somos todos presenças imediatas no mundo e já que este mundo é por definição
único, sendo o sistema das verdades” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 7). Em conseqüência,
64
para Merleau-Ponty (1999, p. 7-8) tal idealismo transcendental despoja o mundo de sua
opacidade e de sua transcendência”, a análise reflexiva “ignora o problema do outro
assim como o problema do mundo”, o outro é “sem lugar e sem corpo, o Alter e o Ego são
um só no mundo verdadeiro, elo dos espíritos”:
PONTY, 1999, p. 8)
ter, pelo menos nesse sentido último. Para que outro não seja uma palavra
tenho de existir, que ela envolva também a consciência que dele se possa
“ser no mundo”.
mundo”, o que ela faz é tomar distância “para ver brotar as transcendências, ela distende
os fios intencionais que nos ligam ao mundo para vê-los aparecer, ela só é consciência do
mundo porque o revela como estranho e paradoxal”’ E para ver o mundo como paradoxo
“é preciso romper nossa familiaridade com ele [...] e essa ruptura só pode ensinar-nos o
brotamento imotivado do mundo”. Por isso, afirma Merleau-Ponty (1999, p. 10), Husserl
censurava a filosofia kantiana “porque ela utiliza nossa relação ao mundo, que é o motor
da dedução transcendental, e torna o mundo imanente ao sujeito, em lugar de admirar-se
dele e conceber o sujeito como transcendência em direção ao mundo”.
verdade, que ela é uma experiência renovada de seu próprio começo, que
toda ela consiste em descrever este começo e, enfim que a reflexão radical
1.4.3 Essências
24
“Ser-no-Mundo”.
67
Não são as essências que a filosofia toma por objeto, mas a nossa existência que,
contudo, está presa ao mundo de modo muito estreito “para conhecer-se enquanto tal no
momento em que se lança nele” e por isso ela precisa “do campo da idealidade para
conhecer e conquistar sua facticidade” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 12).
relações vivas da experiência, assim como a rede traz do fundo do mar os peixes e as
algas palpitantes” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 12). Portanto, entende Merleau-Ponty (1999,
p. 12), não é correto dizer que, para Husserl, as essências estão separadas da existência,
as palavras querem dizer, mas ainda aquilo que as coisas querem dizer, o
denominação e de expressão.
25
HUSSERL, E. Méditation cartésiennes.
68
temos estados de nós mesmos”, o segundo porque, torna o mundo “certo”, mas “a título
de pensamento ou consciência do mundo e como o simples correlativo do nosso
conhecimento, de forma que ele imanente à consciência e através disso a aseidade26 das
coisas está suprimida” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 13). Já a redução eidética “é a
resolução de fazer o mundo aparecer tal como ele é antes de qualquer retorno sobre nós
mesmos, é a ambição de igualar a reflexão à vida irrefletida da consciência” (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 13). Prossegue Merleau-Ponty (1999, p. 13):
real, e pôr em dúvida o “real”, é porque essa distinção já está feita por mim
mundo como aquilo que funda para sempre nossa idéia de verdade.
Portanto, conclui Merleau-Ponty (1999, p. 14) que não é preciso perguntar-se se nós
percebemos verdadeiramente um mundo, mas, ao contrário, dizer que “o mundo é aquilo
que nós percebemos”. Se falamos de ilusão, com referência a alguma verdade, é porque
somos capazes de reconhecer ilusões, e só podemos fazê-lo “em nome de alguma
percepção que, no mesmo instante, se atestava como verdadeira, de forma que a dúvida,
ou o temor de nos enganar, afirma ao mesmo tempo nosso poder de desvelar o erro e
não poderia, portanto, desenraizar-nos da verdade”. Nós estamos na verdade, e a
26
“Aseidade”: qualidade fundamental que distingue um ser de todos os demais seres, pela qual possui em
si mesmo a causa ou o princípio de sua própria existência,
69
1.4.4 Intencionalidade
a consciência humana com um pensamento absoluto que, do exterior, lhe atribuiria seus
fins”, como em Kant, mas de “reconhecer a própria consciência como projeto do mundo,
destinada a um mundo que ela não abarca nem possui, mas em direção ao qual ela não
cessa de se dirigir – e o mundo como este indivíduo pré-objetivo cuja unidade imperiosa
prescreve à consciência a sua meta” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 16). Por isso, Husserl
distinguiu entre a intencionalidade de ato28 - “aquela de nossos juízos e de nossas
tomadas de posição voluntária” e a única da qual Kant falou – e a intencionalidade
operante, “aquela que forma a unidade natural e antepredicativa do mundo e de nossa
vida”, a qual aparece “em nossos desejos, nossas avaliações, nossa paisagem, mais
claramente do que no conhecimento objetivo, e fornece o texto do qual nossos
27
HUSSERL, E. Logische Untersuchungen.
28
Que Dartigues (1973, p. 54) denominou “intencionalidade temática”.
70
pronuncia em nós, “não é nada que possa ser tornado mais claro por uma análise: a
filosofia só pode recolocá-la sob nosso olhar, oferecê-la à nossa constatação” (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 16).
Para Merleau-Ponty (1999, p. 16), foi por conta dessa ampliação da noção de
intencionalidade que a “compreensão” fenomenológica pode distinguir-se da “intelecção”
clássica, que se limita às “naturezas verdadeiras e imutáveis”, e a “fenomenologia pode
tornar-se uma fenomenologia de gênese”:
sentido”, “que é a única a nos ensinar, em última análise, aquilo que a doutrina ‘quer
dizer” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 17). Em conclusão, para Merleau-Ponty (1999, p. 17-18):
“Porque estamos no mundo, estamos condenados ao sentido, e não podemos fazer nada
nem dizer nada que não adquira um nome na história".
19)
É certo que se pode perguntar, questiona Merleau-Ponty (1999, p. 19), como tal
realização é possível “se ela não reencontrar nas coisas uma Razão preexistente”. É
porque:
passar à existência manifesta não começa por ser possível: ela é atual ou
real, assim como o mundo, do qual ela faz parte, e nenhuma hipótese
explicativa é mais clara do que o próprio ato pelo qual nós retomamos este
1999, p. 19)
Talvez poucos filósofos tenham sido tão citados e, ao mesmo tempo, tão pouco
estudados na Educação Física como Merleau-Ponty. “Eu sou meu corpo” – a frase
famosa ecoa como uma palavra de ordem que muitos repetem sem compreendê-la bem.
Quando Merleau-Ponty (1999, p. 207-208) afirma que “eu não estou diante de meu corpo,
estou em meu corpo, ou antes sou meu corpo”, está - de modo espetacularmente
sintético, é verdade -, diferenciando o “corpo objetivo” do “corpo próprio” ou “fenomenal”.
29
Esta última expressão Merleau-Ponty credita a G. Gusdorf.
74
corpo em repouso é apenas uma massa obscura”, o qual só percebemos “como um ser
preciso e identificável quando ele se move em direção a uma coisa, enquanto ele se
projeta intencionalmente para o exterior”, e aponta como é mais fácil reconhecer nossa
silhueta ou andar filmado do que nossa própria mão em uma fotografia. Portanto,
podemos afirmar, junto com Tamboeur (1979), que a corporeidade é reconhecida no
movimentar-se, mas não o contrário. Porque o ser humano movimenta-se não
exatamente em busca da transcendência, como entende Sérgio (1987)30, mas o
movimentar-se humano já é a própria transcendência, pois, a partir da atualidade da
percepção, envolvido por uma intencionalidade, movo-me em direção ao futuro, à criação
e à expressão. Para MERLEAU-PONTY (1999), perceber é, a partir do passado, que não
me é totalmente conhecido (corpo habitual), e apoiado na materialidade do presente
(corpo atual), lançar-se ao futuro, que não me é totalmente previsível (corpo perceptivo).
Portanto, o corpo perceptivo é virtual, nós percebemos como uma possibilidade futura;
sou sempre corpo atual, mas dirigido por hábitos que retomo de maneira expressiva pela
motricidade (MÜLLER, 2001), conforme figura 1:
FUTURO
CORPO PERCEPTIVO
motricidade espacial
PRESENTE ncia expressiva
ndê
sce criação
tran e
dad
nali
CORPO ATUAL ncio ra virtualidade
PASSADO inte moto
contingência
CORPO HABITUAL
hábitos motores materialidade
generalidade indeterminada
30
Em obra mais recente (SÉRGIO, 2003, p. 35) o entendimento de transcendência parece estar mais
apenas no sentido de busca da superação, pelo ser humano, de sua própria condição: “transcendência é o
processo normal de um ente cuja estrutura essencial é a consciência da incompletude e a vontade de
superá-la”.
75
Mas é equívoco supor que, com a distinção entre corpo objetivo e corpo próprio,
Merleau-Ponty superou a dicotomia entre corpo e alma, corpo e espírito etc.,
supostamente instituída por Descartes (de quem, na verdade, Husserl e Merleau-Ponty
são devedores) e resgatou a unidade do ser humano. O resultado da análise
fenomenológica do corpo próprio aponta para sua ambigüidade constitutiva, porque, se o
corpo não é um objeto, também “a consciência que tenho dele não é um pensamento,
quer dizer, não posso decompô-lo e recompô-lo para formar dele uma idéia clara”, e
portanto “sua unidade é sempre implícita e confusa”; está “enraizado na natureza no
próprio momento em que se transforma pela cultura, nunca fechado em si mesmo e
nunca ultrapassado” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 269).
Isso quer dizer que o corpo próprio é “elástico”, expande-se, produz efeitos. Ora, a
Educação Física tem mais considerado os efeitos do “meio” (cultural/ natural) sobre o
corpo, mas a fenomenologia merleau-pontyana indica que deveria também ocupar-se dos
“efeitos” do corpo sobre o meio: sobre as coisas e os outros. Por exemplo, crianças e
jovens imitam os gestos dos craques do futebol ou do basquete que vêem na televisão; tal
evidencia não apenas o poder de influência das mídias enquanto aparato tecnológico,
mas também o poder de expansão do corpo próprio, que possui uma “natureza
enigmática”, pois “o vemos secretar em si mesmo um ‘sentido’ que não lhe vem de parte
alguma, projetá-lo em sua circunvizinhança material e comunicá-lo aos outros sujeitos
encarnados” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 267).
76
Contudo, entendemos que o gesto não expressa significações, tal como aparece
em Sérgio (1986), como se as significações existissem a priori no interior do sujeito e
fossem exteriorizadas pelos gestos. Embora, comenta Merleau-Ponty (1999, p. 267),
sempre se tenha observado que o gesto ou a fala transfiguravam o corpo, contentava-se
77
experimentação controlada com o propósito de criar um novo tipo de chute mais eficiente
para atingir o objetivo do futebol (“fazer gols”), mas, segundo o próprio jogador, decorreu
do fato de estar com o calcanhar machucado, o que o obrigou a chutar apoiado na ponta
dos pés, criando involuntariamente uma nova mecânica do chute. Quer dizer, ele não
“pensou”, não refletiu antecipadamente sobre como chutar a bola nessa nova situação
corporal que a contusão lhe impôs, mas o corpo organizou a ação motora
espontaneamente, intuitivamente. Ora, isso é exatamente o que se chama
intencionalidade operante, que tem a ver com os meios que o corpo oferece naturalmente,
atualizando hábitos (passado) na percepção presente, em proveito de uma nova
significação (futuro), por isso a temporalidade, ao lado da espacialidade, é categoria
central na fenomenologia. Esta é uma vivência do corpo próprio, na qual:
significações vividas que caminha para seu equilíbrio. Por vezes forma-se
vão ao encontro de uma significação mais rica que até então estava
Para Merleau-Ponty (1999, p. 16-17), foi por conta dessa ampliação da noção de
intencionalidade que a fenomenologia pode tornar-se “uma fenomenologia da gênese do
sentido”:
31
O “Se”, do Se movimentar, como escolhemos traduzir a expressão alemã “Sich-bewegen” refere-se à
‘próprio”, por isso outra tradução possível seria “movimento próprio”, que é, aliás, a opção presente em
Merleau-Ponty (2000, p. 232).
82
Por outro lado, não é preciso conhecer biomecânica para nadar e encontrar, nessa
vivência, significações existenciais. Todavia, é preciso reconhecer que muitos resultados
dos estudos da biomecânica ou da aprendizagem motora fixaram-se como aquisições
culturais às quais pode recorrer um “professor” de natação ou de futebol; não há problema
nisso, apenas ocorre que a intencionalidade originária que guiou estes estudos, no mundo
da vida, foi esquecida.
Ora, a Educação Física cientificizada quer inverter esta relação, afirmando que a
aprendizagem motora, a biomecânica, a fisiologia etc. é que devem prescrever
orientações às práticas pedagógicas, como se pudessem, todas elas e cada uma delas,
dar conta dos sentidos/intencionalidades possíveis aos sujeitos envolvidos. Nem mesmo o
recurso às Ciências Humanas/Sociais é bastante, pois elas também tratam do corpo
objetivado, o que quer dizer, do corpo atual, o que podemos “ver”, “congelado” em um
dado espaço/tempo. Um bom exemplo são os estudos de imagens de corpos presentes
32
Segundo Thiele (1990), Husserl caracterizada o “Lebenswelt” como um “estilo global” que diferencia as
pessoas no cotidiano de mundos especiais ou do próprio ambiente em que vivem; o “Lebenswelt”
representa, assim, a “redução” fenomenológica do mundo cotidiano e, ao mesmo, tempo, um horizonte não
tematizado de todo indivíduo.
85
O dilema de que a Educação Física não deve tornar-se um discurso sobre a cultura
corporal de movimento, mas uma ação pedagógica com ela, apontado por Betti (1994), e
corroborada por Bracht (1999), persegue como um fantasma a teoria crítica da Educação
Física, mas não poderá ser facilmente resolvido, pois se trata de uma ambigüidade
inerente à Educação Física como disciplina escolar.
Tal ambigüidade, porém, poderá ser melhor compreendida pela diferenciação entre
significação existencial (que se refere aos vividos intuitivos, pré-reflexivos, nos quais, o
sentido equivale à existência) e significação conceitual (que agrega outros sentidos, na
medida em que é um saber intersubjetivo), pois é a esta última que se refere a
abordagem culturalista da Educação Física, quando pretende a “apropriação crítica da
cultura corporal de movimento” (BETTI, 1994), ou que a Educação Física deve avançar do
fazer corporal para um saber sobre o movimentar-se do ser humano, o qual deve ser
transmitido aos alunos (BRACHT, 1999). Mas não se pode falar sobre o movimento
próprio (“Se movimentar”) por meio do próprio movimento, apenas por meio da linguagem
das ciências ou da filosofia, o que será sempre uma expressão segunda, uma
representação intelectual, necessária embora para que se estabeleçam significações
culturais sobre o movimento (quer dizer, para constituir um saber intersubjetivo), as quais
também contribuem para constituir e renovar a “cultura de movimento” ou “cultura corporal
de movimento”.
nelas mesmas, e não nas ciências ou nas “filosofias prontas e acabadas” (HUSSERL,
1955 apud DARTIGUES, 1973, p. 20), daí a necessidade do retorno às coisas mesmas ou
próprias, conforme propugnado pela fenomenologia, sem o que continuaremos a separar
“teoria” e “prática”, “vivido” e “pensado”.
Ocorre porém que, como tudo é vivência, oculta-se a dimensão axiológica que
inexoravelmente apresenta-se nos fenômenos educacionais. Educar exige tomar partido,
faz surgir as possibilidades de escolha – os valores (ABBAGNANO, 2000). Ademais,
permanece na fenomenologia merleau-pontyana um resíduo de “não-sentido”, algo
33
Não confundir com “subjetivismo”.
89
34
Observação que devo ao Prof. Dr. Pierre Normando Gomes-da-Silva, a quem agradeço.
PARTE III
91
1 INTRODUÇÃO
Tal é possível, no nosso entendimento, pela Semiótica, a qual, por sua vez possui
fundamentos na fenomenologia, por permitir a passagem dos processos representativos
do âmbito do fenomenológico para uma esfera propriamente interpretativa, como entende
Ferrara (2004 p. 6), na qual “a experiência interativa supera sua opacidade para revelar
sua semiose e seus interpretantes”. Ou seja, clama-se pela passagem da descrição à
92
1
PEIRCE, C.S. Collected papers, 7.527
2
PEIRCE, C.S. Collected papers, 1.426
93
coisas não são o que queremos que sejam nem, tampouco, são
experiência direta, não mediatizada. Parece que algo reage contra nós,
que consiste na '... ação mútua entre duas coisas sem considerar qualquer
3
PEIRCE, C.S. Collected papers , 1.306
4
PEIRCE, C.S. Collected papers, 7.532 e 538
94
Qualquer coisa pode vir a ser um signo, desde que se estabeleça a relação entre
três elementos: o Representamen (um sentimento, uma sensação, um certo som, um
certo gesto etc.), o Objeto (aquilo que o signo re-presenta) e o Interpretante (a relação de
“equivalência” criada entre os dois elementos anteriores por uma mente interpretadora).
Para Peirce (1990, p. 46):
Para que algo possa ser Signo, deve representar alguma outra coisa, denominada
seu Objeto, que pode ser, segundo o autor (1990, p. 46) “um objeto perceptível, ou
apenas imaginável, ou mesmo inimaginável, num certo sentido”. Assim o autor o
exemplifica:
[...] a palavra “cabo”, que é um Signo, não é imaginável, pois não é essa
que entra pelo mar” e terceira, quando se refere à “parte por onde se
Representamen/Signo
Objeto Interpretante
Da mesma forma, um mero gesto como estalar os dedos (ou abrir os braços, ou
unir a ponta do indicador à ponta do polegar, formando um círculo e estendendo os
outros dedos) pode gerar diferentes significações para diferentes intérpretes. Quer dizer,
diferentes intérpretes vão estabelecer diferentes relações interpretativas entre o signo e
seu objeto.
Vale observar que não se pode, de maneira alguma, confundir interpretante com
intérprete: este, refere-se ao ser capaz de produzir aquele: o interpretante não se refere à
pessoa, mas ao signo/pensamento interpretante. Segundo Ferrara (1981, p.57), "O
interpretante não é certamente o intérprete, é uma operação ativa na medida em que faz
um objeto tornar-se signo e atuando nesta operação se torna ele mesmo interpretante”.
O I
1981, p. 57)
Todo código é uma linguagem, mas nem toda linguagem é um código. O que isso
significa?
âmbito da cultura (caso do esporte). Sob esse aspecto, a perspectiva semiótica em que
nos apoiamos pode levar a outras questões:
5
Observe-se os radicais: quali (de “qualidade”), e leg (de “lei”)
100
poema ? dança?
melodia / palavras?
S gesto
um gesto
S
o sentimento
alegria / melancolia ? I
tristeza / paz ? O
S um azul
O I
6
PEIRCE, C.S. Collected papers, 1.426.
101
4 CONCLUSÃO
não seja mero reprodutor de movimentos estereotipados, e para que se abra espaço para
o novo?
exemplo, tanto pelos outros alunos quanto pelo professor – e não apenas aquelas
“enformadas” pelos códigos já institucionalizados. Este signo novo pode deflagrar novas
“leituras”, novas semioses gestuais imprevistas (1os., 2os. e 3os.) que permitem o fluxo da
criatividade acionado pelos diferentes repertórios de cada indivíduo. Podemos assim falar
em expressão própria de cada aluno.
7
“Aprendizagem” é entendida como um “processo de aquisição de conceitos e de modificação de
condutas” (IBRI, 1992, p. 9)
104
PARTE IV
106
De um ponto de vista mais amplo, podemos dizer que, tanto a semiótica peirceana,
como a fenomenologia merleau-pontyana, indicam à Educação Física a importância de
considerar o que está aquém e além da cultura; acresce-se ainda a ambigüidade
apontada pela fenomenologia da percepção, que situa a condição humana em um lugar
indecidível entre a natureza e a cultura.
8
O “argumento” é um dos tipos de signos categorizados por Peirce (1990).
107
Portanto, a Educação Física não mais pode ser concebida como intervenção, palavra que
denota intenção autoritária9, mas inter-mediação, inter-locução10, inter-pretação11 (não na
concepção hermenêutica, mas como relações interpretativas).
É nesses termos que teríamos que repensar a Didática da Educação Física (e não
metodologias do ensino, que buscam controlar as semioses), de modo não restrito à
Escola, pois em todos os contextos do Se movimentar há produção de signos e de
relações interpretantes. Na Educação Física escolar apresenta-se de modo mais
específico a questão do repertório dos alunos, pois é tarefa da Escola ampliá-lo, o que
amplia também as possibilidades de estabelecer novas relações interpretantes.
9
Segundo Houaiss (2001), “intervir” possui as seguintes acepções: ingerir-se (em matéria, questão etc.),
com a intenção de influir sobre o seu desenvolvimento; interpor sua autoridade, usar de seu poder de
controle.
10
Segundo Houaiss (2001), “interlocução” é: diálogo; interrupção de um discurso provocada pelo falar de
novo interlocutor.
11
Segundo Heller (2003) “interpretação” provém do latim inter-petras, (“entre as pedras”), o que para nós
significa: é preciso buscar o que está “entre” as “pedras” e não o que está obviamente “nas” “pedras”; quer
dizer, não se trata de interpretação do ou sobre o aluno ou o professor, mas das relações que se
estabelecem entre eles.
12
O que se relaciona à técnica da “variação imaginária” ou “variação eidética” concebida por Husserl, qual
seja, o processo que consiste em imaginar todas as variações que um objeto tomados por modelo é
susceptível de sofrer; o invariante identificado através das diferenças define a essência dos objetos da
mesma espécie, sem o que seriam impensáveis (DARTIGUES, 1973).
108
apenas quando ocorre a dissociação entre sentido e existência, por meio da fala falada, é
que emerge a cultura, quer dizer sentidos culturais.
13
Peirce (1974) abandona os termos “pragmatismo” e “pragmatista”, em favor de “pragmaticismo” e
“pragmaticista” por entender que suas concepções originais foram distorcidos por seus seguidores, em
especial William James.
109
REFERÊNCIAS
110
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mídia. 2a ed. São Paulo: Annablume, 1999. (Coleção E)
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45, 1994.
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(Coleção Estudos, 79)
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Paulo: Editora Unesp, 1995. (Biblioteca Básica)
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2001. 1 CD-ROM
KUNZ, E. Educação física: ensino & mudanças. Ijuí: Editora Unijuí, 1991.
112
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(Coleção Ensaios, 139)
THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de
comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.