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CORPO, MOTRICIDADE E CULTURA: A FUNDAÇÃO PEDAGÓGICA DA EDUCAÇÃO FÍSICA SOB UMA


PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA E SEMIÓTICA

Research · March 2006

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Mauro Betti
São Paulo State University
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CORPO, MOTRICIDADE E CULTURA: A FUNDAÇÃO PEDAGÓGICA
DA EDUCAÇÃO FÍSICA SOB UMA PERSPECTIVA
FENOMENOLÓGICA E SEMIÓTICA

Mauro Betti

Relatório de Pesquisa apresentado ao


Departamento de Educação Física da
Faculdade de Ciências
Unesp- Campus de Bauru
Supervisor: Prof. Dr .Elenor Kunz

2006
SUMÁRIO

PARTE I

1 ESCOVAR AS PALAVRAS .................................................................... 2

1.1 Introdução ............................................................................................. 2

1.2 Crítica ao idealismo .............................................................................. 3

1.3 A resposta culturalista ......................................................................... 6

2 CORPO, MOTRICIDADE E CULTURA: O ENFOQUE FENOMENO-


LÓGICO E ANTROPOLÓGICO DE MANUEL SÉRGIO................... 11

3 O “SE-MOVIMENTAR” COMO DIÁLOGO ENTRE SER HUMANO E


MUNDO: O ENFOQUE FENOMENOLÓGICO DE ELENOR KUNZ ..... 17

4 OBJETIVO .............................................................................................. 21

PARTE II

1 O QUE É A FENOMENOLOGIA? .......................................................... 23

1.1 Introdução ............................................................................................. 23

1.2 A fenomenologia de E. Husserl ............................................................ 24

1.3 Aproximações à fenomenologia husserliana: a Teoria da Forma


(‘Gestalt’) .............................................................................................. 55

1.4 A fenomenologia na perspectiva de Merleau-Ponty ............................. 59

2 AS POSSIBILIDADES DA FENOMENOLOGIA DE M. MERLEAU-


PONTY E A EDUCAÇÃO FÍSICA ......................................................... 73

2.1 Corpo e motricidade ............................................................................ 73

2.2 Gesto, expressão e significação ........................................................... 75

2.3 A Educação Física como “possibilidade expressiva” ........................... 80

2.4 Conclusão: significações conceituais e significações existenciais ....... 86

2.5 Limites da fenomenologia para a Educação Física .............................. 88


PARTE III

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................... 91

2 CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA SEMIÓTICA PEIRCEANA ............ 92

2.1 O pensamento é signo ......................................................................... 96

2.2 Linguagem e código ............................................................................ 97

3 IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ....................................... 98

4 CONCLUSÃO ......................................................................................... 101

PARTE IV

CONCLUSÕES: DESAFIOS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ...................... 106

REFERÊNCIAS ............................................................................................ 109


PARTE I
2

1 ESCOVAR AS PALAVRAS

ESCOVA
(...). Logo pensei de escovar palavra. Porque eu havia lido
em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores
antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que
estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia
também que as palavras possuem no corpo muitas
oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas.
Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro
esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo
que ainda bígrafos.
(Manoel de Barros. In: Memórias inventadas - a infância.
São Paulo: Planeta, 2003)

1.1 Introdução

“Educação Física”: “educação” e “física”, duas palavras que isoladamente talvez


não despertem as questões que sua junção fizeram emergir, na qual “física” aparece
como uma adjetivação de “educação”. Conforme se aprende com Houaiss (2001),
“educação”, provém etimologicamente do latim educatìo,ónis ('ação de criar, de nutrir;
cultura, cultivo'); como adjetivo, “física” ou “físico” provém do latim physìcus,i (‘físico’,
‘naturalista’) e do grego phusikós,ê,ón (relativo à natureza ou ao seu estudo), de phúsis
('natureza').

Na medida em que o entendimento (contemporâneo) de “educação”


inexoravelmente o liga à “cultura”1, e “física” à “natureza”, impossível não apontar a
tensão entre cultura e natureza que presidiu o surgimento da “educação física” no mundo
ocidental, no século XIX, conforme apontam estudos históricos, e que, ao longo do
tempo, percorre o entendimento com que a área tem pensado a si própria.

“Física” e “físico” são também adjetivações correntes na literatura especializada e


no jargão profissional da área, sob as formas “atividade física” e “exercício físico”.
“Atividade física” pode ser definida como qualquer movimento produzido pela musculatura

1
Já que “cultura”, conforme Abbagnano (2000, p. 228), indica, em sentido especialmente usado por
sociólogos e antropólogos, “o conjunto dos modos de vida criados, adquiridos e transmitidos de uma
geração a outra”.
3

esquelética que resulte em energia expandida (WORLD HEALTH ORGANIZATION,


1978). Esta unidade de medida permite a criação de categorias de atividade física
identificadas por segmentos da vida diária nos quais são realizados determinadas tarefas;
por exemplo, pode-se medir a quantidade de energia gasta durante o sono, no trabalho,
nas horas de estudo ou nas atividades de lazer. Já “exercício físico” pode ser classificado
como uma sub-categoria de atividade física, e caracteriza-se por ser previamente
planejado, estruturado, repetitivo e proposto para alcançar diversos objetivos, de aptidão
física/condicionamento físico, ou tratamento e reabilitação de condições mórbidas
específicas (CASPERSEN; POWELL; CHRISTENSON, 1985).

Por sua vez, a “Educação Física”, embora envolva atividade física e exercício,
parece necessitar de um estatuto epistemológico próprio, cujos contornos foram
amplamente debatidos na literatura nacional e internacional, em especial nas décadas de
1980 e 1990 (e. g. BROOKS, 1981; ELLIS, 1998; LAWSON, 1984; LOVISOLO, 1996;
NEWELL,1990; SÉRGIO, 1989; TANI, 1996). Tal debate levou à polarização em torno de
dois entendimentos: a matriz científica, que concebe a Educação Física como área de
conhecimento científico, e a matriz pedagógica, que a concebe como prática pedagógica,
com características de uma prática social de intervenção (BETTI, 1996). Tal dicotomia
agregou as ambigüidades com que a Educação Física tem pensado a si mesma: teoria ou
prática?; corporal/físico/motor ou cognitivo?; natureza ou cultura?

Se a fenomenologia indaga “de que são ciências as ciências?” (DARTIGUES,


1973), por analogia poderíamos perguntar “de que a “educação física é educação?”.
Parece-nos, que essa é uma questão substancialmente diversa daquela que se
notabilizou na década de 1980, no bojo da “crise de identidade” da área: “o que é
Educação Física?”, e que desencadeou muitas respostas idealistas, como se vê em
Oliveira (1983), Betti (1983) e Mariz de Oliveira (1988).

1.2 Crítica ao idealismo

O idealismo pode ser definido como uma categoria filosófica de sentido


gnosiológico introduzida por Kant (citado por ABBAGNANO, 2000): “Idealismo é a teoria
4

que declara que os objetos existem fora do espaço ou simplesmente que sua existência é
duvidosa e indemonstrável, ou falsa e impossível” (p. 523). Já Hegel, no contexto da
filosofia romântica que se originou na Alemanha pós-kantiana, esclarece que: “A
proposição de que o finito é o ideal constitui o idealismo. O idealismo da filosofia consiste
apenas nisto: em não reconhecer o finito como verdadeiro ser” (citado por
ABBAGANANO, 2000, p. 524).

Para Abbagnano (2000), houve duas derivações do idealismo romântico na filosofia


contemporânea, que mantiveram a principal característica do idealismo hegeliano: a não
realidade do finito e a sua resolução no infinito. Mas enquanto o idealismo italiano
procurou estabelecer essa identidade por uma via positiva, mostrando, na estrutura do
finito, na sua racionalidade intrínseca e necessária, a presença e a realidade do infinito, o
idealismo anglo-americano tratou de demonstrar a identidade pela via negativa,
mostrando “que o finito, devido à sua intrínseca irracionalidade, não é real, ou é real na
medida em que revela e manifesta o infinito” (p. 524).

Em obra que se tornou referência histórica da chamada ‘crise da Educação Física’


na década de 1980, Oliveira (1983) questiona se a Educação Física é esporte, ginástica,
medicina, cultura, jogo, esporte, política ou ciência. Em sua resposta identificam-se
elementos do idealismo. Conclui que “Educação Física é Educação”, pois enquanto
processo individual, desenvolve potencialidades humanas, e enquanto fenômeno social,
“ajuda este homem a estabelecer relações com o grupo a que pertence” (p. 105). A
ginástica, o jogo, o esporte e a dança seriam “instrumentos para cumprir os seus
objetivos” (p. 86), mas adverte sobre os cuidados necessários em como desenvolver
essas atividades, pois a “simples prática dessas atividades não caracteriza a existência
da Educação Física” (p. 104). O esporte, por exemplo, não pode transformar-se em fim
em si mesmo, com a super-valorização do desempenho esportivo; a ginástica tem de
respeitar os níveis de maturidade motora, a capacidade de rendimento e os interesses
individuais, e não tornar-se uma prática massificada, e assim por diante. Já o jogo seria
um meio privilegiado, pois:
5

[...] é o elemento da cultura que contém maiores possibilidades para

sociabilizar (tornar sociável) e também socializar (estender vantagens

particulares ao grupo) [...] oferece reais oportunidades para o exercício da

democracia [...] permite a emergência de valores genuínos, em lugar

daqueles que, normalmente, são impostos. (OLIVEIRA, 1983, p. 99)

A ‘falha idealista’, por assim dizer, presente em Betti (1983) consiste em que o
esporte e o jogo (poder-se-ia acrescentar dança, ginástica) não são aceitos em si como
conteúdos/meios da Educação Física, pois seriam dotados de uma certa irracionalidade
(por exemplo, o esporte pode ser prejudicial à saúde, determinado jogo pode não alcançar
suficiente intensidade de movimentação corporal) face a um conceito de Educação Física
que é pré-determinado. Tratar-se-ia, então, de descobrir, no ‘finito’ (esporte, jogo, dança
etc.), a presença do ‘infinito’ (a Educação Física). Portanto, para a concepção idealista de
Educação Física, o esporte, o jogo, a dança etc. devem ser adaptados para se tornarem
conteúdos/meios da Educação Física.

No limite desse raciocínio, poder-se-ia não encontrar qualquer ‘Educação Física’ no


‘real’ – quer dizer, nas práticas corporais de movimento efetivamente encontradas em
uma dada cultura, num dado momento histórico. Não é outro o resultado encontrado em
Mariz de Oliveira (1988): se a Educação Física diferencia-se, conceitualmente falando, do
esporte, jogo ou dança, então os cursos de formação profissional devem ser também
diferenciados. Como já denunciamos em Betti (1992a) a conseqüência de tal posição
idealista negativa é o esvaziamento da concretude cultural da Educação Física

Betti (1983) tem a seu favor a existência implícita de um ‘projeto educativo’ para a
Educação Física, que toma como base o fenômeno lúdico, o qual, todavia, acaba por
funcionar também como uma idéia-norma, assim como a idéia de saúde envolvida, pois o
jogo e o esporte devem adaptar-se a elas. Embora tal adaptação faça parte do projeto
educativo, ela não se faria a partir das condições de existência real do esporte, da
ginástica etc., mas do que eles deveriam ser. Em suma, aplica-se o diagnóstico de Fourez
(1995): “as idéias conduzem o mundo” (p. 240): é idealismo.
6

1.3 A resposta culturalista

A possibilidade da Educação Física constituir-se em uma disciplina científica nos


moldes tradicionais, tal como a Física ou Biologia, por exemplo, foi fortemente criticada
por autores brasileiros nos últimos anos (e.g. BRACHT, 1999; LOVISOLO, 1998). Betti
(2003), após ampla revisão da literatura sobre a questão, concluiu que a Educação Física
não é uma disciplina científica, mas uma área de conhecimento e intervenção profissional-
pedagógica que expressa projetos sociais e historicamente condicionados, os quais, por
sua vez, levam à construção dos objetos da pesquisa científica, e esta se exercita e
transforma constantemente no seio da comunidade acadêmica. Na qualidade de prática
pedagógica, o projeto da Educação Física é definido pelo autor como a apropriação crítica
da cultura corporal de movimento.

Bracht (1999) realizou significativo avanço para a compreensão das relações entre
a matriz científica e a matriz pedagógica, ao perceber a Educação Física como campo
acadêmico responsável pela teorização da prática pedagógica que tematiza
manifestações da cultura corporal de movimento. O objeto da Educação Física é o saber
específico de que trata essa prática, e a definição desse objeto/saber específico define o
tipo de conhecimento buscado para sua fundamentação, e este por sua vez determina a
função atribuída à Educação Física. Haveria três entendimentos desse saber próprio da
Educação Física:

(i) atividades físicas ou atividades físico-esportivas e recreativas – a função da Educação


Física é o desenvolvimento da aptidão física, e as referências teórico-conceituais provém
das ciências biológicas;

(ii) movimento humano, movimento corporal ou motricidade – o objetivo da Educação


Física é o desenvolvimento integral do educando; o referencial provém da aprendizagem
motora e desenvolvimento motor, e, em certo sentido, da antropologia filosófica;

(iii) cultura corporal, cultura de movimento ou cultura corporal de movimento –


movimentar-se é forma de comunicação com o mundo, constituinte e construtora de
7

cultura, mas também possibilitada por ela; é linguagem, que na qualidade de cultura
habita o mundo do simbólico.

Já Betti (1994), ao considerar os objetivos pedagógicos da Educação Física em


uma perspectiva semiótica, alerta que a Educação Física não deve transformar-se em um
discurso sobre a cultura corporal de movimento, “mas numa ação pedagógica com ela [...]
sempre impregnada da corporeidade do sentir e do relacionar-se; a dimensão cognitiva
(crítica) [...] far-se-á sempre sobre este substrato corporal, mas só é possível através da
linguagem” (p. 42). Para Daolio (2002, 2004), tais palavras parecem querer enfatizar que,
além da ação pedagógica da Educação Física referir-se ao universo teórico abstrato
próprio de uma área de conhecimento (um saber sobre algo) e próprio do simbolismo
inerente às ações humanas, existiria um saber corporal da Educação Física, expresso na
dimensão do sentir e do relacionar-se. Tal saber é o que Betti (1994, p. 42) denomina
saber orgânico “que não pode ser alcançado pelo puro pensamento [...] não é um saber
que se esgota num discurso sobre o corpo/movimento”. Então, o papel da Educação
Física, para o autor, seria auxiliar a mediação simbólica desse saber orgânico para a
consciência do sujeito que se movimento, por intermédio da língua e de outros signos
não-verbais, levando-o à autonomia no usufruto da cultura corporal de movimento.

Bracht (1999) ao abordar a mesma questão, esclarece que, quando a teoria crítica
da Educação Física propõe a cultura corporal de movimento como objeto, para além de
um “fazer corporal” há implicado um saber sobre o movimentar-se humano que deve ser
transmitido ao aluno, e logo surge o ‘pré-conceito’ que se está propondo transformar a
Educação Física num discurso sobre o movimento, retirando-o do centro da ação
pedagógica da mesma.

Tais teorizações refletem a proficuidade do debate acadêmico levado a cabo na


Educação Física brasileira desde meados da década de 1980, na qual o conceito de
“cultura” emergiu como fundamental. Daolio (2002, 2004) demonstrou como o Ser
Humano é concebido como um “ser cultural” em alguns autores (BRACHT, 1999; KUNZ,
1991, 2001; BETTI, 1992b, 1994), nos quais o conceito de “cultura” aparece de modo
diverso, embora com denominadores comuns, tais como: a importância da dimensão
8

simbólica no comportamento humano; o fato de a Educação Física contemplar, ao mesmo


tempo, um saber fazer e um saber sobre esse fazer; a necessidade de equilíbrio entre a
identidade pessoal e a identidade social; a consideração da subjetividade; a tarefa de
mediação simbólica da Educação Física; e o sentido/significado do mover-se. Alerta,
todavia, o autor, para a armadilha que o uso do conceito de “cultura” pode esconder à
Educação Física: se o estudo da “cultura” não for aprofundado, poderá “engessar” a
própria Educação Física. Parece o caso da crítica feita à Soares et al. (1992) que, ao se
referirem à cultura corporal como patrimônio da humanidade, enfatizam a dimensão do
acúmulo de conhecimentos, das produções humanas, mas “não avançam na idéia de que
os conhecimentos produzidos pelo ser humano ao longo da sua história vão sendo
atualizados e ressignificados na dinâmica cotidiana de suas vidas” (DAOLIO, 2004, p. 31-
32).

Com base em C. Geertz, Daolio (2002) conclui que “a visão semiótica de cultura
como conjunto de padrões de significados” permite “considerar todos os homens como
agentes de cultura” e “ampliar o conceito de cultura para um processo simbólico
absolutamente dinâmico” (p. 91).

1.3.1. Limites da resposta culturalista

A “resposta culturalista”, todavia, parece-nos voltar-se para a “cultura” supondo


resolvida a ambigüidade inerente à Educação Física como área profissional-pedagógica:
sua especificidade repousa no corpo/motricidade (linguagem “corporal”), mas os
conhecimentos científicos e filosóficos só podem ser expressos simbolicamente pela
língua ou pela linguagem matemática. Daí o dilema da abordagem culturalista: quer
valorizar o discurso científico e filosófico com a cultura corporal de movimento, mas corre
o risco de perder a especificidade da Educação Física (sua dimensão profissional-
pedagógica), se se torna um discurso sobre a cultura corporal de movimento, algo que a
Sociologia ou a Psicologia também podem fazer.

Pouco claras ficam também as relações entre “corpo/motricidade” e “cultura”; faz-


se um “corte” ou uma “ampliação” em direção à cultura, como se, agora, esta última é que
9

pudesse “explicar” o corpo/motricidade, como se a cultura fosse o fundamento, o ponto de


partida. Ora, se por um lado tal concepção permite avançar, na medida em que a cultura
não é mais vista como “produto”, ela passa a ser vista, contudo, como “causa” das
manifestações corporais. Nada existe senão sob o jugo da cultura, a qual explica-se a si
própria.

Mesmo que se concorde com tal posição, resta ainda perguntar de onde vem o
novo. Porque a cultura se transforma? Porque ela é dinâmica? Seria suficiente responder
que todos os seres humanos são agentes de cultura, porque “enredam-se” diferentemente
na “teia de significados” da cultura, e portanto “re-significam” a cultura, conforme a
interpretação corrente que se faz na Educação Física? Ora, quando se fala em “re-
significação”, está pressuposta uma “significação” inicial... De onde ela vem? E novas
significações, seriam possíveis? Como elas se produzem?

O apelo à Semiótica torna-se inevitável, e já está presente em Daolio (2002, 2004),


que atribui à concepção simbólica de cultura presente em C. Geertz uma suposta e
decisiva influência da Semiótica de Charles S. Peirce. Contudo, não temos verificado
esforços na Educação Física dirigidos à explicitação e/ou aprofundamento de uma
abordagem semiótica, muito menos a partir da perspectiva peirciana.

Tal limitação fica evidente ao examinarmos a definição de cultura que Thompson


(1995) apreende em C. Geertz: “padrões de significados incorporados nas formas
simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e objetos significativos de vários
tipos, em virtude dos quais os indivíduos comunicam-se entre si e partilham suas
experiências, concepções e crenças” (p. 176).

A suposta perspectiva semiótica está restrita à categoria dos “símbolos”, quando a


semiótica peirciana fundamenta-se na tricotomia de signos e relações interpretantes,
sendo o símbolo apenas uma delas, e refere-se exatamente a signos que se
“cristalizaram” (mesmo que temporariamente) como cultura – por isso são “padrões” de
significados, que permitem a comunicação e com-partilhamento entre os seres humanos.
Mas cabe indagar, então: onde estariam os signos que não se “incorporaram” como
“formas simbólicas”, conforme a definição apresentada? De onde vem os significados que
10

se incorporam nas “formas simbólicas”? Há então um processo anterior de produção de


significados?

Na perspectiva da Semiótica da Cultura, Baitello Jr (1999), por exemplo, evidenciou


como o jogo/brinquedo, na qualidade de atividade não direcionada a um fim utilitário, é um
dos nascedouros da cultura humana e alimento para sua ampliação, ao lado do sonho,
dos desvios psicopatológicos e das situações de êxtase/euforia.

A dificuldade da abordagem culturalista da Educação Física em avançar na


Educação Física infantil é exemplo que permite evidenciar seus limites.
Compreenderemos melhor o que isso quer dizer por comparação com outra área. Na
recém-batizada “nova sociologia da infância, Prout (s.d.), por exemplo, referiu-se ao fato
de que a sociologia moderna, que se vale de dicotomias categoriais, neglicenciou a
criança justamente porque ela parecer desafiar a dicotomia natureza “versus” cultura.
Quer dizer, a criança é tanto produtora de cultura como alguém a quem se transmite
cultura; a criança é tanto “ser” como “devir”. É também por aí que a infância aponta uma
dificuldade à abordagem culturalista com a Educação Física infantil: a apropriação crítica
da cultura corporal de movimento pode ser vista como finalidade última, mas não como
ponto de partida.

Não é por outro motivo que Kunz (1991, 2001) refere-se ao “mundo do movimento”
ou “cultura de movimento” das crianças, no qual ainda há a possibilidade de um “se-
movimentar” mais espontâneo, ainda não totalmente colonizado pelos “objetivações
culturais” provenientes em especial das mídias e das ciências que se ocupam do estudo
do movimento humano. Contudo, a “cultura de movimento” a que se refere Kunz não é
similar à “cultura corporal” ou “cultura corporal de movimento” tais como aparecem em
Betti (1994) e Bracht (1999), e como Daolio (2002, 2004) os retoma. A noção de cultura
em Kunz guarda relação com o “mundo da vida” de que fala a fenomenologia2; de fato, a

2
Segundo Thiele (1990), Husserl caracteriza o “mundo da vida” (“Lebenswelt”) como um “estilo global” que
diferencia as pessoas no cotidiano de mundos especiais ou do próprio ambiente em que vivem; o
“Lebenswelt” representa, assim, a “redução” fenomenológica do mundo cotidiano e, ao mesmo, tempo, um
horizonte não tematizado de todo indivíduo.
11

expressão alemã “Bewegungwelt” de se vale Kunz (1991, 2001) seria melhor traduzida
por “mundo do movimento”, para diferenciar da perspectiva antropo-sociológica que
inspirou aqueles outros autores.

Ora, certamente não será coincidência que também na “nova sociologia da


infância” tenha sido apontada a necessidade de um enfoque fenomenológico para auxiliar
a superação da visão “adultocêntrica” que impera nos estudos sobre a infância (JENKS,
2005)

Parece-nos necessário, portanto, resgatar e aprofundar, na teorização da


Educação Física, o corpo e o movimento/motricidade como seus fundamentos primeiros,
para a seguir compreender as relações com a cultura, tarefa que, embora não totalmente
ignorada, foi posta em plano secundário pelo discurso culturalista. Assim, importa rever
autores que, no âmbito da Educação Física, trataram da questão, para em seguida
delimitar o problema a ser investigado.

2 CORPO, MOTRICIDADE E CULTURA: O ENFOQUE FENOMENOLÓGICO E


ANTROPOLÓGICO DE MANUEL SÉRGIO

Sérgio (1987) tratou das relações entre corpo, motricidade e cultura, apontando
implicações para a Educação Física. O autor trata do tema do corpo valendo-se do
conceito de corpo-próprio e de motricidade, presentes na fenomenologia de M. Merleau-
Ponty, para quem, a fenomenologia ocupa-se do estudo das essências, e estas devem
ser situadas na existência, pois só se pode compreender o Ser Humano a partir da sua
facticidade. Na fenomenologia é também central a noção de intencionalidade, já que toda
consciência é consciência de alguém ou de alguma coisa – a consciência não é um
horizonte de possibilidades ilimitadas, mas um projeto do Mundo. Desde que haja
consciência, “é preciso que algo aconteça de que ela seja consciência” (MERLEAU-
PONTY, 19453, apud SÉRGIO, 1987, p. 87). A consciência só pode ser entendida como
ato significante que dá e encontra sentido, e portanto desemboca na existência,

3
MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception.
12

identificando-se com ela; só a partir da intencionalidade existencial é que podemos


descobrir o Ser Humano e o Mundo.

E, para Merleau-Ponty, as essências, o sentido e a significação do Mundo e das


coisas só podem ser alcançadas por meio da percepção, “pois a visão da essência é uma
repetição intelectual, elucidação ou explicitação do que tem sido concretamente
experimentado” (MERLEAU-PONTY, 19534 apud SÉRGIO, 1987, p. 87). A percepção é
um ato vinculante entre um corpo e um objeto, perceber é “tornar presente qualquer coisa,
com a ajuda do corpo” (MERLEAU-PONTY, 19475 apud SERGIO, 1987, p. 88). Então, o
corpo é princípio estruturante e veículo do ser-no-Mundo (MERLEAU-PONTY, 1991), pois
“eu não estou diante do meu corpo, estou no meu corpo, ou melhor, sou o meu corpo”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 207-208) – “e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a
um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 122).

Para Sérgio (1987, p. 90), a consciência, impregnada de intencionalidade e o corpo


dotado de movimento, ao integrarem-se em uma unidade humana, “formam uma
significação existencial, onde é dador e nos é dado um relacionamento dialéctico entre o
organismo, o pensamento e o Mundo que está-aí”. O corpo possui uma intencionalidade
dinâmica, dirigida aos homens e à coisas, com os quais compartilha o Mundo. O
movimento intencional do corpo é diferente do simples movimento no espaço, e se dirige
ao caminho e abertura para as coisas e para os outros, possui uma intencionalidade
original e um modo de referir-se ao objeto, distinto do conhecimento. Nosso primeiro
contato com o Mundo que está-aí, como realidade pré-objetiva e pré-reflexiva, é sentido e
vivido, antes de ser conhecido. O nosso corpo, como ser dotado de movimento em
direção ao Mundo, é condição de possibilidade, inteiramente nova, original e poderosa até
no próprio mundo da cultura. O Ser Humano, espírito encarnado ou carne animada por
um espírito, realiza-se e compreende-se na e desde a experiência, e todo conhecimento
da consciência encarnada é projetado e dirigido ininterruptamente às coisas e ao mundo,

4
MERLEAU-PONTY, M. Les sciences de l’homme et la phenomenology.
5
MERLEAU-PONTY, M. Le primat de la perception et ses consequences philosophiques.
13

e nunca a objetos sem espaço e sem tempo. A consciência é um ato de significação, que
encontra a sua possibilidade na própria existência, ao se orientar para algo – o objeto
intencional. Daí Merleau-Ponty (19456 apud SÉRGIO, 1987, p. 91) conceber a motricidade
como “intencionalidade original”, como intencionalidade operante que se articula
originariamente como um mundo denominado fundo ou horizonte.

A motricidade – prossegue Sérgio (1987) na sua interpretação de M. Merleau-Ponty


- , mais do que um movimento, é um status ontológico que permite uma correspondência
súbita, pré-consciente, às solicitações do mundo que a condiciona. A motricidade diz-nos
que o mundo está dentro de nós, antes de qualquer tematização, porque o homem é
portador de sentido – daí a sua intencionalidade operante, ou motricidade. Mas não se
trata de apriorirmo ou inatismo, porque o Ser Humano e Mundo formam um sistema: “O
corpo-próprio está no mundo como o coração no organismo, mantém continuamente em
vida o espetáculo visível, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema”
(MERLEAU-PONTY, 19457 apud SÉRGIO, 1987, p. 92) . Se o corpo é “unidade
expressiva”, só o poderemos compreender como intencionalidade operante. Já se
quisermos entender o Mundo, “será preciso despertar a experiência do mundo tal como
ele nos aparece, enquanto somos-do-mundo e percebemos o mundo, através do nosso
corpo” (MERLEAU-PONTY, 19458, apud SÉRGIO, 1987, p.92). Assim se o “corpo está
feito para explorar o mundo”, então a percepção desperta entre ele e o mundo uma
familiaridade primordial” (MERLEAU-PONTY 19699 apud SERGIO, 1987, p. 92).

No entendimento de Sérgio (1987, p. 92-93), a motricidade deve ser interpretada


“como um corpo que se pro-põe e se ex-põe a outros corpos, com os quais com-põe o
mundo interpessoal e comunitário”. A motricidade é a evidência de uma dialéctica
incessante, corpo-outro, corpo-mundo, corpo-coisa, onde jorra e se actualiza o sentido”;
tal remete “à impossibilidade de traçar no mundo humano, uma fronteira entre a natureza
e a cultura, como se assinala que a própria motricidade (característica do corpo-próprio) já

6
MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception.
7
Idem.
8
Idem.
9
MERLEAU-PONTY, M. La prose du monde.
14

está prenhe de significação e, mais do que ponte entre o implícito e o explícito, ela põe-se
em ação e, como tal, é sentido.

Em resumo, para Sérgio (1987), M. Merleau-Ponty quer reabilitar o sensível,


desvelar a possibilidade de instituir uma fenomenologia da pensabilidade em ato, da
radical originalidade onde cessam os velhos antagonismos sensível-inteligível, natural-
cultural. Em conseqüência, a motricidade é intencionalidade operante: partindo do corpo-
próprio, ela suscita e sublinha não haver significado que não se refira a um corpo, nem
sentido que o corpo não realize e manifeste.

Ainda para Sérgio (1987, p. 91), em conclusão: “O Homem, em si e para si, está
dotado de uma orientação de uma capacidade de intercâmbio com o Mundo e toda sua
motricidade é uma procura intencional do Mundo que o rodeia, para realizar, para realizar-
se”.

Contudo, Sérgio (1987) aponta os limites de Merleau-Ponty que, de tanto enfatizar


o sensível, pois “tudo se baseia [...] na milagrosa multiplicação do sensível” (MERLEAU-
PONTY, 196010 apud SÉRGIO, 1987, p. 24) não atenta para a cultura. Ora, para estudar o
sensível (o pré-consciente, como fundo ou horizonte de toda reflexão) é necessário
tematizá-lo, e por conseguinte aparece implícita a cultura. Para Cantista11 (1984 apud
SERGIO, 1987, p. 94), “o trânsito da percepção ao conceito, da zona da pré-constituição
à da constituição, foi algo que Merleau-Ponty jamais conseguiu explicar”.

Além disso, como o Ser Humano não possui alto grau de especialização orgânica,
é a cultura que, como mecanismo de adaptação, enriquece as capacidades adaptativas
do organismo; é por meio da cultura que o Ser Humano recebe a experiência do passado
e aprende a preparar o futuro e a preparar-se para ele. Esta tese Sérgio foi buscar na
antropologia filosófica de Gehlen (1973) para quem o Homem é um ser práxico (quer
dizer, transformador) porque é um ser carente, e daí a motricidade humana se
caracterizar por um número infindo de movimentos não-animais; ainda para esse autor,

10
MERLEAU-PONTY, M. Signes.
11
CANTISTA, M.J. Racionalismo em crise.
15

sem a cultura, as disposições naturais e hereditárias não podem funcionar – por isso o
Homem é um ser cultural.

Então, o conceito de motricidade para Sérgio (1987, p.109-110) supõe que: (i) o
Ser Humano é um ser não-especializado e carente, aberto ao mundo, aos outros e à
transcendência; (ii) o ser humano é um ser práxico, que procura encontrar (e produzir) o
que lhe permite a unidade e a realização; (iii) como ser práxico, é agente e criador de
cultura, “projeto originário de todo sentido”. Por isso a motricidade humana constitui
processo adaptativo de um ser não-especializado, cujo ritmo evolutivo é lento; constitui
processo evolutivo de um ser com predisposição à interioridade e à cultura, que integra,
progressivamente, padrões de comportamento necessários à criação e manutenção de
um meio artificial necessário à sua sobrevivência e desenvolvimento; e constitui processo
criativo de um ser, “em que as práxis lúdicas, agonísticas, simbólicas e produtivas
traduzem a vontade e as condições de o Homem se realizar como sujeito, ou seja, como
autor responsável dos seus actos”.

É importante destacar que a motricidade revela o homem como agente e criador de


cultura. Se o ser humano possui enorme variedade e multiplicidade de formas de
movimento, é porque sua escala de movimentos não está especializada; a ilimitada
plasticidade de formas de movimento e das formas de ação explica-se pela abundância
de fatos ante os quais se encontra colocado o ser humano como um ser aberto ao mundo.
O caráter incompleto da capacidade cinética humana estabelece uma diferença qualitativa
em relação aos movimentos dos animais, rapidamente estruturados, mas dotados de um
finalismo monótono e sem horizontes. Os movimentos do homem não estão
desenvolvidos porque contém uma infinidade de variações possíveis, que o homem
desenvolve no trato com os objetos que o rodeiam. A motricidade de um sujeito humano
resolve-se em um projeto, isto é, movimenta-se desde a consciência de um ser carente
até a função estrutural e estruturante do Presente, “donde mana, incontido e perene, o
Futuro” (SÉRGIO, 1987, p. 109).

A necessidade de encontrar soluções sempre novas, diante das infindas


contradições da vida, torna a motricidade de uma riqueza imprevisível e opulenta. Ao
16

passo que o animal, envolvido com necessidades predominantemente fisiológicas,


realiza-se plenamente com sua satisfação, o ser humano, ser práxico, ruma sempre em
direção à transcendência, infinitos possíveis apresentam-se a ele, mesmo que estejam
satisfeitas suas necessidades. Transcendência é “ascenção do Homem ao mais humano”,
e a motricidade “garante o dinamismo revelador e comunicativo da procura e conquista de
mais ser; o Homem é “um apelo à transcendência, transcendência que nunca tem e
sempre almeja; daí o seu sentimento de carência, daí o radical fundante da motricidade”
(SÉRGIO, 1987, p. 155).

A carência de especialização motora do ser humano exige a cultura como exercício


criador e de aprendizagem porque, na medida em que não é dotado de órgãos
superespecializados, o ser humano “precisa [...] da chamada educação física e dá à sua
motricidade, mais do que um meio de luta pela vida, mais do que um esforço de
adaptação da Natureza às suas necessidades imediatas, a expressão dos anseios do
homem ao mais ser” (SÉRGIO, 1987, p. 143). Como ser de cultura, a motricidade do
homem - movimento jamais acabado e sempre a recomeçar, porque nela há mais do que
movimento - visa o desenvolvimento não só do indivíduo, mas da espécie humana, já que
a motricidade acentua a vida de relação.

Por isso, então, a motricidade é definida como “processo adaptativo, evolutivo e


criativo de um ser práxico, carente dos outros, do mundo e da transcendência” (SÉRGIO,
1987, p 156).

Daí o homem ser predisposto a uma abundância incalculável de condutas motoras,


e conduta motora é “o comportamento motor enquanto portador de significação, de
intencionalidade, de consciência clara e expressa e onde há vida, vivência e convivência”
(SÉRGIO, 1987, p. 154). Uma conduta motora é uma significação vivida e, portanto,
única, irrepetível, instransferível, que se expressa pela linguagem corporal ou motora, que
é a” matéria prima” da motricidade. Se “toda a linguagem é expressão e comunicação”, a
linguagem corporal, todavia, “remonta às verdades primigénias e fundamentais do ser
humano” é uma “experiência original, em dois sentidos: como experiência radical das
origens do ser e experiência que inaugura realmente uma realidade nova”, porque
17

“nenhum saber lhe pré-existe” (SÉRGIO, 1987, p. 144). A linguagem corporal “é uma
surpresa do ser, porque apresenta uma densidade própria e se inicia por um ato de
vontade criadora” (SÉRGIO, 1987, p. 144).

Já a cultura motora é entendida por Sérgio (1987, p.155) como “nível de


humanização, alcançado pela assimilação das condutas motoras, sistemática e livremente
adquirida, através da instrução e da educação, e também pode entender-se como o
conjunto de comportamentos representativos de uma determinada sociedade ou grupo
natural”.

3. O “SE-MOVIMENTAR” COMO DIÁLOGO ENTRE SER HUMANO E MUNDO:


O ENFOQUE FENOMENOLÓGICO DE ELENOR KUNZ

Kunz (1991, 2001) critica a visão que concebe o movimento humano apenas como
fenômeno físico, que pode ser reconhecido e esclarecido de forma simples e objetiva,
independente do próprio Ser Humano que o realiza. Em contraposição, considera que
nenhum movimento pode ser estudado isoladamente dos objetos ou do ser que se-
movimenta, em determinada situação e sob determinadas condições. O movimento,
assim entendido é então uma “ação em que o sujeito, pelo seu ‘se-movimentar’, se
introduz no Mundo de forma dinâmica e através desta ação percebe e realiza os
sentidos/significados em e para o seu meio” (TREBELS, 1983 apud KUNZ, 1991, p. 163).
De acordo com Tamboer (1985 apud KUNZ, 2001), o movimento humano implica sempre
uma “compreensão-de-mundo-pela-ação”, nosso mundo é sempre um mundo vivido, e o
movimento é sempre uma conduta para algo, e passa a ser visto como um diálogo entre o
Homem e Mundo. Como em Merleau-Ponty (1999), aparece aí uma unidade primordial de
Ser Humano e Mundo, na qual os sujeitos do movimento e o mundo dos movimentos se
envolvem de tal forma que o mundo e os objetos se tornam um ‘para algo’, ou seja, ‘para
a realização de algo’ (correr, nadar, jogar etc.) – isto é, há uma inerente relacionalidade
intencional do sujeito em seu se-movimentar.
18

Assim, o que Kunz (1991, 2001) propõe é ampliar a concepção do se-movimentar


enquanto acontecimento fenomenológico relacional, ou melhor, como relação intencional
de ações significativas. Por isso, há estreita relação entre a intencionalidade do ser
humano e o sentido/significado de sua conduta; o conjunto de significados que dão
sentido às ações humanas é construído na relação Ser Humano-Mundo.

Para Kunz (2001), quando a Educação Física não considera a especificidade do


movimento humano, tende a instrumentalizá-lo para o funcionamento específico e
preestabelecido, com o intuito do rendimento. Todavia, quando se consideram os
interesses inerentes ao movimento humano, que implicam em um livre, espontâneo e
prazeroso expressar-se pelo movimento, ou quando o movimento adquire a forma de uma
linguagem que se expressa por signos outros que não os da linguagem-verbal, é possível
descobrir manifestações que se revelam por meio dessa linguagem do movimento,
enquanto diálogo de ser humano e mundo, e que são negligenciados pela educação e
especialmente pela Educação Física. O resgate dessa linguagem do movimento é que
poderia trazer novos valores pedagógicos para a Educação Física e assim auxiliar na
tarefa de legitimá-la enquanto prática pedagógica que contribui na formação da cidadania.

Tal entendimento leva Kunz (2001, p. 109) a tratar também do tema da


“subjetividade”, pois, embora as singularidades subjetivas não possam ser isoladas das
determinações do contexto histórico-social, percebe que em “determinadas vivências e
experiências subjetivas sempre há algo – mesmo que fantasioso – de totalmente
singular, de particular aquilo que só a pessoa vive ou percebe” (p. 109). O autor busca
apoio em Merleau-Ponty (1991), para afirmar que nossa subjetividade é objetivada na
nossa maneira de “habitar” o mundo, de tratá-lo, de interpretá-lo, e isto se manifesta em
diferentes estilos, diferentes modos de agir e sentir, no caminhar, no olhar, no falar etc. O
mundo, então, não é um “mundo em si”, mas é o mundo e todas as possibilidades do agir,
perceber ou sentir. A subjetividade constitui-se, assim, na nossa forma de conhecer o
mundo, no qual se incluem os objetos, a natureza , o outro e nós mesmos. Para Kunz
(2001) passa a existir um problema para a formação da subjetividade quando nossas
possibilidades de conhecer o mundo se restringem a um mundo já totalmente “colonizado”
19

pelas objetivações culturais da evolução científico-tecnológica do mundo moderno, que


tende a moldar e fabricar a subjetividade, e no qual “especialistas na produção de
conhecimentos produzem, também, desejos e interesses para a maioria de acordo com
os interesses de uma sociedade de consumo” (p. 110).

Nesse sentido, a linguagem adquire especial relevo na perspectiva adotada por


Kunz (2001), na medida em que a Educação/Educação Física Escolar deve buscar o
desenvolvimento da competência comunicativa, que possibilite ao aluno ler, interpretar e
criticar o fenômeno sociocultural do esporte. Para o desenvolvimento dessa competência
comunicativa, além da linguagem do movimento, é essencial a linguagem verbal, no
sentido de buscar o ultrapassamento da “fala comum” em direção ao discurso, o qual
deve possibilitar a expressão e compartilhamento das idéias, intenções e conhecimentos
de todos os alunos.

Nas teorizações de vertente fenomenológica, no âmbito da Educação Física,


levadas a cabo por Sérgio (1987) e Kunz (2001), é a linguagem que aparece, explícita ou
implicitamente, como categoria importante, por ser “elo” entre o
corpo/motricidade/movimento e a cultura.

Assim, em Sérgio (1987) a motricidade manifesta-se em condutas motoras (que


expressam significações, e portanto são linguagem), que podem ser assimiladas pela
cultura, em um dado contexto sócio-histórico. Então, o esporte, as ginásticas, a dança etc.
constituem algumas das formas culturais assumidas pela motricidade no âmbito da nossa
cultura – manifestações estas que guardam uma relação histórica com a cultura
profissional e a tradição pedagógica da Educação Física.

Em Kunz (2001) a competência comunicativa exige a linguagem (em especial a


verbal – quer dizer a língua), pela sua função de mediação simbólica, que permite o
esclarecimento das condicionantes histórico-sociais e técnico-culturais dos movimentos,
bem como a viabilização de mudanças na estrutura, no sentido e no significado dos
movimentos a serem ensinados, de acordo com os indivíduos e contextos envolvidos.
20

Urge, pois, aprofundar a compreensão do corpo e da motricidade como


fundamentos da Educação Física, entendida esta, em sentido amplo, como uma área
profissional-pedagógica, que realiza intervenções no âmbito da cultura corporal de
movimento. Estaria presente na fenomenologia de Merleau-Ponty (1999, 2000, 2002)
elementos que permitam construir a necessária fundamentação para tal empreitada?

Sob a perspectiva semiótica, Betti (1994) já apontou como questão crucial para a
Educação Física a problemática relação entre a teoria e a prática, na qual fica sempre
implícita a questão da linguagem. Para aquele autor, o recurso à Lingüistíca estruturalista
de F. Saussure e E. Benveniste, ao elegerem a língua como sistema de signos ideal,
acaba impondo maior distanciamento entre a teoria e prática, já que a primeira só pode
exprimir-se pela língua, ao passo que a prática da Educação Física é corporal e, portanto,
“as teorias da Educação Física estariam condenadas a falar sobre o corpo e o
movimento, sem jamais atingi-los” (BETTI, 1994, p. 28).

A Semiótica pode ser genericamente definida como “ciência que tem por objeto de
investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos
modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de
significado e sentido” (SANTAELLA, 1983, p. 15), e portanto poderia tratar de todas as
formas de linguagem não-verbal, inclusive a linguagem corporal.

As possibilidades promissoras da Semiótica ou Teoria Geral dos Signos ou Lógica


da Linguagem, de C. S. Peirce foram apontadas introdutoriamente também por Betti
(1994). Peirce (1990, p. 46) advoga um conceito amplo de signo: “aquilo que, sob certo
aspecto ou modo, representa algo para alguém”. Então, na medida em que o conceito de
signo é estendido pela semiótica peirceana para qualquer fenômeno dotado de
sentido/significação, e, ao entender o processo de produção de signos (Linguagem) como
a raiz da produção do conhecimento, a Semiótica de Peirce permitiria "ler"/interpretar os
signos envolvidos na Educação Física – tanto os “corporais”, como os “verbais”.

Como afirma Pignatari (1979), a semiótica peirciana possibilita estabelecer ligações


entre códigos diferentes, entre linguagens diversas; permite ainda “ler” o mundo não-
21

verbal (um quadro, uma dança, um filme) e ensina a “ler” o mundo verbal em ligação com
o mundo não-verbal.

Poderia então a Semiótica de Peirce (1974, 1990) fundamentar a função de


mediação da linguagem na Educação Física, sem estabelecer dicotomias ou hierarquias
entre a linguagem “verbal” e a linguagem “corporal”?

Embora freqüentemente qualificada como “pragmatista”, vale esclarecer que os


estudos de Ibri (1992) e Santaella (2001, 2004) evidenciaram as bases fenomenológicas
da semiótica peirceana.

4 OBJETIVO

Assim, o objetivo desse estudo é buscar, na fenomenologia de M. Merleau-Ponty e


na Semiótica de C.S. Peirce, os elementos teóricos que permitam estabelecer o corpo, a
motricidade e a cultura como fundamentos pedagógicos da Educação Física.
PARTE II
23

1. O QUE É A FENOMENOLOGIA?

1.1 Introdução

“O que é a fenomenologia?” Para Merleau-Ponty (1999) esta é uma pergunta


válida, pois está longe de ser resolvida. A etimologia da palavra é clara: fenomenologia é
o estudo ou a ciência do fenômeno, mas, como adverte Dartigues (1973), se tudo o que
aparece é fenômeno, ela seria ilimitada, não se esgotaria tão cedo a lista dos autores a
quem se poderia intitular “fenomenólogo”, e não se poderia proibir a ninguém pretender-
se tal qualificação, desde que sua atitude tenha coerência com a etimologia do termo,
quer dizer, conforme P. Ricouer1 (1953 apud DARTIGUES, 1973, p. 11), “que trate da
maneira de aparecer do que quer que seja [...] que descreva aparências ou aparições”.

A fenomenologia, como “método”, tem a ambição de fazer com que algo (o


“fenômeno”) se mostre desde si. Contudo, reconhecemos a necessidade de partilhar com
Dartigues (1973, p. 13) a preocupação em fugir de uma “fenomenologia banal”, pois não
basta descrever um objeto, qualquer que seja o ponto de vista do interesse de sua
descrição, e denominá-la “fenomenológica”. Na mesma direção, P. Ricouer2 (1953 apud
DARTIGUES, 1973, p. 13) denuncia que a fenomenologia banal limita-se a “uma

apresentação popular de opiniões, de convicções, sem tomar partido a seu respeito”.

Assim, partilhando também com Dartigues (1973, p. 14) a imagem das primeiras
obras de Edmund Husserl (1859-1938) como a “fonte” da fenomenologia, da qual nasceu
“um rio de múltiplos braços que se cruzam sem se reunir e sem desembocar no mesmo
estuário”, iremos aqui, nessa apresentação bastante introdutória da fenomenologia, e
tendo vista os propósitos específicos do nosso estudo, limitar a exploração ao próprio
Dartigues (1973), didático expositor dos fundamentos da fenomenologia e seus
desdobramentos, e ao conhecido prefácio da obra “Fenomenologia da Percepção”, de
Merleau-Ponty (1999), herdeiro este, pelo menos até certo ponto, da tradição inaugurada

1
RICOUER, P. Sur la phénoménologie.
2
Idem.
24

por E. Husserl. Estamos cientes também, e é necessário advertir inicialmente, que “a


fenomenologia só é acessível a um método fenomenológico” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.
2), daí a necessidade de expor, mesmo que sumariamente, alguns conceitos peculiares à

fenomenologia, que não encontram paralelo em outros sistemas filosóficos.

1.2 A fenomenologia de E. Husserl

Ao analisar o percurso da história da fenomenologia, desde o “Novo Órganon”


(1764), de J. H. Lambert, no qual aparece pela primeira vez este termo, passando por
Kant e Hegel, até por fim chegar a E. Husserl, Dartigues (1973, p. 12-13) conclui que é
este último o verdadeiro iniciador desse “movimento de pensamento que traz o nome de
fenomenologia”, por ter revestido de conteúdo novo uma palavra já antiga:

enquanto a fenomenologia de tipo kantiano concebe o ser como o que

limita a pretensão do fenômeno ao mesmo tempo em que ele próprio

permanece fora de alcance, enquanto inversamente, na fenomenologia

hegeliana, o fenômeno é reabsorvido num conhecimento sistemático do

ser, a fenomenologia husserliana se propõe como fazendo ela própria às

vezes de ontologia, pois, segundo Husserl, o sentido do ser e o do

fenômeno não podem ser dissociados.

Portanto, entende Dartigues (1973, p. 13), Husserl procura substituir “uma


fenomenologia limitada por uma ontologia impossível” (Kant), assim como “uma ontologia
que absorve e ultrapassa a fenomenologia” (Hegel), por “uma fenomenologia que
dispensa a ontologia como disciplina distinta, que seja, pois, à sua maneira, ontologia –
ciência do ser”. A esse respeito, novamente P. Ricoeur3 (1953 apud DARTIGUES, p. 13) é
invocado: “a fenomenologia nasceu no momento em que, colocando entre parênteses –
provisória ou definitivamente – a questão do ser, trata-se como um problema autônomo a
maneira de aparecer das coisas”; já a fenomenologia banal e diluída não percebe nem

3
Idem.
25

tematiza “o ato de nascimento que faz surgir o aparecer às custas do ser ou tendo como
fundo o ser”

Segundo Dartigues (1973), ao final do século XIX, dominado por um sentimento de


crise da cultura e de ceticismo quanto aos fundamentos e ao alcance da ciência, dado o
abalo da segurança do pensamento positivista, Husserl inspirou-se em Franz Brentano,
que, ao propor um novo método de conhecimento do psiquismo, distinguiu os fenômenos
psíquicos, que comportam uma intencionalidade, a visada de um objeto, dos fenômenos
físicos. Os fenômenos psíquicos poderiam ser percebidos e “o modo de percepção
original que deles temos constitui o seu conhecimento fundamental”, de onde vem a
fórmula, “que Husserl não esquecerá”: “Ninguém pode verdadeiramente duvidar que o
estado psíquico que em si mesmo percebe não existe e não existe tal como o percebe”
(DARTIGUES, 1973, p. 17).

Estaria aí, para Dartigues (1973, p. 17-18), “uma posição estratégica forte”, pois, se
é possível descrever o fenômeno tal como ele é, tal obedece às exigências do
positivismo, “que exclui todo conhecimento que não venha da experiência” e, por outro
lado, permite “aceder ao concreto e à vida que a ciência tinha tendência a esquecer”.

A exploração do campo da consciência e dos modos de relação ao objeto que os


seguidores de Brentano perseguirão, delimitaram o que se tornaria o campo de análise da
fenomenologia de Husserl. Mas ele se colocou outras questões, e buscou superar a mera
descrição dos fenômenos psíquicos: “é este ultrapassamento da psicologia descritiva que
Husserl realizará sob o nome de fenomenologia” (DARTIGUES, 1973, p. 18).

Merleau-Ponty (1999, p. 3) dirá a respeito da fenomenologia husserliana que ela é,


“antes de tudo, a desaprovação da ciência”. Como W. Dilthey4 já havia feito
anteriormente, Husserl condenava as ciências humanas ou ciências morais por terem
tornado seus os métodos das ciências da natureza, sem atentar para a diferença de
objetivos. Se a natureza só é acessível indiretamente, a partir dos fatos esparsos cuja
unidade e coerência são sempre hipotéticos, por outro lado a vida psíquica é um dado

4
DILTHEY, W. Idées.
26

imediato, que não exige reconstrução, “mas somente uma descrição” (DARTIGUES, 1973,
5
p. 18). Daí a famosa distinção estabelecida por Dilthey : “Nós explicamos a natureza,

compreendemos a vida psíquica [...]” (1947 apud DARTIGUES, 1973, p. 18).

Não pretendia Husserl, porém, depreciar os resultados obtidos pelas ciências


experimentais, mas alertar que “essas ciências não determinaram exatamente seu
objetivo e não sabem, pois, a que se referem os resultados obtidos”, e sobretudo, rejeitar
o naturalismo nelas presentes, pois não tendo destacado a especificidade de seu objeto e
tratando-o como se tratasse de um objeto físico, confundem a descoberta das causas
exteriores de um fenômeno com a natureza própria deste fenômeno” (DARTIGUES, 1973,
p. 19). Por isso Husserl6 (1955 apud DARTIGUES, 1973, p. 19) questionava como se

poderia “calcular sobre a sensação, a percepção, a memória, etc., sem ter previamente
elucidado o que quer dizer sensação, percepção, memória?”.

Segundo Dartigues (1973), se, por um lado, Husserl buscou salvar a lógica e a
atividade de pensamento da redução a que lhes submeteram as ciências empíricas,
também não desejou voltar às concepções filosóficas do passado, às filosofias “prontas e
acabadas”. A fenomenologia husserliana propõe uma “via média” entre essas duas
alternativas, ou seja, pensar os dados da experiência em sua totalidade, segundo a sua
natureza e nuanças – “e portanto sem jamais ultrapassá-los (...): Todo o fenômeno e nada
mais que o fenômeno” (DARTIGUES, 1973, p. 20). O postulado que funda tal
empreendimento é que:

o fenômeno está penetrado no pensamento, de logos, e que por sua vez o

logos se expõe e só se expõe no fenômeno [...]. Se o fenômeno não é

nada de construído, se é portanto acessível a todos, o pensamento

racional, o logos, deve sê-lo também e Husserl acaba então por conceber

uma filosofia nova que realizaria enfim o sonho de toda filosofia: tornar-se

uma ciência rigorosa. (DARTIGUES, 1973, p. 20)

5
Idem.
6
HUSSERL, E. La philosophie comme science rigoureuse.
27

O pensamento filosófico, então, deveria retornar às suas origens, tomando como


ponto de partida não as opiniões dos filósofos, mas a própria realidade: “Não convém que
impulsão filosófica surja das filosofias, mas das coisas e dos problemas” (HUSSERL7,
1955 apud DARTIGUES, 1973, p. 20).

1.2.1 O retorno às “coisas mesmas” ou “coisas próprias” e a intuição das essências

Entre a metafísica e as ciências positivas, Husserl propõe uma “terceira via” que,
“antes de todo raciocínio, nos colocaria no mesmo plano da realidade, ou [...] das “coisas
mesmas” (DARTIGUES, 1973, p. 21). Para tal, o discurso filosófico deve permanecer em
contato com a intuição originária, “fonte de direito para o conhecimento”, que Husserl
denomina “princípio dos princípios” (DARTIGUES, 1973, p. 21).

Mas, “voltar às coisas mesmas” (HUSSERL, 1961, apud DARTIGUES, 1973, p. 21)
não é limitar-se às impressões sensíveis, pois “se é verdade que os fenômenos se dão a
nós por intermédio dos sentidos”, eles se dão sempre como dotados de um sentido ou de
uma ‘essência’ [...] para além dos dados dos sentidos, a intuição será uma intuição da
essência ou do sentido” (DARTIGUES, 1973, p. 21). Dito de outra maneira: a intuição da
essência “condiciona o sentido do sensível” (DARTIGUES, 1973, p. 24).

Contudo, adverte Dartigues (1973, p. 21-22) que, se o fenômeno é lastrado de


pensamento, se é logos ao mesmo tempo que fenômeno, não se pode, então, “conceber
o fenômeno como uma película de impressões ou uma cortina atrás da qual se abrigaria o
mistérios das ‘coisas em si”, mas, ao contrário “o sentido de um fenômeno lhe é imanente
e pode ser percebido, de alguma maneira, por transparência”.

Segundo Dartigues (1973, p. 22), a essência responde à questão ‘o que é o que


é?’, a qual pode ser colocada a propósito de qualquer fenômeno e, “se não a colocamos,
é porque já estamos assegurados de sua essência ou porque pelo menos acreditamos
estar”. Husserl – prossegue Dartigues – gostava de exemplificar com a ‘IX Sinfonia’, de
Beethoven, que pode ser executada a partir de diversas partituras, regentes ou músicos

7
HUSSERL, E. Recherches logiques.
28

etc. Em qualquer caso poderei dizer que ouvi a ‘IX Sinfonia’, mas ela não se reduz a
nenhum desses casos, embora esteja presente neles. Por isso:

a essência da ‘IX Sinfonia’ persistiria mesmo se as partituras, orquestras e

ouvintes viessem a desaparecer para sempre. Ela persistiria, não como

uma realidade, como um fato, mas como uma pura possibilidade. Não

obstante, é essa pura possibilidade que me permite distingui-la de imediato

de toda outra sinfonia mesmo se o disco no qual eu a escuto está riscado

ou se a orquestra é ruim. Da mesma maneira, um menino trabalhando sem

compasso dirá que a forma vagamente oval que traçou em seu caderno é

um círculo. (DARTIGUES, 1973, p. 22)

Portanto, a intuição da essência é distinta da percepção do fato: “ela é a visão do


sentido ideal que atribuímos ao fato materialmente percebido e que o permite identificá-lo
[...] se a essência permite identificar um fenômeno, é porque ela é sempre idêntica a si
própria, não importando as circunstâncias contingentes de sua realização” (DARTIGUES,
1973, p. 22).

Dartigues (1973) nos explica que há uma essência de cada objeto que percebemos
(árvore, mesa, casa etc.) e das qualidades que atribuímos a eles: verde, rugoso,
confortável etc. Adverte, contudo, que a essência não é a coisa ou a qualidade, mas o ser
da coisa ou da qualidade, isto é, um puro possível para cuja definição a existência não
entra em conta, e portanto:

poderá haver tantas essências quantas significações nosso espírito é

capaz de produzir; isto é, tantas quantos objetos nossa percepção, nossa

memória, nossa imaginação, nosso pensamento possam dar.

Independentes da experiência sensível, muito embora se dando através

dela, as essências constituem como que a armadura inteligível do ser,

tendo sua estrutura e suas leis próprias. Elas são a racionalidade imanente

do ser, o sentido a priori no qual deve entrar todo mundo real ou possível e
29

fora do qual nada se pode produzir, já que a idéia mesma de produção ou

de acontecimento é uma essência. (DARTIGUES, 1973, p. 23)

A primeira tarefa da fenomenologia, então, é elucidar este ‘puro reino das


essências’, alcançar uma compreensão a priori do ser, independentemente da experiência
efetiva, sem “por isso abandonar a intuição, já que a intuição das essências é intuição de
possibilidades puras”; tal possibilita, também, “um conhecimento a priori dos diferentes
domínios aos quais se aplicam as ciências experimentais, portanto saber de antemão o
que é o objeto de que vão tratar”; e assim pode-se conceber “que elas sejam precedidas e
acompanhadas em seu trabalho por ciências de essências ou ‘ciências eidéticas’
(DARTIGUES, 1973, p. 23-24).

1.2.2 Intencionalidade

Onde residiriam as essências, pergunta-se Dartigues (1973) Para manter-se fiel ao


princípio de ‘retorno às coisas mesmas ou próprias’, não se poderia imaginar, como
Platão, um lugar celeste onde residiriam as idéias ou essências, o que seria recair na
especulação metafísica. Para Husserl, a resposta é: na consciência. Mas, para não
reduzi-las a simples fenômenos psíquicos, tributários da psicologia, Husserl recorreu à
noção de intencionalidade ‘(intentio’), que Fraz Brentano já havia tomado à filosofia
medieval.

O princípio da intencionalidade – detalha Dartigues (1973) – é que a consciência é


sempre ‘consciência de alguma coisa’, ela só é consciência enquanto dirigida-para um
objeto; por sua vez, o objeto só é definido em sua relação com a consciência, ele é
sempre objeto-para-um-sujeito. Pode-se, então, falar de uma existência intencional do
objeto na consciência, o que não quer dizer “que o objeto está contido na consciência
como que dentro de uma caixa, mas que só tem se sentido de objeto para uma
consciência, que sua essência é sempre o termo de uma visada de significação e que
sem essa visada não se poderia falar de objeto, nem portanto de uma essência de objeto”
(DARTIGUES, 1973, p. 24-25). Em outras palavras:
30

a questão ‘O que é o que é?”, que visa o sentido objetivo ou essência,

remete por sua vez à questão: “O que se quer dizer?”, dirigida à

consciência. Isso significa que as essências não têm existência alguma

fora do ato de consciência que as visa e do modo sob o qual ela os

apreende na intuição. Eis por que a fenomenologia, em vez de ser a

contemplação de um universo estático de essências eternas, vai se tornar

a análise do dinamismo do espírito que dá aos objetos do mundo seu

sentido. (DARTIGUES, 1973, p. 25)

Dartigues (1973) exemplifica a análise intencional de um objeto da percepção


sensível, conforme Husserl8. Suponhamos que nosso olhar se volte com sentimento de
prazer para uma macieira em flor num jardim. O senso comum colocaria primeiro a
existência da macieira no jardim, depois, colocaria em relação a consciência do sujeito
pensante com essa macieira real, o que produziria na consciência uma macieira
representada, correspondente à macieira real. Todavia, haveria então duas macieiras,
uma no jardim, outra na consciência, e como poderiam essas duas macieiras representar
uma só? Seria preciso imaginar, com Platão, uma terceira macieira para conceber a
identidade das duas outras? Ao contrário, a análise intencional não parte da macieira em-
si nem da pretensa macieira representada, das quais nada sabemos, mas das ‘coisas
mesmas’, “isto é, da macieira-enquanto-percebida, do ato de percpeção-da-macieira-no-
jardim que é a vivência original a partir da qual chegamos a conceber uma macieira ou
macieira representada” (DARTIGUES, 1973, p. 26). Assim:

Se o objeto é sempre objeto-para-uma-consciência, ele não será jamais

objeto em si, mas objeto percebido, ou objeto-pensado, rememorado,

imaginado, etc. [...]. Consciência e objeto não são, com efeito, duas

entidades separadas na natureza que se trataria, em seguida, de por em

relação, mas consciência e objeto se definem respectivamente a partir

desta correlação que lhes é, de algum modo, co-original. Se a consciência

8
HUSSERL, E. Idées directrizes pour une phenomenology.
31

é sempre “consciência de alguma coisa” e se o objeto é sempre “objeto

para a consciência”, é inconcebível que possamos sair dessa correlação,

já que, fora dela, não haveria nem consciência nem objeto. (DARTIGUES,

1973, p. 26)

É exatamente a elucidação da essência dessa correlação “na qual não somente


aparece tal ou qual objeto, mas se estende o mundo inteiro”, que delimita o campo de
análise da fenomenologia, conclui Dartigues (1973, p. 26). Husserl batizou de nóese a
atividade da consciência, e de nóema o objeto constituído por essa atividade,
“entendendo-se que se trata do mesmo campo de análise no qual a consciência aparece
como se projetando para fora de si própria em direção ao seu objeto e o objeto como se
referindo sempre aos atos da consciência (DARTIGUES, 1973, p. 26). A correlação sujeito-
objeto se dá na intuição originária da vivência de consciência, e o estudo dessa
correlação consiste na análise descritiva do campo da consciência, o que conduziu
Husserl a definir a fenomenologia como ‘a ciência descritiva das essências da consciência
e de seus atos’, mas não se trata de uma psicologia descritiva, “pois a consciência
contém muito mais que a si própria” (DARTIGUES, 1973, p. 26).

Mas, retomando o exemplo da macieira, Dartigues (1973, p. 27) afirma que, como
ninguém sabe o que são a macieira em si e sua miniatura representada, “seria melhor não
levá-las em conta, ou, como diz Husserl, ‘reduzi-las”.

1.2.3 A redução fenomenológica

A redução fenomenológica é a “colocação entre parênteses da realidade tal como a


concebe o senso comum, isto é, como existindo em si, independentemente de todo ato de
consciência” (DARTIGUES, 1973, p. 27). Essa concepção do senso comum ou atitude
natural, como a denomina Husserl é tanto a do cientista como a do homem comum, e
consiste “em pensar que o sujeito está no mundo como em algo que o contém, ou como
uma coisa entre outras coisas [...] e outros seres vivos ou conscientes, e até mesmo entre
idéias, que encontrou ‘já aí’ independentemente de si próprio” (DARTIGUES, 1973, p. 27). A
análise intencional conduz à distinção entre sujeito e objeto, ou consciência e mundo em
32

termos de “uma correlação mais original que a dualidade sujeito-objeto e sua tradução em
interior-exterior, já que é no próprio interior da correlação que se opera a separação entre
interior e exterior” (DARTIGUES, 1973, p. 27). Mas essa dimensão primordial só é acessada
se a consciência “suspende sua crença na realidade do mundo exterior para se colocar,
ela mesma, como consciência transcendental, condição de aparição desse mundo e
doadora de seu sentido” (DARTIGUES, 1973, p. 27-28), uma nova atitude que Husserl
chamou de atitude fenomenológica.

Em conseqüência, a consciência não é mais uma parte do mundo, “mas o lugar de


seu desdobramento no campo original da intencionalidade” (DARTIGUES, 1973, p. 28).
Portanto, o mundo não é em primeiro lugar e em si mesmo o que explicam as filosofias
especulativas ou as ciências da natureza, “já que essas explicações são posteriores à
abertura do campo primordial, mas sim que ele é em primeiro lugar o que aparece à
consciência e a ela se dá na evidência irrecusável de suas vivência” (DARTIGUES, 1973, p.
28).

Graças à intencionalidade, analisa Dartigues (1973, p. 28), o ‘resíduo’ da redução


fenomenológica não é só o ‘eu penso’ cartesiano, “mas a conexão ou correlação entre o
eu penso e seu objeto de pensamento, não o ego cogito, mas o ego cogito cogitatum”.

A tarefa efetiva da fenomenologia, então, entende Dartigues (1973, p. 29) é


“analisar as vivências intencionais da consciência para perceber como aí se produz o
sentido dos fenômenos, o sentido desse fenômeno global que se chama mundo”; trata-se
“de distender o tecido da consciência e do mundo para fazer aparecer os seus fios, que
são de uma extraordinária complexidade e de uma arânea fineza”. Por isso, não
apareciam na atitude natural, que concebe a consciência “como contida no mundo – caso
do realismo ingênuo – a menos que concebesse o mundo como contido na consciência –
caso do idealismo” (DARTIGUES, 1973, p. 29).

A estrutura da vivência, explica Dartigues (1973), em decorrência do princípio da


intencionalidade comporta um paradoxo, pois contém elementos reais e irreais. Os
elementos reais, no caso da percepção de uma árvore, por exemplo, são: a abertura da
consciência para o objeto (que se poderia dar também pela imaginação, ideação,
33

lembrança etc.), e a matéria (hylé), isto é, a seqüência de sensações de pardo, verde,


rugoso etc., que se compõem em forma que perceberei como pardo do tronco, verde da
folhagem etc.Mas haverá um elemento “irreal” do lado-objeto da consciência (seu nóema),
pois a árvore, cujos componentes do ser-percebido estão todos na consciência, não está
ela própria na consciência. A estrutura intencional, ou noético-noemática é faz descobrir
na consciência ou no sujeito (e somente aí), um objeto que o sujeito não poderia
evidentemente conter. Se perguntamos onde está a árvore, é porque não abandonamos a
atitude natural e acreditamos em uma árvore que existiria em si, independentemente da
atividade perceptiva da consciência, quando na realidade:

a árvore percebida não existe senão enquanto percebida, isto é, como pólo

sintético dessa atividade perceptiva cuja estrutura isolamos. A árvore não é

outra coisa senão a unidade ideal de todos esses ‘momentos sensíveis’

que são o rugoso, o pardo, o verde, todos esses ‘esboços’ que se

modificam à medida que me aproximo da árvore ou ando em volta dela,

que se encadeiam e convergem na certeza de que aí, no jardim, há uma

árvore. Esta certeza ou ‘crença’, como dirá Husserl, não é uma qualidade

da árvore, mas um caráter do ‘nóema’ da percepção. (DARTIGUES, 1973,

p. 30)

Desse modo, a realidade, a exterioridade, a existência do objeto percebido e o seu


próprio caráter de objeto dependem das estruturas da consciência intencional, “graças às
quais a consciência ingênua vê o objeto como o vê – portanto aqui como real, exterior,
existente – mas sem saber que é graças a essas estruturas que ela o vê assim
(DARTIGUES, 1973, p. 30). Como o objeto e o próprio mundo dependem assim dessas

estruturas, Husserl dirá que eles são constituídos, e a fenomenologia torna-se então o
estudo da constituição do mundo na consciência, ou fenomenologia constitutiva; constituir
quer dizer “remontar pela intuição até a origem na consciência do sentido de tudo que é,
origem absoluta já que nenhuma outra origem que tenha um sentido pode anteceder a
origem do sentido” (DARTIGUES, 1973, p. 30). Assim, a fenomenologia pode alcançar tudo
34

o que tratam as metafísicas tradicionais, “mas sem jamais abandonar o solo da


experiência, já que a referência à intuição é permanente” (DARTIGUES, 1973, p. 30). E se
por “positivo” se entende “o que é susceptível de ser captado de maneira originária,
somos nós que somos os verdadeiros positivistas”, arremata Husserl9 (1950 apud
DARTIGUES, 1973, p. 31).

Se, destaca Dartigues (1973) a redução fenomenológica fez aparecer como resíduo
(que não pode ser reduzido), a vivência da consciência, esta é vivida por um sujeito, ao
qual se referem os objetos do mundo e de onde provém as significações. A análise da
consciência, voltando-se para o seu lado-sujeito (noético) torna-se então análise da vida
do sujeito no qual e para o qual se constitui o sentido do mundo, sujeito este que pode ser
considerado uma totalidade fechada sobre si mesma e da qual não poderíamos sair. A
fenomenologia se tornaria assim “exegese de si-próprio”, ciência do Eu ou Egologia.
Dartigues (1973, p. 39) aponta aí o perigo de se cair na introspecção, ou seja, “fazer
passar por objetiva a descrição de um estado psíquico pelo próprio sujeito que o vive”,
pois esses dados internos “não são suscpetíveis de nenhum controle objetivo, não
comportam nenhum critério que pudesse premunir o sujeito contra a ilusão”. O erro que
se comete aí é não realizar a ‘redução eidética’; é confundir “a essência do fenômeno com
seu estado de consciência atual, com o fato psíquico através do qual sua essência se dá”,
é considerar a consciência “como se ela não fosse intencional [...] e não tivesse, por
essência, o poder de visar através de seus conteúdos particulares uma verdade universal,
por definição comum a todos e a todos acessível”.

Todavia, o “eu” de que se fala não é o “eu psíquico” ou “mundano”, que é de fato
uma parte ou região do mundo, com suas vivências concretas particulares, mas “a
essência geral do Eu, distinguindo-se do eu psíquico como a essência de um fenômeno
se distingue de suas manifestações contingentes”, que Husserl denominou “Sujeito ou Eu
transcendental”, mas como “em sua multiplicidade, as vivências que fluem na consciência

9
HUSSERL, E. Idées directrizes pour une phenomenology.
35

se referem sempre à mesma fonte, é óbvio que ele não poderia ser acessível senão no eu
concreto” (DARTIGUES, 1973, p. 32).

Segundo Dartigues (1973), a necessidade de distinguir entre o “Eu ou Sujeito


Transcedental” e o “eu concreto” é que trouxe dificuldades à Husserl, conforme as
análises de J.P.Sartre e M. Heidegger. Todavia, em seus últimos escritos, já sob a
influência de Heidegger, Husserl acentuou a própria correlação consciência-mundo (que
poderia facilmente ser entendido como o “ser-no-mundo” heideggariano) “Se o verdadeiro
resíduo da redução fenomenológica é essa correlação, e não o Sujeito transcendental ou
“sujeito puro” [...] a fenomenologia poderá então se tornar o estímulo das novas filosofias
da existência” (DARTIGUES, 1973, p. 32). Conseqüentemente, a evidência primeira para a
qual se deve voltar “não será mais o sujeito, mas o próprio mundo tal como a consciência
o vive antes de toda elaboração conceptual” (DARTIGUES, 1973, p. 32). Tal, lembra
Dartigues, é notadamente a interpretação de M. Merleau-Ponty.

1.2.4 Implicações para as ciências

Para Dartigues (1973) a meta de Husserl era não somente promover a renovação
de método nas ciências humanas, mas fundar seu sentido. Todavia, a fenomenologia,
como reflexão que abarca toda atividade e conhecimento humanos, traz implicações para
a ciência em seu conjunto, mesmo porque, no pensamento husserliano, as ‘ciências
eidéticas’ têm o mesmo objeto que as ciências empíricas. Embora distintos, esse dois
tipos de ciências, para Husserl, segundo a apreensão de Dartigues (1973, p. 36) não
seriam absolutamente separados, “como se pudéssemos desenvolver as ciências
eidéticas sem jamais nos referirmos às ciências empíricas e como se essas últimas não
recorressem jamais, ainda que o ignorassem, a uma intuição das essências”.

As essências às quais se referem as ciências eidéticas, interpreta Dartigues (1973,


p. 34), “não podem ser concluídas a partir dos fatos, já que elas são, por definição, o
objeto de uma intuição”; e alcançar a essência não exige comparar e concluir, mas
reduzir, quer dizer, “purificar o fenômeno de tudo o que comporta de inessencial, de
‘fáctico’, para fazer aparecer o que lhe é essencial” – o que Husserl denomina ‘redução
36

eidética’ – “que não se obtém, pois, através de manipulações, mas de um esforço de


pensamento que se exerce sobre o fenômeno cujo sentido se busca, qualquer que seja
por outro lado a maneira pela qual dele tratam as ciências empíricas”.

Conforme Dartigues (1973), para tal, Husserl, concebeu a técnica da ‘variação


imaginária’ ou ‘variação eidética’, processo que consiste em imaginar todas as variações
que um objeto tomados por modelo é susceptível de sofrer; o invariante identificado
através das diferenças define a essência dos objetos da mesma espécie, sem o que
seriam impensáveis. Por exemplo, “não posso me representar uma cor sem extensão, ou
um movimento sem um corpo que se mova”, portanto, “pertence à essência da cor de só
se dar com a extensão” (DARTIGUES, 1973, p. 34). A essência é definida então como uma
“consciência de impossibilidade’, isto é como aquilo que é impossível à consciência
pensar de outro modo” (DARTIGUES, 1973, p. 35). A referida “técnica” apela apenas ao
poder e à liberdade da consciência que, por intermédio de seu próprio funcionamento,
“consegue descobrir as leis e a estrutura de uma essência como os limites que ela deve
fixar para a variação livre, se quiser pensar sempre a mesma coisa” (DARTIGUES, 1973, p.
35). Mais ainda, “a descoberta da essência, em princípio, não invoca de nenhum modo a
experiência, senão enquanto esta fornece os exemplos sobre os quais a imaginação
exercerá suas variações” (DARTIGUES, 1973, p. 35).

Segundo Dartigues (1973), Husserl observou que as grandes descobertas


científicas não resultaram jamais de uma simples observação, e que não basta acumular
fatos para que deles se extraia uma lei. Por exemplo, Galileu concebeu o caso da queda
perfeitamente livre de um corpo (caso que ainda não se realizou em nenhum lugar), e
suas experiências evidenciaram que os fatos, levando em conta os fatores de atrito,
tenderam a generalizar o modelo ideal previamente construído. Para Merleau-Ponty10
(s.d. apud DARTIGUES, 1973, p. 37), o que distinguiria uma ciência eidética de uma
ciência empírica que se vale da indução é que a primeira aplica aos exemplos um
processo de variação imaginária, enquanto a segunda “procede por variações efetivas
considerando casos múltiplos que verdadeiramente se realizaram”. Porém percebe

10
MERLEAU-PONTY, M. Les sciences de l’homme et la phenomenology.
37

Dartigues (1973, p. 37) que, nos dois casos “chegamos a uma possibilidade ideal, o que é
precisamente a definição que Husserl dá da essência”, com a ressalva de que “se o
próprio de uma possibilidade é o de não ser um fato real, ela tem também por
característica ser realizável, ter portanto uma vocação para o real e o conhecimento desta
pode nos conduzir ao conhecimento do real”. Segundo o próprio Husserl11 (1950 apud
DARTIGUES, 1973, p. 37): “A antiga doutrina ontológica, segundo a qual o conhecimento
do possível dever preceder o conhecimento do real, permanece a meu ver uma grande
verdade, desde que seja entendida corretamente e que seja empregada de maneira
correta”.

Contudo, segundo Dartigues (1973, p. 38), a necessidade de distinguir as ciências


cujos modelos ideais possuem a exatidão das matemáticas (como a física), das ciências
humanas (nas quais, quando se chega a um modelo matematizável, cabe perguntar do
que ainda se está falando), levou Husserl a distinguir duas espécies de essências: as
essências exatas, “que correspondem aos conceitos rigorosos das matemáticas e das
físicas e que não têm senão uma relação indireta com a vivência, já que elas não têm que
exprimir essa vivência como tal”; e as essências morfológicas ou inexatas, “que devem,
ao contrário, exprimir a vivência em todas suas nuanças e sem traí-la”. As primeiras
(exatas) podem ser construções, cujo rigor está no seu acabamento e na sua coerência,
ao passo que as segundas (morfológicas) só podem ser descrições, “cujo rigor não
provirá senão da fidelidade ao dado, justamente, com o caráter fluente e vago que lhe é
inerente” (DARTIGUES, 1973, p. 38). Não existe, pois, uma “geometria da vivência, isto é,
uma ciência na qual os fenômenos vividos pudessem ser deduzidos de um sistema de
axiomas e de conceitos definidos de antemão” (DARTIGUES, 1973, p. 38).

Uma análise fenomenológica autêntica implica uma essência transcendente do


próprio psiquismo e de seus atos, e permite captar, “através da experiência do meu
próprio psiquismo, a essência do psiquismo em geral” (DARTIGUES, 1973, p. 39). É sob
essa condição que as pesquisas experimentais “poderão se referir a noções bem
definidas, pois como saber o que significa uma imagem ou uma percepção se não se

11
HUSSERL, E. Idées directrices pour une phenomenology.
38

pode defini-las a partir de uma experiência de imagem ou de uma experiência de


percepção?” (DARTIGUES, 1973, p. 39). Desse modo, Dartigues (1973) descobre também o
que se deve entender por experiência: nas ciências experimentais, é uma experiência
sobre o fenômeno (que se poderia chamar mais adequadamente de experimentação); já a
experiência do fenomenólogo é uma experiência do fenômeno. Assim, mostra-se que, “se
a primeira forma de experiência quer ter um sentido”, quer dizer, “as ciências eidéticas
constituem o fundamento das ciências empíricas” (DARTIGUES, 1973, p. 40).

1.2.5 As Ciências Humanas

É por considerar a intencionalidade como ‘visada da consciência e produção de um


sentido’ que a fenomenologia pode perceber os fenômenos humanos em seu teor vivido e
distinguir os fenômenos humanos dos fenômenos naturais: “a idéia de intenção está no
fundamento do compreender tal como o supõem as investigações que se recomendam da
fenomenologia nas ciências humanas” (DARTIGUES, 1973, p. 52).

Como enfatiza Dartigues (1973, p. 52) “convém falar de compreensão quando o


fenômeno a compreender é animado por uma intenção”, não se pode dizer de um geólogo
que ele procura “compreender” uma pedra, mas é diferente a atitude de um arqueólogo
que encontra um sílex lascado da idade paleolítica, o qual remete “não somente a leis
físico-químicas e geológicas [...], mas à intenção do homem pré-histórico a que serviu de
ferramenta”; não se trata mais de um objeto natural, mas de “um objeto cultural dotado de
uma significação, porque a forma que lhe foi dada trai a intenção do artesão”. Então:

Desse objeto diremos que deve ser compreendido, isto é, situado no meio

humano que lhe dá seu sentido, que materializa nele a intenção em

direção à qual procuramos remontar. O pesquisador estará, aliás, tanto

mais consciente do caráter significante do objeto quanto menos

desvendada ainda estiver essa significação; o objeto se propõe a ele como

um enigma, isto é, como uma questão dirigida ao autor ausente que deixou

sobre sua obra o vestígio de uma intenção desaparecida: o que quis ele

fazer? o que quis ele dizer? (DARTIGUES, 1973, p. 52).


39

Da mesma forma, assinala Dartigues (1973, p. 52), os comportamentos que os


próprios sujeitos nos propõem podem ser compreendidos, porque uma intenção se revela
por intermédio deles: “Por mais afastados ou diferentes de mim que sejam esses sujeitos,
considero, pelo fato de serem humanos, logo, racionais, que o seu comportamento pode
ser compreendido porque exprime uma intenção que me é acessível”. Compreender um
comportamento é percebê-lo do ponto de vista da intenção que o anima, “logo, naquilo
que o torna propriamente humano e o distingue de um movimento físico”; já “assimilar os
fatos humanos a objetos físicos equivale a deixar de lado a dimensão subjetiva e
intencional que, precisamente os torna humanos”, e todavia “é exatamente o humano em
sua essência que a fenomenologia procura perceber” (DARTIGUES, 1973, p. 53).

Porém, alerta Dartigues (1973, p. 53), para captar a intenção profunda de uma
atitude ou ato – ou seja, compreendê-los – não é suficiente a impressão causada por sua
aparência imediata, pois:

podemos nos enganar quanto às intenções de outrem, e ainda mais, que

ele mesmo pode se enganar quanto às próprias intenções [...] a

compreensão de outro e a própria compreensão de si vai de encontro a

uma opacidade difícil de reduzir, [..] o sentido aparente de um

comportamento dissimula um sentido mais profundo e que muitas vezes a

clareza de uma intenção não é mais do que uma clareza enganosa.

Se assim o é, é porque não somos “espíritos puros e intemporais”, a consciência


não é “puro transparência de si para si”, pois “se elas se contivesse inteira dentro do
instante em que manifesta sua intenção, esta seria inteiramente dominada e não lançaria
raízes fora do momento em que a consciência a formula” (DARTIGUES, 1973, p. 53). E
como a vida psíquica “antecede e excede a reflexão consciente, ela comporta formações
antigas que lhe escapam e determinam sua visada antes que ela tenha podido esclarecê-
las refletindo-as” (DARTIGUES, 1973, p. 53).
40

A consciência não constitui seus objetos “ex nihilo”, mas a partir de uma

matéria primitiva, feita de associações perceptivas e de hábitos, que por

sua vez se constituiu durante o aprendizado esquecido da infância”. É o

curso dessa história que reflexão fenomenológica deve remontar para

atingir a fundação primeira (Urstiftung) que investe obscuramente todas as

visadas. Essa é o implícito, o ‘covisado” sem cuja explicação cada visada

cognitiva, como também voluntária ou afetiva, conservará uma opacidade

irredutível. (DARTIGUES, 1973, p. 54)

Nas palavras de Husserl12 (1953 apud DARTIGUES, 1973, p. 54): “É a forma final
das explicitações que poderiam constituir o objeto enquanto nossa posse permanente,
enquanto sempre e de novo acessível. Essa forma final... remete ela própria à sua
formação inicial. Tudo o que é conhecido remete a uma tomada de consciência original”.

É por isso que, em sua “teoria da constituição”, Husserl, conforme Dartigues (1973,
p. 54) afirmou que não somente o mundo é constituído, mas que o próprio sujeito se
constitui, que ele deve se conquistar pela reflexão sobre sua própria vida irrefletida, o que
o levou a distinguir duas espécies de intencionalidade: (i) intencionalidade temática, que é
“saber do objeto e saber deste saber sobre o objeto”; e (ii) intencionalidade operante ou
‘em exercício’, que é “a visada do objeto em ato, não ainda refletida”:

A primeira esforça-se por alcançar a segunda que a precede sempre, mas

sem jamais consegui-lo. A reflexão, logo, o saber consciente, só se exerce

sobre esse fundo de irreflexão, nessa dimensão da vida que já é sentido,

porque visada de objeto, que já é uma perspectiva sobre o mundo, mas

sentido ainda não-formulado e que, afinal de contas, nenhuma fórmula

poderá nem recuperar nem conter. (DARTIGUES, 1973, p. 54)

Dartigues (1973, p. 61) demarca a grande questão que a fenomenologia coloca no


princípio das Ciências Humanas: “De que essa ciências são ciências?”. Do homem,

12
HUSSERL, E. Méditations cartésienes.
41

evidentemente, mas o que se deve entender por “o homem”? As ciências positivas


contribuem para elucidar a essência do homem, mas não a definem; por isso “cumpre
reconhecer que esta essência é pressuposta, que ela não se deduz das pesquisas
positivas, mas que ela deve ao contrário acompanhá-las e esclarecê-las” (DARTIGUES,
1973, p. 61).

Para Dartigues (1973, p. 62) é sobretudo M. Merleau-Ponty que permite mostrar


como as Ciências Humanas “se tornam compreensivas ao se fundarem sobre este a priori
que é o mundo vivido, sobre este ‘conhecimento antes do conhecimento’ que não é
somente relação com o mundo, mas também relação com outrem”, e cogita ainda que
talvez a essência do homem esteja dissimulada em tal a priori.

Ora, quando se fala em compreensão, se está falando da possibilidade de acesso


a uma vivência psíquica que não é nossa, e por isso lembra Dartigues (1973, p. 63) que
isto nos remete à questão da coexistência com outrem, “que está já-aí e com quem
entretemos relações muito antes que estas relações tenham se tornado para nós objeto
de reflexão”.

A questão do outrem tornou-se problemática para Husserl, como indica Dartigues


(1973, p. 62), e ele tentou explicar o alter ego “ao mesmo tempo como ego, como sendo
um eu, e como alter, isto é, como sendo um eu que não sou eu”. A tentativa é de “sair da
solidão filosófica à qual conduz uma filosofia do cogito que define o Eu apenas pelo
pensamento que ele tem de si próprio, e [...] o pensamento de outrem lhe é, por princípio,
inacessível”, passando, desse ego monádico, evidência primeira e invencível na qual o
mundo encontra seu fundamento, aos outros egos que são igualmente fundamento do
mundo” (DARTIGUES, 1973, p. 62-63). Então, o mundo receberá seu sentido, “não de um
eu único [...], mas da pluralidade das consciências, através do encontro e dos
intercâmbios das quais o mundo acede à objetividade como sendo o mesmo mundo do
qual todas as consciências participam” (DARTIGUES, 1973, p. 63).

Conseqüentemente, a constituição do mundo não é mais um fenômeno subjetivo,


mas intersubjetivo, e Husserl amplia a subjetividade transcendental em direção a uma
42

intersubjetividade transcedental; “o mundo não é minha representação, ele é nosso


mundo” (DARTIGUES, 1973, p.63).

Mas denuncia Dartigues (1973) como ainda permanece em Husserl uma


ambiguidade a este respeito, pois, se é do lado da ‘constituição universal’ que as
vivências receberiam seu sentido de uma consciência pura e adquiririam transparência
total, sem distâncias entre mim e mim mesmo, entre mim e outrem (e portanto a
comunicação dos ‘Eus’ reencontraria a solidão do Eu transcendental), por outro lado as
vivências sempre se dão à distância do sujeito que quer conhecê-las:

distância de minhas próprias vivências com relação a mim mesmo, as

quais se perfilam em meu passado e se modificam em função do presente;

a fortiori, distância das vivências de outrem que só me são acessíveis pela

mediação do meu corpo [...]. É esta distância que torna a compreensão de

outrem ao mesmo tempo necessária e difícil e a força a passar pelas

incertezas da cultura e da História. (DARTIGUES, 1973, p. 63).

Merleau-Ponty, na apreensão de Dartigues (1973, p. 63) irá resolver essa


dificuldade considerando a existência do que se poderia chamar uma socialidade
originária, “isto é, uma maneira de ser com o outro mais primitiva que toda sistematização
do social pelo pensamento”; o conhecimento, em especial o conhecimento de outrem,
repousaria então “sobre as amplas bases da vivência”. Segundo Merleau-Ponty (1999, p.
485-486):

Precisamos retornar ao social com o qual estamos em contato só fato de

que existimos, e que trazemos ligados a nós antes de qual objetivação [...].

O social já está aí quando nos o conhecemos ou o julgamos. Uma filosofia

individualista ou sociologista é uma certa percepção da coexistência

sistematizada e explicitada. Antes da tomada de consciência, o social

existe surdamente e como solicitação.


43

Conclui Dartigues (1973, p. 64): “se a consciência está no centro da explicitação da


vivência, ela já está como que envolvida por ela, não tem a iniciativa absoluta do sentido
que anuncia”, pois este “já está delineado na camada primitiva de nosso ser no mundo e
de nosso ser com outrem”. Por isso, então, a tarefa do fenomenólogo “será antes a de
desenterrar esse solo original, tal como aparecia ainda na ingenuidade da infância, do que
a de seguir as racionalizações com as quais o adulto a recobriu” (DARTIGUES, 1973, p.
64).

Opondo-se a Piaget, Merleau-Ponty (1999, p. 476) não crê que “os pensamentos
bárbaros da primeira idade” se desvanecem, mas, ao contrário permanecem “sob os
pensamentos da idade adulta como um saber adquirido indispensável, se é que deve
haver para o adulto um mundo único e intersubjetivo”, assim como, completa Dartigues
(1973, p. 64) a doxa originária (saber pré-racional) é o fundo obscuro sobre a qual se
fundará a ciência. Vislumbra-se assim, para Dartigues (1973, p. 64), a dupla tarefa da
fenomenologia: (i) explicitar, à medida que as ciências se desenvolvem, o elemento vivido
que constitui seu objeto, já que “elas criam novos métodos de análise”, mas não “seu
objeto enquanto fato psíquico ou fato social”, e este deverá “não somente ser explicado,
mas compreendido em sua essência de fenômeno vivido”; e (ii) explicitar a própria
atividade compreensiva, já “é ela própria obra do homem situado e encarnado e não de
um espírito puro”, e já que “o sentido que dá aos fenômenos se apóia sobre uma
experiência vivida original que funda as descrições fenomenológicas, as quais iluminam
por seu lado as racionalizações científicas”.

Em decorrência da segunda tarefa apontada, é que Dartigues (1973) refere-se ao


fato de Merleau-Ponty (1999, p. 489,490) ter reivindicado que:

estas descrições sejam para nós a ocasião de definir uma compreensão e

uma reflexão mais radicais do que o pensamento objetivo. À

fenomenologia como descrição direta deve se acrescentar uma

fenomenologia da fenomenologia. Devemos voltar ao cogito para procurar

ali um Logos mais fundamental do que o do pensamento objetivo, que lhe

dê seu direito relativo e, ao mesmo tempo, o coloque em seu lugar.


44

Esse cogito a que se deve voltar – esclarece Dartigues (1973, p. 65) – “não é um
pensamento puro, o pensamento de si mesmo”, mas é “rico de toda essa experiência
primitiva do mundo e de outrem sem a qual nenhuma descrição fenomenológica seria
possível”. Tal retorno permite também apreender que esta “camada primária de
experiência”, que dá seu sentido ao pensamento objetivo, “não é uma camada ‘pré-lógica
ou mágica’, como se a razão representasse um domínio autônomo e separado, como se o
Logos viesse de alhures” (DARTIGUES, 1973, p. 65). O pensamento vem das “profundezas
da vida que o precede e o envolve”, estando entendido, porém, “que suas construções
não conseguirão jamais conquistar e esclarecer perfeitamente aquilo que constitui sua
própria fonte”. Por isso Merleau-Ponty (1999, p. 489) pode dizer que:

Com o mundo natural e o mundo social, nós descobrimos o verdadeiro

transcendental, que não é o conjunto das operações constitutivas pelas

quais um mundo transparente, sem sombras e sem opacidade se exporia

diante de um espectador imparcial, mas a vida ambígua [...] [que] torna

possível o conhecimento.

Para Dartigues (1973, p. 66), as análises de Merleau-Ponty indicam que a


possibilidade de acesso a outrem “aparece como um dado primeiro e não como uma
reconstrução de sua vivência na esfera fechada de minha representação”; mas tal acesso
“só e compreensão se não for assimilação, logo, se ele, longe de fazer desaparecer
minha distância em relação a outrem, a revelar como essencial”. Todavia:

manter tal distância significa que a situação intersubjetiva não pode ser

inteiramente “subjetivada”, convertida em idéia na consciência de um único

sujeito nem tampouco inteiramente “objetivada”, convertida em coisa. Pois,

pensá-la como simples “para si”, à maneira do idealismo, ou como simples

“em si”, à maneira de um realismo naturalista, é não atingir a “dimensão da

existência” que constitui o social antes de toda apreensão científica; é

rebaixar o ser-com-outrem ao esquema abstrato no qual se deposita o


45

saber com a pretensão de valer sempre e em todo lugar. (DARTIGUES,

1973, p. 66)

À este respeito, Merleau-Ponty13 (1948 apud DARTIGUES, 1973, p. 67) considera


que o conhecimento sociológico, assim como o conhecimento de alguém “exige que
retomemos, guiando-nos por todos os indícios objetivos, a atitude humana que faz o
espírito de uma sociedade”. Dartigues (1973, p. 67-68) então se pergunta como conciliar
tal conhecimento dos fatos humanos, segundo o qual o sujeito cognoscente está sempre
em situação, com a concepção husserliana da intuição das essências, pois não seriam
essas, “por sua objetividade e sua universalidade, a negação da perspectiva singular, logo
dessa dimensão existencial que Merleau-Ponty diz ser inerente ao conhecimento do
homem?”.

Conforme Dartigues (1973, p. 68), embora em suas primeiras obras, de fato,


Husserl concedia pouco lugar à História, logo mais passou a conceber a descoberta da
essência dos fenômenos sociais e culturais “como decorrentes de uma compreensão
prévia, logo, de uma penetração, pelo sociólogo ou pelo historiador de culturas diferentes
da sua”. Pois, se a essência é ideal ou puro possível que se descobre pela variação
imaginária, “esta concerne menos a um sujeito isolado do que o sujeito que coexiste com
significações estranhas, significações que não poderia ter imaginado sozinho e que vêm
ao contrário despertar sua imaginação” (DARTIGUES, 1973, p. 68). Nesse sentido,
Dartigues (1973) relata que Husserl agradeceu a um antropólogo de seu tempo por ter
permitido ao leitor europeu penetrar em universos culturais inteiramente estranhos, e que
não poderia ter concebido, nem mesmo como puras possibilidades, se não se tivesse ido
investigar in loco. Portanto:

O sentido de um fenômeno não deve ser mais concebido,

conseqüentemente, como um sentido eterno, independentemente das

experiências concretas do sujeito. Ele se constitui, ao contrário, como

aquilo que faz a unidade das experiências reais em sua diversidade

13
MERLEAU-PONTY, M. Sens et non-sens.
46

infinita, como o horizonte de universalidade do qual o sujeito se aproxima

através de todas a suas experiências. Não se trata para ele de arrancar-se

à sua própria história para considerar a História do ponto de vista da

eternidade, mas, pela compreensão, de ampliar do interior sua própria

história até a História em sua totalidade. (DARTIGUES, 1973, p. 68)

1.2.6 Ciência e mundo da vida

No entendimento de Dartigues (1973, p. 71), Husserl desejava uma fenomenologia


que acompanhasse e subentendesse o exercício da ciência, “afim de que jamais se perca
o projeto que a engendrou e que a mantém em ato”; assim, nenhuma ciência poderia
escapar à reflexão fenomenológica, “já que toda ciência nasceu sobre um solo ‘dado de
antemão’, foi construída sobre os fundamentos que a precederam”.

Se, para Husserl14 (1948 apud Dartigues, 1973, p. 73), “As ciências dos fatos puros
e simples produzem homens que só vêem puros e simples fatos”, as ‘próprias ciências do
espírito’, observa Dartigues (1973, p. 73), “na medida em que querem ser objetivas,
evitam toda tomada de posição normativa, contentando-se em constatar o que é, sem
apreciá-lo e sem sugerir o que deve ser”. A crise das ciências apontada por Husserl se
manifesta “o esquecimetno das origens”, “como a ruptura de um mundo: o mundo da
ciência, tal como a ciência o constitui e o vê, se destacou do mundo da vida (Lebenswelt)”
(DARTIGUES, 1973, p. 74).

Nas ciências da natureza, tudo se passa “como se a racionalização científica só


pudesse tematizar o objeto negligenciando os sujeitos existentes” (DARTIGUES, 1973, p.
73); “a objetividade das ciências se perverteu em objetivismo”, denunciado este por
Husserl como “ilusão ou ‘superstição’ segundo a qual a ciência poderia desvendar o
‘mistério da realidade’ porque, contrariamente às outras formas de conhecimento, ela diz
o que é” (DARTIGUES, 1973, p. 74). Por exemplo, o discurso objetivo do físico seria a
expressão do ser-em-si das coisas e do mundo físico, e “qualquer outro modo de
apreensão dessa realidade deve ser relativizado, se não desvalorizado”, e, por ser

14
HUSSERL, H. La crise des sciences européennes et la phénomenologie transcendentale.
47

objetivo, “tal discurso é considerado como sendo não dito, no final das contas, por
ninguém, como sendo o discurso do ser sobre si próprio e, portanto, sua verdade
absoluta” (DARTIGUES, 1973, 74).

Tal objetividade supõe “a colocação entre parênteses do sujeito humano e dos


modos de apreensão subjetivos da realidade”; o cientista fala como se “apenas
emprestasse sua voz ao ser”; o objetivismo esquece, na medida em que identifica o ser
com a linguagem científica sobre o ser, “que a ciência é uma atividade do homem [...] que
nós próprios a constituímos em função de uma tradição e de um projeto humanos”
(DARTIGUES, 1973, p. 74).

Tal esquecimento foi possível, segundo Husserl15 (apud DARTIGUES, 1973, p.75)
pela “matematização da natureza” iniciada por Galileu no século XVII, que edificou a física
moderna sobre o terreno teórico já elaborado pela geometria e matemáticas da
Antigüidade, terreno o qual, contudo, “desceu pronto do céu, ele nasceu da experiência e
do mundo sensível onde encontraremos corpos com formas imperfeitas” (DARTIGUES,
1973, p. 75). As formas puras ou “formas-limites” da geometria (retas, triângulos, círculos

etc.) foram inicialmente concebidas com uma finalidade técnica, a de medir, para fins
práticos, as formas reais cujas particularidades não podiam ser levadas em conta; mas
daí se duplicou um interesse teórico, “já que essas formas ideais comportavam
propriedades e leis próprias que podiam ser estudadas por si mesmas” (DARTIGUES,
1973, p. 75). Ademais:

elas transmitiam sua exatidão aos fenômenos reais quando lhe eram

aplicadas, como ocorreu desde logo com as previsões astronômicas.

Tendeu-se, pois, a considerá-las como realidades autônomas e mais

“objetivas” que a realidade sensível, já que era somente por seu intermédio

que se podiam descobrir leis rigorosas a propósito desta última.

(DARTIGUES, 1973, p. 75)

15
HUSSERL, H. La crise des sciences européennes et la phénomenologie transcendentale.
48

Desse modo, “a natureza inteira em sua realidade concreta, com todas as suas
propriedades e suas qualidades, podia ser traduzida em linguagem matemática”, as
qualidades sensíveis (cores, odores, sons etc.) puderam “ser reduzidas indiretamente a
grandezas mensuráveis e ser assim conhecidas e dominadas em vez de ser
simplesmente percebidas” (DARTIGUES, 1973, p. 76). Segundo o próprio Husserl16 (apud
DARTIGUES, 1973, p. 76):

O que experimentamos na vida pré-científica como cores, sons, calor, cmo

peso, nos próprios objetos, o que apreendemos causalmente como

radiação calorífica de um corpo que aquece os corpos em volta e assim

por diante, tudo isso ‘indica’ fisicamente vibrações acústicas, vibrações

caloríficas, logo, acontecimentos puros do mundo das formas.

“Em tal concepção” – prossegue Dartigues (1973, p. 76) – “o mundo é teoricamente


dominado pelo pensamento puro e pode também vir a sê-lo praticamente por uma técnica
de possibilidades ilimitadas”. Contudo, se a crítica husserliana ao objetivismo é que este
toma essa construção ideal pleo mundo verdadeiro, quer dizer, realmente existente,
“cumpre atacar menos a ciência do que a filosofia que lhe é subjacente”, pois, desde
Platão, “é uma tendência geral da filosofia tradicional buscar sob as aparências, sob o
mundo da experiência quotidiana, mundo da opinião ou da doxa, uma realidade oculta
apenas ao pensamento”, e daí provém a tentação de tomar a verdade científica “como a
realidade substancial em face da qual os modos de apreensão subjetivos parecem
ilusórios” (DARTIGUES, 1973, p. 76). Mesmo após a crítica cética de Hume, que abala os
fundamento da ciência, este continua progredindo como uma prática, “em virtude de seu
método rigoroso, mas não será mais consciente de seu acalce, nem de seu sentido”;
consuma-se, assim, “o divórcio entre o mundo da ciência cada vez mais fechado sobre si
mesmo e o mundo da vida em busca de uma racionalidade não encontrável” (DARTIGUES,
1973, p. 76-77).

16
HUSSERL, H. La crise des sciences européennes et la phénomenologie transcendentale.
49

O mundo da ciência é sem vida, pois nele estão proscritos os predicados práticos,
axiológicos, culturais, pelos quais os objetos assumiam sentido e valor para nós; nele, é
preciso também fazer abstração dos sujeitos, “é um mundo inabitado e inabitável”
(DARTIGUES, 1973, p. 77).

Contudo, adverte Dartigues (1973, p. 77) não se trata, para a reflexão


fenomenológica, de renunciar à objetividade científica, “mas de reintegrar o mundo da
ciência no mundo da vida”, pois, se a vida não é encontrada no mundo da ciência, “é
talvez porque a ciência não é senão uma produção da vida e porque esta permanece
recuada com relação a uma prática que ela determina e que não basta, pois, para
explicar-se a si própria”. Segundo Husserl (apud DARTIGUES, 1974, p. 78): “Não será um
contra-senso e um círculo querer explicar pelo método das ciências da natureza o
acontecimento histórico ‘ciências da natureza’?” Como considerar como “existente em si”,
como “independente de todo fenômeno cultural e anterior a todo fenômeno cultural uma
concepção da natureza que é ela própria o produto da cultura?” (DARTIGUES, 1973, p. 78).

Para superar tal ilusão objetivista, é preciso fazer reaparecer “o liame que liga a
ciência ao mundo da vida, isto é ao mundo quotidiano em que vivemos, agimos, fazemos
projetos, entre outros o da ciência, em que somos felizes ou infelizes” (DARTIGUES, 1973,
p. 78). Há duas formas de desvelar tal liame, segundo Dartigues (1973):

(i) Pelo fato de mesmo as expressões mais teóricas e abstratas só tem sentido se
relacionadas a um tipo de experiência que Husserl denominou ‘antepredicativa’ – anterior
a toda formulação em conceitos e em juízos – que é a experiência da percepção sensível,
percepção do mundo no qual vivemos e dos objetos que ele contém, sobre o
“fundamento” do qual constituem conceitos e juízos. As próprias categorias matemáticas
(relação, número etc.) derivam da idéias de ‘alguma coisa em geral’, que remete por sua
vez à percepção da coisa singular despojada de suas determinações singulares e
específicas. É isso que permite ao pensamento mais abstrato e formal conservar um
sentido e possibilitar sua aplicação: “Toda aquisição da ciência funda seu sentido na
experiência imediata e remete ao mundo dessa experiência” (HUSSERL17, apud
17
HUSSERL, H. La crise des sciences européennes et la phénomenologie transcendentale.
50

DARTIGUES, 1973, p. 78). Conclui Dartigues (1973, p. 78): “A ciência, mesmo se sua
linguagem em nada se assemelha à do mundo quotidiano, não fala de um outro invisível e
mais real; se ela quer dizer alguma coisa, ela fala deste mundo aqui, do mundo de nossa
experiência viva no qual nasceu”.

(ii) Pelo fato de que o próprio cientista fala neste mundo, no exercício de seu trabalho
científico ele não abandona o mundo da vida. As próprias formulações científicas são
“engastadas na linguagem cotidiana, que fornece o primeiro sentido daquilo de que se
procura uma inteligibilidade superior”; é preciso saber de antemão o que quer dizer luz,
velocidade, tempo, “tal como estes fenômenos se dão à intuição pré-científica, se
queremos saber de que fala uma teoria física sobre a luz, o espaço-tempo, etc.”
(DARTIGUES, 1973, p. 79). Embora a teoria falará disso com uma nova inteligibilidade que

desvalorizará a interpretação mítica, mas tal inteligibilidade “não suplanta o mundo da


experiência pré-científica anterior ele próprio a toda interpretação”; ao contrário,
“unicamente para esse mundo que ela pode se dizer verdadeira, já que o cientista não
vive em outro lugar e já ele não poderia, portanto, estabelecer um verdade que não fosse
uma verdade para esta vida” (DARTIGUES, 1973, p. 79). Dartigues (1973, p. 79) ainda
lembra que Husserl projetou uma ontologia do mundo da vida’, na qual seriam
esclarecidas as ‘estruturas variantes’ do mundo que tomam parte em toda experiência
real e possível, e que constituiriam assim um “a priori pré-lógico’ tão universal e
necessário quanto as formas do ‘a priori lógico’que se fundam sobre ele”.

A questão do sentido da ciência – percebe Dartigues (1973) – acaba por remeter à


questão da intenção perseguida pelos cientistas. Husserl18 (1962 apud DARTIGUES,
1973, p. 80), por exemplo, mostra como reencontramos o sentido da geometria
remontando à intenção do primeiro geômetra, e refere-se ao “sentido arquioriginário que
se deve sempre de novo pôr em evidência”, pois se trata aí “das fontes de sentido para
toda etapa ulterior”, nas quais se constróem novas proposições lógicas e novas
idealidades. Desse modo, vê-se como “por mais que o mundo das ciências se desenvolva
indefinidamente para frente, o objeto cujo sentido ele explicita está sempre atrás, como

18
HUSSERL, E. L’origine de la géométrie.
51

esse mundo da experiência primordial do qual a ciência não terá jamais acabado de falar”,
e que a ciência “repousa sobre o ‘mundo da vida’ e não no ‘ar” (DARTIGUES, 1973, p. 80).
Assim, a filosofia busca devolver a ciência à liberdade do sujeito que a cria, “para lhe
devolver seu objetivo ao lhe devolver sua origem” (DARTIGUES, 1973, p. 80). Reencontrar-
se-ia, então, segundo Husserl19 (1957 apud DARTIGUES, 1973, p. 80) o sentido exato
“desta vestimenta de idéias que nos faz tomar pelo ser verdadeiro o que não é senão um
método”, mesmo que esse método seja de grande valor e eficácia.

1.2.7 Verdade e evidência

Se a ciência não recebeu a verdade de si própria e não é verdade antes da vida e


sem a vida, Dartigues (1973, p. 81) pergunta-se “em que esta vida pode ser, ela própria,
verdade e fonte de verdade”. Quando minha linguagem quer traduzir meu estado de alma
(‘sou feliz’, ou ‘gosto de você’), os enunciados que pronuncio “merecem ser chamados de
verdadeiros” sem necessidade de recorrer a teorias físicas ou psicológicas, e estas, por
sua vez “não tem nenhuma necessidade dessas considerações afetivas para ser
verdadeira em sua ordem, isto é, segundo a intenção da visada que o método científico
manifesta” (DARTIGUES, 1973, p. 81). Como essa duas verdades não são da mesma
ordem e não dependem da mesma intenção, nenhuma “deve ser erigida em norma
absoluta em relação a outra”, pois “a verdade não se separa de sua origem” - a não ser
“aparentemente e por esquecimento” - a saber, “o modo de visar da consciência – que
pode ele próprio se traduzir num método” (DARTIGUES, 1973, p. 81). O que se quer dizer é
que a verdade obtida é função do método de pesquisa e que “um exame deste método se
impõe, caso se queira saber a que tipo de verdade se chegou” (DARTIGUES, 1973, p. 82).

A verdade é tradicionalmente definida como adequação da coisa e do espírito – e


tal coincidência só pode produzir-se como uma vivência de consciência para a qual o
objeto se dá ele próprio como o juízo o anuncia (DARTIGUES, 1973). Se digo: “esta mesa
é vermelha e quadrada”, tal enunciado é verdadeiro se ele corresponder à percepção
efetiva de uma mesa vermelha e quadrada. Mas se me informo sobre a natureza do
quadrado (‘quadrilátero tendo quatro lados iguais e quatro ângulos retos’), a verdade da

19
HUSSERL, E. Logique formelle et logique transcedantale.
52

definição não é mais proporcionada por uma percepção sensível, “pois meus sentidos não
poderiam perceber o quadrado em geral, mas por uma percepção intelectual”, e tal objeto
“cuja percepção vai produzir a evidência, fundamento da verdade, pode ser igualmente
um objeto ideal cuja essência e, portanto, estrutura essencial, se dá segundo sua
especificidade ao espírito que a examina” (DARTIGUES, 1973, p. 83). Mas é preciso
lembrar “que tais objetos ideais, como os seres matemáticos ou as categorias lógicas,
repousam em última instância, mediante um certo número de intermediários, sobre a
percepção sensível que confere aos “objetos de grau superior” sua validez lógica e suas
“leis de essência” (DARTIGUES, 1973, p. 83).

Ora, tal evidência produtora da verdade, atesta Dartigues (1973, p. 83) é a


“presença em pessoa, em carne e osso, do objeto à consciência e portanto,
correlativamente, da consciência ao objeto”; o ponto de surgimento da verdade é “esta
experiência vivida, esta vida atual da consciência pela qual estes objetos e este mundo
estão agora diante de mim sem que eu possa recusar sua presença”, e não se pode
“remontar além da experiência original que funda toda outra forma de verdade”:

a verdade está toda na presença o ente, o qual se dá, unicamente por essa

presença, com sua essência ou seu sentido e não como uma realidade indefinida

que um pensamento vindo de algum outro lugar deveria vir informar. A cor se dá

tal como vista, o som como ouvido e, em seu nível, as formas se dão segundo o

modo sob o qual o pensamento as percebe. Sentido de ser e Ser-dado estão

assim indissoluvelmente unidos em sua origem. (DARTIGUES, 1973, p. 83-84)

Tal conclusão não é espantosa, já que o ser não se oculta sob o fenômeno “como
um em-si inacessível ou somente a acessível a um pensamento desencarnado, o que
reduziria o fenômeno a uma aparência enganosa”; ao contrário, no fenômeno “a verdade
aparece ‘em pessoa’, já que ela e o seu modo de aparição constituem uma só coisa”
(DARTIGUES, 1973, p. 84. Mas isso não significa – explica Dartigues (1973) que estamos

sempre em situação de evidência, pois se fosse o caso não suspeitaríamos que o


fenômeno às vezes seja apenas simples aparência, nem que o erro seja possível. A
53

resposta é que a verdade pode se dissimular ao mesmo tempo que se dá, porque “a
consciência para a qual há presença e, portanto, evidência, é uma consciência submetida
à temporalidade para a qual, portanto, o objeto presente se modifica incessantemente,
confirmando ou infirmando a evidência na qual ela se dá a nós” (DARTIGUES, 1973, p. 84).
Exemplifica Dartigues (1973): vejo uma forma no nevoeiro, da qual não sei dizer com
evidência do que se trata; aproximo-me e percebo um homem, mas com maior
aproximação verifico que a forma que tomava por homem era uma árvore. O objeto é
sempre o mesmo, mas numa presença que não é pontual, “que se enriquece
incessantemente com aspectos novos como se o que houvesse para ser visto no objeto
para que ele me fosse dado na evidência se dissimulasse na mesma visão” (DARTIGUES,
1973, p. 84). Possuir um objeto na evidência “é atualizar todas as suas virtualidade”, e

assim “uma percepção invoca a outra, uma experiência invoca outra a tal ponto que a
evidência aparece como um termo em direção ao qual tendemos sem que jamais
estejamos certos de tê-lo atingido plenamente” (DARTIGUES, 1973, p. 85). Por isso, a
evidência não nasce de uma única experiência, mas da síntese de uma infinidade de
experiências concordantes”, mas, paradoxalmente, como a evidência funda-se sobre o
dado imediato do objeto na experiência, permito-me crer “que me encontro de imediato
numa situação de evidência”, mas ela é “sempre precária e de alguma maneira apenas
presumida” (DARTIGUES, 1973, p. 85).

Para Dartigues (1973), as conseqüências desta teoria husserliana da evidência são


duas:

(i) Todas as maneiras pelas quais a consciência relaciona-se com um objeto só tem
sentido a partir desta maneira ao mesmo tempo fundamental e ideal que é a relação na
evidência. Se sei que me represento confusamente um objeto, ou que me lembro dele, ou
que o imagino, é porque “esses modos da visada que são a representação confusa, a
lembrança, a imaginação são apenas modificações intencionais do modo original que é a
evidência na percepção”; imaginar um centauro, por exemplo, “é visá-lo como o que não é
e nunca foi percebido no mundo comum de nossas evidências perceptivas; lembrar-se de
um amigo é visá-lo como sendo não mais atualmente percebido, se bem que tendo-o
54

sido, etc.” (DARTIGUES, 1973, p. 85). Já o pensamento simbólico, por signos, que exerce
quotidianamente na linguagem, remete também à percepção: “a intenção significante,
com efeito, só tem sentido se ela se refere a uma experiência que virá ou pelo menos
poderia vir a preencher o vazio da intenção; e “significar” é: “antecipar pela mediação de
um signo a experiência intelectual ou sensível que me daria exaustivamente o objeto
visado” (DARTIGUES, 1973, p. 85). Mas “a palavra não é a coisa”, se ela antecipa a
experiência, “é que esta ainda não se realizou, ou pelo menos não me está inteiramente
presente quando a viso por intermédio do signo”, o qual “aponta em direção’ ao objeto
atualmente ausente, sendo a significação como que a designação vazia de uma presença
que ela chama para receber sua plenitude” (DARTIGUES, 1973, p. 86). Tal presença pode
não ocorrer, ou mesmo jamais ter ocorrido para mim, e ainda assim poderei passar
adiante palavras, “mas eu não conhecerei o seu sentido enquanto ignorar justamente que
visão de objeto elas pressupõem, a que tipo de experiência me convidam” (DARTIGUES,
1973, p. 86).

(ii) Como a evidência é sempre provisória, nunca alcançamos uma verdade absoluta ou
definitiva, pois se “o ser-verdadeiro não é jamais senão o seu ser-verificado, há sempre
lugar para verificações imprevisíveis que me impedem de absolutizar a verdade desde o
primeiro momento” (DARTIGUES, 1973, p. 86). Como a verdade reside apenas na
atualidade das vivências de consciência e no esforço e tensão em direção a experiências
novas, “não pode mesmo ser considerada acabada para alguém”, porque “é do estilo da
percepção só oferecer perspectivas cuja síntese não é jamais acabada”, e cada momento
da percepção “desempenha o papel de uma significação já que, por sua incompletude, ele
é invocação dos momentos complementares a vir, aos quais remete (DARTIGUES, 1973, p.
86). Em conseqüência, os objetos só podem ser captados “sobre um horizonte de
indeterminações e sabemos que é o próprio de um horizonte é estar fora de alcance, já
que ele recua à medida que avançamos em sua direção”. Mas, se a evidência fundada
sobre a intuição sensível é precária, o mesmo não se dá com a evidência que se funda
sobre uma intuição intelectual, lembra Dartigues (1973, p. 86), pois se vejo negro um
objeto que depois, melhor iluminado, me aparecer vermelho, “é ‘por essência’ impossível
55

que o quadrado se dê um dia tendo apenas três lados”. Se as essências, consideradas


em si mesmas, são imutáveis, quando observamos contudo seu modo de constituição, ou
seja, quando as referimos à experiência sensível que as funda, nós lhes tiramos a
possibilidade de se separarem dessa experiência e de isolarem numa esfera fechada de
se separarem dessa experiência e de se isolarem numa esfera fechada de verdades
eternas” (DARTIGUES, 1973, p. 86). Eis porque, aliás, a ciência, confrontando
incessantemente as essências com experiências novas, “não cessa de remodelar e de
enriquecer o corpo das verdades ideais” (DARTIGUES, 1973, p. 86).

Por isso, conclui Dartigues (1973), a verdade total do mundo é um ideal em direção
ao qual não podemos senão tender infinitamente. Segundo Husserl20 (apud DARTIGUES,
1973, p. 87):

Esse remetimento (a infinidades concordantes de uma experiência ulterior

possível) significa manifestadamente que ‘o objeto real” pertencente ao

mundo – e, com maior razão, o próprio mundo – é uma idéia infinita

relacionada com infinidades de experiências concordantes e que esta é

correlativa à idéia de uma nova evidência empírica perfeita, de uma

síntese completa de experiências possíveis.

O que em absoluto quer dizer que um dia conheceremos o mundo em ‘uma


evidência empírica perfeita’; pelo contrário, “o termo mundo é por excelência aquele cuja
significação tende infinitamente a ser preenchida sem jamais atingir a plenitude”
(DARTIGUES, 1973, p. 87).

1.3. Aproximações à fenomenologia husserliana: a Teoria da Forma (‘Gestalt’)

Se a essência é o invariante que persiste a despeito das variações a que a


imaginação submete o exemplo que serve de modelo, Dartigues (1973) não vê
incoerência na tentativa de aproximar a noção de essência à de forma e estrutura, e

20
HUSSERL, E. Méditations cartésiennes.
56

aponta como o próprio Husserl chamou forma a unidade intencional pela qual, por
intermédio do fluxo de sensações internas (sensação de verde, de rugoso etc.) que
constituem a matéria sensível da percepção, visamos o mesmo objeto distinto e exterior a
nós (por exemplo, a árvore que está a minha frente):

A forma é, pois, para o próprio Husserl, um invariante, o invariante que, na

diversidade e mudança das sensações pelas quais um objeto se dá para

mim, me permite captar este objeto como sendo sempre o mesmo. É,

portanto, graças à forma que a consciência pode sair de sua vivência

imanente e perceber, através do fluxo temporal dessa vivência, a essência

que, ela própria, não é afetada pelo tempo. (DARTIGUES, 1973, p. 41).

A Teoria da Forma (Gestalttheorie) permitiu compreender fatos que a psicologia


associacionista ou intelectualista não explicavam claramente, tal como a atividade seletiva
da percepção. Por que, exemplifica Dartigues (1973), percebeu-se no céu as mesmas
figuras desenhadas pelos astros, como os carros das duas Ursas’? É porque a percepção
dessas formas não é um fenômeno cultural, um produto da educação, mas se deve à
própria forma que se destaca do fundo e se dá a perceber em virtude de sua própria
estrutura:

Uma forma será tanto mais perceptível, quanto mais ‘pregnante’ ela for,

quer dizer, quanto mais homogênea sua estrutura a tornar e a fizer

apareceu como uma totalidade independente. Anteriormente à reflexão e

anteriormente à própria linguagem, os objetos são percebidos de imediato

como formas; assim o campo perceptivo não é um caos no qual o

pensamento viria por ordem com o auxílio da linguagem, mas ele é pré-

ordenado em formas distintas que não esperam o pensamento para ‘saltar

aos olhos’, como confirmam as observações feitas com as crianças ou com

os animais. (DARTIGUES, 1973, p. 42)


57

Contudo, Dartigues (1973, p. 42-43) aponta uma diferença entre a forma de que
falam os gestaltistas e a essência tal como concebida no pensamento husserliano:
enquanto esta última é “o sentido ideal do objeto produzido pela atividade da
consciência”, aquela primeira tendeu a tornar-se “uma realidade psicofísica [...] que a
consciência não constitui, mas que a ela se impõe como preexistente a toda atividade de
síntese”. Ou seja, “ao idealismo husserliano das essências se contrapõe, na
Gestalttheorie, um realismo das formas” (DARTIGUES, 1973, p. 43).

Entretanto, a ‘Gestalt’ associa-se à fenomenologia também pelo uso transposto que


fez da noção de intencionalidade, presente no conceito de “campo”, conforme aponta
Dartigues (1973, p. 43): “os fenomenólogos falam também do campo fenomenológico que
corresponde à correlação sujeito-objeto ou consciência-mundo, da qual dissemos ser
mais primitiva que o sujeito ou o objeto, que só se definem nessa correlação”. O campo,
para os gestaltistas, é concebido como:

um espaço primordial no qual aparecem pólos que irão lhe dar sua

configuração, dividindo-o entre eu e não-eu [...]. Essa bipolarização em

torno do eu e do mundo exterior, na qual o corpo desempenha um papel

fundamental, já que é em função dele que os fenômenos serão ditos

externos ou internos, não depende de uma organização diferente da que

nos faz perceber os objetos como exteriores uns dos outros.

(DARTIGUES, 1973, p. 44)

Dartigues (1973) observa que é surpreendente para o leitor de Husserl que a


consciência de si não seja aí o pólo de organização original. Mas é porque a Teoria da
Forma rejeita toda idéia de constituição que implique em uma gênese das formas.

Contudo, alerta Dartigues (1973) não se pode considerar o ‘campo’ como estático;
pelo contrário a própria idéia de campo evoca um dinamismo. Os próprios estudos do
comportamento, iniciados por Watson, logo levaram à conclusão de que ele só pode ser
compreendido “em sua natureza de ato finalizado, se for considerado como uma forma
que se desenvolve no tempo e que recobre simultaneamente o organismo e o meio ao
58

qual o organismo deve se adaptar” (DARTIGUES, 1973, p. 45). O campo de comportamento


assim concebido é:

ao mesmo tempo campo de ação e campo de percepção, já que a

percepção é função das necessidades do organismo e de suas visadas

dirigidas ao ambiente e já que a ação, por seu lado, é função da percepção

que propõe esse ambiente como uma exigência permanente de

adaptação. (DARTIGUES, 1973, p. 45)

Dartigues (1973) cita a exemplificação de P. Guillaume21. Um viajante perdido


chega a um albergue após ter atravessado, segundo ele, a planície coberta de neve (meio
de comportamento), quando na verdade atravessara um lago congelado (meio
geográfico). Foi a percepção aparente da planície regulou o ato do viajante – alcançar o
albergue – e o próprio ato determinou o meio aparente como planície, isto é, como o que
podia ser atravessado. Mas o campo de comportamento, como estruturação mínima da
percepção e da adaptação, teria sido diferente se o viajante se tivesse dado conta de que
a planície era um lago: “Com isto, vemos que esse campo não é jamais um dado
absoluto, mas se define somente pelo estado atual da adaptação. Ele é, pois susceptível
de modificações desde que uma tensão nova apareça entre o organismo e seu meio”
(DARTIGUES, 1973, p. 45).

Dartigues (1973) denuncia o ‘naturalismo’ da teoria gestáltica, ilustrado pela tese do


isomorfismo, para qual as três noções de forma (física, fisiológica e psíquica) estão em
correspondência, e portanto devem ser compreendidas em um campo único, o qual deve
ser pensado como um campo físico:

Com efeito, como poderiam essas formas entrar em relação, se fossem

paralelas? Graças à unidade do campo, ao contrário, todo dualismo ou

pluralismo é excluído da compreensão do fenômeno que pode ser ao

mesmo tempo, por sua estrutura unitária, fenômeno físico, fisiológico e

21
GUILLAUME, P. La psychologie de la forme.
59

psíquico, ou, para resumir, fenômeno psicofísico. (DARTIGUES, 1973, p.

47)

Husserl, aponta Dartigues (1973), jamais aceitou essas conclusões, que tendem a
reduzir a consciência e o sujeito a uma simples dinâmica de estruturas naturais, e
portanto tratar-se-ia de um retorno ao psicologismo que ele tanto combateu.

Para Dartigues (1973), foi M. Merleau-Ponty quem retomou a teoria da Forma,


proveniente da fenomenologia, e propiciará a esta uma nova inspiração. A vantagem da
noção de comportamento é “que ela é neutra com respeito às distinções clássicas entre o
‘psíquico’e o ‘fisiológico’ e pode, portanto, nos dar a oportunidade de defini-los de novo”
(MERLEAU-PONTY, 196722 apud DARTIGUES, 1973, p. 48). Do comportamento do
homem no mundo, “poder-se-á passar à percepção do mundo, ambos sendo dados
primeiros e interdependentes, como também o mostraram os psicólogos da Forma”
(DARTIGUES, 1973, p. 48). A tarefa da fenomenologia seria então mostrar que, antes de

toda concepção filosófica ou científica, o homem é de início ‘ser-no-mundo’, debate ou


explicação com o mundo (DARTIGUES, 1973, p. 48). Entende Dartigues (1973) que se pode
então privilegiar, por um lado, a consciência, tal como o fazem as correntes idealistas e
em certa medida o próprio Husserl, nem, por outro, o mundo, como o supõem “As
representações científicas segundo as quais eu sou um momento do mundo” (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 4).

No entendimento de Dartigues (1973, p. 49) Merleau-Ponty procurou corrigir, com a


Gestalttheorie, o “idealismo que espreita a fenomenologia transcendental de Husserl (o
mundo é absorvido pela consciência que o constitui)” e, pela fenomenologia, o
“naturalismo que espreita a Gestalttheorie (a consciência é absorvida pelas estruturas
naturais que a definem)”.

1.4 A fenomenologia na perspectiva de Merleau-Ponty

22
MERLEAU-PONTY, M. La structure du comportement.
60

Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) é um dos mais importante herdeiros da


filosofia husserliana, não se limitando porém a simplesmente continuá-la na mesma
direção, mas a reformando e enriquecendo com novas possibilidades. Uma formidável
síntese da perspectiva pela qual vê a fenomenologia encontra-se no prefácio da obra
“Fenomenologia da Percepção”, cujo original data de 1945.

Nele, Merleau-Ponty (1999, p. 1) resume inicialmente o que é, para ele, a


fenomenologia:

- A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas resumem-se a


definir essências (por exemplo, a essência da percepção, ou da consciência); mas ela
repõe as essências na existência, e considera que o homem e o mundo não podem ser
compreendidos “senão a partir de sua facticidade”.

- É uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreendê-las, as


afirmações da atitude natural, mas é também “uma filosofia para a qual o mundo já está
sempre ‘ali’, antes da reflexão, como uma presença inalienável”; o esforço da
fenomenologia é, então, por “reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe
enfim um estatuto filosófico”.

- É uma filosofia que ambiciona ser uma “ciência exata”, mas é também “um relato
do espaço, do tempo, do mundo ‘vividos”; é a tentativa de “uma descrição direta de nossa
experiência tal como ela é”, sem referência à sua gênese psicológica e às explicações
causais que dela possam fornecer as ciências.

À despeito desta precisão sintética, Merleau-Ponty (1999, p. 3) reconhece que a


fenomenologia não se deixa circunscrever facilmente, que ela está a caminho há muito
tempo e pode ser reencontrada em Hegel, Marx ou Freud, porque “a fenomenologia se
deixa praticar e reconhecer como maneira ou como estilo; ela existe como movimento
antes de ter chegado a uma inteira consciência filosófica”.

Mas a unidade da fenomenologia e seu verdadeiro sentido só podem ser


encontrados em nós mesmos; é esta “fenomenologia para nós” que faz com que, “lendo
Husserl ou Heidegger, vários de nossos contemporâneos tenham tido o sentimento muito
61

menos de encontrar uma filosofia nova do que de reconhecer aquilo que eles esperavam”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 2). Por fim, como “A fenomenologia só é acessível a um

método fenomenológico”, o que Merleau-Ponty (1999, p. 2-3) propõe é “ligar


deliberadamente os famosos temas fenomenológicos assim como eles se ligaram
espontaneamente na vida”.

1.4.1 Descrição e retorno ‘às coisas mesmas’

“Trata-se de descrever, não de explicar nem de analisar” – para Merleau-Ponty


(1999, p. 3) essa “primeira ordem” de Husserl à fenomenologia, para que fosse uma
‘psicologia descritiva’ ou um ‘retorno ‘às coisas mesmas’, era, “antes de tudo, a
desaprovação da ciência”, pois:

Eu não sou o resultado ou o entrecruzamento de múltiplas causalidades

que determinam meu corpo ou meu ‘psiquismo’, eu não posso pensar-me

como uma parte do mundo, como o simples objeto da biologia, da

psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da

ciência.Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir

de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os

símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é

construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência

com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos

primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a

expressão segunda. A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido

de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma

determinação ou uma explicação dele.

As representações científicas, sentencia Merleau-Ponty (1999, p. 3-4), segundo as


quais eu sou um momento do mundo, “são sempre ingênuas e hipócritas, porque elas
subentendem, sem mencioná-la, essa outra visão, aquela da consciência, pela qual antes
de tudo um mundo se dispõe em torno de mim e começa a existir para mim”, pois “eu sou
62

a fonte absoluta; minha experiência não provém de meus antecedentes, de meu meio
físico e social, ela caminha em direção a eles e os sustenta, pois sou eu quem faz ser
para mim [...] essa tradição que escolho retomar”. Retornar às coisas mesmas é então:

retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento

sempre fala, e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata,

significativa23 e dependente, como a geografia em relação à paisagem –

primeiramente nos aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um

riacho. (MERLEAU-PONTY (1999, p. 4)

Adverte Merleau-Ponty (1999, p. 4) que esse movimento é bastante distinto do


retorno idealista à consciência, pelo qual Descartes e Kant, mediante uma “análise
reflexiva”, desligaram o sujeito ou a consciência do mundo, ao fazerem ver que eu não
poderia apreender nenhuma coisa como existente “se primeiramente eu não me
experimentasse existente no ato de apreendê-la”; aparece assim a consciência, “a
absoluta certeza de mim para mim, sem a qual não haveria absolutamente nada”, e
tomaram “o ato de ligação como fundamento do ligado”. Mas “o ato de ligação não é nada
sem o espetáculo do mundo que ele liga” e “as relações entre o sujeito e o mundo não
são rigorosamente bilaterais”, e por isso Husserl opôs à análise noética, “que faz o mundo
repousar na atividade sintética do sujeito”, a reflexão noemática, “que reside no objeto e
explicita sua unidade primordial em lugar de engendrá-la” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 5).

Como o mundo “está aí antes de qualquer análise que eu possa fazer dele”, tornar-
se-ia artificial “fazê-lo derivar de uma série de sínteses que ligariam as sensações, depois
os aspectos perspectivos do objeto, quando ambos são justamente produtos da análise e
não devem ser realizados antes dela” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 5). Se o real “deve ser
descrito, não construído ou constituído” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 5), não se pode,
então, assimilar a percepção às sínteses que são da ordem do juízo, dos atos ou da
predicação:

23
Talvez se compreenda melhor o raciocínio se substituirmos o termo “significativa” (de “significação”), por
“signitiva” (de “signo”).
63

A cada momento, meu corpo perceptivo é preenchido de reflexos, de

estalidos, de impressões táteis fugazes que não posso ligar de maneira

precisa ao contexto percebido e que, todavia, eu situo imediatamente no

mundo, sem confundi-los nunca com minhas divagações. (MERLEAU-

PONTY, 1999, p. 5-6)

“O real” – prossegue Merleau-Ponty (1999, p. 6) – é um tecido sólido, ele não


espera nossos juízos para anexar a si os fenômenos mais aberrantes, nem rejeitar nossas
imaginações mais verossímeis”. A percepção “não é uma ciência do mundo, não é nem
mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os
atos se destacam e é pressuposta por eles” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 6). O mundo “não
é um objeto do qual possuo comigo a lei da constituição; ele é o meio natural e o campo
de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas [...] o homem
está no mundo, é no mundo que ele se conhece” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 6).

1.4.2 Redução

No entendimento de Merleau-Ponty (1999, p. 7), durante muito tempo Husserl


apresentou a redução como o retorno a uma consciência transcendental diante da qual o
mundo se desdobra em uma transparência absoluta, “animado do começo ao fim por uma
série de apercepções que caberia ao filósofo reconstituir a partir de seu resultado”. A
redução fenomenológica assim entendida seria idealista, “no sentido de um idealismo
transcendental que trata o mundo como uma unidade de valor indiviso entre Paulo e
Pedro, na qual suas perspectivas se recobrem”, e assim suas consciências se
comunicariam porque a percepção do mundo não é uma realização de cada um deles,
mas “um feito de consciências pré-pessoais cuja comunicação não representa problema,
sendo exigida pela própria definição de consciência, do sentido ou da verdade”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 7). Nessa perspectiva, enquanto sou consciência, quer dizer,

“enquanto algo tem sentido para mim”, não me distinguiria de uma ‘outra’ consciência, “já
que nós somos todos presenças imediatas no mundo e já que este mundo é por definição
único, sendo o sistema das verdades” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 7). Em conseqüência,
64

para Merleau-Ponty (1999, p. 7-8) tal idealismo transcendental despoja o mundo de sua
opacidade e de sua transcendência”, a análise reflexiva “ignora o problema do outro
assim como o problema do mundo”, o outro é “sem lugar e sem corpo, o Alter e o Ego são
um só no mundo verdadeiro, elo dos espíritos”:

Não existe dificuldade para se compreender como Eu posso pensar o

Outro porque o Eu e, por conseguinte, o Outro, não estão presos no tecido

dos fenômenos e mais valem do que existem. Não há nada de escondido

atrás destes rostos ou destes gestos, nenhuma paisagem para mim

inacabada, apenas um pouco de sombra que existe pela luz. (MERLEAU-

PONTY, 1999, p. 8)

Todavia, em Husserl, alerta Merleau-Ponty (1999, p. 8), existe um problema do outro


e o alter ego é um paradoxo, pois é preciso eu e o outro apareçamos um ao outro, “é
preciso que ele tenha e que tenha um exterior, e que exista – além da perspectiva do
Para Si – minha visão sobre mim e a visão de outro sobre ele mesmo - , uma perspectiva
do Para Outro – minha visão sobre o Outro e a visão do Outro sobre mim.”. Como essas
duas perspectivas, em cada um de nós, não podem estar justapostas, “pois então não
seria a mim que o outro veria e não seria a ele que eu veria”, é preciso “que eu seja meu
exterior, e que o corpo do outro seja ele mesmo”; com isso, “a filosofia não se completa
com o retorno ao eu [...] descubro pela reflexão não apenas minha presença a mim
mesmo mas também a possibilidade de um ‘espectador estrangeiro” ((MERLEAU-PONTY,
1999, p. 9):

Até hoje, o Cogito desvalorizava a percepção de um outro, ele me

ensinava que o Eu só é acessível a si mesmo, já que ele me definia pelo

pensamento que tenho de mim mesmo e que sou evidentemente o único a

ter, pelo menos nesse sentido último. Para que outro não seja uma palavra

vã, é preciso que minha existência nunca se reduza à consciência que

tenho de existir, que ela envolva também a consciência que dele se possa

ter e, portanto, minha encarnação em uma natureza e pelo menos a


65

possibilidade de uma situação histórica. O Cogito deve revelar-me em

situação, e é apenas sob essa condição que a subjetividade

transcendental poderá, como diz Husserl, ser uma intersubjetividade.

Segundo Merleau-Ponty (1999, p. 9), enquanto “Ego meditante”, sou capaz de


distinguir o mundo e as coisas de mim, pois não existo do mesmo modo que coisas, e
devo “até mesmo afastar de mim meu corpo, entendido como uma coisa entre as coisas,
como uma soma de processos físico-químicos”; mas “a cogitatio que assim descubro, se
está sem lugar no tempo e no espaço objetivos, não está sem lugar no mundo
fenomenológico”, porque:

O mundo que eu distinguia de mim enquanto soma de coisas ou de

processos ligados por relações de causalidade, eu o redescubro “em mim”

enquanto horizonte permanente de todas as minhas cogitationes e como

uma dimensão em relação à qual eu não deixo de me situar. O verdadeiro

Cogito não define a existência do sujeito pelo pensamento de existir que

ele tem, não converte a certeza do mundo em certeza do pensamento do

mundo e, enfim, não substitui o próprio mundo pela significação mundo.

Ele reconhece, ao contrário, meu próprio pensamento como um fato

inalienável, e elimina qualquer espécie de idealismo revelando-me como

“ser no mundo”.

É por causa dessa nossa relação permanente ao mundo que precisamos


suspendê-la, “recusar-lhe nossa cumplicidade” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 10): por isso a
redução de que fala a fenomenologia husserliana. Tal não que dizer que se deva
renunciar às certezas do senso comum e da atitude natural, mas exatamente porque elas
são evidentes, por serem pressupostos de todo pensamento, “passam desapercebidas” e
“para despertá-las e fazê-las aparecer, precisamos abster-nos delas por um instante”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 10). “A reflexão”, prossegue Merleau-Ponty (1999, p. 10) – “não

se retira do mundo em direção à unidade da consciência enquanto fundamento do


66

mundo”, o que ela faz é tomar distância “para ver brotar as transcendências, ela distende
os fios intencionais que nos ligam ao mundo para vê-los aparecer, ela só é consciência do
mundo porque o revela como estranho e paradoxal”’ E para ver o mundo como paradoxo
“é preciso romper nossa familiaridade com ele [...] e essa ruptura só pode ensinar-nos o
brotamento imotivado do mundo”. Por isso, afirma Merleau-Ponty (1999, p. 10), Husserl
censurava a filosofia kantiana “porque ela utiliza nossa relação ao mundo, que é o motor
da dedução transcendental, e torna o mundo imanente ao sujeito, em lugar de admirar-se
dele e conceber o sujeito como transcendência em direção ao mundo”.

Daí a conclusão de que “o maior ensinamento da redução é a impossibilidade da


redução completa”, porque “nós estamos no mundo, já que mesmo nossas reflexões têm
lugar no fluxo temporal que elas procuram captar [...], não existe pensamento que
abarque todo pensamento” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 10-11). O filósofo não deve
considerar como adquirido o que os homens ou cientistas acreditam saber, nem a filosofia

deve considerar-se a si mesmo como adquirida naquilo ela pôde dizer de

verdade, que ela é uma experiência renovada de seu próprio começo, que

toda ela consiste em descrever este começo e, enfim que a reflexão radical

é consciência de sua própria dependência em relação a uma vida

irrefletida que é sua situação inicial, constante e final.

Portanto, para Merleau-Ponty (1999, p. 11), a redução fenomenológica não é a


fórmula de uma filosofia idealista”, mas de uma filosofia existencial: “o In-der-Welt-Sein’24
de Heidegger só se manifesta sobre o fundo da redução fenomenológica”.

1.4.3 Essências

Toda redução - na apreensão que Merleau-Ponty (1999, p. 11) faz do pensamento


husserliano – é ao mesmo tempo transcendental e eidética; a essência não é a meta, ela
é um meio, “que nosso engajamento efetivo no mundo é justamente aquilo que é preciso
compreender e conduzir ao conceito e que polariza todas as nossas fixações conceituais”.

24
“Ser-no-Mundo”.
67

Não são as essências que a filosofia toma por objeto, mas a nossa existência que,
contudo, está presa ao mundo de modo muito estreito “para conhecer-se enquanto tal no
momento em que se lança nele” e por isso ela precisa “do campo da idealidade para
conhecer e conquistar sua facticidade” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 12).

Quaisquer que sejam os sentidos da palavra e do conceito “consciência” enquanto


aquisição da linguagem, nós temos um meio direto de ter acesso àquilo que ele designa:
“nós temos a experiência de nós mesmos, dessa consciência que somos, e é a partir
dessa experiência que se medem todas as significações da linguagem, é justamente ela
que faz com que a linguagem queira dizer algo para nós”. “É a experiência (...) ainda
muda que se trata de levar à expressão pura de seu próprio sentido” (HUSSERL25, apud
MERLEAU-PONTY, 1999, p. 12) as essências de Husserl “devem trazer consigo todas as

relações vivas da experiência, assim como a rede traz do fundo do mar os peixes e as
algas palpitantes” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 12). Portanto, entende Merleau-Ponty (1999,
p. 12), não é correto dizer que, para Husserl, as essências estão separadas da existência,

pois “as essências separadas são as da linguagem”, pois:

É função da linguagem fazer as essências existirem em uma separação

que, na verdade, é apenas aparente, já que através da linguagem as

essências ainda repousam na vida antepredicativa da consciência. No

silencia da consciência originária, vemos aparecer não apenas aquilo que

as palavras querem dizer, mas ainda aquilo que as coisas querem dizer, o

núcleo de significação primário em torno do qual se organizam os atos de

denominação e de expressão.

Adverte Merleau-Ponty (1999, p. 13) que buscar a essência do mundo não é


buscar aquilo que ele é em idéia”, quando o reduzimos a tema de discurso, mas é “buscar
aquilo que de fato ele é para nós antes de qualquer tematização”. O sensualismo e o
idealismo transcendental também ‘reduzem’ o mundo; o primeiro ao observar que “nós só

25
HUSSERL, E. Méditation cartésiennes.
68

temos estados de nós mesmos”, o segundo porque, torna o mundo “certo”, mas “a título
de pensamento ou consciência do mundo e como o simples correlativo do nosso
conhecimento, de forma que ele imanente à consciência e através disso a aseidade26 das
coisas está suprimida” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 13). Já a redução eidética “é a
resolução de fazer o mundo aparecer tal como ele é antes de qualquer retorno sobre nós
mesmos, é a ambição de igualar a reflexão à vida irrefletida da consciência” (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 13). Prossegue Merleau-Ponty (1999, p. 13):

Eu viso e percebo um mundo. Se eu dissesse, com o sensualismo, que só

existem “estados de consciência” e se eu procurasse, através de

“critérios”, distinguir minhas percepções de meus sonhos, eu deixaria

escapar o fenômeno do mundo. Pois se posso falar de “sonhos” e de

“realidade”, se posso interrogar-me sobre a distinção entre o imaginário e o

real, e pôr em dúvida o “real”, é porque essa distinção já está feita por mim

antes da análise, é porque tenho experiência do real assim como do

imaginário, e o problema é agora não o de investigar como o pensamento

crítico pode se dar equivalentes secundários dessa distinção, mas o de

explicitar nosso saber primordial do “real”, o de descrever a percepção do

mundo como aquilo que funda para sempre nossa idéia de verdade.

Portanto, conclui Merleau-Ponty (1999, p. 14) que não é preciso perguntar-se se nós
percebemos verdadeiramente um mundo, mas, ao contrário, dizer que “o mundo é aquilo
que nós percebemos”. Se falamos de ilusão, com referência a alguma verdade, é porque
somos capazes de reconhecer ilusões, e só podemos fazê-lo “em nome de alguma
percepção que, no mesmo instante, se atestava como verdadeira, de forma que a dúvida,
ou o temor de nos enganar, afirma ao mesmo tempo nosso poder de desvelar o erro e
não poderia, portanto, desenraizar-nos da verdade”. Nós estamos na verdade, e a

26
“Aseidade”: qualidade fundamental que distingue um ser de todos os demais seres, pela qual possui em
si mesmo a causa ou o princípio de sua própria existência,
69

evidência é “a experiência da verdade” (HUSSERL27, apud MERLEAU-PONTY, 1999, p. 14), e


buscar a essência da percepção é declarar não é presumida verdadeira, “mas definida por
nós como acesso à verdade” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 14). Já o idealismo, ao buscar
fundar “essa evidência de fato em uma evidência absoluta, “na absoluta clareza para mim
de meus pensamentos”, e ao procurar “reencontrar em mim um pensamento naturante
que formasse a armação do mundo ou o iluminasse do começo ao fim”, torna-se “mais
uma vez infiel à minha experiência do mundo e procuraria aquilo que a torna possível em
lugar de buscar aquilo que ela é”. Pois, “o mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo
que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não
o possuo, ele é inesgotável” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 14).

1.4.4 Intencionalidade

No entendimento de Merleau-Ponty (1999), a noção de intencionalidade só é


compreensível pela redução. Dizer que “toda consciência é consciência de algo” não é
novo, em Kant tal já estava presente. O que distingue a intencionalidade como noção
fenomenológica “é que a unidade do mundo, antes de ser posta pelo conhecimento e em
um ato expresso de identificação, é vivida como já feita ou já dada” (MERLEAU-PONTY,
1999, p. 15). Husserl fala de uma “teleologia da consciência”, mas não se trata de “duplicar

a consciência humana com um pensamento absoluto que, do exterior, lhe atribuiria seus
fins”, como em Kant, mas de “reconhecer a própria consciência como projeto do mundo,
destinada a um mundo que ela não abarca nem possui, mas em direção ao qual ela não
cessa de se dirigir – e o mundo como este indivíduo pré-objetivo cuja unidade imperiosa
prescreve à consciência a sua meta” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 16). Por isso, Husserl
distinguiu entre a intencionalidade de ato28 - “aquela de nossos juízos e de nossas
tomadas de posição voluntária” e a única da qual Kant falou – e a intencionalidade
operante, “aquela que forma a unidade natural e antepredicativa do mundo e de nossa
vida”, a qual aparece “em nossos desejos, nossas avaliações, nossa paisagem, mais
claramente do que no conhecimento objetivo, e fornece o texto do qual nossos

27
HUSSERL, E. Logische Untersuchungen.
28
Que Dartigues (1973, p. 54) denominou “intencionalidade temática”.
70

conhecimentos procuram ser a tradução em linguagem exata” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.


16). A noção de intencionalidade nos indica que nossa relação ao mundo, tal como se

pronuncia em nós, “não é nada que possa ser tornado mais claro por uma análise: a
filosofia só pode recolocá-la sob nosso olhar, oferecê-la à nossa constatação” (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 16).

Para Merleau-Ponty (1999, p. 16), foi por conta dessa ampliação da noção de
intencionalidade que a “compreensão” fenomenológica pode distinguir-se da “intelecção”
clássica, que se limita às “naturezas verdadeiras e imutáveis”, e a “fenomenologia pode
tornar-se uma fenomenologia de gênese”:

Quer se trate de uma coisa percebida, de um acontecimento histórico ou

de ma doutrina, “compreender” é reapodera-se da intenção total – não

apenas aquilo que são para a representação as “propriedades” da coisa

percebida, a poeira dos “fatos históricos”, as “idéias” introduzidas pela

doutrina -, mas a maneira única de existir que se exprime nas propriedades

da pedra, do vidro ou do pedaço de cerca, em todos os fatos de uma

revolução, em todos os pensamentos de um filósofo [...] não há uma

palavra, um gesto humano, mesmo distraídos ou habituais, que não

tenham uma significação. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 16-17)

Portanto, a história deve ser compreendida de muitas maneiras, ao mesmo tempo,


a partir da ideologia, da política, da religião, da economia; pois “tudo tem um sentido, nós
reencontramos sob todos os aspectos a mesma estrutura de ser”, todas essas visões são
verdadeiras, “sob a condição de que não a isolemos, de que caminhemos até o fundo da
história e encontremos o núcleo único de significação existencial que se explicita a cada
perspectiva” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 17). São verdadeiras todas as explicações
econômicas e psicológicas de uma doutrina, “já que o pensador pensa sempre a partir
daquilo que ele é”; a própria reflexão sobre uma doutrina só será total “se ela fazer sua
junção com a história da doutrina e com as explicações externas, e se conseguir recolocar
as causas e o sentido da doutrina em uma estrutura de existência”; há uma “gênese do
71

sentido”, “que é a única a nos ensinar, em última análise, aquilo que a doutrina ‘quer
dizer” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 17). Em conclusão, para Merleau-Ponty (1999, p. 17-18):
“Porque estamos no mundo, estamos condenados ao sentido, e não podemos fazer nada
nem dizer nada que não adquira um nome na história".

1.4.5 Possibilidades e limites da fenomenologia

Para Merleau-Ponty (1999, p. 18), a mais importante aquisição da fenomenologia foi


ter unido “o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção do mundo ou da
racionalidade”; a racionalidade existe: “as perspectivas se confrontam, as percepções se
confirmam, um sentido aparece”, sentido todavia que não deve ser “transformado em
Espírito absoluto ou em mundo no sentido realista”. Pois:

O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece

na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas

experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras;

ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que

formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em

minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha. Pela

primeira vez o filósofo é consciente o bastante para não realizar no mundo

e antes dela os seus próprios resultados. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 18-

19)

Ao tentar pensar o mundo, o outro e a si mesmo, o filósofo não encontra uma


racionalidade já dada, ele a estabelece “por uma iniciativa que não tem garantia no ser e
cujo direito repousa inteiramente no poder efetivo que ela nos dá de assumir nossa
história”; o mundo fenomenológico não é a explicitação de um ser prévio, mas fundação
do ser”, e a filosofia “não é o reflexo de uma verdade prévia mas, assim como a arte, é a
realização de uma verdade” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 19).
72

É certo que se pode perguntar, questiona Merleau-Ponty (1999, p. 19), como tal
realização é possível “se ela não reencontrar nas coisas uma Razão preexistente”. É
porque:

o único Logos que preexiste é o próprio mundo, e a filosofia que o faz

passar à existência manifesta não começa por ser possível: ela é atual ou

real, assim como o mundo, do qual ela faz parte, e nenhuma hipótese

explicativa é mais clara do que o próprio ato pelo qual nós retomamos este

mundo inacabado para tentar totalizá-lo ou pensá-lo. (MERLEAU-PONTY,

1999, p. 19)

E ainda, acrescenta Merleau-Ponty (1999, p. 19), porque a racionalidade “não é um


problema”; não há detrás dela “uma incógnita que tenhamos de determinar dedutivamente
ou provar indutivamente a partir dela”, pois “ninguém melhor do que nós” sabemos como
se dá o “prodígio da conexão das experiências”, já que “nós somos este laço de relações”.
Assim a “verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo, e nesse sentido uma história
narrada pode significar o mundo com tanta “profundidade” quanto um tratado de filosofia”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 19).

Em conclusão, para Merleau-Ponty (1999, p.20), a fenomenologia, “enquanto


revelação do mundo, repousa sobre si mesma, ou, ainda, funda-se a si mesma”. Todos os
conhecimentos apóiam-se em um “solo” de postulados e em nossa comunicação com o
mundo como primeiro estabelecimento da racionalidade, mas a filosofia “priva-se em
princípio desse recurso, pois ela também está na história, “usa, ela também, o mundo e a
razão constituída”. Por isso, é preciso que a fenomenologia dirija a si mesma a
interrogação que dirige a todos os conhecimentos; então “ela se desdobrará
indefinidamente, ela será, como diz Husserl, um diálogo ou uma meditação infinita, e, na
medida em que permanecer fiel à sua intenção, não saberá aonde vai” (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 20). Por fim, para Merleau-Ponty (1999, p. 20), o inacabamento da
fenomenologia e seu andar sempre reiniciado “não são o signo de um fracasso, eles eram
73

inevitáveis porque a fenomenologia tem como tarefa revelar o mistério do mundo e o


mistério da razão29”.

2 AS POSSIBILIDADES DA FENOMENOLOGIA DE M. MERLEAU-PONTY E A


EDUCAÇÃO FÍSICA

2.1. Corpo e motricidade

Talvez poucos filósofos tenham sido tão citados e, ao mesmo tempo, tão pouco
estudados na Educação Física como Merleau-Ponty. “Eu sou meu corpo” – a frase
famosa ecoa como uma palavra de ordem que muitos repetem sem compreendê-la bem.
Quando Merleau-Ponty (1999, p. 207-208) afirma que “eu não estou diante de meu corpo,
estou em meu corpo, ou antes sou meu corpo”, está - de modo espetacularmente
sintético, é verdade -, diferenciando o “corpo objetivo” do “corpo próprio” ou “fenomenal”.

O corpo objetivo é o corpo considerado um objeto do mundo, como qualquer outro.


Lembramos que “objetivar” provém do latim ob (“diante de”) e jact (“lançar”), quer dizer,
distanciar-se dos fenômenos, colocá-los diante de si, para analisá-los e explicá-los. No
pensamento objetivo (o do senso comum e da ciência) “não me ocupo mais de meu
corpo, nem do tempo, nem do mundo, tais como o vivo no saber antepredicativo, na
comunicação interior que tenho com eles”; fala-se apenas do “corpo em idéia, do universo
em idéia, da idéia do espaço e da idéia do tempo” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 109). Já
o corpo próprio ou fenomenal é o do qual tenho a experiência atual, é a função do corpo
vivo, é “a verdade do corpo tal como nós o vivemos”, da qual o corpo objetivo, que apenas
existe conceitualmente, é só “uma imagem empobrecida” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.
578).

E é o movimento que confere ao corpo próprio sua dimensão de temporalidade e


transcendência. Merleau-Ponty (1999, p. 431) já demonstrou como “por ele mesmo, o

29
Esta última expressão Merleau-Ponty credita a G. Gusdorf.
74

corpo em repouso é apenas uma massa obscura”, o qual só percebemos “como um ser
preciso e identificável quando ele se move em direção a uma coisa, enquanto ele se
projeta intencionalmente para o exterior”, e aponta como é mais fácil reconhecer nossa
silhueta ou andar filmado do que nossa própria mão em uma fotografia. Portanto,
podemos afirmar, junto com Tamboeur (1979), que a corporeidade é reconhecida no
movimentar-se, mas não o contrário. Porque o ser humano movimenta-se não
exatamente em busca da transcendência, como entende Sérgio (1987)30, mas o
movimentar-se humano já é a própria transcendência, pois, a partir da atualidade da
percepção, envolvido por uma intencionalidade, movo-me em direção ao futuro, à criação
e à expressão. Para MERLEAU-PONTY (1999), perceber é, a partir do passado, que não
me é totalmente conhecido (corpo habitual), e apoiado na materialidade do presente
(corpo atual), lançar-se ao futuro, que não me é totalmente previsível (corpo perceptivo).
Portanto, o corpo perceptivo é virtual, nós percebemos como uma possibilidade futura;
sou sempre corpo atual, mas dirigido por hábitos que retomo de maneira expressiva pela
motricidade (MÜLLER, 2001), conforme figura 1:

FUTURO

CORPO PERCEPTIVO
motricidade espacial
PRESENTE ncia expressiva
ndê
sce criação
tran e
dad
nali
CORPO ATUAL ncio ra virtualidade
PASSADO inte moto
contingência

CORPO HABITUAL
hábitos motores materialidade

generalidade indeterminada

FIGURA 1. O corpo próprio em Merleau-Ponty

30
Em obra mais recente (SÉRGIO, 2003, p. 35) o entendimento de transcendência parece estar mais
apenas no sentido de busca da superação, pelo ser humano, de sua própria condição: “transcendência é o
processo normal de um ente cuja estrutura essencial é a consciência da incompletude e a vontade de
superá-la”.
75

Mas é equívoco supor que, com a distinção entre corpo objetivo e corpo próprio,
Merleau-Ponty superou a dicotomia entre corpo e alma, corpo e espírito etc.,
supostamente instituída por Descartes (de quem, na verdade, Husserl e Merleau-Ponty
são devedores) e resgatou a unidade do ser humano. O resultado da análise
fenomenológica do corpo próprio aponta para sua ambigüidade constitutiva, porque, se o
corpo não é um objeto, também “a consciência que tenho dele não é um pensamento,
quer dizer, não posso decompô-lo e recompô-lo para formar dele uma idéia clara”, e
portanto “sua unidade é sempre implícita e confusa”; está “enraizado na natureza no
próprio momento em que se transforma pela cultura, nunca fechado em si mesmo e
nunca ultrapassado” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 269).

2.2 Gesto, expressão e significação

Para Merleau-Ponty (1999), toda expressão humana – inclusive a fala - é gestual,


e o gesto, experimentado como figura sobre o fundo do corpo, produz sua própria
significação; mas, o que é uma certa maneira de desempenhar do nosso corpo - os
gestos - investem-se, repentinamente, “de um sentido figurado e o significam fora de nós”
(p. 263), no plano da intersubjetividade.

Isso quer dizer que o corpo próprio é “elástico”, expande-se, produz efeitos. Ora, a
Educação Física tem mais considerado os efeitos do “meio” (cultural/ natural) sobre o
corpo, mas a fenomenologia merleau-pontyana indica que deveria também ocupar-se dos
“efeitos” do corpo sobre o meio: sobre as coisas e os outros. Por exemplo, crianças e
jovens imitam os gestos dos craques do futebol ou do basquete que vêem na televisão; tal
evidencia não apenas o poder de influência das mídias enquanto aparato tecnológico,
mas também o poder de expansão do corpo próprio, que possui uma “natureza
enigmática”, pois “o vemos secretar em si mesmo um ‘sentido’ que não lhe vem de parte
alguma, projetá-lo em sua circunvizinhança material e comunicá-lo aos outros sujeitos
encarnados” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 267).
76

É isso que leva Araújo (2005), por exemplo, a compreender a relação de um


jogador com a bola não como uma conexão “direta” e “pura”, mas por meio do movimento
que proporciona, paulatinamente o rearranja dessa relação. É importante ressaltar que a
bola é algo que também é percebido por outros, e, portanto tem caráter universal, pois
oferece sempre a possibilidade de retomada, de criação de algo inédito a partir do fundo
que se exprime na dimensão mesma da relação estabelecida no jogo. Ao ver a bola, o
jogador também percebe que ela é vista pelos outros, e neste sentido constitui-se um
objeto, pois se aquilo que intuiu manifestou-se, então é porque há ali algo “dele”, e por
isso pode ser para qualquer um. Nessa perspectiva, há uma significação que vai sendo
refeita, à medida que os contextos vão se modificando, à medida que as situações de
jogo vão se apresentando de modos diferentes. É na transcendência, no fluxo da
temporalidade, que podemos confirmar a pertinência, ou não, das nossas intuições;
portanto não existe a coisa “em si”, o que existe são relações que possibilitam as
significações ou re-significações sobre algo no mundo.

É nesse sentido que a intersubjetividade aparece nos jogos e esportes como


aspecto fundamental. É na relação com o outro que podemos nos abrir para o mundo,
perceber a presença deste outro em mim, e ao mesmo tempo me ver limitado por ele,
abrindo assim uma possibilidade de me singularizar em meio a tantas outras (MERLEAU-
PONTY, 2000). Dessa forma, conforme Araújo (2005), pode-se dizer que há uma
universalidade no jogar. O jogo não é apenas uma representação feita a partir de um
conjunto de regras. Polarizamo-nos constantemente no outro, ensaiamos a jogada do
outro, nos experimentamos no “corpo” do outro. Eis que o outro faz outra coisa, aquilo que
eu não previ, o inesperado, e logo percebo que não posso controlá-lo. Assim, “invento”
um signo para preencher a lacuna que se formou entre nós. E, nessa diferenciação, surge
a expressão, que é intersubjetivamente construída.

Contudo, entendemos que o gesto não expressa significações, tal como aparece
em Sérgio (1986), como se as significações existissem a priori no interior do sujeito e
fossem exteriorizadas pelos gestos. Embora, comenta Merleau-Ponty (1999, p. 267),
sempre se tenha observado que o gesto ou a fala transfiguravam o corpo, contentava-se
77

em dizer que eles desenvolviam ou manifestavam uma outra potência, pensamento ou


alma, mas não se percebia que, “para poder exprimi-lo, em última análise o corpo precisa
tornar-se o pensamento ou a intenção que eles nos significa”. Portanto, a produção do
gesto e da significação não podem ser dissociados, e seria mais correto dizer que os
gestos são significativos, e atualizam experiências vividas em novas significações – dessa
maneira, fica sempre aberta a possibilidade de criação no movimentar-se humano.

Pensemos em um gesto esportivo – um arremesso no basquetebol, por exemplo.


Não há nele, necessariamente, um significado/sentido pré-determinado, mas sim
relacionado à intencionalidade e sentidos atribuídos pelo sujeito que a desempenha, em
um contexto concreto. Por isso, mesmo em uma modalidade esportiva em alto nível de
rendimento técnico, o inédito pode surgir, a partir de relações significativas estabelecidas
pelos sujeitos em suas vivências na dimensão mesma da prática esportiva.

Já a fala, no entendimento merleau-pontyano, é um gesto especial, porque permite


retomar, de modo econômico, significações disponíveis em uma comunidade lingüística. A
fala é a única, entre todas as operações expressivas capaz de sedimentar-se e de
constituir um saber intersubjetivo (cultura), pois “ela se esquece de si mesmo enquanto
fato contingente, ela repousa sobre si mesma”, sua operação expressiva pode ser
indefinidamente reiterada, o que o atesta o fato de que “se pode falar sobre fala, enquanto
não se pode pintar sobre a pintura” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 258)

Merleau-Ponty (1999, 2000) distingue a fala falada da fala falante. A primeira


traduz um pensamento já adquirido, é aquilo que já foi dito, e que resgatamos de outros
tempos para que possamos nos expressar. A fala falada desfruta as significações
disponíveis; com ela, produzimos a fala falante, que atualiza, que abre para uma nova
significação, que se estabelece a partir de um novo gesto.

Vamos a um exemplo que poderá esclarecer o leitor, conforme aparece em Betti


(2005). Didi, um dos maiores jogadores da história do futebol brasileiro, descreveu, em
entrevista à televisão, como “inventou” a “folha seca”, um chute de longa distância no qual
a bola se elevava muito e, já próxima à meta adversária, descia rapidamente, enganando
o goleiro. Pois bem, tal modo de chutar a bola não foi fruto de um processo de “treino”, de
78

experimentação controlada com o propósito de criar um novo tipo de chute mais eficiente
para atingir o objetivo do futebol (“fazer gols”), mas, segundo o próprio jogador, decorreu
do fato de estar com o calcanhar machucado, o que o obrigou a chutar apoiado na ponta
dos pés, criando involuntariamente uma nova mecânica do chute. Quer dizer, ele não
“pensou”, não refletiu antecipadamente sobre como chutar a bola nessa nova situação
corporal que a contusão lhe impôs, mas o corpo organizou a ação motora
espontaneamente, intuitivamente. Ora, isso é exatamente o que se chama
intencionalidade operante, que tem a ver com os meios que o corpo oferece naturalmente,
atualizando hábitos (passado) na percepção presente, em proveito de uma nova
significação (futuro), por isso a temporalidade, ao lado da espacialidade, é categoria
central na fenomenologia. Esta é uma vivência do corpo próprio, na qual:

nosso corpo não é um objeto para um “eu penso”: ele é um conjunto de

significações vividas que caminha para seu equilíbrio. Por vezes forma-se

um novo nó de significações: nossos movimentos antigos integram-se a

uma nova entidade motora [...] repentinamente nossos poderes naturais

vão ao encontro de uma significação mais rica que até então estava

apenas indicada em nosso campo perceptivo ou prático, só se anunciava

em nossa experiência por uma certa falta, e cujo advento reorganiza

subitamente nosso equilíbrio e preenche nossa expectativa cega.

(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 212)

Certamente os pesquisadores em biomecânica ou neurofisiologia poderão explicar


a “folha seca” nos termos das leis e fatos objetivos envolvidos, e eles não serão
necessariamente contraditórios, apenas reduzidos ao corpo atual objetivado, ao passo
que falávamos nós do corpo fenomenal. Do mesmo modo, professores de Educação
Física e treinadores esportivos poderão apropriar-se desse gesto e inseri-lo em uma
didática do futebol – estaríamos aí, então, no âmbito da cultura, cuja dinâmica envolve a
atribuição de novos sentidos ao que, outrora, foi “inventado”. Mas tais procedimentos são
79

posteriores, assim como, a posteriori, o próprio Didi pode compreender racionalmente o


que fez, e pode explicá-lo em palavras.

Em uma compreensão merleau-pontyana, poderíamos dizer que:

A nova intenção significativa só se conhece a si mesma recobrindo-se de

significações já disponíveis, resultado de atos de expressão anteriores. A

significações disponíveis entrelaçam-se repentinamente segundo uma lei

desconhecida, e de uma vez por todos um novo ser cultural começou a

existir. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 249).

É por isso que, em sua “teoria da constituição”, Husserl, na apreensão de Dartigues


(1973) afirmou que não somente o mundo é constituído, mas que o próprio sujeito se
constitui, que ele deve se conquistar pela reflexão sobre sua própria vida irrefletida, o que
o levou a distinguir dois tipos de intencionalidade: (i) intencionalidade temática, “aquela de
nossos juízos e de nossas tomadas de posição voluntária” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.
16), que é “saber do objeto e saber deste saber sobre o objeto” (DARTIGUES, 1973, p.
54); e (ii) intencionalidade operante ou ‘em exercício’, que é “a visada do objeto em ato,
não ainda refletida” (DARTIGUES, 1973, p. 54) “aquela que forma a unidade natural e
antepredicativa do mundo e de nossa vida”, a qual aparece “em nossos desejos, nossas
avaliações, nossa paisagem, mais claramente do que no conhecimento objetivo, e fornece
o texto do qual nossos conhecimentos procuram ser a tradução em linguagem exata”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 16).

Conforme explica Dartigues (1973, p. 54), a intencionalidade operante esforça-se


por alcançar a temática, que a precede, sem nunca consegui-lo plenamente. Logo, a
reflexão - o saber consciente – “só se exerce sobre esse fundo de irreflexão, nessa
dimensão da vida que já é sentido, porque visada de objeto, que já é uma perspectiva
sobre o mundo, mas sentido ainda não-formulado”.
80

Para Merleau-Ponty (1999, p. 16-17), foi por conta dessa ampliação da noção de
intencionalidade que a fenomenologia pode tornar-se “uma fenomenologia da gênese do
sentido”:

Quer se trate de uma coisa percebida, de um acontecimento histórico ou

de uma doutrina, “compreender” é reapoderar-se da intenção total – não

apenas aquilo que são para a representação as “propriedades” da coisa

percebida, a poeira dos “fatos históricos”, as “idéias” introduzidas pela

doutrina -, mas a maneira única de existir que se exprime nas propriedades

da pedra, do vidro ou do pedaço de cerca, em todos os fatos de uma

revolução, em todos os pensamentos de um filósofo [...] não há uma

palavra, um gesto humano, mesmo distraídos ou habituais, que não

tenham uma significação. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 16-17)

Há uma “gênese do sentido”, que é “a única a nos ensinar, em última análise”, o


que algo “quer dizer”, e portanto, “Porque estamos no mundo, estamos condenados ao
sentido, e não podemos fazer nada nem dizer nada que não adquira um nome na história"
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 17-18).

2.3 A Educação Física como “possibilidade expressiva”

Para Merleau-Ponty (1999, p. 136) o corpo é a permanência absoluta, e serve de


fundo à presença ou ausência dos objetos, “no interior de um campo de presença
primordial, de um domínio perceptivo sobre os quais meu corpo tem potência”, e não é
uma “coisa” no espaço objetivo, mas um sistema de ações possíveis, um corpo virtual
cujo “lugar” fenomenal é definido por sua tarefa e por sua situação.

Há aí uma correspondência entre possibilidades perceptivas e possibilidades


motoras, que no entendimento merleau-pontyano são elementos da existência indivisa e
aberta. Como, originariamente, “a consciência é não um ‘eu penso que’, mas um ‘eu
posso” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.192), a motricidade é a intencionalidade original, e o
81

que é “próprio” na vivência do “corpo próprio” são as minhas possibilidades existenciais –


minha história, inserida no fluxo da temporalidade – embora em momento algum me seja
própria alguma certeza.

O que a fenomenologia indica à Educação Física é, pois, um domínio da


possibilidade: na medida em que posso me transcender, para o outro e para o mundo, eu
tenho possibilidades. Ou seja, as possibilidades do mundo são também as minhas
possibilidades; nesse sentido é que o mundo inteiro se fala em nós, pois sou feito do
mesmo tecido que o mundo (MERLEAU-PONTY, 2000)

Essa perspectiva confere com a “concepção dialógica do movimento humano”,


iniciada por C.C.F. Gordjin, e prosseguida por Tamboeur (1979), para a qual o Se
movimentar31 é um diálogo entre homem e mundo.

Com base na fenomenologia merleau-pontyana, Tamboeur (1979, p. 17) irá dizer


que no Se movimentar o homem se relaciona a algo exterior a ele próprio – (uma coisa,
ou outrem), que é questionada quanto ao seu significado:

No movimentar, a bola, por exemplo, sofrerá um processo de

questionamento quanto a sua propriedade de saltar ou rolar; a água

quanto à sua atravessabilidade etc. No seu movimentar, o homem sempre

questiona e responde ao Outro” [...]. O homem questiona o mundo (a bola)

quanto ao seu significado, e este é construído por meio do movimento

(contatos com a bola).

Assim, o Se movimentar pode conduzir à “compreensão-de-mundo-pelo-agir”,


desde que o processo de ensino e aprendizagem não se restrinja à imitação da forma
(padrões de movimento já fixados), e dirija-se à busca da transcendência aprendida, que

31
O “Se”, do Se movimentar, como escolhemos traduzir a expressão alemã “Sich-bewegen” refere-se à
‘próprio”, por isso outra tradução possível seria “movimento próprio”, que é, aliás, a opção presente em
Merleau-Ponty (2000, p. 232).
82

abre a possibilidade do encontro criativo ou inventivo com o “mundo do movimento”


(TAMBOUER, 1979).

Retornando a Merleau-Ponty (1999, p. 521), se fizermos uma analogia com suas


noções de fala falada e fala falante, poderemos dizer que o primeiro ser humano que
experimentou deslizar pelas ondas equilibrando-se em um pedaço de madeira, ou
arremessou um objeto esférico de encontro a um alvo realizou o gesto originário – o “Se
movimentar” como gesto movimentante - “que o faz primeiramente existir para nós
mesmos assim como para outrem”; por isso, em geral recordamos facilmente dos jogos
da nossa infância e adolescência, porque nos recordamos “de seu aspecto precioso [...]
como uma paisagem desconhecida, quando as estávamos adquirindo e quando elas
ainda exerciam a função primordial da expressão”. E o método didático da Educação
Física, com a inspiração fenomenológica aqui proposta, deverá buscar propiciar a
todos/as aqueles/as que se iniciam no surfe, no ou no basquetebol, a vivência desse “Se
movimentar” originário, enquanto gesto movimentante, e não como gesto movimentado,
que é secundário porque já adquirido, e que tende a levar para a aprendizagem por
imitação da forma, em detrimento da criação.

Tal entendimento confere também caráter ambíguo à aprendizagem dos gestos


esportivos, pois, se estamos condenados a sermos inéditos no plano da percepção, mas
o estamos, necessariamente, no estamos no plano da cultura, no qual podemos nos
repetir (a “fala falada”, o “gesto movimentado”). Para quem aprende pela primeira vez
uma modalidade esportiva, os gestos que realiza são inéditos, mas não o são para a
cultura esportiva. Parece-nos que é nesse ponto que se situa a questão crítica da
abordagem “culturalista” da Educação Física, a qual tende a suspeitar do caráter
“reprodutivista” e “mecanizado” do esporte.

Depois, os gestos surfísticos ou futebolísticos adquirem e adquiriram autonomia,


(por exemplo, o surfe não se aplica mais ao mar enquanto natureza), mas “criam seu
próprio objeto, e, a partir do momento em que são conscientes de si o bastante,
encerram-se deliberadamente no mundo cultural” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 523); quer
dizer, o surfe e o futebol tornam-se esportes, um sistema de gestos técnicos que podem
83

ser transmitidos como “verdade”, e adquirem, então, um certo distanciamento da sua


origem, o que o atesta o fato de que essas modalidades apresentam-se em diferentes
contextos, com múltiplos sentidos.

Contudo, como entende Merleau-Ponty (1999, p. 521), essa aquisição cultural é


apenas “uma parada no processo indefinido da expressão, um pensamento” - um gesto,
dizemos nós - “que procura estabelecer-se e que só o consegue cedendo a um uso
inédito dos recursos da linguagem constituída” - dos gestos movimentados,
acrescentamos nós. Portanto, há aí expressão, há criação. Porque, nesses gestos
técnicos - gestos movimentados -, já havia “excesso do significado sobre o significante”, o
esforço do gesto movimentado para igualar o gesto movimentante, “a mesma junção
provisória entre um e outro que faz todo o mistério da expressão” (MERLEAU-PONTY,
1999 p. 521). Ou seja, exprimir é fazer reviver algo em torno de meu gesto, mas algo que
não se reduz a ele, pois há sentidos/significações sobrepostas e paralelas às minhas
ações (MÜLLER, 2001).

Para melhor compreensão do que estamos querendo dizer, parafraseamos


Merleau-Ponty (1999, p. 522): se todas as aquisições culturais do surfe e do futebol (e do
basquete, da dança, da ginástica...), seus equipamentos, praticantes e a memória que se
tem deles fossem destruídas, “seriam necessários novos atos de expressão criadora para
fazê-las aparecer no mundo” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 251).

É importante atentar para o fato de que a criação, as possibilidades virtuais do


corpo perceptivo, devem ser compreendidas no fluxo da temporalidade. Cada gesto
esportivo, ou ginástico, ou cada gesto dançado atual (quer dizer, aquele agora executado)
traz incorporado em si todos os gestos precedentes realizados por todos aqueles que um
dia o executaram - o gesto atual os invoca. Por isso, podemos dizer que jovens negros
norte-americanos que jogam basquete, ou aqueles brasileiros que jogam futebol,
possuem um inconfundível estilo “invocado”, quer dizer, que “invoca” todos os que os
antecederam. Poderíamos falar em um estilo que foi “incorporado”, que qualquer Didática
da Educação Física terá que considerar como dado.
84

Mas a Educação Física, sob o impacto da cientifização (BRACHT, 1999), passou a


avaliar como menos “nobre” ensinar alguém a nadar, do que investigar a biomecânica do
nado, que por sua vez surgiu vinculada à natação como esporte. Pode-se dizer que uma
“pedagogia da natação” surgiu pela primeira vez quando um humano se dispôs a ensinar
outrem a nadar. É o que se repete a cada vez quando um pai ou mãe “ensina” seu filho ou
filha a dar as primeiras braçadas na água, ou “brincam” com eles de chutar uma bola –
isto é do “mundo da vida” (Lebenswelt)32. A experiência acumulada de “professores” de
natação ou futebol é que fez surgir uma “didática” da natação ou do futebol (e, portanto, a
própria Educação Física), e, só tardiamente, uma “ciência do esporte”, mas estas são
dependentes daquelas experiências originais, “como a geografia em relação à paisagem”;
daí a necessidade de “retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o
conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata
(MERLEAU-PONTY,1999, p. 4).

Por outro lado, não é preciso conhecer biomecânica para nadar e encontrar, nessa
vivência, significações existenciais. Todavia, é preciso reconhecer que muitos resultados
dos estudos da biomecânica ou da aprendizagem motora fixaram-se como aquisições
culturais às quais pode recorrer um “professor” de natação ou de futebol; não há problema
nisso, apenas ocorre que a intencionalidade originária que guiou estes estudos, no mundo
da vida, foi esquecida.

Ora, a Educação Física cientificizada quer inverter esta relação, afirmando que a
aprendizagem motora, a biomecânica, a fisiologia etc. é que devem prescrever
orientações às práticas pedagógicas, como se pudessem, todas elas e cada uma delas,
dar conta dos sentidos/intencionalidades possíveis aos sujeitos envolvidos. Nem mesmo o
recurso às Ciências Humanas/Sociais é bastante, pois elas também tratam do corpo
objetivado, o que quer dizer, do corpo atual, o que podemos “ver”, “congelado” em um
dado espaço/tempo. Um bom exemplo são os estudos de imagens de corpos presentes

32
Segundo Thiele (1990), Husserl caracterizada o “Lebenswelt” como um “estilo global” que diferencia as
pessoas no cotidiano de mundos especiais ou do próprio ambiente em que vivem; o “Lebenswelt”
representa, assim, a “redução” fenomenológica do mundo cotidiano e, ao mesmo, tempo, um horizonte não
tematizado de todo indivíduo.
85

nas mídias. Mas a fenomenologia de Merleau-Ponty trata do corpo perceptivo,


necessariamente um corpo em movimento no fluxo temporal, porque transcendental - no
sentido de não “material”, de não “real”.

O dilema de que a Educação Física não deve tornar-se um discurso sobre a cultura
corporal de movimento, mas uma ação pedagógica com ela, apontado por Betti (1994), e
corroborada por Bracht (1999), persegue como um fantasma a teoria crítica da Educação
Física, mas não poderá ser facilmente resolvido, pois se trata de uma ambigüidade
inerente à Educação Física como disciplina escolar.

Tal ambigüidade, porém, poderá ser melhor compreendida pela diferenciação entre
significação existencial (que se refere aos vividos intuitivos, pré-reflexivos, nos quais, o
sentido equivale à existência) e significação conceitual (que agrega outros sentidos, na
medida em que é um saber intersubjetivo), pois é a esta última que se refere a
abordagem culturalista da Educação Física, quando pretende a “apropriação crítica da
cultura corporal de movimento” (BETTI, 1994), ou que a Educação Física deve avançar do
fazer corporal para um saber sobre o movimentar-se do ser humano, o qual deve ser
transmitido aos alunos (BRACHT, 1999). Mas não se pode falar sobre o movimento
próprio (“Se movimentar”) por meio do próprio movimento, apenas por meio da linguagem
das ciências ou da filosofia, o que será sempre uma expressão segunda, uma
representação intelectual, necessária embora para que se estabeleçam significações
culturais sobre o movimento (quer dizer, para constituir um saber intersubjetivo), as quais
também contribuem para constituir e renovar a “cultura de movimento” ou “cultura corporal
de movimento”.

Parece-nos oportuno, nesse momento, retomar e compreender criticamente as


relações que implicitamente Sérgio (1987) estabelece entre a cultura e a motricidade, pois
na medida em que entende a motricidade humana como “processo adaptativo, evolutivo e
criativo de um ser práxico, carente dos outros, do mundo e da transcendência” (p. 156),
tal dinâmica torna o ser humano agente e criador de cultura, como se a cultura derivasse
da motricidade. E, todavia, Sérgio (1987) não vislumbra em Merleau-Ponty a passagem
da motricidade à cultura, e abandona a base ontológica da fenomenologia merleau-
86

pontyana, fazendo recurso à antropologia de A. Gehlen para compreender o ser humano


como ser cultural. Posteriormente, realiza novo corte, desta vez epistemológico, ao propor
a “ciência” da motricidade humana. Restaria aí investigar até que ponto tal ciência supera
a concepção tradicional de ciência, tarefa que não é possível realizar aqui.

Preferimos, em nossa própria interpretação, dizer que a motricidade estabelece


com a cultura uma relação que não é de “causa-efeito”, nem dialética, mas relação que a
fenomenologia denomina de fundação – relação de não-independência, por cujo meio
duas ou mais partes formam um todo em sentido rigoroso (HUSSERL, 1985), na qual o
fundado (cultura) não é derivado, no sentido empirista, do fundante (corpo/motricidade),
mas o fundante se manifesta no fundado (MERLEAU-PONTY, 1999).

Cabe também um parênteses para referirmo-nos ao modismo da “re-significação”,


categoria agora presente em muitos estudos de abordagem sociocultural e pedagógica na
área da Educação Física. Ora, a “re”- significação implica a existência de uma significação
inicial, que não pode ser demovida ao bel prazer de quem quer que seja. Para a
fenomenologia merleau-pontyana, se no mundo cultural podermos retormar hábitos em
proveito de uma nova significação (cultural), ou seja, se podemos re-significar, tal não
quer dizer que controlamos ou modificamos o corpo habitual. Em outras palavras,
interpretar criticamente a cultura não lhe retira seu “fundo de natureza” – esta é uma
ilusão culturalista!

2.4 Conclusão: significações conceituais e significações existenciais

Devemos nos atentar, em especial na Educação Física escolar, para o equívoco de


tratar significações conceituais dissociadas de significações existenciais, ou vice-versa.
Dito em outros termos, as “intencionalidades pedagógicas” a que se referem a “Educação
Física crítica” são apenas as intencionalidades temáticas, desconsiderando-se as
intencionalidades operantes presentes no processo de ensino e aprendizagem. Contudo,
se a Educação Física, quiser superar a mera instrumentalidade, a neutralidade científica e
técnica, em busca da explicitação dos seus pressupostos, da contextualização das
87

práticas pedagógicas concretas, do aprofundamento das relações teoria-prática, e do


enfrentamento dos problemas relativos ao sentido e aos fins da educação, deverá ter em
conta ambas significações e intencionalidades, a partir das vivências dos sujeitos que Se
movimentam.

Haverá aprendizagem e apropriação do conhecimento quando intencionalidades


operantes e temáticas, significações existenciais e conceituais se aproximarem em um
contexto de “subjetividade intersubjetiva”, em que os sujeitos criam e re-criam suas
próprias significações no “mundo do movimento”. Portanto, movimentar-se, confrontar
vivências e formas do “Se movimentar”, consigo mesmo e com outrem, por meio da fala
ou de outros gestos, pensar e conceituar sobre o movimento, são todos modos de
expressão do Ser. Nas palavras de Merleau-Ponty (1999, p. 523): “não há diferença
fundamental entre os modos de expressão, não se pode atribuir um privilégio a um deles
como se este exprimisse uma verdade em si [...] em todas as partes a expressão é
criadora e o expresso é sempre inseparável dela”. Ou, ainda, se admitirmos, com o
mesmo Merleau-Ponty (2002, p. 106) que o próprio do gesto humano é “significar para
além de sua simples existência de fato, inaugurar um sentido”, do que resulta que todos
os gestos são comparáveis, que, se “cada um deles é um começo, comporta uma
seqüência ou recomeços”, pois não é “opaco e fechado em si mesmo, e acabado de uma
vez por todas”; todo gesto é, de antemão, “aliado ou cúmplice de todas as outras
tentativas de expressão.

O envolvimento em situações de movimento em que a relação dialógica e


situacional é priorizada, conduz a uma abertura das “portas da percepção”, que pode
propiciar uma na “visão de mundo” mais autônoma, menos condicionada pelas diversas
instâncias sociais interessadas no movimento humano, e um melhor conhecimento de si e
dos outros (KUNZ, 2000).

Parece-nos que a fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty aponta algumas


respostas para as questões teóricas que afligem a Educação Física. Evidência disso é a
incessante busca de um “princípio integrador/articulador” para as práticas pedagógicas
(BETTI, 1996, BRACHT, 1999), o qual, ao final das contas, só poderá ser encontrado
88

nelas mesmas, e não nas ciências ou nas “filosofias prontas e acabadas” (HUSSERL,
1955 apud DARTIGUES, 1973, p. 20), daí a necessidade do retorno às coisas mesmas ou
próprias, conforme propugnado pela fenomenologia, sem o que continuaremos a separar
“teoria” e “prática”, “vivido” e “pensado”.

2.5 Limites da fenomenologia para a Educação Física

Contudo, não é pacífico o entendimento de que o método fenomenológico possa


ser transportado da Filosofia para a pesquisa empírica, como propõe, por exemplo,
Moreira (2002), o que permitiria tomar em conta as "coisas mesmas", dando destaque às
experiências vividas pelos sujeitos33, as suas vivências, que lhes são significativas. De
qualquer modo, a fundamentação fenomenológica finda por indicar a necessidade de
investigar (cientificamente?) tais vivências, em termos de descrições. Se não pode haver
ciência sem um fundamento que a preceda – esta é a ambição da fenomenologia
husserliana, a qual é, em primeiro lugar, uma crítica às ciências - também ao dilucidar tal
fundamento, abrem-se correlativamente novas possibilidades nas investigações científicas.

O risco que se corre é interpretar a descrição das vivências como categoria


psicológica, exatamente o oposto do que Husserl buscou, pois a consciência não é um
“lugar” ou “receptáculo” no indíviduo, já que é sempre consciência “de”, e portanto trata-
se de um movimento de exteriorização, de transcendência. A consciência está “fora” e não
“dentro”, as vivências se dão no “campo” – quer dizer, campo fenomenológico. Outro
equívoco bastante presente nas pesquisas da área da Educação Física é confundir a
descrição fenomenológica com análise de discurso ou análise de conteúdo, a partir de
entrevistas semi-estruturadas realizadas com os sujeitos das pesquisas.

Ocorre porém que, como tudo é vivência, oculta-se a dimensão axiológica que
inexoravelmente apresenta-se nos fenômenos educacionais. Educar exige tomar partido,
faz surgir as possibilidades de escolha – os valores (ABBAGNANO, 2000). Ademais,
permanece na fenomenologia merleau-pontyana um resíduo de “não-sentido”, algo

33
Não confundir com “subjetivismo”.
89

inacessível à interpretação, o que dificulta as pretensões de qualquer “propositividade


pedagógica” que se queira construir para a Educação Física.

Como então manter as bases fenomenológicas (no plano ontológico) e ao mesmo


tempo avançar para o plano epistemológico, da produção do conhecimento e da
propositividade que possam orientar as tarefas pedagógicas da Educação Física? É aí
que a perspectiva semiótica que privilegia a Teoria Geral dos Signos ou Lógica da
Linguagem, de Charles S. Peirce, oferece um caminho promissor.

Preliminarmente, vamos dizer que, se o “Se movimentar” é sempre uma resposta


do sujeito ou uma pergunta ao mundo (às coisas e às pessoas), é nesse intervalo que se
localiza a produção de signos34 – a linguagem.

34
Observação que devo ao Prof. Dr. Pierre Normando Gomes-da-Silva, a quem agradeço.
PARTE III
91

1 INTRODUÇÃO

Entendemos a Linguagem humana não apenas na sua dimensão lingüística (a


língua portuguesa falada e escrita, por exemplo), mas como capacidade de produção de
signos de qualquer tipo, tais como sonoros, visuais, táteis – gestuais, enfim. E por Signo
entendemos qualquer coisa - por exemplo, uma sensação, um gesto, uma palavra - que
represente outra coisa, para alguém, sob certos aspectos e de alguma maneira (PEIRCE,
1977). A linguagem, então, envolve processos e produtos. É essa condição da
Linguagem que nos capacita produzir informações/conhecimentos, retomar experiências
vividas em novas significações, perceber e atualizar novas possibilidades de ser e fazer.

Assim, entender o fenômeno do corpo/motricidade, e da Educação Física como


fato cultural, supõe apoio nos estudos dos signos. Supõe a necessidade de enfrentar os
processos de mediação como indispensável na produção do conhecimento. Supõe, como
afirma Ferrara (2002, p. 11) uma epistemologia que se ocupe mais dos signos e da sua
dinâmica do que dos códigos da nossa cultura; supõe “substituir a explicação pela
interpretação, a descrição pela análise, o tema pela pergunta, a epistemologia modelar
pela sagacidade do olhar científico produtor de conhecimento como coisa viva”. Na
prática científica tradicional, temos, de um lado, a primazia do sujeito, e de outro a
primazia do objeto, fato que faz os estudos dos signos e da mediação exigir que saiamos
das sombras do sujeito para enfrentar a complexidade do objeto “que especularmente
remete ao conhecimento do mundo, dos outros homens e do próprio sujeito que, sem
subjetivismo, reconhece-se na complexidade do próprio conhecimento que produz”
(FERRARA, 2002, p. 8).

Tal é possível, no nosso entendimento, pela Semiótica, a qual, por sua vez possui
fundamentos na fenomenologia, por permitir a passagem dos processos representativos
do âmbito do fenomenológico para uma esfera propriamente interpretativa, como entende
Ferrara (2004 p. 6), na qual “a experiência interativa supera sua opacidade para revelar
sua semiose e seus interpretantes”. Ou seja, clama-se pela passagem da descrição à
92

interpretação. Acreditamos assim, que a semiótica não é uma matriz de apreensão e


explicação do fenômeno – o corpo/motricidade - , mas a lógica que nos permite perceber
suas mais diversas manifestações, inclusive, e especialmente, as culturais, já que é a
“Educação Física”, na condição de área profissional-pedagógica que se propõe a realizar
intervenções valorativas, só pode existir como ente cultural. Clama-se aqui, pela
passagem da interpretação à intervenção pedagógica, no sentido de uma inter-locução
dos seus protagonistas.

O que as afirmações contidas no último parágrafo querem dizer? Para


compreendê-la é mister iniciar-se nos principais conceitos da semiótica peirceana.

2 CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA SEMIÓTICA PEIRCEANA

O conceito de experiência é fundamental no pensamento de Peirce, que assim a


entende: “Em filosofia, a experiência é o inteiro resultado cognitivo do viver...” (PEIRCE,
19781 apud IBRI, 1992, p. 4); e “Experiência é o curso da vida” (PEIRCE2, 1978 apud
IBRI, 1992, p. 4). O fundamento da Semiótica/Lógica peirceana reside nas três categorias
da experiência, em que se enquadram todo e qualquer fenômeno: Primeiridade,
Secundidade e Terceiridade: a primeiridade implica as noções de possibilidade,
qualidade, diversidade, acaso; a secundidade, as noções de choque e reação, resistência
e conflito, de aqui-agora, de incompletude, de existência; a terceiridade, as noções de
hábito, generalização, norma e lei. Para Peirce, portanto, os modos de ser da experiência
pertencem a três categorias universais que não são, é óbvio, estanques, mas se
sobrepõem e imbricam num processo mútuo e ininterrupto no fluxo da experiência. Na
concepção dessas categorias é que se percebe claramente a base fenomenológica do
pensamento peirceano.

1
PEIRCE, C.S. Collected papers, 7.527
2
PEIRCE, C.S. Collected papers, 1.426
93

A primeiridade corresponde às experiências instantâneas, incondicionais,


originais e espontâneas das qualidades do mundo, tal como elas aparecem, sem
qualquer sentido de começo, fim ou continuação, um "tipo de consciência que não
envolve qualquer análise, comparação ou qualquer processo que seja, nem consiste, no
todo ou em parte, de qualquer ato pelo qual uma extensão de consciência é distinguida
de outra e que tem sua própria qualidade positiva, que consiste em nada além disto e que
é de si mesma tudo o que ela é..." (PEIRCE, 19783 apud IBRI, 1992, p. 10-11).

A secundidade, envolve uma consciência bilateral, imediata, de dualidade


entre duas coisas: uma que força e outra que reage:

Assim é que no fenômeno surge a idéia de outro, de alter, de alteridade;

com ela aparece a idéia de negação, a partir da idéia elementar de que as

coisas não são o que queremos que sejam nem, tampouco, são

estatuídas por nossas concepções. A binaridade presente neste se opor a

traz consigo a idéia de segundo em relação a, constituindo uma

experiência direta, não mediatizada. Parece que algo reage contra nós,

fazendo-nos experienciar uma dualidade bruta, um elemento de conflito

que consiste na '... ação mútua entre duas coisas sem considerar qualquer

tipo de terceiro ou meio e, em particular, sem considerar qualquer lei de

ação’. (IBRI, 1992 p. 7).

Realiza-se a secundidade na "presentidade" da experiência dos fenômenos


existentes, no choque da reação entre eu e não-eu, sendo o aqui-agora o que constitui
sua essência: "...uma reação é alguma coisa que ocorre hic et nunc... Ela é um evento
individual (...) tem uma individualidade. Ela acontece apenas uma vez. Se ela é repetida,
a repetição é outra ocorrência, não importando quão parecida com a primeira ela possa
ser" (PEIRCE, 19784 apud IBRI, 1992, p. 7).

3
PEIRCE, C.S. Collected papers , 1.306
4
PEIRCE, C.S. Collected papers, 7.532 e 538
94

A terceiridade implica a experiência cognitiva que possibilita a generalização, a lei


geral - através do raciocínio/da abstração -, que permite a previsibilidade dos fatos:

Este conceito geral surge como um terceiro elemento que não se

confunde com aqueles postos em relação. O elemento mediador assim

descrito perfaz a terceira e última classe do universo fenomênico, a

terceira categoria ou Terceiridade. 'Terceiridade, no sentido da categoria,

é o mesmo que mediação' (CP, 1.328). A experiência de mediar entre

duas coisas traduz-se numa experiência de síntese, numa consciência

sintetizadora. (IBRI, 1992, p. 13).

Peirce (1990, p. 61) conceitua mediação como representação, e, representar não


como reprodução idêntica e fiel, ou imitação, cópia, mas como “estar em lugar de, isto é,
estar numa tal relação com um outro que, para certos propósitos, é considerado por
alguma mente como se fosse o outro”. Assim, prossegue o autor:

[...] um porta-voz, um deputado, um advogado, um agente, um vigário, um

diagrama, um sintoma, uma descrição, um conceito, uma premissa, um

testemunho, todos representam alguma coisa, de diferentes modos, para

mentes que o consideram sob esse aspecto. (PEIRCE, 1990, p. 61)

Qualquer coisa pode vir a ser um signo, desde que se estabeleça a relação entre
três elementos: o Representamen (um sentimento, uma sensação, um certo som, um
certo gesto etc.), o Objeto (aquilo que o signo re-presenta) e o Interpretante (a relação de
“equivalência” criada entre os dois elementos anteriores por uma mente interpretadora).
Para Peirce (1990, p. 46):

Um signo, ou representamen, é algo que, sob certo aspecto ou de algum

modo, representa alguma coisa para alguém. Dirige-se a alguém, isto é,

cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo


95

melhor desenvolvido. Ao signo, assim criado, denomino interpretante do

primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto.

Para que algo possa ser Signo, deve representar alguma outra coisa, denominada
seu Objeto, que pode ser, segundo o autor (1990, p. 46) “um objeto perceptível, ou
apenas imaginável, ou mesmo inimaginável, num certo sentido”. Assim o autor o
exemplifica:

[...] a palavra “cabo”, que é um Signo, não é imaginável, pois não é essa

palavra mesma que pode ser inscrita no papel ou pronunciada, mas

apenas um dos aspectos que pode revestir; trata-se da mesmíssima

palavra quando escrita e quando pronunciada, mas é uma palavra quando

significa “posto da hierarquia militar”, outra quando significa “ponta de terra

que entra pelo mar” e terceira, quando se refere à “parte por onde se

segura objeto ou instrumento”. (PEIRCE, 1972, p. 95)

A relação entre o Signo e seu Objeto, no entanto, só se efetiva por um processo


mental que Peirce denomina Interpretante: a relação que o intérprete faz quando constrói
a relação de “equivalência” entre o Signo e seu Objeto. Toda representação do signo em
relação ao seu objeto, porém, é sempre parcial, pois não esgota todos os aspectos dele.
Ainda, o signo é um processo de representação/substituição possível do objeto (e não
necessária), e se coloca, para alguma mente, em lugar dele, de tal modo que o objeto só
pode ser conhecido a partir de sua forma de representação.

O estabelecimento dessa relação de representação entre o signo e seu objeto, por


intermédio do interpretante caracteriza a semiose, o processo de produção do “signo”
propriamente dito, conforme a Figura 1:
96

Representamen/Signo

Objeto Interpretante

Figura 1 . O processo da Semiose/Representação

Da mesma forma, um mero gesto como estalar os dedos (ou abrir os braços, ou
unir a ponta do indicador à ponta do polegar, formando um círculo e estendendo os
outros dedos) pode gerar diferentes significações para diferentes intérpretes. Quer dizer,
diferentes intérpretes vão estabelecer diferentes relações interpretativas entre o signo e
seu objeto.

Vale observar que não se pode, de maneira alguma, confundir interpretante com
intérprete: este, refere-se ao ser capaz de produzir aquele: o interpretante não se refere à
pessoa, mas ao signo/pensamento interpretante. Segundo Ferrara (1981, p.57), "O
interpretante não é certamente o intérprete, é uma operação ativa na medida em que faz
um objeto tornar-se signo e atuando nesta operação se torna ele mesmo interpretante”.

2.1 O pensamento é signo

Para Peirce, a produção do conhecimento é sempre uma produção de signos – o


pensamento é signo - e o significado de um signo é sempre um outro signo, pois o
interpretante, ele mesmo, é um novo signo, de tal forma que o fluxo de pensamento dá-se
em um fluxo incessante de signos, desde que a mente humana trabalha com associações
ininterruptas, ad infinitum (Figura 2):
97

O I

Figura 2. A semiose e o fluxo do pensamento

Ou seja, a categoria da relação interpretante possibilita a mediação entre o real e a


consciência:

A representação é a operação semiótica, é o processo cognoscente pelo

qual o sujeito possui e produz signos, sua única possibilidade de

mediação com a realidade, a única maneira que possui de conhecer os

fatos concretos, a realidade material e de conviver com ela. (FERRARA,

1981, p. 57)

2.2 Linguagem e Código

Todo código é uma linguagem, mas nem toda linguagem é um código. O que isso
significa?

Linguagem é a capacidade humana de produzir informação/conhecimento: como


não há produção de informação/conhecimento a não ser por intermédio de signos, pode-
se compreender a Linguagem como a capacidade humana de produzir signos de
qualquer tipo, tais como sonoros, visuais, táteis, gestuais etc. Assim sendo, a Linguagem
98

não é um produto acabado, mas um permanente processo de produções sígnicas;


entendendo, aqui, por Signo, repetimos, qualquer coisa - um sentimento, uma emoção,
uma sensação sonora, táctil, um gesto, um traço, uma palavra, um ritmo... - que
represente outra coisa, para alguém, sob certos aspectos e de alguma maneira.

Por outro lado, para garantir a eficácia/economia da troca de informações entre


emissores e receptores, certas relações entre os signos e seus significados, antes em
aberto, são convencionadas, “congeladas” em um dado âmbito sociocultural, sob a forma
de um código institucionalizado. Ao pressupor (e almejar), pois, uma forte intenção
comunicativa, o código limita as possibilidades de escolha entre múltiplas alternativas
interpretativas.

Como a função do código é estabelecer relações distintivas entre os signos


válidos e não válidos, bem como as regras de articulação/combinação entre eles, o
código torna possível a previsibilidade da ação/comportamento: o emissor comunica uma
informação “controlada”/segura ao receptor, visando poder prever a reação deste. A
seleção das múltiplas alternativas possíveis passa a ser, assim, controlada pelo código.

Por exemplo, o código da Ginástica Artística ou Olímpica convenciona quais são


os signos válidos no seu âmbito (no caso, gestos/movimentos corporais), e as regras de
combinação entre eles. Quando um ginasta cria um exercício novo, este somente será
válido se atender aos critérios do código já institucionalizado. Um gesto/movimento da
capoeira, mesmo que belo e bem executado, não será considerado válido no âmbito da
Ginástica Artística.

3 IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA

Parece-nos que os estudos na Educação Física efetuados na abordagem


“culturalista” se têm debruçado sobre os códigos (o esporte, a dança, as lutas etc.), quer
dizer, signos que foram institucionalizados, e às vezes se tornaram hegemônicos no
99

âmbito da cultura (caso do esporte). Sob esse aspecto, a perspectiva semiótica em que
nos apoiamos pode levar a outras questões:

- Como surgem signos novos?

- Como se dá o processo de institucionalização de signos/criação dos códigos?


Por que, por exemplo, alguns signos se tornaram / tornam hegemônicos e outros
“desapareceram” / ”desaparecem”?

A hipótese que consideramos - e para a sua verificação entendemos que a


Semiótica peirceana nos fornece adequado instrumental teórico-metodológico a partir das
categorias da experiência -, é de que qualquer gesto (corporal) é um “quase-signo”
(primeiridade), quer dizer, possui potencial para ser signo, para um dado indivíduo, para
um dado grupo social ou para uma dada cultura. E como a relação interpretante não
esgota todos os aspectos do objeto, temos que Peirce identificou mais de 80 tipos de
signos (SANTAELLA, 1995, 2001, 2004), e, obviamente, nem todos estarão
necessariamente vinculados aos códigos envolvidos em jogos, danças, esportes ou
ginásticas específicos. Apenas a título de ilustração: o qualisigno é o signo típico da
primeiridade, o sinsigno da secundidade, e o legsigno da terceiridade5.

Betti (1994, p. 33) estabeleceu algumas relações iniciais entre a semiótica


peirceana e o ensino da Educação Física, sugerindo a necessidade de investigar os
signos presentes no ensino desta disciplina que possibilitam ao professor ensinar algo ao
aluno “independentemente de qualquer teorização ou formulação científica que anteceda
seus procedimentos”. Neste caso, as palavras que o professor dirige aos alunos
consistiriam em signos abertos. Por exemplo:

[...] palavras como “explosão”, “suavidade” podem exercer uma função

sígnica no processo ensino e aprendizagem, auxiliar mais ao aluno que

está aprendendo do que todas as leis determinada pela aprendizagem

motora. Veja-se, por exemplo, a sugestão de Hinks (1977): “Faça suas

pernas falarem”. (BETTI, 1994, p. 34).

5
Observe-se os radicais: quali (de “qualidade”), e leg (de “lei”)
100

Betti (1994, p. 34) encontra respaldo, nessa sugestão, no conceito de signo de


Peirce, para quem o signo evoca apenas parte do objeto real, “e portanto o sujeito pode
evocar outros sentidos, referidos às suas experiências de vida, imaginação etc.”.

Então, o foco da dinâmica de ensino e aprendizagem na Educação Física deverá


dirigir-se, de fato, também para o aluno/cliente/atela, valorizá-los como produtores de
conhecimentos.

O fluxo de signos pode se dar hibridamente, quer dizer, associando/encadeando


signos verbais, gestuais, táteis, musicais etc. Um estímulo inicial, que pode ser um
sentimento, um som, uma cor, uma imagem, uma palavra etc., permite ao sujeitos, a
partir de seus repertório, construirem inúmeras relações interpretantes, geradoras de um
novo signo, traduzido, por exemplo, em um gesto. Por repertório referimo-nos a toda
experiência/memória informacional de um indivíduo, desde sua concepção (DNA) até os
dias da vida cotidiana de hoje. Lembramos que, para Peirce6 (1978, apud IBRI, 1992, p.
4), "A interpretação em si mesma é experiência [..].Em filosofia, a experiência é o inteiro
resultado cognitivo do viver". A Figura 3 ilustra esse processo de semiose entre
linguagens:

poema ? dança?

melodia / palavras?
S gesto

um gesto

S
o sentimento

alegria / melancolia ? I

tristeza / paz ? O

S um azul

O I

Figura 3. O processo de semiose entre linguagens

6
PEIRCE, C.S. Collected papers, 1.426.
101

Na concepção triádica de signo de Peirce, diferentemente da concepção


saussureana de signo diádico (SAUSSURE, 1969, p. 79-81) do tipo significante-
significado, o modo de representar está contido tanto no signo quanto no objeto - a
possibilidade de relação interpretante que está vinculada ao repertório informacional do
intérprete. Ou seja, somente se produz informação nova a partir do "choque" com a
informação velha, já sedimentada; se o indivíduo não operar essa contradição na relação
interpretante, não haverá produção de informação/conhecimento, mas estagnação.

Interpretando o pensamento peirceano, Sant’Agostino (2001, p. 24) entende que


no processo de produção de signos – nas semioses – “efetiva-se sempre uma
‘renascença’ de conhecimentos antigos restabelecidos sob/sobre a experiência nova, que
vai se acrescentando de outras informações”. Desta forma, o aluno, “que vem de outras
vivências, projeta, sobre a experiência nova, toda a sua memória informacional, pois
opera com a informação já estabelecida/sedimentada e acrescenta sobre ela”.

4 CONCLUSÃO

Ao estender o conceito de signo para qualquer fenômeno dotado de


sentido/significação, e, por entender o processo de produção de signos (Linguagem)
como a raiz da produção de informação - do conhecimento -, a Semiótica de Peirce
qualifica-se como instrumento privilegiado para "ler"/interpretar signos inusitados, novos e
imprevistos, além dos já institucionalizados e/ou codificados na Educação Física. Ora, se
tudo é signo, abole-se a hierarquia entre “verbal” e “não-verbal”, “intelectual” e “corporal”,
o que se reveste de evidente importância para a Educação Física.

Em decorrência, a teoria peirceana pode contribuir na busca de respostas para


questões que há décadas afligem a teoria da Educação Física e sua didática. Como
superar a dicotomia teoria-prática, corpo-mente? Como organizar o ensino de modo a
garantir um processo de construção de conhecimentos, por parte dos alunos, de modo
prazeroso, criativo, não-autoritário? Que estratégias e conteúdos utilizar para que o aluno
102

não seja mero reprodutor de movimentos estereotipados, e para que se abra espaço para
o novo?

Permite-nos a semiótica vislumbrar a possibilidade de superação da dicotomia


entre o verbal e não–verbal e, em última instância, a superação da contradição entre
teoria e prática na Educação Física, como apontada por Betti (1994): a prática da
Educação Física é corporal, mas a teorização sobre esta prática se dá pelo verbal. Isto
porque, conforme já apontamos, o processo de semiose e hibridação entre linguagens
(que associa/encadeia signos de diversos tipos) produz conhecimento, e portanto tal
conceito reveste-se de importância pedagógica estratégica.

É de Pignatari (1979, p. 12) a afirmação de que a Semiótica de Peirce “acaba de


uma vez por todas com a idéia de que as coisas só adquirem significado quando
traduzidas sob a forma de palavras.”

Diante disso, podemos compreender melhor a proposição pedagógica que toma a


cultura corporal de movimento como objeto da Educação Física, para a qual é
necessário, conforme Bracht (1999), avançar do fazer corporal para um saber sobre o
movimentar-se do ser humano, o qual deve ser transmitido aos alunos. Consideremos, a
esse respeito, a conclusão de Betti (1994), corroborada por Bracht (1999) e Daolio
(2004), de que a Educação Física não deve tornar-se um discurso sobre a cultura
corporal de movimento, mas uma ação pedagógica com ela. Traduzida nos termos da
Semiótica peirceana, tal proposição implica que o alvo da prática pedagógica na
Educação Física não deve limitar-se a alcançar e estagnar-se na terceiridade
(generalização, norma, lei), mas constituir-se em um permanente trânsito entre a
primeiridade (potencialidade, qualidade, sentimento), a secundidade (dualidade, eventos
singulares, únicos) e a terceiridade (abstração, conceito, lei).

Por exemplo, uma melodia (ouvida realmente ou apenas imaginada) evoca um


certo sentimento no sujeito (signo primeiro) que se transcria em um movimento singular
(signo segundo): este será percebido como signo aberto a múltiplas possibilidades
interpretativas (terceiros) – produzidas, em uma aula de Educação Física escolar, por
103

exemplo, tanto pelos outros alunos quanto pelo professor – e não apenas aquelas
“enformadas” pelos códigos já institucionalizados. Este signo novo pode deflagrar novas
“leituras”, novas semioses gestuais imprevistas (1os., 2os. e 3os.) que permitem o fluxo da
criatividade acionado pelos diferentes repertórios de cada indivíduo. Podemos assim falar
em expressão própria de cada aluno.

O processo contínuo de associações sígnicas constitui o trânsito entre as três


categorias que ocorre permanentemente e não se exaure quando chega ao movimentar-
se nas formas propostas pelos códigos: de fato, sempre poderá surgir um modo singular
imprevisto de executar, por exemplo, um arremesso no basquetebol, em decorrência de
novas associações, o que, no limite, pode levar à recriação do próprio código.

O nó górdio é que, freqüentemente, os professores interrompem essa cadeia de


semioses gestuais por não saber “lê-la” e desejar enquadrá-la nos códigos conhecidos,
ou porque pretendem controlar o fluxo da semiose segundo finalidades previamente
traçadas – esta última é outra face da “ilusão culturalista” já denunciada na Parte II.

Então, quando a Educação Física lida com o conteúdo “basquetebol” ou “dança”,


o objetivo não deve ser apenas chegar às formas institucionalizadas/codificadas de
movimentar-se nessas atividades, ou à conceitualização/teorização (típicas da
terceiridade) como ápice do processo de ensino e aprendizagem, porém, abrir espaço
também para novas mensagens gestuais, imprevistas e inusitadas.

A “apropriação crítica” da cultura corporal de movimento, a que se refere Betti (.....)


é a terceiridade, mas na Educação Física ela não pode ser ponto de partida (mas o é a
secundidade – existência, singularidade, aqui-agora) e sim de chegada, já que, como
experiência cognitiva, relaciona-se à aprendizagem7 e à conduta futura (IBRI, 1992). Do
ponto de vista pedagógico, na Educação Física, a terceiridade não faz sentido sem a
secundidade, e esta sem a primeiridade. Relembramos: experiência é resultado de todo
viver. A Educação Física crítica, quando se propõe que a Educação Física escolar seja
um “saber sobre” (BRACHT, 1999), debruça-se sobre a terceiridade, sobre signos já

7
“Aprendizagem” é entendida como um “processo de aquisição de conceitos e de modificação de
condutas” (IBRI, 1992, p. 9)
104

cristalizados em códigos, retirando-os do processo de semiose, e portanto


desconsiderando a possibilidade de os sujeitos estabelecerem novas relações
interpretativas. Nesse sentido, o professor deve ser visto como um intermediário, um
interlocutor que alimenta a semiose.

Por fim, a semiótica peirceana permite compreender as limitações da antropologia


cultural, quando esta entende por “cultura” os “padrões de significado incorporados nas
formas simbólicas”. Tal entendimento restringe-se aos símbolos (signos típicos da
terceiridade), quando, Peirce (1990) inclui ainda, em sua categorização dos signos, os
ícones e os índices. Percebe-se, então, a dificuldade da antropologia em enfrentar a
questão da inovação na cultura.
105

PARTE IV
106

CONCLUSÕES: DESAFIOS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA

De um ponto de vista mais amplo, podemos dizer que, tanto a semiótica peirceana,
como a fenomenologia merleau-pontyana, indicam à Educação Física a importância de
considerar o que está aquém e além da cultura; acresce-se ainda a ambigüidade
apontada pela fenomenologia da percepção, que situa a condição humana em um lugar
indecidível entre a natureza e a cultura.

Contudo, Maurice Merleau-Ponty e Charles Sanders Peirce nos apontam, antes


que soluções, uma agenda de desafios a serem enfrentados pela Educação Física.

Em primeiro lugar, é preciso considerar o “Se movimentar” como gestos


expressivos, ou seja, como signos, o que nos leva, em primeiro lugar, ao tema da
linguagem e da expressão, e não ao da cultura. Com isso, o “aluno” (o “cliente”, o
“atleta”...) volta à cena, depois de longa fase em que o professor foi visto como o centro
do processo educacional. Contudo, é preciso evitar passar de uma perspectiva
“professorcêntrica”, por assim dizer, para outra agora “alunocêntrica”, com o que se
correria o risco de uma nova “psicologização”.

A saída? Considerar uma perspectiva semiótico-comunicacional, na qual professor


e aluno são considerados em suas relações comunicativas. Contudo, é preciso conceber
a comunicação não como um processo transparente, de pleno entendimento entre
interlocutores, mas entendê-la como incompletude e falta de sentido, pois é a falta de
pleno entendimento do outro que me abre um “vazio” que preencho prosseguindo no
processo de comunicação; caso contrário, o fluxo da comunicação se interrompe
(MERLEAU-PONTY, 2002).

Em uma perspectiva semiótico-comunicacional, o aluno é visto como produtor de


signos, e ao professor cabe articular a trama complexa das relações interpretantes
estabelecidas pelos alunos, “devolvendo-lhes” terceiridades (por exempo, na forma de
argumentos8), que possam ser novamente incorporadas ao fluxo de signos (semiose).

8
O “argumento” é um dos tipos de signos categorizados por Peirce (1990).
107

Portanto, a Educação Física não mais pode ser concebida como intervenção, palavra que
denota intenção autoritária9, mas inter-mediação, inter-locução10, inter-pretação11 (não na
concepção hermenêutica, mas como relações interpretativas).

É nesses termos que teríamos que repensar a Didática da Educação Física (e não
metodologias do ensino, que buscam controlar as semioses), de modo não restrito à
Escola, pois em todos os contextos do Se movimentar há produção de signos e de
relações interpretantes. Na Educação Física escolar apresenta-se de modo mais
específico a questão do repertório dos alunos, pois é tarefa da Escola ampliá-lo, o que
amplia também as possibilidades de estabelecer novas relações interpretantes.

O segundo desafio é retomar a educação (física) infantil, pois as crianças, na


medida em que ainda não foram totalmente “enculturadas”, permite-nos perceber a
dinâmica da própria cultura. Dartigues (1973) lembra que Husserl agradeceu aos
antropólogos do seu tempo, já que concebia a descoberta da essência dos fenômenos
sociais e culturais como decorrentes de uma compreensão prévia, logo, de um
12
conhecimento, pelo sociólogo/historiador, de culturas diferentes da sua – e os
antropólogos penetraram em universos culturais inteiramente estranhos ao homem
europeu, os quais não poderiam ter concebido, nem mesmo como pura possibilidade, se
não tivessem ido investigar in loco. Na linguagem merleau-pontyana, diríamos que o
corpo habitual das crianças manifesta-se de modo menos inibitório, mais expansivo e
espontâneo, e que, para elas, o sentido não está dissociado da existência (corporal);

9
Segundo Houaiss (2001), “intervir” possui as seguintes acepções: ingerir-se (em matéria, questão etc.),
com a intenção de influir sobre o seu desenvolvimento; interpor sua autoridade, usar de seu poder de
controle.
10
Segundo Houaiss (2001), “interlocução” é: diálogo; interrupção de um discurso provocada pelo falar de
novo interlocutor.
11
Segundo Heller (2003) “interpretação” provém do latim inter-petras, (“entre as pedras”), o que para nós
significa: é preciso buscar o que está “entre” as “pedras” e não o que está obviamente “nas” “pedras”; quer
dizer, não se trata de interpretação do ou sobre o aluno ou o professor, mas das relações que se
estabelecem entre eles.
12
O que se relaciona à técnica da “variação imaginária” ou “variação eidética” concebida por Husserl, qual
seja, o processo que consiste em imaginar todas as variações que um objeto tomados por modelo é
susceptível de sofrer; o invariante identificado através das diferenças define a essência dos objetos da
mesma espécie, sem o que seriam impensáveis (DARTIGUES, 1973).
108

apenas quando ocorre a dissociação entre sentido e existência, por meio da fala falada, é
que emerge a cultura, quer dizer sentidos culturais.

Na Educação Física escolar, é em Kunz (1991, 2001) que aparecem perspectivas


similares: a “didática comunicativa” e o “mundo do movimento” ou “cultura de movimento”
das crianças, no qual ainda há a possibilidade de um Se movimentar mais espontâneo,
ainda não totalmente colonizado pelas “objetivações culturais”. Tal contribuição precisa
agora ser aprofundada e confrontada com a experiência (prática).

Por fim, entendemos que apenas a semiótica de base fenomenológica permitirá à


Teoria da Educação Física avançar. Consideremos a máxima pragmaticista13: os efeitos
práticos que possamos pensar como produzidos pelo objeto da nossa concepção, é a
concepção total de tal objeto (PEIRCE, 1974). Se ela está correta, então temos que
admitir que a abordagem culturalista, depois de quase duas décadas, não conseguiu ir
além de incorporar alguns conteúdos teóricos às aulas de Educação Física na Escola, de
cujos muros, aliás, não se aventurou a sair.

Desde a sabedoria de Merleau-Ponty e Peirce procuramos renovar a teoria da


Educação Física. Estabelecemos limites à abordagem culturalista, mas não a excluímos,
pelo contrário, compreenderemos melhor suas possibilidades e limites, ao conceber suas
conseqüências práticas.

13
Peirce (1974) abandona os termos “pragmatismo” e “pragmatista”, em favor de “pragmaticismo” e
“pragmaticista” por entender que suas concepções originais foram distorcidos por seus seguidores, em
especial William James.
109

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