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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Letras e Artes – CLA

Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas – PPGAC

Mestrado em Artes Cênicas

Reflexões sobre a Preparação Corporal do ator a partir dos trabalhos de


Angel Vianna e Edgar Morin

Paulo Trajano

Rio de Janeiro

2011
Reflexões sobre a Preparação Corporal do ator a partir dos trabalhos de
Angel Vianna e Edgar Morin

Paulo Trajano

Dissertação de Mestrado apresentada no Programa de Pós


Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro UNIRIO

Prof. Dra. Nara Keiserman

Orientadora

Rio de Janeiro 2011

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Letras e Artes – CLA


Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas – PPGAC
Mestrado em Artes Cênicas
iii

Reflexões sobre a Preparação Corporal do ator a partir dos trabalhos de


Angel Vianna e Edgar Morin

Por

Paulo Trajano

Dissertação de Mestrado

Banca Examinadora

Prof. Dra. Nara Keiserman (orientadora)

Prof. Dr. Jorge de Albuquerque Vieira (PUC/SP, FAV/RJ)

Prof. Dra. Joana Ribeiro da Silva Tavares (UNIRIO/RJ)

Rio de Janeiro, RJ, em.................................de 2011

Av. Pasteur, 436 – Urca – RJ – CEP: 22.290-240


Tel. 21- 25422565
htpp:// www.unirio.br
Cla-ppgac@unirio.br
iv

A minha mãe, por me ensinar constantemente o alcance do amor incondicional,


A meu pai, que mesmo não estando presente continua sempre a meu lado.
A meu irmão e família.
v

Agradecimentos

A minha querida mestra e amiga Angel Vianna, por seu amor, generosidade e ousadia.

A minha orientadora Nara Keiserman, pelo carinho e firmeza que tornaram esta caminhada
um percurso extremamente instigante.

A minha querida amiga, de inúmeras horas e questões, Elizabeth Paulon Brasil.

Ao amigo Mário Saleiro Filho, pelo constante incentivo e acolhimento.

A Denise Telles, uma interlocutora sensível, com quem tive a oportunidade de trocar muitas
inquietações.

A Joana Ribeiro Tavares e Jorge de Albuquerque Vieira pela confiança e sábias sugestões.

A Leandro Pinheiro Barbosa e Marília Passos, que contribuíram de maneira inestimável para
o desenvolvimento deste trabalho.

A David Herman, pela amizade e preciosa ajuda com o idioma de Shakespeare.

A José Luiz Rinaldi, que me ajudou a ponderar sobre vários pontos.

A Elena Konstantinovna pelos ensinamentos e apoio.

A Maria Aparecida B. P. Soares pelo auxílio no trato com as palavras que estão neste
trabalho.

A Márcia Feijó, Denise Stutz, Marina Martins, Helena Varvaki, Duda Maia, que dignificam o
objeto de estudo desta dissertação.

A Letícia Teixeira e Maria Helena Imbassaí que me ensinaram muito daquilo que aqui
apresento.

A Juliana Polo, Enamar Ramos, Marina Henriques, Sérgio Saboya, Silvio Batistela, Bruna
Savaget, André Grabois, Cíntia Barreto, Eduardo Rieche, Yara Ferraz, Marina Magalhães,
Márcia Cláudia Figueiredo, Nercy de Paula Souza e Tatiane Jesus de Santana, que me
ajudaram com materiais imprescindíveis a este trabalho.

A Gisela D’Arruda e Tânia da Costa que me ajudaram com a bela língua de Molière.
vi

RESUMO

Esta pesquisa tem como objeto de estudo a Preparação Corporal de atores, considerada como
atividade artística transdisciplinar. O parâmetro reflexivo utilizado tem como referências o
trabalho da bailarina e pedagoga Angel Vianna, denominado Conscientização do Movimento
e Jogos Corporais, e três princípios da Teoria da Complexidade do filósofo Edgar Morin:
Princípio Dialógico, Princípio da Recursividade Organizacional e Princípio Hologramático.
Os estudos realizados, aplicados em experiências laboratoriais utilizando trechos da peça
Gota d'água, de Paulo Ponte e Chico Buarque, permitiram a formulação de analogias entre os
pensamentos/práticas de Vianna e Morin, que levaram à compreensão da Preparação Corporal
como atividade complexa, segundo a concepção do filósofo.

Palavras-chave: Preparação Corporal, Angel Vianna, Conscientização do Movimento,


Edgar Morin, Complexidade

ABSTRACT

This research aims to study the Physical Preparation of actors as a transdisciplinary artistic
activity. The parameters of reflection employed have as reference the theoretical work, The
Awareness of Movement and Physical Games, of ballerina and teacher Angel Vianna, as well
as three principals of the Theory of Complexity of philosopher Edgar Morin: The Dialogic
Principle, The Principal of Organizational Recursiveness and the Hologramatic Principle.
The studies realized and applied in an experimental setting using passages from the play, Gota
d’água (The Last Straw), of Paulo Pontes and Chico Buarque, allowed for the formulation of
analogies between the thinking/practices of Vianna and Morin which led to an understanding
of Physical Preparation as a complex activity, according to the concepts of the philosopher.

Keywords: Physical Preparation, Angel Vianna, Awareness of Movement, Edgar Morin,


Complexity
vii

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

CAPÍTULO 1

Figura 1- Modelagem em argila. Ossos da bacia.


Fernando Canabrava. (foto do autor). ......................................................................21

Figura 2- (2a, 2b, 2c) Eixos verticais. ..................................................................................... 27

Figura 3- Eixos horizontais: 3a) Acrômios, 3b) Cristas ilíacas anteriores. ............................. 27

Figura 4- Relação dos apoios posteriores com a parte anterior do corpo. ...............................28

Figura 5- Estudo em cimento de Angel Vianna para Santa barroca (1959).


(foto do autor). ........................................................................................................29

Figura 6- Marina Henriques e Paulo Trajano em Anton e Olga.


(foto: Daniel Belquer)...............................................................................................31

Figura 7- O tetragrama moriniano ...........................................................................................38

Figura 8- O tetragrama moriniano e seu dinamismo ................................................................38

Figura 9- Cruzamento do tetragrama moriniano com alguns princípios


da Conscientização do Movimento ..........................................................................39

Figura 10- Função articulação ..................................................................................................40

Figura 11- O David de Michelangelo. (foto internet: detailingworld.co.uk) ...........................40

Figura 12- Detalhe David: mão e punho. (foto internet: all-art.org) ...................................... .41

Figura 13- Função pele ............................................................................................................42

Figura 14- Função visão ...........................................................................................................43


viii

CAPÍTULO 2

Figura 15- a) Christelle Legroux. (foto: Sylvain Guichard),


b) Christophe Grégoire. (foto: Sylvain Guichard) .................................................51

Figura 16- Auto do novilho furtado. Mouhamed Harfouch, Thales Coutinho, Geraldo
Demezio, Assayo Horissawa e Fabiano Xavier. (foto: Guga Melgar) ....................67

CAPÍTULO 3

Figura 17- Trabalho articular individual, com objeto (bola).


Leandro (foto do autor) ........................................................................................103

Figura 18- Trabalho articular individual, com objeto (bola).


Marília (foto do autor) . ........................................................................................103

Figura 19- Trabalho articular em dupla, com objeto (bola).


(foto do autor) ......................................................................................................104

Figura 20- Trabalho articular em dupla, com objeto (bola).


(foto do autor) .......................................................................................................104

Figura 21- Trabalho articular em dupla,


com objeto (bambu). (foto do autor) ....................................................................105

Figura 22- Colagem feita por Marília ....................................................................................113

Figura 23- Colagem feita por Leandro ...................................................................................114


ix

SUMÁRIO

FOLHA DE APROVAÇÃO ................................................................................................... iii


DEDICATÓRIA .......................................................................................................................iv
AGRADECIMENTOS ...............................................................................................................v
RESUMO/ABSTRACT ............................................................................................................vi
LISTA DE ILUSTRAÇÕES ................................................................................................... vii
SUMÁRIO ................................................................................................................................ix
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 1
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 7

CAPÍTULO 1 – ANGEL VIANNA E EDGAR MORIN:


CONEXÕES POSSÍVEIS.............................................................................. 12

1.1 – O trabalho de Angel Vianna: ser corpo .......................................................................... 12


1.1.1 – Fundamento primordial: a escuta do corpo .............................................................. 14
1.1.2 – Percepção ..................................................................................................................17
1.1.3 – Não-esforço .............................................................................................................. 18
1.1.4 – Imobilidade ...............................................................................................................21
1.1.5 – Explorando movimentos e organizando o espaço pessoal ....................................... 23
1.1.6 – Integração corporal: busca de verticalidade ............................................................. 25
1.1.6.1 – Verticalidade e apoios .............................................................................................. 30
1.1.6.2 – Verticalidade e horizontalidade ................................................................................30
1.2 – O pensamento complexo de Edgar Morin ...................................................................... 31
1.2.1 – Princípio Dialógico ...................................................................................................33
1.2.2 – Princípio da Recursividade Organizacional ..............................................................34
1.2.2.1 – Anton e Olga: um exemplo de recursividade no teatro .............................................35
1.2.3 – Princípio Hologramático ...........................................................................................36
1.2.4 – O tetragrama de Morin: uma proposta de visualidade sobre a organização nos
sistemas vivos ..............................................................................................................38
1.2.5 – Angel Vianna e a movimentação do ator: uma proposta de cruzamento da
Conscientização do Movimento com o tetragrama de Morin ......................................38
x

1.2.5.1 – Função articulação ................................................................................................... 40


1.2.5.2 – Função pele .............................................................................................................. 42
1.2.5.3 – Função visão .............................................................................................................43
1.3 – Um diálogo possível ........................................................................................................45

CAPÍTULO 2 – A PREPARAÇÃO CORPORAL E


O PREPARADOR DE ELENCOS .............................................................. 47

2.1 – A Preparação Corporal: campo de conhecimento .......................................................... 47


2.2 – O Preparador Corporal ................................................................................................... 52
2.2.1 – Atividade-ponte ........................................................................................................... 53
2.2.2 – Estratégias e habilidades ..............................................................................................54
2.2.3 – Leitura de sinais .......................................................................................................... 59
2.2.4 – Autoria .........................................................................................................................65
2.2.5 – Modos de intervenção do Preparador Corporal ...........................................................67
2.2.5.1 – O Preparador pedagogo ............................................................................................ 68
2.2.5.2 – O Preparador antropólogo ........................................................................................ 73
2.3 – A Preparação Corporal de Angel Vianna ....................................................................... 75
2.3.1 – Breve apontamento biográfico .................................................................................... 75
2.3.2 – A Rosa tatuada ............................................................................................................ 77
2.3.3 – Imaculada .................................................................................................................... 78
2.3.2 – O casamento branco ....................................................................................................80

CAPÍTULO 3 – GOTA D’ÁGUA: UM ESTUDO DE CASO ................................................ 82

3.1 – A primeira Gota d’água ..................................................................................................86


3.2 – A segunda Gota d’água ..................................................................................................93
3.3 – Retomando o trabalho com Gota d’água ........................................................................99
3.3.1 – Primeiro encontro: a Função articulação em cena .....................................................101
3.3.2 – Segundo encontro: a Função pele em cena ................................................................109
3.3.3 – Terceiro encontro: a Função visão em cena ...............................................................112
xi

3.3.4 – Quarto encontro: integrando conhecimentos .............................................................118


CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................122
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................127

ANEXOS .............................................................................................................................. 133


ANEXO A- ENTREVISTA ANGEL VIANNA ...................................................................134
ANEXO B- FICHAS TÉCNICAS ........................................................................................ 147
ANEXO C- DVD ...................................................................................................................163
ANEXO D- ENTREVISTAS ................................................................................................ 164
Entrevista I: Duda Maia..........................................................................................................165
Entrevista II: Márcia Feijó......................................................................................................178
Entrevista III: Denise Stutz.................................................................................................... 191
Entrevista IV: Marina Martins............................................................................................... 197
1

APRESENTAÇÃO

A fundação da Faculdade e Escola Angel Vianna1 (FAV) 2


estabelece um marco
significativo para a educação e as artes no Estado do Rio de Janeiro. A criação desse centro de
pesquisa e estudos do movimento configurou não apenas um espaço onde o ensino da dança
pode ser exercido de forma sistematizada, mas um local onde o teatro e a dança são
reconhecidos como territórios de experimentação. Mesmo sendo oficialmente uma escola de
dança, sempre atraiu um grande número de atores, interessados numa formação corporal de
qualidade.

A partir de 1994, tornei-me professor de dois cursos técnicos nesse estabelecimento:


1) Curso Técnico em Dança Contemporânea; 2) Curso Técnico de Reeducação Motora e de
Terapia através do Movimento. Durante os muitos anos de trabalho nesse local, pude
constatar seu caráter acolhedor e transdisciplinar. A transdisciplinaridade característica desta
escola é devida a um pensamento que, valorizando o movimento em todas as suas instâncias,
agrega alunos diversos, com interesses variados. Dessa maneira, a formação da FAV é capaz
de instrumentalizar, técnica e humanamente, profissionais interessados em explorar a cena
como lugar de aperfeiçoamento humano.

Muitas vezes tive a oportunidade de trabalhar ao lado de Angel Vianna, aprendendo


que o conhecimento é nosso bem maior, devendo ser passado adiante com generosidade por
todos aqueles que escolhem o caminho da pedagogia. Experimentei momentos emocionantes
todas as vezes que, depois de fazer uma aula com Angel, ela perguntava qual a minha opinião
a respeito de suas novas experiências. Muitas vezes fiz três aulas com ela num mesmo dia,
que eram exatamente iguais na ordenação dos exercícios, mas, mesmo assim, experiências
completamente diferentes. Isso foi um grande aprendizado, pois pude constatar que os
aspectos mecânicos estão longe de explicar o que o movimento pode ser enquanto vivência.
Nessas ocasiões, comprovei que para sabermos o que é e o que pode um corpo, é preciso

1
Bailarina, professora de dança, Preparadora Corporal, diretora da Faculdade Angel Vianna (FAV), nascida em
Belo Horizonte (1928). Criadora do trabalho denominado Conscientização do Movimento e Jogos Corporais.
Para maiores informações biográficas sugiro: Angel Vianna através da História. A trajetória da dança da vida
(ver bibliografia).
2
Em 1983, Angel Vianna funda, com seu filho Rainer Vianna e Neide Neves, o Espaço Novo – Centro de
Estudo do Movimento e Artes. O objetivo do grupo era criar uma escola diferente, por seu caráter
multidisciplinar. Em 2001, este centro de estudos tornar-se-ia a Faculdade e Escola Angel Vianna.
2

mergulhar em seu espaço interno, tendo paciência para que aquilo que temos de mais íntimo
possa aflorar.

As lições ao longo de todos esses anos de convivência foram inúmeras. Como no dia
em que Angel, pela primeira vez, fez uma de minhas aulas. Nesse dia, observando a dedicação
com que ela se envolvia com cada uma de minhas propostas, pude confirmar que o corpo é
um campo de pesquisa inesgotável. Deitada num canto da sala, discreta, emanava uma
qualidade de atenção incomum ao pesquisar os elementos sugeridos. Como se tudo o que me
havia sido ensinado por ela fosse algo completamente novo e desconhecido. Naquele
momento pude compreender que tão importante quanto aquilo que ensinamos é a forma como
transmitimos o conhecimento. Mesmo diante de trabalhos elaborados por ela mesma, seu
entusiasmo justificava-se por ver como um de seus alunos havia se apropriado desse saber,
conquistando autonomia.

Aprendi muito sobre minhas estratégias pedagógicas, ao perceber que nos momentos
em que eu mais me sentia à sombra de minha mestra, passando adiante suas aulas exatamente
como ela me havia ensinado, o retorno de meus alunos era de que eu tinha um jeito próprio de
transmitir a Conscientização do Movimento e Jogos Corporais.

Angel Vianna tornou-se uma referência, uma eterna lembrança de que o corpo possui
caminhos próprios. Ela é capaz de demonstrar isso, até mesmo na relação com objetos
extremamente simples. Sugere, por exemplo, o contato com uma folha de papel, com a qual é
possível sensibilizarmos a pele das mãos, do rosto, assim como de todo o revestimento
cutâneo que envolve nossos corpos. Ensina que dobrar uma folha de papel pode revelar
procedimentos análogos àquele que um corpo experimenta quando se movimenta. O sentido
da visão também é bastante explorado em seus trabalhos de sensibilização corporal. Como
quando amassamos uma folha de papel, fazendo com ela uma bolinha, equilibrando-a no
centro da palma da mão enquanto o corpo experimenta movimentos variados e os olhos
estabelecem diferentes relações com o objeto, focando-o ou não.

O trabalho de Angel Vianna foi denominado, ao longo de anos, de muitas maneiras.


Entre elas é possível destacar: Expressão Corporal. Ainda hoje, o nome Expressão Corporal é
adotado em muitas escolas de teatro, mas Angel Vianna resolveu deixá-lo de lado, por
acreditar que ele não estava mais transmitindo a dimensão assumida por suas pesquisas.
Atualmente, esta artista-pesquisadora chama seu trabalho de Conscientização do Movimento e
Jogos Corporais (daqui em diante, chamado apenas de Conscientização do Movimento).
3

Entre as atividades que continuam ocupando um lugar importante na vida artística de


Angel Vianna é possível destacar a Preparação Corporal nas Artes Cênicas. A FAV, desde sua
fundação, tem formado um número considerável de profissionais, amantes e estudiosos do
movimento, que têm participado da montagem de variados espetáculos, auxiliando atores na
composição de seus trabalhos.

Meu interesse pela Preparação Corporal justifica-se pelo fato desse campo de
conhecimento estar diretamente relacionado ao ator e seus processos criativos. O corpo do
ator é dotado de qualidades estéticas próprias, acionadas de acordo com a linguagem de cada
espetáculo onde atua. A Preparação Corporal debruça-se sobre este fenômeno particular: os
processos de criação relacionados ao corpo do ator. Como atividade autônoma do fazer
teatral, mas não isolada, avalia constantemente os limites mecânicos e/ou expressivos desse
corpo, as relações que pode estabelecer com o próprio imaginário e com aquele do coletivo no
qual está inserido.

Sendo ator e Preparador Corporal, sinto-me especialmente motivado a compreender os


caminhos e escolhas propostos por meus colegas Preparadores. Isto faz que eu entenda melhor
meus próprios caminhos e processos de atuação. Considero uma oportunidade singular para o
ator a troca com profissionais da Preparação Corporal, ao longo do processo de ensaios de um
espetáculo. A relação com Preparadores de elenco tem características próprias, diferente
daquela que estabeleço com a direção. Reconheço que as afinidades entre direção e
Preparação Corporal são muitas. Mas, na relação com a segunda, abordo meu processo
criativo considerando detalhes que muitas vezes não tenho oportunidade de tratar com a
primeira. O bom diálogo com um Preparador atento ajuda a discriminar resistências que,
comumente, impedem que o ator possa se harmonizar com o projeto estético do trabalho.

Minha primeira experiência como Preparador Corporal foi com a Companhia de


Dança Vacilou Dançou (1994), na remontagem da coreografia Em família3, inspirada em duas
peças de Nelson Rodrigues, Doroteia e Álbum de família. A diretora-coreógrafa, Carlota
Portella4, insatisfeita com o trabalho de interpretação dos bailarinos na primeira montagem

3
A coreografia citada integrou o espetáculo Retrospectiva e Perspectiva, que também contou com a coreografia
Noch einmal, de Luís Arrieta.
4
Bailarina e coreógrafa, nascida no Rio de Janeiro. Frequentou a Académie internationale de la dance (Paris) e o
Ballet Dalal Aschar (Brasil). Em 1981, forma sua companhia de dança profissional, a “Vacilou Dançou”. Desde
sua fundação, Carlota Portella assinou inúmeras coreografias, assim como convidou renomados coreógrafos para
desenvolverem criações com seus bailarinos. Dentre os coreógrafos convidados é possível citar Luis Arrieta,
Paulo Caldas e Rodrigo Rodovalho. Em 2000, foi a única companhia de dança da America Latina a participar do
Rencontres chorégraphiques internationales de Seine-Sainte-Danis, na França. Em 2001, é a primeira companhia
4

(1989), decidiu na remontagem trabalhar com dois Preparadores que pudessem aperfeiçoar a
interpretação do elenco. Fui chamado, juntamente com a atriz Claudia Mele5, para trabalhar o
sentido da gestualidade dos bailarinos. Enfrentamos alguns problemas, tais como: uma das
bailarinas, muito jovem, não conseguia expressar a sensualidade exigida por sua personagem;
outra, no papel de uma morta, estava encontrando dificuldade na construção de sua
personagem, sobretudo quando as sequências coreográficas eram compostas por movimentos
cotidianos. Muitas vezes, nos movimentos “simples” era mais difícil sustentar uma qualidade
de execução, que mantivesse essa gestualidade integrada à totalidade da coreografia. Quando
eu e Claudia Mele começamos o trabalho com o grupo, a estrutura coreográfica já estava
totalmente definida. Isso tornou ainda mais desafiador o trabalho para aperfeiçoar o sentido da
gestualidade, sem desconsiderar a estrutura espaço-temporal estabelecida pela coreografia.
Muitas vezes, senti necessidade de que um bailarino alterasse o andamento de alguns
movimentos, a fim de que suas intenções ficassem mais claras. A sensualidade almejada para
a bailarina anteriormente citada talvez precisasse de maior languidez, exigindo um tempo
mais lento na execução de seus movimentos. Mas os bailarinos não podiam abandonar o ritmo
e o andamento fixados. Nesse momento, comecei a perceber que a Preparação Corporal
constitui um campo de atuação particular. Trabalhar o sentido de uma coreografia sem ter
participado de sua criação oferecia limitações às minhas intervenções e às de Claudia Mele.
Foi então que pude refletir com maior atenção, no momento em que meu campo de atuação
parecia restrito, sobre as especificidades do trabalho que estava realizando. Meu objetivo ali
era aperfeiçoar a forma e o sentido da gestualidade de um grupo de bailarinos, adequando-os a
uma estética particular. Como estimular sensualidade, raiva, medo, tornando críveis as
personagens de Nelson Rodrigues? Estava trabalhando com excelentes bailarinos, dotados de
grande habilidade física e facilidade para o movimento. Os movimentos, aparentemente,
estavam todos lá. Mas eram outras as questões envolvidas, relativas à qualidade estética
daquilo que faziam na cena. Trabalhando a orientação do olhar, a amplitude e a forma de
alguns movimentos, a qualidade do contato entre os bailarinos, fui descobrindo maneiras de
transformar a expressividade de muitos movimentos.

Desde esse primeiro contato com a Preparação Corporal, pude constatar que essa
atividade é dotada de características próprias, que merecem reflexão. Em todas as ocasiões em

convidada para o Festival Ocidente Oriente, em Rovereto, na Itália, onde apresentou a coreografia Grito, da
própria Carlota Portella.
5
Atriz, bailarina, professora de Corpo e Movimento na Casa das Artes de Laranjeiras - Oficina de Formação
teatral (CAL).
5

que trabalhei como Preparador constatei que essa é uma função privilegiada para o
entendimento dos processos criativos do ator e da gênese do espetáculo teatral.

Em 2009 foi criado pela primeira vez no Brasil, na FAV, um curso de Pós-Graduação
Lato Sensu de Preparação Corporal nas Artes Cênicas. Um grupo variado de profissionais
(atores, bailarinos, terapeutas e diretores) ministra um diversificado quadro de disciplinas:
Conscientização do Movimento e Jogos Corporais, Anatomia para o Movimento, View Points,
Rasa Boxes, Contato-Improvisação, Sistema Laban, Análise Funcional do Movimento, Teoria
do Corpo na Filosofia, Teoria do Conhecimento, Voz e Canto pela Técnica de Alexander,
História do Corpo no Teatro Brasileiro, Teatro Musical, O Preparador Corporal e o Mercado
de Trabalho, Metodologia, Orientação de Memorial ou Monografia e ainda quatro módulos de
Preparação Corporal, onde quatro professores trabalham ao lado de diretores e atores
convidados. Cada módulo de Preparação Corporal tem duração de 32 horas-aula, e neles,
diferentes processos metodológicos são apresentados aos alunos6.

Nesta pesquisa, ao estabelecer analogias entre procedimentos da Preparação Corporal


e outros campos de conhecimento, não tenho como objetivo justificar essa prática. Antes,
pretendo discutir e tornar conscientes processos empíricos, que comumente não chegam a
constituir objeto de reflexão nem mesmo para os próprios Preparadores. As especificidades de
cada Preparação Corporal faz com que variados tipos de conhecimento sejam articulados de
acordo com as necessidades da cena em construção, constituindo-se um campo de
conhecimento transdisciplinar.

Acrescento também que em vários momentos, ao longo de minha dissertação, deixarei


transparecer que conhecimentos adquiridos na Escola de Mímica Corporal Dramática de
Paris, onde estudei de 1990 a 1993, orientam muitas de minhas considerações acerca do
trabalho de composição do ator. A formação que desenvolvi neste estabelecimento, entrando
em contato com o pensamento e as práticas formativas de Étienne Decroux, constitui um pilar
importante no exercício de minhas atividades artísticas e pedagógicas.

Parto para minha escrita sem pretender propor um modelo único para aquilo que se
poderia chamar Preparação Corporal de atores. Não estou interessado em definir um padrão,
mas sim em discriminar princípios que possam ser úteis para o desenvolvimento dessa

6
Desde a criação do curso de Pós-Graduação Lato Sensu de Preparação Corporal nas Artes Cênicas da FAV,
leciono duas disciplinas nesta formação: Preparação Corporal e Conscientização do Movimento e Jogos
Corporais.
6

profissão. Ao longo de minha dissertação, compreendendo as funções criadoras e pedagógicas


como tessituras imbricadas do fazer teatral, muitas vezes valorizo os aspectos pedagógicos
que constituem a Preparação Corporal de atores, deixando claro que o material que aqui
apresento foi recolhido não apenas a partir do exercício profissional no teatro, mas também
em sala de aula, como professor.
7

INTRODUÇÃO

Pode-se observar que desde 1970, no âmbito do teatro profissional brasileiro, a


Preparação Corporal1 vem ocupando cada vez mais espaço, definindo-se como um campo de
conhecimento específico, uma atividade autônoma e ao mesmo tempo integrada ao processo
de criação de alguns espetáculos.

Hoje, em muitas montagens, a presença de profissionais da Preparação Corporal é


frequentemente justificada por problemas específicos que serão enfrentados pelo elenco,
comumente relacionados à questão corporal. Coreografias, cenas violentas, personagens com
algum tipo de limitação ou especificidade motora podem justificar a necessidade de um
Preparador Corporal. Diretores e atores muitas vezes sabem que precisam de alguém para
trabalhar o corpo do elenco, mas nem sempre têm consciência de como essa atividade pode
intervir efetivamente no processo de criação do espetáculo.

A ideia de Preparação Corporal pode sugerir, de maneira estrita, apenas uma atividade
de condicionamento físico para atores, que utiliza um conjunto de procedimentos que visam
exclusivamente à melhora das capacidades físicas e à realização de atividades específicas.
Evidentemente, o condicionamento físico funda o trabalho do ator. Uma boa respiração,
articulações e músculos bem trabalhados, fortes e flexíveis, constituem a base para um
trabalho de qualidade na cena. Sem um corpo equilibrado, dotado de boa tonicidade, o ator
não terá condições de enfrentar as enormes demandas exigidas por sua profissão.

O corpo é uma realidade material, sujeito às leis da Física que regem o Universo. A
principal delas é estarmos determinados pela força da gravidade. Isso demonstra que as leis da
mecânica são importantes para entendermos alguns aspectos relativos à motricidade humana2,
mas não os únicos para dimensionarmos a complexidade desse fenômeno. Somos seres
físicos, biológicos e psíquicos, e todos esses aspectos determinam e são determinados por
nossos movimentos.

1
Essa atividade pode ser também denominada Direção de Movimento, ou Direção Corporal. Profissionais das
artes cênicas preferem referir-se à Preparação Corporal desse modo, quando Preparadores atuam, durante uma
montagem, na construção de cenas, e não apenas fazendo a preparação física de elencos. Nesta pesquisa, a
Preparação Corporal que valorizo considera treinamento, aquecimento e composição, na abordagem do trabalho
do ator, como atividades integradas e complementares.
2
Alavancas , transferências de peso, deslocamentos e quedas, são aspectos do movimento estudados pela
mecânica.
8

Não é possível dimensionar a Preparação Corporal como prática criativa e


transformadora, isolando seus procedimentos do processo de construção de um espetáculo. A
Preparação Corporal, tema desta pesquisa, resulta de entrelaçamentos e integra conhecimentos
técnicos sobre o corpo e outros de caráter filosófico, constituindo uma atividade poética, onde
prática e pensamento têm o mesmo valor.

Precisar o surgimento da Preparação Corporal, no Brasil, ultrapassa os limites e


interesses específicos deste trabalho. No entanto, é importante considerar um momento
emblemático na emergência dessa atividade, com o intuito de reconhecer algumas de suas
especificidades. Em 1968, estreia no Rio de Janeiro o espetáculo Roda Viva, com direção de
Zé Celso Martinez Corrêa e coreografia de Klauss Vianna3. Em depoimentos registrados no
vídeo Movimento Expressivo: Klauss Vianna (2005), de Inês Bogéa e Sérgio Roisemblit,
coreógrafo e diretor constatam ter sido esse trabalho, hino de resistência artística e política da
época, um encontro inovador. No modo de Klauss Vianna assinar sua participação no
espetáculo, como coreógrafo, é possível constatar que a Preparação Corporal era ainda um
procedimento incipiente.

E a partir do Zé Celso, com a Roda Viva, havia necessidade muito grande de um trabalho de
corpo. E o Zé Celso me chamou. Então, a partir daí começou a virar moda trabalho de corpo,
no teatro brasileiro. (Depoimento do coreógrafo Klauss Vianna, extraído do vídeo Movimento
Expressivo: Klauss Vianna).

Com o objetivo de pensar a Preparação Corporal como prática complexa, que integra e
produz campos de conhecimento, utilizarei como referências o trabalho de Conscientização
do Movimento e Jogos Corporais, criado por Angel Vianna; assim como três princípios da
Teoria da Complexidade, de Edgar Morin4, sendo eles: Princípio Dialógico, Princípio da
Recursividade Organizacional e Princípio Hologramático. A partir do cruzamento dessas
referências, investigarei como a Preparação Corporal, atuando de forma sensível e precisa
sobre o corpo do ator, pode contribuir para a construção de linguagem num espetáculo teatral.

O pensamento complexo, presente nos trabalhos de Vianna e de Morin, constitui-se


como fundamento e estímulo para esta pesquisa. Esse modo particular de pensar e estar no
mundo mostra que a integração de saberes é fundamental na vida e na arte. A questão

3
Bailarino, professor de dança, coreógrafo, diretor de teatro e Preparador Corporal, nascido em Belo Horizonte
(1928-1992). Em 1955, casa-se com Maria Ângela Abras (Angel Vianna), com quem desenvolveu importante
pesquisa no âmbito das Artes Cênicas e da pedagogia. Para maiores informações biográficas sugiro:
www.klaussvianna.art.br e A dança (do próprio Klauss Vianna, ver bibliografia).
4
Antropólogo, sociólogo e filósofo, nascido em Paris (1921). Pesquisador emérito do Centre National de la
Recherche Scientifique (CNRS). Para maiores informações biográficas, sugiro, do próprio Edgar Morin: Meus
Demônios, Ed. Bertrand Brasil (2000).
9

humana, central e determinante nas práticas de ambos, coloca o homem no cerne de seus
interesses, buscando a compreensão de seus modos particulares de auto-organização, nas
relações com o mundo. “A realidade humana é produto de uma simbiose entre o racional e o
vivido. O racional comporta o cálculo, a lógica, a coerência, a verificação empírica, mas não o
sentimento de realidade” (MORIN, 2007: 121).

Os trabalhos de Vianna e de Morin legitimam a integração entre afetividade e


inteligência racional, a fim de que a dimensão humana seja valorizada, procedimento
fundamental no trabalho teatral.

Meu interesse, estabelecendo pontes entre os trabalhos de Angel Vianna e Edgar


Morin, legitima-se como estratégia para pensar com maior dinamismo e eficácia os processos
de organização expressiva do ator, objeto de interesse da Preparação Corporal que investigo.
Baseado em alguns elementos de vivência teórico-prática de Vianna e Morin, que explicam a
organização de sistemas vivos como uma sucessão de interações, que fazem ordem e
desordem coexistir, investigarei, pela ótica da Preparação Corporal, a movimentação do corpo
do ator como sistema complexo, constituído por subsistemas, que dialogam intimamente para
definir qualidades estéticas específicas.

A movimentação de um ator pode ser pensada como ação específica que, dotada de
sentido e qualidades tônicas próprias, constitui modos singulares de experimentação do
espaço-tempo. Ação, tônus, espaço-tempo, elementos que constituem a dinâmica de
movimentação do corpo vivo, na vida e na cena, não deverão ser considerados isoladamente.
Nesta pesquisa, esses elementos serão valorizados como partes (subsistemas) de um sistema
maior: o corpo do ator imerso num projeto estético específico. Ação, tônus, espaço-tempo são
subsistemas que dialogam entre si e com a totalidade do corpo que constituem. A partir do
momento em que um deles é alterado, todos os outros também o são, com ressonância na
movimentação do ator.

A fim de melhor expor meu percurso de estudo e reflexões, organizarei meu trabalho
em três capítulos, da seguinte maneira:

No primeiro capítulo, farei uma exposição geral sobre alguns dos princípios que
orientam as práticas pedagógicas e artísticas de Angel Vianna, que assim como o pensamento
complexo, propõe a integração de múltiplos campos de conhecimento, na busca de maior
compreensão e desenvolvimento das capacidades humanas. A fim de que o potencial
10

transformador da Conscientização do Movimento seja evidenciado, farei o cruzamento de três


elementos deste trabalho: articulação, pele e visão, com o tetragrama moriniano que ilustra,
segundo o filósofo, processos de organização nos sistemas vivos. Ao valer-me, no primeiro
capítulo deste trabalho, do tetragrama que Edgar Morin apresenta para tornar visível o
dinamismo relacional que constitui os sistemas vivos, pretendo mostrar que nenhum dos
elementos constitutivos da composição do ator pode ser pensado de modo isolado. Em
consequência desse cruzamento, designarei articulação, pele e visão por: Função articulação,
Função pele e Função visão. Na sequência, discriminarei, através de alguns exemplos, modos
de aparecimento dessas Funções no trabalho do ator.

No segundo capítulo, defenderei a ideia de que a Preparação Corporal, como Prática


Complexa, deve ser avaliada como campo de conhecimento transdisciplinar. A função do
Preparador Corporal será considerada como atividade-ponte, capaz de estabelecer estratégias
variadas junto aos elencos e grupos nos quais trabalha. A noção de estratégia será valorizada,
baseada em práticas propostas pela Conscientização do Movimento, e pelo pensamento
complexo de Edgar Morin. Contrapondo-se à ideia de projeto, estratégias serão consideradas
estímulos dinâmicos e vivos, com alternâncias, variações e abertura para interações, capazes
de mobilizar elencos ao longo de um processo de montagem. Algumas habilidades
relacionadas ao Preparador Corporal serão apontadas, dentre elas a leitura de sinais corporais,
que favorece a realização de intervenções produtivas nesse campo profissional. Discriminarei
também algumas interfaces importantes para o estudo da Preparação Corporal, entre elas a
dança, a pedagogia e a antropologia.

No terceiro capítulo, apresentarei o resultado de um estudo desenvolvido por mim,


como Preparador Corporal, onde trabalhei com dois atores, Leandro Barbosa Pinheiro e
Marília Passos, na montagem de uma cena de Gota d’água, de Paulo Pontes e Chico Buarque.
A Preparação Corporal foi focada nos elementos do trabalho de Angel Vianna enunciados no
primeiro capítulo, por mim denominados: Função articulação, Função pele e Função visão.
Através de procedimentos práticos e de reflexão crítica, foi possível constatar que a
Preparação Corporal de atores pode constituir-se como uma atividade particular, que dialoga
ativamente com os processos criativos do ator.

A Preparação Corporal que interessa a esta pesquisa constitui-se como crítica genética
dos processos de criação, baseados na realidade corpórea do ator. Pretende-se interessada pelo
movimento engendrado por esse profissional, desde sua gênese, passando por um processo
11

que alterna construções e desconstruções, até transformar-se num fenômeno estético


organizado.

Nas considerações finais, procuro sintetizar as principais características de uma


Preparação Corporal que se legitima como prática criativa e integradora, assumindo como
referência os pensamentos de Vianna e Morin.

Problematizar a criação de um espetáculo pela ótica da Preparação Corporal oferece


oportunidade para pensarmos o trabalho do ator em sua constituição mais fundamental, uma
realidade corpórea capaz de produzir afetações. Dessa maneira algumas perguntas apontam
um caminho de reflexão possível, circunscrevendo o problema que me disponho a enfrentar
nesta escrita dissertativa.

O que constitui o trabalho de Preparação Corporal?

Como essa atividade pode nos ajudar a compreender o trabalho do ator?

Até que ponto o trabalho do Preparador Corporal pode ser considerado fundamental
para a construção de um espetáculo?
12

CAPÍTULO 1 - ANGEL VIANNA E EDGAR MORIN: CONEXÕES POSSÍVEIS

1.1 O trabalho de Angel Vianna: ser corpo

Um dos sentidos da palavra alemã Dasein é ser-no-mundo. Existimos porque somos


no mundo. A partir dessa constatação, o filósofo alemão Heidegger foi capaz de formular uma
pergunta determinante para a existência humana: Por que o ente humano esqueceu o SER?
Questão fundamental para a Conscientização do Movimento.

Como é possível estar sem ser? Somos capazes de executar inúmeras atividades sem
nos darmos conta daquilo que fazemos. Vivemos o presente de forma extremamente fugaz, e
nos distanciamos dele muito facilmente, quando transformamos nossa experiência sensível em
objeto de vivência, que julgamos poder apreender, classificar e dominar. Segundo Morin, “o
mundo que conhecemos sem nós não é mundo, conosco, é mundo” (MORIN, 2008: 223), pois
para esse filósofo o conhecimento não é um reflexo do mundo, mas um diálogo vivo que
estabelecemos com ele.

Na Conscientização do Movimento o corpo encontra seu caminho de auto-


organização, através de práticas que alternam sensibilização corporal e pesquisa de
movimentos. Esses procedimentos se complementam, reorganizando, em seus praticantes, a
totalidade do tônus corporal. “A flexibilidade do tônus nos permite também reagir criativa e
espontaneamente a cada novo estímulo e exigência da vida” (DASCAL, 2008: 70).

Sem uma boa qualidade de atenção, para si mesmo e para o espaço, não há
possibilidade de o corpo humano reorganizar seus padrões psicomotores. “É graças à
mobilização da sua atenção que a pessoa vai poder ver melhor, ouvir melhor, captar
elementos que até então não eram conscientes, porque não eram sentidos” (BOIS, 2008:
128, o grifo é meu). Angel Vianna acredita que seu trabalho está diretamente relacionado à
expansão das capacidades sensíveis do sujeito.

Na vida cotidiana as sensações corporais vêm em sua maior parte dos movimentos exteriores.
Eliminado-se estes, a pessoa se arrisca a não sentir mais nada, pois ela não tem o hábito de
dirigir sua atenção para o interior de seu corpo. Com efeito, a diferença é grande entre as
sensações da superfície e aquelas das camadas profundas. (VIANNA, 1978: 3).
13

Uma vez expandidas nossas capacidades perceptivas, experimentamos modos variados


de organização corporal e apreensão da realidade. Encontramos novos modos de ser/estar no
mundo.

Maria Helena Imbassaí1 propõe uma sequência de procedimentos metodológicos,


baseada no trabalho de Angel Vianna: espreguiçamento, relaxamento consciente, micro-
movimentos e uso do espaço. “Essas etapas foram sistematizadas para facilitar a compreensão
do trabalho, mas podem ter a ordem alterada segundo as necessidades observadas pelo
orientador, no momento mesmo da aula” (IMBASSAÍ, 2006: 54). As etapas propostas por
Imbassaí não acontecem de forma rígida nas aulas de Conscientização do Movimento, mas
como instâncias metodológicas possíveis. Cada uma das etapas apontadas constitui um
território aberto a experimentações a partir da escuta do corpo, em condições dinâmicas ou
estáticas.

Espreguiçar é uma boa estratégia para começar um trabalho de sensibilização corporal.


Essa atividade é dos alongamentos mais básicos que o corpo é capaz de realizar, integrando
todas as partes que o constitui. Ao mobilizar as articulações, é possível estirar musculaturas,
discriminando diferentes gradientes de resistência. Segundo Angel Vianna, “dobrar-se” é das
coisas mais importantes para que um corpo possa encontrar caminhos de auto-organização. O
termo ‘auto’, segundo Morin, traz em si a raiz da subjetividade, e a auto-organização produz
“uma misteriosa qualidade chamada consciência de si (Consciousness or self-awarness)”
(MORIN, 2005: 38).

É possível também começar uma aula de Conscientização do Movimento pelo trabalho


com movimentos simples, aos quais não damos muita importância no dia a dia. Por exemplo:
explorar de muitas maneiras o movimento de caminhar, observando apoios e transferências de
peso. Trabalhando diferentes marchas, pode-se desenvolver tanto o equilíbrio quanto o reflexo
plantar2, determinante na organização vertical do corpo.

1
Atriz, escritora e professora de Conscientização Corporal. Em seu livro Sensibilidade no cotidiano,
Conscientização Corporal (ver bibliografia), ela afirma que seu trabalho é resultado do contato com a
Conscientização do Movimento e Jogos Corporais, criado por Angel Vianna. A Conscientização Corporal,
proposta por Imbassaí, teria como objetivo despertar as sensações, a dinâmica, a postura, a tonicidade e o
equilíbrio do corpo.
2
Segundo Angel Vianna, o reflexo plantar constitui-se como uma força capaz de integrar o corpo numa relação
dinâmica e viva com a verticalidade. A partir da consciência do apoio dos pés sobre o chão (em trabalhos no
nível baixo (corpo deitado), médio (corpo sentado ou agachado) e alto (corpo em pé), um jogo de oposições pode
ser experimentado no corpo, resultado de forças ascendentes e descendentes.
14

Nesses procedimentos há uma grande mobilização de energia3 não só física, mas


também mental, que reorganiza o corpo, eliminando ou diminuindo força de lugares
hipertônicos e fortalecendo partes esquecidas, em geral hipotônicas. A equilibração do tônus
muscular é basilar para o ator, pois hipertonia e hipotonia comprometem sensibilidade e
expressividade.

Fundamental é perceber que princípios orientadores no trabalho de Angel Vianna


constituem ideias e práticas flexíveis, que emergem a partir de uma escuta profunda das
necessidades do corpo. Vianna valoriza a vida como criação constante, deixando que as coisas
se manifestem como são. A Conscientização do Movimento desperta responsabilidade e
comprometimento do sujeito em relação a si mesmo, aquilo que segundo Edgar Morin pode
ser considerado auto-ética. “A auto-ética é, antes de tudo, uma ética de si para si, que
desemboca numa ética para o outro. Ela exige, ao mesmo tempo, ‘trabalhar pelo pensar bem’
e ‘pelo pensar-se bem’: a integração do observador na sua observação (...)” (MORIN,
2007: 93, o grifo é meu).

1.1.1 Fundamento primordial: a escuta do corpo

A Conscientização do Movimento está fundada na escuta do corpo. Essa escuta


primordial mostra que o corpo tem modos particulares de organização, que devem ser
respeitados.

Este organismo humano, nós o compartilhamos, independente da infinidade de nossas


diferenças individuais. Então é legitimo, neste nível, falar de uma norma de funcionamento
geral dos corpos humanos. Essa norma não é arbitrária. Ela está contida potencialmente na
forma e estrutura do organismo. Da mesma forma, uma semente de maçã, ou tomate, não
contém apenas o fruto em gérmen (a essência do fruto). Ela também obriga o jardineiro a

3
Muitos são os significados da palavra energia. O dicionário esclarece: 1) Capacidade que um corpo tem de
realizar trabalho; 2) Ação de um motor (físico ou metafísico) que permite a atualização de uma potencialidade
(Aristóteles); 3) Vigor ou potência moral; 4) Força física (HOUAISS, 2001: 1142). No teatro, essa palavra é
comumente usada para indicar a intensidade (tonicidade) com a qual os atores realizam suas ações, fazendo-se
quase um jargão. No segundo capítulo desta dissertação, serão apresentados alguns jogos de integração, que
instrumentalizam atores através de vivências práticas, a fim de que possam perceber a qualidade de energia
colocada em seus trabalhos. Muitos dos estudos de Rudolf Laban, sobre o fator de movimento peso, podem
também nos ajudar a compreender as forças mobilizadas na execução de tarefas variadas. “O fator peso refere-se
a mudanças na força usada pelo corpo ao mover-se, mobilizando seu peso para empurrar, puxar ou carregar
objetos, tocar em outro corpo, etc. Por exemplo, para abrir uma janela emperrada, são necessários movimentos
fortes. (...) Já para brindar com taças de cristal, o peso leve é necessário” (FERNANDES, 2006: 131).
15

empregar métodos de cultivo próprios a cada um desses frutos. (DROPSY, 1973: 50, tradução
livre do autor).4

O escutar, nesse caso, não é uma habilidade estritamente vinculada ao sentido da


audição, mas uma disposição sinestésica mais ampla. O cruzamento das funções perceptivas
constitui, de fato, a realidade humana. Apreendemos o mundo por meio de uma ação
coordenada de nossas faculdades sensíveis.

Os sentidos atuam em uníssono através da apreensão do mundo. Embora, ao olharmos uma


paisagem, a visão seja o principal órgão requerido para a apreensão da imagem. Mas todos os
outros órgãos dos sentidos são solicitados durante o momento de contemplação. Isto parece
com uma orquestra que executa uma composição musical. Às vezes o som de um instrumento
específico é mais solicitado e colocado mais em evidência que os outros. Contudo, será sempre
necessário um conjunto sonoro de todos os instrumentos para que a melodia seja completa e
mais harmoniosa. (ALMEIDA, 2009: 41, tradução livre do autor).5

Essa imbricação dos sentidos pode ser percebida nos momentos em que nos
relacionamos com os objetos do mundo e quando percebemos nosso espaço pessoal. Vivemos
imersos num grande cruzamento de sensações e somos resultado disso. Desenvolvemos um
sistema nervoso que nos proporciona, no atual estágio de nossa espécie, capacidades múltiplas
nos níveis perceptivo, cognitivo e motor. Ao longo desse processo de evolução,
desenvolvemos a capacidade de nos tornarmos conscientes de nós mesmos e de muitos de
nossos processos.

A Consciência é a mais extraordinária emergência da mente humana. Produto/produtora de


uma atividade reflexiva do espírito sobre si mesmo, sobre suas ideias, sobre seus pensamentos,
a consciência se confunde com essa reflexividade ativa. O indivíduo humano pode dispor da
consciência de si, capacidade de se considerar como objeto sem deixar de ser sujeito.
(MORIN, 2007: 39, o grifo é meu).

O trabalho de Angel Vianna estabelece, como princípios, orientações que pretendem


colocar o indivíduo, como realidade corpórea (que inclui sua atividade mental), num estado de
constante descoberta e criatividade em relação a si e ao ambiente. Nesse contexto, os
princípios são tão voláteis quanto as dinâmicas dos processos de autoconhecimento.

4
Cet organisme humain nous le partageons, quelle que soit l’infinité de nos différences individuelles. Il est donc
legitime, en se plaçant à ce niveau, de parler d’une norme de fonctionnement des corps humains en général.
Cette norme n’est pas arbitraire. Elle est contenue en puissance dans la forme et structure de l’organisme. De la
même façon, une graine de pomme ou tomate, ne contient pas seulment le fruit en germe. Elle oblige aussi le
jardinier a employer des méthodes de culture qui sont propres a chacun de ces fruits.
5
Les sens, agissent en unisson avec l’appréhension du monde. Sauf que lorsqu’on regarde un paysage, la vue
est l’organe principal requis pour l’appréhension de l’image. Mais tous les autres organes sensoriel sont
sollicités pendant le moment de contemplation. Cela ressemble á un orchestre qui joue une composition
musicale. Parfois le son d’un instrument spécifique est plus sollicité et mis plus en evidence que les autres.
Toutefois, il faudra toujours un ensemble du son avec les autres instruments pour que la melodie soit complete et
plus harmonieuse.
16

O ser humano, ao pensar naquilo que faz, consegue impregnar suas atividades com
uma força capaz de transformá-lo. Vale ressaltar que ao usar o verbo pensar, não estou me
referindo unicamente à parte racional e lógica das faculdades mentais do ser humano. Esta é
uma parcela muito importante, vinculada a cálculos, mensuragens e ordenação linear de
múltiplos fenômenos, mas está longe de esgotar as propriedades daquilo que chamamos de
mente.

Assumindo que mente e corpo são instâncias indissociadas, essas modalidades do Ser
só serão compreendidas quando inseridas num fluxo constante de ordem e desordem, que
inventa constantemente a vida. Morin considera “espírito”, uma função da mente. “Quando
escrevo espírito quero dizer mind, com todas as diversas qualidades que surgem com ela,
entre as quais o insegno, de Vico (aptidão combinatória, inventiva)” (MORIN, 2007: 38, o
grifo é meu).

Alguns princípios no trabalho de Angel Vianna estimulam e orientam a inventividade


do indivíduo, proporcionando múltiplas possibilidades de organização6. Na Conscientização
do Movimento princípios orientadores nascem de experiências, desvelando a materialidade
corpórea, seu dinamismo e capacidade de transformação.

Pois, de fato, é apenas a experiência vivida que pode revelar algumas das leis que governam o
emprego do organismo humano. Uma informação escrita não será mais que um dedo
apontando um caminho, a ser percorrido por si só. (DROPSY, 1973: 50, tradução livre do
autor).7

Seguindo a progressão experimentada por Angel Vianna em seus estudos de dança: do


movimento à percepção e ao conhecimento; da liberdade à conscientização e ao controle

6
“Além do equilíbrio mecânico a postura deve ser concebida como resultante de um equilíbrio neuro-motor
onde se integram uma infinidade de reflexos sensitivo-motores, atuando em diferentes níveis do sistema nervoso.
Estes proporcionam um complexo mecanismo de regulação automática. Sendo uma posição próxima ao
equilíbrio estável a postura ereta deve solicitar pouco esforço muscular. A regulação do tônus postural é
fundamental na manutenção do equilíbrio. Junto a ela se integram a ação dos ligamentos e as sensações
proprioceptivas advindas de sua tensão e relaxamento. Todo este complexo funciona de maneira involuntária à
medida que o hábito se interioriza no indivíduo. Daí uma educação da postura passar essencialmente pelo
trabalho sobre as sensações e não simplesmente pela repetição de contrações tônicas. Fazem parte do conjunto da
propriocepção as sensações de flexão articular, de pressão plantar, de desequilíbrio provocado pelo deslocamento
dos otolíticos do ouvido interno. Enfim o que a ação da gravidade acarreta no corpo. Os caracteres
morfogenéticos são o material com o qual o sistema neuropsicomotor atuará. Integrados às sensações
proprioceptivas, o aspecto emocional, o comportamento social e o modo de expressão se exibem na postura da
pessoa. O esquema postural vem a ser a representação mental que o indivíduo faz de seu equilíbrio através dos
dados próprio e exteroceptivos. Imagem somática, emoções internas, postura e movimento espelham impulsos
psíquicos, nossa atitude para com nossos semelhantes, nós mesmos e o meio ambiente” (notas de trabalho da
própria Angel Vianna, concedidas ao autor).
7
Car en fait, c’est l’expérience vécue seule qui peut faire redécouvrir quelques-unes des lois qui gouvernent
l’emploi de l’organisme humain. Aucune indication écrite ne peut être plus qu’un doit pointant dans la direction
d’un chemin à parcourir soi-même.
17

(VIANNA, 1978: 4); apresentarei alguns princípios possíveis constitutivos da


Conscientização do Movimento.

1.1.2 Percepção

O trabalho sobre a percepção é basal na Conscientização do Movimento e demonstra


que nosso aparato perceptivo é fruto de construção consciente. A percepção “envolve um tipo
de conhecer, que é um apreender do mundo externo junto com o mundo interno, e ainda
envolve, concomitantemente, um interpretar aquilo que está sendo apreendido. Tudo se passa
ao mesmo tempo” (OSTROWER, 1987: 57).

Aprender com o corpo, abrindo os canais de percepção, é um objetivo importante nas


práticas de Angel Vianna. Não existe movimento no corpo destituído de sentido, vazio.
Comumente, o que se pode constatar é ausência de escuta para as forças que colocam nossos
corpos em movimento. No trabalho de Vianna, o vazio tem outra qualidade. “Em sua
essência, porém, a consciência é um vazio, um nada, um silêncio que nos possibilita sentir e
escutar, refletir e querer. É a caixa de ressonância e espelho! Nela ouvimos a voz do nosso
ser!” (BUZZI, 1991: 55). Ouvir a voz do próprio ser é a capacidade de reconhecer que somos
simultaneamente unos e múltiplos.

A construção de um corpo é um fenômeno que se desenvolve no tempo, fator


fundamental para o aprimoramento da percepção.

O exercício da percepção mostra que é preciso se demorar diante das aparições do mundo para
saber um pouco mais a seu respeito. Noutras palavras, a percepção não me engana
definitivamente, pelo contrário, é através dela que entro em contato com a inesgotável riqueza
do mundo. (RAMOS, 2010: 45).

O processo de construção do próprio corpo acontece porque perseveramos no uso da


percepção, mobilizando uma grande quantidade de energia/atenção que proporciona a
abertura de caminhos interiores. “É um fato que a atenção do homem está frequentemente
dispersa, ausente de presença” (BOIS, 2008: 50). Por isso a tomada de consciência do próprio
corpo exige disciplina e treino. “É apenas em um esforço consciente e infrutífero para trazer à
18

sensação uma dada parte do corpo, a forma de um movimento ou a relação com outro, que nós
descobrimos o quanto nos falta” (DROPSY, 1973: 21, tradução livre do autor).8

O treino perceptivo, “percepcionar o impercepcionado” (BOIS, 2008: passim), altera


nossos padrões habituais de comportamento. Cada ser humano possui uma organização
corporal particular que engendra padrões psicomotores. Isso não constitui algo nocivo no dia
a dia, a não ser quando se manifestam dores ou mal estar. Mas um ator deve estabelecer uma
relação consciente com a tendência do corpo humano de criar padrões, desenvolvendo seu
aparato perceptivo e ampliando seu campo de atuação.

A ampliação das capacidades perceptivas no homem demonstra que um movimento,


mesmo quando repetido, constitui uma experiência única. É possível realizar um movimento,
com experiências sensíveis diferentes, de acordo com o tipo de estímulo que é proposto.
Conforme o tipo de escuta presente na realização de um movimento, ativam-se circuitos
neuromotores diferentes, experiências tônicas particulares e novas intenções.

A percepção é uma atividade, um fenômeno dinâmico complexo, onde sujeito e objeto


percebido interagem, estabelecendo processos retroativos que os constituem.

Quando o trabalho de sensibilização corporal, ao longo de aulas ou ensaios, é


acompanhado por registros escritos, que descrevem mudanças relativas à percepção, observa-
se uma riqueza crescente de detalhes, ao mesmo tempo que mudanças na estrutura corporal
podem ser percebidas. Isto comprova a íntima relação entre equilíbrio tônico e expansão
perceptiva.

1.1.3 Não-esforço9

O não-esforço é uma tônica do trabalho de Angel Vianna, permitindo que a atenção


invada o corpo, acessando níveis de consciência mais profundos. Na Conscientização do
Movimento, o chão é utilizado constantemente, e dessa forma é possível experimentar a

8
C’est seulment lors d’un effort conscient et infructueux pour faire surgir la sensation de tell partie de notre
corps, la forme de tel mouvement ou bien tel mode de relation avec un outre, que nous decouvrons combien ils
nous manquent.
9
A palavra esforço aqui não está sendo utilizada segundo o Sistema Laban, “pulsão resultante de atitudes
internas que ativam o movimento, imprimindo-lhe variadas e expressivas qualidades” (RENGEL, 2003: 60), mas
no sentido de quantidade de força/tonicidade empregada na realização de um movimento ou ação.
19

tonicidade do corpo de maneira diferente daquela que normalmente alcançamos em nossas


atividades cotidianas.

O fato de trabalharmos muito deitados não deve sugerir uma falsa ideia de
relaxamento, que não é o objetivo direto deste trabalho. Ao despertarmos outra qualidade de
atenção no corpo, criamos possibilidades de que ele encontre por si seus próprios caminhos de
auto-organização. Muitas das expressões utilizadas na Conscientização do Movimento
comprovam a importância de buscarmos a justa força durante os trabalhos de sensibilização
corporal ou pesquisa de movimentos. “Ceder”; “Sentir”; “Entregar o peso do corpo”; “Soltar”;
“Tirar o excesso de força”; “Projetar”; “Economizar”, são exemplos de estímulos verbais
frequentemente utilizados neste trabalho. Essas expressões atestam a relação entre não-
esforço e percepção. É possível ceder porque, pouco a pouco, aumentamos e intensificamos a
escuta do corpo. Ceder no trabalho de Conscientização do Movimento é um ato de grande
atividade.

Com o intuito de compreender algumas características daquilo que podemos chamar


de movimento eutônico10, faço das palavras de Jacques Dropsy uma orientação:

(...) a) a economia de esforço. Um movimento pleno deve apresentar o máximo de eficácia


com o mínimo de desgaste. (...) b) (...) o ritmo. Um movimento justo é sempre o resultado
de uma alternância ritmada de tensões e relaxamentos. Cada fase de relaxamento propicia
uma recuperação do esforço investido e favorece o início do esforço seguinte. (...) c) A
unidade de todo o corpo participando de cada movimento. Braços e pernas coordenam-se
em torno do centro, de onde partem as impulsões. d) Uma sensação subjetiva de bem-estar.
(DROPSY, 1973: 105/106, tradução livre do autor).11

O bom tônus característico do movimento eutônico possibilita uma equilibrada


distribuição de forças no corpo e maior mobilização articular. Entender a própria fisiologia
articular é primordial para um ator. Articulações “apertadas” ou “frouxas”, sem a justa
sustentação, não favorecem a integração corporal, impedindo que o movimento envolva a
totalidade do corpo. Evitar o excesso de força na ação, que se transforma em esforço, é
fundamento no trabalho de Angel Vianna.
10
Segundo Gerda Alexander, movimento eutônico é aquele que possui: a) tônus uniforme por todo o corpo; b)
equilíbrio de tensões entre músculos agonistas e antagonistas; c) circulação sem incômodos e respiração regulada
sem impedimentos nem intervenções (ALEXANDER, 1974 : 1 )
11
(...) a) l’economie dans l’effort. Un mouvement juste doit avoir le maximum d’efficacité avec le minimum de
dépense de force. (…) b) Un mouvement juste resulte toujours d’une alternanace rythmée de tension et de
détentes. Chaque phase de détente permet de se reposer de l’effort accompli et de prendre un nouveau départ
pour l’effort suivant. (...) c) L’unité de tout le corps dans as participation à chaque mouvement. Bras et jambes
se coordonnent et s’unissent autour du centre, d’où partent les impulsions. d) Une impression subjective
d’aisance.
20

O aprimoramento perceptivo do tônus muscular diz respeito àquilo que é específico e


fundamental sobre a educação corporal necessária a um ator. Desenvolvendo a capacidade de
escuta do corpo, e sua coerência fisiológica, o ator ganha mais autonomia, conquistando
também maior controle de seus processos expressivos. “Sem mudança de tônus não seria
possível nenhuma interpretação musical ou dramática. (...) Se alguém, por exemplo, sente o
sofrimento de outra pessoa com seu próprio corpo, realmente compartilha a experiência”
(GAINZA, 1997: 38).

De todos os campos de conhecimento que “alimentam” a Conscientização do


Movimento, a Eutonia assume lugar de destaque. A Eutonia é um conjunto de procedimentos
que visa à sensibilização e à organização corporal, onde o sistema ósseo e a pele assumem
importante papel na regulação do tônus muscular.

O trabalho em eutonia visa ao estabelecimento da tensão harmoniosa e equilíbrio das diferentes


tensões que coexistem no corpo, um equilíbrio do tônus geral. A ação sobre o tônus acontece
ao dirigir a atenção para determinadas partes do corpo, observando sua forma, seu volume, seu
espaço interno, estimulando a sensação da pele, dos tecidos, dos órgãos, do esqueleto e do
espaço interior dos ossos. (DASCAL, 2008: 63).

A partir do momento em que a consciência de ossos e pele vai sendo aprimorada, por
meio de exercícios de auto-contato e pesquisa de movimento, a relação com a organização
tônica do corpo muda, produzindo alterações de comportamento. Consequentemente, o
trabalho sobre o corpo ganha amplitude e novos contornos, demonstrando que a parte
mecânica do movimento não está dissociada da vida psicológica do sujeito. Assim como a
Eutonia, a Conscientização do Movimento é um trabalho de integração corporal que não
separa, no homem, aspectos físicos, biológicos e psíquicos.

Na Eutonia, muitas vezes fazem-se trabalhos com argila (fig. 1), onde corpos
humanos, ou partes destes, são modelados. Nessa atividade é possível perceber o quanto as
noções de esquema e imagem corporal12 estão imbricadas.

A primeira conclusão é que não podemos, no estado atual de nossa experiência, separar a vida
psicológica de sua expressão no corpo e das sensações físicas que estão ligadas àquela. A
segunda é que, além do mais, nós tomamos consciência de pelo menos uma parte de nossa vida

12
A imagem e o esquema corporal são conceitos, por isso abstrações teóricas, que nos auxiliam a entender como
o corpo vai se estruturando ao longo de sua existência. (...) É na mediação da imagem corporal com o esquema
corporal que todas as funções psicomotoras podem se estabelecer, através de uma estruturação corporal. Quando
se tem a imagem e o esquema corporal bem estruturados, as outras funções podem se organizar (ALMEIDA,
2003: 20/22). Ao dar qualquer tipo de informação/orientação, mesmo que esta seja para resolver algum problema
de ordem mecânica, como por exemplo: apoio de partes do corpo ‘entrando ou saindo’ do chão, mudança de uma
posição a outra com maior agilidade, o Preparador Corporal deve saber que elas incidem sobre a totalidade do
corpo do ator, já que qualquer modificação no esquema corporal afeta diretamente a auto-imagem.
21

psíquica e emotiva através das sensações corporais. (DROPSY, 1973: 42, tradução livre do
autor).13

Na representação em argila, por vezes, observamos: assimetrias entre lado direito e


lado esquerdo, desproporções entre unidade superior e inferior, assim como ausência de
articulações.

(Figura 1) Modelagem em argila. Ossos da bacia. Fernando Canabrava. (foto do autor).

Constata-se uma projeção dos esquemas mentais de representação do corpo que


poderíamos chamar de transdução14, uma tradução intersemiótica. Pode-se afirmar que o
objeto produzido é uma forma análoga às representações mentais que a pessoa faz do próprio
corpo. Esse exemplo mostra que o pensamento pode ser projetado em diferentes
materialidades.

1.1.4 Imobilidade

A imobilidade é bastante utilizada, como recurso pedagógico, na Conscientização do


Movimento. Seja em posições de controle15 ou fazendo pausas ao longo de uma pesquisa de
movimentos, para renovar a escuta do corpo. Desenvolvendo essa sensibilidade, percebe-se

13
La première conclusion est que nous ne pouvons, dans l’etat actuel de notre expérience, séparer la vie
psychologique de son expression dans le corp et des sensation phyysiques qui lui sont liées. La seconde est que,
de plus, nous prenons conscience au moins d’une partie de notre vie psychique et sourtout émotive par des
sensations corporelles.
14
Quando algum tipo de informação organizada (pensamento, notação musical, poema) expresso através de um
sistema específico de signos, passa a ser expresso, de modo análogo, por outro sistema sígnico. Por exemplo: o
sistema sígnico mental da 5ª sinfonia de Beethoven constitui-se como um sistema sígnico, que será transduzido
por outro sistema análogo, na forma de notas musicais grafadas numa partitura.
15
As posições de controle constituem uma parte importante do trabalho de Eutonia, criado por Gerda Alexander.
Dinamizando todas as articulações do corpo, desde a base até a parte superior, elas são posturas, porque
trabalhadas de forma estática, que possibilitam uma tomada de consciência da amplitude articular própria, ao
longo da totalidade do corpo. Seu inventário é feito relacionando as possibilidades de movimento nas
articulações e o tônus muscular necessário para sustentar a boa arquitetura e funcionamento das mesmas.
22

que o corpo, mesmo imóvel, experimenta uma gama variada de sensações, que são formas de
movimento. “Assim como o som só tem sentido em sua relação com o silêncio, ou a luz, em
sua relação com a escuridão, o movimento só encontra sentido em sua relação com a não-
ação, o não-movimento” (VIANNA, 1978: 1). Isso ensina ao ator que, mesmo parado, sua
experiência sensível não é interrompida. Aqui está se falando de outra qualidade de
imobilidade, uma mobilidade passiva.

Se é fácil demonstrar as vantagens do estado passivo, é menos fácil chegar a esse estado.
Parece bem curioso que não fazer nada possa ser difícil, mas estado passivo consciente é
geralmente muito pouco conhecido e quase inexistente na vida moderna. (...) O relaxamento é
muitas vezes ligado à ideia de morte como usam na Yoga. Entretanto, o estado de passividade
desejado não tem a menor semelhança com a morte. O estado de passividade consciente é um
estado vivente, e quanto mais se relaxa, mais se percebe a vida interior do corpo, a respiração,
a circulação do sangue, os movimentos peristálticos e etc. (Ibidem, 1978: 2).

Explorando a imobilidade, aumentamos consideravelmente nossas capacidades


perceptivas, reduzidas no dia a dia. Muitos atores têm dificuldade de assumir a imobilidade no
palco. Acreditam que parados não estão interessando o público. Entretanto, parar e saber fazer
silêncio são qualidades importantes, vivências que ampliam a escuta do movimento, na vida e
no palco. Sem experimentar o silêncio e a imobilidade como forças produtoras de sentido que
inspiram a criação, o ator minimiza seu potencial expressivo, sua capacidade de ser/estar, no
momento presente.

Por que pausas assustam tanto os atores? Porque são momentos de risco, nos quais se
pode ganhar ou perder força, aumentando ou diminuindo a expressividade de uma ação.
Quando bem usadas, as pausas podem renovar a disposição do ator, revelando novas
possibilidades de jogo. Rudolf Laban fala da existência de uma zona de silêncio em todo ser
humano. Esta zona seria o potencial que possuímos para vivenciar todas as qualidades de
movimento.

Existe uma energia atrás de todo acontecimento e atrás de cada coisa, que dificilmente
podemos nominar. Uma paisagem escondida e esquecida. A região do silêncio, o império da
alma; no seu centro existe um templo em movimento. Portanto, as mensagens vindas desta
região do silêncio são eloquentes e nos falam sempre em termos de realidades cambiantes, que
são para nós de grande importância. (LABAN apud LAUNAY, 1996: 93, tradução livre do
autor).16

16
Il y a une énergie derrière tout événement et derrière toute chose, qu’on peut difficilement nommer. Un
paysage caché et oublié. La région du silence, l’empire de l’âme; en son centre, il y a un temple en mouvement.
Pourtant, les messages venus de cette région du silence sont éloquents et nous parlent en termes tourjours
changeant de réalites qui sont pour nous d’une très grande importance.
23

1.1.5 Explorando movimentos e organizando o espaço pessoal

O movimento é fundamento para a organização corporal. Um gesto se constrói de


modo fisiologicamente coerente, quando mobiliza a totalidade daquele que se move.
Estamos/somos inteiros quando as partes que nos constituem funcionam de modo
econômico17, proporcionando liberdade de movimentos.

A partir de um diálogo dinâmico entre os vários sistemas corporais, novas


possibilidades de organização emergem no corpo, que reconhece saber pensar por si. Essa
inteligência íntima não é privilégio de alguns corpos, mas uma faculdade que todos possuem,
o que é especialmente relevante para aqueles que trabalham com o movimento, seja no âmbito
educacional, terapêutico ou artístico, pois ensina que, não havendo disfunções patológicas em
jogo, todo corpo tem capacidade de aprender e transformar-se. A Conscientização do
Movimento desperta esse saber essencial que possuímos. Movimento é saúde para o corpo, e
inúmeras patologias, não só do aparelho locomotor, têm suas causas na ausência de
movimentos.

O corpo humano é um ótimo exemplo para compreendermos como as partes de um


sistema definem sua totalidade, e vice-versa. Em nosso corpo, suas partes constituem uma
rede integrada. Consequentemente, cada modificação em uma das partes do sistema altera a
totalidade do mesmo. A prova disso é que muitos desequilíbrios funcionais só podem ser
organizados quando a relação todo – parte é considerada. Por exemplo: a forma como
pisamos está relacionada com a organização funcional de nossas pernas, que determinam o
posicionamento da bacia, que orientam a movimentação da coluna, que organiza a cintura
escapular, liberando os movimentos de braços e cabeça. Somos uma totalidade integrada.

No trabalho de Angel Vianna, exercícios de sensibilização e improvisos são capazes


de convidar o sujeito que se move a entrar em contato com “o momento presente ou
agoridade” (STERN, 2007: 26). Entrando em contato, através do movimento, com o momento
presente, é possível redimensionar noções de espaço-tempo, experimentando constantes
variações na função tônica do corpo.

17
O adjetivo econômico está sendo utilizado no sentido de equilibrado, dotado de uma organização justa e uma
boa distribuição de forças.
24

Entre os trabalhos de pesquisa que constituem a Conscientização do Movimento, um


deles é denominado: Lideranças. É um trabalho extremamente objetivo, que proporciona
experiências profundas, uma vez que altera a tonicidade global do corpo. A proposta consiste
em mover-se, deixando que a movimentação seja orientada por uma parte específica do corpo.
Na objetividade dessa proposta, podemos analisar muitas coisas, entre elas: como o corpo se
organiza através do movimento? Existem partes que resistem ao movimento? Os movimentos
são contínuos ou interrompidos? Como é percebida a relação com o espaço, por aquele que se
move e por quem observa?

Quando o trabalho de Lideranças é feito de forma precisa, mobilizando boa qualidade


de atenção, aquele que se move realmente ganha consciência da parte que lidera os
movimentos e experimenta possibilidades de alterar o equilíbrio global do corpo. O que
parece uma proposta trivial, na prática apresenta muitas sutilezas, pois não é evidente
sustentar a liderança da parte escolhida. Aquele que se move precisa mobilizar-se inteiro para
de fato manter a liderança e deixar seu corpo seguir a orientação. Inúmeras resistências
corporais podem ser percebidas nesse trabalho. Comumente, aquele que se move tende a
voltar a seus padrões habituais, quando o trabalho propõe o oposto: novas formas de
organização tônica. Por exemplo, acredita-se estar-se deixando levar pelo cotovelo direito,
mas na verdade são as pernas que estão controlando a movimentação. Nesse trabalho,
aprendemos que o corpo tem seus modos próprios de organização. Pensamos com o corpo
inteiro, e isso fica evidente no trabalho com as lideranças, onde o movimento acontece como
experiência singular, possibilitando combinações inusitadas entre as partes do corpo e sua
totalidade. Imerso num fluxo de ordem e desordem, o corpo encontra caminhos, e
experimenta um processo de des-hierarquização de suas partes.

No trabalho, que toma o corpo como ponto de partida, nós já nos deparamos com a liberdade
que aparece quando diminuímos a importância dada ao resultado para se concentrar nos meios
de chegarmos ao instante presente. Torna-se possível entrar no trabalho como num jogo, ao
invés de considerá-lo muito seriamente, como uma tarefa a ser realizada; assim faz a criança,
que cada uma das milhares de tentativas para aprender a andar, ou falar, é um jogo onde ela se
entrega com prazer e liberdade. (DROPSY, 1973: 146, tradução livre do autor).18

18
Dans le travail, à partir du corps, nous avons déjà rencontré la liberté qui naît quand on retire une part de
l’importance donnée ao resultat pour se concentrer sur les moyens d’y parvenir dans l’instant présent. Il devient
alors possible d’entrer dans le travail comme dans un jeu plutôt que le considerer trop sérieusement comme une
tâche à accomplir, ainsi fait l’enfant pour qui chacun des milliers d’essais répétés pour apprendre à marcher ou
à parler est un jeu, auquel il s’adonne avec plaisir et liberté.
25

Através deste trabalho, aprendemos que a ideia de estrutura corporal não deve ser
considerada rigidamente, mas um processo dinâmico de adaptações entre a totalidade do
19
corpo e suas partes. A experiência do corpo movente é “dilatada” e inúmeras formas de
equilíbrio podem ser vivenciadas. Aprende-se que equilíbrio não é uma noção estática, mas
extremamente dinâmica, que inclui probabilidades de desequilíbrio. Em muitos treinamentos
e técnicas corporais para atores, o trabalho sobre o equilíbrio é fundamento. Meierhold,
Decroux, Grotowski e Barba consideram a utilização do equilíbrio precário20 como estratégia
para treinamentos e jogos de cena potentes. Alterando a organização tônica habitual o ator é
capaz de intensificar a relação com seus processos fisiológicos.

1.1.6 Integração corporal: busca de verticalidade

Na Conscientização do Movimento, a dimensão vertical é uma referência para a


organização corporal, sendo trabalhada em íntima relação com a percepção de apoios ósseos e
espaço. A verticalidade é percebida/entendida como uma força que atravessa e organiza o
corpo.

Muitos trabalhos de Educação Somática21 associam o eixo vertical à consciência


individual, enquanto os eixos horizontais, que atravessam as cinturas pélvica e escapular, aos
aspectos relacionais de nossa existência, que se fazem evidentes quando lidamos com o
ambiente e nossos semelhantes.

Eixo vertical (linha vertical imaginária) responsável pelo equilíbrio neuromuscular e pela
harmonia do indivíduo com seu mundo interno (sensações e emoções). Eixo horizontal
(braços) responsável pelo equilíbrio do indivíduo com o mundo externo (relações e ações).
(IMBASSAÍ, 2006: 85).

19
“O corpo dilatado é acima de tudo um corpo incandescente, no sentido científico do termo: as partículas que
compõe o comportamento cotidiano foram excitadas e produzem mais energia, sofreram um incremento de
movimento, separam-se mais, atraem-se e opõem-se com mais força, num espaço mais amplo ou reduzido”
(BARBA e SAVARESE, 1995: 54).
20
“Uma tradição na mímica européia faz uso consciente desse déséquilibre: não como um meio de expressão,
mas como um meio de intensificação de certos processos orgânicos e aspectos da vida do corpo” (ibdem, 1995:
35).
21
O termo Educação Somática, atualmente, engloba um número considerável de técnicas corporais que visam o
equilíbrio harmônico do sujeito consigo mesmo e com o ambiente no qual está inserido. A Conscientização do
Movimento e Jogos Corporais, hoje, no Brasil, faz parte desse conjunto de trabalhos que, segundo Angel Vianna,
‘procuram equilibrar tensões, favorecendo que o corpo organize suas funções vitais’ (entrevista ao autor, Anexo
A).
26

Quando tomamos o eixo vertical como referência para a observação de um corpo, é


fácil constatar que duas pessoas não caminham ou se mantêm de pé da mesma forma.

Para se convencer disso, basta pedir que um grupo de pessoas se mantenham ‘eretas’, sem
nenhuma explicação. O resultado é geralmente revelador. Não há duas atitudes iguais. Cada um
tem suas próprias contrações: um sobe os ombros, outro crispa os braços, um terceiro empurra
o queixo para frente; alguns troncos estão curvos, outros estendidos. Um faz um arco para trás
e outro cai para frente como numa saudação. Ao menos metade tem a respiração presa.
(DROPSY, 1973: 47, tradução livre do autor).22

Étienne Decroux, na Mímica Corporal Dramática, valoriza enormemente o trabalho


sobre a verticalidade, afirmando seu apreço pela bipedia na frase: “Quando vejo um corpo se
erguer, é como se toda a humanidade se levantasse com ele” (SOUM, 2009: 17). O mímico
francês considerava as marchas a parte mais complexa de seu trabalho, pelo fato delas serem
modos de deslocamento do verbo SER. Quando um corpo se desloca, na condição de bípede,
leva consigo todas as suas características e singularidades. Decroux estudou a condição
humana através do movimento e discriminou alguns estilos de jogo na Mímica Corporal,
dotados de características particulares. Um exemplo é as diferenças entre as marchas
relacionadas ao “homem de esporte” (L’homme de sport) e aquelas que fazem parte do mundo
do “homem de salão” (L’homme de salon). Essas marchas mobilizam o tronco de modos
distintos, estabelecendo diferentes relações com a verticalidade, acentuações e fraseados. O
“homem do esporte” valoriza nitidamente o centro de gravidade, comumente trabalhando com
o tronco curvado à frente (flexionado), acentuando vários de seus movimentos em direção à
terra. O “homem de salão” valoriza a vertical, sem perder a consciência de sua base,
acentuando diversos movimentos em direção ao alto.

A dimensão vertical pode de fato informar muito sobre as características particulares


de cada indivíduo, pois inúmeras compensações podem ser percebidas assumindo esse eixo
como parâmetro. Jacques Dropsy, no exemplo acima, assinala que, observando várias pessoas
de pé, constatou que pelo menos metade delas tinha a respiração bloqueada. Isso demonstra a
relação entre eixo vertical e respiração.

Se nossa condição de bípedes está diretamente relacionada aos nossos processos de


subjetivação, a respiração também está. O corpo inteiro é manifestação de subjetividade, mas

22
Il suffit pour s’en convaincre de demander à un group de gens debout de “se tenir droit” sans outre
explication. Le résultat est généralment révélateur. Il n’y a pas deux attitudes semblables. Chacun se livre à des
contortion qui lui sont propres: l’un remonte les épaules, l’autre crispe ses bras, un troisième pousse le menton
en avant; des dos sont rond, d’autres exagérément cambrés. Tel fait un arc en arrière et tel autre est cassé en
avant comme pour saluer. Au moins moitié des respirations sont bloqeées.
27

alguns elementos constitutivos de nossa realidade corpórea parecem evidenciar mais


explicitamente esses processos. Dessa maneira é interessante notar que, aprimorando a
consciência do eixo vertical, a respiração está sendo mobilizada “indiretamente”.

Mesmo quando se trabalha no chão, na posição de decúbito dorsal, Angel Vianna


reforça constantemente a relação com as linhas verticais que atravessam o corpo. Direciona a
atenção para o eixo que passa pelo nariz, esterno e púbis (fig. 2a), advertindo que ele pode ser
percebido em relação à parte anterior do corpo, mas também em relação a seu centro (topo da
cabeça, parte anterior da coluna, períneo: fig. 2b), e parte posterior (occipital, processos
espinhosos das vértebras da coluna, sacro: fig. 2c).

2a 2b 2c

(Figura 2) Eixos verticais

Mesmo no chão é possível trabalhar a projeção de movimentos além do topo da cabeça


e das “raízes” das solas dos pés.

Na Conscientização do Movimento a verticalidade não é trabalhada de modo isolado,


mas em íntima relação com as dimensões horizontal e sagital. Um exemplo disso é o trabalho
de percepção de algumas linhas imaginárias: 1) Eixos que passam pelos acrômios (fig. 3a) e
pelas cristas ilíacas anteriores (fig. 3b) (dimensão horizontal), são importantes de serem
percebidos na busca de verticalidade.

(Figura 3) Eixos horizontais:

3a- Acrômios

3b- Cristas ilíacas anteriores

3a 3b
28

2) Ainda no chão, Angel Vianna pede atenção na projeção dos apoios da parte
posterior do corpo em direção a parte anterior (dimensão sagital).

(Figura 4) Relação dos apoios posteriores com a parte anterior do corpo.

Mesmo que a dimensão vertical se apresente como uma referência importante, as


outras não são esquecidas, pois o objetivo maior do trabalho é que o corpo seja percebido em
sua tridimensionalidade, volume e contorno. Despertando no corpo a consciência das três
dimensões fundamentais (altura, largura e profundidade), movimentos complexos acontecerão
com maior liberdade e fluidez, como as torções.

As linhas espirais que atravessam o corpo são de grande importância. Elas estão
intimamente relacionadas à nossa morfologia e podem funcionar como estímulo para que o
corpo encontre caminhos eficazes e econômicos na realização de suas ações. Movimentos
circulares e espiralados vão a favor de nossa estrutura primordial, liberando articulações e
músculos. Angel Vianna afirma que aprendeu muito sobre as torções com Rudolf Piffl, ex-
aluno de Rosalia Chladek, com quem teve oportunidade de trabalhar, na época em que esteve
na Bahia (1963/64). Chladek é considerada uma pioneira da chamada dança de expressão do
século XX (Anexo C, cena: 1), e desenvolveu um trabalho pedagógico, assim como Angel
Vianna, baseado na anatomia e fisiologia do corpo humano. Para essas duas bailarinas e
pedagogas, a verdadeira expressividade na dança está baseada na escuta das estruturas do
corpo e sua funcionalidade.

As espirais são linhas de força que impressionam Vianna desde os tempos em que
estudou Belas Artes na Escola Guignard23, como é possível constatar no estudo abaixo (fig.5):

23
“Em 1944, Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) é trazido a Belo Horizonte pelo então prefeito Jucelino
Kubitschek para dirigir o curso livre de desenho e pintura da Escola de Belas Artes, que 1962, passa a se chamar
Escola Guignard, em sua homenagem. O liberalismo didático de Guignard proporcionou à sociedade belo-
horizontina uma nova concepção artística dentro dos padrões estéticos da época” (MAGALHÃES, 2010: 9).
29

(Figura 5) Estudo em cimento de Angel Vianna para Santa barroca (1959). (foto do autor).

Os movimentos circulares nos colocam frente à força centrífuga. Por causa da construção do
corpo humano em torno de um eixo vertical e do desenvolvimento de cada segmento em torno
de um ponto de apoio fixo que serve de base: bacia, ombro, base do pescoço, a maior parte das
coordenações do corpo humano se dão seguindo trajetos circulares. (DROPSY, 1973: 117,
tradução livre do autor).24

Na Conscientização do Movimento as dimensões vertical, horizontal e sagital, no


corpo, são trabalhadas em íntima relação com o espaço. Angel Vianna aponta constantemente
que o gesto projeta-se além da pele. Segundo Vianna, a organização corporal depende de
trocas com o espaço e, nesse processo, articulação, pele e visão são elementos determinantes.
A partir de um diálogo atento com o chão, sensibilizando seus apoios, o corpo encontra base
para expandir-se e projetar-se no espaço.

A primeira fase de qualquer percepção e de qualquer gesto consiste na tomada de referências


no espaço. É o modo como vou me orientar que ditará a qualidade do gesto que se seguirá.
Essa orientação precisa de um mínimo de vetores. Um vetor que vai ser o substrato, o chão, e
outro que vai ser o espaço, a projeção no espaço. (GODART in opercevejoonline, 2010: 5).

Assumindo a verticalidade como referência o corpo tem condições de expandir suas


possibilidades de troca com o espaço. Uma abordagem rígida de oposições como espaço
pessoal X espaço global, superfície X profundidade, perde sentido quando o corpo se torna
poroso e receptivo em suas trocas com o espaço.

24
Les mouvements circulaires nous mettent en face de la force centrifuge. A cause de la construction du corps
humain autour d’un axe verticale et du développement de chaque segment autour d’un point d’appui fixe qui lui
sert de racine: bassin, épaule, base du cou, la plupart des coordinations fondamentales du corps humain se
développent suivant des trajets circulaires.
30

1.1.6.1 Verticalidade e apoios

Um exemplo dessa relação entre apoios e dimensão vertical na cena, se deu no


espetáculo O jardim das cerejeiras, de Tchécov25, no ano de 1989, com direção de Paulo
Mamede e Angel Vianna como Preparadora Corporal (Anexo B). Nesse espetáculo os atores
utilizavam constantemente o chão. Essas marcações estavam coordenadas ao projeto estético
de encenação e valorizavam a relação das personagens com a terra, característica importante
do texto de Tchécov, onde acompanhamos a decadência de uma família de aristocratas russos
que perdem a propriedade onde vivem. Os movimentos realizados no chão (marcações)
ajudaram a evidenciar a decadência familiar, ao mesmo tempo em que sinalizavam o desejo
das personagens de não saírem do lugar onde estavam. Em meio a um elenco bastante
heterogêneo, a Preparação Corporal desenvolveu um trabalho harmônico, tornando os
movimentos no chão viáveis até mesmo para os atores mais velhos.

Não foi por acaso que se chamou a Angel Vianna. Porque o que nós queremos não é uma
verdade psicológica, queremos uma verdade sim, mas queremos um corpo tão livre, que ele
seja tão expressivo, que ele ajude ao que seja mais instintivo, mais intuição, o mais
inconsciente do homem, o mais sonho, o mais delírio. E isso deve vir à tona através do corpo,
não através desta cuca pesada que a gente tem. (Sérgio Britto in programa de O Jardim das
cerejeiras).

1.1.6.2 Verticalidade e horizontalidade

Outro exemplo, estabelecendo relações entre os eixos vertical e horizontal, pode ser
apontado no espetáculo Anton e Olga (Anexo B). Há anos venho percebendo a importância
desses eixos em vários momentos de minha vida profissional como ator. Nesse trabalho, pude
experimentar relações entre essas linhas, que determinaram modos particulares de exploração
do espaço, movimentação e atenção. O espetáculo mostrava os últimos anos do
relacionamento do escritor russo Anton Tchécov e sua esposa, a atriz Olga Knipper. Eles se
conheceram em 1898, casaram-se 1901 e viveram juntos até 1904, ano em que Tchécov morre
tuberculoso, em Badenweiller, na Alemanha. Durante esse curto período de vida em comum,
Anton e Olga estiveram muito pouco tempo juntos. A doença de Tchécov o impedia de viver

25
A grafia mais usual é Tchékhov. Também é aceitável a forma aportuguesada Tchécov.
31

no frio de Moscou, junto com sua esposa. Ele era obrigado a viver em Yalta, no sul da Rússia,
enquanto Olga fazia uma gloriosa carreira de atriz no Teatro de Arte de Moscou.

O que ficava evidente no espetáculo eram dois movimentos opostos. Enquanto


Tchécov ficava cada vez mais fraco por conta da doença, Olga enchia-se de vigor e tornava-se
uma atriz de prestígio (fig.6). O desafio para os atores era interagir, sem se deixar “arrastar”
pela energia do colega em cena. Era preciso estar disponível para a relação (eixo horizontal),
sem perder a consciência de si e a função a ser desempenhada no espetáculo (eixo vertical).

(Figura 6) Marina Henriques e Paulo Trajano em Anton e Olga. (foto: Daniel Belquer).

1.2 O pensamento complexo de Edgar Morin

O pensamento complexo busca integrar saberes e não apartá-los, ou fragmentá-los.


Este procedimento pode ajudar um Preparador Corporal, que deve lidar com diferenças
humanas, legitimando subjetividades.

O trabalho de Angel Vianna estabelece pontos de contato com o pensamento


complexo praticado por Morin. A dança, o teatro, a educação, assim como variadas terapias,
têm se beneficiado da Conscientização do Movimento, trabalho transdisciplinar, que procura
legitimar o homem em todas as suas instâncias. Nessa prática, da mesma forma que na Teoria
32

da Complexidade de Morin26, tempo e espaço não são entidades distintas, mas imbricadas,
constituindo a materialidade de que somos feitos.

O processo de organização corporal, na vida e no palco, inclui ordem e desordem. O


corpo do ator é um sistema complexo que conquista a plenitude de sua existência quando se
torna obra.

As palavras de Michel Foucault relativas à autoralidade na produção literária apontam


um processo análogo experimentado pelo ator-autor na composição da personagem, ao buscar
coerência entre as partes que constituem seu trabalho.

O autor é ainda aquilo que permite ultrapassar as contradições que podem manifestar-se numa
série de textos: deve haver – a um certo nível do seu pensamento e do seu desejo, da sua
consciência ou do seu inconsciente – um ponto a partir do qual as contradições se resolvem, os
elementos incompatíveis encaixam finalmente uns nos outros ou se organizam em torno de
uma contradição fundamental originária. (FOULCAULT, 1992: 53).

O corpo do ator possui materialidade singular, dotada de camadas múltiplas, onde


tempo e espaço são entidades complementares e indissociáveis.

Do vasto legado teórico proposto por Morin, três princípios serão importantes para
orientar práticas e reflexões propostas neste trabalho: Princípio Dialógico, Princípio da
Recursividade Organizacional e Princípio Hologramático. Eles fundamentam o pensamento
complexo e apresentam uma visão dinâmica da realidade, tornando possível considerá-la em
vários níveis, de modo a reconhecer a regularidade de certos fenômenos, e a não linearidade
de outros.

26
A Teoria da Complexidade é um sistema de ideias que vem sendo desenvolvido desde 1950, e foi inicialmente
elaborada por matemáticos, sendo posteriormente absorvida por variados campos do conhecimento. O biólogo
Ludwig Von Bertalanffy (1901-1972) é considerado um dos precursores do pensamento complexo. Austríaco,
foi criador da Teoria Geral dos Sistemas. Os trabalhos iniciais de Bertalanffy, que datam da década de 20 do
século passado, procuraram estabelecer um diálogo entre a biologia e a matemática. Seus estudos apresentavam
uma abordagem orgânica da biologia, uma noção de organismo onde o todo é maior que as partes. Por falta de
entendimento, muitos cientistas na época não aceitaram suas ideias e as deixaram de lado. Mas o pensamento
complexo, já presente nestes trabalhos, é retomado, na segunda metade do sec. XX, por alguns cientistas, dentre
eles o médico, biólogo e filósofo francês Henri Atlan, que estudando a auto-organização dos sistemas vivos,
afirmou que esses processos ultrapassavam a compreensão racional e a lógica dos métodos científicos.
Complexo é aquilo que é tecido junto. Na Teoria da Complexidade não existe um campo do pensamento e outro
da ação. Através de nossas ações somos capazes de desenvolver nossos esquemas de pensamento e vice-versa,
estabelecendo um ciclo recursivo constante. A Complexidade é um modo específico de o homem olhar para o
mundo, percebendo nele uma infinidade de relações, onde os opostos coexistem, fazendo a vida avançar.
33

1.2.1 Princípio Dialógico

O Princípio Dialógico propõe a aceitação de ordem e desordem para a compreensão


dos sistemas vivos e fenômenos não lineares. Isso significa que não é possível excluir a
desordem do processo de organização desses sistemas. A vida é constituída de agenciamentos,
trocas e adaptações. Sem capacidade de adaptação não existe vida. O Princípio Dialógico
estabelece importante diferença entre ordem e organização que, segundo Morin, são termos
antagônicos e complementares. Essa diferença é especialmente significativa nos processos de
criação nas artes.

Organizar, segundo o Princípio Dialógico, não é sinônimo de ordenar.

Isso quer dizer que precisamos conceber nosso universo a partir de uma dialógica entre esses
termos, cada um deles chamando o outro, cada um precisando do outro para se constituir, cada
um inseparável do outro, cada um complementar do outro, sendo antagônico ao outro.
(MORIN, 2008: 204).

Desse modo não é possível excluir, dos processos de organização da vida, desvios e
perturbações.

Na Preparação Corporal é prudente não confundir ordem e organização. Muitas vezes,


a tentativa de ordenar (arrumar) uma cena pode implicar em uma redução significativa do
potencial criativo presente nos sistemas complexos. Um Preparador Corporal deve estar
consciente de que fenômenos complexos, entre eles a criação de um espetáculo, incluem
momentos de desordem, pois os impulsos criativos ainda não encontraram a justa expressão
na cena. Isto fica bastante claro ao longo do processo de ensaios, enquanto o espetáculo vai
tomando forma. É comum utilizarmos no teatro o adjetivo “sujo” para designar ações mal
acabadas ou realizadas sem o justo comprometimento. É possível também considerar “sujas”,
cenas confusas, com excesso de movimentos que não contribuem para a exposição de
conflitos fundamentais. Mas, mesmo que deslocamentos e gestos possam parecer excessivos
durante os ensaios de uma montagem, eles devem ser considerados com atenção. O excesso
de movimentos desordenados mostra-se análogo ao trabalho mental experimentado pela
equipe, enquanto tenta compreender o espetáculo que está fazendo. Através de ações
aparentemente caóticas, inúmeras questões emergem, apontando possibilidades de
investigação.
34

Lembro-me que durante os ensaios do espetáculo As três irmãs, de Tchécov, em 1998,


com direção de Enrique Diaz (Anexo B), onde atuei no papel de Solioni, experimentamos um
processo de montagem, onde a concepção espacial do espetáculo, assim como o trabalho
corporal dos atores, foram sendo afinados à medida que a compreensão do grupo sobre o
universo da peça aumentava. Tivemos a Preparação Corporal de Joice Niskier27, que
trabalhou próxima à direção e, muitas vezes, foi responsável pela criação de movimentos,
fazendo também ajustes na gestualidade dos atores.

1.2.2 Princípio da Recursividade Organizacional

O Princípio da Recursividade Organizacional está baseado na ideia da realidade


sistêmica. A Recursividade é uma situação de interação entre sistemas. O processo recursivo
se dá quando um sistema incide sobre um segundo, modificando alguma de suas
características/qualidades/propriedades. Este segundo sistema, uma vez modificado, incide
sobre o primeiro, modificando-o também. Uma vez transformado, o primeiro sistema volta a
incidir sobre o segundo, estabelecendo, desse modo um ciclo recursivo.

Na Preparação Corporal, o Princípio Recursivo pode ser percebido constantemente.


Muitas vezes, o diretor pede que o Preparador resolva algum problema de ordem técnica, na
montagem de uma cena. O problema pode ser: uma marcação, uma sequência coreográfica
(de um ator ou grupo de atores), manipulação de objetos, deslocamentos e outros. Boas
soluções podem emergir rapidamente num processo de criação, mas na maior parte das vezes,
são conquistadas por meio de trabalho disciplinado. Esse processo de conquistas é constituído
por desvios, avanços, recuos, acasos e perturbações. Assim, o Preparador Corporal, muitas
vezes não consegue resolver problemas da cena nas primeiras investidas. Mas, quando existe
integração entre Preparação Corporal e direção, até mesmo uma proposta considerada
equivocada pode ter sua função.

Temos, primeiro, de saber que o erro nas comunicações humanas é uma fonte permanente de
incompreensão. O erro é um problema central e permanente na compreensão de uma fala, de
uma mensagem, de uma ideia, de uma pessoa. O erro e o conhecimento têm a mesma fonte.
Todo conhecimento é interpretação (tradução, reconstrução). Daí o risco de erro em qualquer

27
Atriz e Preparadora Corporal nascida no Rio de Janeiro. Entre os últimos trabalhos realizados como
Preparadora estão: As regras da arte de bem viver na vida moderna, de Jean-Luc Lagarce, direção Miguel
Vellinho (2011), e Aquela outra, de Lícia Manzo, direção Clarice Niskier (2011).
35

percepção, opinião, concepção, teoria, ideologia, ou seja, risco de incompreensão. (MORIN,


2007: 117/118).

O erro é legítimo e necessário para o processo de criação. Um diretor, mesmo achando


que uma proposta feita pelo Preparador Corporal não corresponde exatamente às suas
expectativas, pode ser modificado por algum elemento da ideia sugerida e assim elaborar
novas perspectivas para o espetáculo. Uma vez transformado, o diretor pode elaborar outras
ideias sobre o trabalho, e novas demandas em relação à Preparação Corporal, que também
será modificada. Nesses casos, deixando de lado a expectativa por resultados, o processo
criativo torna-se mais coeso, estabelecendo-se interações recursivas que envolvem toda a
equipe.

1.2.2.1 Anton e Olga: um exemplo de recursividade no teatro

Anton e Olga, espetáculo citado anteriormente (p. 30), oferece um exemplo de


recursividade no teatro que vale citar, embora não diretamente conectado à Preparação
Corporal. O texto do espetáculo foi elaborado pelo diretor David Herman 28, a partir das cartas
trocadas entre Tchécov e sua esposa Olga Knipper. Quando iniciamos os ensaios, o texto
teatral não existia. A partir de fragmentos extraídos da correspondência do casal e de algumas
cenas de peças que foram escritas pelo autor russo (especialmente Tio Vânia e As três irmãs),
começamos a improvisar. Para iniciarmos a construção do espetáculo, Herman baseou-se
numa cronologia que ordenava os principais temas e acontecimentos da breve vida do casal: o
momento em que se conheceram, a amizade que se desenvolveu entre eles, o momento em
que se tornam amantes, o casamento, a vida conjugal vivida separadamente, o agravamento da
tuberculose de Tchécov e sua morte. Durante os ensaios, o diretor trazia um volume de texto
superior àquele que era aproveitado na construção efetiva das cenas do espetáculo. Herman
dialogava com os atores a fim de saber exatamente quais acontecimentos, descritos na
correspondência trocada pelo casal, poderiam constituir material teatralmente potente e
expressivo. Os fragmentos de texto interagiam com o imaginário e a sensibilidade dos atores,
28
Diretor e ator inglês, estudou em Nova York nos anos 70 sob a orientação de Sonia Moore. A partir de 1977,
trabalhou como segundo diretor artístico do American Stanislavski Theatre, teatro de repertório dirigido por
Sonia Moore. Como professor lecionou no The New School for Social Research, New York University School of
Education, The Sonia Moore Studio, Adelph University. Em 1979, fundou em Nova York sua própria escola,
ENACT: School of the Theatre, que dirigiu até 1985. Em 1987, à convite de Yan Michalski, passou a fazer parte
do corpo docente da CAL, posição que ocupa até hoje. No Brasil ministrou vários cursos sobre o Método das
Ações Físicas de Stanislavski, para atores e diretores.
36

determinando, junto com a direção, que trechos deveriam ser mantidos no espetáculo. A
composição textual de Anton e Olga deu-se de forma imbricada ao trabalho dos atores, que
também passaram a influir sobre as escolhas do diretor-autor. O processo de ensaios, baseado
nesse jogo interativo entre direção e atores, foi determinante na elaboração do texto. Quando a
direção percebia que um dado acontecimento era capaz de estimular os atores, isso passava a
constituir uma orientação para suas escolhas. Neste exemplo é possível constatar que a
elaboração do texto, do trabalho dos atores e a construção do espetáculo aconteceram de
modo extremamente integrado. Herman afirma que, não sendo escritor, não saberia chegar ao
texto que escreveu dissociando sua escrita do trabalho que era feito nos ensaios, através de
improvisos e discussões com o elenco.

1.2.3 Princípio Hologramático

O Princípio Hologramático ensina que a totalidade de um sistema está contida em suas


partes, e que cada uma delas contém o todo. “O todo é algo diferente da soma das partes,
porque a soma é um procedimento sem significado, enquanto a relação todo-parte carrega
significado” (SALLES, 2009: 115).

Ariane Mnouchkine, diretora do “Théâtre du Soleil”, em entrevista concedida a Josette


Féral (2010: 92), afirma que cada personagem de um espetáculo contém todas as outras.
Durante parte dos ensaios de sua companhia, os atores podem experimentar todas as
personagens. Essa dinâmica não funciona apenas como um período de testes, quando os atores
serão escalados para seus papéis. É um momento importante e constitui uma possibilidade de
integração para a companhia em relação ao novo trabalho. Na dinâmica proposta por
Mnouchkine, os atores têm oportunidade de conhecer o universo do espetáculo através de
improvisos, apresentando também propostas de figurinos e maquiagem a cada ensaio. As
descobertas de um são compartilhadas por todo o elenco. Muitas vezes, um ator em
dificuldade trabalha com outro mais experiente a seu lado, e tenta descobrir seus modos de
atuação. Mergulhados num processo interativo, os atores constroem, coletivamente, a língua
que será falada por todos, no futuro espetáculo. Esse procedimento da diretora francesa
promove integração entre seus atores, dinamizando o processo coletivo. Essa metodologia
desperta a responsabilidade de todos para o trabalho. A equipe pode observar, durante os
37

ensaios, dois ou três atores fazendo um mesmo papel, e aprender muito com isso. Este
procedimento, hoje, pode ser melhor compreendido por estudos no campo das ciências
cognitivas, que comprovam que neurônios-espelho29 disparam em resposta a algo observado.
“A descoberta desse mecanismo, feita há cerca de uma década, sugere que nós também
fazemos mentalmente tudo que assistimos alguém fazer” (DOBBS, 2006: 47).

Em meu treinamento na Escola de Mímica Corporal Dramática algo semelhante


acontecia, quando eu e meus colegas descobríamos, em nossas aulas, as possibilidades de um
improviso. Cada tema proposto pelos professores abria um novo território de investigação.
Improvisávamos sobre vários temas: hesitação, relação opressor X oprimido, caminhos com
obstáculos, duos amorosos, entre muitos. A conquista de um improviso era um procedimento
totalmente vinculado ao coletivo. Todos os participantes do grupo contribuíam para que a
compreensão do trabalho pudesse ser expandida. A cada aula, nossos professores nos
estimulavam a retomar o improviso do ponto onde o grupo o tinha deixado, em termos de
compreensão e realização. Essa metodologia apresenta muitas afinidades com o trabalho de
Mnouchkine, sendo também orientada pelo Princípio Hologramático. Depois de um mês
improvisando sobre um mesmo tema, sentia que a compreensão de todo o grupo havia sido
expandida, e que todas as conquistas eram fruto do trabalho de muitos.

No capítulo dois, abordarei alguns trabalhos onde atuei como Preparador Corporal em
contextos escolares. Muito do Princípio Hologramático pôde ser observado nessas montagens,
pois alunos-atores revezavam-se num mesmo papel, e muito das conquistas de um servia
como material de trabalho para outros, mesmo que fosse para indicar que o caminho a ser
seguido deveria ser outro.

29
“Os neurônios-espelho foram encontrados nas áreas do córtex pré-motor e parietal inferior – associadas a
movimento e percepção – bem como no lobo parietal posterior, no sulco temporal superior e na ínsula, regiões
que correspondem a nossa capacidade de compreender o sentimento de outra pessoa, entender a intenção e usar a
linguagem” (DOBBS, 2006: 49).
38

1.2.4 O tetragrama de Morin: uma proposta de visualidade sobre a organização nos


sistemas vivos

Morin propõe um tetragrama que elege Ordem, Desordem, Interação e Organização


como instâncias determinantes para o entendimento dos sistemas vivos, segundo o
pensamento complexo.

(Figura 7) O tetragrama moriniano

O tetragrama de Edgar Morin aponta a multiplicidade de processos interativos


necessários àquilo que se poderia chamar de organização dos sistemas e fenômenos vivos.
Devido a seu extremo dinamismo, esse diagrama pode nos ajudar a pensar o corpo vivo e seus
processos de organização através do movimento.

(Figura 8) O tetragrama moriniano e seu dinamismo

1.2.5 Angel Vianna e a movimentação do ator: uma proposta de cruzamento da


Conscientização do Movimento com o tetragrama de Morin

A movimentação do ator é um sistema complexo, com subsistemas que, integrados,


constituem uma sintaxe dotada de contornos, qualidades e sentidos próprios. Uma partitura de
movimentos constitui-se como ação intencionada, quando possibilita variações tônicas no
corpo do ator, modifica relações com o espaço-tempo, altera e ao mesmo tempo é alterada
pela cena. Pensar os elementos que constituem esse sistema nos oferece modos para nos
aproximarmos e incidirmos sobre este fenômeno.
39

Ação, tônus e espaço-tempo constituem o corpo vivo, e na cena encontram-se


potencializados pela fisiologia do ator. Estes elementos fazem parte da movimentação de
qualquer corpo humano vivo e podem ser acessados através de trabalhos que dinamizam as
articulações, a pele e a visão.

Na Conscientização do Movimento, articulação, pele e visão não são apenas


referências anatômicas ou fisiológicas. Segundo o trabalho de Angel Vianna, afirmo que estes
elementos constituem experiências sensíveis que proporcionam múltiplos modos de
organização através do movimento, onde o corpo experimenta sucessivos processos de
construção e desconstrução. Estas referências são modos de conhecer e produzir movimentos.
No processo criativo do ator, também constituem possibilidades de organização corporal, por
sua capacidade de modificar tônus muscular e relações com o espaço-tempo, na constituição
da ação teatral.

Neste estudo, as referências escolhidas (articulação, pele e visão) não são,


absolutamente, formas de enquadramento para o movimento (na vida ou na cena), mas uma
forma de pensá-lo como um sistema vivo, complexo, aberto e sujeito a perturbações. Tentar
apreender e controlar processos, que se definem por alto grau de mobilidade e instabilidade,
estaria distante dos princípios apontados pela Conscientização do Movimento, todos
relacionados às inconstâncias e transitoriedades do corpo vivo.

(Figura 9) Cruzamento do tetragrama moriniano com alguns princípios da Conscientização do Movimento

Na medida em que estes três elementos, no âmbito desta pesquisa, serão abordados
como sistemas complexos (não apenas como referências anatomofisiológicas isoladas)
passarei a denominá-los Funções. Cada uma delas constituindo-se como um conjunto de
propriedades, com qualidades e potencialidades próprias.
40

1.2.5.1 Função articulação

(Figura 10) Função articulação

Na Conscientização do Movimento, o trabalho sobre as articulações assume lugar de


destaque. Somos constituídos por numerosas articulações que funcionam de modo integrado.
Da mesma forma que os músculos revelam muito sobre o caráter de uma pessoa, as
articulações também o fazem. Sem esse conjunto de dobras, não seria possível
experimentarmos a gama de movimentos de que somos capazes.

As articulações estão diretamente ligadas às funções proprioceptivas. “Lembremos


quais receptores nos informam sobre as posições relativas dos diversos segmentos do corpo:
são essencialmente os fuso-neuromusculares, os receptores tendinosos e os receptores
30
articulares” (DROPSY, 1973: 46, tradução livre do autor) . Se tenho a capacidade de
perceber os movimentos que faço e as diferentes formas que assumo, isto se deve em grande
parte aos receptores articulares. Os receptores articulares “(...) ajustam a angulação entre as
articulações, e velocidade na mudança de angulação” (BERTHOZ, 1994: 17, tradução livre do
autor) 31.

Quando analisamos o David de


Michelangelo, percebemos a força de um corpo
articulado. Essa escultura mostra um homem
parado, mas na tensão de seus músculos, nas veias
aparentes, na abertura atenta do corpo para o
espaço, percebe-se um enorme potencial para o
movimento, que está diretamente relacionado à
força e ao equilíbrio das articulações (fig. 11).
David é a representação de um corpo integrado,
resultado de múltiplas sinergias, ações integradas
de múltiplos sistemas. Na escultura de
Michelangelo percebe-se íntima relação entre (Figura 11) O David de Michelangelo
(foto internet: detailingworld.co.uk)
30
Rappelons quels récepteurs sensoriels nous renseignent sur les positions relatives des divers segments du
corps: ce sont essentiellement les fuseaux neuro-musculaire, les récepteurs tendineux et les récepteurs
articulaires.
31
(…) en mesurent l’angle que font les articulations les une avec les autres, et la vitesse de changement
d’angulation.
41

sistema muscular e sistema ósseo. As articulações apresentam-se coordenadas à musculatura,


o que impregna a escultura de grande dinamismo.

A relação com o eixo vertical também se faz marcante, mas não de forma rígida, uma
vez que podemos perceber alguma sinuosidade no tronco. A ondulação do tronco revela,
mesmo na imobilidade, que a força que emana da escultura está vinculada ao seu potencial
articular. A linha vertical, bastante evidente na obra, não desconsidera o diálogo com a linha
curva, e isso amplia sua força.

Este retorno do tronco ao alinhamento mecânico justo devolve ao corpo sua eficácia
apropriada. Esse alinhamento é um equilíbrio cuja coordenação demanda o mínimo de esforço
e garante o máximo de estabilidade. (...) A importância e o valor dessa coordenação foi
conhecida em todas as épocas e as culturas mais diversas nos deixaram testemunho em suas
obras de arte. A força e a serenidade que exprime esse eixo justo foram aproveitadas pelos
artistas em suas representações de heróis e Deuses: Zeus, Buda, os Cristos gloriosos das
catedrais, nos dão a mesma imagem de força sem tensão e estabilidade luminosa, que existe
pulsante no equilíbrio do corpo humano. (DROPSY, 1973: 59, tradução livre do autor) 32.

O detalhe do punho direito (fig. 12), segurando a pedra que vai se lançada, exibe não
só funcionalidade articular, assim como grande força expressiva. O punho articulado
evidencia cálculos e estados emocionais do pequeno David, prestes a enfrentar o gigante.

(Figura 12) Detalhe David: mão e punho. (foto internet: all-art.org).

32
Ce retour de tout le tronc à l’alignement mécanique correct redone au corps son efficacité optimal. Cet
alignement est un équilibre don’t la coordination requiert le minimum d’effort est assure le maximum de
stabilité. (…) L’importance et la valeur de cette coordination ont été connues à toutes les époques et les cultures
les diverses nous en laissé le témoignage dans leurs oeuvres d’art. La puissance et la sérénité qu’exprime cet
axe juste ont été utilisée par les artiste dans leurs représentations des héros et des Dieux: Zeus, Bouddha, les
Christ en gloire des cathedrals, nous donnent la meme image de force sans tension et stabilité rayonnante, qui
existe en puissance dans l’équilibre du corps humain.
42

O corpo inteiro está no punho, e esta articulação evidencia a mesma prontidão presente
na totalidade da escultura. De modo análogo, quando o ator entra em movimento, ele está
sendo convidado a perceber a totalidade de seu potencial humano.

Articular é um verbo importante para o ator, que coordena e organiza suas ações por
meio de um diálogo equilibrado com o espaço. Ao mesmo tempo em que aprende a usar
melhor suas “dobradiças”, conquista maior habilidade para projetar no espaço suas intenções.
Somente quando o ator libera suas articulações, permitindo que o movimento aconteça
plenamente no corpo, ele consegue estabelecer pontes entre seu imaginário e a cena, através
de movimentos precisos e bem articulados.

1.2.5.2 Função pele

(Figura 13) Função pele


Conceber a pele como Função é entendê-la como um conjunto de propriedades do sub-
sistema pele. Através do movimento, seja ele micro ou macro, o tecido cutâneo pode
contribuir para a organização dinâmica do corpo. Na Conscientização do Movimento, o
trabalho de sensibilização da pele assume um papel importante, revelando qualidades que
ultrapassam as funções de proteção. Proteger o interior do corpo, garantindo a integridade de
suas estruturas e o bom funcionamento das mesmas, é certamente uma qualidade nobre da
pele. Mas esse órgão possui características peculiares, uma vez que estabelece íntima relação
com o sistema nervoso central. A procedência embrionária da pele faz com que esse tecido
possua qualidades perceptivas singulares.

A pele, uma fronteira entre o interior e o espaço externo, provém do mesmo folheto
embrionário que constitui o sistema nervoso central. Estudiosos do corpo afirmam que nossa
pele é nosso cérebro exteriorizado. ‘Além de ser o maior órgão do corpo, os vários elementos
que a compõe têm extensa representação a nível cerebral’. (MONTAGU, 1988: 31).

Nos dias que correm, os hábitos cotidianos anestesiam nossa relação com o corpo, e a
pele não fica fora desse processo de alheamento. Esquecemos o quanto o tecido cutâneo é
determinante para nossa sobrevivência, e o quanto está impregnado de afetos. Tocar, mais do
que apenas um gesto funcional, anuncia necessidades profundas no ser humano. A expressão
“tocar o coração de uma pessoa”, revela o quanto sabemos, mesmo que de forma intuitiva,
sobre as íntimas relações entre toque e sentimento.
43

Através de exercícios de auto-contato e pesquisa de movimento, é possível aguçar a


sensibilidade táctil, discriminando territórios do tecido cutâneo, acedendo sensibilidades
múltiplas ao longo de todo o revestimento do corpo. Por meio da pele é possível perceber
inúmeras variações tônicas, uma vez que esse órgão está ligado ao sistema fascial33, que
envolve toda a musculatura.

Muitos trabalhos podem ser desenvolvidos por um Preparador Corporal com o


objetivo de sensibilizar a pele de seus atores. Ansiedade, falta de percepção do espaço, e
questões de cunho relacional podem ser abordadas pela sensibilização desse sistema. Um
exemplo pode ser observado quando atores devem expressar intimidade ao interagir com seus
parceiros de cena, mas são traídos por gestos duros, que não transmitem familiaridade ou
conforto. Como interage fisicamente um casal que vive junto há mais de dez anos, durante
uma crise conjugal? De que maneira esse comportamento difere daquele de um casal jovem,
recém-conhecido, pleno de entusiasmo e desejo? Essas personagens experimentam
circunstâncias radicalmente diferentes, exigindo um tônus de atuação particular para cada
situação. O trabalho com a pele pode ajudar ambos os casais a encontrar o bom tônus de suas
ações.

1.2.5.3 Função visão

(Figura 14) Função visão

Os cinco sentidos humanos trabalham de forma integrada e são importantes para que o
corpo possa se organizar em suas relações com o ambiente. A visão está intimamente ligada
ao sistema neuromotor, buscando movimentos que possam equilibrar e compensar aqueles
que acontecem na totalidade do corpo.

Para reconstituir exatamente a orientação do meu corpo no espaço, para saber se me desloco
em linha reta ou se inclino, é preciso que exista cooperação entre sistema visual e sistema
vestibular. (BERTHOZ, 1994: 18, tradução livre do autor).34

33
“Histologicamente falando a fáscia é um tecido conjuntivo fibroso que é o tecido mais abundante do corpo.
Ele une, sustenta e reforça outros tecidos do corpo, protege e isola órgãos internos e compartimentaliza todas as
estruturas do corpo tais como os músculos estriados esqueléticos” (Apostila do primeiro ciclo do curso de
Fasciaterapia e Somato-psicopedagogia, Rio de Janeiro, 2006).
34
Donc, pour reconstituer exactement l’orientation de mon corps dans l’espace, pour savoir se je me déplace
linéairement ou si je m’incline, il faut qu’il y ait coopération entre système visuel et systeme vestibulaire.
44

Desse modo, Alain Berthoz explica que as informações, que nos chegam pela visão,
seguem não apenas para a parte do córtex cerebral que nos assegura a percepção das formas,
mas vão também se conectar com o sistema vestibular, estrutura do ouvido interno que está
relacionada com o equilíbrio de todo o corpo.

Para percepção da cor de um objeto, por exemplo, a visão é a única aferência necessária, mas
para percepção estática e de movimento participam, além do sistema vestibular, os sistemas
visual e proprioceptivo, o que torna a função a princípio multidimensional. (PEREIRA, s/d:
10, o grifo é meu).

Esta relação imbricada entre visão, propriocepção e movimento evidencia-se


constantemente na Conscientização do Movimento. O equilíbrio tônico global de um corpo
está diretamente relacionado à orientação do olhar, que, segundo Berthoz, indica a direção do
espaço em que uma pessoa olha ativamente (1994).

Angel Vianna propõe um exercício de sensibilização, em que devemos olhar objetos


que estão no interior de uma sala, nos limites desse espaço. Na sequência, sugere que
procuremos olhar além das paredes dessa sala, como se fôssemos dotados de uma espécie de
visão de raio X. Rapidamente nota-se que toda a organização tônica do corpo é alterada, e que
isso está diretamente relacionado com a orientação do olhar. Quando voltamos a mirar objetos
no interior da sala, percebemos nova variação de tônus. Esse é um trabalho simples, mas
bastante educativo. Ele evidencia o quanto o foco do olhar é capaz de mobilizar a atividade
muscular, habilidade importante para um ator. Olhar algo próximo, olhar algo longe, são
atitudes que envolvem o corpo inteiro, modificam-no, e demandam diferentes qualidades de
atenção.

O olhar pode ser trabalhado como uma liderança. Essa dinâmica pode ser
desenvolvida em vários momentos de uma Preparação Corporal. Atores costumam olhar
demasiadamente para dentro, valorizando por demais seus próprios sentimentos. Quando um
ator aprende olhar o espaço, isso revela maturidade no exercício de suas funções. Muitas
vezes, o ator valoriza mais sua própria imaginação, limitando suas capacidades sensíveis,
reduzindo consideravelmente as trocas que estabelece em cena. O uso da visão constitui para
um ator novas relações com o espaço-tempo. Imediatamente uma sensação de ocupação do
espaço acontece, gestos e movimentos equilibram-se, e a movimentação excessiva é deixada
de lado.
45

Quando usamos a visão, respiramos melhor, utilizamos as articulações com maior


desenvoltura, e aguçamos o sentido háptico35, um toque sensorial, uma competência para
ocupar o espaço sensivelmente. A visão está relacionada ao equilíbrio, e ao mobilizá-la alguns
atores podem se sentir inseguros. Ver em cena é, de fato, colocar-se num lugar desconhecido
que constitui variadas mudanças de ponto de vista. Olhar de outra maneira implica alterar toda
a organização de um corpo, mesmo que ele esteja parado.

Como a relação entre visão e espaço é direta, um Preparador Corporal poderá


dinamizar a Função visão alterando a espacialidade da cena. Aproximações e afastamentos
podem ser testados entre os atores, assim como mudanças de nível. Cenas que estavam
acontecendo no nível alto podem ser feitas no chão, ou mesmo com um ator no alto e outro no
nível baixo. Outras, onde os atores estavam se olhando, podem ser feitas sem o contato visual;
se havia movimento, podem experimentar a supressão de deslocamentos. Essas sugestões
devem ser encaradas como estratégias, que estimulam novos modos de organização para o
elenco.

1.3 Um diálogo possível

Este capítulo propôs uma aproximação entre alguns elementos dos trabalhos de Angel
Vianna e Edgar Morin. Fazer dialogar as ideias e práticas desses mestres não tem como
objetivo enquadrar fenômenos não lineares que se definem eminentemente por suas
qualidades dinâmicas e instáveis, mas desvelar características e afinidades que, imersas em
um ciclo recursivo, podem modificar-se e potencializar os sistemas de origem.

Ao buscar o tetragrama moriniano como visualização de uma convergência possível


entre os trabalhos de Vianna e Morin, procuro ressaltar aspectos da complexidade humana,
relativos à sua constituição corpórea (materialidade) e suas dinâmicas de movimento. Essa
escolha tem como objetivo valorizar o corpo vivo em movimento, sistema complexo,
determinado por múltiplos fatores físicos, biológicos e psíquicos. O interesse desta pesquisa

35
“O sistema háptico vai além do tato e é um dos mais complexos meios de comunicação entre o mundo interno
e externo do homem. O sistema háptico está relacionado com a percepção de textura, movimento e forças através
da coordenação de esforços dos coordenadores dos receptores do tato, visão, audição e propriocepção” (Sentido
Háptico e a Pesquisa e Desenvolvimento de Soluções, conversando-com-a-lilian.blogspot.com/.../sentido-
haptico-, acesso 22/04/2011).
46

concentra-se no estudo do corpo vivo, e suas possibilidades de movimento, inserido no espaço


da cena segundo uma orientação estética específica.

O trabalho de Lideranças, citado anteriormente, é apenas um dos exemplos que mostra


o quanto a Conscientização do Movimento, de Vianna, e a Teoria da Complexidade de Morin
possuem múltiplos pontos de convergência. A partir do momento em que se escolhe uma
parte do corpo como liderança, ela se mantém ao mesmo tempo discriminada e integrada à
totalidade do corpo. Um ciclo recursivo acontece no trabalho, pois a liderança modifica o todo
do corpo que, modificado por ela, volta a modificá-la. Estabelece-se um trânsito constante de
informações entre partes e totalidade do corpo, que experimenta uma sucessão de
desequilíbrios, alternando ordem e desordem.

O que procuro é, por meio de relações possíveis entre estes sistemas de práticas e
pensamentos, aperfeiçoar metodologias que possam enriquecer e potencializar os processos
criativos do ator, através da Preparação Corporal.
47

CAPÍTULO 2 - A PREPARAÇÃO CORPORAL E O PREPARADOR DE ELENCOS

2.1. A Preparação Corporal: campo de conhecimento

No segundo capítulo desta dissertação, irei considerar aspectos que definem a


Preparação Corporal de atores como campo de conhecimento transdisciplinar. Minha escrita
não abordará modalidades de Preparação Corporal que acontecem apenas como
condicionamento físico. O objetivo de minha pesquisa é considerar o corpo do ator como um
sistema dotado de qualidades estéticas, inserido em um contexto artístico específico. A
atividade que aqui problematizo está diretamente vinculada ao pensamento complexo,
apresentado no primeiro capítulo, que preconiza a integração dos saberes.

Também não serão abordados trabalhos de Preparação Corporal baseados em técnicas


corporais específicas que não estejam de fato imbricadas no processo de criação de um
espetáculo. Essa abordagem será evitada, pois na maior parte desses casos, esta atividade é
tratada como procedimento isolado. Meu objeto de estudo pode eventualmente ser
considerado uma atividade acessória, mas não como um procedimento isolado, justificando
sua existência na medida do diálogo que estabelece com todas as outras instâncias
constitutivas do fazer teatral, transformando e sendo transformada por elas. Muitos
treinamentos e atividades físicas podem ser combinados durante um processo de ensaios, sem
estarem integrados ao pensamento global da encenação, pois o fato de um espaço
multidisciplinar ser criado não garante que aí surja um campo de ação transdisciplinar.
Técnicas como o Tai chi, a Capoeira, a Dança de Salão, entre muitas, segundo a proposta
desta pesquisa só seriam consideradas uma Preparação Corporal no momento em que,
integradas a um processo de montagem, contribuem para a criação da linguagem da cena.

A Preparação Corporal está diretamente vinculada ao período de ensaios de um


espetáculo, momento em que se observa um paroxismo dos processos criativos. Este é um
momento de incertezas, pois todas as concepções mentais da equipe de criação são colocadas
à prova. Nos ensaios um mundo novo deve nascer e o espetáculo ainda é apenas uma
virtualidade. Mas não existe nascimento sem crises e turbulências. Nesse período, diretor,
atores e equipe técnica ficam muitas vezes à deriva, experimentando vertigens, buscando
caminhos e objetivando a elaboração de uma linguagem cênica que seja condizente com seus
48

pensamentos e expectativas artísticas. Ensaios costumam ser desgastantes e mobilizam grande


quantidade de energia criadora.

Um Preparador Corporal deve ser capaz de despertar o apetite dos atores pelo
movimento, para que possam saborear suas ações. “Degustar” o movimento, nesse caso,
implica ter disponibilidade para conhecer e aprender com aquilo que se faz. Sentir o gosto do
movimento (sapore) e conhecê-lo (sapere), para um ator, são sinônimos.

Processos de criação, assim como seus resultados, não devem ser considerados,
rigidamente, como tarefas lineares. Para o ator, qualquer resultado será sempre um território
aberto a experimentações e perturbações. O importante, como sinaliza Jacques Lassalle 1, é
que o ator possa, cada vez que retoma seu trabalho, reencontrar com clareza as circunstâncias
que o constituem. “Refazer, nesse caso, é menos reproduzir a própria coisa do que as
condições de aparecimento da coisa. (...) não refazemos, colocamo-nos na situação do
refazer” (LASSALLE e RIVIÈRE, 2010: 65).

O diretor francês Eric Lacascade, que já encenou muitos textos de Tchécov, afirma
que quando preparava a montagem de As três irmãs, estabeleceu como objetivo criar um
espetáculo que tematizasse o ato de criação. Investigou, nesse projeto, como discriminar as
diferenças fundamentais entre ensaio e apresentação. Lacascade afirma:

Os ensaios exigem dos atores uma humildade que os mantém durante muito tempo diante deles
mesmos, de suas próprias forças, de suas incompletudes; diante de intensidades e dos limites
daquilo que é vivo. Nos ensaios avançamos no escuro. Eles são a clausura permanente, a
confusão entre o palco e a vida. Os ensaios são também o caminho para a loucura.
(LACASCADE in LUCET, 2003: 89, tradução livre do autor).2

A afirmação de Lacascade atesta o quanto atores costumam ficar vulneráveis, ao


criarem seus papéis. O trabalho de criação de um ator prossegue durante toda a temporada,
mas faz-se mais intenso durante os ensaios. Neste momento, atores costumam enfrentar seus
limites, inseguranças, e se deparam com o fantasma de não serem capazes de realizar seus
trabalhos. “Se o trabalho corporal pressupõe, no próprio treino, uma ligação direta com a área
interpretativa, essa ligação se adensa muitíssimo quando o preparo dos intérpretes liga-se a
uma montagem em especial” (AZEVEDO, 2002: 281). Um Preparador Corporal deve

1
Dramaturgo, ator e diretor francês, nascido na cidade de Clemont-Ferrand (1936). Professor da Universidade
Sorbonne Paris 3 (1969-1981), e no Conservatório Superior Nacional de Arte Dramática de Paris (1981-1983).
De 1983 a 1990, dirige o Teatro Nacional de Strasbourg, e de 1990 a 1993 é o administrador geral da Comédie-
Française. Em 2002, Lassalle voltou a atuar como diretor.
2
Les répétition exigent des acteurs une humilité qui les maintient longtemps face à eux-mêmes, à leurs forces, à
leurs incompletudes; face aux intensités et aux limites du vivant. Les répétition c’est le noir, l’enfermement
permanent, la confusion entre le plateau et la vie. Les repetition, c’est aussi la voie de la folie.
49

considerar a instabilidade característica do período de ensaios, uma vez que atores constituem
a matéria prima de seu trabalho.

É possível mesmo aceitar a Preparação Corporal como um treinamento, no sentido que


lhe é dado por Lacascade.

A outra função do condicionamento, o treinamento do ator, acontece durante os ensaios. É


também um treinamento físico dotado de muitas qualidades que encontraremos no espetáculo.
Primeiramente a concentração e a atenção de todos, e de todos com cada um, cada um
desenvolvendo sua própria linha, olhando e em conexão com os outros. Na sequência, os
exercícios individuais, desenvolvidos dia a dia, que se tornam mais precisos, mais
performáticos; cada ator desenvolvendo desse modo sua dança própria, descobrindo e
ultrapassando seus próprios limites. (LACASCADE in MÜLLER, 2000, 130/131, tradução
livre do autor).3

Lacascade deixa claro que, ao construir seus espetáculos, o trabalho corporal dos
atores acontece de modo imbricado ao desenvolvimento da encenação, um processo que
mistura aquecimento, treinamento e composição. Esse é um procedimento que considero
análogo à Preparação Corporal que preconizo, pois legitima o trabalho corporal de um elenco,
como atividade integrada ao processo criativo, ao mesmo tempo em que dotada de autonomia.
Um procedimento capaz de integrar o grupo de trabalho, contribuindo também para que cada
participante encontre caminhos singulares, pois enquanto experimenta a criação de um papel,
o ator elabora estratégias, compreendendo as solicitações da encenação. É esse processo que o
Preparador Corporal proporciona, aproveitando o que já está manifesto no ator.

O processo de ensaios de qualidade contém a virtualidade do olho do espectador,


fazendo deste um período especialmente intenso para o ator.

Mesmo que o público esteja ausente, mesmo se estamos improvisando num ateliê ou oficina, a
partir do momento que entramos em cena, não há mais tempo de se preparar ou de esperar
alguns segundos antes de começar a atuar. É preciso reencontrar o estado de urgência
conhecido pelo ator quando está representando. (MNOUCHKINE in MÜLLER, tradução
livre do autor, o grifo é meu).4

A Preparação Corporal, que acontece imbricada à criação de um espetáculo,


problematiza a existência das fronteiras que tentam separar aquecimento, treinamento e

3
L’autre volet du training, l’entraînement de l’acteur, s’opère au cours des répétition. Cést aussi un
entraînement physique qui possède plusieurs des qualités qu’on trouvera dans le spectacle. D’abord la
concentration et l’attention de tous, et de tous avec chacun, chacun développant sa propre ligne, en regard et en
connexion avec les autres. Ensuite, des structures individuelles d’exercice qui se developpent jour après jour, et
deviennent plus prècises, plus performantes; chaque acteur développant ainsi sa danse propre, decouvrant et
dépassant ses propres limites.
4
Même si le public est absent, même si l’on est en train d’improviser dans l’intimité d’un atelier ou d’un stage, à
partir du moment ou l’on a franchi les limites du plateau, il n’est temps de se préparer ou de prendre quelques
secondes avant de commencer à jouer. Il faut retrouver l’état d’urgence que connaît l’acteur lorsqu’il est en
représentation.
50

composição. Conforme o trabalho do Preparador avança durante os ensaios, mais esses


procedimentos apresentam-se como práticas complementares, imbricadas, nuances de uma
mesma atividade.

Durante os anos que venho trabalhando como Preparador Corporal e como ator,
constato que a montagem de um espetáculo possui demandas próprias, que precisam ser
entendidas pelos atores em suas particularidades. Mesmo quando tenho a oportunidade de
refazer um trabalho, preciso compreender sua singularidade mais uma vez, a partir do
momento em que me envolvo em uma remontagem. O projeto estético de um espetáculo é
uma prova para toda equipe de criação e um desafio para o elenco.

O trabalho de composição dos atores é dependente do contexto no qual está inserido.


Não existe maneira de validar a movimentação de um ator, isolando este sistema complexo do
ambiente que o envolve. Como Preparador Corporal, muitas vezes percebo que algo na
movimentação de um ator não “encaixa”, mas não é uma tarefa fácil discriminar por que isso
acontece. Como abordar essa questão? Existe falta ou excesso de movimentos? O andamento
das ações deve ser alterado? Haveria problema nas transições de um movimento a outro? O
problema estaria na forma, medida ou intensidade dos gestos? Um pouco de todos esses
elementos ao longo do espetáculo? Nenhuma destas perguntas poderá ser respondida, se
desconsiderarmos o contexto em que elas nascem e estão imersas. De acordo com esse
ambiente, muitas não irão fazer sentido, porque as questões pertinentes a um processo de
criação são também determinadas pelo contexto. Não faz sentido indagarmos sobre a vida
familiar de uma personagem de Beckett, quando aquilo que ele nos apresenta, em várias de
suas peças, são fragmentos de corpos, ritmos e intensidades, que deverão ser considerados
expressivamente segundo uma poética particular. Mas, independente de contexto, consciência
corporal sempre é fundamento para o ator, oferecendo princípios de organização para seu
trabalho, que engendram novos modos de percepção.

A partir de uma expansão perceptiva, o ator estabelece relações mais ricas com seu
aparato psicofísico e com seu imaginário. O pensamento complexo legitima a importância de
nosso imaginário como força indispensável ao desenvolvimento de nossas faculdades
humanas. O teatro, como arte, deve buscar apresentar o homem em todas as suas dimensões,
sem desconsiderar a imaginação, uma das motivações primordiais para a ação. “Fazer teatro é
construir uma vida. Observar tudo vivenciando o material humano que produzimos no contato
51

com os outros; eu invento uma biografia para mim escrevendo minha história em meio à tribo
do teatro”. (LACASCADE in PUCET, 2003: 24, tradução livre do autor).5

O trabalho de Lacascade, estimulando a busca de caminhos expressivos para o ator e a


cena, demonstra que a dança pode estabelecer rico diálogo com o teatro. “Eric Lacascade
fundou com Guy Alloucherie o Ballatum Théâtre. As produções desta companhia
impressionaram pela densidade do investimento físico dos atores” (MULLER, 2000: 129,
tradução livre do autor).6

(Figura 15) a) Christophe Grégoire. Foto: Sylvain Guichard.

b) Christophe Grégoire. Foto: Sylvain Guichard

Muitos Preparadores tiveram sólida formação em dança. Joana Ribeiro Tavares, no


livro Klauss Vianna, do Coreógrafo ao Diretor, baseada nas palavras de Jota D’Ângelo
(2006), aponta qualidades que poderíamos considerar um diferencial nas aulas de movimento
ministradas por Klauss Vianna, no que diz respeito ao trabalho do ator.

A ‘aula de movimento’ ministrada pelo coreógrafo ainda não se distinguia muito de uma aula
de dança moderna, com base na técnica do ballet clássico. Mas o diferencial para o corpo do
ator estava no enfoque sobre a ‘significação do gesto’. O movimento era trabalhado por meio
de exercícios para a flexibilidade, partindo dos apoios do corpo no chão, que alcançavam a
verticalidade pela variação dos ‘planos’ baixo, médio e alto”. (D’ÂNGELO apud TAVARES,
2010: 63).

5
Faire du théâtre, c’est se construire une vie. Observer tout en vivant le matériau humain que nous produison
au contact des autres, je m’invente une biographie en écrivant mon histoire au sein de la tribu du théâtre.
6
Eric Lacascade a fondé avec Guy Alloucherie le Ballatum Théâtre. Les productions de cette compagnie ont
frappé par la densité de l’investissemente physique des acteurs.
52

Klauss Vianna, depois da histórica montagem da Ópera dos três vinténs (Anexo B)
afirma: “A partir daí, eu comecei a sentir que o ator tinha que ter uma linguagem corporal
diferente para se exprimir em termo de dança e que ele não poderia dançar como um
bailarino, era outro material” (VIANNA in MANSINHO apud TAVARES, 2010: 77).

A inquietação expressiva frente à evidência física do ator, sua inteligência e


possibilidades, certamente podem ser alimentadas pela dança.

(...) As questões que a dança nos coloca enquanto espectadores, aquelas que nos perturbam e
que fazem a força dessa arte, são aquelas da inteligência do corpo, de sua independência, da
existência de um ‘pensamento do movimento’, que o Pensamento não domina, e que são
inseparáveis de nossas próprias pulsões sexuais frente aos corpos. Querer ‘esclarecer’ esse
mistério com a ajuda de uma grade (ou quadro) dramatúrgica, querer mascarar a evidência
física sob uma tinta intelectual, é de uma certa maneira, fazer um ato de censura. (PICKLES,
s/d: 8).

As formas cênicas denominadas Teatro Físico também podem estimular as práticas de


Preparação Corporal, pois, assim como a dança, problematizam os limites expressivos do ator.
As palavras de Lúcia Romano são esclarecedoras, quando afirma ser este uma forma de
expressão que supera inúmeras dualidades, entre elas, aquela entre mente e corpo. “Mais do
que isso, sua postura ideológica é de oposição a essa polarização, contrapondo à tese da
supremacia da mente sobre o corpo a defesa da potência e legitimidade do corpo, em todas as
suas formas de expressão” (ROMANO, 2005: 35). Aceitar a condição humana como
paradoxal, certamente enriquece os processos de criação artística, legitimando o imaginário
como força criadora e integrada à realidade.

Nossa mente/espírito secreta, sem parar, imaginário. A importância da fantasia e do imaginário


entre os seres humanos depende, em parte, da importância do mundo psíquico, relativamente
independente, onde fermentam necessidades, sonhos, desejos, ideias, imagens, fantasias: as
vias de entrada do sistema cerebral, que conectam o organismo e o mundo exterior, só
representam 2% do conjunto, enquanto que 98% dizem respeito ao funcionamento interior.
(MORIN, 2002: 131).

2.2 O Preparador Corporal

O Preparador Corporal é um catalisador do movimento. Ele tem a capacidade de


estimular a criação de gestos, posturas e deslocamentos, que serão organizados segundo um
projeto estético específico. É também capaz de detectar impropriedades rítmicas e resistências
corporais indevidas. Saber estimular a criação de movimentos é uma habilidade que o
Preparador desenvolve, coordenando suas propostas àquelas feitas pelo elenco e pela direção.
53

Interagindo de forma dinâmica com toda a equipe de trabalho, a Preparação Corporal pode
estabelecer ricas estratégias de intervenção, fazendo com que os atores percebam suas
operações e possam vivenciar o trabalho que estão construindo. Alguns exemplos de formas
de intervenção do Preparador Corporal serão apresentados no capítulo três desta pesquisa.

O trabalho sobre o próprio corpo constitui acervo fundamental para os profissionais da


Preparação Corporal. Através de técnicas e diversos treinamentos corporais, familiarizam-se
com algumas leis que organizam a motricidade humana, entendendo que movimento,
cognição e emoção são instâncias indissociadas. Auto-escuta é condição primordial para o
contato e a compreensão do outro.

Segundo Morin, a compreensão é um ato multidimensional, que envolve tanto


objetividade quanto subjetividade.

Alguns Preparadores começam seus trabalhos antes do período de ensaios, por meio
de encontros prévios com a direção. Através de diálogos com o diretor, podem perceber a
concepção geral que está sendo vislumbrada para o espetáculo. Ainda que no início de uma
produção o diretor não saiba exatamente os contornos estéticos de seu projeto, algumas pistas
podem ser apreendidas. Contudo, essas informações não devem ser consideradas verdades
absolutas e imutáveis, pois neste período inicial a intuição criativa da equipe ainda não foi
testada na prática. Mesmo que não seja possível apreender uma visão completa do projeto
estético, nos primeiros encontros com a direção o Preparador Corporal perceberá possíveis
espaços que poderão ser ocupados, e elaborar apontamentos para o futuro trabalho. É durante
o período de ensaios que o Preparador Corporal coloca em prática suas metas,
disponibilizando seu acervo técnico, sem medo de viver o momento presente, seguindo à
deriva com sua equipe. Qualquer concepção de encenação só será legítima se for capaz de
mostrar sua eficácia na cena.

2.2.1 Atividade-ponte

O Preparador Corporal articula múltiplos saberes e sua atividade pode ser qualificada
como complexa. A bailarina e diretora Lala Deheinzelin, no vídeo Movimento Expressivo:
Klauss Vianna, afirma que Vianna possuía uma personalidade “ponte”, por ter a habilidade de
54

fazer interagir inúmeros campos de conhecimento. Como profissional das artes cênicas,
segundo Deheinzelin, Klauss Vianna foi capaz de aproximar a dança e o teatro.

Ser ponte é uma qualidade importante para o Preparador Corporal, que deve mostrar-
se capaz de integrar variadas práticas e discursos. As pontes que constrói muitas vezes
assumem caráter de tradução, facilitando as trocas entre os membros da equipe. É bastante
comum que um diretor idealize o resultado final de uma cena, mas encontre dificuldade para
traduzir seus objetivos através de indicações capazes de estimular o imaginário de seus atores.

O Preparador Corporal questiona-se constantemente sobre os estímulos que seleciona


e os modos de aplicação destes meios, buscando maneiras de “transformar ideias intelectuais
em ideias poéticas” (BOGART, 2010: 2). A Preparação Corporal busca estabelecer relações
vivas e produtivas com elenco e direção, avaliando constantemente, objetiva e
subjetivamente, a funcionalidade de suas propostas e os limites de sua atuação.

2.2.2 Estratégias e habilidades

O pensamento complexo pode servir de inspiração para o Preparador Corporal, que


deve integrar variados conhecimentos, a fim de melhor exercer suas funções.

A Preparação Corporal é uma atividade que ajuda o ator na organização de seu


trabalho. O Preparador Corporal não deve sobrecarregar o elenco com informações que
podem se transformar em preocupação, durante os ensaios, ou apresentação de um espetáculo.
É conveniente que os estímulos sejam simples e concretos, a fim de serem transformados em
ação.

Um Preparador Corporal pode trabalhar junto a companhias de teatro estáveis, mas


também com elencos formados por atores que nunca estiveram juntos profissionalmente, e
precisam de um tempo para “quebrar o gelo”. A Preparação Corporal pode ser desenvolvida
de inúmeras maneiras, nos mais variados contextos. Sem um ambiente de confiança, onde o
elenco se sente seguro para ousar, expondo dúvidas e inseguranças, dificilmente um trabalho
de qualidade poderá emergir.
55

O resultado almejado num processo de Preparação Corporal é uma forma de


conhecimento, um sistema complexo, com muitos pontos análogos às composições
coreográficas em dança, como nos revela a definição do professor Jorge de Albuquerque
Vieira: “Coreografia é um sistema formado por um agregado de movimentos com qualidade
estética, relacionados temporalmente e que exprimem uma propriedade partilhada” 7. As
palavras de Vieira seriam também adequadas para descrever a composição-resultado de um
trabalho de Preparação Corporal, que constitui um conjunto de sinais dotado de coerência
estética: uma coreografia própria do ator. A composição do ator é um fenômeno que se dá
paralelamente a outro, o trabalho de compreensão-análise experimentado pelo elenco, direção
e Preparação Corporal.

A fim de melhor explicitar procedimentos de um Preparador Corporal, coordenados


com o pensamento complexo, utilizarei a noção de estratégia apresentada por Edgar Morin.
Segundo Morin, estratégias são processos dinâmicos, que envolvem adaptações constantes
entre seres humanos e seus ambientes. Esse modo de relação demanda uma disposição mental
específica, que aceita a vida como um fluxo de trocas constante. Segundo o pensamento
moriniano, esta ideia coloca-se em oposição à de projeto. Estratégia estaria vinculada a ideia
de racionalidade, e projeto à de racionalização8.

Desde os primeiros ensaios, a figura do Preparador Corporal pode ser de grande


importância para integrar os atores de um elenco, esteja ele trabalhando numa companhia de
teatro ou qualquer outro grupo.

Caso o Preparador esteja trabalhando em uma companhia, a Preparação Corporal pode


fazer do período inicial de ensaios um momento de descobertas, produzindo “estranhamentos”
em um coletivo familiar. As companhias de teatro apresentam muitas vantagens no que tange
à familiaridade de seus componentes, facilitando enormemente a comunicação. Mas a

7
Anotações do autor, feitas durante o curso de Pós-graduação Lato Sensu em Estudos Avançados em Dança
Contemporânea (UFBA/FAV). Rio de Janeiro, 2006.
8
Edgar Morin estabelece uma importante diferença entre racionalização e racionalidade. Racionalização é um
procedimento mental que tenta compreender e apreender o Universo de maneira totalizante. Uma lógica que nos
remete diretamente à visão mecanicista proposta pela Modernidade. Isto é, o mundo é uma máquina e podemos
entender o funcionamento de sua totalidade por meio de suas engrenagens. O acaso fica excluído da
racionalização, que explica a realidade a partir dos fenômenos que se encaixam na regularidade de suas leis. Em
oposição à racionalização, temos a racionalidade, que sugere outros modos de relação entre homem e mundo,
orientados por outros procedimentos mentais. A racionalidade é jogo, diálogo entre a mente humana e a
realidade, através de um fluxo constante de interações. Quando percebemos a realidade desta maneira dinâmica e
fluida, reconhecemos que o funcionamento da mesma extrapola os determinismos propostos pela ciência
tradicional. A visão mecanicista de mundo torna-se insuficiente para compreendermos a realidade e seus acasos.
56

proximidade também pode constituir um problema, pois os atores desenvolvem hábitos e se


acostumam com aqueles de seus colegas. Neste caso, a Preparação Corporal poderá contribuir
para que uma nova disposição relacional aconteça. Sensibilização corporal e jogos de
integração9 ajudam consideravelmente, criando um novo espaço relacional. Novas formas de
treinamento renovam os esquemas de funcionamento e podem também inspirar a direção. Um
exemplo de trabalho com companhia nos é dado por Denise Stutz10 ao citar o Grupo de teatro
Piollim da Paraíba, com o qual teve oportunidade de trabalhar algumas vezes. Numa das
vezes em que preparou o grupo para iniciar um novo projeto, Stutz desenvolveu uma pesquisa
com movimentos que fossem capazes de modificar a textura do espaço cênico. Relata que
ficou intrigada com um dos atores que conseguia transformar o espaço da cena, deixando-o
mais denso, através de seus movimentos. A Preparadora explica que tentava entender o que o
ator fazia para conseguir tal densidade. Ela percebeu que o efeito conseguido tinha relação
com a respiração, continuidade de movimentos e uso do tempo.

Quando o Preparador atua em um elenco, onde a maior parte dos atores nunca esteve
em um mesmo projeto, o trabalho pode contribuir para instaurar um clima de confiança e
acolhimento. A Preparação Corporal pode despertar o entusiasmo, fazendo emergir o espírito
lúdico do grupo, minimizando resistências relacionais.

Jogos têm grande força de mobilização e integração. Frequentemente começo meu


trabalho de Preparação Corporal com estas atividades. Alguns exemplos de jogos de
integração são:

1) Colocar o elenco em uma roda e dar uma bolinha de tênis para um dos membros do
grupo. Pedir que esta pessoa comece lançando o objeto para outra, que repetirá a mesma ação.
Explicar que a bolinha deve passar por cada componente do grupo uma única vez, e terminar
voltando às mãos de quem iniciou os lançamentos. Ao final, construir uma sequência
ordenada (circuito). Pedir que eles repitam o circuito realizado, fazendo a bolinha passar por
todos mais uma vez. A partir do momento que a ordem dos lançamentos está fixada, propor
mudanças na forma do jogo. O grupo poderá continuar passando a bolinha mantendo-se no
círculo, ou se deslocando pelo espaço. A cada sinal (uma palma, um sinal percussivo), o

9
Aquilo que nomeio jogos de integração são atividades desenvolvidas por mim, como professor de Corpo e
Preparador Corporal, fazendo interagir a Conscientização do Movimento com outros trabalhos importantes em
minha formação, como o Sistema Laban e a Mímica Corporal Dramática.
10
Bailarina, professora de dança e Preparadora Corporal, nascida em Belo Horizonte. Entre os últimos trabalhos
realizados como Preparadora encontram-se: Glass, direção e dramaturgia de Haroldo Rego (2007), e Máquina de
abraçar, de José Sanchis Sinisterra, direção de Malu Galli (2009). (Entrevista Anexo D).
57

grupo deve modificar a configuração espacial do jogo, passando a bolinha em círculo, ou se


deslocando pelo espaço. É possível aumentar o grau de dificuldade deste trabalho,
substituindo bolinhas por bastões, mudando o sentido de movimentação dos objetos no
circuito, ou incluindo também mudanças de nível.

2) Pedir ao elenco que ande pelo espaço, pare e volte a caminhar simultaneamente. O
grupo deve realizar esta atividade sem nenhuma sinalização, apenas orientado por uma escuta
coletiva.

3) Dividir o grupo em dois. Enquanto uma metade caminha, a outra deve estar parada.
Quando a metade do grupo que está em deslocamento para, a outra caminha. Este exercício
pode ficar mais complexo se incluirmos variações rítmicas. O grupo em movimento se
desloca sempre com todas as pessoas num mesmo andamento. Se há aceleração ou
desaceleração, estas mudanças devem ser acompanhadas por todos os componentes do grupo.

Variações de tempo proporcionam informações diversas para a musculatura. Muitos


dos Jogos Corporais, que constituem o trabalho de Angel Vianna, estão baseados
fundamentalmente em alternâncias rítmicas. Tendo a música como uma referência
determinante, Vianna sempre utilizou estudos rítmicos como estratégia para a organização
corporal. Muitas vezes ela propõe que seus alunos, ou atores com os quais trabalha,
desenvolvam improvisos baseados apenas em alternâncias rítmicas. Se um ator se desloca
lentamente, seu parceiro de jogo deve acelerar a movimentação e vice-versa. Seguindo esta
dinâmica, os jogadores podem estabelecer interações corporais com muitas variantes e
combinações. As palavras também podem integrar estes jogos, estabelecendo com o
movimento um contraponto rítmico. O ator pode trabalhar com movimentos rápidos, falando
um texto lentamente, e em outro momento pode inverter a situação. Mover-se lentamente,
enquanto fala rápido.

4) Jogo das oposições: Este jogo consiste em colocar duas pessoas juntas e sugerir um
tema. Em seguida, elas devem iniciar uma discussão, com uma das pessoas falando bem a
respeito do tema sugerido e a outra falando mal. Sempre que se dá uma indicação (palma ou
sinal percussivo) elas devem mudar de ponto de vista sobre aquilo que discutem. Durante este
exercício, mudanças de tônus são experimentadas, pois a atitude física dos jogadores muda
conforme alteram seus pontos de vista. A mudança de ponto de vista sobre algo obriga
imediatamente a uma reorganização global do corpo. Por meio deste jogo, percebe-se que a
capacidade de mudança de tônus experimentada pelos jogadores está diretamente ligada às
58

suas capacidades de disponibilizar o imaginário para o jogo. Isto revela a íntima relação entre
equilíbrio tônico, ampliação da sensibilidade, disponibilidade para o movimento e ampliação
da capacidade de imaginação.

5) Jogo da causalidade: Este trabalho pode ser feito em duplas, trios ou grupos
maiores. Inicio pedindo que os atores formem duplas. A proposta do jogo é que, através do
movimento, os participantes estabeleçam modos de comunicação sem o uso de palavras. Se
um dos jogadores modifica seu corpo de alguma forma, seu parceiro deve se adaptar a esta
modificação com outro movimento. Esse trabalho aceita inúmeras variações, podendo ser
realizado em diversas fases da Preparação Corporal, aproximando-se cada vez mais do
contexto da peça. Inicialmente a causalidade pode ser jogada livremente, ou seja, ainda fora
do contexto do espetáculo. Com o avançar dos ensaios, esse jogo pode ser feito utilizando
situações que estão sendo abordadas na peça. Os atores, vivendo o momento presente, devem
reagir de modo coerente aos movimentos que estão sendo percebidos.

6) O trabalho com lideranças (apresentado no primeiro capítulo) pode também


estimular a integração de grupos. Muitas são as motivações possíveis para esse trabalho: a)
imagens de pinturas, fotos de jornais e revistas; b) sonoridades (Angel Vianna explorou
variadas sonoridades como estímulo para a pesquisa de movimento, mostrando-se favorável
aos instrumentos percussivos. Percebendo a parte do corpo que recebe e se acomoda melhor a
uma determinada sonoridade, é possível desenvolver variadas pesquisas de movimento); c)
objetos ou esculturas; d) em grupos: (formar um círculo) um componente atravessa o espaço
do círculo explorando uma liderança, movendo-se na direção de outra pessoa, que observa o
colega que se move e deverá identificar a parte do corpo que está em evidência. A pessoa que
observa entra no círculo explorando a mesma liderança. O ator que estava se movimentando
toma seu lugar na roda. A pessoa que agora se movimenta explora durante um tempo a
liderança que pegou do colega e em seguida faz uma transição, escolhendo outra parte do
corpo como liderança. Depois que explorar durante um tempo a nova liderança, deverá repetir
o procedimento de ir até outra pessoa que, percebendo a parte do corpo valorizada, entrará no
círculo explorando a liderança proposta, dando prosseguimento ao jogo.

Esses jogos desenvolvem atenção, prontidão e estimulam variações de tônus. São


dinâmicas capazes de aquecer o ambiente de trabalho produzindo um calor dotado de
características próprias.
59

Do mesmo modo que o calor físico significa intensidade/multiplicidade na agitação e nos


encontros entre partículas, o ‘calor cultural’ pode significar intensidade/multiplicidade de
trocas, confrontos, polêmicas entre opiniões, ideias, concepções. E, se o frio físico significa
rigidez, imobilidade, invariância, vê-se então que o abrandamento da rigidez e das invariâncias
cognitivas só pode ser introduzido pelo ‘calor cultural’. (MORIN, 2005: 35).

Em elencos ou companhias, quando a Preparação Corporal está imbricada com o


processo criativo desde o primeiro ensaio, poderá favorecer o envolvimento, a confiança e o
aprendizado sobre temas que serão abordados no espetáculo. Pode contribuir para constituir
um grupo de trabalho, propiciando a expansão afetiva do elenco.

2.2.3 Leitura de sinais

Como resultado da experiência com campos de conhecimento variados, o Preparador


desenvolve certa capacidade de um modo de leitura corporal. Ele é capaz de perceber sinais
de comunicação inscritos no corpo, que ultrapassam os limites da linguagem verbal. A
comunicação não-verbal é um campo de estudo valioso para o teatro, assim como para a
Preparação Corporal, e frequentemente desenvolvido nos estudos antropológicos. Esse campo
de conhecimento teve grande desenvolvimento a partir de 1950, no pós-guerra.

O corpo humano é dotado de grande força expressiva, e a dinâmica relacional entre


dois sujeitos pode ser intensa e variada, mesmo que eles não utilizem palavras para se
expressar. “Um dos problemas que surge na tentativa de se interpretar o comportamento não-
verbal é a espantosa complexidade da comunicação humana” (DAVIS, 1979: 32). Como parte
integrante dos estudos de comunicação não-verbal, encontramos a Cinésica, ciência
desenvolvida pelo antropólogo e professor Ray Birdwhistell (1918-1994), que estuda os
movimentos humanos, e revela que a motricidade está repleta de significados.

Desmond Morris (1928), zoólogo e etólogo inglês, a partir de pesquisas com animais,
também contribuiu para o entendimento do comportamento humano. Morris define gesto
como:

Uma ação que emite um sinal visual a um assistente. Para se tornar gesto, um ato tem que ser
visto por outra pessoa e tem que comunicar alguma informação. Pode fazer isso porque o
gesticulador deliberadamente se dispõe a enviar um sinal – como quando acena a mão -, ou
pode fazê-lo apenas incidentalmente – como quando espirra. (...) O que importa na
gesticulação não é que sinais pensamos estar emitindo, mas que sinais estão sendo recebidos.
(MORRIS, 1977: 24).
60

Baseado nesta definição, Morris classifica uma vasta modalidade de gestos


demonstrando que estes são fenômenos relacionais, que dependem dos contextos nos quais
estão inseridos. O etólogo inglês também aponta, através de seus estudos, aquilo que chama
de sinais de indiscrição não-verbal. Estes são indicadores que demonstram nossos sentimentos
verdadeiros, mesmo quando estamos tentando camuflá-los. Outros sinais corporais
importantes, segundo a classificação de Morris, são aqueles que exibem relações de status.

Uma exibição de status é uma demonstração de um nível de predomínio. Em condições


primitivas, o domínio é alcançado por uma exibição de força bruta. O membro mais forte do
grupo sobe ao topo da ‘peck order’ e o mais fraco fica na base. Nas sociedades humanas
modernas, a força física foi substituída por outras formas de dominação. O poder muscular
cedeu lugar ao poder herdado, ao poder manipulativo e ao poder criativo. (MORRIS, 1977:
121).

Os estudos em Cinésica revelam que mensagens emitidas pelo corpo estão sempre
inseridas num contexto. A relação desses estudos com o teatro é direta, pois dificilmente a
gestualidade de um ator se fará coerente, se não articulada ao contexto dos espetáculos que
integra. Mas como o corpo harmoniza suas partes em função de necessidades funcionais e
qualidades expressivas particulares? Como nos aproximarmos dessas leis de organização?

O corpo tem uma sintaxe, leis próprias de organização. Gestos humanos são
afirmações de singularidade, manifestações multidimensionais, e, da mesma forma que
palavras, só esclarecem seus significados quando dentro de um contexto. Um gesto ou uma
postura podem ter múltiplos significados, por esse motivo o contexto no qual estão inseridos é
fundamental a fim de que possam ser lidos.

(...) Porque se os gestos são como os radicais linguísticos- ‘ceto’, por exemplo, não significa
nada se não lhe juntarmos o prefixo ‘ex’ para fazer ‘exceto’-, o movimento do corpo também
se parece com a linguagem em algumas coisas e pode, talvez, ser analisado através de um
sistema semelhante àquele que os linguistas usam para analisar o discurso. (DAVIS, 1979: 39).

Ação verbal e ação física são sistemas diferentes, autônomos, mas vários aspectos
análogos podem ser percebidos entre eles. Da mesma forma que desenvolvemos análise
sintática para conhecermos as relações formais entre as palavras, seria possível também
pensarmos numa análise análoga para melhor compreender a motricidade humana.

Uma comparação desse tipo, entre linguagem escrita e linguagem gestual, pode expor
aspectos funcionais e expressivos do movimento. Do mesmo modo que uma oração possui
termos principais e subordinados, e sentenças são ligadas por coordenação ou subordinação, a
gestualidade humana também possui organização e fraseado próprios. Os
impulsos/motivações que originam e produzem movimentos estabelecem percursos que,
61

assim como na linguagem escrita, constituem núcleos, em torno dos quais outros movimentos
se organizam.

Em textos escritos, o pressuposto semântico fundamental é estarmos diante de


sentenças bem formuladas. Primeiramente, é preciso considerar se os termos das sentenças
escritas foram bem coordenados para fazer sentido, se por trás de cada sentença existe um
pensamento orgânico, uma ideia completa que se expressa plenamente através de palavras. A
analogia com o movimento, mais uma vez, pode ser estabelecida, pois os impulsos, curtos ou
longos, fortes ou suaves, também estabelecem um fraseado. O pensamento manifesta-se de
múltiplas formas através de movimentos e palavras. Se interrompermos o fluxo das palavras,
tornaremos confusa a expressão de um pensamento, do mesmo modo que se quebrarmos o
fluxo dos movimentos, nublaremos a qualidade de nossa expressão.

Ariane Mnouchkine, que há anos exerce a direção teatral, ainda encontra resistência
para acessar o corpo de alguns de seus atores. Ela nos oferece um exemplo de como gestos e
posturas podem ser trabalhados de forma coordenada à montagem de uma cena. No filme Au
soleil même la nuit (França-1996), de Éric Darmon e Catherine Vipoux, acompanhamos o
processo de montagem do espetáculo Tartufo, de Molière. (Anexo C, cena: 2). Em uma das
cenas do documentário, vemos Mnouchkine dirigindo um ator, que encontra dificuldade para
realizar uma cena de sedução. O ator faz o papel de Tartufo, um impostor hipócrita que entra
na casa de um burguês (Orgonte), tenta conquistar todos os bens deste, e até mesmo seduzir
sua esposa. A cena apresentada no documentário, que mostra Tartufo declarando seu “amor” a
Elmira, esposa de Orgonte, é uma cena de forte apelo sexual. Mnouchkine várias vezes pede
ao ator que preste atenção aos sinais corporais que emite, pois ele não consegue ser preciso
em suas intenções. Observa que ele diz uma coisa com as palavras, mas que seu corpo não
acompanha a ação vocal. A diretora investe muito tempo para que o ator coordene ação física
e ação vocal. A estratégia utilizada por Mnouchkine é pedir que uma atriz da companhia11, no
papel de Tartufo, faça a cena junto com o ator em dificuldade. A diretora seguidamente
lembra que estão trabalhando uma cena de sedução e que o desejo deve estar evidente. Ela
sugere que o ator abandone a verticalidade do tronco, pois isto não o está ajudando a emitir o
bom sinal corporal, ou seja: sedução. Mnouchkine entra seguidamente em cena, interrompe o
ator muitas vezes e faz observações sobre o uso da voz, que ela considera não estar
coordenada com o corpo. “É preciso que você decida como enviar as palavras para ela. Como

11
A atriz em questão é a brasileira Juliana Carneiro da Cunha, que desde 1990 faz parte da Companhia Théâtre
du Soleil, dirigida por Ariane Mnouchkine.
62

12
você a seduz com as palavras” (tradução livre do autor), sugere a diretora. É possível
constatar que em muitos momentos o ator perde o objetivo de seduzir sua colega em cena,
pois não consegue sustentar gestos e posturas adequados na composição de seu Tartufo.
Movimentos parasitas, aqueles que não estão a serviço da informação a ser comunicada,
deixam o trabalho impreciso e pouco potente. Estes movimentos não contribuem para a
expressão do ator, pois não acrescentam nenhuma informação relevante aos conteúdos
tratados na cena. Seguidamente transformam-se em “ruídos” e revelam mecanismos de defesa
que tão frequentemente se manifestam entre atores, principalmente durante o período de
ensaios, quando, como já disse, estão extremamente vulneráveis. Em vários momentos, o
jovem ator parece estar mais preocupado em criar suas próprias imagens, internas, sem
perceber a totalidade da cena, interagindo de forma mais substancial com sua parceira. Aqui
percebemos no corpo do ator resistências para equilibrar as relações entre eixo vertical e
horizontal. Mnouchkine explica ao ator: “Você sente que seu problema está no corpo? Às
vezes você não emite bons sinais com o corpo. O seu corpo envia sinais que fazem você atuar
de outra forma” 13 (tradução livre do autor). A observação da diretora é importante por deixar
claro que um ator deve trabalhar para suprimir todas as resistências que impedem que seus
impulsos criativos se transformem em ações.

Vários caminhos poderiam ser propostos por uma Preparação Corporal de qualidade
para resolver a dificuldade enfrentada pela diretora francesa. A fim de corroborar com a ideia
de estratégia, procedimento dinâmico e variável, farei o relato de três Preparadoras, que
revelam modos possíveis de intervenção para solucionar o problema enfrentado por
Mnouchkine.

A Preparadora Corporal Marina Martins14, utilizando alguns fundamentos do Sistema


Laban de análise do movimento, propõe:

Se eu fosse Preparadora Corporal da montagem, eu falaria no ouvido da Ariane para ela falar
sobre respiração e flexibilização, principalmente do tronco daquele ator. Trabalharia a
respiração no sentido de fazer a coluna vertebral respirar. Torcer para entrar nas diagonais.
Falaria um pouco sobre as diagonais do cubo, que dão essa tensão frente-atrás, em cima em
baixo, simultaneamente. Isto dá um poder e uma dubiedade na ação. Como ela quer uma

12
“tu doit decider comment tu l’envoies ces mots. Comment tu l’appâtes avec ces mots là”.
13
Tu sens que c’est du corps qu’est ton problem? Parfois tu donnes pas de bons signes du corps. Ton corps
t’envoie des signes qui te font jouer autrement.
14
Prof. Adjunta do Programa de Educação e Criação em Dança DAC/EEFD/UFRJ, nascida no Rio de Janeiro.
Bailarina co-fundadora da Cia Atores Bailarinos (RJ), desde 1979 trabalha com o Sistema Laban de Análise do
Movimento. Entre os últimos trabalhos como Preparadora encontram-se: Orfeu, direção de Regina Miranda
(2005), e A menina e o balanço, direção de Daniela Magalhães (2011). (Entrevista Anexo D).
63

sedução, é o desejo e a sedução o tempo inteiro, se você for de frente, um engajamento direto,
não vai seduzir. (Depoimento ao autor).

Martins, a fim de desestabilizar o ator, propõe um trabalho de movimento focado na


coluna vertebral, utilizando as escalas do cubo de Laban15. Ela diz que a coluna deve respirar,
indicando um tipo de respiração vinculada ao tônus muscular e não somente aos pulmões. A
Preparadora está certamente se referindo à habilidade do ator modificar sua atitude tônica,
fazendo-se capaz de expressar toda uma gama de estados emocionais presentes na cena. Ela
considera dois modos de intervenção: 1) Relacionando-se diretamente com o ator, propondo
as escalas do cubo. 2) Falando “no ouvido de Mnouchkine” sobre respiração, buscando uma
relação com o ator, intermediada pela direção.

A perspectiva de outra Preparadora Corporal abaliza outros modos de intervenção.


Duda Maia16 aponta que o problema a ser enfrentado é relacional, e, portanto, deve trabalhar a
afetividade dos atores. Maia explica que, diante de casos como este, prefere sugerir
improvisos fora do contexto da peça. Ela constata que a cena mostra alguém perdendo algo
que deseja. Para dimensionar essa perda, a Preparadora começaria seu trabalho com um jogo
de interações físicas, onde todas as tentativas de contato do ator fossem correspondidas pela
atriz. “Ele vai abraçar, ela aceita. Ele faz um carinho, ela retribui.” Mesmo que esta proposta
não seja condizente com o contexto da peça ou com a personagem de Elmira, que nunca teve
admiração por Tartufo. No momento seguinte, em outro improviso, a atriz deveria rejeitá-lo
completamente. “Ele vai pegar a mão, ela recusa. Ele se aproxima, ela vira de costas.” Na
visão de Maia, essa estratégia poderia mobilizar a imaginação/sensibilidade do ator, fazendo-o
experimentar bons sentimentos, para que, posteriormente, conseguisse dimensionar a rejeição
e o desejo com maior intensidade.

Maia propõe, através de improvisos, a construção de uma relação afetiva real, que
brota do trabalho e poderá constituir-se como base e motivação para o ator. A partir do
momento que o ator, durante os improvisos, experimentou bons contatos com a atriz, ele
sentirá mais a rejeição e terá mais vontade de conquistá-la posteriormente.

A estratégia de Maia faz parte da metodologia de muitos diretores, que fazem


improvisos sobre situações que não estão no contexto da peça e podem ser desenvolvidos a

15
“Escala e/ou escalas são séries graduadas de movimento organizadas em formas lógicas básicas” (RENGEL,
2003: 52).
16
Bailarina, coreógrafa e Preparadora Corporal, nascida no Rio de Janeiro. Entre os últimos trabalhos como
Preparadora encontram-se: Ensina-me a viver (2007) e O homem objeto (2004), ambos com direção de João
Falcão. (Entrevista Anexo D).
64

partir de situações citadas no texto, ou completamente inventadas, como fez Maia.


Stanislavski, trabalhando sobre Tartufo, também desenvolveu improvisos com situações fora
do contexto da peça.

Nós criamos acontecimentos familiares, como a doença da dona da casa, e todos deviam se
comportar de acordo com a situação. Nos reuníamos para o jantar, nos separávamos depois da
refeição afim de voltarmos para nossos quartos ou dar um passeio, mas sempre tendo em vista
que um ente querido estava acamado, gravemente doente. (STANISLAVSKI in AUTANT-
MATHIEU, 2007: 106, tradução livre do autor).17

O procedimento de Maia estabelece pontos análogos com aqueles do encenador russo.


Nas palavras de Stanislavski, percebemos que um imaginário-memória coletivo está de fato
sendo criado durante o processo de ensaios. Não há na peça de Molière uma cena em que
vejamos a casa de Orgonte sofrendo, pelo fato de Elmira estar doente. Mas os improvisos
propostos pelo encenador são estratégias que mobilizam o imaginário coletivo, criando
vínculos entre o elenco.

Denise Stutz aponta estratégias distintas daquelas que foram apresentadas


anteriormente. Ela reconhece que não trabalharia orientada pela busca de uma forma, mas sim
procurando estimular estados. A Preparadora considera que a conquista de um estado de
presença, relacionado à expansão de percepção de um ator, é um dos objetivos fundamentais
de seu trabalho. Afirma que existem muitas formas de falar de desejo, e sente falta que
Mnouchkine deixe o ator mais livre para propor, considerando ser fundamental que um
Preparador ofereça elementos de criação para um ator, mas o deixe livre para jogar com as
informações recebidas. A Preparadora, primeiramente, tentaria fazer com que o ator
percebesse seu padrão de funcionamento, buscando estimular sua criação.

Trabalho a partir da criação do outro. Gosto de trabalhar com a dificuldade, mas não para
massacrar, mas para fazer o outro se perguntar. Não dizer como fazer. Faz assim... assim. Não
racionalizar, mas perguntar pelo corpo. Quebrar o padrão não é deixar a pessoa perdida, não é
jogar fora o que ela sabe. É levar o que ela sabe para outro lugar. Porque este lugar onde ela
sabe, e se acomoda, o que se pode fazer, além disso? Às vezes é muito simples. Comigo muitas
vezes pedem que eu faça direção de movimento que não é trabalho de corpo, mas é, porque
você movimenta o corpo, é tudo, corpo espaço, é tudo! É outro lugar, trabalho com o ator e
com o espaço. (Depoimento ao autor).

Stutz considerou a relação com o vídeo distanciada, dizendo que na verdade precisaria
estar efetivamente com o ator para decidir os modos de intervir sobre seus padrões. A
Preparadora expôs sua estratégia de trabalho, quando teve que interferir sobre os padrões de

17
Nous créâmes des événements familiaux, comme la maladie de la maîtresse de la maison, et tous devaient se
comporter en conséquence. Nous nous rassemblions pour déjeuner, nous nous séparions aprés le repas pour
regagner nos chambres ou aller nous promener, mais toujour en tenant compte du fait qu’un être cher était alité,
gravement malade.
65

um casal de atores afim de que, num espetáculo, a relação entre as personagens ficasse clara.
No espetáculo, a relação de status entre as personagens indicava que o homem controlava a
relação do casal. Entretanto, na vida, quem tentava se manter no controle era a atriz. Stutz
procurou ajustar os padrões do casal de atores às demandas do espetáculo, partindo de um
trabalho físico. Pediu que o ator segurasse a atriz contra uma parede e não a deixasse escapar.
Através deste exercício, a Preparadora pôde fazer com que o casal de atores dimensionasse
suas forças. O ator ganhou mais segurança, aumentando sua força na cena, e a atriz entendeu
que era necessário se fazer menos forte, para que a relação do casal ficcional ficasse clara. A
Preparadora não usou o recurso da fala para fazer com que os atores percebessem os
problemas que estavam enfrentando. Valendo-se unicamente de improvisos corporais, foi
capaz de interferir sobre as formas de comportamento, modificando-as em favor do trabalho.

Os exemplos de estratégias, apresentados acima, comprovam a multiplicidade de


leituras e abordagens que um problema pode inspirar, durante a montagem de um espetáculo.
Diante desta variedade de alternativas, uma pergunta pode ocorrer. Haveria espaço para
interferências autorais no exercício da Preparação Corporal?

2.2.4 Autoria

As questões de autoria, no âmbito da Preparação Corporal, confirmam a complexidade


dessa atividade. Um Preparador é capaz de reconhecer o alcance de suas ações, ao modificar o
espaço da cena, alterando marcações e transformando a atitude física dos atores. Mas deve ter
consciência de que sua atividade é produto e produtora de ações coletivas, sujeitas a um sem
número de variáveis. As intervenções de um Preparador são dotadas de pessoalidade e
intenção, mas, como parte de um trabalho coletivo, serão absorvidas e modificadas. Esse
profissional pode oferecer variados estímulos ao ator: uma palavra, um poema, uma imagem,
etc. Até mesmo uma limitação/restrição pode funcionar como motivação, como, por exemplo,
pesquisar mudanças de nível no espaço sem usar as mãos como apoio, ou suprimir uma dada
gesticulação enquanto se fala um texto18. Mas a ação-intervenção de um Preparador Corporal
está sujeita a falhas, a deixar algo escapar, e ele, sujeito a se surpreender com o inesperado.
Como nos ensina Edgar Morin:

18
É o caso da ação de Klauss Vianna em Mão na Luva (p. 71).
66

Para compreender o problema dos efeitos de toda ação, inclusive a moral, precisamos nos
referir à ecologia da ação. A ecologia da ação indica-nos que toda ação escapa, cada vez mais,
à vontade do seu autor na medida em que entra no jogo das inter-retro-ações do meio onde
intervém. Assim a ação corre o risco não somente de fracassar, mas também de sofrer desvio
ou distorção de sentido. (...) os efeitos da ação dependem não apenas das intenções do ator,
mas também das condições próprias ao meio onde se acontece. (MORIN, 2005: 41/42).

De acordo com a proposta de Preparação Corporal que faço neste trabalho, só é


possível discutir a porção autoral do Preparador relacionando seu trabalho com o contexto
global da encenação, onde variados traços encontram-se sobrepostos na escritura corporal do
ator. A dramaturgia corporal de um ator, como sistema complexo, expõe os três Princípios da
Complexidade que foram apresentados no primeiro capítulo. À medida que o ator vive seu
processo criativo, integrando múltiplas informações, experimenta desvios e alterna ordem e
desordem, evidenciando o Princípio Dialógico moriniano. Participando de um trabalho
integrado, o ator será capaz de refletir e ver-se refletido na totalidade do mesmo, mostrando
que o Princípio Hologramático é fundamental para que seja parte da linguagem do espetáculo
do qual participa. E enquanto assimila informações, da equipe e do espetáculo que emerge,
transformando e sendo transformado por eles, demonstra que o Princípio Recursivo é
determinante nos rumos de sua criação.

Pensar o corpo do ator como palimpsesto19, que sobrepõe diversas camadas de escrita,
é um estímulo potente para considerarmos a ideia de autoria na Preparação Corporal. Desta
maneira, é possível aceitar que o traço do Preparador estará presente no espetáculo, mas como
uma das múltiplas camadas capazes de constituir o corpo do ator.

O traço de autoralidade do Preparador Corporal constitui-se como estímulo para que


ator possa explorar potencialidades que desconhece. Este é um princípio coerente para
avaliarmos o que de autoral pode existir na contribuição de um Preparador. A autoria do
Preparador Corporal se faz presente como mais uma camada de texto, de escrita corporal,
sendo esta apropriada pelo ator como parte de sua própria singularidade.

Angel Vianna afirma que, ao trabalhar com Yara Amaral, no espetáculo Imaculada
(Anexo B), conseguia ver com clareza, processadas no corpo da atriz, as informações que lhe
oferecia ao longo dos ensaios. A Preparadora explica que ao mesmo tempo em que percebia
sua indicação, via também a pessoalidade de Amaral apropriando-se da informação sugerida.

19
Quando proponho pensarmos o corpo do ator como um palimpsesto, não desconsidero a possibilidade da
intervenção do Preparador ser um traço de eliminação.
67

Outro exemplo em que a Preparação Corporal de um espetáculo aconteceu de forma


totalmente integrada à direção e ao elenco, deu-se no espetáculo Auto do novilho furtado
(Anexo B). Este trabalho teve direção de Demetrio Nicolau e Preparação Corporal de Nara
Keiserman. O trabalho de Keiserman foi reconhecido e destacado pelas críticas de jornal,
rendendo-lhe o Prêmio Shell categoria especial pela direção de movimento (fig. 16).

Na equipe técnica, o grande destaque vai para a direção de movimento a cargo de Nara
Keiserman. A ela coube grande parcela do êxito de muitas marcações, algumas nada fáceis de
serem executadas – o elenco exibe um trabalho corporal esmerado e muita precisão no tocante
a gestos e posturas, sempre em consonância com a personalidade das personagens e os
conflitos em que estão envolvidos. (FISCHER, 2002: 2).

No mesmo espetáculo, a direção, bastante elogiada pela crítica, não obteve nem
mesmo uma indicação para o prêmio citado. Keiserman reconhece que seu trabalho tem sido
apontado como atividade destacada, mesmo quando trabalha de forma entrosada com a
direção.

(Figura 16) Auto do novilho furtado. Mouhamed Harfouch, Thales Coutinho, Geraldo Demezio, Assayo
Horissawa e Fabiano Xavier. (foto: Guga Melgar).

2.2.5 Modos de intervenção do Preparador Corporal

Como já foi dito, a Preparação Corporal pode ser desenvolvida de muitas maneiras,
assumindo variados perfis. Cada trabalho solicita o Preparador de modo diferente. Os três
exemplos anteriores (citados no item 2.2.3), através de intervenções hipotéticas,
demonstraram que a Preparação Corporal varia radicalmente, em função da sensibilidade,
formação e experiência do profissional que a exerce. Grupos humanos também variam
consideravelmente, exigindo do Preparador Corporal grande capacidade de articulação e
adaptação.
68

Não pretendo estabelecer um modelo ou classificação estrita para diferentes tipos de


Preparadores de elenco. Meu objetivo não é criar uma tipologia, com a intenção de enquadrar
o trabalho desses profissionais. Mas, se as diferenças são muito evidentes entre Preparadores,
isto não quer dizer que não seja possível encontrar afinidades e semelhanças em seus
procedimentos. Os aspectos humanos de cunho relacional, tão evidentes nessa atividade, são
capazes de apontar pontos comuns em suas práticas e intervenções. Desta maneira, seria
possível apontar características comuns entre esses profissionais, que constituem parâmetros
na condução de suas atividades. Independente do perfil assumido pela Preparação Corporal é
possível discriminar aspectos pedagógicos e antropológicos neste trabalho.

A transmissão de conhecimentos é característica marcante na Preparação Corporal.


Mesmo que o Preparador não se defina como um pedagogo, ele mostra caminhos e oferece
clareza na identificação de problemas. Também são importantes os aspectos antropológicos
que constituem esta profissão, pois a questão da alteridade, entender o outro pela ótica do
outro, possibilita formas de intervenção diferenciadas.

Os aspectos constitutivos da profissão de Preparador Corporal que escolhi considerar


certamente não são os únicos, existirão outros, que apesar de relevantes, não serão abordados
aqui.

2.2.5.1 O Preparador pedagogo

O amor pelo conhecimento nos ensina que não existe uma única forma de aprender,
assim como não existe uma única forma de ensinar20. Ensinar e aprender são processos

20
“Me preocupo muito pouco com o que significa realmente a palavra educação. Acho que são poucas as
pessoas que gostam de ajudar os outros, ensinando o que sabem, para os outros irem além – isso é educação. É
essa possibilidade de transmitir o que eu tenho pesquisado por longo tempo que me empurra para a sala de aula,
onde eu vou ver as pessoas fazerem outras coisas, levar isso adiante. Educação é trocar com os alunos. Na minha
opinião, o educador não ensina, apenas orienta. Se ele permitir que a pessoa que ele orienta se solte
(principalmente a criança), ele vai muito além. Ninguém ensina nada a ninguém. Todo mundo já sabe. As coisas
estão guardadas no corpo do outro, de modo que a gente só tem que reeducar o que ele perdeu – o movimento
natural. A tal educação atrapalhou a nossa educação. A gente vai aprendendo a refazer o que foi desaprendido
em nós com a educação. A palavra “educar” me dá medo, porque me lembro da educação antiga. A educação
antiga era realmente de medo, principalmente em relação ao corpo. Para desfazer esses nós, essas trancas, essas
travas que a gente trouxe de uma longa história... leva um certo tempo. Ao mesmo tempo, é tão simples, por isso
é que é complicado. Porque a gente não aceita muito o óbvio. A gente devia se preocupar mais com o óbvio. Só
não faz, porque acha que os outros vão dizer que a gente não é inteligente. Mas inteligente é saber lidar com o
óbvio” (Depoimento de Angel Vianna sobre educação em geral e em dança. Acervo pessoal: s/d).
69

complexos, não lineares, que incluem acasos e descontinuidades. A natureza nos mostra que
os sistemas vivos evoluem porque são capazes de experimentar momentos de crise, que
produzem mudanças. No teatro, uma arte coletiva, onde as crises são inevitáveis, pode-se
perceber a mesma dinâmica, que altera padrões de comportamento, individuais e coletivos.

É comum, num elenco, que os atores desenvolvam suas criações em tempos


diferenciados. Cada ator percebe, entende e apreende o projeto artístico de modo particular,
estabelecendo uma relação específica com o tempo coletivo. O Preparador Corporal deverá
considerar a presença de Chronos (tempo objetivo) e Kairós (tempo subjetivo) para acessar as
individualidades com as quais trabalha. Respeitar os tempos individuais é respeitar a
subjetividade de cada ator. Desta maneira, cria-se um espaço de confiança, onde se torna
legitima a exposição de cada membro da equipe. O Preparador experiente aprende a lidar até
mesmo com momentos em que um ator, ou elenco, parece “estacionado”, pouco inspirado,
sem muita criatividade.

Entre os grandes mistérios do espírito está, de fato, o da criatividade, as capacidades criadoras


de grandes escritores como Balzac, Tolstói, Dostoiévski, concretizam gigantescos ectoplasmas
de realimaginário, quero dizer de imaginário na reprodução do real, de real na produção
de imaginário. Ainda aqui, reencontramos os enigmas do mimetismo, da possessão, da
histeria... Todo artista criador não é, de uma certa maneira, possuído pela obra que cria e,
histérico no sentido em que dá existência a uma emanação do espírito? (MORIN, 2007: 107).

A falta de criatividade é percebida quando um ator deixa de estabelecer contato


consigo mesmo, e esquece que pode explorar suas ações de múltiplas formas. Por um sem
número de motivos, muitas vezes apega-se excessivamente às próprias descobertas, e perde a
possibilidade de reinventar seu trabalho constantemente.

Improvisos têm a força de mobilizar a totalidade do ator e proporcionam expansão de


consciência no trabalho criativo. Afetividade e imaginação são dimensões humanas
fundamentais, estruturantes, que podem ser estimuladas através de improvisos e jogos de
integração (como os citados anteriormente no item 2.2.2), independente do tipo de problema
que o Preparador objetiva superar (mecânico, relacional ou emocional).

Enquanto o mundo empírico comporta estabilidade e regularidade, o mundo imaginário


prolifera, transgride os limites de espaço e de tempo. A substância do sonho mistura-se com a
da realidade, sem que o ser humano tome consciência disso. (...) A importância do imaginário
abre caminho aos delírios do homo demens, mas também à fantástica inventividade e
criatividade do espírito humano... Assim, este sonhou tanto em voar, que surgiram os aviões.
(Ibdem, 2007: 132).

A partir do momento em que os padrões comportamentais de um elenco ganham


mobilidade, cria-se um território propício à experimentação. Atores descobrem uma
70

infinidade de ações que não vislumbravam para suas personagens. Constatam que realmente
aprenderam algo, quando se sentem modificados corporalmente.

Uma ação pode ser realizada de muitas formas, mas isso só é percebido pelo ator
quando ele amplia a consciência de seus meios.

Quanto mais maneiras possuímos de fazer o que sabemos, maior a liberdade de escolha. E
quanto maior a liberdade de escolha, maior será a nossa capacidade humana. Senão seríamos
iguais a um computador que pode fazer coisas brilhantes, mas de uma única maneira.
(FELDENKRAIS, 1988: 31).

Um Preparador Corporal consciente percebe quando um ator, mesmo parecendo pouco


criativo, está elaborando motivações próprias para voltar a contribuir com o trabalho de
maneira efetiva. Muitas vezes, durante a construção de um espetáculo, quando um ator
abandona um caminho conhecido, onde se sente seguro, tem a sensação de que nada está
acontecendo e pode sentir-se confuso e impotente. Mas isso nem sempre é verdade. Esses
momentos de crise ensinam bastante, e mostram que algo está se reorganizando. A crise pode
indicar, por exemplo, que o ator está abrindo mão de algo, mas ainda não possui outro
caminho a ser seguido. Esse é um momento de transição, que pode indicar um salto
qualitativo no processo criativo. É muito comum o ator saber aquilo que não quer, mas pode
ser difícil a escolha de um caminho que o conduza a um trabalho potente.

O Preparador Corporal pode ajudar o ator a explorar momentos de crise, pois é capaz
de ler sinais inscritos em seu corpo, e propor maneiras de coordená-los à estética do
espetáculo. A habilidade do Preparador de discriminar problemas pode mostrar-se
extremamente pedagógica e produtiva.

Mesmo que a Preparação Corporal seja realizada em períodos de curta duração, é


possível produzir mudanças significativas nos corpos dos atores que experimentam esse
trabalho. Quando os processos de construção de um gesto são vivenciados de forma
consciente, produzem-se modos diferenciados de apreensão desses movimentos. Como
Klauss Vianna afirmava, o importante não é decorar passos, mas aprender um caminho
(VIANNA, 2005). Essa afirmação vinculada ao ensino da dança também ilumina o processo
criativo do ator. Ela indica que a conquista de autonomia é fundamental para a realização de
um trabalho criativo verdadeiro. Denomino trabalho criativo verdadeiro aquele que funciona
como transdução do mundo pessoal e íntimo daquele que o produz, quando aquele que cria
encontra modos particulares de apropriar-se dos materiais que utiliza como suporte para sua
obra. No caso do ator, este suporte material é seu próprio corpo, ele mesmo.
71

Valendo-se de estratégias pedagógicas, o Preparador Corporal pode levar um ator a


perceber melhor os modos de realização de uma ação. A experiência que muitos Preparadores
têm como professores os habilita a discriminarem com clareza as etapas necessárias à
realização de tarefas específicas, concebendo estratégias que ajudem o ator a explorar seus
meios de expressão.

A elaboração de uma estratégia comporta a vigilância permanente do ator durante uma ação,
considera os imprevistos, realiza a modificação da estratégia durante a ação e, eventualmente, a
anulação da ação em caso de um desvio nocivo. A estratégia permanece uma navegação errante
num mar incerto e exige, evidentemente, um pensamento pertinente. Ela comporta um
complexo de desconfiança e de confiança que necessita desconfiar não apenas da confiança,
mas também da desconfiança. A estratégia é uma arte. (MORIN, 2007: 56/57).

O uso de estratégias pode desvelar ações pertinentes, ajudando atores a não


funcionarem em “bloco”. Quando um ator trabalha em bloco, isto quer dizer que ele deixa de
explorar toda uma gama de modulações ou nuances que poderiam ser expressas através de seu
trabalho.

Um exemplo de Preparação Corporal que incidiu de modo determinante sobre os


esquemas psicomotores de um ator aconteceu no espetáculo Mão na Luva (Anexo B), de
Oduvaldo Vianna Filho, Preparação Corporal de Klauss Vianna e direção de Aderbal Freire
Filho.

Klauss Vianna (...) dividiu o seu trabalho em duas etapas: o ‘aquecimento’, orientado para a
preparação corporal do ator, que podia se estender até por quatro horas seguidas, e o
‘aprimoramento das marcações’, uma função reconhecida hoje como ‘direção de movimento’,
mas que ele já anunciara ao assinar a ‘direção de movimentação corporal’ no programa de Mão
na Luva. (...) Um trabalho que se integrou de tal maneira à direção, que contaminou a
encenação com a dança, transformando a peça numa espécie de pas de deux. (TAVARES,
2010: 219).

Neste trabalho, além de um intenso processo de sensibilização corporal, Klauss


Vianna amarrou as mãos do ator Marco Nanini como estratégia pedagógica.

Eu trabalhei com o Nanini em Mão na Luva. E o Nanini tem um gestual muito típico dele,
muito característico, e o subtexto é: ‘não chega para perto de mim que não tem’. Então ele
criava formas para esse personagem. Formas já conhecidas. Que volta e meia repetia. Então eu
amarrei as mãos dele nesse trabalho. Então ele ficou completamente pirado, porque não tinha
mais forma para trabalhar. Ele tinha a intensidade do movimento. Então o corpo dele teve que
descobrir novas formas de comunicação que não fossem aquelas, que ele já tinha trabalhado e
repetido diversas vezes. (Depoimento de Klauss Vianna no documentário Movimento
Expressivo Klauss Vianna).

O registro de Klauss Vianna aponta um entre muitos caminhos possíveis para se


trabalhar os padrões de funcionamento de um ator. Muitas vezes, um Preparador Corporal
opta por um caminho aparentemente estremado a fim de evidenciar maiores resistências. Este
procedimento não deve ser considerado isoladamente, mas só revelará seu propósito e eficácia
72

contextualizado com o devido cuidado. Amarrar as mãos de um ator só por amarrar pode não
significar grande coisa. Mas no caso de Nanini, em Mão na Luva, se avaliamos as
ressonâncias desse procedimento, constatamos que a auto-organização do ator foi alterada.

A estratégia de Klaus Vianna é uma forma de restrição que se converte em um ato


produtivo. O ator, privado do uso das mãos, teve que encontrar novos modos de organização,
enriquecendo a sintaxe de seus movimentos. O equilíbrio do corpo foi alterado e as principais
caixas que constituem o esqueleto (cabeça, tórax e bacia), passaram a se coordenar de maneira
inabitual, modificando a relação com a dimensão vertical. Sem os movimentos dos braços o
centro do corpo é solicitado com maior vigor em todos os deslocamentos, transferências de
peso e mudanças de nível. Muitas restrições para o movimento têm este poder de estimular a
inteligência corporal, alterando consideravelmente tanto a organização tônica do corpo como
sua percepção. Essas propostas podem ser encaradas com a mesma disposição com que
encaramos as regras de um jogo.

Os resultados parecem ter sido extremamente compensadores, pois mesmo a crítica


jornalística reconheceu que Marco Nanini conquistou novas possibilidades como ator neste
trabalho.

Marco Nanini, talvez pelas suas origens, parecia ator mais indicado para papéis, se não
característicos, ao menos com algum traço marcante. Se tinha algum fundamento essa
observação, ela caiu por terra em Mão na Luva. (...) Dono do palco no estilo dos velhos
monstros sagrados, ele impõe a justa medida, o gesto seguro, a inflexão corretíssima. É um
prazer assistir ao duelo de Nanini e Juliana. (MAGALDI, 1984: 71).

A crítica de Sábato Magaldi revela atenção pouco comum em relação ao


desenvolvimento do trabalho de um ator. Magaldi aponta que Nanini, apesar de atuar com
facilidade nos papéis tipificados, apresentou notável desempenho no drama Mão na Luva.
Mas o crítico não deixa de mencionar a participação da atriz Juliana Carneiro da Cunha,
figura imprescindível para que Mão na Luva tenha alcançado enorme êxito de público e
crítica. O trabalho da atriz era totalmente integrado ao de seu parceiro, e às propostas da
encenação. O pas de deux, citado por Tavares anteriormente, jamais teria sido possível sem o
grande entrosamento conquistado pelo casal de atores. Tive a oportunidade de assistir ao
espetáculo mais de uma vez e pude observar um primoroso trabalho de consciência corporal.
A fluidez dos gestos, deslocamentos e mudanças de níveis evidenciavam grande mobilização
articular e consciência no uso dos apoios. A continuidade dos movimentos transformava em
dança, cenas de briga, onde os atores rolavam por cima de uma mesa e terminavam o embate
no chão. Os gestos ganhavam projeção no espaço como prolongamento da fisiologia articular
73

e muscular dos atores. O casal estava em perfeito equilíbrio com o espaço, e este era ocupado
como desdobramento da interioridade de ambos. O trabalho corporal estava nitidamente
baseado na sensibilidade. Mesmo quando os atores não estabeleciam contato físico direto era
como se estivessem num jogo de contrapesos constante, evidenciando grande sensibilidade
táctil, na relação com o espaço e o parceiro de cena.

Mão na Luva é um exemplo de que a Preparação Corporal pode ser desenvolvida


como procedimento integrado, capaz de contribuir na escritura cênica de um espetáculo.
Nesse trabalho, é possível constatar que as metodologias/estratégias desenvolvidas pela
Preparação Corporal foram capazes de fazer que os atores conhecessem melhor suas
estruturas e apreendessem com maior consciência os seus modos de composição.

2.2.5.2 O Preparador antropólogo

Na antropologia, um dos maiores interesses de seus profissionais é compreender,


através de trabalhos de campo, diferentes sociedades humanas. O respeito à alteridade é uma
meta nessa área do conhecimento humano. Valorizar o outro, tentando compreendê-lo pela
sua ótica, é uma característica do trabalho antropológico, e qualidade importante de um
Preparador Corporal. “Só pode ser considerada antropológica uma abordagem integrativa que
objetive levar em consideração as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade”
(LAPLANTINE, 1988: 16). Tanto o antropólogo quanto o Preparador Corporal possuem
interesse pelas especificidades do comportamento humano em sociedade, seus hábitos e
manifestações simbólicas.

Alguns limites entre antropologia e psicologia são tênues, contudo o antropólogo não
tem interesse em modificar o outro, mas observá-lo, compreendendo seu comportamento, em
um contexto específico. Um Preparador Corporal, não é um psicólogo, por esse motivo deve
tomar cuidado com os tipos de intervenção e leituras que faz de certas situações. Isto não
significa absolutamente desconsiderar as subjetividades, mas entendê-las no contexto
relacional no qual estão inseridas.

Ao longo de anos trabalhando com Preparação Corporal, pude perceber que as


relações entre coletivo e indivíduo são importantes e determinantes nesse trabalho. Se isto é
74

uma verdade em qualquer grupo social, nessa atividade, o grupo faz o indivíduo, da mesma
forma que é configurado por suas individualidades. É o princípio da recursividade de Morin,
que se apresenta de modo notório, fazendo com que a Preparação Corporal seja resultado de
múltiplas inter-retro-ações.

Atuando como Preparador Corporal em contextos escolares, tive a oportunidade de me


deparar com situações que me ensinaram muito sobre os modos como coletividade e
indivíduo interagem, e aprendem com isso. Em muitas das montagens escolares nas quais
atuei, várias vezes uma mesma personagem era feita por dois ou três alunos-atores diferentes
e pude observar como cada um deles assimilava minhas informações de modo particular.

Trabalhando em Vereda da Salvação (2005) (Anexo B), de Jorge Andrade, com


direção de João Fonseca21, percebi a grande habilidade que um Preparador Corporal deve ter
para estimular seu elenco. Vários atores dividiam os mesmos papéis, pois se tratava de uma
montagem escolar de final de curso, e um número grande de alunos precisava ser bem
aproveitado. Em um dos papéis centrais, trabalhei com dois atores com compleições distintas
e que exigiam soluções diferentes para problemas semelhantes. Eles estavam interpretando o
papel de um fanático religioso, e precisavam encontrar formas de inscrever em seus corpos a
obsessão, a violência e a loucura deste beato.

O aluno A, desde o início, procurava formas retorcidas, criando desenhos corporais,


que se afastavam de uma abordagem naturalista. Era como se estivesse o tempo todo muito
perturbado e isto limitava a expressão de outras facetas da personagem. O aluno B mantinha-
se mais centrado, afinado com o eixo vertical e “enraizado”, explorando a estabilidade de sua
base, expressando bem a força do novo líder religioso. Faltava a intensidade e a obstinação do
fanatismo cego, que muitas vezes justifica ações violentas e extremadas.

Com o desenvolvimento dos ensaios, percebemos que seria produtivo misturar um


pouco as propostas dos dois atores. Seria bom que o aluno A diminuísse a quantidade de
movimentos retorcidos, equilibrando o caráter obsessivo da personagem, utilizando o eixo
vertical e momentos de imobilidade. A fim de ajudá-lo fiz observações sobre o
direcionamento do olhar, solicitando maior precisão e foco na relação com os colegas, objetos

21
Ator e diretor de teatro. Iniciou-se na direção teatral ao lado de Antonio Abujamra, co-dirigindo espetáculos
para a “Companhia Os Fodidos Privilegiados”, em 1997. Seus últimos trabalhos como diretor são: Gota d’água
(2007) de Paulo Pontes e Chico Buarque, Era no tempo do rei (2010) de Heloísa Seixas e Júlia Romeu e Maria
do Caritó (2011) de Newton Moreno.
75

e espaço. Sem um bom uso do olhar, o aluno A deixava sua relação com o espaço pouco
precisa, e isto favorecia o aparecimento de gestos e deslocamentos desnecessários.

Enquanto isso, o ator B poderia conquistar mais fanatismo, abandonando um pouco a


postura firme e simétrica, que sugeria na maior parte do tempo um excesso de racionalidade e
controle. A busca de uma relação mais instável com o equilíbrio, certamente o ajudaria a
encontrar novas experiências, dinamizando a linha de ações da personagem. Sugeri que ele
modificasse a unidade inferior do corpo, explorando transferências de peso, abandonando e
recuperando o eixo vertical alternadamente.

Foi extremamente enriquecedor acompanhar o processo de composição de vários


desses alunos e constatar o quanto puderam aprender entre eles e na relação com o grupo.

2.3 A Preparação Corporal de Angel Vianna

2.3.1 Breve apontamento biográfico

A primeira Preparação Corporal de Angel Vianna foi com o Teatro Universitário de


Minas Gerais em 1962, no espetáculo O pagador de promessas, com direção de Haydée
Bittencourt. (Anexo B). “A vinda dos Vianna para o Rio de Janeiro, em 1964, os colocou em
contato com a classe teatral da cidade e começaram a surgir os convites para a participação
nas montagens teatrais” (RAMOS in SALDANHA, 2009: 67).

Ausônia Bernardes22 considera que os Vianna fizeram um recorte na Expressão


Corporal da época e explica:

Em 1968, Angel já dava uma aula de balé diferente das referências tradicionais, com chão e
barra já diferentes, incluindo alongamentos e referências anatômicas. (...) A aula já era
carregada de uma necessidade de falar desse corpo que tinha uma representação
completamente diferente de um corpo tolhido, fechado, só vertical, como a gente foi muito
condicionado. Não só mais uma linha vertical. Mas a ideia de criar outros centros, outras
articulações, outras ideias de apoio. As terapias corporais na década de 70 também foram um
boom, que mudaram conceitos nas formas de trabalhar com o corpo. (...) Angel no seu processo
de composição coreográfica selecionava materiais propostos pelos bailarinos, mas não deixava
a coisa engessada. (...) Aproveitava o que o grupo tinha para dar. (...) Queria fazer junto. (...) E

22
Professora Doutora, ex-vice diretora da FAV, onde atualmente leciona História da dança.
76

também se mostrava disponível para intervir nas coreografias mesmo depois de prontas.
(depoimento em DVD, produzido por alunos da FAV).

Nas palavras de Bernardes é possível, mais uma vez, constatar a relação entre dança e
Preparação Corporal. Podemos discriminar procedimentos metodológicos do trabalho de
Angel Vianna que, transformando os fundamentos da técnica clássica e inserindo referências
anatômicas em suas aulas, criou um caminho particular para trabalhar com atores. A
Conscientização do Movimento agrega em suas práticas informações de grande precisão
anatômica (nome de ossos, vetores de força, eixos articulares), ao mesmo tempo em que
trabalha com estímulos lúdicos que mobilizam a sensibilidade e a imaginação do ator.

Bernardes também aponta características da coreógrafa Angel Vianna, que foram


determinantes para seu trabalho como Preparadora Corporal. O trabalho coreográfico de
Vianna não se constituía pela imposição de um ideário estético a ser executado roboticamente
por seus bailarinos. O trabalho de composição coreográfica desta artista nascia de um diálogo
específico com cada um de seus colaboradores. A Preparação Corporal que se valida como
processo integrado à criação de espetáculos, deve também ser capaz de ouvir e dar voz aos
atores que pretende estimular.

Angel Vianna não elege um marco significativo que indique o amadurecimento de seu
trabalho como Preparadora Corporal. Ela aponta alguns espetáculos e diretores que teriam, ao
longo de anos, contribuído para que pudesse constituir um trabalho pessoal nesta área. Sua
passagem pelo Teatro Ipanema e pelo Teatro dos Quatro, ambos no Rio de Janeiro, contribuiu
para a criação de trabalhos importantes que aperfeiçoaram suas metodologias voltadas para
atores. A parceria com diretores como Luiz Carlos Ripper, Sérgio Britto e Paulo Mamede, na
opinião de Vianna, renderam trabalhos de grande entrosamento e qualidade.

Dentre os muitos trabalhos desenvolvidos por Angel Vianna, destaquei três exemplos
que refletem momentos importantes no desenvolvimento de seu trabalho com atores, pois ela
própria os considera espetáculos bem sucedidos e marcantes em sua trajetória como
Preparadora Corporal. Os espetáculos escolhidos são: A Rosa tatuada, Imaculada e O
casamento branco.
77

2.3.2 A Rosa tatuada

A Rosa tatuada, texto de Tennenssee Williams, com direção de Luiz Carlos Ripper foi
montado no Teatro Glória, na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1985. Angel Vianna
primeiramente havia sido convidada para fazer a Preparação Corporal do elenco, mas, como
uma das atrizes não pôde estar presente desde o início dos ensaios, Ripper decidiu que a
própria Angel Vianna faria o papel. A personagem era uma das vizinhas de Rosa
(protagonista vivida pela atriz Norma Bengell), e tinha apenas uma fala no texto original, que
Ripper e Vianna decidiram suprimir. A preparadora-atriz afirma que nos primeiros ensaios
chegou a trabalhar usando uma máscara de bode, possivelmente por indicação do diretor de
movimento Dácio Lima (1952-2002) 23, especialista neste trabalho, mas que com o avançar do
processo foi deixada de lado.

Nesse espetáculo, Angel Vianna experimentou, no calor da cena, muitos elementos de


seu próprio trabalho como professora de dança. Ela destaca o estudo feito sobre a dimensão
vertical, sentindo suas “raízes” além dos pés, adentrando o chão, e o topo de sua cabeça
projetado para o céu. A partir do momento que este eixo se fazia claro, ela podia buscar
formas instáveis de equilíbrio, abandonando e retomando a relação com a verticalidade. A
partir da dimensão vertical ela pôde explorar a tridimensionalidade de seus movimentos, e a
projeção dos mesmos em direção à plateia. Ela afirma que, através de uma intensa troca com
o espaço, pôde encontrar a força necessária, a fim de que seus movimentos ganhassem
dimensão teatral. Vianna também relata que pesquisou fortemente o sentido da audição.
Ficava na coxia, ouvindo o espetáculo, sentindo a pulsação do mesmo. Afirma que pela
audição era capaz de sentir as nuances do espetáculo, buscando apoio e motivação, por meio
desse sentido, para entrar em cena no tom adequado. (entrevista concedida ao autor – Anexo
A).

O gosto pela investigação, que orienta a pedagogia de Angel Vianna, estava em cena
com ela, enquanto atuava como atriz. Ela fez de A Rosa tatuada uma oportunidade para
aprofundar seu entendimento sobre a fisiologia do ator. Nas metodologias de Vianna os
sentidos são tratados como funções integradas. Ao valorizar a audição no trabalho de atuação,

23
Diretor de teatro, nascido no Maranhão. No início da década de oitenta, estudou com Jacques Lecoq e Philippe
Gaulier, na França. Em 1986, volta ao Brasil e forma um grupo, que em 1991 recebe o nome de “Companhia do
Gesto”.
78

ela nos dá um ótimo exemplo de como as funções do sistema óculo-vestibular acontecem de


modo integrado. Visão, ouvido interno e os receptores proprioceptivos são responsáveis pela
regulação tônica dos músculos do corpo e estão diretamente ligados às funções motoras.

A maneira como Vianna compôs seus movimentos nesse espetáculo transformou a


concepção espacial que havia sido concebida inicialmente pela direção. No início dos ensaios,
Ripper delimitou algumas áreas do palco que a atriz poderia explorar, pedindo que evitasse
outras. Ao longo do processo, apoiada no uso da visão, ela foi encontrando maneiras
surpreendentes de ocupar o espaço, inclusive as áreas que haviam sido desaconselhadas pela
direção. Explorou níveis variados do cenário, e o espaço entre palco e plateia, como volumes
que podiam ser interligados por meio da projeção consciente de gestos e movimentos. O
resultado desta “desobediência criativa” foi uma revisão, por parte da direção, da concepção
espacial do espetáculo. A crítica Tânia Brandão, na revista Fatos de 8/7/1985, considera
Angel Vianna “a chave mestra do espetáculo” (BRANDÃO, 1985: 52).

2.3.3 Imaculada

Imaculada, do jornalista italiano Franco Scaglia, monólogo encenado no Teatro dos


Quatro, na cidade do Rio de Janeiro, em 1986, teve direção de Paulo Mamede e atuação de
Yara Amaral. Imaculada conta a história de uma mulher que se casa várias vezes, pois seus
maridos morrem misteriosamente, e segundo Mamede a peça: “Fala sobre a mulher nos
diversos períodos de sua evolução, mostra diversas facetas do comportamento feminino que
através do relacionamento com sete maridos consegue se estruturar” (LOY, 1985: 9).

Segundo Angel Vianna, que assinou seu trabalho como Direção de Movimento, o
relacionamento com a direção e a única atriz foi muito positivo e produtivo. O caráter
obstinado da atriz solicitava, constantemente, as observações de Vianna, na busca de
aperfeiçoamento para todos os gestos e deslocamentos. A atriz estava só no espaço e as outras
personagens eram figuras imaginárias, com as quais ela deveria contracenar. Os ensaios
corriam bem, até que a atriz teve que enfrentar um problema: relacionar-se com um anão
imaginário (um dos maridos de Imaculada). O direcionamento do olhar de Yara Amaral não
conseguia dimensionar com precisão, no espaço, a presença e os deslocamentos do pequeno
homem. Esta dificuldade foi deixando atriz e direção, assim como a Preparadora Corporal,
79

extremamente insatisfeitos. Então Vianna trouxe para participar dos ensaios um dos alunos de
sua escola, que era anão, Carlos Eduardo Vianna Moraes. Talvez ela tenha percebido o
mesmo que foi indicado pelo crítico Flávio Marinho, na edição do Jornal O Globo, de 7/1/
1986: “Yara Amaral faz parte de uma geração de atores e atrizes que rende mais quando têm a
possibilidade de estabelecer uma troca de energias com outro ator em cena. Ou seja, quando
existe a possibilidade de contracenar” (MARINHO, 1986: 3). Imediatamente, uma diferença
foi percebida e os ensaios ganharam outra dimensão. Com o novo parceiro de cena, uma
figura real, a relação da atriz com o espaço, e seus movimentos, tornou-se mais precisa e
inventiva. A atriz ganhou segurança para improvisar e sentiu-se motivada para criar novas
marcações para a cena-problema. A presença de outro corpo em cena modificou o modo de
Yara Amaral trabalhar a própria percepção e sua atenção no espaço.

Essa cena destacou-se no espetáculo, sendo comentada pelo crítico Marcos Ribas de
Farias, que valorizou especificamente a direção de movimento: “No episódio do anão-
barítono, o tom do delírio e da loucura é mais completo (e do forte elemento de sexualização),
quase perfeitamente assimilado pela direção de Paulo Mamede” (FARIAS, 1986: 3).

Ao mesmo tempo que se confessa ao público, ela comenta suas reações, desfecha comentários
ferinos, dialoga com seres invisíveis. Imita outras personagens. Não há pausa nem economia,
tudo é excessivo, redundante. Daí a opção de Yara por um trabalho posado, teatral, onde o
ótimo trabalho de expressão corporal orientado por Angel Vianna torna a marcação quase
milimétrica (SEM PAUSA, 1986: 51).

Angel Vianna conta que no espetáculo Imaculada, onde trabalhou intimamente com a
atriz Yara Amaral, pôde fazê-la usar de várias maneiras um único baú (a memória de
Imaculada). Deste lugar, Imaculada tirava suas “lembranças”, sendo necessário que a atriz
encontrasse a maneira exata de tratar cada um dos objetos que tirava do baú, para que eles
ganhassem sentido e dimensão teatral. Para conseguir isto, a Preparadora Corporal trabalhou
inúmeras formas de mobilização articular. Pediu que a atriz explorasse as articulações
caminhando, sentando, deitando, e também se relacionando com o baú. Angel Vianna
considera que Yara Amaral foi uma das atrizes que melhor entenderam seu trabalho. Constata
que ela compreendia perfeitamente o sentido da projeção de um gesto, que, segundo Vianna,
segue os mesmos princípios da projeção vocal (Anexo A). Na concepção de Angel Vianna, a
atriz sabia envolver o espaço cênico por meio de seus movimentos, controlando com maestria
gestos, posturas e deslocamentos.
80

O casamento branco

O casamento branco, de Tadeuz Rosewics, com direção de Sérgio Britto estreou no


Teatro II do CCBB, em 1990. Nesse trabalho a Preparação Corporal contava com dois
assistentes, Joice Niskier e Alexandre Bhering, que, em alternância com a própria Angel
Vianna, davam aulas para o elenco. A base do trabalho foi a Conscientização do Movimento,
sensibilizando os atores e desenvolvendo a integração do elenco.

Pelo fato do diretor estar trabalhando em duas cidades simultaneamente, a condução


dos ensaios muitas vezes esteve, exclusivamente, nas mãos da Preparadora Corporal e seus
assistentes. Se, nesse espetáculo, os fundamentos da Preparação Corporal de Vianna
mantiveram-se fiéis aos princípios da Conscientização do Movimento, é possível assinalar
que os Jogos Corporais assumiram um papel de destaque. O texto de Rosewics apresenta
características expressionistas, exigindo do elenco uma atitude física específica. As
personagens são portadoras de delírios e obsessões, e debatem-se com desejos reprimidos. A
sua sexualidade apresenta-se de modo distorcido, por meio de taras e perversões.

A Preparadora diz ter trabalhado a gestualidade de seus atores, estimulando de modo


lúdico o uso do espaço. Através de corridas, mudanças de direção e níveis, foi encontrando
junto com o elenco uma atitude física específica. Em vários momentos sugeria que os atores,
no desenvolvimento de suas ações, projetassem mais seus gestos, assim como o olhar. Pedia
que tentassem alcançar mais longe no espaço, usando partes variadas do corpo.

A composição de uma estética expressionista não é um processo fácil, pois muitos


atores têm forte tendência de correr para a forma, e esquecem-se do percurso que a faz
emergir. Em trabalhos como esse, a utilização de estímulos visuais fortes (pinturas,
fotografias, esculturas) podem ajudar o elenco a encontrar uma corporeidade específica (no
terceiro capítulo darei exemplos de improvisos a partir de colagens). O corpo do ator, dotado
de bom tônus (equilibrado), é capaz de processar criativamente estímulos externos como
fontes que engendram novos modos de organização em cena. Se a escuta do ator está presente
na composição de um gesto, ele ao mesmo tempo faz e se deixa fazer por esta ação. Em O
casamento branco, o desenho corporal do elenco extrapolou os limites da movimentação
cotidiana.
81

Angel Vianna conta que na cena do piquenique, pôde pôr em prática muitos dos
trabalhos que chama de Jogos Corporais (Anexo C, cena:3).

Neste trabalho, através do relacionamento corporal entre um ou mais atores, vão aparecendo
situações que levam a descoberta de posturas, movimentos e equilíbrios jamais pensados, face
à estimulação dada pelo companheiro, estimulando a criação através do autoconhecimento.
(RAMOS in SALDANHA, 2009: 72).

Os Jogos apresentam-se como característica marcante do trabalho de Angel Vianna. A


pesquisa de movimento é determinante na Conscientização do Movimento, a fim de que o
corpo possa experimentar, através do desenvolvimento de suas capacidades motoras, uma
expansão multidimensional no mundo.
82

CAPÍTULO 3 – GOTA D’ÁGUA: UM ESTUDO DE CASO

Desde 1995, trabalho como professor da CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), onde
leciono a disciplina Corpo e Movimento. O curso profissional desse estabelecimento é
organizado em quatro períodos, precedidos de um módulo preparatório e complementados por
uma prática de montagem final. No segundo período, os alunos fazem sua primeira montagem
aberta ao público. Como docente desse estabelecimento, de acordo com as necessidades da
coordenação, posso assumir a matéria acima citada em qualquer um dos períodos.

Por mais de quinze anos de trabalho, como professor de Corpo, tive a oportunidade de
acompanhar inúmeras montagens, onde textos importantes da dramaturgia nacional e
estrangeira foram encenados pelos professores de Interpretação. Um dos textos que tive a
oportunidade de trabalhar, mais de uma vez, nesse contexto escolar, foi Gota d’água, de
Chico Buarque e Paulo Pontes, escrito em 1974, que teve uma estreia histórica na cidade do
Rio de Janeiro em 1975 (Anexo B). Essa montagem estreou no Teatro Tereza Raquel e teve
como protagonistas a atriz Bibi Ferreira e o ator Roberto Bonfim. A peça foi escrita em verso,
oferecendo beleza literária e funcionalidade dramatúrgica, como afirma Paulo Pontes:
“Escrevemos a peça em versos, intensificando poeticamente um diálogo que podia ser
realista, um pouco porque a poesia exprime melhor a densidade dos sentimentos que move os
personagens, mas queremos, sobretudo, com os versos, tentar valorizar a palavra” (Paulo
Pontes in programa de Gota d’água). O crítico de teatro Yan Michalski considerou a peça um
“belo sopro de inspiração artística e clareza ideológica” (MICHALSKI, 1976: 2). As
qualidades apontadas por Michalski são características presentes no texto, que traça um perfil
político-econômico do Brasil de então, e é também dotado de qualidade dramatúrgica.

Gota d’água foi escrita a quatro mãos, pois Paulo Pontes elaborava os diálogos, que
eram versificados por Chico Buarque. Pontes relata que a preocupação de ambos era: 1)
Apresentar uma experiência capitalista predatória; 2) Questionar o sumiço do povo da
produção cultural brasileira de então; 3) Valorizar a palavra como parte importante do
fenômeno teatral (Paulo Pontes in programa de Gota d’água). Três objetivos de extrema
relevância, principalmente quando lembramos que nesse período o Brasil atravessava uma
fase de grande censura política. Escolherei refletir sobre o terceiro objetivo enumerado pelo
autor, pois o modo de apresentação da palavra no jogo teatral está intimamente relacionado ao
tema central desta pesquisa: a Preparação Corporal de atores.
83

Pontes e Buarque fazem uma transposição da tragédia de Eurípedes (Medeia 431 A.C.)
para o Brasil dos anos 70. O texto grego narra o mito de Medeia, mulher bárbara, por não ser
grega, dotada de poderes mágicos. Ela conhece Jasão em Corinto e, movida por enorme
paixão, casa-se com ele. Eles voltam para a Grécia, e Jasão a abandona. Como vingança,
humilhada, ela mata os dois filhos que teve com ele. A peça, de Pontes e Buarque, é
ambientada em um conjunto habitacional carioca, durante um momento considerado de
grande crescimento econômico e forte especulação imobiliária, época do chamado milagre
brasileiro (1969-1973), que coincide com o governo Médici. Na Vila do Meio Dia, nome do
conjunto habitacional onde a narrativa é situada, acompanhamos não somente a dificuldade de
seus moradores pagarem a prestação da casa própria, mas também o drama passional de Joana
e Jasão. Quando o espetáculo começa Joana acaba de ser abandonada por Jasão, que está se
relacionando com Alma, filha de Creonte, proprietário do conjunto acima citado.

Assim como a tragédia de Eurípedes, Gota d’água possui grande complexidade, pois
além de ser escrita em versos, apresenta vários números musicais, exigindo de seus atores
maturidade artística e humana. Medeia e Joana são heroínas que lutam contra injustiças. Joana
representa, através de seu drama pessoal, a voz de uma coletividade, esmagada por uma classe
superior e, assim como Medeia, estabelece relações com forças sobrenaturais. Na tragédia de
Eurípedes, Medeia é uma maga, enquanto em Gota d’água, Joana não hesita em recorrer à
macumba para tentar destruir a felicidade de Jasão e Alma, sem contudo obter êxito nessa
empreitada.

Diante de tamanho desafio, mesmo elencos profissionais, afiados artística e


tecnicamente, sentem-se inseguros. Como desenvolver estratégias que pudessem despertar a
justa atitude física de meus alunos-atores? Entre as muitas limitações que enfrentamos para
montar um texto como Gota d’água num contexto escolar, a exiguidade de tempo talvez seja
a maior delas. Muitas vezes essas montagens são feitas em dois meses, um prazo que seria
curto até mesmo para o mercado profissional. Num contexto escolar, esse tempo faz-se ainda
mais reduzido, pois boa parte dele deve ser investida na resolução de problemas pedagógicos.
A rapidez com a qual devemos trabalhar para darmos conta de todos os prazos nos faz
concluir estes exercícios de montagem com a sensação que muito ficou por ser feito e que um
reencontro com o texto seria enriquecedor. Todavia, se a falta de tempo é um problema do
contexto escolar, temos aí mais oportunidade para a montagem de textos como Gota d’água,
que exigem elencos numerosos e condições de produção que atualmente o nosso mercado
profissional não favorece.
84

Como professor de Corpo e Preparador Corporal, participei de duas montagens de


Gota d’água. Em cada uma delas fui solicitado de modo particular. A primeira teve direção de
Antônio de Bonis1 (2005) e a segunda foi dirigida por Nancy Galvão2 (2009). Essas duas
encenações de Gota d’água possuíam concepções bastante distintas. A encenação de De
Bonis foi feita em palco italiano, reforçando a frontalidade do espetáculo, afastando-o de uma
abordagem realista. Isto exigia controle e precisão dos alunos, pois numa mesma cena eles
poderiam contracenar diretamente com seus colegas e falar com o público, transformando a
plateia também em personagem. Na montagem de Nancy Galvão o público era acomodado
nas laterais do espaço, envolvendo a cena, criando assim maior intimidade entre palco e
plateia. A proxêmica dos dois espetáculos apresentava características próprias, solicitando dos
elencos procedimentos distintos. Se o espetáculo de De Bonis demandava gestos amplos e
deslocamentos entre pontos distantes no espaço, a montagem de Galvão investiu numa
gestualidade mais contida, restringindo também a movimentação dos atores, pois tudo
acontecia muito próximo ao público. Mas independente da amplitude dos gestos e da
quantidade de deslocamentos, a mobilização energética3 dos atores deveria ser grande nas
duas montagens.

Uma pista sobre a atitude física a ser conquistada pelos atores, na construção das
personagens de Gota d’água, nos é oferecida tanto pelo autor Paulo Pontes, quanto pelo
crítico Yan Michalski, ao enfatizarem os aspectos poéticos do texto. Pontes fala de um
diálogo que poderia ser realista, mas apresenta-se intensificado pela poesia versificada.

Como Preparador Corporal, a partir dessa indicação penso na composição de um jogo


cênico capaz de revelar a verdade das situações propostas no texto, sem me deixar limitar por
uma abordagem realista das mesmas. Considero a possibilidade do ator também ser poeta,
construindo uma presença cênica multidimensional. A multidimensionalidade abarca
paradoxos, e revela que a realidade possui extratos que na maior parte do tempo não
conseguimos perceber. Segundo Morin, “o poeta possui uma competência total,
multidimensional” (MORIN, 2008: 39). Isso também é uma verdade para o ator. Da mesma
forma que o filósofo francês afirma que a poesia não se deve deixar aprisionar pelo poema, o
ator deve estimular uma pluralidade de leituras através de suas ações, pois “a fantasia, a
imaginação e o mito são realidades humanas fundamentais” (MORIN, 2004: 10).

1
Ator, diretor de teatro, professor de interpretação da CAL. Dirigiu inúmeros musicais, entre eles Dolores
(1999/2000), que contava a vida da cantora Dolores Duran.
2
Atriz, diretora de teatro, professora de interpretação da CAL.
3
Empenho com grande desgaste físico e emocional.
85

O embate entre texto escrito e a escritura corporal dos atores foi um obstáculo com o
qual nos deparamos. Quando Pontes fala sobre densidade de sentimentos e valorização da
palavra, está, de fato, dando uma pista para direção, elenco e Preparação Corporal. Está
dizendo que compreensão lógica e disponibilidade afetiva deverão estar presentes em cena,
amplificados pela consciência do jogo teatral como artifício. Diante da afirmação do autor,
não faria sentido transformar Gota d’água num drama sentimental. Como em várias tragédias
gregas, a peça expõe um drama humano, que deve ser avaliado criticamente por uma
coletividade. Eurípedes escreveu Medeia expondo um mito à reflexão. Joana, através de sua
revolta e ato criminoso, deve também ser capaz de instigar o espírito do público (mais uma
vez uso aqui o termo espírito no sentido moriniano: atividade mental). Afinal, na vida e no
palco, nossa dimensão racional não exclui a dimensão afetiva e vice-versa. Edgar Morin,
citando Antonio Damásio, explica:

Damásio chega a escrever que ‘existe uma paixão fundando a razão; e para certos aspectos, a
capacidade de emoção é indispensável à prática de comportamentos racionais’. Acrescenta que
a faculdade de raciocinar pode ser diminuída, até mesmo destruída, por um déficit de emoção,
e que o enfraquecimento da capacidade de reagir emotivamente pode ser a fonte de
comportamentos irracionais. (MORIN, 2007: 120).

Paixão e inteligência racional devem constituir o jogo interpretativo de Gota d’água, a


fim de que a dimensão humana desse texto possa ser revelada. Sentimentos mais densos,
concentrados no espaço-tempo da cena, exigem clareza e controle. Clareza, para o
entendimento dos temas fundamentais que estão sendo abordados. Controle, para que seja
possível, através de recursos técnicos, a transposição teatral do entendimento que se teve da
obra.

Para atores ainda em formação, o sentido de construção em seus trabalhos, ainda não
foi totalmente apreendido. A verdade do comportamento cênico, para a maioria deles, está
baseada em procedimentos miméticos, que tentam “importar” a vida para o palco, tal como
ela é. No teatro, um gesto estabelece relações com o espaço-tempo, completamente diferentes
daquelas que experimentamos na vida. A passagem do movimento cotidiano à cena constitui
um processo complexo de transposição, que se dá de múltiplas maneiras. As adaptações
decorrentes desse processo muitas vezes podem ser desconfortáveis para atores em formação.

Começo esclarecendo alguns pontos relevantes sobre o trabalho que realizei na


montagem que teve direção de Antonio De Bonis. Nesse trabalho, a equipe de professores
teve sorte de contar com um grupo de atores em formação dotado de grande musicalidade,
qualidade que tornou essa empreitada possível mesmo no âmbito escolar.
86

3.1 A primeira Gota d’água

Quando inicio um trabalho, tento me fazer disponível para perceber as demandas do


projeto e os códigos que poderão ser criados, a partir de uma troca efetiva com toda a equipe
de criação. Na Gota d’água de De Bonis, o processo de ensaios propiciou importantes
reflexões. Dentre elas, uma vez que os alunos interpretaram, cantaram e dançaram, que corpo
e voz não são instâncias cindidas no trabalho do ator.

No mundo ocidental, o teatro é situado como arte da cena, em oposição à dança como arte
corporal; uma separação que mostra a dança como arte do corpo e do movimento, ao passo que
o teatro permanece arte da palavra. (...) Contudo sabe-se que a gênese da arte do ator e do
bailarino provém do mesmo culto dionisíaco. (...) A dança, como o teatro, realiza-se pela
expressão visível do movimento. Ambos são acontecimentos reais, na medida em que
envolvem ações concretas de corpos reais, revestidos de uma semântica rítmica de imagens
moventes, com suas diferenças apenas na concentração em ritmos e formas definidos pelo
movimento em relação ao objetivo cênico. (SÁNCHEZ, 2010: 23).

A partir de uma prática extremamente desafiadora, ampliamos nossa compreensão


sobre o sentido da ação cênica. Este fenômeno envolve não somente procedimentos físicos,
mas constitui-se como um complexo expressivo que compreende múltiplas dimensões, tais
como corpo, voz e pensamento.

Durante os ensaios com De Bonis, em muitos momentos, pude perceber o excesso de


gestos e deslocamentos que minimizavam a intensidade das ações dos alunos-atores, que
perdiam força por abusarem de movimentos triviais. A atuação mostrava-se, na maior parte
dos casos, fragmentada, perdendo a dimensão teatral exigida pelo espetáculo. Jacques
Lassalle nos esclarece muito sobre o processo de depuração gestual do ator, quando
estabelece relação entre linguagem oral e escrita.

Os gestos dos quais estamos falando são os gestos apurados, escrupulosamente analisados,
desconstruídos e depois reconstruídos a fim de preservar somente o essencial. Pode-se
encontrar o mesmo processo na operação de passagem do oral para o escrito. Quando
queremos preservar no escrito alguma coisa do falado, tudo que estiver na categoria do
aproximativo, da onomatopéia, das inflexões, de suspensões da frase falada, deve ser escolhido
e reconstruído. (LASSALLE e RIVIÈRE, 2010: 54).

Baseados nas palavras de Lassalle, podemos constatar que o processo de construção


do ator exige grande precisão, a fim de que “ruídos” indesejados sejam suprimidos. Não estou
absolutamente afirmando que a composição física de um ator não possa conjugar gestos e
movimentos cotidianos com outros estilizados. Isso pode acontecer, principalmente no âmbito
do teatro atual, campo aberto a múltiplas experiências. Mas se isso acontece, deve ser feito
como opção consciente, orientada pelo projeto estético do espetáculo, pois mesmo os
87

movimentos que, na cena, parecem com aqueles que encontramos no dia a dia, precisam ser
construídos, integrando o pensamento global da encenação.

Muitas vezes, alguns alunos-atores criavam uma rigidez excessiva para controlar seus
corpos, objetivando valorizar o sentido do texto. Um ator pode parar em cena, sem que isso
seja sinônimo de rigidez, quando sentimos que seu imaginário está em movimento. Uma
pausa que está plena de imaginação é muito diferente de outra excessivamente rígida,
monótona, que deixa de produzir sentido. Quando tive a oportunidade de assistir ao monólogo
Orlando (Anexo B), com direção de Bob Wilson e atuação de Isabelle Huppert, pude observar
que a atriz sustentava grandes tempos de imobilidade na cena, mas não estava absolutamente
rígida. Era possível constatar uma supressão dos movimentos do corpo, mas que a experiência
sensível da atriz não havia sido interrompida, e que isto fazia parte do projeto estético do
espetáculo, estimulando de modo particular a recepção do público. A rigidez muscular
implica em subutilização dos sentidos, crispando a musculatura, limitando a mobilização
articular. Evidentemente existem muitos níveis de tensão muscular e muitos modos de
abordarmos essas resistências. Dentre as estratégias possíveis, o trabalho com micro-
movimentos mostra-se muito eficaz, pois situa o ator em relação a seu espaço pessoal,
renovando seu interesse pelo movimento. Quando um ator está crispado em cena, o que
acontece no corpo tem um correspondente mental, indicando também uma relação pouco
flexível com a imaginação.

Seguidamente constato que, estabelecendo pontes entre os estudos que fazemos (em
sala de aula) com os micro-movimentos e os ensaios de meus alunos, eles compreendem que
pequenas mudanças físicas em cena podem atualizar consideravelmente o interesse pela ação,
se executadas conscientemente. A sensibilização da visão e do tato pode ajudar a equilibrar a
tonicidade muscular, fazendo com que o ator consiga fluir com maior liberdade através de
suas ações. Mas isso para atores em formação não é uma coisa evidente.

Na montagem de De Bonis, tive uma participação mais vinculada à construção do


espetáculo, pensando junto com a direção algumas questões fundamentais relacionadas ao
espaço cênico. Lembro-me que, numa das primeiras conversas que tive com o diretor, ele me
revelou seu interesse em fazer um espetáculo que tivesse uma linguagem de teatro-dança.
Afirmou que não desejava fazer um trabalho com coreografias “dançadas”, nos moldes dos
musicais americanos, mas construir movimentações vinculadas ao sentido dramático do texto,
expressando com clareza os conflitos da peça. O primeiro problema estava posto. O que De
88

Bonis entendia por teatro-dança? Quais as referências desse diretor, para fazer uma solicitação
desse tipo? Kurt Joss, Pina Bausch, Josef Nadj, Mary Wigman são as primeiras referências
que me ocorrem ao ouvir a expressão teatro-dança. Minha formação com a Mímica Corporal
Dramática também é uma referência, quando trabalho nessa interface entre a dança e o teatro.
O teatro-dança, como mencionado no segundo capítulo deste trabalho, no exemplo do diretor
Eric Lacascade, é uma fonte de inspiração para a Preparação Corporal, pois problematiza os
limites mecânicos e expressivos do corpo. Diante da solicitação de De Bonis, considerei a
construção de frases gestuais (onde o material utilizado fosse constituído por gestos
cotidianos), assim como formas de espacialização para o texto.

Minha primeira intervenção no espetáculo foi identificar os ambientes de ação


apresentados no texto, para esclarecer a narrativa e os deslocamentos no espaço-tempo. Achei
conveniente distinguir o espaço do bar, a oficina de mestre Egeu, e a casa de Creonte do
espaço externo em que acontecem algumas cenas da peça. Fiz também uma proposta de criar
um lugar para o coro das vizinhas (análogo ao coro grego) que serviria de referência estável
para os movimentos das atrizes, que executavam muitos deslocamentos em cena. Essa
proposta de organização espacial foi bem recebida pela direção e, pouco a pouco, revelou sua
eficácia ao longo dos ensaios. Meu objetivo com essa indicação não era demarcar territórios
rigidamente, mas criar referências no espaço para que a narrativa pudesse ser construída com
clareza. Os atores poderiam usar todas as áreas do palco, uma vez que deixássemos claro o
ambiente de ação onde as cenas estavam acontecendo. Uma vez que todos os lugares que
aparecem no texto estavam demarcados no espaço, foi possível trabalhar com maior
desenvoltura a movimentação dos alunos-atores, sem comprometer o sentido da narrativa.

Conforme os ensaios avançavam, pude aproveitar propostas de gestos e deslocamentos


feitos pelas atrizes do coro. O movimento de uma muitas vezes mostrava-se dramaticamente
eficiente, podendo ser compartilhado por todas. A movimentação do coro foi sendo construída
em íntima relação com o texto. O coro desse espetáculo, guardando analogias com a tragédia
grega, possuía também a figura do corifeu. Esse papel foi assumido, em vários momentos do
espetáculo, por Corina, melhor amiga de Joana, que narrava e comentava a ação. Em outros
momentos, a função de corifeu foi assumida por outras atrizes do coro (Anexo C, cena: 4). A
partir de uma escuta atenta dos diálogos, fomos construindo uma movimentação que
extrapolava o realismo. Criamos movimentos dilatados, que expressavam poeticamente
estados emocionais presentes no texto. “A dilatação (dos gestos) não está relacionada apenas
89

a uma necessidade teatral. Paradoxalmente, ela serve à revelação de uma verdade


ordinariamente escondida” (BENHAIM in PEZIN, 2003: 313, tradução livre do autor) 4.

Algumas referências foram importantes para a construção desse coro feminino. A


primeira delas foi o coro de Agamênom, de Ésquilo (Anexo C, cena: 5), com encenação de
Peter Stein, no teatro Schaubhüne, em Berlim. Meu contato com a encenação de Stein se deu
por meio de vídeo, que minimizava a teatralidade do espetáculo em questão. Apesar da mídia,
pude constatar a imensa força que emanava do trabalho de conjunto realizado pelo coro de
atores. Era um coro masculino, que se movimentava e falava com extrema precisão, onde os
atores estavam conectados com o sentido de suas ações e irmanados por uma qualidade
musical que ligava a todos. Os atores não estavam preocupados em imitar seus colegas de
elenco, mas tentavam percebê-los integralmente. Apoiados por partituras (física e vocal)
precisas, cada um encontrava seu modo particular de fortalecer o coro, e a totalidade do
espetáculo. O trabalho de Stein serviu-me como fonte de inspiração para mobilizar atrizes que
deveriam trabalhar em conjunto, sem necessariamente executarem ações em uníssono.

Aqui encontro motivação para refletir sobre uma questão relevante. O que significa
imitar? Existem maneiras mais ou menos produtivas de se fazer isso? Anteriormente, citei a
diretora francesa Ariane Mnouchkine trabalhando com um casal de atores, fazendo a mesma
personagem, usando um para dar referências de “como fazer” para o outro. A diretora não
estava propondo uma mímese vazia (simplória), mas a compreensão de uma atividade
complexa, que inclui em si os meios que levam a um resultado.

A imitação é um dom maravilhoso, porém é específico, e mesmo quando se trata de um ator, o


seu dom de imitação não tem nada a ver, exatamente com a arte do ator. (...) O ator, ele
mesmo, não imita a realidade, ele a reconstrói. A partir de elementos da observação, ele
inventa uma figura nova, para a qual toma emprestados diversos modelos, condensa-os, e os
transcende todos. (LASSALLE e RIVIÈRE, 2010: 50/51).

Quanto ao coro da tragédia de Stein, julgo especialmente tocante a disponibilidade de


grandes atores não se fazerem notar, reconhecendo e aceitando que, no papel de coro, devem
valorizar uma função coletiva dentro do espetáculo. Atores que tive a oportunidade de ver
(também em vídeo) em outra produção do Schaubhüne, As três irmãs, de Tchécov, com
direção do mesmo Peter Stein. Profissionais que investiam o próprio talento para fazer o coro
trágico funcionar, como num coro musical, onde é aconselhável que não exista destaque entre
as vozes dos participantes, quebrando a harmonia do conjunto.

4
L’agrandissement ne répond pas seulemente à une necessite théâtrale. Paradoxalment, il sert à la révélation
d’une vérité ordinairement cachée.
90

Outra referência importante, que assumi no processo de construção do coro, em minha


primeira montagem de Gota d’água, foi o trabalho que desenvolvi com a Companhia de
Mímica Moderna, “Théâtre de L’Ange Fou”. Nesta companhia, tive a oportunidade de atuar
em dois espetáculos, onde a força do coletivo era de extrema relevância. O primeiro foi Le
petit dictateur, o outro L´homme qui voulait rester debout, ambos com direção de Steven
Wasson. O gênero de teatro desenvolvido por essa companhia é herdeiro de uma linhagem
vinculada ao chamado Teatro Físico. Treinados segundo a técnica e ensinamentos de Étienne
Decroux, realizávamos sempre espetáculos de extrema precisão e vigor físico. No espetáculo
Le petit dictateur, os atores tinham movimentos coreografados, sincronizados ou não, e a
força do coletivo era determinante. Movimentos de grupos, em cena, podem ser orquestrados
de muitas maneiras: sincronizados, em canon, de forma complementar. A habilidade de
coordenar bem as massas em cena, Wasson pôde aprimorar trabalhando sobre as peças de
movimento, criadas por seu mestre Decroux. Minha segunda experiência na companhia
“Théâtre de L’Ange Fou” foi com o espetáculo L’homme qui voulait rester debout, onde os
movimentos de grupo também eram marcantes. Nesse espetáculo, uma reconstituição de parte
do repertório clássico da Mímica Corporal Dramática, tive a oportunidade de participar de
duas peças importantes que constituem este legado, As árvores (Les arbres- 1936, Anexo C,
cena: 6) e A Fábrica (L’usine- 1939/40, Anexo C, cena: 7).

Parece-me de extrema importância valorizar esses exemplos em que a força do


coletivo transparece de forma mais evidente no jogo teatral, onde atores desenvolvem suas
capacidades perceptivas e estabelecem um tipo de conexão que exalta a comunicação não-
verbal. Como artista-pedagogo considero que esses exemplos evidenciam um grau de
comunhão superior entre atores, solicitando generosidade e valorizando a força do coletivo,
fundamento da arte teatral. Essa habilidade muitas vezes não é reconhecida por jovens atores
em formação, que precisam de papéis com muitas falas, como se as palavras fossem garantia
para legitimar a presença cênica do ator. A participação coletiva muitas vezes é considerada
uma coisa menor, e vários alunos-atores deixam de colocar a devida intensidade e
comprometimento em trabalhos desse tipo.

Como era Preparador e professor de Corpo da turma, várias vezes De Bonis assistiu às
minhas aulas, que já eram uma Preparação (não apenas um aquecimento) e também um
espaço de reflexão e discussão sobre os conteúdos do espetáculo. Nessas aulas, dedicávamos
uma parte do trabalho à sensibilização corporal, assim como também fazíamos variados jogos
de integração (como aqueles que foram apontados no segundo capítulo). Trabalhamos
91

variados deslocamentos, pausas, mudanças de direções e níveis no espaço. O olhar também


era trabalhado. Por exemplo, os alunos formavam duplas e andavam lado a lado, sem estarem
se olhando diretamente, variando o ritmo dos deslocamentos sem perder a proximidade em
relação ao colega. Podiam também explorar movimentações mantendo o contato visual, frente
a frente, variando a distância entre os corpos, ocupando o espaço de variadas maneiras. No
espetáculo, utilizamos muitas trajetórias retilíneas e mudanças de direção, feitas de maneira
abrupta, e isso exigia uma grande consciência espacial e bom direcionamento do olhar por
parte do elenco. Muitos dos exercícios que fazíamos nas aulas que precediam os ensaios
foram levados para o espetáculo. Em várias cenas, foi possível utilizar as mesmas linhas retas,
que formavam redes quadriculadas, servindo como trilhos e orientação para os deslocamentos
dos atores.

Ao elaborar as marcações do espetáculo, considerei que em vários momentos os


alunos-atores tinham que dançar, cantar e também tocar um instrumento (Anexo C, cena: 8).
Isto exigiu um planejamento cuidadoso, para que as coreografias não se tornassem uma
preocupação para o elenco e um peso para o espetáculo, comprometendo a fluência do
mesmo.

A direção musical foi feita por um dos professores de música da escola, Daniel
Belquer, que ensaiava separadamente com o elenco, e também acompanhava os ensaios. As
primeiras tentativas de coordenar música e movimento, na cena, não foram bem sucedidas.
Foi necessário um investimento grande de tempo para que pudéssemos organizar os
deslocamentos dos atores e a parte musical, fundamental no espetáculo. A palavra, como disse
anteriormente, tem grande força no texto de Pontes e Buarque, e isso pode ser percebido
também nas letras das canções. Em Gota d’água, as músicas compõem a narrativa e
propulsionam a ação dramática.

Logicamente, foi necessário que eu estudasse, individualmente, várias das canções do


espetáculo, a fim de conhecer e me familiarizar com seus compassos, andamentos e climas.
Enquanto escutava as canções, imagens iam surgindo e uma concepção espacial ia se
configurando. Todo esse trabalho individual estimulava um diálogo mais rico com o elenco
durante os ensaios, onde eu aperfeiçoava as sequências de movimentos e organizava os
deslocamentos do coletivo. “Em campo”, trocando com o grupo, pude constatar o que de fato
funcionava para o espetáculo, contribuindo para a elaboração de sua linguagem.
92

Os deslocamentos geometrizados que criávamos revelaram-se um contraponto para os


aspectos passionais contidos nesse drama, concebido a partir de uma tragédia grega. Ao
mesmo tempo em que as personagens de Gota d’água estão imersas em grandes paixões, o
espaço geometrizado constituía-se como um contraponto de racionalidade para os conflitos
apresentados. Conciliar, no desenho corporal dos atores a oposição/complementaridade entre
paixão e racionalidade, foi um estímulo para a Preparação Corporal. Lembrei-me de Étienne
Decroux, que, na criação da Mímica Corporal Dramática, valorizou as linhas retas, mas não
deixou de considerar as linhas curvas. Segundo Decroux, devemos buscar o equilíbrio entre
linhas curvas e retas, entre natureza e as coisas do espírito, considerando espírito no sentido
moriniano, de atividade mental. Para o mímico francês, na natureza as coisas tendem a ser
redondas, inclusive as paixões. Enquanto o espírito seria, na visão de Decroux, o domínio do
quadrado. Considero as relações entre curvas e retas, círculos e quadrados, boas metáforas
para o entendimento do tipo de corporeidade que estimulei nos alunos-atores da montagem de
De Bonis, coordenando a força das paixões com o controle exigido por gestos e
deslocamentos precisos e bem desenhados.

A direção optou por escalar duas atrizes para o papel de Joana, não em alternância,
mas atuando juntas no espetáculo. Uma opção delicada, que precisava ser validada
cenicamente, de modo a levar o espectador a aceitar esta divisão como parte significativa do
espetáculo, e não apenas como estratégia pedagógica para aproveitar duas alunas-atrizes no
papel da protagonista. Joana é uma mulher “partida” pela dor do abandono. Vê seu
companheiro partir para viver com uma mulher mais jovem e rica. Em vários momentos do
texto ela oscila entre o descontrole e a ponderação, entre o amor, que ainda sente por Jasão, e
o ódio mortal, expressando seus sentimentos por meio da palavra falada e cantada. Em Gota
d’água, Joana canta canções de grande intensidade emocional, e isto exigia coordenação
precisa entre voz e corpo. Qualquer movimento desnecessário poderia funcionar como um
dispersor de energia, todavia um excesso de contenção poderia produzir rigidez. Junto com a
direção, procurei compor a movimentação das “Joanas”, de modo que o discurso corporal de
uma estivesse relacionado ao da outra, através de movimentos sincrônicos ou alternados.
Várias vezes elas se deslocaram ao mesmo tempo, com a mesma intenção, em outros
momentos, desenvolveram ações diferentes, com andamentos variados.

Na cena do reencontro entre Joana e Jasão, depois da separação, a possibilidade de


contar com duas Joanas foi teatralmente potente. A direção optou por dar uma intenção
particular a cada uma das Joanas. Enquanto uma mostrava-se dura, rejeitando todas as
93

tentativas de aproximação de Jasão, a outra deixava transparecer, por meio de afastamentos e


aproximações onde quase o tocava, que ainda o amava, e que no seu íntimo ainda guardava a
esperança de que ele pudesse voltar para ela (Anexo C, cena: 9). Nessa cena, parte do elenco
foi utilizada para criar a figura de um grande retângulo, onde acontecia o embate entre os
protagonistas. A encenação definiu com esta figura um espaço de intimidade, acirrando o
conflito entre Joana e Jasão. Conforme a relação entre eles ia ficando mais tensa, o retângulo
formado pelos atores ia se fechando, até que todos se concentravam em torno de Jasão,
deixando as duas Joanas de fora desse aglomerado. No momento em que Jasão agride Joana
fisicamente, o grupo de atores se espalhava pela cena e caía no chão. A agressão física sofrida
por Joana, depois de insultar Jasão verbalmente, era ampliada pelo movimento coletivo do
elenco, constituindo um momento de grande força poética.

O modo como a encenação trabalhou as transições entre grande parte das cenas do
espetáculo também merece registro. Muitas vezes, uma cena começava enquanto outra ainda
estava terminando. “Restos” de uma cena adentravam o espaço de outra. Como no exemplo
acima, na cena em que Jasão agride Joana. Depois de caírem, os atores permaneciam em cena,
aguardando a saída dos protagonistas, e quando levantavam já anunciavam a próxima cena
por meio de narrações. Nesses momentos de transição, foi importante coordenar de modo
preciso os deslocamentos dos atores, deixando clara a opção estética da encenação.

Hoje constato que minhas intervenções, na Gota d’água de De Bonis, foram, na sua
maioria, ligadas à encenação do espetáculo. Ao entender as propostas do diretor pude
contribuir para a construção de uma espacialidade funcional e poeticamente coerente. Os
modos de ocupar, recortar, verticalizar ou horizontalizar o espaço cênico estão diretamente
relacionados às ideias que orientam a encenação. A cena teatral constitui pensamento, da
mesma forma que as ações dos atores que ocupam esse espaço.

3.2 A segunda Gota d’água

Minha segunda experiência com Gota d’água teve características bem diferentes, pois
fundamentalmente não tive intervenção direta na concepção global da encenação. Esta
montagem foi dirigida por Nancy Galvão, e eu era professor de Corpo e Movimento do
elenco. Eu assisti a alguns poucos ensaios, e passei a desenvolver atividades, em minhas
94

aulas, coordenando conteúdos pedagógicos e o universo de Gota d’água. Esta era uma turma
de segundo período, onde costumo trabalhar em sala de aula com os esforços e as qualidades
de movimento, segundo o Sistema Laban5, em conexão com a Conscientização do
Movimento.

Esse estudo ampliou as possibilidades de movimento dos alunos, que foram capazes
de estabelecer relações desse material com os ensaios. Durante o período em que
pesquisávamos as oito Ações Básicas definidas por Laban, (aqui listadas por
contraste/oposição entre suas qualidades: socar X flutuar, açoitar X deslizar, pressionar X
espanar, torcer X pontuar), deixei claro que esse trabalho visa à ampliação das capacidades
motoras tanto quanto das sensíveis, expressivas e cognitivas. Enquanto trabalhávamos,
estimulava a percepção dos alunos, sugerindo que percebessem como sentiam as Ações
Básicas do Sistema Laban. Pedi que tentassem identificar maior afinidade com uma delas,
sem desconsiderar a possibilidade de trabalhar com a ação oposta. Durante as improvisações,
sugeri que os alunos explorassem, com seus movimentos, espaços próximos e distantes do
corpo, conscientizando diferentes círculos de atenção. Expliquei que esse trabalho de
movimento é capaz de revelar modos particulares de organização corporal e suas afinidades.

Aos poucos fui relacionando esse trabalho ao contexto da peça, pedindo que os alunos
percebessem entre as Ações Básicas, quais serviriam de estímulo, para pesquisar a
movimentação de suas personagens. Rapidamente, eles começaram a perceber relações entre
o material que estávamos trabalhando nas aulas e os ensaios que aconteciam paralelamente.

Na busca de estímulos para a criação de movimentos, várias vezes fizemos um jogo


para desenvolver a atenção e mobilizar o imaginário coletivo. Sentávamos em círculo e cada
aluno, a sua vez, deveria falar uma palavra inspirada pelo universo da peça. A partir do
momento que um aluno começava o jogo dizendo uma palavra, o colega a seu lado no círculo
deveria repetir esta palavra e dizer outra, que estivesse conectada sensivelmente à primeira. O
objetivo era criar uma sequência de palavras, que deveriam ser apreendidas pelas imagens
mentais que são capazes de sugerir. Não pretendia com esse trabalho exercitar apenas a
memória dos alunos, mas estimular o imaginário coletivo, a fim de que pudessem juntos

5
Sobre o assunto consultar: O Domínio do Movimento, de Rudolf Laban (Summus, 1978); Dicionário Laban, de
Lenira Rengel (Annablume, 2003) e Laban for Actors, de Jean Newlove (Routledge, 1995/1998).
95

adentrar sensivelmente o universo da peça, por meio de associações entre palavras e imagens
mentais. Quando digo imagem mental, não estou me referindo apenas às representações
mentais registradas em nosso sistema nervoso por meio da visão, mas me refiro a todos os
registros mentais que construímos por meio dos sentidos. Nesse jogo de associações, uma
palavra que é dita pode remeter a um cheiro, e o aluno que foi tomado por esta sensação
deverá expressar-se através de uma nova palavra. No encadeamento das palavras alternaram-
se algumas que estavam diretamente relacionadas com o universo da peça (sangue, dor,
traição), com outras que não estabeleciam uma conexão óbvia com este (sol, praia,
esperança). Era perceptível que os alunos tinham muita dificuldade de apreender as palavras
que eram ditas, por meio de imagens, dando a sensação de que estavam tentando resolver o
exercício unicamente de forma racional. Para realizar esse jogo é preciso escutar as palavras
que são ditas e deixar que elas ecoem na imaginação. É necessário tempo para que a
sensibilidade seja mobilizada. Quase nunca conseguíamos fechar o trabalho, pois os últimos
alunos apresentavam muita dificuldade para lembrar todas as palavras que haviam sido ditas
até então. Era possível notar quando uma palavra, aparentemente “fora do contexto” da peça,
mostrava-se totalmente integrada ao jogo de associações ou quando interrompia o caminho
sensível que vinha sendo construído pelo grupo. Esse jogo estimulou a escuta coletiva e o
imaginário dos alunos, fundamental para a composição de seus trabalhos. A cada aula, ao
retomar esse exercício, ele funcionava como um elemento agregador, desenvolvendo a
concentração de todos. Ao longo desse trabalho, criava-se uma narrativa comum, que nascia
do universo da peça e fazia com que o grupo ampliasse sua compreensão sobre o mesmo.
Nunca sabíamos onde a nova narrativa iria chegar, quais associações seriam feitas, e isso fazia
com que todos ficassem atentos. Quando jogávamos, o grupo ampliava sua
percepção/compreensão sobre a peça, mesmo que não chegasse a concluir o trabalho.
Idealmente, o jogo termina depois que cada membro do grupo fez sua contribuição e o último
aluno tem que criar uma história relacionando todas as palavras que foram ditas, em uma
única narrativa que faça sentido.

O jogo das palavras é complexo no sentido moriniano. É possível reconhecer que os


três princípios apresentados por Edgar Morin, para entendermos a complexidade, estão
presentes nesta atividade. Os princípios Dialógico, da Recursividade e Hologramático
acontecem neste jogo. Enquanto as palavras vão sendo encadeadas pelos jogadores, ordem e
desordem se alternam criando um sistema organizado. Organização no sentido complexo (ver
tetragrama, p. 38), pois, muitas vezes, o conjunto das palavras podia não apresentar-se de
96

modo lógico, segundo o contexto e as situações da peça, mas acabava por fazer sentido. Por
exemplo: em uma sequência de palavras evocando uma passagem violenta da peça, palavras
leves também eram ditas, estabelecendo contrapontos e criando novas possibilidades de
compreensão. Era perceptível que os alunos haviam interagido com o universo da peça,
enquanto faziam um trabalho de prospecção pessoal. A relação entre ordem e desordem, base
do princípio Dialógico, no jogo de associação de palavras, revelou paradoxos presentes nas
personagens de Gota d’água. Isso foi fundamental para o entendimento do conflito central
entre Joana e Jasão. A relação de ambos, no momento em que a peça começa, é constituída
por ódio e violência, mas não é possível desconsiderar o passado do casal. Se a raiva é a
emoção determinante para ambos no momento presente da peça, ela não pode ser encarada
como um bloco único. Esta emoção é multidimensional, possuindo nuances e contrastes.
Joana não é só raiva o tempo todo. Ela guarda lembranças dos tempos em que sua vida com
Jasão era cheia de esperança, amor e desejo. Jasão não está sendo apenas irônico e frio ao
minimizar os males de seus atos. Ele ainda se preocupa com a ex-mulher, apesar de tê-la
abandonado.

O princípio da Recursividade Organizacional também está presente nesse jogo, pois, à


medida que a narrativa vai sendo criada pelo encadeamento das palavras, essa mesma
narrativa modifica os jogadores, que, modificados, indicam novos rumos para o trabalho. Para
o ator é de fundamental importância reconhecer que, ao construir seu espaço de jogo, está
sendo modificado por este, pois alteramos e somos alterados pelo ambiente que nos envolve.

O princípio Hologramático também pôde ser observado. Cada palavra era um estímulo
para o pensamento e passava a fazer parte de uma estrutura maior, constituindo um imaginário
coletivo. Acredito poder utilizar o conceito de noosfera6, segundo Morin, para descrever esse
espaço criado pelo imaginário dos alunos. Isto é, uma esfera de ideias e espíritos que emana
de grupos humanos, modificando e sendo modificada por seus elementos.

O jogo de encadeamento das palavras evidencia que o conhecimento é um produto


coletivo. “Um ato cognitivo individual é, ipso facto, um fenômeno cultural, e todo elemento
cultural coletivo atualiza-se em um ato cognitivo individual” (MORIN, 2005: 24). Nenhum
aluno pode jogar ou solucionar o jogo sozinho, esse não é o objetivo pretendido. O que se

6
“Termo introduzido por Teilhard de Chardin, em o Fenômeno Humano, que designa o mundo das ideias, dos
espíritos/mentes, dos deuses, entidades produzidas e alimentadas pelos espíritos humanos na cultura. Essas
entidades, deuses ou ideias, dotadas de autonomia dependente (dos espíritos e das culturas que os alimentam)
adquirem uma vida própria e um poder dominador sobre os homens” (MORIN, 2007: 303).
97

objetiva é uma mobilização integral e potente de cada subjetividade, que produz um calor que
envolve o grupo, estimulando sua inventividade. As resistências e interrupções na execução
desse jogo apontam dificuldades que temos de dar e receber, qualidades importantes para que
o ator se faça “côncavo e convexo” (FERRAL, 2010: 46).

Enquanto os alunos estavam jogando, muitas vezes percebi que o jogo perdia a
continuidade porque alguém tentava ser original, interessante, e passava a controlar o jogo
apenas racionalmente. Nestes momentos, pude constatar que a preocupação de alguns alunos
em fazer algo novo e original reduzia o aparecimento de desvios, que, segundo Morin, podem
de fato constituir mudanças.

A oficialização da ideia de criação e da ideia de originalidade apaga a ideia de desvio. O


estatuto oficial produz então uma nova norma, uma nova conformidade. O entusiasmo
moderno pela novidade chega mesmo a instituir um culto do novo que transfigura o desviante
em inovador. Contudo, espíritos realmente originais e gênios que quebram normas
permanecem, ao menos nos primeiros tempos, e às vezes durante toda a vida, como
lamentáveis ou inquietantes desviantes em relação aos critérios oficializados da inovação. Nem
por isso deixa de ser verdade que o ‘culto do novo’, apesar do seu conformismo, constitui um
terreno favorável à expressão de desvios. (MORIN, 2005: 39).

Na medida em que a preocupação de fazer algo se tornava maior que o envolvimento


com o ato de jogar, perdíamos o sentido da narrativa que estávamos construindo, assim como
a fonte de inspiração que mantém viva a motivação para a exploração.

O conhecimento é decorrência de um processo de trocas. A contribuição de cada


indivíduo num processo criativo coletivo é uma parcela do todo, que reflete cada uma das
partes que o constitui. Todos os princípios da complexidade apresentam grande dinamismo e
evidenciam o fundamento maior de nossas existências: movimento. Por esse motivo a
conexão entre o trabalho de Angel Vianna e a Teoria da Complexidade de Edgar Morin é
direta. Ambos valorizam a questão humana, que está baseada num fluxo constante de
alternâncias e transformações. Segundo Angel Vianna e Edgar Morin, só seremos plenos em
nossa humanidade se vivenciarmos de modo satisfatório, na relação com a realidade, as duas
dimensões fundamentais que nos constituem: a racional e a afetiva.

A vida humana necessita da verificação empírica, da correção lógica, do exercício racional da


argumentação. Mas precisa ser nutrida de sensibilidade e de imaginário. (...) A afetividade
invade todas as manifestações do sapien-demens, as quais também a invadem. (MORIN, 2005:
122).

Depois desse jogo com palavras, estamos com a sensibilidade aquecida para
começarmos outros trabalhos.
98

O jogo das palavras pode ser feito, de modo análogo, com gestos, motivando a criação
de frases de movimento a partir do contexto da peça. Uma vez que as sequências gestuais,
criadas a partir de uma narrativa textual, ganham autonomia, podem ser exploradas de
múltiplas maneiras. A recursividade está fortemente presente nas interações entre dramaturgia
e escrita corporal. Se um texto dramático é capaz de estimular a criatividade de um grupo,
será também modificado por essa mesma força.

Algumas vezes, depois do jogo com as palavras, pedia que o grupo se mantivesse em
roda, de pé. Uma vez que havíamos conseguido esquentar o ambiente e nossas imaginações,
pedia que um aluno escolhesse algum colega da roda e andasse na direção dele. Sugeria que
essa escolha fosse orientada pelo desejo de encontrar algum parceiro de cena do espetáculo, e
que explorasse o exercício para investigar algum aspecto do relacionamento dessas duas
personagens. Como Gota d’água é um texto musicado, algumas vezes introduzi nesse jogo a
possibilidade de os alunos estabelecerem relações no círculo por meio do canto. As primeiras
tentativas foram tímidas, mas com o avançar do trabalho as resistências foram diminuindo.

Durante minha segunda montagem de Gota d’água, propus que os alunos


trabalhassem com lideranças que julgassem pertinentes para a construção do corpo da
personagem que estavam trabalhando. Numa das aulas, depois de um tempo pesquisando
lideranças individualmente, pedi que os alunos atravessassem a sala, um de cada vez,
apresentando os elementos (gestos, posturas, deslocamentos) que haviam conseguido reter da
pesquisa feita. O restante do grupo observava e depois atravessava o espaço, procurando
reproduzir as principais características que haviam percebido no corpo do colega. Quando o
grupo atravessava o espaço, algumas informações foram registradas: 1) Nenhum corpo
reproduzia o deslocamento do colega sendo totalmente fiel às qualidades originais. 2) Os
níveis de concentração do grupo, tanto ao observar o colega atravessando o espaço quanto ao
reproduzir seus movimentos, foram bastante irregulares. 3) O aluno que havia atravessado o
espaço, ao observar o grupo, percebia qualidades de movimento e formas que ele ainda não
havia considerado na própria movimentação, ao pesquisar sozinho. 4) A maior parte dos
alunos, despreocupada pelo fato de não estar trabalhando o papel que iria interpretar, foi
capaz de se soltar, criando movimentos inusitados, encontrando um grau de comprometimento
que muitas vezes não estava presente no trabalho com as próprias personagens. Todas essas
atividades, onde os atores podiam observar e serem observados, enriqueceram o vocabulário
de movimento do grupo.
99

A definição de códigos corporais na construção de um espetáculo é uma tarefa


complexa. O sistema constituído pelo corpo dos atores é instável, sujeito a muitas
perturbações. A atitude comprometida e acolhedora do Preparador Corporal poderá contribuir
para que os atores sintam-se confortáveis para ousar, não subestimando nenhuma das
dimensões humanas anteriormente citadas, a afetiva e a racional, pois em seu desejo
fundamental de comunicação o homem coordena constantemente os aspectos afetivos e
lógicos que o constituem.

Quando pensamos em estímulos para a criação, não é possível desconsiderar nenhuma


das duas possibilidades de linguagem que o homem é capaz de elaborar.

Há (...) duas linguagens ligadas na linguagem; uma que denota, objetiva, calcula, baseia-se na
lógica do terceiro excluído; outra que conota (evoca o halo de significações contextuais em
torno de cada palavra ou exposição), baseia-se na analogia, tende a exprimir afetividade e
subjetividade. As duas linguagens formam uma só em nossa linguagem cotidiana. (MORIN,
2005: 100).

A Preparação Corporal que problematizo, considerando a necessidade fundamental do


homem se comunicar, contempla esses dois aspectos da linguagem humana.

3.3 Retomando o trabalho com Gota d’água

Confrontando experiências que tive com duas montagens de Gota d’água, senti-me
impelido a retomar esse material, aprofundando meu trabalho como Preparador Corporal,
utilizando a Conscientização do Movimento como estratégia metodológica. Para tanto,
convidei dois atores profissionais (ex-alunos que haviam trabalhado comigo na segunda
montagem que realizei na CAL), Marília Passos e Leandro Barbosa Pinheiro, que
interpretaram Joana e Jasão (daqui em diante, farei referência a ambos utilizando seus
primeiros nomes).

O principal objetivo desse laboratório foi aprimorar a sensibilização corporal, baseada


no trabalho de Angel Vianna, aperfeiçoando o jogo interpretativo dos atores.

Preparando-me para trabalhar novamente com esse importante texto da dramaturgia


nacional, fiz algumas visitas ao Centro de Documentação e Informação em Arte/CEDOC da
FUNARTE, do Rio de Janeiro, onde pude obter informações sobre os autores e montagens
pregressas, através de matérias e críticas em diversos jornais e revistas brasileiros. Nas
100

montagens escolares, não tive oportunidade de desenvolver pesquisas em arquivos oficiais.


Mas diante do novo trabalho, debruçando-me sobre vasto material jornalístico, foi possível
dimensionar com clareza a importância histórica do texto de Pontes e Buarque. Pude recolher
informações que me possibilitaram contextualizar com maior precisão a força política e
artística de Gota d’água, mobilizando meu imaginário e inventividade, aumentando meu
acervo de estímulos e propostas para o laboratório que estava sendo planejado.

Durante a realização dos encontros laboratoriais, assumi como parâmetro de


encenação a montagem dirigida por Nancy Galvão na CAL, da qual Leandro e Marília haviam
participado. Afinal, o tipo de Preparação Corporal que estou investigando é um trabalho que
acontece no bojo de um movimento criativo mais amplo e complexo, que inclui a visão do
diretor. A montagem de Galvão pareceu-me convenientemente despojada para nos estimular
neste estudo.

Decidi que trabalharíamos sobre uma única cena e escolhi um momento da peça que
nos propiciasse a abordagem de questões que não havíamos investigado anteriormente (Anexo
C, cena: 10). No texto, as três grandes cenas entre Joana e Jasão são muito ricas, mas a
primeira delas me pareceu um bom material de estudo, oferecendo grande dinâmica para o
jogo dos atores, que deveriam construir uma trajetória com muitas transições e nuances
interpretativas. As mudanças comportamentais de Joana e Jasão, nesta cena, seriam
apropriadas para um trabalho mais detalhado de Preparação Corporal (considerando espaço,
gestos, deslocamentos, intensidades, precisão) orientado pela Conscientização do Movimento.

Nessa primeira cena entre o casal, eles estão sem se ver há um tempo. Jasão saiu de
casa para viver com uma mulher mais jovem, abandonando Joana e os dois filhos. Esse é o
primeiro encontro entre eles, depois da separação. A cena possui grande complexidade,
expondo múltiplos aspectos da relação, e muito do passado do casal deve transparecer por
meio de minuciosas interações.

Como utilizar a Conscientização do Movimento, ao longo de um processo de


composição do ator?

Daqui em diante, os procedimentos descritos não devem ser considerados como


modelos, mas estratégias, que podem experimentar inúmeras adaptações. Orientado pelo
pensamento complexo, pensei desenvolver atividades como estratégias e não como
programas. Escolhas que fiz visando à sensibilização dos atores, aumentando dessa forma o
101

potencial expressivo de seus trabalhos. O diálogo dessas atividades com outras técnicas
corporais é possível, segundo a Preparação Corporal que busco, desde que exista uma
equilibrada e produtiva integração de todos os trabalhos envolvidos. Esse seria um caminho
possível para uma Preparação Corporal imbricada na construção de um projeto estético
potente.

Se podemos chamar ‘programa’ um conjunto de princípios, regras e instruções que


comandam/controlam operações cognitivas, podemos dizer que as atividades cognitivas do ser
humano emergem de inter-retroações dialógicas entre um poliprograma de origem
sociocultural, cada poliprograma comportando instâncias complementares, concorrentes e
antagônicas. (MORIN, 2005, 21).

Nas experiências que irei relatar, escolhi focar o trabalho na sensibilização corporal,
investigando aquilo que, no primeiro capítulo, denominei por Funções. Dediquei um dia de
trabalho a cada um dos conteúdos que pretendia investigar: articulação, pele e visão. Fizemos
ainda um quarto encontro onde trabalhamos especificamente um momento extremamente
técnico, que envolvia agressão, golpes e queda. Meu objetivo era investigar como as Funções
(articulação, pele e visão), experimentadas anteriormente, poderiam contribuir, de modo
integrado, para a construção desse momento.

3.3.1 Primeiro encontro: a Função articulação em cena

Leandro: A dificuldade foi percebida depois da prática em si e não durante. Foi como se eu
estivesse mais preocupado com a forma ou a estética do movimento e não com o trabalho das
lideranças articulares em si. Soma-se a isso o longo período que estávamos afastados das
dinâmicas corporais... parece que o nosso corpo e nossa percepção regridem.

Marília: O trabalho inicial com as articulações nos auxiliou no sentido de sensibilizar o corpo,
que tendia sempre para o verbo, sem sentir o que estava fazendo. Articular para mim sempre
me passou a idéia de dar fluidez, de deixar passar o ar, respirar. Com esse trabalho, tivemos a
mais plena consciência de que não estávamos respirando, não estávamos ‘deixando fluir’.
Então me dei conta de que a articulação é um nó, um gomo que une partes, uma ponte, pela
qual poderia fluir o texto, a encenação, por um corpo pensante e integrado. Nesse mesmo
‘módulo’ de trabalho, fizemos muitos exercícios que integravam palavra e ação, pondo em
prática aquilo que vínhamos experimentando durante o dia.

Propus que começássemos nossas investigações pelas articulações do corpo. Tanto


Leandro quanto Marília estavam, há algum tempo, sem realizar exercícios físicos com
frequência, e essa foi uma boa oportunidade para um reencontro com eles mesmos, através do
movimento. Considero produtivo, no início de uma Preparação Corporal, que os atores tragam
102

propostas de exercícios e jogos para os ensaios, pois um novo trabalho sempre demanda
algum tempo para a quebra de gelo, e suas contribuições podem ajudar na integração do
coletivo. Em certos momentos, os atores também podem trabalhar sozinhos, fazendo dialogar
seu repertório particular de técnicas corporais com os exercícios e jogos apresentados pela
Preparação Corporal.

Sugeri que Leandro e Marília pesquisassem livremente as articulações, mobilizando-as


ao máximo. Pedi que eles prestassem atenção na globalidade de seus movimentos, e
avaliassem gradientes de tensão ao longo de suas musculaturas (Anexo C, cenas: 11, 12, 13,
14). Este procedimento faz com que o sujeito que se move possa perceber cada vez melhor
como se organiza corporalmente. Uma pergunta tão simples como: você está inteiro(a) no seu
movimento?, pode desvelar campos de investigação e expansão perceptiva, apontando onde,
durante a movimentação, percebemos maior concentração de força, e que partes do corpo
estão sendo pouco consideradas.

Variações de tônus organizam e direcionam nossos movimentos e ações, e o


aprimoramento de nossas capacidades perceptivas e cognitivas depende disso. Na
Conscientização do Movimento, tanto as partes do corpo que se mostram resistentes ao
movimento, como aquelas que o aceitam mais facilmente, devem ser igualmente consideras.
A pausa é uma estratégia extremamente educativa, pois nesse espaço-tempo de aparente
imobilidade, como apontado no capítulo um, existe grande potencial para o movimento.
Nesses momentos, é possível perceber no corpo estático os mesmos vetores de força que
atravessam o corpo em movimento.

No trabalho com Leandro e Marília, aos poucos fui introduzindo novos elementos à
pesquisa, sempre mantendo o foco no trabalho articular. Pedi que explorassem com maior
atenção os movimentos parciais (de partes do corpo) e os movimentos globais (da totalidade
do corpo), assim como movimentos contínuos e fragmentados (interrompidos). Minha
intenção era desenvolver o sentido cinestésico dos atores.

A conscientização do movimento depende de nosso sentido kinestético, nossa parte nervosa e


sensorial termina nos músculos e articulações que enviam mensagens ao cérebro descrevendo
exatamente a maneira e a sensação de como estamos nos movendo. Todos nós possuímos este
sentido kinestético e todos nós podemos aprender a usá-lo. (VIANNA, 1978: 4).

Na fase inicial de uma Preparação Corporal, a pesquisa articular pode ser feita de
modo amplo e abrangente, pois o interesse maior é disponibilizar os atores para o movimento,
e não necessariamente colocá-los numa fase de composição. Despertar a escuta do movimento
103

é importante, mesmo para aqueles que já são corporalmente dotados e/ou treinados. O
objetivo dessa fase inicial é ampliar a disposição sensório motora do elenco, deixando-o mais
disponível e flexível para o trabalho.

As articulações têm estruturas diferentes, e para percebermos diferenças, motoras e


sensíveis, entre pequenas e grandes articulações, necessitamos de treino minucioso. Esse tipo
de treinamento não obedece a uma padronização, em procedimentos, ou tempo de duração. À
pesquisa articular, podem-se acrescentar movimentos de balanço e vibração, objetivando
soltar as “juntas” do corpo. O balanço e a vibração estimulam o deslizamento ósseo, a
mobilização do tônus muscular e a criação de espaço nas articulações. Essas possibilidades
de movimento promovem também um diálogo entre o espaço interno do corpo com o espaço
externo, fundamental para sua organização.

Depois que os atores trabalharam algum tempo sozinhos, sugeri que segurassem uma
pequena bola de plástico na palma das mãos e continuassem pesquisando as articulações,
explorando as dimensões: vertical (subidas e descidas), horizontal (abrir e fechar o corpo
lateralmente) e sagital (avanços e recuos), tomando cuidado para não deixar a bola cair no
chão (Anexo C, cenas: 15, 16).

(Figura 17) Trabalho articular individual com objeto (bola).


Leandro (foto do autor).

(Figura 18) Trabalho articular individual


com objeto (bola). Marília (foto do autor).

Esse exercício, além de mobilizar as articulações, equilibra o tônus corporal. Tanto o


corpo hipotônico, como aquele hipertônico, encontrarão dificuldade de realizar a tarefa.
104

De fato, toda hipertensão está relacionada às fragilidades, das quais ela é uma compensação.
(...) A busca de um melhor equilíbrio de forças, a qual estamos apegados, provocará então esta
dupla ação: liberar hipertensões, enquanto restabelecemos e fortalecemos as sinergias
fundamentais, das quais a fraqueza fez suas compensações. (DROPSY, 1973: 101, tradução
livre do autor) 7.

Como foi explicado no primeiro capítulo deste trabalho, as articulações são estruturas
que funcionam de modo coordenado, e o movimento eutônico necessita da participação de
cada uma delas, plenas em sua capacidade de movimento. O bom tônus de nossos músculos,
qualidade importante, tanto na vida como no teatro, depende e é determinado pelo uso
harmônico de nossas articulações. Um ator deve compreender, empiricamente, que seu
potencial expressivo está diretamente relacionado à sua capacidade de mobilização articular.
Quanto mais complexos os conflitos enfrentados na cena, maior a demanda de trabalho das
articulações.

A Conscientização do Movimento não perde de vista que o trabalho de mobilização


articular deve proporcionar integração corporal e maior contato com o meio externo. Esse
trabalho tem como objetivo, ao mesmo tempo, discriminar e integrar todas as partes que
constituem o corpo humano. Como indicado pelo Princípio Hologramático, a totalidade de um
sistema contém suas partes assim como as partes contêm o todo.

Avançando na pesquisa com as articulações, pedi que Leandro e Marília trabalhassem


juntos, encostando as bolinhas, explorando a movimentação da totalidade de seus corpos. Eles
podiam fazer qualquer movimento, desde que não separassem as bolinhas (Anexo C, cena:
17).

(Figura 19 e 20) Trabalho articular em dupla, com objeto (bola). (foto do autor).

Cada um dos atores deveria ter consciência de si, de suas variações tônicas e daquelas
do corpo do outro. Esses jogos ensinam muito sobre a Conscientização do Movimento,

7
En effet, toute hypertension est reliée à des faiblesses, dont elle est la compensation. (...) La recherche d’un
meilleur equilibre de forces, à laquelle nous nous attachons entraînera donc cette double action: détendre les
hypertensions, pendant que l’on rétablit et renforce les synergies fondamentales, dont la faiblesse a entraîne ces
compensation.
105

sobretudo seus aspectos relacionais. Os Jogos Corporais, no trabalho de Angel Vianna,


baseiam-se na necessidade fundamental do homem de estabelecer contato. Tão importante
quanto as relações que um indivíduo desenvolve com o próprio corpo, são as que ele
estabelece com o ambiente e seus semelhantes. A partir do contato com o outro, somos
capazes de avaliar melhor nossa competência polivalente. No jogo de interações constante
com nossos semelhantes somos convidados, e levados, a explorar nosso potencial humano,
definindo-nos como sujeitos.

Assim, ‘o sujeito estrutura-se pela mediação dos outros sujeitos antes mesmo de conhecê-los de
fato’. O sujeito surge para o mundo integrando-se na intersubjetividade, no seu meio de
existência, sem o qual perece. Assim como o indivíduo não se dissolve na espécie nem na
sociedade, que estão nele como ele está nelas, o sujeito não pode dissolver-se na
intersubjetividade, que lhe garante a plenitude. O Eu do sujeito não passa de uma estação de
transmissão num tecido de intersubjetividade. Guarda a sua auto-afirmação irredutível.
(MORIN, 2007: 78).

Depois do trabalho com bolas, sugeri que eles continuassem a pesquisa articular, agora
com bambus (Anexo C, cena: 18).

(Figura 21) Trabalho articular em dupla, com objeto (bambu). (foto do autor).

Num primeiro momento, eles exploraram o objeto individualmente, depois voltaram a


trabalhar juntos. Segurando os bambus entre as palmas das mãos, tomando cuidado para que
eles não caíssem, Leandro e Marília continuaram explorando suas articulações e o espaço. O
bambu é um objeto muito utilizado nos trabalhos de Conscientização do Movimento por ser,
segundo Angel Vianna, um catalisador, que estimula a circulação de energia elétrica por toda
a extensão do tecido cutâneo.

A presença do outro é fundamental para a auto-organização. Na vida, assim como no


jogo teatral, o contato com nossos semelhantes é condição indispensável para que possamos
nos constituir.
106

Enquanto o jogo desaparece no animal adulto, exceto quando este, domesticado e alimentado,
permanece em situação infantil, o jogo persiste e mesmo desenvolve-se no mundo adulto,
conforme múltiplos modos, e dispõe de instituições específicas nas grandes civilizações. (...) O
jogo, cuja finalidade não é ‘séria’, comporta a sua própria seriedade no respeito às regras, na
aplicação, na concentração e na estratégia. (Ibdem, 2007: 130).

No trabalho de Angel Vianna, o embate que se estabelece com limites para o


movimento, experimentados pelo corpo, pode propiciar a conquista de novos territórios
motores, sensíveis e cognitivos. A liberdade para o movimento, nesse trabalho, não é fazer
somente o que se deseja o tempo inteiro (isso não ativaria nossas capacidades perceptivas
fundamentais). Existem inúmeras regras que devem ser respeitadas nos Jogos Corporais, se de
fato temos necessidade de novas experiências através do movimento.

Quando dois atores interagem através dos Jogos Corporais, aprendem que possuem um
conhecimento muito maior que aquele explicado por suas mentes racionais. Essa parte de
nosso pensamento não pode ser desconsiderada, nem na vida nem no palco. Mas é preciso que
encontremos um modo equilibrado de lidar com a parte racional de nossa mente,
exageradamente valorizada nos dias atuais, reconhecendo que o corpo tem seu modo
particular de pensar, uma sabedoria própria.

Ao longo de um processo de ensaios, o trabalho articular deverá, cada vez mais, ser
direcionado para o contexto do espetáculo, integrado às múltiplas exigências do jogo na cena.
Se anteriormente sugeri iniciar a Preparação Corporal mobilizando as articulações de maneira
abrangente (aprimorando o sentido cinestésico daqueles que se movem), com o avançar dos
ensaios é necessário que toda a disponibilidade conquistada para o movimento seja
direcionada, de maneira mais focada, para o contexto da peça. Naturalmente, é isso que
acontece na maior parte dos casos, pois com o desenvolvimento do trabalho, os problemas
vão se fazendo cada vez mais particularizados, exigindo que toda a equipe se debruce com
maior atenção e precisão sobre eles. Várias poderão ser as demandas. Um ator fará uma cena
de queda, outro precisará subir numa peça de mobiliário com extrema habilidade, enquanto
um terceiro ainda deverá escalar uma parede, por exemplo. Esses movimentos, certamente,
exigirão boa mobilidade articular, assim como uma boa utilização dos apoios ósseos. Muitas
são as estratégias que poderão ser utilizadas. Uma queda poderá ser dividida em várias etapas,
aumentando o controle sobre a movimentação e facilitando a ida ao chão, que pouco a pouco
será feita com mais entrega. Um ator poderá subir com maior facilidade numa mesa, por
exemplo, se usar conscientemente o apoio das mãos e dos pés, as articulações dos joelhos e o
centro de seu corpo.
107

Assim como propus que Leandro e Marília trabalhassem com bolas e bambus, poderia
ter oferecido tecidos, bastões, sacos de areia, caixas, ou algum outro objeto, diretamente
ligado ao contexto da peça. Isso iria ajudá-los a fazer pontes entre o trabalho articular
preparatório e o jogo na cena.

Na conclusão de nosso primeiro dia de trabalho, pedi que Leandro e Marília fizessem
um último exercício, onde deveriam caminhar simultaneamente pelo espaço, e quando um
deles parasse, o outro deveria fazer o mesmo. Logo que um deles voltasse a caminhar, o outro
deveria acompanhá-lo, voltando a entrar em movimento. Num segundo momento, eles
deveriam alternar os deslocamentos. Quando Leandro estivesse em movimento, Marília
deveria estar parada, e quando Leandro parasse, ela deveria iniciar seus deslocamentos no
espaço. Para concluir essa etapa, mantendo a alternância dos movimentos, pedi que, antes de
se deslocarem pelo espaço, fizessem um movimento claro com uma parte do corpo
(movimento parcial). Trabalhamos algum tempo dessa maneira, depois sugeri que eles
incluíssem no trabalho uma relação de dominador X dominado. Propus que Marília
começasse sua movimentação explorando a atitude de dominador, que sugere força,
determinação, assertividade e outras qualidades afins. Em contrapartida, Leandro deveria
iniciar o trabalho explorando movimentos que sugerissem um status mais baixo, de hesitação,
dúvida, medo e outros estados correlatos. Nesse exercício, a relação de dominação é
trabalhada entre os jogadores, e também com o espaço. Os atores deveriam pesquisar
movimentos, durante algum tempo, mantendo a relação proposta inicialmente e, pouco a
pouco, deveriam inverter essa situação. Leandro passaria a dominar, enquanto Marília
adotaria a posição do dominado. Fiz essa proposta porque essa inversão de status é marcante
na cena que escolhi trabalhar. As indicações fornecidas pelo texto são de que Jasão chega
recolhido, ocupando o espaço cuidadosamente. Ele abandonou a mulher, saiu de casa, está em
“déficit”, devendo explicações. Ela possui as razões da pessoa que foi abandonada e quer
saber o que aconteceu para ele ter deixado a casa como o fez. Ao longo da cena, enquanto o
casal se enfrenta, essa situação se inverte. Ela o ataca verbalmente, o que o faz perder a
cabeça. Jasão a agride e aparentemente a subjuga. Joana termina humilhada, pedindo para que
ele fique. Durante o exercício, tanto Leandro quanto Marília mantiveram-se muito focados
nos próprios movimentos, e minimizaram a escuta um do outro, que seria fundamental para
construírem juntos esse jogo de alternância de status.

O jogo de integração (dominador X dominado), que acabei de descrever, desenvolve a


consciência corporal, intensificando o trabalho relacional na cena. Não é apenas a auto-escuta
108

dos atores que está em jogo, mas a capacidade de se adaptarem às mudanças do colega. Nesse
jogo, é necessário que os atores percebam e controlem a progressão daquilo que estão
fazendo. A inversão das funções dominador/dominado não deverá ser abrupta, mas
progressiva, assim como na peça, a fim de que possa ser acompanhada pelo público, que ao
longo da cena compreende que Jasão não tem mais a intenção de viver com Joana, e vê o
comportamento de ambos sofrendo grandes mudanças.

Na Conscientização do Movimento é particularmente saudável equilibrar o caráter


introspectivo do trabalho de investigação/mobilização articular (espaço pessoal) com
propostas que explorem o espaço global/ambiente de forma mais dinâmica. Essa é uma
estratégia que nos leva a perceber que espaço pessoal e espaço global estão imbricados.
Segundo Edgar Morin, o Homem é um sistema fechado e aberto ao mesmo tempo. Para o
filósofo, nossa espécie seria caracterizada por alternâncias entre expansão e recolhimento,
onde cada indivíduo desenvolveria uma consciência egocêntrica. Egocentrismo que na visão
moriniana não deve ser considerado algo negativo, pois ele nos proporciona a capacidade de
nos fazermos conscientes de nós mesmos. Precisamos do fechamento (recolhimento) para ter
consciência de que existimos e, ao mesmo tempo, de abertura (expansão), pois temos uma
necessidade vital de exploração do ambiente e de troca com nossos semelhantes. À medida
que ganhamos maior intimidade com nossas articulações, conhecendo melhor nosso espaço
pessoal, registramos mudanças em nossos modos de percepção e ocupação do espaço externo.
A sensibilização de nossos espaços internos intensifica nosso desejo de explorar o mundo,
desenvolvendo nossos processos de auto-organização.

Angel Vianna, em suas aulas, estimula constantemente a projeção dos movimentos,


procedimento que mobiliza as articulações e modifica a organização tônica do corpo. Vianna
fala constantemente que devemos “sentir o sentimento” (a orientação do movimento). Isto
pode ser considerado um pleonasmo, mas apenas para aqueles que não vivenciaram o trabalho
de Conscientização do Movimento. Quando Angel Vianna usa essa expressão, refere-se a uma
qualidade de atenção diferenciada de nós sobre nós mesmos, que aprimoramos através do
movimento. Uma qualidade consciente que estabelece uma ação recursiva em relação a todo
nosso funcionamento psicossomático, proporcionando uma integração global do sujeito.

Enquanto as ciências ‘normais’, inclusive as cognitivas, baseiam-se no princípio disjuntivo,


que exclui o sujeito (o cognoscente) do objeto (o conhecimento), ou seja, exclui o cognoscente
do seu próprio conhecimento, o conhecimento do conhecimento deve enfrentar o paradoxo de
um conhecimento que só é o seu próprio objeto porque emana de um sujeito. (MORIN, 2008:
30).
109

3.3.2 Segundo encontro: a Função pele em cena

Leandro: Notei uma maior concentração nos exercícios, como se o trabalho tivesse ganho uma
qualidade diferente. Talvez porque o toque seja algo muito intrínseco no texto e na relação
entre Jasão e Joana. É como se estivéssemos vivenciando as palavras e frases, mergulhando no
universo íntimo de atração e estranhamento dos dois.

Marília: No trabalho de sensibilização com foco na pele, me senti trabalhando com algo muito
mais sensorial (táctil) e presente. Senti-me mais integrada com meu parceiro e começaram a vir
sensações dos personagens, que realmente me remetiam a duas pessoas que passaram dez anos
casadas. Sensações que, muitas vezes, eu não conseguia delimitar bem, e, simplesmente, me
deixava agregá-las sem questionar e tentar racionalizar muito porque se juntariam ao trabalho
sem muitas explicações. E na cena, elas vieram. Senti-me muito mais presente em cena,
comungando melhor com o espaço e mais inserida na situação. Havia mais possibilidade de
criar com o meu parceiro de cena, pois estávamos mais integrados naquela história... juntos.

Em nosso segundo encontro, procurei valorizar a sensibilização da pele, ampliando as


possibilidades de interação dos atores. Ao longo de anos, em minhas práticas pedagógicas,
escuto a seguinte pergunta: Qual o significado da pele no trabalho do ator? Esta pergunta não
aceita respostas triviais. A pele está diretamente vinculada à afetividade, e um bom trabalho
de conscientização corporal desvelará novos modos de relação com esse tecido.

O fato de estar trabalhando com atores profissionais, deixou-me confiante para propor,
logo no início desse encontro, um exercício de contato em que eles deveriam se tocar (Anexo
C, cenas: 19, 20, 21, 22). A proposta consistia em que cada um, por sua vez, modelasse o
corpo do outro, começando o trabalho pela cabeça e terminando nos pés. O objetivo deste
trabalho é enformar e informar o colega. Enformar, porque o contato desenvolve a
consciência do volume, das dimensões e da tridimensionalidade do corpo. Informar, porque
através do contato com o outro, pode-se reconhecer a própria singularidade.

Leandro percebeu que durante o exercício teve mais facilidade para aceitar os toques
que foram feitos com maior pressão, e sentiu-se resistente aos toques que foram feitos com
leveza. Marília considerou esse trabalho de sensibilização fundamental para retomar a cena de
Gota d’água, pois ele amplia consideravelmente a percepção do outro e as possibilidades de
interação.

Como já foi dito anteriormente, a pele está conectada com todo o corpo, uma vez que
está em contato direto com o tecido conjuntivo fascial. O trabalho sobre o tecido cutâneo,
proporcionando uma maior consciência de nosso volume e espaço interno, é determinante
para que possamos equilibrar nossas trocas com o ambiente.
110

Dando prosseguimento ao trabalho, pedi que Leandro e Marília se movessem, sentindo


a relação entre as “dobras” do corpo e a pele que as reveste. Na sequência, solicitei que
continuassem um pouco mais a pesquisa, buscando manter sempre algum ponto de contato
entre seus corpos. Neste momento, pude constatar que a movimentação dos atores tornou-se
ansiosa. A calma que haviam conquistado, enquanto trabalhavam individualmente, foi
deixada parcialmente de lado, no momento do trabalho a dois.

Jogos de integração ensinam ao ator, através de vivências práticas, o que são variações
tônicas. Essas alternâncias de tônus corporal são responsáveis por inúmeras adaptações que
tornam o jogo do ator vivo, dinâmico e estimulante, para ele mesmo e para o público.

Após termos sensibilizado a pele e mobilizado o sistema ósseo, propus a leitura da


cena que iríamos trabalhar. Distribuí algumas cadeiras pelo espaço, e pedi que Leandro e
Marília lessem a cena, mudando de cadeira a cada novo sinal de pontuação. Num primeiro
momento, eles acharam estranho o exercício e tiveram um pouco de dificuldade. Mas aos
poucos foram percebendo que a proposta os ajudava a compreender melhor o sentido das
falas. Ambos registraram uma tendência de “atropelar” as ideias/intenções do texto. Esse
trabalho, da professora de voz inglesa Cicely Berry, especialista em Shakespeare, exige
grande mobilização do ator, pois demanda a coordenação entre corpo, voz e pensamento.
Repetindo algumas vezes o exercício, integrando fala e movimento, foi possível constatar que
os sinais de pontuação estavam ali, balizando o pensamento do autor, expresso nas falas das
personagens.

Muitos problemas enfrentados pela Preparação Corporal estão relacionados à


dificuldade de coordenação entre intenção e movimento no trabalho do ator. Merleau-Ponty
afirma que o pensamento acontece nas palavras, e estas são antes de tudo um gesto corporal
(RAMOS, 2010). Essa afirmação é uma verdade importante no jogo do ator, que, antes de
pronunciar qualquer palavra, deve senti-la como um acontecimento que modifica seu corpo,
precedendo o ato da fala, que não começa com a eclosão de uma palavra, mas é resultado de
um processo interno complexo. Pensamentos são movimentos (tanto quanto gestos,
deslocamentos e posturas) e modelam o corpo de maneira particular. Por esse motivo, o ator
precisa desenvolver a capacidade de modificar-se com precisão, a cada nova intenção.

Frequentemente, como Preparador Corporal, percebo que um ator deve mudar sua
atitude física quando um novo pensamento atravessa sua personagem. Constato que a
personagem modificou-se, por indicação do texto, mas muitas vezes o ator não percebe a
111

mudança apontada. Em outros casos, a personagem está desenvolvendo uma ação, e o ator
abusa do excesso de movimentos. Dois problemas diferentes que, comumente, enfrento como
Preparador Corporal. No primeiro caso, preciso estimular o desejo de movimento. No
segundo, devo contribuir para que o ator possa selecionar, ordenar e deixar suas ações mais
precisas. Nesses momentos, lembro-me de que não existem modelos pré-determinados que
possam unificar as reações humanas segundo normas e comportamentos previsíveis. Como
nos esclarece Jean-Loup Rivière8: “Não há, ou não há mais, código gestual fixo, quer dizer,
um modo estereotipado de significar corporalmente uma emoção ou uma paixão”
(LASSALLE e RIVIÈRE, 2010: 49). Uma vez que os estereótipos caíram por terra, o teatro
assume hoje grande variedade, das formas mais intimistas às mais operísticas, e o
compromisso do ator com sua movimentação e gestualidade faz-se cada vez maior.

Diante dos problemas anteriormente enumerados, evito expectativas, aquilo que


poderia ser considerado uma realização ideal para o trabalho que estou desenvolvendo. É a
partir de uma relação objetiva e acolhedora, vivida no presente com os atores, que procuro
encontrar uma maneira teatralmente potente para realizarmos nosso trabalho, entendendo seus
caminhos de expressão.

O foco de atenção é portanto, o processo por meio do qual algo que não existia antes, como tal,
passa a existir, a partir de determinadas características que alguém vai lhe oferecendo. Um
artefato artístico surge ao longo de um processo complexo de apropriações, transformações e
ajustes. O crítico genético procura entrar na complexidade desse processo. A grande questão
que impulsiona os estudos genéticos é compreender a tessitura desse movimento. (SALLES,
2009: 17).

Após o exercício de leitura, sugeri que os atores trabalhassem a parte inicial da cena,
agora sem o texto na mão. Mantive as cadeiras no espaço, e pedi que fizessem sempre alguma
modificação na forma-atitude do corpo, por menor que esta fosse, ao perceber que estavam
diante de uma nova intenção. Aqui intenção é sinônimo de pensamento, desejo, objetivo.
Conforme avançávamos no trabalho, os atores passaram a se relacionar melhor com as
dimensões do espaço, utilizando com maior precisão a segmentação corporal e o
direcionamento do olhar. Explorando o espaço com maior precisão, os atores começaram a
respirar melhor. Assim como o trabalho articular do corpo mobiliza a respiração, a clareza
espacial da cena também modificou o modo de respirar dos atores. A espacialização de uma
cena, ou seja, a criação de um desenho cênico coerente que expressa seus conflitos, é um
processo complexo. Isto demonstra quão intima é a relação entre espaço pessoal e ambiente.

8
Crítico e pesquisador teatral, nascido na França (1948).
112

Ao término dessa segunda sessão de trabalho com Leandro e Marília, pedi que ambos
preparassem uma colagem para o encontro seguinte. As colagens deveriam compor um
conjunto de imagens, organizado da forma que achassem mais conveniente. As imagens
escolhidas deveriam apresentar características da personagem que estavam estudando, mas
não precisavam ter uma conexão direta com o universo de Joana e Jasão. Esse trabalho não
deveria ser orientado apenas pela inteligência racional, mas também pela “razão amorosa”
(MORIN, 2008: 27), para lembrarmos, novamente, Edgar Morin e Angel Vianna. Nessas
colagens, certamente, haveria espaço para imagens leves e alegres, e não somente figuras
pesadas e sofridas. As colagens deveriam estar relacionadas com a afetividade dos atores e,
consequentemente, dotadas de potencial para estimular a criação de movimentos.

3.3.3 Terceiro encontro: a Função visão em cena

Leandro: Foi para mim a parte mais complicada do trabalho. Achei difícil manter a
qualidade do olhar e o jogo cênico com a Marília. Era como se o olhar dela estivesse carregado
de um peso e eu quisesse fugir dele simplesmente por não ser forte o suficiente para sustentá-
lo. Muitas vezes eu acabava ficando nervoso, me desconcentrava e ria (como sempre acontece
quando fico nervoso). Ao longo das cenas, confirmei isso. O Jasão não podia suportar aquele
olhar da Joana por ser mais forte do que ele, carregado não só da mágoa como também das
lembranças, e acabava se desviando.

Marília: As imagens sempre me auxiliaram muito num processo criativo. Transpor


minha colagem para o meu corpo, sem questionar o ‘como fazer isso’, foi libertador. O
processo de construção da personagem fica muito beneficiado com a liberdade de se trabalhar
com associações intuitivas e, nem por isso, menos válidas. Isso me pareceu extremamente mais
claro quando tive que improvisar a partir das imagens que o Leandro tinha trazido. Não havia
nada preparado antes e eu tive que entrar em contato com imagens do outro e trazê-las para a
minha percepção.

No terceiro encontro com Leandro e Marília, meu objetivo era valorizar a


sensibilização da visão na Preparação Corporal, voltando à cena entre Joana e Jasão, que
estávamos estudando. Começamos movimentando o corpo a partir de uma escuta cuidadosa
das articulações, incluindo também a percepção atenta da pele. Após terem explorado
movimentos articulares livres, pedi que Leandro e Marília continuassem a pesquisa,
observando e sentindo o outro no espaço. Eles poderiam se movimentar livremente, utilizando
todo o espaço da sala de trabalho, sem perder o contato visual (Anexo C, cena: 26).
113

Terminada esta primeira atividade, pedi que observassem a colagem que haviam
produzido (Anexo C, cena: 27). Depois de um tempo, sugeri que cada um, individualmente,
fizesse uma improvisação a partir do material. Marília trabalhou com movimentos ondulados,
mudanças de nível e explorou a verticalidade, saindo e recuperando contato com o eixo
vertical. Seu trabalho apresentou momentos de sensualidade e força (Anexo C, cena: 28).
Depois de improvisar, a atriz relatou que entrou em contato com estados importantes, que
devem preceder o uso da palavra em cena. Leandro afirmou ter encontrado dificuldade para
selecionar os estímulos sobre os quais trabalhar. A colagem de Marília era composta
unicamente por imagens, enquanto a de Leandro era também constituída por muitas palavras.

(Figura 22) Colagem feita por Marília.

O improviso do ator teve uma qualidade calculada, apresentando certo distanciamento


(Anexo C, cena: 29).

Pude constatar que Leandro retomou alguns movimentos usados na montagem que
havia feito na CAL. O objetivo de nosso laboratório não era desconsiderar o que Marília e
Leandro haviam feito anteriormente. Mas seria importante estimulá-los, fazendo-os flexíveis
114

para encontrar novas ações. Mais disponíveis, poderiam reencontrar gestos, posturas e
deslocamentos, com uma nova disposição perceptiva.

Prosseguindo, propus que cada um observasse a colagem do outro (Anexo C, cena:


30). Em seguida, voltaram a improvisar, desta vez a partir do trabalho do colega. A qualidade
da movimentação de Marília mudou bastante (Anexo C, cena: 31). Ela trabalhou com
movimentos hesitantes, expressando certa insegurança. Leandro ganhou força e teve boa
dinâmica, alternando qualidades contrastantes em sua pesquisa (Anexo C, cena: 32). Explorou
gestos suaves de autocontato, assim como movimentos fortes e diretos. Ao término do
trabalho, o ator comentou que sentiu mais facilidade de improvisar a partir dos estímulos
sugeridos pela colagem de Marília.

(Figura 23) Colagem feita por Leandro.


115

Notei que as dificuldades encontradas na realização desse trabalho podem ter ocorrido
pelo fato de ambos terem se relacionado com as colagens de modo geral (abrangente),
tentando apreender e expressar muitas qualidades de uma só vez. Eles poderiam ter
selecionado um ou dois aspectos como estímulo e começado a pesquisa de forma mais
simples. Esse é um trabalho que possibilita múltiplos desdobramentos, onde os corpos criam
formas inusitadas. Algumas delas destoam, não condizendo com o contexto de estudo, mas
outras surpreendem por trazerem à tona aspectos não percebidos sobre as personagens,
situações e conflitos da peça. Esse é um processo que não pode ser compreendido de forma
linear, pois o que se objetiva não é explicar, ou ilustrar de maneira óbvia, o texto da peça ou
as colagens que serviram como motivação para os improvisos. O objetivo é estimular a
imaginação através do movimento, fazendo com que o ator perceba impulsos/motivações que
lhe são familiares, mas também outros que desconhece. Michael Tchécov9 adverte ser
importante que o ator perceba as diferenças entre ele e a personagem: “Como os impulsos de
vontade de minha personagem diferem dos meus? São mais ou menos fortes e rígidos,
persistentes ou frouxos, esporádicos, dominantes, gentis e até mesmo fluidos, etc.?”
(CHEKHOV apud POWERS, 2004: 25, tradução livre do autor).10

O Princípio Dialógico merece mais uma vez ser lembrado, valorizando a inventividade
humana como um importante fenômeno não linear, constituído por saltos, interrupções,
associações inesperadas e perturbações. Nesse exercício com as colagens a não linearidade
está evidente. Até mesmo os espaços “entre” os movimentos constituem-se como zonas de
investigação, lugares de transição potentes, que podem ser explorados com grande
dinamismo.

Depois de improvisarmos a partir das colagens, propus retomarmos o início da cena.


Logo que começamos, notei que os atores não estavam respirando confortavelmente. Leandro
e Marília estavam contraídos, parecendo preocupados por estarem fazendo uma cena de
grande intensidade emocional, e isso minimizava a percepção e a expressão de nuances
interpretativas, presentes nesse difícil momento de reencontro. A relação entre respiração e
articulação pôde ser observada mais uma vez. À medida que percebiam com maior nitidez as
motivações e ações das personagens, os atores começaram a respirar melhor.

9
Sobrinho do escritor russo Anton Tchécov.
10
How do will impulses of my character differ from my own? Are they more or less strong and unbending,
persistent or wishy-wash, sporadic, dominating, gently and evenly flowing, etc.?
116

A Conscientização do Movimento não aborda a respiração de forma direta. Nesse


trabalho, considera-se que através do movimento consciente, dotado de bom tônus (eutônico),
o corpo é capaz de encontrar seus meios de auto-organização, incluindo neste processo o
movimento respiratório.

O problema está posto então: qual o papel da ação voluntária na regulação respiratória. Esse
problema divide muitos especialistas. Para ‘alguns’ é preciso fazer exercícios respiratórios,
treinar a respiração. Para outros, a respiração é um mecanismo tão complexo que é preferível
não tocá-lo, melhor deixar que a respiração ‘se faça’, permitindo que ela se harmonize por si,
desde que trabalhemos apenas sobre outros problemas, como as tensões musculares, o
equilíbrio e etc. (DROPSY, 1973: 82, tradução livre do autor).11

O comportamento do olhar, conforme íamos criando o espaço da cena, também foi


modificado, tornando-se mais preciso. Os elementos da Conscientização do Movimento,
abordados em nosso estudo, passaram a ser percebidos de forma cada vez mais integrada.
Trabalhando a maneira de Jasão reencontrar a casa em que vivera, constatei que todas as
indicações que dava para Leandro, mesmo quando vinculadas a um dos elementos, envolviam
os outros dois. Percebemos que articulação, pele e visão mostravam-se Funções intimamente
relacionadas. Abaixar o olhar recuando e mudando de direção, por exemplo, envolvia os três
elementos que estavam sendo estudados. Não seria possível trabalhar essa cena, sem que a
totalidade do aparato psicossomático de Leandro e Marília estivesse funcionando
harmonicamente.

A relação com a pele ficou muito evidente, pois reencontrar a casa onde morou, para
Jasão, significava se relacionar com o espaço não apenas por meio da visão, mas também
podendo tocá-lo afetivamente. Isso logicamente envolve todas as funções perceptivas e a
capacidade de nossa pele apreender o espaço afetivamente, uma qualidade humana que se
manifesta através do sentido háptico. Este é um sentido que inclui não só o tato, mas nossas
capacidades proprioceptivas e o sistema óculo-vestibular, já mencionado anteriormente.

Precisávamos deixar clara a dificuldade de relação do casal nesse reencontro. O espaço


da cena estava vazio, mas ao mesmo tempo deveria ser explorado convenientemente,
considerando as etapas que são experimentadas emocionalmente por um casal nesta situação.
O espaço despojado no qual estávamos trabalhando solicitava ainda mais a sensibilidade, a
imaginação e o controle corporal dos atores. Qualquer gesto ou movimento mostrava-se

11
Le problème se pose donc: quel role joue l’action volontaire dans la régulation respiratoire. Ce problème
divise beaucoup les spécialistes. Pour les uns il faut ‘faire’ des exercices respiratoires, entraîner la respiration.
Pour d’autres, la respiration est une horlogerie si complexe qu’il est préférable de ne pas y toucher, de ‘laisser
faire’ la respiration en espérant qu’elle s’harmonisera d’elle-même si l’on travaille seulment sur d’autres
problèmes tels que les tensions musculaires, l’équilibre, etc.
117

amplificado aos olhos de um observador. Era preciso coordenar com precisão a vida psíquica
das personagens às ações dos atores. Uma questão fez-se presente: Como o corpo do ator
pode construir o espaço na cena?

O reencontro entre Jasão e Joana é tenso e desconfortável. Ao iniciarmos o trabalho,


tanto Marília quanto Leandro estavam fazendo gestos dispensáveis, gesticulando mais por um
incômodo pessoal e não por uma demanda efetiva do jogo. Pedi que eles suprimissem esta
gesticulação parasita, que reduzia a força de suas ações. Assim Marília poderia se dar mais
tempo para perceber/receber a chegada de Jasão, usando mais a visão, procurando entender o
que estava acontecendo. Enquanto Leandro poderia dimensionar afetivamente o sentido de
sua visita, depois de haver abandonado a família. Quando subtraímos o tempo de
percepção/recepção, fundamental na constituição de uma ação, comprometemos a coerência
fisiológica da mesma.

Fomos, aos poucos, entendendo as motivações presentes nesse pequeno fragmento de


cena, coordenando/articulando corpo e espaço. Sugeri que Marília/Joana suavizasse um
pouco o tom seco com o qual estava recebendo Leandro/Jasão e investisse mais na surpresa de
vê-lo novamente em casa. Chegamos juntos à conclusão de que isto abria espaço para que
pudéssemos ver em Joana uma esperança de que Jasão talvez estivesse voltando para casa.
Nosso objetivo era encontrar nuances interpretativas, aprofundando o conflito entre ambos.
Gradativamente fomos desenhando o espaço afetivo da cena, onde aproximações e
afastamentos entre as personagens foram ganhando sentido e contorno. Dedicamos um tempo
de trabalho considerável investigando as quatro primeiras falas, percebendo os espaços e o
“volume de pensamento” entre elas (Anexo C, cenas: 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39). Entre a fala:
Que é que você veio fazer aqui, Jasão? de Joana, que abre a cena, e a réplica de Jasão: Como
vai?, descobrimos muitas possibilidades de ação. Quando Marília/Joana se deu mais tempo
para perceber a entrada de Leandro/Jasão, isso permitiu que ele esboçasse um sorriso, que foi
reprimido no momento em que ela faz a primeira pergunta. Havíamos desse modo criado uma
interação não verbal, procedimento muitas vezes negligenciado pela ansiedade de muitos
atores. Depois desse constrangimento, Jasão olha em outra direção, criando outro espaço na
cena, o quarto dos filhos, e esboça o desejo de avançar, mas é interrompido por Joana. Nesse
momento ele pergunta: Como vai?, e ela avança repreendendo: Fala baixo que os meninos tão
dormindo. Neste pequeno avanço de Joana, foi possível deixar clara a necessidade de
defender a si própria e aos seus. Uma ação que nos remete ao comportamento de animais, que
defendem seu território e suas crias instintivamente. Estabelecia-se entre ambos uma distância
118

crítica, segundo Edward Hall, região do espaço que separa a distância de fuga da distância de
ataque. Foi possível vivenciar na prática noções de proxêmica, teoria que estuda
cuidadosamente os modos como homens e animais usam o espaço.

A falta de compreensão geral da significação dos muitos elementos que contribuem para o
senso do espaço no homem pode dever-se a duas noções equivocadas: (1) de que para todo
efeito existe uma causa única e identificável; e (2) de que a delimitação do homem começa e
acaba com sua pele. Se pudermos livrar-nos da necessidade de uma explicação única e
pensarmos no homem rodeado de uma série de campos em expansão e redução, que fornecem
informações de muitos tipos, passaremos a vê-lo sob uma luz inteiramente diferente. Podemos,
então, começar a aprender a respeito do comportamento humano, incluindo tipos de
personalidade. Não apenas existem os tipos introvertidos e extrovertidos, autoritários e
igualitários, apolíneos e dionisíacos, e todos os outros matizes e graus de personalidade, mas
cada um de nós tem várias personalidades situacionais aprendidas. (HALL, 1989: 107).

Trabalhando, ao lado de Leandro e Marília, neste pequeno fragmento de cena, pude


avaliar que mesmo num espaço de trabalho acolhedor, as expectativas dos dois atores em
relação a um resultado final ainda eram perceptíveis. Expliquei que seria importante que eles
procurassem minimizar ao máximo a ansiedade, fortalecendo a relação com o presente. Pedi
que se olhassem, e dessem tempo para que esta ação pudesse estimulá-los. Esclareci que seria
importante que abandonássemos qualquer preconceito em relação àquilo que poderíamos
considerar certo ou errado para a cena que estava sendo trabalhada, pois essas preocupações
transformam-se em obstáculos para a criação.

3.3.4 Quarto encontro: integrando conhecimentos

No quarto encontro de nosso laboratório, meu objetivo foi demonstrar que os três
elementos da Conscientização do Movimento que estávamos investigando não são fatores
isolados, mas partes de um sistema integrado maior. O recorte proposto para orientar nossas
investigações, apresentando articulação, pele e visão como temas de estudo, não desconsidera,
absolutamente, outros elementos do trabalho de Angel Vianna.

A cena entre Jasão e Joana possui variados contrastes e nuances. Depois de discutir
com a ex-companheira, enraivecido, Jasão a agride violentamente. Esse momento exige
controle por parte dos atores, que precisam jogar juntos, no presente, pois o resultado da cena
depende de uma linha de ações, construída por ambos. Essas cenas exigem aguçado senso de
interação, pois quem golpeia é tão responsável pela boa realização da ação, quanto àquele que
recebe o golpe.
119

Comecei o trabalho pedindo que os atores caminhassem pelo espaço, fazendo


mudanças de nível (do alto para baixo), passando pelo chão, usando atentamente a relação
com os apoios (Anexo C, cena: 40). Sugeri que, progressivamente, fossem buscando maior
fluidez para suas movimentações. Em seguida, pedi que fizessem mudanças de nível
explorando o contato corporal, indo ao chão experimentando contrapesos concêntricos (Anexo
C, cena: 41). Nesse momento, o caminhar tornou-se apressado e percebeu-se uma tendência
de os atores correrem para o encontro, ao invés de se deixarem surpreender por ele. As
mudanças de nível apresentaram descontinuidade, e muitas vezes, a chegada no chão não era
realizada com o devido controle e cuidado com os apoios ósseos. Leandro e Marília
perceberam que estavam resistindo às linhas de força que orientam os movimentos, ao
aumentarem o grau de resistência muscular durante o exercício. Quando a escuta do corpo
estava presente e a orientação fisiológica dos movimentos era respeitada, as mudanças de
nível aconteciam com maior fluidez. Esse trabalho desperta e disponibiliza as articulações
para o movimento, ao mesmo tempo em que aumenta a percepção do espaço. A atenção do
ator transita entre espaço pessoal e espaço externo e quando o fluxo de atenção entre essas
espacialidades é interrompido, a fluência dos movimentos fica comprometida. Nesse
exercício, o corpo muda de nível, harmonicamente, sustentado não apenas pelo trabalho de
músculos e articulações, mas também pela escuta/percepção atenta do espaço. Nesse trânsito
entre espaço pessoal e espaço externo, pele e sistema óculo-vestibular são constantemente
solicitados, contribuindo para o equilíbrio global do corpo.

O passo seguinte foi dividir os movimentos de ida ao chão em três etapas. Os atores
deveriam fazer três pequenas pausas ao passarem do nível alto para o baixo, entendendo
melhor variadas possibilidades de mudança de nível (Anexo C, cenas: 42, 43). Com o
andamento do trabalho, sugeri que eles começassem a soltar cada vez mais o peso do corpo na
última etapa da descida, experimentando, rente ao chão, maior entrega de movimentos.
Tivemos a oportunidade de vivenciar, na prática, a relação entre estrutura corporal e
funcionalidade motora. Permitir que o movimento se revele/aconteça é um modo de
conscientizar a estrutura corporal, porque aquilo que o corpo pode em termos de
movimentação é consequência de sua organização anatomofisiológica.

Leandro constatou que o caráter pedagógico das dinâmicas que estávamos


desenvolvendo o fazia lembrar de trabalhos realizados com crianças, quando elas aprendem a
escrever. Primeiro a criança sensibiliza o tato, fazendo bolinhas com massinha de modelar, até
pegar o lápis (Anexo C, cena: 44). Depois desenha letras, sílabas e, finalmente, palavras. A
120

associação é válida, desde que não se perca de vista que dinâmicas baseadas na
Conscientização do Movimento, onde muitas vezes podemos ter a impressão de estarmos
trabalhando uma única parte do corpo (ou função perceptiva), objetivam a integração
corporal. Por exemplo: 1) O trabalho de Lideranças, onde o isolamento de partes do corpo é
estudado numa rede de relações capazes de estabelecer múltiplas organizações. 2) O exercício
de mudanças de nível, citado acima, onde visão e audição, integradas, são imprescindíveis
para a manutenção do equilíbrio do corpo.

Em seguida, passamos a trabalhar o momento da cena em que Jasão agride Joana


fisicamente. Num primeiro momento, sentimos novamente uma tendência de os atores
ficarem um pouco rígidos, reduzindo a escuta sensível de suas ações. Pedi que confiassem em
suas percepções, estabelecendo uma relação mais consciente com o que estavam dizendo e
fazendo (Anexo C, cena: 45). Os corpos de ambos, que estavam projetados para frente e para
o alto, recuaram, modificando a relação com o eixo vertical. Leandro e Marília começaram a
respirar melhor, apresentando as intenções do texto com maior clareza. À medida que os
atores começaram a interagir com mais calma, propus que repetissem, em dupla, o exercício
de mudanças de nível, em que o movimento de ir ao chão é dividido em três etapas.

A ação em que Jasão pega Joana e a joga no chão deveria também ser dividida em
etapas: 1) Ele a segura; 2) Eles giram no eixo vertical fazendo uma meia volta; 3) Ele a joga
no chão (Anexo C, cenas: 46, 47, 48). Nas três etapas os dois atores deveriam estar
sintonizados e disponíveis para experimentar constantes adaptações. A terceira etapa do
exercício exige uma escuta mais apurada, pois as articulações de ambos devem funcionar de
modo coordenado a fim de que o golpe desfechado por Jasão possa ser sugerido, e “recebido”
sem danos pela atriz. À medida que repetíamos essas ações, mais percebíamos que todos os
elementos trabalhados nos encontros anteriores mostravam-se agora como uma rede
integrada. A audição emergiu como elemento importante e Marília também comentou que o
olfato, estimulado no exercício de sensibilização da pele, havia proporcionado maior
intimidade entre Jasão e Joana.

Durante os trabalhos sobre Gota d’água, nos certificamos que a percepção é uma
grande aliada no trabalho de criação do ator, motivação fundamental para que ele se mantenha
presente na cena, em adaptação constante com seus parceiros, espaço e espectadores.
Conforme o trabalho avançava foi possível perceber que os órgãos dos sentidos funcionam de
maneira integrada e que os elementos que elegi investigar, potentes em um trabalho de
121

conscientização corporal, e que não devem ser abordados como únicas possibilidades para
isso, são modos de organização (Funções) e proporcionam um fluxo de experiências que
alterna, constantemente, ordem e desordem no corpo.

Pele, visão e articulação, no trabalho de Conscientização do Movimento, são mais


que processos fisiológicos. Entendidas como Funções, constituem-se como qualidades
singulares de movimento, e fontes de estímulo constante para que encontremos sempre novos
modos de ser/estar no mundo (Anexo C, cena: 49).

Seria uma boa contribuição o desenvolvimento de pesquisas sobre a audição, a


gustação e o olfato, considerando esses sentidos também como Funções e catalisadores de
movimento. A relação entre percepção e movimento é um tema vasto que pode motivar
muitos laboratórios.

Nos limites deste trabalho, escolhi concentrar meus esforços e interesses em três
elementos da Conscientização do Movimento, intimamente ligados às questões motoras e
relacionais do ser humano, fundamentos da arte do ator.

Para concluir minhas indagações, faço um breve relato, um exemplo de como nossas
funções perceptivas acontecem de modo integrado.

Meu primeiro espetáculo profissional foi uma adaptação do romance Os Possessos, de


Dostoiévski (Anexo B). A peça se passa na Rússia, no início do séc. XX, um pouco antes da
revolução. Meu personagem, Chatov, um jovem estudante russo, depois de envolver-se com
os ideais revolucionários, decide abandonar a luta política. Por esse motivo, é assassinado por
um grupo de extremistas.

Numa das cenas do espetáculo, Kirílov, amigo de Chatov, recebia a notícia de que este
havia sido morto violentamente. O ator que interpretava Kirílov, durante toda a temporada,
segurava e cheirava minha mão na coxia, antes de fazer a cena acima citada. Ele dizia que isso
era importante para que pudesse realizar seu trabalho com verdade. Sempre achei intrigante
esse procedimento, e o fato de nunca o ter compreendido totalmente me ensina que a
percepção do ator constitui-se como um riquíssimo objeto de estudo, complexo e aberto a
múltiplas investigações.
122

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na introdução deste trabalho, algumas perguntas sobre a Preparação Corporal de


atores foram esboçadas com o intuito de problematizar essa prática, que se afirma, cada vez
mais, como um procedimento específico no teatro brasileiro. O objetivo desta pesquisa não foi
responder de modo estrito a essas questões, mas estimular a reflexão sobre esse campo de
experimentação, instigante por seu potencial inovador. Parece-me uma atitude contraditória,
na relação com o tipo de Preparação Corporal aqui abordado, prescrever modelos que
reduzem esta atividade, explicando-a através de procedimentos rígidos.

Neste momento, não penso em conclusões, e sinto-me extremamente instigado pelas


descobertas que fiz. Graças aos encontros que pude estabelecer com Angel Vianna e outros
profissionais da Preparação Corporal, ao longo desta pesquisa, pude constatar que minha
intuição estava certa, quando escolhi me debruçar sobre esse tema. Todas as pessoas com as
quais tive oportunidade de trocar experiências ensinaram-me que disponibilidade humana é,
antes de tudo, parte fundamental desse trabalho, que desenvolve a capacidade de perceber e se
deixar afetar pelo outro.

A Preparação Corporal é uma atividade que coloca no centro de seus interesses um


objeto de grande instabilidade: o corpo do ator inserido num projeto estético específico.

O que constitui o trabalho de Preparação Corporal?

A Preparação Corporal apresenta-se como um amálgama de procedimentos que visam


disponibilizar o ator para o trabalho criativo no qual está inserido. A cada novo trabalho, o
ator enfrenta demandas específicas e deve estar preparado para isso. A Preparação Corporal é
uma atividade diretamente vinculada ao físico do ator. Mas ela pode assumir formatos que
ultrapassam o mero condicionamento, tornando-se uma estratégia que ajuda o ator a inserir-se
no projeto estético de um espetáculo. Diante desse pressuposto, é possível conceber a
Preparação Corporal como um trabalho multidimensional, que estabelece várias pontes. É
uma atividade que pode conectar os atores entre si, direção e elenco, equipe e projeto artístico.
Esse tipo de Preparação Corporal não acontece com facilidade, da mesma forma que os bons
123

encontros, na vida e no palco, não se dão a toda hora. Mas é essa Preparação que elegi como
objeto de estudo, por acreditar que ela pode existir como um trabalho transformador e força
constitutiva de um espetáculo.

Mesmo que esse trabalho possa ser efetivado de muitas formas, nesta pesquisa
valorizei os procedimentos que favorecem a expansão sensível do ator através da
Conscientização do Movimento. Esse é um enfoque possível, aberto ao diálogo com outros
trabalhos e técnicas de corpo.

Uma vez que não assumo a perspectiva de que existe um ator pronto ou completo,
acredito que sempre existirá espaço para que profissionais da Preparação Corporal possam
intervir nas mais diversas produções. Ao longo de minha escrita, vários exemplos foram
dados, inclusive o de uma grande diretora de teatro, Ariane Mnouchkine, que enfrentou
problemas com um ator de sua companhia, pelo fato dele não estar conseguindo emitir bons
sinais com o corpo. Haveria, nesse caso, lugar para a intervenção de um Preparador Corporal?
Acredito que sim. Mnouchkine sugere a mobilização do tronco, explicando a importância da
utilização da coluna, mostrando-se convencida de que somente o trabalho na cena trará o bom
resultado. Isso é um fato, pois como disse acima, não é possível conceber a organização
corporal de um ator dissociando seu trabalho do jogo na cena. Mas diferentes profissionais da
Preparação Corporal, expondo aquilo que fariam se estivessem junto à diretora, mostraram
que uma abordagem mais focada no corpo do ator seria possível.

Um treinamento eficaz para atores traz em si o desejo de expressão. Por exemplo:


enrolamentos ou balanços de coluna deverão ser capazes de despertar o potencial para a ação,
e poderão ser aproveitados de modos variados na cena. Até mesmo o trabalho considerado
puramente técnico, pelo senso comum, está, no treinamento do ator, vinculado à sua
expressão.

Comecei esta dissertação expondo a ideia de corpo que serviria de base para minhas
reflexões, pois isto me parece fundamental para o entendimento dos procedimentos que
constituem a Preparação Corporal que valorizo, embasada pelo pensamento complexo. A
ideia que me serviu como orientação foi aquela que desenvolvi ao longo de anos
experimentando o trabalho de Angel Vianna, que me treinou para aceitar as múltiplas
instabilidades e perturbações que constituem o corpo vivo. Essa habilidade para aceitar
minhas alternâncias foi determinante em minha formação como ator, professor e Preparador
124

Corporal. Na Conscientização do Movimento, o conhecimento sobre o corpo se faz a partir de


vivências, e isso é fundamento na Preparação Corporal que investigo.

Baseado na experiência que acumulei durante todos esses anos de formação, e


exercício profissional no teatro, posso afirmar que o curso Técnico para Bailarinos
Contemporâneos da FAV e meus estudos na Escola de Mímica Corporal Dramática de Paris
foram fundamentais para minha formação de ator e Preparador Corporal. Lugares onde
aprendi a conhecer o corpo de maneira funcional e expressiva, entendendo que conhecimentos
de anatomia e cinesiologia são importantes também no âmbito da criação artística, pois
ensinam as possibilidades do corpo e seus limites.

No curso de Pós-Graduação em Preparação Corporal nas Artes Cênicas, da FAV,


muitas vezes, uma visão pragmática determina a relação de alguns alunos com o trabalho.
Parecem querer receber uma fórmula, que apresentará a maneira certa e ideal de se fazer uma
Preparação Corporal. Essa ideia é falsa, pois esse trabalho será sempre uma combinação de
procedimentos diversos, que deverão ser escolhidos e equilibrados pelo próprio Preparador.
Quais os bons estímulos? Uma pintura, uma poesia, um improviso com liderança de
movimentos de cabeça, uma corrida, um momento de silêncio e reflexão? Não existem
fórmulas, pois mesmo quando estamos remontando um texto já trabalhado, o processo de
remontagem é sempre algo novo1. A atitude pragmática por parte de alguns alunos do curso
de Pós-Graduação é compreensível, pois vivemos num mundo de grande urgência e
ansiedade. O tempo para a aceitação e compreensão dos processos complexos é cada vez
menor. Mas devemos tomar cuidado com essa pressa, pois ela pode dar a ideia de que
Preparação Corporal é apenas uma atividade vinculada a resultados. Como se um Preparador
estivesse numa equipe de criação apenas para fazer arremates ou dar “jeitinhos”, como criar
pequenas coreografias, limpar marcações e ajudar atores na manipulação de objetos. Essa
seria uma visão extremamente redutora de um trabalho que pode oferecer inúmeras
motivações para a criação.

Durante esta pesquisa, pude perceber que não existe uma formação sistematizada no
campo da Preparação Corporal, pois mesmo no curso de Pós-Graduação da FAV, projeto que
ainda experimenta adaptações e mudanças, seu corpo docente tem consciência de estar
buscando aquilo que se poderia considerar uma formação viável, em consonância com o

1
Como foi descrito no terceiro capítulo desta dissertação, através de minhas atuações como Preparador Corporal
em montagens, e experiências laboratoriais, do texto Gota d’água.
125

mercado profissional atual. Estamos diante de uma atividade relativamente nova, que carece
de reflexão e de trabalhos que a possam desenvolver. Ousadia e paixão pelo conhecimento são
qualidades importantes para um Preparador Corporal, da mesma forma que Angel Vianna
afirma: “Para ousar é preciso ter conhecimento!” (Depoimento ao autor).

Como a Preparação Corporal pode nos ajudar a compreender o trabalho do ator?

A Preparação Corporal é uma prática vinculada à criação de espetáculos teatrais, e


acompanha intimamente o trabalho de composição do ator. O Preparador é um profissional
que acumula múltiplos conhecimentos, relacionados ao corpo, ao movimento e ao teatro,
sendo dotado de especial habilidade para ler os discursos que o corpo é capaz de produzir
quando em movimento, ou em situação estática. Por possuir um conhecimento empírico do
movimento, ele é capaz de “ler” outros corpos, assumindo o seu próprio como referência para
isso.

Quando atuo como Preparador Corporal procuro compreender e conhecer o reverso de


gestos, posturas e deslocamentos, entendendo impulsos interiores que precisam do movimento
externalizado no espaço para se fazerem completos, mobilizando dessa forma a totalidade do
sujeito. O que pode ser vivenciado por um corpo até que um movimento se exteriorize no
espaço? Quando o público vê um ator em cena, não imagina os caminhos e descaminhos que
foram percorridos ao longo do processo de composição. No momento da representação, o
corpo do ator é tido como produto acabado, mas sua potência no presente está relacionada a
todo o processo investigativo experimentado anteriormente. O corpo, que no momento da
representação é resultado, já foi uma sucessão de “rascunhos”, formas que aparecem e
desaparecem, organizam-se e desorganizam-se, transformando-se ao longo de um processo de
ensaios. Um Preparador Corporal tem condições de fazer que um ator perceba com maior
consciência seus processos, fazendo-se mais instrumentalizado para escolher o melhor
caminho na realização de seu trabalho.
126

Até que ponto esse trabalho pode ser considerado fundamental para a construção de um
espetáculo, e não apenas uma atividade acessória isolada?

A Preparação Corporal exige atenção constante. Como encaminhar o trabalho? O que


propor? São perguntas que só encontram respostas equilibradas, quando consideradas no bojo
do trabalho coletivo. Como Preparador preciso constantemente buscar bons estímulos, que
possam ser transformados em ação na cena. Se me deparo com resistências na relação com os
atores, devo entender o que significam esses obstáculos e como proceder diante deles. No
exercício da Preparação Corporal, a coordenação entre práticas e discursos constitui-se uma
meta a fim de que o trabalho seja orientado coerentemente.

Nesta pesquisa, elegi os trabalhos de Angel Vianna e Edgar Morin como orientadores
de minhas ações por valorizarem a questão humana, fundamento do trabalho teatral. Essas
referências mostraram-se grandes estímulos para que pudesse pensar o homem, seu corpo e
sua inexorável necessidade de expressão e criação. Vianna e Morin ajudaram-me a constatar
que toda ação humana deve buscar a integração de saberes, para que de fato possa constituir-
se como prática inovadora, coordenando de modo harmônico inteligência racional e
afetividade, a fim de revelar ao próprio homem sua grandeza e potencialidade. A Preparação
Corporal orientada pelo pensamento complexo poderá constituir, efetivamente, uma
possibilidade de integração e produção de conhecimento.

A Preparação Corporal é um campo de conhecimento relativamente novo 2, que vem se


mostrando um lugar de experimentação cada vez mais rico e produtivo. A busca do teatro
como experiência transdisciplinar permite a sua valorização como espaço investigativo,
dotado de potencial para revelar desvios, como possibilidade de encontrar o novo. Como ator
e professor de Corpo e Movimento, afirmo que este é um trabalho privilegiado para
pensarmos e aprendermos sobre o ator.

Ao concluir esta pesquisa afirmo que a Preparação Corporal pode contribuir


significativamente para a construção de um espetáculo teatral, constituindo-se como atividade
complexa, equilibrando divergências, agregando prudência e ousadia, qualidades que se
complementam produtivamente.

2
Como indica o espetáculo Roda Viva, exemplo dado na introdução deste trabalho.
127

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ANEXOS
134

ANEXO A - ENTREVISTA ANGEL VIANNA (12/03/2011, 23/04/2011 e 14/05/2011)

Entre os muitos trabalhos que influenciaram a Conscientização do Movimento está a


Eutonia, um trabalho muito feito por atores. Poderia falar um pouco sobre isso?

Eu conheci a Gerda (Alexander) por causa da Lola Brickman, em 1974. Lola veio para
um seminário no Conservatório Brasileiro de Música, em 71. Eu dava aulas lá. A Lola veio
com a Patricia Stokoe, que tinha sido professora dela. A Lola disse: Você dá aula que eu sei
Angel. Eu disse: Sim! Atualmente de Expressão Corporal. Ela pediu para ir assistir. Eu disse
que sim. Quando acabou a aula ela disse: Engraçado, você tem um método muito interessante.
Parecido com o de Gerda Alexander. Eu perguntei: Quem é ela? A Lola respondeu: Ela criou
a Eutonia. Eu perguntei: O que é a Eutonia? Ela explicou: É um trabalho que mexe com o
tônus muscular. Eu disse: Deve ser uma pessoa interessante, você me deixou curiosa!
Ninguém nunca me falou dela. Onde que eu posso conhecer esta senhora? Lola disse: Ela vai
todo ano dar um curso em Talloires, num mosteiro. Um lugar lindo, que fica a sete horas de
Paris. Eu disse: Me dá o endereço desta senhora que eu vou escrever e perguntar se eu posso
fazer o curso. Klauss tinha ganhado o Prêmio Moilère, eu tinha que ir a Paris com ele. Foi a
coisa mais linda. Eu, Klauss e minha amiga Nena (Marilena Martins) fomos a Talloires. Klaus
estava operado do coração e não podia fazer nada.

Foi interessante, porque o que Gerda falava e fazia... eu me identificava com ela.
Quando a Lola falou que eu tinha uma identidade com a Gerda, eu na hora não entendi, mas
hoje eu entendo. A Gerda trabalhou com muita gente com quem eu trabalhei. Não com as
próprias, mas com os assistentes dessas pessoas. Eu encontro as pessoas sem procurar. Ela
falava muito de Rosalia Chladek. Que havia sido com a Rosalia que ela tinha percebido
claramente a importância das torções. Então eu me lembrei que quando eu estive na Bahia,
um alemão, Rudolf Piffl, que havia sido aluno da Rosalia Chladek, foi dar aulas sobre o
trabalho dela. A Gerda trabalhou com a Rosalia buscando a torção do movimento. Ela
trabalhava muito contrações laterais do tronco. Tudo é torção.

Você pega as coisas no ar. A Gerda falou muito do Feldenkrais também. Disse que ele
era um dos grandes conhecedores de corpo do mundo.

A Gerda, como eu, também dava aulas para atores. Eu me interessava muito por
anatomia. Eu estudei anatomia até em Faculdade de Odontologia em Belo Horizonte. No Rio
135

de Janeiro, sabe como eu estudava anatomia? Eu disse para o Klauss que eu já estava cansada
de saber a teoria. Então eu queria fazer o seguinte trabalho: fazia o movimento, e a professora
dizia para mim, qual o músculo que trabalhava e qual descansava, músculos agonistas e
antagonistas no movimento. Esse foi meu grande aprendizado. E então eu pude perceber o
que a Gerda falava sobre agonistas e antagonistas. Não só pensar em quando um músculo
descansa e o outro trabalha, mas sim uma harmonia dos dois. Como tudo na vida. Se aquele
que trabalha vai além, aí desgasta. Eu queria entender o corpo. Isso me interessava. Eu e
Klauss éramos muito interessados pelo corpo. Tudo que era possível aprender a gente queria
aprender. A gente queria sempre descobrir novas maneiras de trabalhar o corpo e novas
percepções em relação ao próprio corpo.

Hoje se pensa essa relação entre músculos agonistas e antagonistas como cadeias
musculares trabalhando em sinergia.

Verdade! Tem muitas coisas envolvidas no movimento. E quando eu cheguei na


Gerda, com todas aquelas referências de músculos agonistas e antagonistas, ela uma vez disse
que o que importa é a harmonia entre eles. Isso é verdade. Um lugar do corpo tem que soltar
para outro trabalhar.

Se eu não sei o sentido de alguma coisa no meu corpo, se eu não sei o que eu estou
sentindo, eu não passo nada adiante. Isso eu não faço. Eu gosto de experimentar.

Seu interesse pela anatomia, pele e ossos é muito antigo, não?

Sim. Principalmente osso e articulação. A coisa mais importante que eu aprendi com a
Gerda, e que eu incluí na minha vida, foi a relação com a pele. Eu falava mais da parte óssea,
trabalhando a musculatura através dos ossos.

Você e Klauss sempre tiveram muito interesse pelos ossos. Você usa muito a expressão
direção óssea, o pessoal da Técnica Klauss Vianna usa muito o termo vetores. É tudo a
mesma coisa?

É vetor ou direção.
136

Durante muito tempo seu trabalho foi denominado Expressão Corporal. Você pode falar
um pouco sobre esse nome?

Quando Klauss foi chamado para fazer o trabalho da Ópera dos três vinténs, o elenco
tinha 40 pessoas, incluindo o (José) Wilker, a Marília Pêra, o (Osvaldo) Loureiro, a Dulcina,
era muita gente. Eu entrei como bailarina do cabaré. Eu, Julia Otero, Sonia Magalhães
fazíamos as prostitutas.

Nessa época surgiu o nome Expressão Corporal?

Sim. Eu organizava aulas com o Klauss para os atores. A gente sabia que tinha
Expressão Corporal com o Jacques Lecoq, em Paris, com Patricia Stokoe, na Argentina. Ficou
sendo Expressão Corporal porque o Klauss dizia: Olha só que expressão corporal bonita tem
aquele ator. Então achamos que deveria ser Expressão Corporal, naquele momento.

Nas aulas que você começou a dar para atores no Rio, em 1965, já tinha esse nome?

Já tinha esse nome. Eu dava aula em Copacabana, na Tatiana Leskova 1. Quando eu e


Klauss fizemos a Ópera, esse trabalho ficou sendo aula de Expressão Corporal. E nossa aula
era uma aula de dança, que ficou com esse nome por um bom tempo. Eu dei aula no
Conservatório Brasileiro de Música e também tinha esse nome de Expressão Corporal.

O que você consideraria um princípio no seu trabalho?

Para mim, o começo de tudo é a percepção de dobra. Agora eu estou com mania de
papel. A pele do papel me dá prazer. Sensibiliza a minha pele. Já que sensibiliza, eu comecei
a criar. Eu pego o papel e faço milhões de coisas com ele. Eu gosto de pegar um objeto e ir
fundo nesse objeto. De todas as maneiras. Eu acho que é um apoio, que te ajuda. Peço para
dobrar o papel. Depois peço para deitar, perceber e começar a trabalhar as dobras. É para
lubrificar o corpo. Locomoção! Andar, sentir o chão, depois andar na meia ponta, na borda
externa, na borda interna. Para ir tomando consciência do espaço. Primeiro ver o espaço,
sentir o espaço. Organizar a percepção visual sentindo a distância entre a parede e você.
1
Bailarina russa, naturalizada brasileira.
137

Depois a distância entre as pessoas, e o espaço entre elas. Depois os apoios. Apoio na parede,
apoio no chão, apoio no ar. Percepção de lado direito e lado esquerdo, a lateralidade, que tem
relação com a verticalidade. Sair do eixo para encontrar o eixo.

E se você tivesse que definir o que é Educação Somática?

As pessoas dizem que eu faço Educação Somática. Muitos trabalhos corporais


procuram equilibrar tensões, favorecendo que o corpo organize suas funções vitais. Quando
tomamos consciência do nosso corpo, adquirimos uma representação mais precisa do
movimento.

E o nome Conscientização do Movimento aparece quando?

Na minha turma da Tatiana (Leskova) tinha ator, cantor, tinha de tudo. E ficavam
chamando Expressão Corporal. Depois eu e Klauss começamos a questionar esse nome, uma
vez que nós íamos muito fundo no trabalho corporal. Então eu sugeri ao Klauss que
mudássemos o nome porque as pessoas não estavam cumprindo as propostas de aula. Eu
comecei a perceber que a sensibilização do corpo era um negócio muito profundo, para que
fosse feito de qualquer jeito. Então eu decidi mudar o nome do meu trabalho para
Conscientização do Movimento e Jogos Corporais. Jogos porque eu trabalho com a
criatividade do aluno, individualmente, a dois, a três, quartetos e com as qualidades do
movimento.

Jogos são estratégias para o desenvolvimento da criatividade, independente de contextos


específicos, qualquer pessoa pode experimentar...

Qualquer um! E com os Jogos trabalhamos a comunicação também. Porque você é


obrigado a estar presente com aquela pessoa, em dupla, trio, quarteto... Às vezes eu proponho
que os alunos andem a dois, a três, a quatro, desenvolvendo a percepção espacial.
138

Nessa época das aulas em Copacabana, na Tatiana Leskova, você já tinha um trabalho
amadurecido com atores em termos de Preparação Corporal?

Quando acabou a Ópera dos três vinténs, o elenco perguntou a mim e ao Klaus se era
possível continuarmos dando aulas para eles. O Klauss disse que não poderia dar aulas de
Expressão Corporal porque estava trabalhando na Escola do Teatro Municipal, mas que eles
iriam ficar comigo.

Você considera que a década de oitenta é um momento em que seu trabalho com atores está
suficientemente maduro? Você elegeria um espetáculo que pudesse ser considerado um
marco deste amadurecimento?

Eu já tinha trabalhado com atores, desde Belo Horizonte. Mas acho que a década de
oitenta foi de fato um momento em que meu trabalho estava bem amadurecido.

No Teatro dos Quatro?

No Teatro dos Quatro. Mas antes no Teatro Ipanema eu fiz A China é Azul, com o
Wilker. O Klauss estava ocupado e pediu que eu fizesse a Preparação Corporal da peça. O
Wilker me chamava de general. Ele achava que o Klaus tinha uma docilidade e que eu era
severa. Eu dizia pra ele: Eu não perco o meu tempo. Eu quero que você aprenda logo.

Talvez não seja possível precisar um marco, mas um conjunto de trabalhos...

Sim, um conjunto... O trabalho com o Luiz Carlos Ripper, com o Sérgio Britto... Eu
amava o Ripper. Ele me pediu que conseguisse alguém para trabalhar na Rosa Tatuada.
Queria uma atriz que fizesse uma das vizinhas da Rosa, que fosse uma espécie de bruxa. Uma
bruxa que deveria conviver com um bode. Ele tentou levar um bode de verdade, mas fedia
muito. Então ele me deu uma máscara de bode para trabalhar, como se o bode vivesse perto
de mim.
139

Mas no espetáculo você trabalhou com máscara?

Acabou não entrando. Mas o Ripper queria a vizinha o tempo inteiro em cena. Então
quando ele me pediu que fizesse o espetáculo... Eu me disse: Então eu vou experimentar o
meu trabalho, aquilo que eu faço com os alunos. Procurar ter a presença através da postura,
da verticalidade e não verticalidade. Sair do eixo e voltar ao eixo. A percepção do topo da
cabeça além do teto, encontrando as oposições. Trabalhei, para encontrar a personagem, a
possibilidade de estar no eixo, sair do eixo e os apoios. Era muito bom trabalhar com o
Ripper. Quando começamos os ensaios, a única coisa que ele falou é que eu não poderia
entrar na casa da Rosa. Ele disse que eu poderia subir na árvore, fazer muitas coisas... Ele
disse que eu fazia muitas coisas com os atores, e agora queria que eu fizesse. Eu me disse:
Angel você se concentra, procura o eixo, e quando você achar que não deve ter o eixo, você
sai dele. Toma outra forma do corpo. Eu disse: eu vou trabalhar com o que eu dou nas
minhas aulas. Em minhas aulas eu trabalho a percepção dos sentidos, a percepção espacial, os
esforços. O que eu queria mostrar era a verticalidade bem presente. Enquanto meu pé estava
sentindo além do chão, minha cabeça estava sentindo além do teto.

A primeira coisa que eu fiz foi entrar na casa da Rosa, que ele havia me pedido para
não entrar. Ele não queria isso, mas eu fui pela curiosidade. E pra ele foi bom. Era uma
curiosidade para saber quem era a Rosa tatuada. Por que todo mundo tinha medo dela? O
Ripper não queria que eu saísse de cena nem um minuto. Em muitos momentos eu ficava
sentada, na beira do palco, ouvindo o que a Rosa falava. E fiz uma experiência. Deixar que a
vibração da palavra, entrasse pelo meu ouvido e me projetasse este movimento interno,
através da audição. Eu comecei a sentir a vibração da voz da Rosa. E me disse: se eu ficar
aqui nesse local, eu ouço bem a voz dela, sinto a vibração, sei a hora que eu tenho que
entrar. É uma maneira de eu já estar dentro. Usando isso eu saía e entrava diversas vezes, na
peça. Eu fiquei usando só a energia do corpo. Então eu percebi que existe energia de verdade.

Como você define energia?

Corpo pra mim é energia. A energia tem vida própria. Nosso corpo é energético.
Energia pulsa. Energia é uma pulsação. Sabe como é que eu sinto energia também? Quando a
música bate no corpo, a vibração sonora ajuda você a perceber a sua própria energia também.
140

Tem música que bate nas pernas, tem música que bate em outra parte. Principalmente o
atabaque, que é percussão.

Você fala muito que seu trabalho está apoiado nas articulações, na pele e na visão... E a
relação com a audição?

O meu trabalho não está só apoiado nas articulações, na pele e na visão. Teve uma
época que eu fazia muitos trabalhos com o paladar, o olfato... Então eu comecei a perceber
como era legal trabalhar com a percepção dos sentidos. A sensibilidade. Sentir o cheiro, o
paladar... O paladar tem muito a ver com a língua e a cavidade bucal. Isso é uma coisa que eu
trabalhei muito.

Você lembra-se de trabalhos que fazia no Conservatório?

Lembro. Eu trabalhava muito a audição e a parte musical... Rítmica. Eu tinha um


aluno cego lá, não me lembro se era violoncelo o instrumento dele. Eu trabalhei muitos anos
com música, estudando piano.

Eu vim da música, das artes plásticas, do teatro e da dança. Isso foi muito importante.
Eu não sabia qual eu queria mais. Eu gostava de tudo. Mas eu tinha que escolher. Eu gostava
da música, queria ser uma grande pianista. Eu gostava de escultura, queria ser uma grande
escultora.

Eu expus em Belo Horizonte no Salão de Belas Artes. Eu ainda era estudante e ganhei
o primeiro lugar da crítica, que me considerou uma grande acadêmica. Estavam já me
colocando fazendo parte do academicismo. Eu contei essa história quando fui receber o
notório saber na Bahia.
141

E no Conservatório Brasileiro de Música, além de trabalhar bastante a audição e o sentido


rítmico dos alunos o que mais você fazia?

Eu trabalhei no Conservatório por dez anos. Eu trabalhava muito com linhas retas e
curvas, na parte rítmica. Eu vim da música. Caíque Botkay2 foi meu aluno. Eu ficava com um
mesmo grupo por três anos. Em 1975, quando abri minha primeira escola, eu ainda estava no
Conservatório. Eu trabalhava com linhas retas e curvas por causa do meu aluno cego. Eu
trabalhava também deslocamentos explorando os compassos. Pedia para os alunos andarem
de frente, numa linha reta, depois virando para o lado direito, novamente de frente, virando
para o lado esquerdo. Para desenvolver no corpo deles, a noção da tridimensionalidade. Os
giros também trabalham a tridimensionalidade. Você dá uma volta no seu próprio eixo. Eu ia
criando. Eu pensei: o que eu vou fazer para meu aluno cego andar reto? Eu disse para ele:
quando você der o primeiro passo, você coloca o seu pé no meio do seu corpo. E assim você
vai fazendo com cada passo, sempre colocando o pé no meio do corpo. Anda pensando
sempre no centro do seu corpo. Eu estava na frente dele e quando olhei para trás e vi o grupo,
ele era o único que estava andando reto. A linha reta dele era perfeita. E como eu queria
trabalhar o movimento, então eu primeiro trabalhei linhas retas, depois linhas curvas,
sinuosas, formas geométricas: círculos, quadrados, triângulos... Se você tem a geometria no
corpo, pode trabalhar isso na locomoção. Eu gosto muito do quadrado. Pedia para os alunos
trabalharem deslocamentos nas linhas do quadrado. Sem sair da linha. Misturava também as
figuras. Quadrado com círculo. A gente não riscava nada no chão. Eu dava um quadrado, por
exemplo. Um lado do quadrado deveria ser feito com uma locomoção simples. O outro com
mudanças de direção e saltos. Eles podiam repetir na terceira linha o que haviam feito na
primeira, e na quarta linha aquilo que fizeram na segunda. Depois, um dos vértices do
quadrado podia tocar num círculo. E eles iam criando, sem perder a linha.

Mas primeiro eu começo só com linhas retas no espaço. Peço 8 tempos andando numa
linha reta, 4 tempos em outra, 2 em outra, sempre mudando de direção. Pedia para que eles
observassem os espaços entre eles para não se trombarem. Com um aluno cego, eu tinha que
criar, criar...

2
Diretor musical e compositor, formado pelo Conservatório Brasileiro de Música em 1975.
142

É muito interessante, que mesmo que os olhos de um cego não consigam enxergar, eles
fazem movimentos para equilibrar a movimentação do corpo.

Sim. É assim mesmo.

A relação com a escultura deve ter ajudado muito você a entender melhor o corpo não?

Sim. Além da Escola de Belas Artes eu conheci uma escultora chamada Jane Milde. Ela era
belga, e foi contratada pela polícia de Belo Horizonte para fazer retratos falados de assassinos.
Ela fazia o desenho e depois a máscara da pessoa. Eu sabia que ela era uma grande escultora.
Quando eu soube disso, eu pensei: ela deve entender muito do corpo humano, de toda a parte
anatômica. Eu já estava na Escola de Belas Artes quando fui estudar com ela. A Jane Milde
me deu um conhecimento anatômico muito especial. Eu adorava. Eu fiquei muito afeita para
trabalhar essa parte anatômica verdadeiramente, o volume, tamanhos, as proporções todas
bem claras. Já era uma forma de interdisciplinaridade. Eu estudei música, artes plásticas,
dança e o teatro. Uma coisa levava a outra.

A música lhe dava o tempo, a escultura o espaço. Isso lhe ajudou a conceber uma visão de
corpo. Você acha que faz sentido?

Faz. E depois com as crianças eu fui perceber o tocar. O toque dos dedos da criança, quando
ela segura a mão da mãe, ou da amiga, ou de qualquer pessoa, é muito interessante. Porque
não é um toque de força, é um toque vital. Existe a força vital.

E o seu trabalho com crianças influenciou na criação dos Jogos Corporais?

Às vezes parece que dar aula para crianças é como se a criança fosse idiota, que ela não sabe
nada. Eu dava coisas fantásticas nas minhas aulas para crianças e elas percebiam tudo. É o
jeito de falar, o jeito de se colocar. Minha relação com as crianças influenciou na questão dos
Jogos, mas eu não falo Jogos Corporais somente no sentido lúdico. Minha intenção não é só
falar que é pra rir, pra brincar, pra divertir. O corpo precisa de alegria mesmo. Mas você tem
que trabalhar com seriedade, buscando a percepção das sensações, porque sem elas você não
percebe o corpo. As sensações são dicas para você perceber o que você sente em relação e
143

esse corpo. E às vezes você pode não ter sensações, nem agradáveis nem desagradáveis. Isso
acontece.

Você fala muito do eixo vertical no seu trabalho, da importância desta linha para o corpo
humano. Como você vê a relação desse eixo com os eixos horizontais que atravessam o
corpo?

O trabalho sobre a verticalidade lhe dá noção de oposições. Desta forma é mais fácil você
encontrar outros eixos. Tanto o anterior, quanto o posterior e os laterais. A verticalidade te
conduz naturalmente a isso. O corpo é tridimensional.

Você usa a o eixo vertical como referência na Preparação Corporal de atores?

Tudo que eu faço com a dança eu faço com atores. Para eles entenderem a
tridimensionalidade é sempre bom falar de eixo.

Eu faço muitos jogos. O Jogo Corporal. Uso muito a palavra, o som. Trabalho som e
movimento. Trabalho muito pela percepção. Sentir no próprio corpo é perceber tudo. Até o
intelecto. Porque corpo e movimento caminham juntos. Sem pensamento não existe
movimento. Sem movimento não existe pensamento.

Fala um pouco dos trabalhos que você faz com voz e movimento.

Eu peço para os alunos andarem. Depois falam uma frase andando. Peço que parem e falem a
frase parados. Eu não indico quem vai falar. Um fala, depois o outro e assim vai. Então eu
vou trabalhando locomoções e às vezes acaba virando um espetáculo. São Jogos Corporais.

Tem outro trabalho que eu chamo de “contra e a favor”. Formo duplas de alunos e eles
começam a discutir um tema. Se eles começam a falar de teatro, um vai colocar o teatro nas
alturas, o outro vai falar tudo ao contrário. Um diz: eu amo o teatro, e o outro: eu detesto o
teatro. E de repente eu peço que troquem de ponto de vista. É um jogo ótimo, mexe muito
com o tônus.
144

Você busca muito a integração dos saberes. Por isso eu acho que seu trabalho dialoga com
princípios da Teoria da Complexidade de Edgar Morin.

Sim. Os caminhos se cruzam e as coisas acontecem. Eu acabei de receber uma homenagem no


Festival de Joinville deste ano. Uma menina me disse que eu tinha que fazer uma palestra, e
que eu podia falar o que quisesse. Eu disse que poderia falar sobre corpo, mas que eu gostaria
de falar sobre a importância do ser humano, que está muito pouco atento consigo mesmo. O
ser humano está com pouca percepção do Ser, do seu semelhante. E coloquei a questão: o que
certos professores fazem com o ser humano? Eu disse que vários deles já tiraram o sonho de
muita gente. O que é um talento? Talento é trabalho. Eu disse em Joinville que gente é muito
especial. As pessoas têm boca, nariz, cavidade bucal, orelhas, mas ninguém é igual a
ninguém. Todos são únicos, mas têm que entender que vivem numa comunidade, com a
família, com a cidade, com o estado, com o país e com o mundo. Isso tudo afeta o corpo.
Qualquer coisa que acontece com você, ou com alguém que você conhecer, afeta
profundamente a sua memória corporal.

A questão humana para você e Morin é fundamental!

É fundamental para mim.

No seu trabalho uma coisa que chama muito a atenção é a constante busca da boa
quantidade de força para realizar um movimento.

Sim! A boa quantidade e não ultrapassar.

O sentido da visão é muito importante no seu trabalho.

Sim. Peço que os alunos observem detalhes do espaço, para depois perceberem a totalidade do
mesmo.
145

E como você trabalha o toque com seus alunos?

Trabalho muito o contato com os objetos (parede, chão, bola, papel), antes dos alunos se
tocarem.

E o trabalho com os Jogos Corporais? Você levou para a Preparação Corporal?

Levava!

Você apontaria algum ator ou atriz que tenha demonstrado com maior evidência a relação
com seu trabalho?

Muitos foram os atores que perceberam o trabalho e continuam percebendo. Mas a Yara
(Amaral) era especial.

O que você fazia quando começava um ensaio com a Yara?

Eu preparava o corpo. Trabalhava as articulações dela. No chão, em pé. Botava pra andar,
espreguiçar, sentar, levantar. Yara era muito disciplinada. Ela não queria parar de trabalhar. Já
tinha trabalhado, percebido, visto... Eu dizia: Yara, chega, está ótimo. E ela respondia: Não,
ainda falta isso, aquilo...

Trabalhava articulação com objetos?

Sim. Bolas eu sempre utilizei.

E os objetos que ela usava na peça?

Às vezes. Não era sempre não. Primeiro era o corpo que me interessava.
146

Ela fazia aulas com você?

Nas peças ela fazia. Ela era algo superior. Eu dizia para ela: Projeta o movimento como você
projeta a voz... E ela entendia. Parecia que o movimento dela chegava onde ela queria. Eu me
comovia com o que ela fazia.
ANEXO C – DVD
164

ANEXO D - ENTREVISTAS

Entrevista I: Duda Maia................................................................................................ 165

Entrevista II: Márcia Feijó............................................................................................ 178

Entrevista III: Denise Stutz........................................................................................... 191

Entrevista IV: Marina Martins...................................................................................... 197

Obs: As entrevistas e transcrições das mesmas foram feitas pelo autor.


165

Entrevista I (7/03/2011 e 28/03/2011)

Duda Maia

Como foi sua formação?

Eu comecei a fazer dança em Recife. A escola onde eu estudei, da Mônica Japiassu,


você fazia balé clássico, mas também outras atividades. Tinha uma aula de Expressão
Corporal e outra de iniciação musical. Então a gente fazia as aulas de balé e a iniciação
musical, que era mais um trabalho com instrumentos musicais percussivos, um trabalho mais
de ritmo. A aula de Expressão Corporal era quase uma aula de teatro, eu gostava muito e me
divertia mais do que nas outras aulas. Depois essa escola fechou e eu fui para uma escola de
balé um pouco mais tradicional, a escola da Ruth Rosembaum. Foi onde eu tive uma
formação técnica muito grande.

Quando eu tinha catorze anos, meu pai morava em Londres. Então eu fui para lá,
passar um tempo. O ensino na Inglaterra nessa época era muito interessante. Minha escola
tinha um convênio com o The Place, que tinha uma turma destinada aos alunos das escolas
públicas. O The Place fazia uma audição com todos os alunos dessas escolas e escolhia os
melhores. Eu fui uma das duas pessoas que passou na minha escola. No The Place, eu me
lembro de um trabalho que a gente fez. Fomos na Tate Galery ver os quadros. Podíamos
escolher o que era mais forte para nós, e fazer alguma coisa a partir do que fosse escolhido.
Eu fiz um trabalho baseado no Matisse cego. Uma colagem. Outro trabalho foi assistir a um
espetáculo e fazer uma crítica, ou uma análise. Escrever sobre uma sensação sua. Foi muito
legal ver a dança com um olhar que não fosse só técnico, ou só físico, mas como um
pensamento. Não que eu ache que quando você está fazendo uma aula de balé você não está
pensando. Mas mais como um criador e não só como alguém que está procurando aprender
uma técnica.

Então, eu voltei para Recife, larguei o balé e entrei numa escola chamada Contato, que
tinha como matéria facultativa, dança contemporânea. No terceiro ano do segundo grau eu fiz
vestibular para artes cênicas e passei.
166

Você chegou a cursar artes cênicas?

Eu fiz Educação Artística, com especialização em artes cênicas porque era o que tinha
em Recife na época. Cheguei a cursar dois semestres de artes cênicas, enquanto participava do
grupo de dança da Paula Costa Rego, que pesquisava a dança popular. No grupo da Paula
ninguém quis seguir o caminho das artes. Então ela foi para a Bahia e eu vim para o Rio. Eu
bati na porta da Angel para fazer um curso livre, fui fazer aula com a Lúcia Aratanha. Eu nem
sabia que tinha curso de formação ali dentro. A Lúcia disse que eu devia fazer o Curso
Técnico, e eu entrei. O teatro veio também com a Lúcia. A Lúcia era Preparadora Corporal do
Kike (Enrique Diaz), época de A bao a qu, um lance de dados. Eu achava muito difícil aquilo.
Não tinha planos de fazer Preparação.

Difícil por que?

Porque, como ainda acho, para trabalhar com Preparação Corporal você tem que ter
um conhecimento de teatro que eu não tinha. Eu não sabia como começar. Para mim era
muito mais fácil dar uma aula de dança.

O que você considera específico no trato com atores?

Eu acho que a pessoa que trabalha com o corpo do ator, mais do que ser um bom
entendedor do movimento, ele tem que ser um bom psicólogo. Porque um bailarino quando
entra numa sala de aula, ele já sabe que vão mexer com o corpo dele. Quando você pega
atores que têm disponibilidade corporal é muito mais fácil. Mas às vezes você pega um elenco
de sete pessoas, onde tem uma que faz circo, outra faz ginástica vinte quatro horas por dia,
outra faz yoga, e uma pessoa que está com uma hérnia e não pode se mexer. Então, como é
que você organiza um trabalho? Eu sempre fui muito dura dando aula e eu tive que ficar um
pouco mais doce, para fazer esse trabalho de Preparação Corporal. Ator é um bicho vaidoso.
Se ele confia em você, você pode pedir qualquer coisa, que mesmo com a hérnia ele vai fazer.
Bailarino às vezes está mancando, mas faz. Eu tento deixar os atores na minha mão. Na
primeira aula eu não coloco no chão ou peço um monte de abdominais. Faço uma aula onde
as pessoas se sentem dançando e faço muitos elogios. Tento fazer com que elas sintam prazer
em se mexer, que elas confiem no que eu falo para elas.
167

Na especificidade da relação com um ator, você tem que convencê-lo que o trabalho
de corpo é importante, porque nem todo mundo tem essa disponibilidade. Eu sou mais
chamada para trabalhar via atores do que via diretores. Os atores me querem mais do que os
diretores.

E na relação com os diretores?

Varia muito. Eu acho que esta relação com o diretor é um casamento. É um namoro. É
uma relação séria. Eu acho que tem que ter uma cumplicidade, uma confiança. Se o diretor
duvida do trabalho do Preparador, ou se o Preparador duvida do trabalho do diretor, a chance
do trabalho ser ruim é enorme. E no final das contas vai ser mais frustrante para você, porque
você não está assinando o trabalho. Você não pode bater o pé e peitar que você quer aquilo.
Mas claro que você pode discutir. Eu tive sorte de fazer grandes parceiros. Ensina-me a viver,
com o João Falcão, foi um trabalho tipo: um levanta e o outro corta. Às vezes ele ficava dois,
três dias escrevendo, e eu fazendo as coisas que ele me pedia, e raramente ele fazia uma
mudança radical. Geralmente ele fazia do jeito dele, mas seguindo linhas que havíamos
pensado juntos.

Como era? Você dava aulas para a Glória Menezes e para o Arlindo?

Não! Não cheguei a dar aulas para eles. A peça tem quatro atores e cinco outros que
fazem uma espécie de contra-regragem. Toda vez que acaba uma cena, tem uma transição
para mudar um cenário, para começar outra cena. Por exemplo: tira uma mesa, coloca uma
cadeira, acerta uma bandeja, entrega um copo. Todas essas cenas eram coreografadas.

E você deve ter trabalhado não só a coreografia, mas também o sentido dessas marcações.

Claro! Mas isso é uma coisa que o João dirige muito bem. O João é muito
coreográfico. Eu acho que ele não precisa de mim, nem de ninguém. Ele precisa porque ele
não dá conta da quantidade de coisas para fazer.
168

Mas ele é hábil para chegar ao corpo do ator?

Ele é... mas eu tenho mais técnica do que ele. Às vezes eu me perco nessa trajetória
com o João Falcão, sem saber o que eu fiz, o que ele fez, o que fizemos juntos. Eu virei
assistente dele. Isso é outra coisa que, durante muito tempo, me deu um “tesão” muito grande,
mas que hoje em dia não sei se eu aconselho. Eu acho que a demanda da assistência de
direção é tão grande, que você não faz um bom trabalho de corpo. O Preparador Corporal
trabalha com o olho, e quando a gente faz assistência, grande parte do tempo a gente está
anotando. Eu fazia as duas coisas com o João e com várias pessoas. Fiz isso para o Aderbal
(Freire Filho), para o Marcelo Mello, para o João das Neves, para o André Paes Leme. Várias
coisas de corpo, nesses trabalhos, eu resolvi depois da estreia. Eu cobrava do cenário, eu
cobrava do figurino, eu cobrava da luz, eu fazia ponte com a produção, eu cobrava do João
(Falcão) para terminar o texto, mas não cobrava de mim mesma como Preparadora. Quem
cobrava de mim era o João. Por exemplo, o Dhrama, eu acho que foi o melhor trabalho que eu
fiz com o João, pensando na direção de movimento especificamente. Quando o João me
chamou, ele tinha uma pessoa para fazer assistência, que era o Luis Estelita, que foi quem
convidou o João para fazer o Dhrama, baseado no Baghava Gita. O João me chamou para dar
aula para o elenco, que era o Osvaldo Mil e a Aline Moraes. Ele me chamou para isso. Então
combinei com João de fazer um trabalho com eles para conhecer os corpos dos atores, e que
ele não precisava ir. Isso é uma coisa muito minha e dele. Ah! Hoje você não precisa ir não!
Ele sempre me deu muita liberdade de ficar quieta com os atores. Porque às vezes é ruim,
quando tem quinze pessoas na sua frente e o diretor diz: faz aí! E fica olhando atrás. Por mais
experiência que eu tenha, eu gosto de dizer: Não, não, sai daqui! Eu não quero ninguém. Eu
quero só os atores comigo numa sala. Eu produzo melhor. Então eu comecei a trabalhar com
os atores, fazendo uma improvisação que era uma bobagem. Eu disse gruda a mão e vê todas
as possibilidades que vocês têm de mexer, sem se separar. E aí eles começaram a fazer umas
coisas lindas. E o João insistindo: eu quero cada um de um lado, talvez sentados numa
cadeira. Era uma peça que não ia ter movimento nenhum. Então eu liguei para o João e disse:
João eu descobri uma coisa muito bonita. Você me dá mais dois dias para eu mostrar? Ele
disse: Dou! Então eu continuei.
169

Você foi trabalhar já sabendo como a direção estava pensando o espaço?

Exatamente. Era só para dar o aquecimento. Mas os atores foram se abrindo para as
coisas que eu estava falando. Os dois eram super disponíveis. Ela faz aula de balé. Ele anda,
corre na areia. Passei mais dois dias trabalhando com eles, sem ninguém ver. No terceiro ou
quarto dia eu mostrei para o João e disse: Você não precisa usar, mas pelo que eu conheço de
você, acho que você vai gostar. E aí ele enlouqueceu vendo os dois dançando, porque era uma
coisa de pegar, virar de cabeça para baixo. O trabalho ficou lindo. Ele foi todo coreografado.

Como você conduziu a passagem dos improvisos para os movimentos marcados?

A gente foi fazendo junto.

Você mexeu no conceito da encenação?

Exatamente. E os atores usavam esta proposta como aquecimento. Eu ficava o dia


inteiro com o João. Ia para a casa dele de manhã. A gente pegava uma folha de papel e
desenhava cada cena. O João é pernambucano e eu também, então a gente começou a
pesquisar músicas populares. A gente usou umas batidas, que depois foram transformadas
numa outra música. Tinha uma banda de três músicos ao vivo. O João trabalhou comigo nessa
passagem dos improvisos para os movimentos marcados. A gente chegava com a ideia pronta.
Arjuna fala isso, Krishna fala junto, e eles estão juntos. Depois eles deveriam se mover. Eu
usei a batida dos caboclinhos, mas eles podiam estilizar isso.

Você levou propostas de movimento para o elenco?

Sim. Por exemplo... agora nessa cena o Arjuna esta atrás de Krishna, e vai falando os
textos dele procurando os espaços dela, enquanto ela faz algo lentamente. Passava umas
quatro horas numa sala de ensaio descobrindo junto com eles, falando: abre o cotovelo abaixa
a cabeça. Depois que eu montava a cena, do jeito que eu tinha combinado com o João, ele
vinha e dirigia. Às vezes mudava um movimento ou outro...
170

Trabalhando o sentido?

É! E o tom. Aquilo que ele queria que falasse parado, o que podia falar mexendo.
Botava a cena exatamente como ele queria. E aí entrava o lado da assistente. Eu dizia: Ok, vai
para a sua casa, a gente vai repetir duzentas vezes e amanhã está bom. E aí no outro dia a
gente pegava outra cena e fazia tudo de novo.

E na relação texto e movimento? Você ajudou?

Sim

Com o Aderbal Freire Filho você fez o que?

Estatuto de gafieira! A coreografia era do Carlinhos de Jesus, e eu acabei trabalhando


na expressividade dos movimentos. Eu e o Aderbal colocávamos a coreografia de um jeito
mais teatral, não só dança.

O que você quer dizer com trabalhar a expressividade?

Eu falo muito que acho mais difícil fazer um trabalho de corpo do que ser um
coreógrafo com seus bailarinos. Não que eu ache que seja melhor ou pior. Mas eu acho que é
mais difícil, porque não é a partir de uma ideia sua. Quando é a partir de uma ideia sua, você
tem suas inseguranças, suas dúvidas, mas você tem que entender você. O que você quer. Mas
quando você está fazendo um trabalho de corpo, de direção de movimento, é como se você
tivesse que entrar na cabeça de alguém e olhar com o olhar dela. Não é com o seu olho. Então,
não adianta o movimento ser perfeito, você tem que entender o que aquela pessoa quer, e
fazer que o corpo ajude e não sobressaia.
171

Às vezes pedem coisas para um Preparador Corporal, como se a Preparação não


demandasse processo.

Essa coisa é difícil. Eu peço um tempo. E digo que preciso de um ensaio para mim só
com os atores. Eu faço muita questão de não ter ninguém. Ninguém de produção, nem diretor
se possível.

E uma coisa que eu gosto muito de fazer, depois que a cena está marcada, é trabalhar
sem o texto. É trabalhar mudo. Eu trabalho muito mudo.

Qualquer cena você pode trabalhar assim?

Qualquer cena.

Mesmo aquelas mais verborrágicas?

Sim! Porque você pode transformar o verborrágico em movimento, e depois fazer


parado e falando. Quando eu trabalhei com a Luana Piovani, no Pequeno príncipe, ela fazia o
pequeno príncipe, que era um menino pequeno, e ela é um mulherão, de dois metros de altura.
O que eu fiz? Eu peguei uma criança, que mora no morro, que fazia aula comigo no “Dança e
Cidadania”, comprei uma bola e deixei os dois brincando uma tarde. E ela foi virando um
menino.

Outro trabalho que eu fiz com o Aderbal foi O relicário de Rita Cristal, um show,
meio teatralizado, com a Vera Fajardo. Eu entrei no meio do processo, o Aderbal já tinha
praticamente levantado todas as cenas. Era um trabalho muito... espacial. Naquela hora você
senta, naquela hora você pega. Então, em cima de todas essas ações que o Aderbal tinha
feito, a gente foi criando minúcias, de trejeitos, de tornar aquela ação um pouco menos
cotidiana.

Foi diferente do trabalho com a Luana?

Sim.
172

Mais voltado para o espaço?

Não. No fundo o trabalho de Preparação, ou direção de movimento, seja lá que nome


tenha, é uma complementação do trabalho de direção. Você pode até propor coisas que se
complementem, mas não dá para trabalhar na mão contrária. Na fala do Aderbal fica claro que
seu maior objetivo é estabelecer uma comunicação com o público. O Aderbal é um arquiteto.
Ele planeja as coisas espacialmente.

Quem está ali do lado, fazendo esse trabalho de corpo tem que ter um olhar muito
atento para ajudar o ator a fazer o que o diretor quer. Isso para mim é o mais difícil.

No caso com o João Falcão, tenho uma parceria de anos. Mas já rolou dele dizer: faz
aí, e depois não ser nada daquilo. Ele também, às vezes, faz uma coisa e depois muda tudo.
Ele não acerta todas.

Você se sente uma tradutora? Traduzindo a linguagem de um diretor para um ator e vice-
versa?

Já me senti um pouco sim.

Algum exemplo?

Às vezes com o próprio João (Falcão) já aconteceu isso algumas vezes. Mas alguns
diretores têm medo que o Preparador Corporal possa destruir uma linha que vinha sendo
construída. No trabalho de voz eu já vi ator que sai da preparação vocal com a voz mais
empostada. Eu tento ser muito respeitosa ao que o diretor quer. Comigo já aconteceu de ver
na cara do João que ele não tinha gostado e eu falei, Vamos mudar. Você não gostou. Vamos
jogar essa ideia fora e pensar em outra? Deve ser difícil para um diretor deixar alguém
trabalhando com um elenco cinco horas e depois dizer: Não é nada disso!
173

Como você vê o seu lado professora na Preparação?

Eu vejo forte sempre. A questão de você ser um bom professor, e eu sempre gostei
muito disso, te dá uma clareza no falar. Quando você vai explicar alguma coisa. Professor
explica.

É sempre bom já no aquecimento você descobrir formas de trabalhar o lado


expressivo. O maravilhoso de ter tido o trabalho da Escola da Angel é entender que se numa
cena você tem que passar medo, por exemplo, não adianta fazer uma voz de que você está
com medo porque ninguém vai acreditar. O que você tem que fazer, e às vezes demora mais
tempo, e que você consegue com umas pessoas e outras não, é entender que existe um
mecanismo muscular quando você sente medo, e como você aciona este mecanismo no corpo,
mesmo que não sinta medo, porque você está contracenando e sabe que ninguém vai te matar.
Você sabe o final da história. Quando eu tenho mais tempo, eu tento muito trabalhar nesse
lugar da musculatura. Qual o tipo de contração muscular?

Lembra de algum exemplo?

O exemplo da Luana. Que encontrou um estado muscular pelo fato de brincar sem
parar de bola com uma criança. Porque a criança é incansável e a gente cansa. Eu dizia: então
vai, propõe outra coisa, não para... Senão vai ficar chato e ele vai desistir de brincar com
você. A criança tem isso, você tem que virar quinze coisas, porque se ficar uma coisa só, ela
quer fazer outra. A Luana no Pequeno príncipe foi um exemplo disso.

Você lembra de trabalhos mais relacionados à estimulação de estados?

No momento, mais nas aulas que tenho dado. Sentindo a estrutura óssea antes de
qualquer coisa. E sentir que você dobra. E perceber que é por causa dessa dobra que você
pode criar uma postura que não seja estereotipada. Porque se você muda uma coisa mínima na
sua estrutura óssea você vai andar diferente. Seu andar vai ser outro, mesmo que isso não seja
tão perceptível. A partir de uma mudança da sua estrutura óssea você entra numa nova
postura, que não é a sua postura natural. Eu posso começar pedindo que as pessoas andem
prestando atenção em como elas caminham. Peço que parem e modifiquem um pouco a
estrutura óssea, por exemplo, colocar o púbis um pouco mais na direção do umbigo. E peço
174

que voltem a andar percebendo as diferenças. Peço para parar de novo, voltar à postura
natural e andar. Parar novamente e fazer outra mudança. Por exemplo, descer um pouco a
escápula direita. Voltar a andar.

Andar sustentando a modificação?

Sim! Se você mudou sua bacia de lugar é como se ela naturalmente fosse assim. Então
vai se criar uma nova postura e consequentemente um novo andar. Não porque você está
querendo fazer um trejeito, mas porque organizou a estrutura óssea de outra forma. Se a
postura muda, o modo de se movimentar muda. Esse é um trabalho que eu faço muito. A
partir disso, o que eu faço é sugerir que brinquem com essa estrutura origami, que é tudo que
dobra e desdobra no seu corpo. Entender que quanto mais você dobra mais formas você tem.
A gente trabalha com forma, a gente trabalha com estética. Então se você dobra pouco você
tem algumas formas, quanto mais você dobra, mais formas você tem. Só tem movimento
porque você tem a dobra, porque você é capaz de ser esse origami. Onde não tem dobra não
tem mudança. Você nunca vai poder fazer uma forma diferente com o meio do seu antebraço,
mas com o seu pulso você pode fazer várias, porque ele mexe. Então é descobrir onde tem
movimento no corpo. Eu tento fazer que a pessoa pesquise e encontre um lugar que para ela
seja estranho, um lugar que ela não frequenta.

Nessa pesquisa com as dobras, você sugere que o aluno/ator fique num lugar estranho?

Mas que também é bom de estar. Geralmente as pessoas ficam muito tortas nesse
trabalho. A partir daí, dependendo do grupo, eu chego à musculatura. Como é que a sua
musculatura está respondendo? Prende a musculatura! Solta a musculatura! Às vezes eu
entro em coisas específicas. Posso pedir que a partir desse trabalho articular e muscular se
trabalhe alguma característica forte de uma personagem. Por exemplo, no caso de um velho
com uma bengala, não me interessa a bengala, mas eu quero ver o velho. Achar essa
humanidade não por uma voz, mas pela musculatura. Se você acha a musculatura, vem a voz,
vem o corpo. A minha linha de trabalho tem sido ativar esse canal que é muscular. Eu acho
que quando você tem que fazer uma cena de paixão e a sua musculatura está relaxada, eu não
vou acreditar nunca.
175

Essa história de trabalhar com a musculatura não é uma coisa simples e demanda
tempo. Como você lida com isso?

É difícil! Por isso eu acho que estou me voltando mais para a dança. Mesmo
percebendo que meu entendimento do teatro agora é muito maior. Eu consegui fazer isso com
o João das Neves, na Farsa da boa preguiça. A gente trabalhou com boneco, mamulengo, e
ele não quis nem saber, se quer fazer... todo mundo vai fazer teatro de grupo. Então todos
tiveram que fazer oficina de mamulengo. E você vê que resulta numa linguagem.

Você também participou das oficinas?

Participei de todas, porque eu fiz assistência e o trabalho de corpo. Eu estava lá todos


os dias. Eu dei aula para o elenco todos os dias. Uma aula técnica, de flexão, abdominal,
alongamento... entrando no jogo do universo popular do Ariano (Suassuna). Na Farsa da boa
preguiça tem bicho a beça, então é tentar descobrir como você faz a cabra sem tentar imitar a
cabra. Como você faz o coelho sem fazer o coelhinho. Qual é característica do coelho? Ele é
esperto, ele é rápido. O João das Neves diz: Eu quero uma pessoa de corpo que esteja aqui de
segunda à sexta. Começando... Trabalhando duas horas. E faz diferença! Ele assiste às aulas
e quando entrava nas improvisações dos cordéis, ele partia de alguma proposta que tinha saído
da minha aula. E foi muito legal porque ele me deu muito espaço.

Eu trabalhei também com o Paulo José. Foi uma experiência boa. Eu fiz a assistência
dele no Ana Cristina Cesar. A Ana Kutner me chamou. O Paulo não tem muito esse lugar do
corpo. Ele é ótimo. Muito inteligente, e tem um dom com a palavra, que para mim é
estarrecedor, eu nunca vi nada igual. E a Ana (Kutner) é muito corporal. Ficou muito na
minha mão trabalhar com ela sozinha.

E como foi essa relação como o corpo num trabalho em que a palavra ocupa um lugar tão
importante?

Nesse caso, não foi uma Preparação que apareceu tanto na cena. Foi uma coisa mais
para o processo dela, de fazer aula. A gente fez várias improvisações com ela rabiscando no
chão, na perna. O que a personagem mais fazia era escrever. Então trabalhamos muito com
essa imagem, que não foi utilizada na peça. Quando ela escrevia na peça ela de fato tinha uma
176

caneta, um papel e estava de fato escrevendo. Mas a Preparação deu algo para ela! Por isso
que eu acho que às vezes você é mais chamado pelo ator do que pelo diretor. O ator quando
sente o trabalho funcionar, ele realmente sente na pele.

E o que você acha desse termo, Preparação Corporal?

Eu acho que você tem que lutar um pouco pelo nome que você quer. Como você quer
assinar. Hierarquicamente, quando você assina Preparação Corporal você está lá embaixo.
Quando você assina Direção de Movimento, você está junto do cenário, do figurino, você está
lá em cima, com um status maior.

Você acha que a Direção de movimento deixaria mais claro uma assinatura e uma
interferência maior?

É! E acho que a Preparação tem mais relação com você preparar. Deixar os atores
disponíveis. Ajeitar uma coisa ou outra. Aquela queda ali não funcionou, então você vai lá.
Mas eu geralmente assino Direção de movimento.

Depois de ver a cena do documentário ‘Le soleil même la nuit’, caso você estivesse
trabalhando como Preparadora Corporal naquela produção, o que você proporia como
estratégia para colaborar?

Ver a Juliana fazendo é muito forte. Vendo o corpo dos dois, a Juliana está muito
mais com ela quando faz o Tartufo.

E se você pudesse trabalhar com aquele ator?

Nesses trabalhos de busca de afeto eu procuro sempre propor alguma coisa que não
está ali.

O que me ocorre, na situação do ator que faz o Tartufo, quando você chega ao ponto
de se declarar para uma pessoa dizendo: eu quero você. E você está recebendo um não, é
177

porque você está perdendo alguma coisa que deseja. A primeira coisa que me ocorre é
trabalhar um sentimento de afeto entre os dois.

Mesmo que isso não esteja no texto?

Sim. É uma rejeição que ele está vivendo. Se você cria uma ideia de repetição, por
exemplo, um de frente para o outro e os dois se aproximam, ele faz um gesto e ela responde a
esse gesto de uma maneira afetuosa. Algo bem físico. Ele abraça e ela dá um beijo. O que
você faz com uma pessoa que faz um carinho em você e isso é bom? Como você responde? E
quando eu, de fora, perceber que ele encontrou um afeto por essa mulher. Eu diria: Agora ela
rejeita. Ele vai abraçar, ela não deixa. Ele vai beijar, ela não quer. Ele se aproxima e ela vira
de costas. Como ele faria a cena em seguida? Como seria ter a mão dessa mulher e, de
repente, a mão dessa mulher não querer mais? Com ele vai atrás dessa mão? Eu procuraria
trabalhar o afeto, mesmo que através de situações que não são citadas na peça.

Eu tento inventar situações diferentes, que às vezes nem estão no texto. E sempre sem
usar a palavra. Às vezes eu até emendo no texto, mas quando eu sinto que a coisa está
acontecendo fisicamente.
178

Entrevista III (14/03/2011)

Márcia Feijó

Como foi sua formação?

Bom... Eu venho do balé clássico, bem tradicional. Eu comecei a Faculdade de Belas


Artes, e lá um amigo me disse: Ah, eu conheço um pessoal de dança que você vai gostar! E
era o Klauss (Vianna). Eu já não aguentava mais o balé clássico.

Então foi na Belas Artes que você ouviu falar do Klauss e da Angel?

Sim. Com um amigo pintor e escultor. Ele me conhecia, já tinha me visto dançar.
Sabia que eu era bailarina mesmo. Ele me levou para uma aula no Coringa. Com a Graziela
Figueroa, tudo muito bom, mas eu precisava de uma técnica. Lá era tudo muito aberto. Aí fiz
um workshop do Klauss, que foi fundamental. Doeu muito! Aí eu fiquei curiosa. Eu me disse:
Meu Deus, eu acredito no ele está falando, mas meu corpo está doendo muito. Meu corpo
estava en dehors, e ele me colocou en dedan, muito mais alongada. Então eu fui para a Escola
da Angel. Fiz o Técnico e conheci as pessoas que me mudaram completamente: Lúcia
Aratanha, Paula Nestorov e Luciana Bicalho. As três pessoas que me apontaram uma
corporeidade diferente. Tudo mudou. Meu mundo já era da arte. Eu vim da pintura. Meus pais
são pintores. A questão plástica era muito forte em mim. Aquela mudança de código do
movimento é que mudou a minha visão de mundo. Eu comecei a dar aula de balé para
crianças aos dezesseis anos. Eu dei aula de balé por vinte anos, até eu dizer: não quero mais
dar aula de balé clássico. E acho que o jeito que se ensina balé clássico é o pior possível. Por
isso eu tentei fazer tudo diferente. E para mim chegaram todos os patinhos feios da cidade.
Aqueles que não se encaixavam na Dalal Aschcar, ou nos outros balés, apareciam na minha
porta querendo dançar. E dançavam. Montei O lago dos Cisnes, Copélia, todos. E dançando
as novidades que a gente tinha na escola, o pensamento contemporâneo, a dança
contemporânea.
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Mas como eu sempre fui muito observadora, me convidavam para fazer Direção de
movimento, sem ter esse nome.

Isso começou quando para você?

Na década de oitenta. Eu estava na minha formação lá na Angel. Chamavam


Expressão Corporal. Mas já naquela época eu estava mudando essa ideia, porque eu achava
que era Educação Corporal. Já era uma forma de somar, não apenas de moldar. Uma forma de
entender pela consciência, pelo uso, pela experiência em si mesma. E fui estudando isso em
cima do que eu já fazia nas Belas Artes. Como você faz um quadro? Como você desenha essa
imagem? Na verdade é a sequência do pintor. Quando você vai pintando um quadro, as
camadas vão sendo expostas. Assim eu acho que é também a cena. Você está falando de
impacto visual. Tanto na pintura, quanto no teatro, quanto na dança. Aquele sentimento todo
vai chegar a você pelos olhos.

Eu parei a Belas Artes e fiz uma exposição. Era uma exposição de gravuras, na PUC.
E ela foi toda assim: Bacia, sacro, atlas e axis... E eu disse: Meu Deus! Só isso está na minha
cabeça agora. Essa foi a última exposição que eu fiz. Era uma coletiva e a minha parte ficou
assim.

As Belas Artes, a questão visual, foram fundamentais para sua compreensão de corpo e
movimento. Angel também passou por isso...

Ela fez com as mãos, muitas esculturas. E eu também esculpi muito. A mimese para
mim como professora ou diretora de alguma coisa, não é meu foco. Eu preciso que o
aluno/ator faça, e então descubra. Quando ele descobre alguma coisa, ele começa a dialogar
comigo. Ah! Eu sinto tal e tal coisa, e aí vai. Eu posso mostrar algum movimento. Foi como
eu aprendi. No balé ninguém experimenta. Tem que fazer igual. A professora manda, e aquilo
me cansou ao extremo. Quando eu descobri na Angel que eu podia ter um jeito próprio, eu
comecei a assinar meus movimentos. Eu sou dona deles. Não posso mais com uma doutrina
datada, estrangeira, num país corporal, tropical. A corporeidade brasileira sempre me
chamou muito a atenção. Eu deixei a escola do Teatro Municipal e fui para a Angel. Por isso
cheguei lá de colant e malha. Eu já estava parada, fiquei seis meses parada. Nesse tempo eu
180

fiz capoeira, jiu-jitsu. Coisas que eram o extremo oposto da dança, mas uma experiência de
vigor. Eu fiz dança de salão, vários estilos. Passei para outros campos da corporeidade, mais
populares. Lá na Angel voltei a fazer o clássico de outra forma, com a Vera Andrade. E como
ela tinha percebido que eu gostava daquilo, que eu estava aprendendo a refazer aquilo de
outra forma, eu assumi muitas turmas dela. E tive que montar muitos espetáculos com
crianças.

O que, de toda essa sua diversificada experiência, você considera que existe de singular na
sua relação com os atores?

Eu não sei se é meu, ou se eu encontrei lá na Angel... Eu sou radical com os excessos.


O ator, assim como o bailarino, traz muito ruído em excesso. E o gesto e a palavra ficam
cacófatos. Ele não dá o peso natural que o gesto tem em si, esvazia a palavra porque é
redundante com o gesto. Então eu fico limpando o ator primeiro. É o trabalho mais longo.
Primeiro eu tenho que tirar o excesso de gesto e o excesso de palavras vazias. São formas que
ele já tem, pré-utilizadas. O princípio do trabalho com o ator é a consciência corporal. Então a
gente trabalha o corpo atual do ator.

Aquilo que o ator oferece para você no momento presente?

Isso! Agora! Porque você está diferente de ontem, da semana passada. E a gente
começa a colocar os afetos da personagem no corpo já tranquilo. Muitos atores que eu pego,
fazem trabalhos corporais. Fazem Yoga, uma malhação. Têm até uma tonicidade latente, que
facilita. Um ator “paradão” pode até ser bom se ele tem disponibilidade. Atores que não têm
disponibilidade são os ansiosos. Os mais jovens também. Eles trazem um “que” televisivo,
que corrói um pouco. Uma coisa na respiração. Eu falo: observa a respiração, o esqueleto,
sua musculatura.

Como você lida com isso num curto espaço de tempo?

Eu digo: pausa, escuta, respira, desfaz a ansiedade. Chegar ao papel branco se


possível. E aí vamos lá. Vamos colocando as tintas. Os traços primeiros. O que eu chamo de
181

tinta e de traço? A pessoa tranquila, se vendo, colocando então nuances posturais. São os
rascunhos.

Fala um pouco mais sobre o rascunho.

O rascunho. Bom... Você tem uma postura natural. Nesse ponto a técnica de
Alexander me ajudou muito, porque ela mostra o que é uma neutralidade. O Pilates mostra o
que é uma coluna neutra. Trabalhos que me deram isso, então eu posso ver isso no outro.
Você vai fazer um homem muito mau. De onde vai sair essa maldade? E aí a gente vai
fazendo esse rascunho. É importantíssimo o ator se ver. E também se ver personagem.

Eu gosto dessa expressão rascunho. Porque ela inclui as tentativas, os desvios...

E veja quantos detalhes estamos considerando. Estamos vendo as camadas musculares,


as posturas, os olhares, os ângulos, a movimentação, os trejeitos, tudo!

Os desequilíbrios tônicos!

Isso! Quando o ator está afrontado na ação... Esses laboratórios, que para mim são os
rascunhos, eu adoro. São fundamentais. Por isso eu repito muito. Às vezes os trabalhos são
curtos, mas têm ecos grandes. Eu evito falar muito. Eu falo pouco e baixo. Raramente eu
grito. E como eu não falo muito eu tenho que exercitar a palavra.

De onde sai essa raiva que ele tem? Como ele faz isso? O corpo que luta, é assim? É
assado? A pessoa vai colocando. Então eu falo: Não, vamos tentar outra coisa. Vamos fazer
de outro jeito. Aí eu boto obstáculos nas pessoas, para elas irem incorporando outros modos
de fazer.

Você lembraria de algum exemplo em que você trabalhou com obstáculos?

Eu estava trabalhando com uma atriz, que era um amor, e ela tinha que fazer uma
personagem bipolar, depressiva e drogada. O tipo de droga, o diretor deixou livre. Podia ser
182

uma bola, cocaína, podia ser tudo misturado com bebida alcoólica. Como é que é isso? Então
vamos ver o que é cada um. Isso era cinema. A gente podia fazer, desfazer, mas tínhamos
poucas horas de filmagem, e devíamos ser certeiros. Então eu pensei: o dano é tamanho... não
tem equilíbrio. Eu disse para a atriz: eu vou amarrar um braço numa perna, para você chegar
do outro lado. A marca é essa. Você sai daqui e vai para lá. O exercício de amarrar o braço
na perna foi um obstáculo.

Isso tudo foi antes da cena?

Sim. Na hora de filmar não tinha nada amarrado, mas aquilo estava inscrito na
experiência. E aquilo apareceu. As articulações presas e o deslocamento com dificuldade.
Vendo a pessoa não amarrada você se pergunta: de onde vem esse desequilíbrio? Isso me veio
porque na escola da Angel a gente trabalha com extrema criatividade. A gente tinha que ser
criativo corporalmente. Todos os dias.

Tudo isso, tanto para o ator como para o cantor, implica numa ética impressionante. O
respeito ao movimento, ao corpo e ao que se está fazendo. Além de ser arte, é do trato
humano, ético.

Você está falando de coisas que mostram como os ensaios são intensos. Você também fica
mobilizada nesse período?

Sim! Penso no projeto o tempo inteiro, até dormindo. De saber o texto todo. De ter
insight. De acordar e ter que escrever de madrugada. Ah! Achei um negócio! Eu vou propor
isso! É tudo muito intenso.

Juntando com o que a gente aprendeu na Angel. Toda a experiência interna que ela nos
propõe, não pode passar em vão pela gente. A gente codificou isso. Se a gente esta fazendo
uma aula com a Angel, numa experiência intensa com o corpo interno, a gente está ali
nominando aquela experiência de sensações.

Quando eu faço um trabalho de limpeza do corpo do ator, eu sempre jogo uma


imagem que eu vivi. Quando eu estou com um ator e eu tenho que montar aquela personagem,
de alguma forma eu vivo aquela personagem. Todas. Eu vivi todas, em mim. E aquele gesto
183

eu tive que buscar em mim, nas vísceras, no movimento interno, no deslizamento ósseo, uma
questão mental. E aí eu jogo essa imagem para o ator e vejo como é o caminho dentro dele. Só
concebo falar isso agora, porque eu tive uma intensa vivência do corpo interno, por causa da
Angel. Por isso eu pude entender de onde pode sair uma tristeza, um riso. Por que vai gritar?
Por que vai botar o peito para frente ou as costas para trás. Como desequilibrar a pessoa? O
susto vai bater onde? A reação rápida vem de onde? Porque eu nominei isso tudo para mim, e
fui colocar tudo isso agora, no gesto daquela personagem. E isso é Preparação Corporal só?
Ou isso já é uma Direção de movimento? Porque preparar corporalmente: Vamos lá! É um, é
dois, é três e foi! Eu não faço isso.

Como o trabalho da Angel te ajuda nesses momentos de intensidade?

É básico para mim, no momento dessa alta intensidade. Eu tenho uns mergulhos tão
profundos que eu esqueço a hora. Claro que a gente dá uma respirada final, recupera o eixo,
mas resíduos ficam. É aí que eu digo que tem que fechar. Quem é você, quem sou eu, onde
estamos...

Tive peças difíceis, porque a opção do diretor era extremamente contrária a minha.
Então eu tinha que estar muito segura de mim. Por isso que eu falo que essa forte ética do
trabalho é muito séria para mim. O gesto tem que ser necessário, preenchido, para ele ter
realidade. Plateia, público não é idiota. Se a proposta é fazer palhaço, então vamos fazer
palhaços. Mesmo o palhaço para mim tem uma extrema densidade. Eu fui fazer curso de
palhaço para saber isso.

E além da Conscientização do Movimento, o que você usa para que um ator compreenda a
necessidade de um gesto?

É o laboratório. Mas eu tenho outro recurso. Eu filmo o ator. Peço que ele se veja. E aí
ele às vezes fica chocado. Eu digo: Olha só, essa coisa aqui não me convenceu. Isso não está
bom. Tem coisa demais, está meio nervoso, não entendi o que você falou, tem que ter clareza.
Clareza fonética, que é muito difícil de encontrar no jovem ator. Esse recurso de filmar a
pessoa eu faço sempre individualmente. Mostro só para ele e converso. Muitas vezes eu filmo
quando é cinema, que a gente vai fazer os planos. Não importa onde está a câmera, eu tenho
184

que sentir verdade em todos os ângulos, mesmo que a cena seja de perfil. Isso é projeção. É
treinado, montado. Treinado à exaustão.

Num elenco, muitos detalhes acontecem com cada um. Cada um que vai criando uma
atmosfera gestual, postural. Se for uma coreografia, eu vejo do fundo, da frente, de todos os
ângulos.

Eu me lembro de um espetáculo que eu fiz aqui no Rio, num espaço relativamente


pequeno, e quando fui fazer a temporada em São Paulo o teatro era enorme. Tivemos que
adaptar tudo. Se aqui eu dava três passos para fazer algo, lá eu dava dez. Você já teve esse
tipo de problema para resolver com um elenco?

Já! Mesmo que eu esteja trabalhando numa salinha, sempre peço que os atores
projetem seus movimentos. O movimento não acaba nas extremidades do corpo. Se você dava
dois passos e agora dá dez, como você vai respirar? E a fala? Se ela durava dois passos agora
vai durar dez! Como vai trabalhar as pausas? Na limpeza dos movimentos a pausa é
fundamental, as pausas naturais, sinestésicas.

As pausas são momentos difíceis. Assim como as transições. Lugares onde o ator pode
muito facilmente perder energia.

Perde energia e perde o texto às vezes. Tropeça. Erros acontecem nas transições. Por
isso elas devem ser ensaiadas. Até mesmo mudanças por trás do cenário eu ensaio. O ator vai
passar pela coxia no escuro, qual a postura? A cena não é só o que está de frente não. Ela está
dos lados, ela é inteira. Entra com uma coisa na mão, sem coisa na mão. Falando de frente,
falando de costas, como é que entra? Como é que sai?

Laban fala do impulso mental que precede o movimento.

Mas isso não é o elemento do nosso trabalho? Isso não é o fundamento do gesto do
ator em cena? Que é visto tridimensionalmente. E a plateia captura todos os aspectos que ele
está expondo. O ator no teatro é o ser mais exposto. Por isso eu digo: Purifica, não excede.
Cinema então... nem pensar. Não pode exceder nada. Porque é uma tela imensa, e você vai
185

botar uma fala, um piscar, aí sujou tudo. Tem que ser muito menor. Um close de cinema é
uma coisa gigante. Teve treino que eu fiz de piscar o olho. E eu nem sabia de que lado estava
a câmera. Então, do ângulo que vier é real.

E você saberia dar um exemplo de algum trabalho seu, como Preparadora, que tenha
contribuído para a construção de linguagem de um espetáculo?

Os espetáculos em que eu acho que não chego neste lugar da linguagem são os que
ficam na minha memória. São os elementos das minhas tentativas futuras. Os espetáculos
bons, tudo bem. Mas os ruins, que eu digo: não foi. São os que ficam.

O termo Preparador Corporal exige certo cuidado, porque ele pode dar uma ideia de que
apenas os aspectos mecânicos do movimento estão em jogo. A funcionalidade do gesto, ou
noções que poderiam estar vinculadas apenas á noção de esquema corporal. Mas não
podemos esquecer que a noção de esquema e imagem corporal estão imbricadas.

O gesto tem que ser necessário, tem que ter conteúdo e ser preenchido. Não pode ficar
um monte de rabisco no vazio, porque suja. O pintor sabe que o azul é pleno, o amarelo é
pleno, o vermelho é pleno. Se você vai misturar o azul, o amarelo e o vermelho, vai dar nada,
um borrão, marrom fosco. Calcular e dosar são necessários para o ator. Tem que ter nuance e
as camadas. Uma partitura... eu sempre falo partitura porque são aquelas notinhas musicais
encadeadas. São gestos encadeados. Existe a partitura do ator. Quando você faz o movimento
livre, mesmo assim existem marcas a serem cumpridas dentro daquela liberdade. Mas as
marcas têm que estar ali. Isso eu tenho que fazer com que aquele ator entenda. Monólogo
demanda horas de trabalho!

Você fez a Alma imoral.

Sim! Com a Clarice Niskier. Em vários palcos.


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Você pôde acompanhar o espetáculo em vários espaços?

Acompanhei. A gente começou na sala pequena do SESC Copacabana, aqui no Rio.


Depois fomos para o Teatro Leblon, onde adaptamos a projeção dos movimentos àquele
tamanho todo. A Clarice nua e aquilo não ser uma nudez explícita, teve toda uma construção.
O conforto de estar sem roupa.

A nudez naquele espetáculo foi muito bem trabalhada por vocês.

A nudez foi uma das coisas mais interessantes nesse trabalho. Eu já tive outro trabalho
com nudez, mas esse eu gostei mais.

Ela estava muito confortável!

Hoje eu digo que aquela foi uma nudez plena. Mas foi uma conquista.

E o espetáculo estreou com essa qualidade?

Não. Foi crescendo durante a temporada. Foi crescendo sempre. Nós estamos no
quarto ano de Alma imoral. Casa cheia em qualquer estado brasileiro. São Paulo não teve um
dia que não estivesse lotado. Uma coisa incrível. E o conforto com a nudez é de uma verdade
corporal, que o sujeito esquece que ela está pelada. Uma mulher de meia idade, que não tem
esse padrão violão, chegar a esse conforto com a nudez. É uma conquista. É uma questão
muito bem resolvida. Todos os movimentos eu vi de todos os ângulos, afim de que a nudez
não fosse explícita. Eu me coloquei como platéia em todas as cadeiras.

É a questão da Proxêmica! Um conceito que vem da antropologia. Ele fala dos modos
como as pessoas ocupam e se relacionam no espaço.

E as intensidades que podemos colocar nas ações e todas as distâncias.


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Quando eu vi o espetáculo no Teatro Leblon, a Clarice estava muito confortável no espaço.

Mas aquilo mudou. Nos teatros de São Paulo, todos bem maiores.

Como foi a sua Preparação com ela?

A gente fez muito trabalho de consciência corporal já tirando as peças de roupa.

Desde o início já era sabido que ela ficaria nua, ou aconteceu no processo?

Aconteceu no processo. Ela mesma falou: Eu não visualizo meu figurino. E tínhamos
uma figurinista.

A Kika Lopes não é?

Isso a Kika. Mas estávamos fazendo um trabalho nós duas e eu disse: Clarice, vamos
usar um pano. A Clarice perguntou: Que pano? A Kika disse: Um veludo, um cetim. Eu disse:
Não! Uma malha, porque prende no corpo. Fomos comprar, lá no rio comprido, no pólo
têxtil. Compramos dois tipos. Um pesado, outro leve. O pano do ensaio foi a vestimenta
principal durante dois anos e meio. Até que furou. A gente foi cortando o pano, e decidindo.
Tem que ser maior, menor, tem que ter peso aqui, ali. Eu fazia em mim.

Vocês tiveram um trabalho muito íntimo! Você foi quase diretora também não?

Não, era o Amir Haddad. Ele fazia assim: Ah! Tira essa frase. Vamos tentar uma
outra! Ele ficava na cadeira, mas quem ficava em pé era eu. Para que a Clarice se visse,
muitas vezes eu fazia junto com ela. Um espelho.

Era um jogo? Se você mudasse algum movimento ela teria que mudar?

Não. Ela tinha que lembrar as marcas. Com mais de um ano de palco a gente ainda
continuou trabalhando. Se vamos fazer uma turnê... Eu vou lá de novo.
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Mas explica o trabalho com as marcas.

Era o seguinte. Eu dizia: Clarice, você vai jogar o pano com força, e falar com força,
e depois ficar encarando. Vamos diminuir! Fala com força. Respira, e aí joga o pano. Como
é que ficou? Na respiração você encara. A gente faz umas três vezes. Então o Amir fala: Ah!
Gostei da novidade! Vamos fazer um passadão. Então o que acontece? Ela passa direto as
marcas. Então eu vou lá e faço o movimento junto, mas ela não pode dar na pinta. Ela não
para, haja o que houver é um passadão. Raramente Clarice falou: Eu vou parar. Passadão ela
vai fazendo e colocando as novidades. E apareceram novidades durante anos.

E você acha que esta disponibilidade para continuar descobrindo novidades, durante a
temporada, tem relação com o trabalho integrado que foi feito desde o início?

Sim. Isso pelo perfil da atriz e pela abertura total da direção. Porque tem diretor que
estreou, estreou.

Você acha que o tom dos ensaios pode determinar o desenvolvimento de uma temporada?

Sim. A cada vez que eu vejo o trabalho, eu vejo novas coisas. E cada vez fica mais
profundo. Frases com entonações diferentes. Foi um laboratório imenso para mim. Como
nuances em pinturas, observar muito. Saber que aquela pintura final tem muito rascunho atrás.

E esse termo Preparação, o que você acha?

Olha... É Preparação mesmo. E na Preparação tem que caber todas as possibilidades.


Os erros, os acertos, todas as tentativas. A Preparação tem que conter esse acervo de
momentos que o ator escolhe e amadurece. A Preparação é também respiração, projeção,
equilíbrio... É preparar aquele corpo para viver aquela história.
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Você mexe também nos padrões habituais dos atores então?

Mexo. Eu faço muito isso. A pessoa tem um padrão que não condiz com a
personagem. Esse padrão é um pouco complicado. Porque é uma segurança da pessoa. Eu não
quero deixar ela insegura. Ao contrário, quero mostrar que minha intenção é potencializar.
Deixar claro que ela pode ser como é, que eu quero resguardar aquilo que ela escolheu ser. A
gente vai só expandir as capacidades. Eu uso muito essa palavra: Vamos expandir! Você vai
poder ir, voltar, ser o que desejar, realizar. Por isso que eu escolho poucos trabalhos. Tem
muitas propostas que eu não aceitei. Por que não estava no momento de dar mergulhos, ou
estava ocupada com outros projetos. Escolher é importante, atirar para todo lado não é uma
proposta minha.

Eu acredito que a Preparação Corporal é um campo transdisciplinar, e vc?.

Sim! Transdisciplinar porque atravessa muitos assuntos. Quando a gente fala


transdisciplinar é diferente do multidisciplinar, apesar dele também trabalhar com o
multidisciplinar, porque trabalha com multidisciplinas, multiaprendizados. Tem várias
tentativas, e múltiplas vivências, para você chegar naquela palavra e dizer: Olha, faz assim! E
a abertura do ator está ali. A pessoa aberta me enternece. Eu estou falando de Ator. Não de
estrela ou “mega-man”. Para mim o Mega-man é aquele que está ali inteiro, pleno. É bem
diferente.

É o desnudamento. Como no caso da Clarice. Ela podia estar nua e não aberta.

Claro! Como algumas “estrelas” conseguiriam chegar naquela pureza gestual? Tem
que ter o Ator. A pessoa!!! A filosofia de vida daquele ator. Isso para mim é um Mega-man!
Então variados papéis acontecem! E não tem vida fácil não. Os Mega-men enfrentam
problemas desde os financeiros até os de saúde. É Mega-man por isso! Ultrapassa tudo isso.
Tem as estrelas que estão sempre com os mesmos papéis. Sempre iguais. Respiração e pausa
igual em todo tipo de peça.
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Tem atores que não se deixam dirigir!

Não se deixam mudar! Mas eu acho muito importante o meu jeito de chegar. Eu
sempre tento me diferenciar do diretor. Meu jeito de chegar é táctil. Tem calor humano. Tem
compreensão. Meu jeito de fazer o elo é afetivo. Uma coisa que eu aprendi com a Elizabeth
Paulon: é pelo afeto. Sem Bowlby não há trabalho. Eu não dou aula, eu não trabalho, não me
relaciono...
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Entrevista IV (2/05/2011, 21/05/2011 e 29/05/2011)

Denise Stutz

Como foi sua formação?

Eu comecei em Belo Horizonte, pequena, com aulas de balé. Depois comecei de


verdade na adolescência, com dança moderna. Fiz parte de um grupo que se chamava
Transforma, onde eu trabalhava com outros dez bailarinos. Alguns desses bailarinos, em
1973, saíram para fundar o Grupo Corpo e eu era uma dessas pessoas. Fiquei até 1986 no
Corpo. Em 86, eu vim para o Rio de Janeiro, a convite do Rainer Vianna. Acabou a formação
tradicional de dança, e comecei a trabalhar com Rainer e a Angel. Vim dançar com ele, dei
aula na Angel. Depois trabalhei com a Lia Rodrigues, de 1999 a 2000. Em 2000, eu parei de
dançar e comecei a investigar meu corpo no teatro. Mas meu olhar sempre é, e sempre foi
através da dança. Fiz aula de Decroux (Mímica Corporal). Trabalhei com a Celina Sodré, por
três anos, invetigando Stanislavski e Grotowski. Trabalhei com teatro de rua, fiz perna de pau.
Fiz o treinamento de Grotowski durante dois anos, baseado na exaustão, com o Massud
Saidpour.

O que você fazia com o Massud?

Treinamento de exaustão. Aquele de correr, correr, correr. Dança do vento. Dança


pessoal. Cada ator tinha seus exercícios. Tudo em cima da exaustão. Depois eu fui para o
LUME. Isso tudo investigando outras possibilidades de corpo, que não fossem a dança, dentro
do teatro.

Em 2002, eu comecei a fazer o View Points, com o Kike (Enrique Diaz). Isso tudo era
uma balaio de coisas, de investigação. Mesmo hoje, quando me chamam atriz, eu não me
considero atriz. Meu lugar vem da dança, mesmo quando eu atuo, mesmo que eu faça coisas
muito teatrais. Minha primeira abordagem é pelo movimento. Essa foi a minha questão
sempre. Como o meu corpo pode ir para outros lugares. Posso trabalhar com outras pessoas,
fazer uma peça, falar um texto, mas a abordagem é pelo movimento. Por isso vem o trabalho
192

de corpo com atores, a relação que eu tenho com esse tipo de trabalho, que é investigativo
também. A minha questão passa por aí. Quando me chamam, eu não tenho nenhum método. É
completamente investigativo. Mesmo que seja para montar uma peça. Tem toda uma
abordagem investigativa. A partir daí, a gente vai descobrindo como trabalhar o corpo do ator.
Muitas vezes, não é isso que o diretor me pede. Muitas vezes ele me pede para trabalhar o
movimento de cena.

Para você a Preparação Corporal tem um caráter fundamentalmente investigativo?

Eu entro num trabalho sem saber. Sem conhecer. Eu acho que é um espaço para eu
desenvolver alguma outra coisa.

Como os atores, trabalhando a percepção, podem improvisar? É muito por aí a minha


abordagem do corpo. Na relação com cada diretor, eu tenho que perceber o que ele quer.
Primeiro, percebo para onde ele está indo e vou dialogando com ele.

Denise, depois de ver a cena do documentário ‘Le soleil même la nuit’, você proporia
algum trabalho como Preparadora Corporal?

O que interessa ali são os estados. Eu jamais trabalharia qualquer questão passando
pela forma. Pelo estado sim. Por isso que muitos exercícios meus, passam primeiro pela
percepção. A mim interessa um corpo que está em cena percebendo.

Mas quando Mnouchkine fala que o tronco tem que inclinar mais para que o ator possa
expressar o desejo da personagem...

Essa é uma forma de falar de desejo. Como no balé clássico, se eu faço um movimento
que alonga, quer dizer isso... É forma. Eu estou falando de estado. Estado é outra coisa. Passa
pela percepção, que passa pela presença. Eu acho que o diretor tem que dar liberdade para o
ator. Como o ator vai criar? Você dá um monte de ferramentas, um monte de mecanismos, e
ele também vai atrás disso. Há interesse do ator em buscar coisas.
193

Mas se você estivesse ali na função de Preparadora? Quais os mecanismos que você
poderia propor?

Eu não trabalho muito dessa forma. A primeira coisa que eu faria seria desestruturar o
ator, mas não como ela desestrutura. Faria com que ele percebesse a si mesmo. Perceber o
próprio padrão. Quando ela fala que ele está de um jeito e não de outro... Eu me pergunto: Por
que ele tem que estar do jeito que ela propõe? E ele vai e faz a pose. A Juliana (Carneiro da
Cunha) tem uma qualidade que não é só a qualidade corporal dela. Ela vai para uma qualidade
de estado.

É muito difícil saber o que propor sem ver e entender a pessoa, como provocar a
criação dele. É deixar ele criar. Eu trabalho a partir da criação do outro. Quebrar o padrão de
uma pessoa não é deixar ela perdida, não é jogar fora o que ela sabe, é levar o que ela sabe
para outro lugar. Porque, às vezes, nesse lugar que ela conhece, ela se acomoda. Então, o que
mais, além disso? Às vezes é muito simples. Comigo o que acontece é que muitas vezes me
convidam para uma coisa que chamam Direção de movimento. Que não é trabalho de corpo.
Mas é! Você movimenta o que? Movimenta o corpo. Esse trabalho é corpo, é espaço, é tudo.
As pessoas se relacionam com tudo. É outro lugar que você entra além de trabalhar com o
ator, você trabalha com o espaço, com o movimento. Eu acho muito legal você perceber a
qualidade dos atores e trabalhar pela dificuldade. Não como a Mnouchkine faz, mas outro tipo
de dificuldade. A dificuldade de fazer o outro se perguntar também, pelo corpo. Não
racionalizar. Teatro para mim é algo muito desconhecido. Eu trabalho com outra vertente de
teatro. Mais na linha do teatro-dança.

Você poderia dar um exemplo onde você se sentiu mexendo com os padrões dos atores?

Uma vez eu fiz uma Preparação numa peça que tinha apenas um casal de atores. Na
peça a mulher era submissa, mas na vida real quem era submisso era o homem. Como você
trabalha isso no corpo? Com a força. Você pede que o homem segure a mulher, que é mais
frágil, e não a deixe escapar. Você está quebrando um padrão dele. Porque na vida ele jamais
a seguraria daquela maneira. Eu digo: Não deixa ela sair. Ele tem condição de segurar ela.
Mas na vida real, na primeira investida dela ele largaria, porque ele sempre ficou num lugar
de submissão. Pela própria condição dela como atriz e dele como ator. Ela é uma demi-
celebridade, faz um pouco de televisão. Ele é um ator que sempre “ralou”, então é quase uma
194

relação social. Isso acontece muito. A primeira reação dela é dizer: não me segure tanto.
Quando entrei eu disse: Segura e não deixa ela sair. Então ela tinha que se debater de verdade
e ele tinha que segurar ela de verdade. Ele começou a perceber que tinha força também, que
podia fazer coisas sem representar, da mesma forma que ela teria que usar a força física para
tentar sair de certas situações. Trabalhei com a realidade do corpo. O que o corpo pode
provocar.

Trabalhei também com o Grupo Piollin, da Paraíba. Aprendi muito com eles. Eu fazia
uns exercícios com o Everaldo, que é o ator mais velho, e de repente ele entrava num estado
em que o ar parecia mais denso. Eu ficava observando como ele conseguia fazer isso. Como
tudo ao redor dele ficava mais denso. Era do corpo dele que vinha isso, do movimento dele.
Eu queria perceber como o corpo dele trazia aquilo, aquela densidade.

E o que você percebeu?

Eu percebi que era respiração, continuidade de movimento e tempo também.

Lento?

Não era um tempo lento pesado. Era um tempo lento leve. Que é completamente
diferente do lento pesado. Tinha também uma relação dos movimentos com o espaço. Ele
conseguia jogar o espaço do corpo para fora. Às vezes vinha o volume, e em outros momentos
espacializava o volume. Muitas vezes a gente trabalha o volume e fica sempre em volta da
gente. Ele conseguia espacializar o volume.

Tem outro trabalho que eu faço com atores. Formo duplas e peço que um dos atores se
mova livremente, enquanto o outro anota tudo que vê, sem julgamentos ou psicologismos.
Todos os padrões, o que quiser. Depois quem moveu observa e anota, enquanto aquele que
fez anotações se move. Na sequência, eles conversam um pouco e dizem tudo que observaram
sobre a movimentação do colega. Então eu peço que eles se movimentem novamente, mas
desta vez procurando movimentos e qualidades que sejam o oposto das observações feitas
pelo colega. É muito emocionante quando eles tentam limpar a movimentação, tirar o
“chantilly”. Parece que eles entram neles mesmos. Sinto que neste momento eles chegam num
195

lugar essencial de muita intensidade. Eu me emociono quando isso acontece, parece que eu
vejo a pessoa.

Quais as principais diferenças entre o seu trabalho de Preparadora no teatro e na


televisão?

Depende muito do teatro e da televisão. O primeiro trabalho que eu fiz com o Luiz
Fernando Carvalho, que foi Hoje é dia de Maria (2005), eu não tive espaço para as minhas
inquietações, mas sim um espaço de aprendizado. Eu me interesso quando o Luiz fala de
enquadramento. Esse é um lugar que pode não ser o do corpo, mas me interessa por outra via.
Quando ele fala de cor, de textura, do close, tudo isso me interessa. Eu vou aprendendo. Em
Hoje é dia de Maria, trabalhamos com uns bonecos em stop motion. Construíam os bonecos e
depois fotografavam. É uma técnica de animação. Foi interessante estar ali pensando espaço e
movimento. Com o Luiz cada movimento é muito construído, tanto em Hoje é dia de Maria
como em Capitu (2008).

Seus trabalhos na televisão são muito investigativos.

É! Realmente é outra televisão. Nós lemos muito, assistimos a muitas palestras. É


muito legal estudar Machado de Assis, outro universo. A gente tem que saber, ler... Literatura,
Filosofia... Eu não sei dizer especificamente onde isso entrou, é um universo que vai te
rodeando. Como quando você lê Foucault, Dostoiévski. Faz parte, eu não sei onde exatamente
isso entra. Mas vai fazer parte, a gente tem que ler. A gente entendeu aquele universo e os
estudos sobre ele. Tivemos todos os tipos de palestrantes. Toda semana tinha um palestrante
falando de Dom Casmurro e Machado de Assis. Todo mundo assistia, os preparadores de
corpo, de voz, os cenógrafos, a técnica. O Luiz fazia questão. Tivemos uma preparação muito
mais rica do que muitos espetáculos, onde às vezes você ensaia dois meses e tem que estrear.

Você acha que a estética é uma escolha política?

Todas as escolhas são políticas. O que você está fazendo e como você está fazendo. O
espaço tem um discurso, tem um pensamento.
196

E é legal quando o ator fala de forma integrada com esse espaço.

Claro! E no casa da Ariane tem uma escolha política também. A escolha do poder. É a
minha escolha estética, não é sua escolha estética como ator. Ela reproduz o sistema político
do mundo. E isso é uma escolha política dela. O ator também está escolhendo. No que eu vi,
ele não tem voz. Ela pergunta se ele nunca foi paquerado. Então vai lá e mostra como você foi
paquerado. Ele poderia dizer: Fui, mas fui de outro jeito. É a escolha deles ali. O ator tem o
direito de estar ali ou não. Ele está entregando o corpo dele àquela escolha.
197

Entrevista IV (30/11/2005)

Marina Martins

Você poderia falar um pouco da sua formação?


A minha formação é uma formação muito eclética. Minha tia me levava para ver as
matinês do Teatro Municipal, minha irmã estudava na escola desse mesmo teatro. Então eu
fui para a Escola do Teatro Municipal e o meu professor era o Klauss Vianna. Eu tinha 8 anos
de idade, final dos anos 60. Por dois anos, Klauss foi meu professor. Eu saí da escola, tive que
ficar de segunda época, porque meu corpo não é um corpo adequado para o balé clássico.
Meu pé é muito fraco. Então eu parti para outras situações, porque o movimento era o que eu
mais gostava de fazer. Fiz dança moderna. Muito jazz. Anos de jazz. Então eu viajei... voltei e
caí nas mãos do Klauss Vianna novamente. Depois caí nas aulas da Regina Miranda de
alongamento e Sistema Laban. Foi quando eu encontrei minha turma, minha praia. Me
mantive em contato com a Angel, e trabalhando com a Regina em cima dessa formação
expressionista. No início da companhia1, a gente trabalhava muito a dança expressionista,
herança de Mary Wigman. Eu me considero uma dançarina expressionista. Gosto também do
Butoh. Então basicamente é isso. Continuei, fiz aula de clássico, de dança moderna, Graham.
É uma formação muito eclética e diversificada que desembocou no interesse pelo teatro.
Como não havia um curso superior de dança na época eu fui fazer o curso de teoria do teatro
para entender teoricamente a questão da cena. Porque já estava muito na prática, mas eu não
entendia bem o que era aquilo. Então, toda a minha formação em teoria do teatro desembocou
no Mestrado e no Doutorado em dança. Para pensar a dança contemporânea, para pensar essa
nossa herança dos Balés Russos, a nossa herança da dança expressionista, muito forte aqui no
Rio. Houve uma invasão russa no Rio de Janeiro. Os russos chegaram e desenvolveu-se toda
uma linhagem de movimento a partir dos Balés Russos, o pessoal da Ana Pavlova. Maria
Oleneva fundou uma escola. E a vertente expressionista via EUA. Via Mary Wigman, Nina
Verchinina, Marília Gremo. Várias pessoas vieram da dança expressionista e entraram no
Teatro Municipal. Nossa influência fundamentalmente é essa. No Doutorado, eu pude pensar

1
Companhia Atores Bailarinos do Rio de Janeiro, dirigida por Regina Miranda.
198

um pouco sobre isso e verificar que realmente essas duas linhas se encontram e desembocam
nesta terceira linha que é a nossa dança atual.

Como percebe a função do Preparador Corporal? Você acredita que ele pode contribuir
para a construção da linguagem de um espetáculo?
Eu acho fundamental, quando o encenador não tem o domínio do corpo, de técnicas
corporais. O Preparador vai ajudar a conduzir o ator à estética que o encenador está propondo.
Eu acho importante que a formação do Preparador Corporal seja uma formação bem
diversificada, justamente para poder entender qual o desejo estético da encenação, para poder
trabalhar o corpo do ator de forma que ele corresponda a esse desejo estético. É uma função
importantíssima, que contribui fortemente para a linguagem do espetáculo, para a
interpretação, para a construção da personagem e para o desenho cênico. Muitas vezes, o
encenador pede ajuda no sentido do desenho cênico, da coreografia teatral, coreografia da
cena (da movimentação, das marcações cênicas). O Preparador ajuda o ator a incorporar o
texto, incorporar a personagem dentro da estética proposta. Uso o termo coreografia no
sentido do desenho da cena e não no sentido da dança. Acho que na formação dos diretores,
encenadores, deveria ser obrigatório uma cadeira de coreografia e corpo. Porque o teatro
contemporâneo é basicamente isso, corpo. Há uma carência nos diretores desta noção, desta
prática. Tenho um amigo, ele é bom de marcação de cena, ele sabe como fazer para chegar no
corpo do ator. Só que ele fica me pedindo para coreografar para ele. Eu digo: não, você não
precisa de ninguém. Você sabe fazer, é só você fazer. Toma coragem e faça. Mas acho que
deveria ter uma formação de corpo para o diretor, para o encenador. Para ele saber o que ele
vai puxar do ator. São muitas técnicas. A gente tem uma variação enorme de técnicas
corporais. Todas elas são úteis. Até o balé é muito útil. A formação é restrita a uma coisa de
expressão corporal, só no sentido da conscientização corporal, e não no sentido estético desse
corpo. Que corpo estético é esse que determinado texto e determinada encenação pede? Para
lidar com essa questão você tem que conhecer técnicas diversas. Porque você pode se utilizar
delas, de todas juntas, pode fazer um pout pourri delas para chegar a um determinado lugar.
Eu acho que tinha que ser uma cadeira mais ampla, mais aprofundada mesmo. Para ensinar o
diretor a puxar do ator esse corpo, a trazer à tona esse corpo.
199

Haveria alguma técnica ou técnicas que você costuma utilizar?

Sim! Os Bartenieff fundamentals, que é uma técnica que eu aprendi com a Regina
Miranda. Ela visa o corpo como um todo. É quase holística mesmo. Um pensamento do corpo
inteiro, harmonioso e consciente das relações espaciais internas e externas, e da respiração
fundamentalmente. Pelo menos para começar a situar, eu trabalho a partir dos Bartenieff. É
uma técnica aberta, porque como ela trata do corpo nos seus movimentos mais fundamentais,
dos movimentos primários do ser humano, você pode ir acrescentando referências,
qualidades, ritmos diferentes a partir desses movimentos básicos. São os fundamentals,
movimentos fundamentais de conexão interna e de conexão interna-externa. Eu sempre parto
dos Bartenieff para qualquer coisa, e o Sistema Laban também, trabalhando os esforços.
Utilizo também algum exercício de Butoh que eu já tenha feito, ou alguma outra coisa que eu
tenha visto ou tenha lido. Eu experimento. Mas é basicamente a partir dos fundamentals, do
Sistema Laban e daí eu vou procurando chegar na estética necessária, na estética pedida.

Como você se prepara para um trabalho?

Primeiro, uma conversa com o diretor. Saber o que ele quer, o que ele pretende. Ler o
texto do espetáculo. Ver qual é a idéia dele em relação a esse texto. Quais são as necessidades
da cena. Na sequência, conhecer o elenco. Observar os corpos daquelas pessoas. Ver quais
são as necessidades básicas para neutralizar esses corpos, no sentido de tentar colocar cada
corpo num ponto neutro. Não neutro de ausência, mas neutro no sentido de tabula rasa, no
sentido de papel em branco para começar a ser inscrita outra linguagem. Então eu começo a
preparar as aulas, os exercícios da Preparação Corporal propriamente dita, a partir da estética
proposta pelo diretor e dos corpos. Dos problemas que aqueles corpos têm. Às vezes leva
mais tempo... às vezes leva menos tempo... às vezes algumas pessoas do elenco têm mais
problemas que outras e é preciso dar atenção a elas para buscar um equilíbrio. Algumas têm
mais técnica corporal, outras não têm. Tentar equilibrar esse elenco. Botar todo mundo mais
ou menos no mesmo tom. Eu vou preparando as aulas dia a dia. Eu gosto muito de participar
da leitura, do trabalho de mesa. Vou compreendendo o que o diretor quer e como os atores se
comportam na mesa, na leitura do texto. Levanto qualidades das personagens e vou propondo
trabalhos de improvisação para a construção do corpo.
200

Então, primeiro eu tento neutralizar esse corpo de modo que ele fique aberto. Na
verdade é abrir o corpo para receber e dar informações. Depois conduzir esse corpo a
experimentar, a procurar movimentos e qualidades adequadas aos seus próprios personagens.

A partir daí, ponho todo mundo para fazer aula junto. E vou a cada um, tocando nas
partes que são necessárias. Tem problemas em comum e tem problemas particulares. Quando
tem um problema grave com alguém, depois eu trabalho especificamente com aquela pessoa
individualmente. Mas de modo geral, é todo mundo junto e a partir dali vai se improvisando.
E eu vou dando as indicações para cada um, durante o processo, todo mundo junto. Por
exemplo, as qualidades que podem buscar, os movimentos que podem aparecer. Aponto
quando aparece alguma coisa interessante e pode ser usada. Peço para repetir. Mas é sempre
todo mundo junto. Individualmente, só quando tem um problema real, muito complicado. Se
alguém, realmente, não está conseguindo se integrar, eu vou ao particular. Eu vou trabalhando
como se fosse um curso normal, só que o objetivo é uma estética corporal pedida.

E a diferença entre o seu trabalho de Preparadora Corporal e o de professora?

É o contexto do espetáculo! Em função da cena eu escolho a linha de movimento.


Começo com os fundamentals. Mas os fundamentos da Bartenieff já podem ser acrescentados.
Já começo acrescentando. O pessoal está muito contido, e o diretor quer uma organicidade
maior... Já vou logo botando para soltar os bichos. Também uso alguns movimentos
reicheanos, da bioenergética. No sentido de desentupir, de quebrar algumas couraças com
mais incisão. Não sou muito delicada não. Sou delicada, mas de vez em quando eu também
dou umas “porradas”. É bom! Quebrar! Existem couraças muito rígidas, que atrapalham o
fluxo do movimento, a respiração, a integração voz, palavra, corpo. Uma pedra no meio do
caminho. Eu bombardeio mesmo. Desentupidores. Eu uso alguns exercícios da terapia
reicheana, que deslocam um pouco as pessoas dos seus lugares habituais. A idéia é essa!
Deslocar. Tirar do comum, para poder entrar nesse corpo cênico específico. Tem que tirar a
pessoa do lugar comum, para ela entrar num outro corpo. Para ela não ficar se repetindo. Não
é a pessoa se repetindo que interessa. O que interessa é deslocar. O que eu acho interessante
na Preparação Corporal nas Artes Cênicas é essa possibilidade de deslocamento. É você sair
do seu lugar comum e encontrar novas possibilidades. Para isso é preciso um pouco de incisão
mesmo. Eu não abandono ninguém ao Deus dará. Mas o importante para mim é conseguir
deslocar. Quando esse deslocamento ocorre, as coisas já se modificam por si só. O corpo é
201

muito inteligente. Ele fala! Eu tento fazer que as pessoas ouçam seus corpos, mais do que
conduzam seus corpos. Deixar o corpo falar. Não dar tanta ordem para ele. Onde é que
prende? O que é que pode vir? Menos racional e mais orgânico. Eu sou muito orgânica. Eu
acredito muito na inteligência corporal. O corpo fala muito e a gente ouve muito pouco. A
organicidade para mim é uma coisa da sensação corporal. De botar para fora, de deixar isso
vir. É quase o corpo do avesso. Perder a timidez. Odeio espelho, por exemplo. Não dou aula
de frente para o espelho. Detesto espelho. Detesto a cópia. Faça o que eu estou fazendo. Eu
não sou parâmetro para ninguém. Eu tenho as minhas próprias dificuldades, minhas próprias
qualidades. É importante que cada um descubra o seu modo de fazer. É muito importante que
cada um possa fazer da sua maneira. Claro que dando orientação técnica para ajudar esse
corpo a fluir. Mas é importante que cada um faça da sua maneira, que não copie a maneira do
outro. O modelo não pode ser externo. Não há um modelo. Há uma consciência do seu
próprio padrão e o desejo de mudar esse padrão. É isso que eu chamo de organicidade.

O contexto psico-social, no qual você está inserida, define o seu trabalho?

É difícil na nossa estrutura, que esta relação se estabeleça de modo produtivo. Sempre
tem pouco dinheiro e pouco tempo. Sempre tem uma hora que o diretor vai diminuindo o
tempo de trabalho do Preparador Corporal com o elenco. Muitas vezes, cria-se, em vez de
uma harmonia, um conflito. O Preparador Corporal sempre sai perdendo, porque é uma das
primeiras coisas que se lima. – Ah! Está bom! Agora vamos entrar na cena! – Então deixa eu
dar uma aula antes, deixa eu aquecer! Me dá uma hora! – Não! Tem quinze minutos para
aquecer o elenco. Deveria ter um tempo maior. A direção fica aflita porque quer levantar o
espetáculo. Porque não dá tempo... Você perde. É uma relação muito difícil.

Para muitos diretores falta esse conhecimento do corpo do ator!

E de como atingir esse ator e fazê-lo sair do lugar. Fazê-lo vir para o lugar desejado
pela cena. Isso é o mais difícil. A dança e a expressão corporal, ainda são fatores menores
dentro da estrutura da encenação. Continua sendo frívolo. –Ah! Resolve aqui esse gesto. Esse
movimento. Vem para limpar! É externo. Não dá tempo de você fazer o ator dar o que ele
pode dar. Não há tempo hábil. Não há uma conscientização dos atores também. São poucos os
atores que sabem como é importante esse trabalho. Quando eles sabem, eles se dedicam,
202

fazem e aparecem coisas muito boas. Mas tem muitos atores que não sabem a importância
desse trabalho.

Você acha a formação dos atores deficitária?

Ela é muito primária. Eu acho que ainda há um pensamento antiquado, do século


retrasado, dos musicais, do teatro de revista, da dança ser um divertissement, uma
graciosidade do espetáculo. Um momento gracinha. Não como um elemento da cena. São
poucos os atores e encenadores que têm essa vontade e desejo de trabalhar o corpo como
fundamento da cena.

Eu acho muito provinciano o pensamento cênico, principalmente aqui no Rio. O Rio


de Janeiro precisa perder essa coisa “gracinha”. Fica tudo engraçadinho... Basta abrir os
jornais. Parece que há uma preguiça, porque dá trabalho você se deslocar. Teatro é cansativo
por isso! Para você conseguir se deslocar e procurar um corpo outro, específico para uma
determinada estética, tem que se dedicar horas. E isso vai te deslocar, vai fazer você passar
mal, duvidar, vai te dar insegurança. Isso vai te dar um monte de coisas. E isso dá trabalho.
Dá vontade de desistir, você se sente impotente. Dá uma série de problemas que quando
superados proporcionam um resultado maravilhoso. E o mercado contrata o ator por dois
meses de ensaio e pronto. Então ele vai resolver em dois meses uma coisa que talvez não se
resolva em um ano de trabalho. Para ir ao teatro o espectador também fica exausto. Porque a
presença do espectador diante do ator, numa troca de energia e informação, também desloca o
espectador. Para você deslocar o espectador você tem que se deslocar. Parece que há uma
preguiça nisso! Então vamos ao mais fácil. Vamos ao que a gente já sabe. Então fica nesse
marasmo, nessa coisa chata, repetitiva, superficial, externa e que não desloca ninguém. É
minha função, meu prazer, minha opção: procurar no trabalho, me deslocar, me transformar,
me arriscar. Isso é um risco! Quando você tem isso e corre esse risco, automaticamente você
vai atingir o outro. Você atinge o espectador. Mesmo que seja um movimento que todo
mundo conheça, quando ele vem desse lugar do risco, desse lugar do deslocamento, ele é
novo. Por isso que a tradição oriental é fundamental. Por isso que Artaud gostava dos
bailarinos de Bali. Por isso que Laban foi procurar nos bailarinos de Bali, informações sobre
essa repetição. Porque eles pegam um personagem e trabalham a vida inteira. Melhorando,
melhorando... Lapidando como um diamante. Nenhum dia é igual ao outro. Porque todos os
dias há a proposta do deslocamento, há a proposta do risco. O ator é um ser humano, ele
203

chega ao teatro, ele tem um rito de passagem que ele tem que fazer. Senão ele não entra em
cena. Eu considero o teatro um rito de passagem. Você se prepara para passar, para deslocar.
É uma ponte. É o teatro Nô. É aquela ponte, que o ator sai do camarim e se transforma num
Deus, num Rei, numa flor. Aquela ponte do teatro Nô para mim é o teatro. É o momento. É
ajudar a atravessar essa ponte. Para cada espetáculo há uma ritualização diferente. Cada um
tem a sua. Cada um tem seu modo de se preparar para a cena. O Preparador Corporal ajuda a
melhorar o corpo, no sentido de abrir, de tentar tornar esse corpo branco para se inscrever
uma nova linguagem. Essa linguagem é interna. Ela se inscreve a partir da transformação do
ator. A função do Preparador é importantíssima, mas não é considerada como tal ainda.

E quando você encontra resistência de um ator, o que você faz?

Depende do projeto. Depende do grupo. Depende do contrato. Há projetos em que


você se engaja com muito mais intensidade, muito mais organicidade que outros.

Quando “costuro para fora”, como se diz popularmente, neste caso, se fincar pé na
resistência, eu largo de mão. Não vou me preocupar!

Agora, se é um projeto engajado, um processo interessante, em que a resistência vem


não por uma postura arrogante, mas porque ela existe. Todos nós resistimos a mudanças. A
gente tem medo de mudar o padrão. Então eu procuro pegar por outros caminhos. Abordo por
outras vias, às vezes parecendo que estou passando ao largo do problema. Isso é um
pensamento da Bartenieff. Você está com problema em uma parte do corpo, trabalha o resto
do corpo e não aquela parte específica. Eu brinco muito: um por todos, todos por um. A parte
do corpo em função do corpo todo e o corpo todo em função daquela parte. Às vezes é bom
você ir direto. Pega um exercício reicheano, vai direto ao ponto e quebra aquilo. Não
funcionou, contorna e vai por outro caminho. Tem estruturas que não vale a pena você se
aborrecer, e outras que vale. Quando a gente está fazendo um trabalho com alguém que a
gente tem confiança e intimidade, um grupo que está interessado num processo bacana, eu
acho que todos os esforços valem a pena. Mas quando você está num contrato comercial,
fazendo uma pecinha... Invento uma desculpa e não faço. Prefiro não fazer. Porque é
insuportável. Você está fazendo um trabalho mais aprofundado e vem a atriz e diz: eu quero
perder a minha barriga, você prepara uma série de abdominais para mim! – Querida eu não
sou personal trainer, não estou dando aula de educação física. Não é esse o meu trabalho. Se
204

você fizer, respirar e seguir a condução, você vai trabalhar os seus abdominais. Eu,
ultimamente, ando muito resistente ao trabalho de Preparação Corporal.

Você percebe fases e estratégias diferenciadas no seu processo de trabalho ?

Acho que a primeira fase é sempre aquela da conscientização. Para o ator reconhecer o
seu próprio padrão. Para o ator conseguir relaxar e respirar. Reconhecer seus problemas. Esta
é a primeira fase. A segunda fase é começar a explorar outros lugares, outras possibilidades.
Quando começa a marcação cênica, eu vou dar mais atenção ao desenho gestual, a
espacialização, a orientação espacial. Primeiro é uma orientação espacial interna, depois passo
para uma orientação espacial mais externa. Perto da estréia é o momento de limpeza mesmo,
mas às vezes você consegue dar um toque e a pessoa se ilumina. Para o caminho ser orgânico
é muito difícil. É longo o processo. No pouco tempo que a gente tem, às vezes as pessoas
encontram o caminho, mas ele não é essencial, interno. O caminho obedece a trajetória, mas
não produz aquela trajetória conscientemente. Porque não há tempo. A Preparação Corporal
tinha que começar muito antes. Geralmente por falta de dinheiro, paga-se mal, o tempo é
escasso e pedem milagres. Claro que tem grupos que trabalham juntos há muito tempo, onde
o processo é intenso e cotidiano.

Você sente muita diferença no trabalho com companhias e elencos?

Uma diferença enorme! Quando a gente não escolhe o elenco junto com o diretor,
porque não é com todo mundo que você tem intimidade para dar palpite. Às vezes o diretor
erra a mão. Erro de casting. As pessoas são muito desniveladas, de origens muito diferentes,
têm status artísticos diferentes. É mais difícil. Você tenta igualar para ter um conjunto,
respeitando as dificuldades e os lugares de cada um. Mas você tenta harmonizar essas
diferenças. Numa companhia que já está junta há um tempo, essas diferenças já estão
harmonizadas. O jogo é muito mais rápido entre os atores. A comunicação entre eles é muito
mais rápida porque eles já estão convivendo há muito tempo juntos. Já passaram por muitas
coisas, já experimentaram muitas coisas juntos. Isso cria uma unidade muito mais densa. Eu
sou a favor do trabalho de processo. A experiência conjunta é ótima, criativa. Ela facilita.
Porque um já conhece o corpo do outro, o peso do corpo do outro. Então o outro pode mudar,
porque já tem confiança. Num elenco que está se conhecendo ali, é o começo de tudo. Um
205

elenco que em dois meses vai levantar um espetáculo fica muito mais difícil de você acertar a
mão. A diferença é enorme, muito mais difícil. Porque geralmente tem aquela grande estrela e
o elenco de apoio, então há uma diferença de tratamento. E eu quero colocar todo mundo no
mesmo patamar.

O mercado também é muito ingrato para o ator. Eu defendo o ator, o bailarino, porque
é ele que se transforma. Ele ganha mal, ele tem pouco espaço, ele não tem tempo. Não dão
tempo para ele errar. Ele tem que acertar, corresponder. É tudo muito rápido. Eu sou meio
diletante com relação às artes. Eu prefiro os grupos experimentais. A relação entre arte e
mercado é uma questão muito séria. Principalmente a arte cênica, teatro e a dança. É muito
confuso. Tem que agradar o patrocinador. Botar a estrela global. E os resultados são
medíocres, na maioria das vezes. Poucas vezes você consegue ver um resultado muito bacana.
Quando você tem atores bons e uma direção muito boa, você consegue um resultado bacana.
Senão você vai ter resultado bom nos grupos experimentais, onde você vê resultados,
pesquisa. Erros e acertos. Você vê o movimento cênico. Arte. Porque senão não é arte, é
objeto de consumo. Isso é um problema ético muito grande para o ator e para o bailarino,
porque na verdade ele está vendendo o corpo dele. E ele tem que sobreviver. Ele é humano,
precisa pagar contas. Esse mercado ingrato é um impasse par o ator. Ele tem a ilusão que está
vivendo da arte dele, mas não está. Ele não está desenvolvendo todo potencial que poderia
desenvolver. Acho que a gente vive num país muito ingrato. Tem muita gente que dá aula, faz
qualquer coisa para poder fazer o seu trabalho. Outros não, ficam fazendo qualquer coisa para
sempre.

Então Marina? O que você proporia, caso estivesse trabalhando como Preparadora
Corporal na montagem de Tartufo do Théâtre du Soleil ?
Se eu fosse Preparadora Corporal da montagem, eu diria no ouvido da Ariane para ela
falar sobre a respiração e flexibilização, principalmente do tronco daquele ator. Um tronco
rígido, vertical e em bloco. Trabalharia a respiração no sentido de fazer a coluna vertebral
respirar. Torcer para entrar nas diagonais. Falaria um pouco sobre o significado das diagonais
do cubo, que dão essa tensão frente-atrás, em cima embaixo, simultaneamente. Isto dá um
poder e uma dubiedade na ação. Como ela quer uma sedução, é o desejo e a sedução o tempo
inteiro, se você for de frente, um engajamento direto, você não vai seduzir. O que uma
serpente faz? Ela enrosca. A torção, a entrada na diagonal é o melhor caminho para você
206

encontrar esse corpo sedutor. E a respiração dessa torção traz também uma voz sedutora, no
sentido de que não é óbvia, frontal, não é direta. Ela se torna indireta. Ela se torna dúbia,
dupla. Porque ela fala de atrás e frente, em cima e em baixo, simultaneamente. Quando você
age no vertical sagital, totalmente de frente, você não tem a outra possibilidade. Você dá
esclarecidamente uma fala. Quando você torce, você já cria um duplo sentido. Trabalharia a
respiração. Trabalharia coluna vertebral, no sentido de flexibilizar o tronco daquele rapaz,
para ele ficar mais solto e independente. Trabalhando as torções e nas diagonais do cubo
como orientação espacial. A Juliana nunca está de frente totalmente. A mão indica um
caminho e o rosto indica outro. Ela está sempre trabalhando no sentido cruzado, no sentido da
duplicidade. Do duplo em si mesmo. A postura torcida já é em si dupla. Era isso que eu falaria
para os atores e para a Ariane, se ela quisesse me ouvir!
147

ANEXO B

ESPETÁCULOS COM PREPARAÇÃO CORPORAL DE ANGEL VIANNA

As informações que se seguem foram todas retiradas de periódicos, revistas e programas de


peças, documentos que fazem parte do arquivo pessoal de Angel Vianna.

As observações que complementam os dados apresentados foram fornecidas por Angel Vianna
em depoimento ao autor.

O pagador de promessas

Texto: Dias Gomes

Direção: Haydée Bittencourt

Cenário: Ari Caetano

Elenco: Alunos do Teatro Universitário da Bahia

Teatro: Francisco Nunes, Salvador (1962).

Coreografia: Angel Vianna

Obs: Angel Vianna dava aulas para o grupo e foi convidada para fazer a coreografia da peça. Ela
utilizou a Capoeira como motivação para criar as coreografias.

Ópera dos três vinténs

Texto: Bertolt Brecht

Direção: José Renato

Cenário: Túlio Costa

Figurino: Ninette Van Vuchelen

Elenco: Dulcina de Moraes, Marília Pêra, Fregolente, Oswaldo Loureiro, José Wilker e outros

Teatro: Sala Cecília Meirelles, Rio de Janeiro (1967).

Coreografia: Klauss Vianna

Obs: Angel Vianna atuou neste espetáculo como bailarina e deu aulas de Expressão Corporal para o
elenco, junto com Klauss Vianna.
148

Relações naturais (1968/69)

Texto: Qorpo Santo

Direção: Luiz Carlos Maciel

Supervisão Técnica: Zenaide Rios

Figurino: Arlindo Rodrigues

Direção Musical: Paulinho da Viola

Iluminação: Luis Carlos Mota

Elenco: Maria Gladys, Joel Barcelos, Carlos Guimas e outros

Coreografia: Angel Vianna

Obs: Angel Vianna realiza este trabalho em plena ditadura militar. Ela afirma que era possível
expressar com o corpo o que não era permitido dizer com palavras. Angel dava aulas para o elenco e
também participou da montagem de cenas. Vianna afirma que o Preparador observava ensaios e que se
o diretor permitisse opinava sobre tudo. O trabalho era em conjunto, diário, e o Preparador participava
o tempo todo. No programa da peça não há registro sobre o teatro em que o espetáculo foi realizado.

Maroquinhas fru fru

Texto: Maria Clara Machado

Direção: Maria Clara Machado

Cenário: Ana Letícia

Figurino: Kalma Murtinho

Elenco: Hamilton Vaz, Carlos Wilson Silveira, Lupe Gigliotti e outros

Teatro: O Tablado, Rio de Janeiro (1970).

Coreografia: Angel Vianna

Obs: Mesmo tendo, fundamentalmente, trabalhado apenas nas coreografias do espetáculo, Angel deu
aulas para o elenco baseadas na Conscientização do Movimento e Jogos Corporais. Ela considera sua
parceria com Maria Clara Machado extremamente produtiva e o nível de profissionalismo da
montagem bastante alto. Vianna acredita que o teatro infantil deve ser bem elaborado, assim como o
teatro adulto. O crítico Yan Michalski reconheceu o trabalho coreográfico de Angel Vianna como um
dos melhores momentos da ação do espetáculo (Jornal do Brasil, 19/05/70).
149

Soma, ou os melhores anos de nossas vidas

Teatro: João Caetano

Direção: Amir Haddad

Cenário: Joel de Carvalho

Figurino: Joel de Carvalho

Elenco: Taia Peres, Reinaldo Machado, Maria Esmeralda

Teatro: João Caetano, Rio de Janeiro (1970).

Trabalho de corpo: Angel Vianna

Obs: Este trabalho foi iniciado por Nelly Laport, que indicou Angel Vianna para que desse
prosseguimento a ele.

Miss Brasil

Texto: Maria Clara Machado

Direção: João Marcos Fuentes

Cenário: Paulo Bandeira

Elenco: Tânia Scher, Silvio Correia

Teatro: Opinião, Rio de Janeiro (1971).

Coreografia: Angel Vianna

Obs: Angel explica que assinou a coreografia do espetáculo, mas que também trabalhou na montagem
de cenas. Ela desenvolveu marcações e até mesmo trabalhos de corpo para auxiliar a projeção vocal de
alguns atores.

Woyzec

Texto: Georg Büchner

Direção: Marilda Pedroso

Elenco: Maysa Matarazo

Teatro: Casa Grande, Rio de Janeiro (1971).


150

Trabalho de corpo (improvisações corporais): Angel Vianna

Obs: Neste espetáculo, Angel Vianna trabalhou com a cantora-atriz Maysa Matarazzo. O crítico
Macksen Luiz divulgou que o trabalho corporal havia sido realizado por Klauss Vianna.

A China é azul

Texto: José Wilker

Direção: Rubens Corrêa

Ambientação visual: Luiz Carlos Ripper

Figurino: Paulo Cezar Oliveira

Elenco: Tetê Medina, José Wilker e Rubens Corrêa.

Música: Cecília Conde

Teatro: Ipanema, Rio de Janeiro (1972).

Expressão Corporal: Angel Vianna

Obs: O crítico Yan Michalski elogiou a expressão corporal do elenco, desenvolvida por Angel Vianna
(Jornal do Brasil, 8/11/1972). As apreciações de Michalski costumavam ser consideradas por Angel,
que o admirava como ser humano e profissional.

Tango

Texto: Slavomir Mrozek

Direção: Amir Haddad

Elenco: Sérgio Britto, Tereza Raquel, Renata Sorrah e outros

Teatro: Tereza Raquel, Rio de Janeiro (1972).

Coreografia: Angel Vianna

Papa Highirte

Texto: Oduvaldo Vianna Filho

Direção: Nelson Xavier


151

Espaço Cênico: Paulo Mamede

Figurino: Mimina Roveda

Elenco: Sérgio Britto, Tonico Pereira, Nildo Parente

Música: David Tygel

Preparação Vocal: Maria de Glória Beutenmüller

Teatro: Teatro dos Quatro, Rio de Janeiro (1979).

Expressão Corporal: Angel Vianna

Obs: A fim de realizar este trabalho, Angel Vianna pesquisou em bibliotecas, museus e nas danças
populares, compilando informações sobre a Chula (uma dança típica do Rio Grande do Sul), que
deveria ser executada por dois atores (Tonico Pereira e Sérgio Britto), numa espécie de duelo.

Verbenas de seda (1979)

Texto: Oduvaldo Vianna Filho

Direção: Nelson Xavier

Preparação Corporal: Angel Vianna

A cotovia e o rouxinol

Roteiro: Fernando Berto e Fernando J. Simões

Direção: Fernando Berto

Cenário: Tawfik

Figurino: Tawfik

Elenco: Wagner Brand, Márcia Nascimento, Márcia Quito e outros

Iluminação: Aurélio de Simoni

Preparação Corporal: Angel Vianna

Obs: Não foram encontradas informações sobre o local de apresentação do espetáculo.


152

Apenas um conto de fadas (1979)

Direção: Eduardo Tolentino

Elenco: Grupo Tapa, Rio de Janeiro

Expressão Corporal: Angel Vianna

O trágico acidente que destronou Teresa (1982)

Texto: José Wilker

Direção: Eduardo Tolentino

Elenco: Grupo Tapa, Rio de Janeiro

Direção Corporal: Angel Vianna

Eu posso?

Texto: Reynaldo Loy

Direção: Luiz Carlos Mendes Ripper

Cenário: Luiz Carlos Mendes Ripper

Figurino: Madeleine Saade

Elenco: Yara Amaral, Jardel Filho, Sylvia Bandeira, José Mayer.

Teatro: Delfin, Rio de Janeiro (1982).

Preparação do corpo: Angel Vianna e Rainer Vianna (som: Carlos Sergipe)

Obs: Angel ressalta sua parceria com a atriz Yara Amaral como um ponto alto nesta Preparação
Corporal. Segundo Vianna, Yara Amaral era uma atriz que entendia seu trabalho.

A Rosa tatuada

Texto: Tennessee Williams

Direção: Luiz Carlos Mendes Ripper

Cenário: Paulo Flaksman


153

Figurino: Rosa Magalhães

Elenco: Norma Benguell, Rômulo Arantes, Angel Vianna e outros

Teatro: Glória, Rio de Janeiro (1985).

Música: Tato Taborda

Iluminação: Aurélio de Simoni

Direção de Movimento: Dácio Lima

Obs: Neste espetáculo, Angel não atuou como Preparadora Corporal, mas como atriz (participação
especial). Ela teve oportunidade de colocar em prática muitos dos experimentos que costumava
desenvolver com atores e bailarinos em sala de aula. Neste trabalho torna-se amiga de Dácio Lima,
que fez a direção de movimento do espetáculo. O crítico Macksen Luis escreveu que Angel Vianna
conseguiu criar uma figura visualmente forte (Jornal do Brasil, 20/06/85), e a crítica Tânia Brandão
(Revista Fatos, 8/07/85) a considerou a chave mestra do espetáculo.

Ação entre amigos

Texto: Márcio de Souza

Direção: Paulo Betti

Cenário: Marco Antônio Dias

Figurino: Biza Viana

Elenco: Luiz Carlos Arutin, Jaqueline Laurence, Eliane Giardine, Andrea Beltrão

Teatro: Ipanema, Rio de Janeiro (1986).

Direção de corpo: Angel Vianna

A cerimônia do adeus

Texto: Mauro Rasi

Direção: Paulo Mamede

Cenário: Paulo Mamede

Figurino: Mimina Roveda

Elenco: Sérgio Britto, Yara Amaral e outros


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Teatro: Teatro dos Quatro, Rio de Janeiro (1987/88).

Preparação de corpo: Angel Vianna

Assistente de Preparação Corporal: Lúcia Aratanha

República dos prazeres

Texto: Sérgio Fonta

Direção: Luiz Mendonça

Cenário: Francisco Amorim

Figurino: Francisco Amorim

Elenco: Luiz Carlos Niño, Nedira Campos e outros

Teatro: Vanucci, Rio de Janeiro (1983).

Coreografia: Angel Vianna e Rainer Vianna

Jardim das cerejeiras

Teatro: Teatro dos Quatro

Texto: Anton Tchécov

Direção: Paulo Mamede

Cenário: Paulo Mamede

Figurino: Mimina Roveda

Elenco: Sérgio Britto, Nathalia Thimberg, Nelson Dantas, Othon Bastos, Emilia Rey, José Lewgoy e
outros.

Teatro: Teatro dos Quatro, Rio de Janeiro (1989).

Preparação Corporal: Angel Vianna

Sábado, Domingo e Segunda

Texto: Eduardo de Filippo


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Direção: José Wilker

Cenário: Paulo Mamede

Figurino: Mimina Roveda

Música: Caíque Botkay e José Wilker

Elenco: Yara Amaral, Ary Fontoura, Paulo Gracindo, Paulo Goulart e outros

Teatro: Teatro dos Quatro, Rio de Janeiro (1986).

Preparação Corporal do ator Nildo Parente: Angel Vianna

Obs: Angel desenvolveu uma pesquisa sobre as máscaras da Comedia Dell’arte e criou uma
movimentação para o ator Nildo Parente que sintetizava o sentido de várias delas.

Imaculada

Texto: Franco Scaglia

Direção: Paulo Mamede

Elenco: Yara Amaral

Teatro: Teatro dos Quatro, Rio de Janeiro (1986).

Preparação Corporal: Angel Vianna

Obs: Angel confirma sua parceria com Yara Amaral num espetáculo que considera ter sido primoroso.

O casamento branco

Texto: Tadeusz Rosewiks

Direção: Sérgio Britto

Cenário: Biza Viana

Figurino: Biza Viana

Elenco: Fabio Sabag, Othon Bastos, Suzana Faini e outros

Teatro: Teatro II do CCBB, Rio de Janeiro (1990).

Preparação Corporal: Angel Vianna


156

Assistência de Preparação Corporal: Joice Niskier e Alexandre Bhering

Obs: Neste trabalho Angel exercitou vários de seus Jogos Corporais na montagem de inúmeras cenas,
especialmente a do pique-nique, e pôde também explorar seus gosto pessoal pelas formas
expressionistas.

A obscena senhora D

Texto: Adaptação de Eid Ribeiro e Vera Fajardo para o romance homônimo de Hilda Hilst

Direção: Eid Ribeiro

Cenário: Marcos Flaksman

Figurino: Samuel Abrantes

Elenco: Vera Fajardo, Rubens de Araújo, Jorge Emil, Afonso Drumond e outros.

Teatro: Sala Chiquinho Brandão (Casa da Gávea), Rio de Janeiro (1993).

Direção Corporal: Angel Vianna

Assistente de Direção Corporal: Simone Gomes

O cortiço

Texto: Adaptação teatral de Sérgio Britto do romance homônimo de Aluísio Azevedo

Direção: Sérgio Britto

Cenário: Ricardo Venâncio

Figurino: Ricardo Venâncio

Elenco: Tonico Pereira, Nildo Parente, Ênio Santos e outros

Direção Vocal: Maria da Glória Beutenmüller

Teatro: Delfin, Rio de Janeiro (1994).

Direção Corporal: Angel Vianna

Assistência de corpo: Simone Gomes


157

Como tudo começou

Teatro: Bibi Ferreira

Texto: Jurema Penna

Direção: Eduardo Cabús

Teatro: Bibi Ferreira, Rio de Janeiro (1996).

Elenco: Angela Pires e Humberto Kzure-Cerquera

Preparação Corporal: Angel Vianna

Nostradamus

Texto: Doc Comparato

Direção: Renato Borghi

Cenário: J. C. Serroni

Figurino: J. C. Serroni

Elenco: Laura Cardoso, Cecil Thiré, Tonico Pereira, Luiz Furlanetto e outros

Teatro: Teatro I do CCBB, Rio de Janeiro (1999).

Preparação vocal: Maria da Glória Beutenmüller

Preparação Corporal: Angel Vianna

O mundo é um moinho

Texto: Fauzi Arap

Direção: Fauzi Arap

Cenário: Marcos Flaksman

Figurino: Angéle Froes

Elenco: Claudio Cavalcanti, Caio Blat e outros

Teatro: Leblon, Rio de Janeiro (2003).

Preparação Corporal: Angel Vianna


158

ESPETÁCULOS CITADOS NA DISSERTAÇÃO

Gota d’água

Texto: Paulo Pontes e Chico Buarque

Direção: Gianni Ratto

Cenário: Walter Bacci

Figurinos: Walter Bacci

Coreografia: Luciano Luciani

Direção Musical: Dori Caymmi

Elenco: Bibi Ferreira, Roberto Bomfim , Bete Mendes, Luiz Linhares e outros

Teatro: Tereza Raquel, Rio de Janeiro (1975).

Agamênom (primeira parte da trilogia de Ésquilo - Orestia)

Teatro: Schaubühne

Texto: Ésquilo

Direção: Peter Stein

Elenco: Edith Clever, Jutta Lampe

Teatro: Schaubühne, Berlim (1980).

Mão na luva

Texto: Oduvaldo Viana Filho

Direção: Aderbal Freire Filho

Elenco: Marco Nanini e Juliana Carneiro da Cunha.

Teatro: Glaucio Gil, Rio de Janeiro (1984).

Preparação Corporal: Klauss Vianna


159

Os possessos

Texto: Adaptação de Bia Lessa para o romance homônimo de Dostoiévski

Direção: Bia Lessa

Cenário: Fernando Melo da Costa

Figurino: Fernando Melo da Costa

Direção musical: Caíque Botkay

Teatro: SESC Tijuca, Rio de Janeiro (1987).

Elenco: Rui Resende, Lilia Cabral, Zezé Polessa e outros

Le petit dictateur (1991)

Texto: Steven Wasson e Theatre de L’Ange Fou

Direção: Steven Wasson

Cenário: Theatre de L’Ange Fou

Figurino: Theatre de L’Ange Fou

Elenco: Theatre de L’Ange Fou

L’Homme qui voulait rester debout

Reconstituição do repertório clássico de peças criadas por Etienne Decroux

Direção: Steven Wasson

Cenário: Théâtre de L’Ange Fou

Figurino: Théâtre de L’Ange Fou

Elenco: Théâtre de L’Ange Fou

Teatro: International Mime Festival Pensilvania – USA (1991/92).


160

Orlando

Texto: Adaptação de Bob Wilson do romance homônimo de Virginia Woolf

Direção: Bob Wilson

Cenário: Bob Wison

Figurino: Suzanne Raschig

Teatro: Odeon, Paris (1993).

Elenco: Isabelle Huppert

As três irmãs

Texto: Anton Tchechov

Direção: Enrique Diaz

Cenário: Hélio Eichbaeur

Figurino: Marcelo Olinto

Teatro: Leblon (1999), Rio de Janeiro

Elenco: Maria Padilha, Julia Lemertz, Claudia Abreu

Preparação Corporal: Joice Niskier

Auto do novilho furtado

Texto: Ariano Suassuna

Direção: Demetrio Nicolau

Cenário: Coca Serpa

Figurino: Coca Serpa

Elenco: Mouhamed Harfouch, Thales Coutinho e outros

Teatro: Leblon, Rio de Janeiro (2002).

Preparação Corporal: Nara Keiserman


161

Gota d’água

Texto: Paulo Pontes e Chico Buarque

Direção: Antonio De Bonis

Direção musical: Daniel Belquer

Elenco: André Arteche, Gisela Mattoso e outros

Teatro: Hebraica (2005), Rio de Janeiro

Preparação Corporal: Paulo Trajano

Vereda da salvação

Texto: Jorge Andrade

Direção: João Fonseca

Cenário: Nello Marrese

Figurino: Nello Marrese

Elenco: Raphael Vianna, Bruna Savaget

Teatro: Teatro da UniverCidade, Rio de Janeiro (2006).

Preparação Corporal: Paulo Trajano

Anton e Olga

Texto: David Herman (colaboração: Marina Henriques e Paulo Trajano)

Direção: David Herman

Cenário: Doris Rollemberg

Figurino: Kika Lopes

Teatro: Centro Cultural da Caixa Econômica, Rio de Janeiro (2006).

Elenco: Paulo Trajano e Marina Henriques


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Gota d’água

Texto: Paulo Pontes e Chico Buarque

Direção: Nancy Galvão

Direção musical: Charles Kahn

Elenco: Marília Passos, Leandro Barbosa Pinheiro e outros

Teatro: Sala Yan Michalski (CAL), Rio de Janeiro (2009).

Preparação Corporal: Paulo Trajano


Trajano, Paulo.
T768 Reflexões sobre a preparação corporal do ator a partir dos trabalhos de An-
gel Vianna e Edgar Morin / Paulo Trajano, 2011.
xi, 206f. ; 30 cm + 1 DVD

Orientador: Nara Keiserman.


Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Universidade Federal do Esta-
do do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

1. Vianna, Angel, 1928- - Crítica e interpretação. 2. Morin, Edgard,


1921- - Crítica e interpretação. 3. Movimento (Representação teatral). 4.
Complexidade (Filosofia). 5. Linguagem corporal. I. Keiserman, Nara. II.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Centro de Letras e
Artes. Curso de Mestrado em Artes Cênicas. III. Título.

CDD – 792.028

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