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Paulo Trajano
Rio de Janeiro
2011
Reflexões sobre a Preparação Corporal do ator a partir dos trabalhos de
Angel Vianna e Edgar Morin
Paulo Trajano
Orientadora
Por
Paulo Trajano
Dissertação de Mestrado
Banca Examinadora
Agradecimentos
A minha querida mestra e amiga Angel Vianna, por seu amor, generosidade e ousadia.
A minha orientadora Nara Keiserman, pelo carinho e firmeza que tornaram esta caminhada
um percurso extremamente instigante.
A Denise Telles, uma interlocutora sensível, com quem tive a oportunidade de trocar muitas
inquietações.
A Joana Ribeiro Tavares e Jorge de Albuquerque Vieira pela confiança e sábias sugestões.
A Leandro Pinheiro Barbosa e Marília Passos, que contribuíram de maneira inestimável para
o desenvolvimento deste trabalho.
A Maria Aparecida B. P. Soares pelo auxílio no trato com as palavras que estão neste
trabalho.
A Márcia Feijó, Denise Stutz, Marina Martins, Helena Varvaki, Duda Maia, que dignificam o
objeto de estudo desta dissertação.
A Letícia Teixeira e Maria Helena Imbassaí que me ensinaram muito daquilo que aqui
apresento.
A Juliana Polo, Enamar Ramos, Marina Henriques, Sérgio Saboya, Silvio Batistela, Bruna
Savaget, André Grabois, Cíntia Barreto, Eduardo Rieche, Yara Ferraz, Marina Magalhães,
Márcia Cláudia Figueiredo, Nercy de Paula Souza e Tatiane Jesus de Santana, que me
ajudaram com materiais imprescindíveis a este trabalho.
A Gisela D’Arruda e Tânia da Costa que me ajudaram com a bela língua de Molière.
vi
RESUMO
Esta pesquisa tem como objeto de estudo a Preparação Corporal de atores, considerada como
atividade artística transdisciplinar. O parâmetro reflexivo utilizado tem como referências o
trabalho da bailarina e pedagoga Angel Vianna, denominado Conscientização do Movimento
e Jogos Corporais, e três princípios da Teoria da Complexidade do filósofo Edgar Morin:
Princípio Dialógico, Princípio da Recursividade Organizacional e Princípio Hologramático.
Os estudos realizados, aplicados em experiências laboratoriais utilizando trechos da peça
Gota d'água, de Paulo Ponte e Chico Buarque, permitiram a formulação de analogias entre os
pensamentos/práticas de Vianna e Morin, que levaram à compreensão da Preparação Corporal
como atividade complexa, segundo a concepção do filósofo.
ABSTRACT
This research aims to study the Physical Preparation of actors as a transdisciplinary artistic
activity. The parameters of reflection employed have as reference the theoretical work, The
Awareness of Movement and Physical Games, of ballerina and teacher Angel Vianna, as well
as three principals of the Theory of Complexity of philosopher Edgar Morin: The Dialogic
Principle, The Principal of Organizational Recursiveness and the Hologramatic Principle.
The studies realized and applied in an experimental setting using passages from the play, Gota
d’água (The Last Straw), of Paulo Pontes and Chico Buarque, allowed for the formulation of
analogies between the thinking/practices of Vianna and Morin which led to an understanding
of Physical Preparation as a complex activity, according to the concepts of the philosopher.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
CAPÍTULO 1
Figura 3- Eixos horizontais: 3a) Acrômios, 3b) Cristas ilíacas anteriores. ............................. 27
Figura 4- Relação dos apoios posteriores com a parte anterior do corpo. ...............................28
Figura 12- Detalhe David: mão e punho. (foto internet: all-art.org) ...................................... .41
CAPÍTULO 2
Figura 16- Auto do novilho furtado. Mouhamed Harfouch, Thales Coutinho, Geraldo
Demezio, Assayo Horissawa e Fabiano Xavier. (foto: Guga Melgar) ....................67
CAPÍTULO 3
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
1
Bailarina, professora de dança, Preparadora Corporal, diretora da Faculdade Angel Vianna (FAV), nascida em
Belo Horizonte (1928). Criadora do trabalho denominado Conscientização do Movimento e Jogos Corporais.
Para maiores informações biográficas sugiro: Angel Vianna através da História. A trajetória da dança da vida
(ver bibliografia).
2
Em 1983, Angel Vianna funda, com seu filho Rainer Vianna e Neide Neves, o Espaço Novo – Centro de
Estudo do Movimento e Artes. O objetivo do grupo era criar uma escola diferente, por seu caráter
multidisciplinar. Em 2001, este centro de estudos tornar-se-ia a Faculdade e Escola Angel Vianna.
2
mergulhar em seu espaço interno, tendo paciência para que aquilo que temos de mais íntimo
possa aflorar.
As lições ao longo de todos esses anos de convivência foram inúmeras. Como no dia
em que Angel, pela primeira vez, fez uma de minhas aulas. Nesse dia, observando a dedicação
com que ela se envolvia com cada uma de minhas propostas, pude confirmar que o corpo é
um campo de pesquisa inesgotável. Deitada num canto da sala, discreta, emanava uma
qualidade de atenção incomum ao pesquisar os elementos sugeridos. Como se tudo o que me
havia sido ensinado por ela fosse algo completamente novo e desconhecido. Naquele
momento pude compreender que tão importante quanto aquilo que ensinamos é a forma como
transmitimos o conhecimento. Mesmo diante de trabalhos elaborados por ela mesma, seu
entusiasmo justificava-se por ver como um de seus alunos havia se apropriado desse saber,
conquistando autonomia.
Aprendi muito sobre minhas estratégias pedagógicas, ao perceber que nos momentos
em que eu mais me sentia à sombra de minha mestra, passando adiante suas aulas exatamente
como ela me havia ensinado, o retorno de meus alunos era de que eu tinha um jeito próprio de
transmitir a Conscientização do Movimento e Jogos Corporais.
Angel Vianna tornou-se uma referência, uma eterna lembrança de que o corpo possui
caminhos próprios. Ela é capaz de demonstrar isso, até mesmo na relação com objetos
extremamente simples. Sugere, por exemplo, o contato com uma folha de papel, com a qual é
possível sensibilizarmos a pele das mãos, do rosto, assim como de todo o revestimento
cutâneo que envolve nossos corpos. Ensina que dobrar uma folha de papel pode revelar
procedimentos análogos àquele que um corpo experimenta quando se movimenta. O sentido
da visão também é bastante explorado em seus trabalhos de sensibilização corporal. Como
quando amassamos uma folha de papel, fazendo com ela uma bolinha, equilibrando-a no
centro da palma da mão enquanto o corpo experimenta movimentos variados e os olhos
estabelecem diferentes relações com o objeto, focando-o ou não.
Meu interesse pela Preparação Corporal justifica-se pelo fato desse campo de
conhecimento estar diretamente relacionado ao ator e seus processos criativos. O corpo do
ator é dotado de qualidades estéticas próprias, acionadas de acordo com a linguagem de cada
espetáculo onde atua. A Preparação Corporal debruça-se sobre este fenômeno particular: os
processos de criação relacionados ao corpo do ator. Como atividade autônoma do fazer
teatral, mas não isolada, avalia constantemente os limites mecânicos e/ou expressivos desse
corpo, as relações que pode estabelecer com o próprio imaginário e com aquele do coletivo no
qual está inserido.
3
A coreografia citada integrou o espetáculo Retrospectiva e Perspectiva, que também contou com a coreografia
Noch einmal, de Luís Arrieta.
4
Bailarina e coreógrafa, nascida no Rio de Janeiro. Frequentou a Académie internationale de la dance (Paris) e o
Ballet Dalal Aschar (Brasil). Em 1981, forma sua companhia de dança profissional, a “Vacilou Dançou”. Desde
sua fundação, Carlota Portella assinou inúmeras coreografias, assim como convidou renomados coreógrafos para
desenvolverem criações com seus bailarinos. Dentre os coreógrafos convidados é possível citar Luis Arrieta,
Paulo Caldas e Rodrigo Rodovalho. Em 2000, foi a única companhia de dança da America Latina a participar do
Rencontres chorégraphiques internationales de Seine-Sainte-Danis, na França. Em 2001, é a primeira companhia
4
(1989), decidiu na remontagem trabalhar com dois Preparadores que pudessem aperfeiçoar a
interpretação do elenco. Fui chamado, juntamente com a atriz Claudia Mele5, para trabalhar o
sentido da gestualidade dos bailarinos. Enfrentamos alguns problemas, tais como: uma das
bailarinas, muito jovem, não conseguia expressar a sensualidade exigida por sua personagem;
outra, no papel de uma morta, estava encontrando dificuldade na construção de sua
personagem, sobretudo quando as sequências coreográficas eram compostas por movimentos
cotidianos. Muitas vezes, nos movimentos “simples” era mais difícil sustentar uma qualidade
de execução, que mantivesse essa gestualidade integrada à totalidade da coreografia. Quando
eu e Claudia Mele começamos o trabalho com o grupo, a estrutura coreográfica já estava
totalmente definida. Isso tornou ainda mais desafiador o trabalho para aperfeiçoar o sentido da
gestualidade, sem desconsiderar a estrutura espaço-temporal estabelecida pela coreografia.
Muitas vezes, senti necessidade de que um bailarino alterasse o andamento de alguns
movimentos, a fim de que suas intenções ficassem mais claras. A sensualidade almejada para
a bailarina anteriormente citada talvez precisasse de maior languidez, exigindo um tempo
mais lento na execução de seus movimentos. Mas os bailarinos não podiam abandonar o ritmo
e o andamento fixados. Nesse momento, comecei a perceber que a Preparação Corporal
constitui um campo de atuação particular. Trabalhar o sentido de uma coreografia sem ter
participado de sua criação oferecia limitações às minhas intervenções e às de Claudia Mele.
Foi então que pude refletir com maior atenção, no momento em que meu campo de atuação
parecia restrito, sobre as especificidades do trabalho que estava realizando. Meu objetivo ali
era aperfeiçoar a forma e o sentido da gestualidade de um grupo de bailarinos, adequando-os a
uma estética particular. Como estimular sensualidade, raiva, medo, tornando críveis as
personagens de Nelson Rodrigues? Estava trabalhando com excelentes bailarinos, dotados de
grande habilidade física e facilidade para o movimento. Os movimentos, aparentemente,
estavam todos lá. Mas eram outras as questões envolvidas, relativas à qualidade estética
daquilo que faziam na cena. Trabalhando a orientação do olhar, a amplitude e a forma de
alguns movimentos, a qualidade do contato entre os bailarinos, fui descobrindo maneiras de
transformar a expressividade de muitos movimentos.
Desde esse primeiro contato com a Preparação Corporal, pude constatar que essa
atividade é dotada de características próprias, que merecem reflexão. Em todas as ocasiões em
convidada para o Festival Ocidente Oriente, em Rovereto, na Itália, onde apresentou a coreografia Grito, da
própria Carlota Portella.
5
Atriz, bailarina, professora de Corpo e Movimento na Casa das Artes de Laranjeiras - Oficina de Formação
teatral (CAL).
5
que trabalhei como Preparador constatei que essa é uma função privilegiada para o
entendimento dos processos criativos do ator e da gênese do espetáculo teatral.
Em 2009 foi criado pela primeira vez no Brasil, na FAV, um curso de Pós-Graduação
Lato Sensu de Preparação Corporal nas Artes Cênicas. Um grupo variado de profissionais
(atores, bailarinos, terapeutas e diretores) ministra um diversificado quadro de disciplinas:
Conscientização do Movimento e Jogos Corporais, Anatomia para o Movimento, View Points,
Rasa Boxes, Contato-Improvisação, Sistema Laban, Análise Funcional do Movimento, Teoria
do Corpo na Filosofia, Teoria do Conhecimento, Voz e Canto pela Técnica de Alexander,
História do Corpo no Teatro Brasileiro, Teatro Musical, O Preparador Corporal e o Mercado
de Trabalho, Metodologia, Orientação de Memorial ou Monografia e ainda quatro módulos de
Preparação Corporal, onde quatro professores trabalham ao lado de diretores e atores
convidados. Cada módulo de Preparação Corporal tem duração de 32 horas-aula, e neles,
diferentes processos metodológicos são apresentados aos alunos6.
Parto para minha escrita sem pretender propor um modelo único para aquilo que se
poderia chamar Preparação Corporal de atores. Não estou interessado em definir um padrão,
mas sim em discriminar princípios que possam ser úteis para o desenvolvimento dessa
6
Desde a criação do curso de Pós-Graduação Lato Sensu de Preparação Corporal nas Artes Cênicas da FAV,
leciono duas disciplinas nesta formação: Preparação Corporal e Conscientização do Movimento e Jogos
Corporais.
6
INTRODUÇÃO
A ideia de Preparação Corporal pode sugerir, de maneira estrita, apenas uma atividade
de condicionamento físico para atores, que utiliza um conjunto de procedimentos que visam
exclusivamente à melhora das capacidades físicas e à realização de atividades específicas.
Evidentemente, o condicionamento físico funda o trabalho do ator. Uma boa respiração,
articulações e músculos bem trabalhados, fortes e flexíveis, constituem a base para um
trabalho de qualidade na cena. Sem um corpo equilibrado, dotado de boa tonicidade, o ator
não terá condições de enfrentar as enormes demandas exigidas por sua profissão.
O corpo é uma realidade material, sujeito às leis da Física que regem o Universo. A
principal delas é estarmos determinados pela força da gravidade. Isso demonstra que as leis da
mecânica são importantes para entendermos alguns aspectos relativos à motricidade humana2,
mas não os únicos para dimensionarmos a complexidade desse fenômeno. Somos seres
físicos, biológicos e psíquicos, e todos esses aspectos determinam e são determinados por
nossos movimentos.
1
Essa atividade pode ser também denominada Direção de Movimento, ou Direção Corporal. Profissionais das
artes cênicas preferem referir-se à Preparação Corporal desse modo, quando Preparadores atuam, durante uma
montagem, na construção de cenas, e não apenas fazendo a preparação física de elencos. Nesta pesquisa, a
Preparação Corporal que valorizo considera treinamento, aquecimento e composição, na abordagem do trabalho
do ator, como atividades integradas e complementares.
2
Alavancas , transferências de peso, deslocamentos e quedas, são aspectos do movimento estudados pela
mecânica.
8
E a partir do Zé Celso, com a Roda Viva, havia necessidade muito grande de um trabalho de
corpo. E o Zé Celso me chamou. Então, a partir daí começou a virar moda trabalho de corpo,
no teatro brasileiro. (Depoimento do coreógrafo Klauss Vianna, extraído do vídeo Movimento
Expressivo: Klauss Vianna).
Com o objetivo de pensar a Preparação Corporal como prática complexa, que integra e
produz campos de conhecimento, utilizarei como referências o trabalho de Conscientização
do Movimento e Jogos Corporais, criado por Angel Vianna; assim como três princípios da
Teoria da Complexidade, de Edgar Morin4, sendo eles: Princípio Dialógico, Princípio da
Recursividade Organizacional e Princípio Hologramático. A partir do cruzamento dessas
referências, investigarei como a Preparação Corporal, atuando de forma sensível e precisa
sobre o corpo do ator, pode contribuir para a construção de linguagem num espetáculo teatral.
3
Bailarino, professor de dança, coreógrafo, diretor de teatro e Preparador Corporal, nascido em Belo Horizonte
(1928-1992). Em 1955, casa-se com Maria Ângela Abras (Angel Vianna), com quem desenvolveu importante
pesquisa no âmbito das Artes Cênicas e da pedagogia. Para maiores informações biográficas sugiro:
www.klaussvianna.art.br e A dança (do próprio Klauss Vianna, ver bibliografia).
4
Antropólogo, sociólogo e filósofo, nascido em Paris (1921). Pesquisador emérito do Centre National de la
Recherche Scientifique (CNRS). Para maiores informações biográficas, sugiro, do próprio Edgar Morin: Meus
Demônios, Ed. Bertrand Brasil (2000).
9
humana, central e determinante nas práticas de ambos, coloca o homem no cerne de seus
interesses, buscando a compreensão de seus modos particulares de auto-organização, nas
relações com o mundo. “A realidade humana é produto de uma simbiose entre o racional e o
vivido. O racional comporta o cálculo, a lógica, a coerência, a verificação empírica, mas não o
sentimento de realidade” (MORIN, 2007: 121).
A movimentação de um ator pode ser pensada como ação específica que, dotada de
sentido e qualidades tônicas próprias, constitui modos singulares de experimentação do
espaço-tempo. Ação, tônus, espaço-tempo, elementos que constituem a dinâmica de
movimentação do corpo vivo, na vida e na cena, não deverão ser considerados isoladamente.
Nesta pesquisa, esses elementos serão valorizados como partes (subsistemas) de um sistema
maior: o corpo do ator imerso num projeto estético específico. Ação, tônus, espaço-tempo são
subsistemas que dialogam entre si e com a totalidade do corpo que constituem. A partir do
momento em que um deles é alterado, todos os outros também o são, com ressonância na
movimentação do ator.
A fim de melhor expor meu percurso de estudo e reflexões, organizarei meu trabalho
em três capítulos, da seguinte maneira:
No primeiro capítulo, farei uma exposição geral sobre alguns dos princípios que
orientam as práticas pedagógicas e artísticas de Angel Vianna, que assim como o pensamento
complexo, propõe a integração de múltiplos campos de conhecimento, na busca de maior
compreensão e desenvolvimento das capacidades humanas. A fim de que o potencial
10
A Preparação Corporal que interessa a esta pesquisa constitui-se como crítica genética
dos processos de criação, baseados na realidade corpórea do ator. Pretende-se interessada pelo
movimento engendrado por esse profissional, desde sua gênese, passando por um processo
11
Até que ponto o trabalho do Preparador Corporal pode ser considerado fundamental
para a construção de um espetáculo?
12
Como é possível estar sem ser? Somos capazes de executar inúmeras atividades sem
nos darmos conta daquilo que fazemos. Vivemos o presente de forma extremamente fugaz, e
nos distanciamos dele muito facilmente, quando transformamos nossa experiência sensível em
objeto de vivência, que julgamos poder apreender, classificar e dominar. Segundo Morin, “o
mundo que conhecemos sem nós não é mundo, conosco, é mundo” (MORIN, 2008: 223), pois
para esse filósofo o conhecimento não é um reflexo do mundo, mas um diálogo vivo que
estabelecemos com ele.
Sem uma boa qualidade de atenção, para si mesmo e para o espaço, não há
possibilidade de o corpo humano reorganizar seus padrões psicomotores. “É graças à
mobilização da sua atenção que a pessoa vai poder ver melhor, ouvir melhor, captar
elementos que até então não eram conscientes, porque não eram sentidos” (BOIS, 2008:
128, o grifo é meu). Angel Vianna acredita que seu trabalho está diretamente relacionado à
expansão das capacidades sensíveis do sujeito.
Na vida cotidiana as sensações corporais vêm em sua maior parte dos movimentos exteriores.
Eliminado-se estes, a pessoa se arrisca a não sentir mais nada, pois ela não tem o hábito de
dirigir sua atenção para o interior de seu corpo. Com efeito, a diferença é grande entre as
sensações da superfície e aquelas das camadas profundas. (VIANNA, 1978: 3).
13
1
Atriz, escritora e professora de Conscientização Corporal. Em seu livro Sensibilidade no cotidiano,
Conscientização Corporal (ver bibliografia), ela afirma que seu trabalho é resultado do contato com a
Conscientização do Movimento e Jogos Corporais, criado por Angel Vianna. A Conscientização Corporal,
proposta por Imbassaí, teria como objetivo despertar as sensações, a dinâmica, a postura, a tonicidade e o
equilíbrio do corpo.
2
Segundo Angel Vianna, o reflexo plantar constitui-se como uma força capaz de integrar o corpo numa relação
dinâmica e viva com a verticalidade. A partir da consciência do apoio dos pés sobre o chão (em trabalhos no
nível baixo (corpo deitado), médio (corpo sentado ou agachado) e alto (corpo em pé), um jogo de oposições pode
ser experimentado no corpo, resultado de forças ascendentes e descendentes.
14
3
Muitos são os significados da palavra energia. O dicionário esclarece: 1) Capacidade que um corpo tem de
realizar trabalho; 2) Ação de um motor (físico ou metafísico) que permite a atualização de uma potencialidade
(Aristóteles); 3) Vigor ou potência moral; 4) Força física (HOUAISS, 2001: 1142). No teatro, essa palavra é
comumente usada para indicar a intensidade (tonicidade) com a qual os atores realizam suas ações, fazendo-se
quase um jargão. No segundo capítulo desta dissertação, serão apresentados alguns jogos de integração, que
instrumentalizam atores através de vivências práticas, a fim de que possam perceber a qualidade de energia
colocada em seus trabalhos. Muitos dos estudos de Rudolf Laban, sobre o fator de movimento peso, podem
também nos ajudar a compreender as forças mobilizadas na execução de tarefas variadas. “O fator peso refere-se
a mudanças na força usada pelo corpo ao mover-se, mobilizando seu peso para empurrar, puxar ou carregar
objetos, tocar em outro corpo, etc. Por exemplo, para abrir uma janela emperrada, são necessários movimentos
fortes. (...) Já para brindar com taças de cristal, o peso leve é necessário” (FERNANDES, 2006: 131).
15
empregar métodos de cultivo próprios a cada um desses frutos. (DROPSY, 1973: 50, tradução
livre do autor).4
Essa imbricação dos sentidos pode ser percebida nos momentos em que nos
relacionamos com os objetos do mundo e quando percebemos nosso espaço pessoal. Vivemos
imersos num grande cruzamento de sensações e somos resultado disso. Desenvolvemos um
sistema nervoso que nos proporciona, no atual estágio de nossa espécie, capacidades múltiplas
nos níveis perceptivo, cognitivo e motor. Ao longo desse processo de evolução,
desenvolvemos a capacidade de nos tornarmos conscientes de nós mesmos e de muitos de
nossos processos.
4
Cet organisme humain nous le partageons, quelle que soit l’infinité de nos différences individuelles. Il est donc
legitime, en se plaçant à ce niveau, de parler d’une norme de fonctionnement des corps humains en général.
Cette norme n’est pas arbitraire. Elle est contenue en puissance dans la forme et structure de l’organisme. De la
même façon, une graine de pomme ou tomate, ne contient pas seulment le fruit en germe. Elle oblige aussi le
jardinier a employer des méthodes de culture qui sont propres a chacun de ces fruits.
5
Les sens, agissent en unisson avec l’appréhension du monde. Sauf que lorsqu’on regarde un paysage, la vue
est l’organe principal requis pour l’appréhension de l’image. Mais tous les autres organes sensoriel sont
sollicités pendant le moment de contemplation. Cela ressemble á un orchestre qui joue une composition
musicale. Parfois le son d’un instrument spécifique est plus sollicité et mis plus en evidence que les autres.
Toutefois, il faudra toujours un ensemble du son avec les autres instruments pour que la melodie soit complete et
plus harmonieuse.
16
O ser humano, ao pensar naquilo que faz, consegue impregnar suas atividades com
uma força capaz de transformá-lo. Vale ressaltar que ao usar o verbo pensar, não estou me
referindo unicamente à parte racional e lógica das faculdades mentais do ser humano. Esta é
uma parcela muito importante, vinculada a cálculos, mensuragens e ordenação linear de
múltiplos fenômenos, mas está longe de esgotar as propriedades daquilo que chamamos de
mente.
Assumindo que mente e corpo são instâncias indissociadas, essas modalidades do Ser
só serão compreendidas quando inseridas num fluxo constante de ordem e desordem, que
inventa constantemente a vida. Morin considera “espírito”, uma função da mente. “Quando
escrevo espírito quero dizer mind, com todas as diversas qualidades que surgem com ela,
entre as quais o insegno, de Vico (aptidão combinatória, inventiva)” (MORIN, 2007: 38, o
grifo é meu).
Pois, de fato, é apenas a experiência vivida que pode revelar algumas das leis que governam o
emprego do organismo humano. Uma informação escrita não será mais que um dedo
apontando um caminho, a ser percorrido por si só. (DROPSY, 1973: 50, tradução livre do
autor).7
6
“Além do equilíbrio mecânico a postura deve ser concebida como resultante de um equilíbrio neuro-motor
onde se integram uma infinidade de reflexos sensitivo-motores, atuando em diferentes níveis do sistema nervoso.
Estes proporcionam um complexo mecanismo de regulação automática. Sendo uma posição próxima ao
equilíbrio estável a postura ereta deve solicitar pouco esforço muscular. A regulação do tônus postural é
fundamental na manutenção do equilíbrio. Junto a ela se integram a ação dos ligamentos e as sensações
proprioceptivas advindas de sua tensão e relaxamento. Todo este complexo funciona de maneira involuntária à
medida que o hábito se interioriza no indivíduo. Daí uma educação da postura passar essencialmente pelo
trabalho sobre as sensações e não simplesmente pela repetição de contrações tônicas. Fazem parte do conjunto da
propriocepção as sensações de flexão articular, de pressão plantar, de desequilíbrio provocado pelo deslocamento
dos otolíticos do ouvido interno. Enfim o que a ação da gravidade acarreta no corpo. Os caracteres
morfogenéticos são o material com o qual o sistema neuropsicomotor atuará. Integrados às sensações
proprioceptivas, o aspecto emocional, o comportamento social e o modo de expressão se exibem na postura da
pessoa. O esquema postural vem a ser a representação mental que o indivíduo faz de seu equilíbrio através dos
dados próprio e exteroceptivos. Imagem somática, emoções internas, postura e movimento espelham impulsos
psíquicos, nossa atitude para com nossos semelhantes, nós mesmos e o meio ambiente” (notas de trabalho da
própria Angel Vianna, concedidas ao autor).
7
Car en fait, c’est l’expérience vécue seule qui peut faire redécouvrir quelques-unes des lois qui gouvernent
l’emploi de l’organisme humain. Aucune indication écrite ne peut être plus qu’un doit pointant dans la direction
d’un chemin à parcourir soi-même.
17
1.1.2 Percepção
O exercício da percepção mostra que é preciso se demorar diante das aparições do mundo para
saber um pouco mais a seu respeito. Noutras palavras, a percepção não me engana
definitivamente, pelo contrário, é através dela que entro em contato com a inesgotável riqueza
do mundo. (RAMOS, 2010: 45).
sensação uma dada parte do corpo, a forma de um movimento ou a relação com outro, que nós
descobrimos o quanto nos falta” (DROPSY, 1973: 21, tradução livre do autor).8
1.1.3 Não-esforço9
8
C’est seulment lors d’un effort conscient et infructueux pour faire surgir la sensation de tell partie de notre
corps, la forme de tel mouvement ou bien tel mode de relation avec un outre, que nous decouvrons combien ils
nous manquent.
9
A palavra esforço aqui não está sendo utilizada segundo o Sistema Laban, “pulsão resultante de atitudes
internas que ativam o movimento, imprimindo-lhe variadas e expressivas qualidades” (RENGEL, 2003: 60), mas
no sentido de quantidade de força/tonicidade empregada na realização de um movimento ou ação.
19
O fato de trabalharmos muito deitados não deve sugerir uma falsa ideia de
relaxamento, que não é o objetivo direto deste trabalho. Ao despertarmos outra qualidade de
atenção no corpo, criamos possibilidades de que ele encontre por si seus próprios caminhos de
auto-organização. Muitas das expressões utilizadas na Conscientização do Movimento
comprovam a importância de buscarmos a justa força durante os trabalhos de sensibilização
corporal ou pesquisa de movimentos. “Ceder”; “Sentir”; “Entregar o peso do corpo”; “Soltar”;
“Tirar o excesso de força”; “Projetar”; “Economizar”, são exemplos de estímulos verbais
frequentemente utilizados neste trabalho. Essas expressões atestam a relação entre não-
esforço e percepção. É possível ceder porque, pouco a pouco, aumentamos e intensificamos a
escuta do corpo. Ceder no trabalho de Conscientização do Movimento é um ato de grande
atividade.
A partir do momento em que a consciência de ossos e pele vai sendo aprimorada, por
meio de exercícios de auto-contato e pesquisa de movimento, a relação com a organização
tônica do corpo muda, produzindo alterações de comportamento. Consequentemente, o
trabalho sobre o corpo ganha amplitude e novos contornos, demonstrando que a parte
mecânica do movimento não está dissociada da vida psicológica do sujeito. Assim como a
Eutonia, a Conscientização do Movimento é um trabalho de integração corporal que não
separa, no homem, aspectos físicos, biológicos e psíquicos.
Na Eutonia, muitas vezes fazem-se trabalhos com argila (fig. 1), onde corpos
humanos, ou partes destes, são modelados. Nessa atividade é possível perceber o quanto as
noções de esquema e imagem corporal12 estão imbricadas.
A primeira conclusão é que não podemos, no estado atual de nossa experiência, separar a vida
psicológica de sua expressão no corpo e das sensações físicas que estão ligadas àquela. A
segunda é que, além do mais, nós tomamos consciência de pelo menos uma parte de nossa vida
12
A imagem e o esquema corporal são conceitos, por isso abstrações teóricas, que nos auxiliam a entender como
o corpo vai se estruturando ao longo de sua existência. (...) É na mediação da imagem corporal com o esquema
corporal que todas as funções psicomotoras podem se estabelecer, através de uma estruturação corporal. Quando
se tem a imagem e o esquema corporal bem estruturados, as outras funções podem se organizar (ALMEIDA,
2003: 20/22). Ao dar qualquer tipo de informação/orientação, mesmo que esta seja para resolver algum problema
de ordem mecânica, como por exemplo: apoio de partes do corpo ‘entrando ou saindo’ do chão, mudança de uma
posição a outra com maior agilidade, o Preparador Corporal deve saber que elas incidem sobre a totalidade do
corpo do ator, já que qualquer modificação no esquema corporal afeta diretamente a auto-imagem.
21
psíquica e emotiva através das sensações corporais. (DROPSY, 1973: 42, tradução livre do
autor).13
1.1.4 Imobilidade
13
La première conclusion est que nous ne pouvons, dans l’etat actuel de notre expérience, séparer la vie
psychologique de son expression dans le corp et des sensation phyysiques qui lui sont liées. La seconde est que,
de plus, nous prenons conscience au moins d’une partie de notre vie psychique et sourtout émotive par des
sensations corporelles.
14
Quando algum tipo de informação organizada (pensamento, notação musical, poema) expresso através de um
sistema específico de signos, passa a ser expresso, de modo análogo, por outro sistema sígnico. Por exemplo: o
sistema sígnico mental da 5ª sinfonia de Beethoven constitui-se como um sistema sígnico, que será transduzido
por outro sistema análogo, na forma de notas musicais grafadas numa partitura.
15
As posições de controle constituem uma parte importante do trabalho de Eutonia, criado por Gerda Alexander.
Dinamizando todas as articulações do corpo, desde a base até a parte superior, elas são posturas, porque
trabalhadas de forma estática, que possibilitam uma tomada de consciência da amplitude articular própria, ao
longo da totalidade do corpo. Seu inventário é feito relacionando as possibilidades de movimento nas
articulações e o tônus muscular necessário para sustentar a boa arquitetura e funcionamento das mesmas.
22
que o corpo, mesmo imóvel, experimenta uma gama variada de sensações, que são formas de
movimento. “Assim como o som só tem sentido em sua relação com o silêncio, ou a luz, em
sua relação com a escuridão, o movimento só encontra sentido em sua relação com a não-
ação, o não-movimento” (VIANNA, 1978: 1). Isso ensina ao ator que, mesmo parado, sua
experiência sensível não é interrompida. Aqui está se falando de outra qualidade de
imobilidade, uma mobilidade passiva.
Se é fácil demonstrar as vantagens do estado passivo, é menos fácil chegar a esse estado.
Parece bem curioso que não fazer nada possa ser difícil, mas estado passivo consciente é
geralmente muito pouco conhecido e quase inexistente na vida moderna. (...) O relaxamento é
muitas vezes ligado à ideia de morte como usam na Yoga. Entretanto, o estado de passividade
desejado não tem a menor semelhança com a morte. O estado de passividade consciente é um
estado vivente, e quanto mais se relaxa, mais se percebe a vida interior do corpo, a respiração,
a circulação do sangue, os movimentos peristálticos e etc. (Ibidem, 1978: 2).
Por que pausas assustam tanto os atores? Porque são momentos de risco, nos quais se
pode ganhar ou perder força, aumentando ou diminuindo a expressividade de uma ação.
Quando bem usadas, as pausas podem renovar a disposição do ator, revelando novas
possibilidades de jogo. Rudolf Laban fala da existência de uma zona de silêncio em todo ser
humano. Esta zona seria o potencial que possuímos para vivenciar todas as qualidades de
movimento.
Existe uma energia atrás de todo acontecimento e atrás de cada coisa, que dificilmente
podemos nominar. Uma paisagem escondida e esquecida. A região do silêncio, o império da
alma; no seu centro existe um templo em movimento. Portanto, as mensagens vindas desta
região do silêncio são eloquentes e nos falam sempre em termos de realidades cambiantes, que
são para nós de grande importância. (LABAN apud LAUNAY, 1996: 93, tradução livre do
autor).16
16
Il y a une énergie derrière tout événement et derrière toute chose, qu’on peut difficilement nommer. Un
paysage caché et oublié. La région du silence, l’empire de l’âme; en son centre, il y a un temple en mouvement.
Pourtant, les messages venus de cette région du silence sont éloquents et nous parlent en termes tourjours
changeant de réalites qui sont pour nous d’une très grande importance.
23
17
O adjetivo econômico está sendo utilizado no sentido de equilibrado, dotado de uma organização justa e uma
boa distribuição de forças.
24
No trabalho, que toma o corpo como ponto de partida, nós já nos deparamos com a liberdade
que aparece quando diminuímos a importância dada ao resultado para se concentrar nos meios
de chegarmos ao instante presente. Torna-se possível entrar no trabalho como num jogo, ao
invés de considerá-lo muito seriamente, como uma tarefa a ser realizada; assim faz a criança,
que cada uma das milhares de tentativas para aprender a andar, ou falar, é um jogo onde ela se
entrega com prazer e liberdade. (DROPSY, 1973: 146, tradução livre do autor).18
18
Dans le travail, à partir du corps, nous avons déjà rencontré la liberté qui naît quand on retire une part de
l’importance donnée ao resultat pour se concentrer sur les moyens d’y parvenir dans l’instant présent. Il devient
alors possible d’entrer dans le travail comme dans un jeu plutôt que le considerer trop sérieusement comme une
tâche à accomplir, ainsi fait l’enfant pour qui chacun des milliers d’essais répétés pour apprendre à marcher ou
à parler est un jeu, auquel il s’adonne avec plaisir et liberté.
25
Através deste trabalho, aprendemos que a ideia de estrutura corporal não deve ser
considerada rigidamente, mas um processo dinâmico de adaptações entre a totalidade do
19
corpo e suas partes. A experiência do corpo movente é “dilatada” e inúmeras formas de
equilíbrio podem ser vivenciadas. Aprende-se que equilíbrio não é uma noção estática, mas
extremamente dinâmica, que inclui probabilidades de desequilíbrio. Em muitos treinamentos
e técnicas corporais para atores, o trabalho sobre o equilíbrio é fundamento. Meierhold,
Decroux, Grotowski e Barba consideram a utilização do equilíbrio precário20 como estratégia
para treinamentos e jogos de cena potentes. Alterando a organização tônica habitual o ator é
capaz de intensificar a relação com seus processos fisiológicos.
Eixo vertical (linha vertical imaginária) responsável pelo equilíbrio neuromuscular e pela
harmonia do indivíduo com seu mundo interno (sensações e emoções). Eixo horizontal
(braços) responsável pelo equilíbrio do indivíduo com o mundo externo (relações e ações).
(IMBASSAÍ, 2006: 85).
19
“O corpo dilatado é acima de tudo um corpo incandescente, no sentido científico do termo: as partículas que
compõe o comportamento cotidiano foram excitadas e produzem mais energia, sofreram um incremento de
movimento, separam-se mais, atraem-se e opõem-se com mais força, num espaço mais amplo ou reduzido”
(BARBA e SAVARESE, 1995: 54).
20
“Uma tradição na mímica européia faz uso consciente desse déséquilibre: não como um meio de expressão,
mas como um meio de intensificação de certos processos orgânicos e aspectos da vida do corpo” (ibdem, 1995:
35).
21
O termo Educação Somática, atualmente, engloba um número considerável de técnicas corporais que visam o
equilíbrio harmônico do sujeito consigo mesmo e com o ambiente no qual está inserido. A Conscientização do
Movimento e Jogos Corporais, hoje, no Brasil, faz parte desse conjunto de trabalhos que, segundo Angel Vianna,
‘procuram equilibrar tensões, favorecendo que o corpo organize suas funções vitais’ (entrevista ao autor, Anexo
A).
26
Para se convencer disso, basta pedir que um grupo de pessoas se mantenham ‘eretas’, sem
nenhuma explicação. O resultado é geralmente revelador. Não há duas atitudes iguais. Cada um
tem suas próprias contrações: um sobe os ombros, outro crispa os braços, um terceiro empurra
o queixo para frente; alguns troncos estão curvos, outros estendidos. Um faz um arco para trás
e outro cai para frente como numa saudação. Ao menos metade tem a respiração presa.
(DROPSY, 1973: 47, tradução livre do autor).22
22
Il suffit pour s’en convaincre de demander à un group de gens debout de “se tenir droit” sans outre
explication. Le résultat est généralment révélateur. Il n’y a pas deux attitudes semblables. Chacun se livre à des
contortion qui lui sont propres: l’un remonte les épaules, l’autre crispe ses bras, un troisième pousse le menton
en avant; des dos sont rond, d’autres exagérément cambrés. Tel fait un arc en arrière et tel autre est cassé en
avant comme pour saluer. Au moins moitié des respirations sont bloqeées.
27
2a 2b 2c
3a- Acrômios
3a 3b
28
2) Ainda no chão, Angel Vianna pede atenção na projeção dos apoios da parte
posterior do corpo em direção a parte anterior (dimensão sagital).
As linhas espirais que atravessam o corpo são de grande importância. Elas estão
intimamente relacionadas à nossa morfologia e podem funcionar como estímulo para que o
corpo encontre caminhos eficazes e econômicos na realização de suas ações. Movimentos
circulares e espiralados vão a favor de nossa estrutura primordial, liberando articulações e
músculos. Angel Vianna afirma que aprendeu muito sobre as torções com Rudolf Piffl, ex-
aluno de Rosalia Chladek, com quem teve oportunidade de trabalhar, na época em que esteve
na Bahia (1963/64). Chladek é considerada uma pioneira da chamada dança de expressão do
século XX (Anexo C, cena: 1), e desenvolveu um trabalho pedagógico, assim como Angel
Vianna, baseado na anatomia e fisiologia do corpo humano. Para essas duas bailarinas e
pedagogas, a verdadeira expressividade na dança está baseada na escuta das estruturas do
corpo e sua funcionalidade.
As espirais são linhas de força que impressionam Vianna desde os tempos em que
estudou Belas Artes na Escola Guignard23, como é possível constatar no estudo abaixo (fig.5):
23
“Em 1944, Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) é trazido a Belo Horizonte pelo então prefeito Jucelino
Kubitschek para dirigir o curso livre de desenho e pintura da Escola de Belas Artes, que 1962, passa a se chamar
Escola Guignard, em sua homenagem. O liberalismo didático de Guignard proporcionou à sociedade belo-
horizontina uma nova concepção artística dentro dos padrões estéticos da época” (MAGALHÃES, 2010: 9).
29
(Figura 5) Estudo em cimento de Angel Vianna para Santa barroca (1959). (foto do autor).
Os movimentos circulares nos colocam frente à força centrífuga. Por causa da construção do
corpo humano em torno de um eixo vertical e do desenvolvimento de cada segmento em torno
de um ponto de apoio fixo que serve de base: bacia, ombro, base do pescoço, a maior parte das
coordenações do corpo humano se dão seguindo trajetos circulares. (DROPSY, 1973: 117,
tradução livre do autor).24
24
Les mouvements circulaires nous mettent en face de la force centrifuge. A cause de la construction du corps
humain autour d’un axe verticale et du développement de chaque segment autour d’un point d’appui fixe qui lui
sert de racine: bassin, épaule, base du cou, la plupart des coordinations fondamentales du corps humain se
développent suivant des trajets circulaires.
30
Não foi por acaso que se chamou a Angel Vianna. Porque o que nós queremos não é uma
verdade psicológica, queremos uma verdade sim, mas queremos um corpo tão livre, que ele
seja tão expressivo, que ele ajude ao que seja mais instintivo, mais intuição, o mais
inconsciente do homem, o mais sonho, o mais delírio. E isso deve vir à tona através do corpo,
não através desta cuca pesada que a gente tem. (Sérgio Britto in programa de O Jardim das
cerejeiras).
Outro exemplo, estabelecendo relações entre os eixos vertical e horizontal, pode ser
apontado no espetáculo Anton e Olga (Anexo B). Há anos venho percebendo a importância
desses eixos em vários momentos de minha vida profissional como ator. Nesse trabalho, pude
experimentar relações entre essas linhas, que determinaram modos particulares de exploração
do espaço, movimentação e atenção. O espetáculo mostrava os últimos anos do
relacionamento do escritor russo Anton Tchécov e sua esposa, a atriz Olga Knipper. Eles se
conheceram em 1898, casaram-se 1901 e viveram juntos até 1904, ano em que Tchécov morre
tuberculoso, em Badenweiller, na Alemanha. Durante esse curto período de vida em comum,
Anton e Olga estiveram muito pouco tempo juntos. A doença de Tchécov o impedia de viver
25
A grafia mais usual é Tchékhov. Também é aceitável a forma aportuguesada Tchécov.
31
no frio de Moscou, junto com sua esposa. Ele era obrigado a viver em Yalta, no sul da Rússia,
enquanto Olga fazia uma gloriosa carreira de atriz no Teatro de Arte de Moscou.
(Figura 6) Marina Henriques e Paulo Trajano em Anton e Olga. (foto: Daniel Belquer).
da Complexidade de Morin26, tempo e espaço não são entidades distintas, mas imbricadas,
constituindo a materialidade de que somos feitos.
O autor é ainda aquilo que permite ultrapassar as contradições que podem manifestar-se numa
série de textos: deve haver – a um certo nível do seu pensamento e do seu desejo, da sua
consciência ou do seu inconsciente – um ponto a partir do qual as contradições se resolvem, os
elementos incompatíveis encaixam finalmente uns nos outros ou se organizam em torno de
uma contradição fundamental originária. (FOULCAULT, 1992: 53).
Do vasto legado teórico proposto por Morin, três princípios serão importantes para
orientar práticas e reflexões propostas neste trabalho: Princípio Dialógico, Princípio da
Recursividade Organizacional e Princípio Hologramático. Eles fundamentam o pensamento
complexo e apresentam uma visão dinâmica da realidade, tornando possível considerá-la em
vários níveis, de modo a reconhecer a regularidade de certos fenômenos, e a não linearidade
de outros.
26
A Teoria da Complexidade é um sistema de ideias que vem sendo desenvolvido desde 1950, e foi inicialmente
elaborada por matemáticos, sendo posteriormente absorvida por variados campos do conhecimento. O biólogo
Ludwig Von Bertalanffy (1901-1972) é considerado um dos precursores do pensamento complexo. Austríaco,
foi criador da Teoria Geral dos Sistemas. Os trabalhos iniciais de Bertalanffy, que datam da década de 20 do
século passado, procuraram estabelecer um diálogo entre a biologia e a matemática. Seus estudos apresentavam
uma abordagem orgânica da biologia, uma noção de organismo onde o todo é maior que as partes. Por falta de
entendimento, muitos cientistas na época não aceitaram suas ideias e as deixaram de lado. Mas o pensamento
complexo, já presente nestes trabalhos, é retomado, na segunda metade do sec. XX, por alguns cientistas, dentre
eles o médico, biólogo e filósofo francês Henri Atlan, que estudando a auto-organização dos sistemas vivos,
afirmou que esses processos ultrapassavam a compreensão racional e a lógica dos métodos científicos.
Complexo é aquilo que é tecido junto. Na Teoria da Complexidade não existe um campo do pensamento e outro
da ação. Através de nossas ações somos capazes de desenvolver nossos esquemas de pensamento e vice-versa,
estabelecendo um ciclo recursivo constante. A Complexidade é um modo específico de o homem olhar para o
mundo, percebendo nele uma infinidade de relações, onde os opostos coexistem, fazendo a vida avançar.
33
Isso quer dizer que precisamos conceber nosso universo a partir de uma dialógica entre esses
termos, cada um deles chamando o outro, cada um precisando do outro para se constituir, cada
um inseparável do outro, cada um complementar do outro, sendo antagônico ao outro.
(MORIN, 2008: 204).
Desse modo não é possível excluir, dos processos de organização da vida, desvios e
perturbações.
Temos, primeiro, de saber que o erro nas comunicações humanas é uma fonte permanente de
incompreensão. O erro é um problema central e permanente na compreensão de uma fala, de
uma mensagem, de uma ideia, de uma pessoa. O erro e o conhecimento têm a mesma fonte.
Todo conhecimento é interpretação (tradução, reconstrução). Daí o risco de erro em qualquer
27
Atriz e Preparadora Corporal nascida no Rio de Janeiro. Entre os últimos trabalhos realizados como
Preparadora estão: As regras da arte de bem viver na vida moderna, de Jean-Luc Lagarce, direção Miguel
Vellinho (2011), e Aquela outra, de Lícia Manzo, direção Clarice Niskier (2011).
35
determinando, junto com a direção, que trechos deveriam ser mantidos no espetáculo. A
composição textual de Anton e Olga deu-se de forma imbricada ao trabalho dos atores, que
também passaram a influir sobre as escolhas do diretor-autor. O processo de ensaios, baseado
nesse jogo interativo entre direção e atores, foi determinante na elaboração do texto. Quando a
direção percebia que um dado acontecimento era capaz de estimular os atores, isso passava a
constituir uma orientação para suas escolhas. Neste exemplo é possível constatar que a
elaboração do texto, do trabalho dos atores e a construção do espetáculo aconteceram de
modo extremamente integrado. Herman afirma que, não sendo escritor, não saberia chegar ao
texto que escreveu dissociando sua escrita do trabalho que era feito nos ensaios, através de
improvisos e discussões com o elenco.
ensaios, dois ou três atores fazendo um mesmo papel, e aprender muito com isso. Este
procedimento, hoje, pode ser melhor compreendido por estudos no campo das ciências
cognitivas, que comprovam que neurônios-espelho29 disparam em resposta a algo observado.
“A descoberta desse mecanismo, feita há cerca de uma década, sugere que nós também
fazemos mentalmente tudo que assistimos alguém fazer” (DOBBS, 2006: 47).
No capítulo dois, abordarei alguns trabalhos onde atuei como Preparador Corporal em
contextos escolares. Muito do Princípio Hologramático pôde ser observado nessas montagens,
pois alunos-atores revezavam-se num mesmo papel, e muito das conquistas de um servia
como material de trabalho para outros, mesmo que fosse para indicar que o caminho a ser
seguido deveria ser outro.
29
“Os neurônios-espelho foram encontrados nas áreas do córtex pré-motor e parietal inferior – associadas a
movimento e percepção – bem como no lobo parietal posterior, no sulco temporal superior e na ínsula, regiões
que correspondem a nossa capacidade de compreender o sentimento de outra pessoa, entender a intenção e usar a
linguagem” (DOBBS, 2006: 49).
38
Na medida em que estes três elementos, no âmbito desta pesquisa, serão abordados
como sistemas complexos (não apenas como referências anatomofisiológicas isoladas)
passarei a denominá-los Funções. Cada uma delas constituindo-se como um conjunto de
propriedades, com qualidades e potencialidades próprias.
40
A relação com o eixo vertical também se faz marcante, mas não de forma rígida, uma
vez que podemos perceber alguma sinuosidade no tronco. A ondulação do tronco revela,
mesmo na imobilidade, que a força que emana da escultura está vinculada ao seu potencial
articular. A linha vertical, bastante evidente na obra, não desconsidera o diálogo com a linha
curva, e isso amplia sua força.
Este retorno do tronco ao alinhamento mecânico justo devolve ao corpo sua eficácia
apropriada. Esse alinhamento é um equilíbrio cuja coordenação demanda o mínimo de esforço
e garante o máximo de estabilidade. (...) A importância e o valor dessa coordenação foi
conhecida em todas as épocas e as culturas mais diversas nos deixaram testemunho em suas
obras de arte. A força e a serenidade que exprime esse eixo justo foram aproveitadas pelos
artistas em suas representações de heróis e Deuses: Zeus, Buda, os Cristos gloriosos das
catedrais, nos dão a mesma imagem de força sem tensão e estabilidade luminosa, que existe
pulsante no equilíbrio do corpo humano. (DROPSY, 1973: 59, tradução livre do autor) 32.
O detalhe do punho direito (fig. 12), segurando a pedra que vai se lançada, exibe não
só funcionalidade articular, assim como grande força expressiva. O punho articulado
evidencia cálculos e estados emocionais do pequeno David, prestes a enfrentar o gigante.
32
Ce retour de tout le tronc à l’alignement mécanique correct redone au corps son efficacité optimal. Cet
alignement est un équilibre don’t la coordination requiert le minimum d’effort est assure le maximum de
stabilité. (…) L’importance et la valeur de cette coordination ont été connues à toutes les époques et les cultures
les diverses nous en laissé le témoignage dans leurs oeuvres d’art. La puissance et la sérénité qu’exprime cet
axe juste ont été utilisée par les artiste dans leurs représentations des héros et des Dieux: Zeus, Bouddha, les
Christ en gloire des cathedrals, nous donnent la meme image de force sans tension et stabilité rayonnante, qui
existe en puissance dans l’équilibre du corps humain.
42
O corpo inteiro está no punho, e esta articulação evidencia a mesma prontidão presente
na totalidade da escultura. De modo análogo, quando o ator entra em movimento, ele está
sendo convidado a perceber a totalidade de seu potencial humano.
Articular é um verbo importante para o ator, que coordena e organiza suas ações por
meio de um diálogo equilibrado com o espaço. Ao mesmo tempo em que aprende a usar
melhor suas “dobradiças”, conquista maior habilidade para projetar no espaço suas intenções.
Somente quando o ator libera suas articulações, permitindo que o movimento aconteça
plenamente no corpo, ele consegue estabelecer pontes entre seu imaginário e a cena, através
de movimentos precisos e bem articulados.
A pele, uma fronteira entre o interior e o espaço externo, provém do mesmo folheto
embrionário que constitui o sistema nervoso central. Estudiosos do corpo afirmam que nossa
pele é nosso cérebro exteriorizado. ‘Além de ser o maior órgão do corpo, os vários elementos
que a compõe têm extensa representação a nível cerebral’. (MONTAGU, 1988: 31).
Nos dias que correm, os hábitos cotidianos anestesiam nossa relação com o corpo, e a
pele não fica fora desse processo de alheamento. Esquecemos o quanto o tecido cutâneo é
determinante para nossa sobrevivência, e o quanto está impregnado de afetos. Tocar, mais do
que apenas um gesto funcional, anuncia necessidades profundas no ser humano. A expressão
“tocar o coração de uma pessoa”, revela o quanto sabemos, mesmo que de forma intuitiva,
sobre as íntimas relações entre toque e sentimento.
43
Os cinco sentidos humanos trabalham de forma integrada e são importantes para que o
corpo possa se organizar em suas relações com o ambiente. A visão está intimamente ligada
ao sistema neuromotor, buscando movimentos que possam equilibrar e compensar aqueles
que acontecem na totalidade do corpo.
Para reconstituir exatamente a orientação do meu corpo no espaço, para saber se me desloco
em linha reta ou se inclino, é preciso que exista cooperação entre sistema visual e sistema
vestibular. (BERTHOZ, 1994: 18, tradução livre do autor).34
33
“Histologicamente falando a fáscia é um tecido conjuntivo fibroso que é o tecido mais abundante do corpo.
Ele une, sustenta e reforça outros tecidos do corpo, protege e isola órgãos internos e compartimentaliza todas as
estruturas do corpo tais como os músculos estriados esqueléticos” (Apostila do primeiro ciclo do curso de
Fasciaterapia e Somato-psicopedagogia, Rio de Janeiro, 2006).
34
Donc, pour reconstituer exactement l’orientation de mon corps dans l’espace, pour savoir se je me déplace
linéairement ou si je m’incline, il faut qu’il y ait coopération entre système visuel et systeme vestibulaire.
44
Desse modo, Alain Berthoz explica que as informações, que nos chegam pela visão,
seguem não apenas para a parte do córtex cerebral que nos assegura a percepção das formas,
mas vão também se conectar com o sistema vestibular, estrutura do ouvido interno que está
relacionada com o equilíbrio de todo o corpo.
Para percepção da cor de um objeto, por exemplo, a visão é a única aferência necessária, mas
para percepção estática e de movimento participam, além do sistema vestibular, os sistemas
visual e proprioceptivo, o que torna a função a princípio multidimensional. (PEREIRA, s/d:
10, o grifo é meu).
O olhar pode ser trabalhado como uma liderança. Essa dinâmica pode ser
desenvolvida em vários momentos de uma Preparação Corporal. Atores costumam olhar
demasiadamente para dentro, valorizando por demais seus próprios sentimentos. Quando um
ator aprende olhar o espaço, isso revela maturidade no exercício de suas funções. Muitas
vezes, o ator valoriza mais sua própria imaginação, limitando suas capacidades sensíveis,
reduzindo consideravelmente as trocas que estabelece em cena. O uso da visão constitui para
um ator novas relações com o espaço-tempo. Imediatamente uma sensação de ocupação do
espaço acontece, gestos e movimentos equilibram-se, e a movimentação excessiva é deixada
de lado.
45
Este capítulo propôs uma aproximação entre alguns elementos dos trabalhos de Angel
Vianna e Edgar Morin. Fazer dialogar as ideias e práticas desses mestres não tem como
objetivo enquadrar fenômenos não lineares que se definem eminentemente por suas
qualidades dinâmicas e instáveis, mas desvelar características e afinidades que, imersas em
um ciclo recursivo, podem modificar-se e potencializar os sistemas de origem.
35
“O sistema háptico vai além do tato e é um dos mais complexos meios de comunicação entre o mundo interno
e externo do homem. O sistema háptico está relacionado com a percepção de textura, movimento e forças através
da coordenação de esforços dos coordenadores dos receptores do tato, visão, audição e propriocepção” (Sentido
Háptico e a Pesquisa e Desenvolvimento de Soluções, conversando-com-a-lilian.blogspot.com/.../sentido-
haptico-, acesso 22/04/2011).
46
O que procuro é, por meio de relações possíveis entre estes sistemas de práticas e
pensamentos, aperfeiçoar metodologias que possam enriquecer e potencializar os processos
criativos do ator, através da Preparação Corporal.
47
Um Preparador Corporal deve ser capaz de despertar o apetite dos atores pelo
movimento, para que possam saborear suas ações. “Degustar” o movimento, nesse caso,
implica ter disponibilidade para conhecer e aprender com aquilo que se faz. Sentir o gosto do
movimento (sapore) e conhecê-lo (sapere), para um ator, são sinônimos.
Processos de criação, assim como seus resultados, não devem ser considerados,
rigidamente, como tarefas lineares. Para o ator, qualquer resultado será sempre um território
aberto a experimentações e perturbações. O importante, como sinaliza Jacques Lassalle 1, é
que o ator possa, cada vez que retoma seu trabalho, reencontrar com clareza as circunstâncias
que o constituem. “Refazer, nesse caso, é menos reproduzir a própria coisa do que as
condições de aparecimento da coisa. (...) não refazemos, colocamo-nos na situação do
refazer” (LASSALLE e RIVIÈRE, 2010: 65).
O diretor francês Eric Lacascade, que já encenou muitos textos de Tchécov, afirma
que quando preparava a montagem de As três irmãs, estabeleceu como objetivo criar um
espetáculo que tematizasse o ato de criação. Investigou, nesse projeto, como discriminar as
diferenças fundamentais entre ensaio e apresentação. Lacascade afirma:
Os ensaios exigem dos atores uma humildade que os mantém durante muito tempo diante deles
mesmos, de suas próprias forças, de suas incompletudes; diante de intensidades e dos limites
daquilo que é vivo. Nos ensaios avançamos no escuro. Eles são a clausura permanente, a
confusão entre o palco e a vida. Os ensaios são também o caminho para a loucura.
(LACASCADE in LUCET, 2003: 89, tradução livre do autor).2
1
Dramaturgo, ator e diretor francês, nascido na cidade de Clemont-Ferrand (1936). Professor da Universidade
Sorbonne Paris 3 (1969-1981), e no Conservatório Superior Nacional de Arte Dramática de Paris (1981-1983).
De 1983 a 1990, dirige o Teatro Nacional de Strasbourg, e de 1990 a 1993 é o administrador geral da Comédie-
Française. Em 2002, Lassalle voltou a atuar como diretor.
2
Les répétition exigent des acteurs une humilité qui les maintient longtemps face à eux-mêmes, à leurs forces, à
leurs incompletudes; face aux intensités et aux limites du vivant. Les répétition c’est le noir, l’enfermement
permanent, la confusion entre le plateau et la vie. Les repetition, c’est aussi la voie de la folie.
49
considerar a instabilidade característica do período de ensaios, uma vez que atores constituem
a matéria prima de seu trabalho.
Lacascade deixa claro que, ao construir seus espetáculos, o trabalho corporal dos
atores acontece de modo imbricado ao desenvolvimento da encenação, um processo que
mistura aquecimento, treinamento e composição. Esse é um procedimento que considero
análogo à Preparação Corporal que preconizo, pois legitima o trabalho corporal de um elenco,
como atividade integrada ao processo criativo, ao mesmo tempo em que dotada de autonomia.
Um procedimento capaz de integrar o grupo de trabalho, contribuindo também para que cada
participante encontre caminhos singulares, pois enquanto experimenta a criação de um papel,
o ator elabora estratégias, compreendendo as solicitações da encenação. É esse processo que o
Preparador Corporal proporciona, aproveitando o que já está manifesto no ator.
Mesmo que o público esteja ausente, mesmo se estamos improvisando num ateliê ou oficina, a
partir do momento que entramos em cena, não há mais tempo de se preparar ou de esperar
alguns segundos antes de começar a atuar. É preciso reencontrar o estado de urgência
conhecido pelo ator quando está representando. (MNOUCHKINE in MÜLLER, tradução
livre do autor, o grifo é meu).4
3
L’autre volet du training, l’entraînement de l’acteur, s’opère au cours des répétition. Cést aussi un
entraînement physique qui possède plusieurs des qualités qu’on trouvera dans le spectacle. D’abord la
concentration et l’attention de tous, et de tous avec chacun, chacun développant sa propre ligne, en regard et en
connexion avec les autres. Ensuite, des structures individuelles d’exercice qui se developpent jour après jour, et
deviennent plus prècises, plus performantes; chaque acteur développant ainsi sa danse propre, decouvrant et
dépassant ses propres limites.
4
Même si le public est absent, même si l’on est en train d’improviser dans l’intimité d’un atelier ou d’un stage, à
partir du moment ou l’on a franchi les limites du plateau, il n’est temps de se préparer ou de prendre quelques
secondes avant de commencer à jouer. Il faut retrouver l’état d’urgence que connaît l’acteur lorsqu’il est en
représentation.
50
Durante os anos que venho trabalhando como Preparador Corporal e como ator,
constato que a montagem de um espetáculo possui demandas próprias, que precisam ser
entendidas pelos atores em suas particularidades. Mesmo quando tenho a oportunidade de
refazer um trabalho, preciso compreender sua singularidade mais uma vez, a partir do
momento em que me envolvo em uma remontagem. O projeto estético de um espetáculo é
uma prova para toda equipe de criação e um desafio para o elenco.
A partir de uma expansão perceptiva, o ator estabelece relações mais ricas com seu
aparato psicofísico e com seu imaginário. O pensamento complexo legitima a importância de
nosso imaginário como força indispensável ao desenvolvimento de nossas faculdades
humanas. O teatro, como arte, deve buscar apresentar o homem em todas as suas dimensões,
sem desconsiderar a imaginação, uma das motivações primordiais para a ação. “Fazer teatro é
construir uma vida. Observar tudo vivenciando o material humano que produzimos no contato
51
com os outros; eu invento uma biografia para mim escrevendo minha história em meio à tribo
do teatro”. (LACASCADE in PUCET, 2003: 24, tradução livre do autor).5
A ‘aula de movimento’ ministrada pelo coreógrafo ainda não se distinguia muito de uma aula
de dança moderna, com base na técnica do ballet clássico. Mas o diferencial para o corpo do
ator estava no enfoque sobre a ‘significação do gesto’. O movimento era trabalhado por meio
de exercícios para a flexibilidade, partindo dos apoios do corpo no chão, que alcançavam a
verticalidade pela variação dos ‘planos’ baixo, médio e alto”. (D’ÂNGELO apud TAVARES,
2010: 63).
5
Faire du théâtre, c’est se construire une vie. Observer tout en vivant le matériau humain que nous produison
au contact des autres, je m’invente une biographie en écrivant mon histoire au sein de la tribu du théâtre.
6
Eric Lacascade a fondé avec Guy Alloucherie le Ballatum Théâtre. Les productions de cette compagnie ont
frappé par la densité de l’investissemente physique des acteurs.
52
Klauss Vianna, depois da histórica montagem da Ópera dos três vinténs (Anexo B)
afirma: “A partir daí, eu comecei a sentir que o ator tinha que ter uma linguagem corporal
diferente para se exprimir em termo de dança e que ele não poderia dançar como um
bailarino, era outro material” (VIANNA in MANSINHO apud TAVARES, 2010: 77).
(...) As questões que a dança nos coloca enquanto espectadores, aquelas que nos perturbam e
que fazem a força dessa arte, são aquelas da inteligência do corpo, de sua independência, da
existência de um ‘pensamento do movimento’, que o Pensamento não domina, e que são
inseparáveis de nossas próprias pulsões sexuais frente aos corpos. Querer ‘esclarecer’ esse
mistério com a ajuda de uma grade (ou quadro) dramatúrgica, querer mascarar a evidência
física sob uma tinta intelectual, é de uma certa maneira, fazer um ato de censura. (PICKLES,
s/d: 8).
Interagindo de forma dinâmica com toda a equipe de trabalho, a Preparação Corporal pode
estabelecer ricas estratégias de intervenção, fazendo com que os atores percebam suas
operações e possam vivenciar o trabalho que estão construindo. Alguns exemplos de formas
de intervenção do Preparador Corporal serão apresentados no capítulo três desta pesquisa.
Alguns Preparadores começam seus trabalhos antes do período de ensaios, por meio
de encontros prévios com a direção. Através de diálogos com o diretor, podem perceber a
concepção geral que está sendo vislumbrada para o espetáculo. Ainda que no início de uma
produção o diretor não saiba exatamente os contornos estéticos de seu projeto, algumas pistas
podem ser apreendidas. Contudo, essas informações não devem ser consideradas verdades
absolutas e imutáveis, pois neste período inicial a intuição criativa da equipe ainda não foi
testada na prática. Mesmo que não seja possível apreender uma visão completa do projeto
estético, nos primeiros encontros com a direção o Preparador Corporal perceberá possíveis
espaços que poderão ser ocupados, e elaborar apontamentos para o futuro trabalho. É durante
o período de ensaios que o Preparador Corporal coloca em prática suas metas,
disponibilizando seu acervo técnico, sem medo de viver o momento presente, seguindo à
deriva com sua equipe. Qualquer concepção de encenação só será legítima se for capaz de
mostrar sua eficácia na cena.
2.2.1 Atividade-ponte
O Preparador Corporal articula múltiplos saberes e sua atividade pode ser qualificada
como complexa. A bailarina e diretora Lala Deheinzelin, no vídeo Movimento Expressivo:
Klauss Vianna, afirma que Vianna possuía uma personalidade “ponte”, por ter a habilidade de
54
fazer interagir inúmeros campos de conhecimento. Como profissional das artes cênicas,
segundo Deheinzelin, Klauss Vianna foi capaz de aproximar a dança e o teatro.
Ser ponte é uma qualidade importante para o Preparador Corporal, que deve mostrar-
se capaz de integrar variadas práticas e discursos. As pontes que constrói muitas vezes
assumem caráter de tradução, facilitando as trocas entre os membros da equipe. É bastante
comum que um diretor idealize o resultado final de uma cena, mas encontre dificuldade para
traduzir seus objetivos através de indicações capazes de estimular o imaginário de seus atores.
7
Anotações do autor, feitas durante o curso de Pós-graduação Lato Sensu em Estudos Avançados em Dança
Contemporânea (UFBA/FAV). Rio de Janeiro, 2006.
8
Edgar Morin estabelece uma importante diferença entre racionalização e racionalidade. Racionalização é um
procedimento mental que tenta compreender e apreender o Universo de maneira totalizante. Uma lógica que nos
remete diretamente à visão mecanicista proposta pela Modernidade. Isto é, o mundo é uma máquina e podemos
entender o funcionamento de sua totalidade por meio de suas engrenagens. O acaso fica excluído da
racionalização, que explica a realidade a partir dos fenômenos que se encaixam na regularidade de suas leis. Em
oposição à racionalização, temos a racionalidade, que sugere outros modos de relação entre homem e mundo,
orientados por outros procedimentos mentais. A racionalidade é jogo, diálogo entre a mente humana e a
realidade, através de um fluxo constante de interações. Quando percebemos a realidade desta maneira dinâmica e
fluida, reconhecemos que o funcionamento da mesma extrapola os determinismos propostos pela ciência
tradicional. A visão mecanicista de mundo torna-se insuficiente para compreendermos a realidade e seus acasos.
56
Quando o Preparador atua em um elenco, onde a maior parte dos atores nunca esteve
em um mesmo projeto, o trabalho pode contribuir para instaurar um clima de confiança e
acolhimento. A Preparação Corporal pode despertar o entusiasmo, fazendo emergir o espírito
lúdico do grupo, minimizando resistências relacionais.
1) Colocar o elenco em uma roda e dar uma bolinha de tênis para um dos membros do
grupo. Pedir que esta pessoa comece lançando o objeto para outra, que repetirá a mesma ação.
Explicar que a bolinha deve passar por cada componente do grupo uma única vez, e terminar
voltando às mãos de quem iniciou os lançamentos. Ao final, construir uma sequência
ordenada (circuito). Pedir que eles repitam o circuito realizado, fazendo a bolinha passar por
todos mais uma vez. A partir do momento que a ordem dos lançamentos está fixada, propor
mudanças na forma do jogo. O grupo poderá continuar passando a bolinha mantendo-se no
círculo, ou se deslocando pelo espaço. A cada sinal (uma palma, um sinal percussivo), o
9
Aquilo que nomeio jogos de integração são atividades desenvolvidas por mim, como professor de Corpo e
Preparador Corporal, fazendo interagir a Conscientização do Movimento com outros trabalhos importantes em
minha formação, como o Sistema Laban e a Mímica Corporal Dramática.
10
Bailarina, professora de dança e Preparadora Corporal, nascida em Belo Horizonte. Entre os últimos trabalhos
realizados como Preparadora encontram-se: Glass, direção e dramaturgia de Haroldo Rego (2007), e Máquina de
abraçar, de José Sanchis Sinisterra, direção de Malu Galli (2009). (Entrevista Anexo D).
57
2) Pedir ao elenco que ande pelo espaço, pare e volte a caminhar simultaneamente. O
grupo deve realizar esta atividade sem nenhuma sinalização, apenas orientado por uma escuta
coletiva.
3) Dividir o grupo em dois. Enquanto uma metade caminha, a outra deve estar parada.
Quando a metade do grupo que está em deslocamento para, a outra caminha. Este exercício
pode ficar mais complexo se incluirmos variações rítmicas. O grupo em movimento se
desloca sempre com todas as pessoas num mesmo andamento. Se há aceleração ou
desaceleração, estas mudanças devem ser acompanhadas por todos os componentes do grupo.
4) Jogo das oposições: Este jogo consiste em colocar duas pessoas juntas e sugerir um
tema. Em seguida, elas devem iniciar uma discussão, com uma das pessoas falando bem a
respeito do tema sugerido e a outra falando mal. Sempre que se dá uma indicação (palma ou
sinal percussivo) elas devem mudar de ponto de vista sobre aquilo que discutem. Durante este
exercício, mudanças de tônus são experimentadas, pois a atitude física dos jogadores muda
conforme alteram seus pontos de vista. A mudança de ponto de vista sobre algo obriga
imediatamente a uma reorganização global do corpo. Por meio deste jogo, percebe-se que a
capacidade de mudança de tônus experimentada pelos jogadores está diretamente ligada às
58
suas capacidades de disponibilizar o imaginário para o jogo. Isto revela a íntima relação entre
equilíbrio tônico, ampliação da sensibilidade, disponibilidade para o movimento e ampliação
da capacidade de imaginação.
5) Jogo da causalidade: Este trabalho pode ser feito em duplas, trios ou grupos
maiores. Inicio pedindo que os atores formem duplas. A proposta do jogo é que, através do
movimento, os participantes estabeleçam modos de comunicação sem o uso de palavras. Se
um dos jogadores modifica seu corpo de alguma forma, seu parceiro deve se adaptar a esta
modificação com outro movimento. Esse trabalho aceita inúmeras variações, podendo ser
realizado em diversas fases da Preparação Corporal, aproximando-se cada vez mais do
contexto da peça. Inicialmente a causalidade pode ser jogada livremente, ou seja, ainda fora
do contexto do espetáculo. Com o avançar dos ensaios, esse jogo pode ser feito utilizando
situações que estão sendo abordadas na peça. Os atores, vivendo o momento presente, devem
reagir de modo coerente aos movimentos que estão sendo percebidos.
Desmond Morris (1928), zoólogo e etólogo inglês, a partir de pesquisas com animais,
também contribuiu para o entendimento do comportamento humano. Morris define gesto
como:
Uma ação que emite um sinal visual a um assistente. Para se tornar gesto, um ato tem que ser
visto por outra pessoa e tem que comunicar alguma informação. Pode fazer isso porque o
gesticulador deliberadamente se dispõe a enviar um sinal – como quando acena a mão -, ou
pode fazê-lo apenas incidentalmente – como quando espirra. (...) O que importa na
gesticulação não é que sinais pensamos estar emitindo, mas que sinais estão sendo recebidos.
(MORRIS, 1977: 24).
60
Os estudos em Cinésica revelam que mensagens emitidas pelo corpo estão sempre
inseridas num contexto. A relação desses estudos com o teatro é direta, pois dificilmente a
gestualidade de um ator se fará coerente, se não articulada ao contexto dos espetáculos que
integra. Mas como o corpo harmoniza suas partes em função de necessidades funcionais e
qualidades expressivas particulares? Como nos aproximarmos dessas leis de organização?
O corpo tem uma sintaxe, leis próprias de organização. Gestos humanos são
afirmações de singularidade, manifestações multidimensionais, e, da mesma forma que
palavras, só esclarecem seus significados quando dentro de um contexto. Um gesto ou uma
postura podem ter múltiplos significados, por esse motivo o contexto no qual estão inseridos é
fundamental a fim de que possam ser lidos.
(...) Porque se os gestos são como os radicais linguísticos- ‘ceto’, por exemplo, não significa
nada se não lhe juntarmos o prefixo ‘ex’ para fazer ‘exceto’-, o movimento do corpo também
se parece com a linguagem em algumas coisas e pode, talvez, ser analisado através de um
sistema semelhante àquele que os linguistas usam para analisar o discurso. (DAVIS, 1979: 39).
Ação verbal e ação física são sistemas diferentes, autônomos, mas vários aspectos
análogos podem ser percebidos entre eles. Da mesma forma que desenvolvemos análise
sintática para conhecermos as relações formais entre as palavras, seria possível também
pensarmos numa análise análoga para melhor compreender a motricidade humana.
Uma comparação desse tipo, entre linguagem escrita e linguagem gestual, pode expor
aspectos funcionais e expressivos do movimento. Do mesmo modo que uma oração possui
termos principais e subordinados, e sentenças são ligadas por coordenação ou subordinação, a
gestualidade humana também possui organização e fraseado próprios. Os
impulsos/motivações que originam e produzem movimentos estabelecem percursos que,
61
assim como na linguagem escrita, constituem núcleos, em torno dos quais outros movimentos
se organizam.
Ariane Mnouchkine, que há anos exerce a direção teatral, ainda encontra resistência
para acessar o corpo de alguns de seus atores. Ela nos oferece um exemplo de como gestos e
posturas podem ser trabalhados de forma coordenada à montagem de uma cena. No filme Au
soleil même la nuit (França-1996), de Éric Darmon e Catherine Vipoux, acompanhamos o
processo de montagem do espetáculo Tartufo, de Molière. (Anexo C, cena: 2). Em uma das
cenas do documentário, vemos Mnouchkine dirigindo um ator, que encontra dificuldade para
realizar uma cena de sedução. O ator faz o papel de Tartufo, um impostor hipócrita que entra
na casa de um burguês (Orgonte), tenta conquistar todos os bens deste, e até mesmo seduzir
sua esposa. A cena apresentada no documentário, que mostra Tartufo declarando seu “amor” a
Elmira, esposa de Orgonte, é uma cena de forte apelo sexual. Mnouchkine várias vezes pede
ao ator que preste atenção aos sinais corporais que emite, pois ele não consegue ser preciso
em suas intenções. Observa que ele diz uma coisa com as palavras, mas que seu corpo não
acompanha a ação vocal. A diretora investe muito tempo para que o ator coordene ação física
e ação vocal. A estratégia utilizada por Mnouchkine é pedir que uma atriz da companhia11, no
papel de Tartufo, faça a cena junto com o ator em dificuldade. A diretora seguidamente
lembra que estão trabalhando uma cena de sedução e que o desejo deve estar evidente. Ela
sugere que o ator abandone a verticalidade do tronco, pois isto não o está ajudando a emitir o
bom sinal corporal, ou seja: sedução. Mnouchkine entra seguidamente em cena, interrompe o
ator muitas vezes e faz observações sobre o uso da voz, que ela considera não estar
coordenada com o corpo. “É preciso que você decida como enviar as palavras para ela. Como
11
A atriz em questão é a brasileira Juliana Carneiro da Cunha, que desde 1990 faz parte da Companhia Théâtre
du Soleil, dirigida por Ariane Mnouchkine.
62
12
você a seduz com as palavras” (tradução livre do autor), sugere a diretora. É possível
constatar que em muitos momentos o ator perde o objetivo de seduzir sua colega em cena,
pois não consegue sustentar gestos e posturas adequados na composição de seu Tartufo.
Movimentos parasitas, aqueles que não estão a serviço da informação a ser comunicada,
deixam o trabalho impreciso e pouco potente. Estes movimentos não contribuem para a
expressão do ator, pois não acrescentam nenhuma informação relevante aos conteúdos
tratados na cena. Seguidamente transformam-se em “ruídos” e revelam mecanismos de defesa
que tão frequentemente se manifestam entre atores, principalmente durante o período de
ensaios, quando, como já disse, estão extremamente vulneráveis. Em vários momentos, o
jovem ator parece estar mais preocupado em criar suas próprias imagens, internas, sem
perceber a totalidade da cena, interagindo de forma mais substancial com sua parceira. Aqui
percebemos no corpo do ator resistências para equilibrar as relações entre eixo vertical e
horizontal. Mnouchkine explica ao ator: “Você sente que seu problema está no corpo? Às
vezes você não emite bons sinais com o corpo. O seu corpo envia sinais que fazem você atuar
de outra forma” 13 (tradução livre do autor). A observação da diretora é importante por deixar
claro que um ator deve trabalhar para suprimir todas as resistências que impedem que seus
impulsos criativos se transformem em ações.
Vários caminhos poderiam ser propostos por uma Preparação Corporal de qualidade
para resolver a dificuldade enfrentada pela diretora francesa. A fim de corroborar com a ideia
de estratégia, procedimento dinâmico e variável, farei o relato de três Preparadoras, que
revelam modos possíveis de intervenção para solucionar o problema enfrentado por
Mnouchkine.
Se eu fosse Preparadora Corporal da montagem, eu falaria no ouvido da Ariane para ela falar
sobre respiração e flexibilização, principalmente do tronco daquele ator. Trabalharia a
respiração no sentido de fazer a coluna vertebral respirar. Torcer para entrar nas diagonais.
Falaria um pouco sobre as diagonais do cubo, que dão essa tensão frente-atrás, em cima em
baixo, simultaneamente. Isto dá um poder e uma dubiedade na ação. Como ela quer uma
12
“tu doit decider comment tu l’envoies ces mots. Comment tu l’appâtes avec ces mots là”.
13
Tu sens que c’est du corps qu’est ton problem? Parfois tu donnes pas de bons signes du corps. Ton corps
t’envoie des signes qui te font jouer autrement.
14
Prof. Adjunta do Programa de Educação e Criação em Dança DAC/EEFD/UFRJ, nascida no Rio de Janeiro.
Bailarina co-fundadora da Cia Atores Bailarinos (RJ), desde 1979 trabalha com o Sistema Laban de Análise do
Movimento. Entre os últimos trabalhos como Preparadora encontram-se: Orfeu, direção de Regina Miranda
(2005), e A menina e o balanço, direção de Daniela Magalhães (2011). (Entrevista Anexo D).
63
sedução, é o desejo e a sedução o tempo inteiro, se você for de frente, um engajamento direto,
não vai seduzir. (Depoimento ao autor).
Maia propõe, através de improvisos, a construção de uma relação afetiva real, que
brota do trabalho e poderá constituir-se como base e motivação para o ator. A partir do
momento que o ator, durante os improvisos, experimentou bons contatos com a atriz, ele
sentirá mais a rejeição e terá mais vontade de conquistá-la posteriormente.
15
“Escala e/ou escalas são séries graduadas de movimento organizadas em formas lógicas básicas” (RENGEL,
2003: 52).
16
Bailarina, coreógrafa e Preparadora Corporal, nascida no Rio de Janeiro. Entre os últimos trabalhos como
Preparadora encontram-se: Ensina-me a viver (2007) e O homem objeto (2004), ambos com direção de João
Falcão. (Entrevista Anexo D).
64
Nós criamos acontecimentos familiares, como a doença da dona da casa, e todos deviam se
comportar de acordo com a situação. Nos reuníamos para o jantar, nos separávamos depois da
refeição afim de voltarmos para nossos quartos ou dar um passeio, mas sempre tendo em vista
que um ente querido estava acamado, gravemente doente. (STANISLAVSKI in AUTANT-
MATHIEU, 2007: 106, tradução livre do autor).17
Trabalho a partir da criação do outro. Gosto de trabalhar com a dificuldade, mas não para
massacrar, mas para fazer o outro se perguntar. Não dizer como fazer. Faz assim... assim. Não
racionalizar, mas perguntar pelo corpo. Quebrar o padrão não é deixar a pessoa perdida, não é
jogar fora o que ela sabe. É levar o que ela sabe para outro lugar. Porque este lugar onde ela
sabe, e se acomoda, o que se pode fazer, além disso? Às vezes é muito simples. Comigo muitas
vezes pedem que eu faça direção de movimento que não é trabalho de corpo, mas é, porque
você movimenta o corpo, é tudo, corpo espaço, é tudo! É outro lugar, trabalho com o ator e
com o espaço. (Depoimento ao autor).
Stutz considerou a relação com o vídeo distanciada, dizendo que na verdade precisaria
estar efetivamente com o ator para decidir os modos de intervir sobre seus padrões. A
Preparadora expôs sua estratégia de trabalho, quando teve que interferir sobre os padrões de
17
Nous créâmes des événements familiaux, comme la maladie de la maîtresse de la maison, et tous devaient se
comporter en conséquence. Nous nous rassemblions pour déjeuner, nous nous séparions aprés le repas pour
regagner nos chambres ou aller nous promener, mais toujour en tenant compte du fait qu’un être cher était alité,
gravement malade.
65
um casal de atores afim de que, num espetáculo, a relação entre as personagens ficasse clara.
No espetáculo, a relação de status entre as personagens indicava que o homem controlava a
relação do casal. Entretanto, na vida, quem tentava se manter no controle era a atriz. Stutz
procurou ajustar os padrões do casal de atores às demandas do espetáculo, partindo de um
trabalho físico. Pediu que o ator segurasse a atriz contra uma parede e não a deixasse escapar.
Através deste exercício, a Preparadora pôde fazer com que o casal de atores dimensionasse
suas forças. O ator ganhou mais segurança, aumentando sua força na cena, e a atriz entendeu
que era necessário se fazer menos forte, para que a relação do casal ficcional ficasse clara. A
Preparadora não usou o recurso da fala para fazer com que os atores percebessem os
problemas que estavam enfrentando. Valendo-se unicamente de improvisos corporais, foi
capaz de interferir sobre as formas de comportamento, modificando-as em favor do trabalho.
2.2.4 Autoria
18
É o caso da ação de Klauss Vianna em Mão na Luva (p. 71).
66
Para compreender o problema dos efeitos de toda ação, inclusive a moral, precisamos nos
referir à ecologia da ação. A ecologia da ação indica-nos que toda ação escapa, cada vez mais,
à vontade do seu autor na medida em que entra no jogo das inter-retro-ações do meio onde
intervém. Assim a ação corre o risco não somente de fracassar, mas também de sofrer desvio
ou distorção de sentido. (...) os efeitos da ação dependem não apenas das intenções do ator,
mas também das condições próprias ao meio onde se acontece. (MORIN, 2005: 41/42).
Pensar o corpo do ator como palimpsesto19, que sobrepõe diversas camadas de escrita,
é um estímulo potente para considerarmos a ideia de autoria na Preparação Corporal. Desta
maneira, é possível aceitar que o traço do Preparador estará presente no espetáculo, mas como
uma das múltiplas camadas capazes de constituir o corpo do ator.
Angel Vianna afirma que, ao trabalhar com Yara Amaral, no espetáculo Imaculada
(Anexo B), conseguia ver com clareza, processadas no corpo da atriz, as informações que lhe
oferecia ao longo dos ensaios. A Preparadora explica que ao mesmo tempo em que percebia
sua indicação, via também a pessoalidade de Amaral apropriando-se da informação sugerida.
19
Quando proponho pensarmos o corpo do ator como um palimpsesto, não desconsidero a possibilidade da
intervenção do Preparador ser um traço de eliminação.
67
Na equipe técnica, o grande destaque vai para a direção de movimento a cargo de Nara
Keiserman. A ela coube grande parcela do êxito de muitas marcações, algumas nada fáceis de
serem executadas – o elenco exibe um trabalho corporal esmerado e muita precisão no tocante
a gestos e posturas, sempre em consonância com a personalidade das personagens e os
conflitos em que estão envolvidos. (FISCHER, 2002: 2).
No mesmo espetáculo, a direção, bastante elogiada pela crítica, não obteve nem
mesmo uma indicação para o prêmio citado. Keiserman reconhece que seu trabalho tem sido
apontado como atividade destacada, mesmo quando trabalha de forma entrosada com a
direção.
(Figura 16) Auto do novilho furtado. Mouhamed Harfouch, Thales Coutinho, Geraldo Demezio, Assayo
Horissawa e Fabiano Xavier. (foto: Guga Melgar).
Como já foi dito, a Preparação Corporal pode ser desenvolvida de muitas maneiras,
assumindo variados perfis. Cada trabalho solicita o Preparador de modo diferente. Os três
exemplos anteriores (citados no item 2.2.3), através de intervenções hipotéticas,
demonstraram que a Preparação Corporal varia radicalmente, em função da sensibilidade,
formação e experiência do profissional que a exerce. Grupos humanos também variam
consideravelmente, exigindo do Preparador Corporal grande capacidade de articulação e
adaptação.
68
O amor pelo conhecimento nos ensina que não existe uma única forma de aprender,
assim como não existe uma única forma de ensinar20. Ensinar e aprender são processos
20
“Me preocupo muito pouco com o que significa realmente a palavra educação. Acho que são poucas as
pessoas que gostam de ajudar os outros, ensinando o que sabem, para os outros irem além – isso é educação. É
essa possibilidade de transmitir o que eu tenho pesquisado por longo tempo que me empurra para a sala de aula,
onde eu vou ver as pessoas fazerem outras coisas, levar isso adiante. Educação é trocar com os alunos. Na minha
opinião, o educador não ensina, apenas orienta. Se ele permitir que a pessoa que ele orienta se solte
(principalmente a criança), ele vai muito além. Ninguém ensina nada a ninguém. Todo mundo já sabe. As coisas
estão guardadas no corpo do outro, de modo que a gente só tem que reeducar o que ele perdeu – o movimento
natural. A tal educação atrapalhou a nossa educação. A gente vai aprendendo a refazer o que foi desaprendido
em nós com a educação. A palavra “educar” me dá medo, porque me lembro da educação antiga. A educação
antiga era realmente de medo, principalmente em relação ao corpo. Para desfazer esses nós, essas trancas, essas
travas que a gente trouxe de uma longa história... leva um certo tempo. Ao mesmo tempo, é tão simples, por isso
é que é complicado. Porque a gente não aceita muito o óbvio. A gente devia se preocupar mais com o óbvio. Só
não faz, porque acha que os outros vão dizer que a gente não é inteligente. Mas inteligente é saber lidar com o
óbvio” (Depoimento de Angel Vianna sobre educação em geral e em dança. Acervo pessoal: s/d).
69
complexos, não lineares, que incluem acasos e descontinuidades. A natureza nos mostra que
os sistemas vivos evoluem porque são capazes de experimentar momentos de crise, que
produzem mudanças. No teatro, uma arte coletiva, onde as crises são inevitáveis, pode-se
perceber a mesma dinâmica, que altera padrões de comportamento, individuais e coletivos.
infinidade de ações que não vislumbravam para suas personagens. Constatam que realmente
aprenderam algo, quando se sentem modificados corporalmente.
Uma ação pode ser realizada de muitas formas, mas isso só é percebido pelo ator
quando ele amplia a consciência de seus meios.
Quanto mais maneiras possuímos de fazer o que sabemos, maior a liberdade de escolha. E
quanto maior a liberdade de escolha, maior será a nossa capacidade humana. Senão seríamos
iguais a um computador que pode fazer coisas brilhantes, mas de uma única maneira.
(FELDENKRAIS, 1988: 31).
O Preparador Corporal pode ajudar o ator a explorar momentos de crise, pois é capaz
de ler sinais inscritos em seu corpo, e propor maneiras de coordená-los à estética do
espetáculo. A habilidade do Preparador de discriminar problemas pode mostrar-se
extremamente pedagógica e produtiva.
A elaboração de uma estratégia comporta a vigilância permanente do ator durante uma ação,
considera os imprevistos, realiza a modificação da estratégia durante a ação e, eventualmente, a
anulação da ação em caso de um desvio nocivo. A estratégia permanece uma navegação errante
num mar incerto e exige, evidentemente, um pensamento pertinente. Ela comporta um
complexo de desconfiança e de confiança que necessita desconfiar não apenas da confiança,
mas também da desconfiança. A estratégia é uma arte. (MORIN, 2007: 56/57).
Klauss Vianna (...) dividiu o seu trabalho em duas etapas: o ‘aquecimento’, orientado para a
preparação corporal do ator, que podia se estender até por quatro horas seguidas, e o
‘aprimoramento das marcações’, uma função reconhecida hoje como ‘direção de movimento’,
mas que ele já anunciara ao assinar a ‘direção de movimentação corporal’ no programa de Mão
na Luva. (...) Um trabalho que se integrou de tal maneira à direção, que contaminou a
encenação com a dança, transformando a peça numa espécie de pas de deux. (TAVARES,
2010: 219).
Eu trabalhei com o Nanini em Mão na Luva. E o Nanini tem um gestual muito típico dele,
muito característico, e o subtexto é: ‘não chega para perto de mim que não tem’. Então ele
criava formas para esse personagem. Formas já conhecidas. Que volta e meia repetia. Então eu
amarrei as mãos dele nesse trabalho. Então ele ficou completamente pirado, porque não tinha
mais forma para trabalhar. Ele tinha a intensidade do movimento. Então o corpo dele teve que
descobrir novas formas de comunicação que não fossem aquelas, que ele já tinha trabalhado e
repetido diversas vezes. (Depoimento de Klauss Vianna no documentário Movimento
Expressivo Klauss Vianna).
contextualizado com o devido cuidado. Amarrar as mãos de um ator só por amarrar pode não
significar grande coisa. Mas no caso de Nanini, em Mão na Luva, se avaliamos as
ressonâncias desse procedimento, constatamos que a auto-organização do ator foi alterada.
Marco Nanini, talvez pelas suas origens, parecia ator mais indicado para papéis, se não
característicos, ao menos com algum traço marcante. Se tinha algum fundamento essa
observação, ela caiu por terra em Mão na Luva. (...) Dono do palco no estilo dos velhos
monstros sagrados, ele impõe a justa medida, o gesto seguro, a inflexão corretíssima. É um
prazer assistir ao duelo de Nanini e Juliana. (MAGALDI, 1984: 71).
e muscular dos atores. O casal estava em perfeito equilíbrio com o espaço, e este era ocupado
como desdobramento da interioridade de ambos. O trabalho corporal estava nitidamente
baseado na sensibilidade. Mesmo quando os atores não estabeleciam contato físico direto era
como se estivessem num jogo de contrapesos constante, evidenciando grande sensibilidade
táctil, na relação com o espaço e o parceiro de cena.
Alguns limites entre antropologia e psicologia são tênues, contudo o antropólogo não
tem interesse em modificar o outro, mas observá-lo, compreendendo seu comportamento, em
um contexto específico. Um Preparador Corporal, não é um psicólogo, por esse motivo deve
tomar cuidado com os tipos de intervenção e leituras que faz de certas situações. Isto não
significa absolutamente desconsiderar as subjetividades, mas entendê-las no contexto
relacional no qual estão inseridas.
uma verdade em qualquer grupo social, nessa atividade, o grupo faz o indivíduo, da mesma
forma que é configurado por suas individualidades. É o princípio da recursividade de Morin,
que se apresenta de modo notório, fazendo com que a Preparação Corporal seja resultado de
múltiplas inter-retro-ações.
21
Ator e diretor de teatro. Iniciou-se na direção teatral ao lado de Antonio Abujamra, co-dirigindo espetáculos
para a “Companhia Os Fodidos Privilegiados”, em 1997. Seus últimos trabalhos como diretor são: Gota d’água
(2007) de Paulo Pontes e Chico Buarque, Era no tempo do rei (2010) de Heloísa Seixas e Júlia Romeu e Maria
do Caritó (2011) de Newton Moreno.
75
e espaço. Sem um bom uso do olhar, o aluno A deixava sua relação com o espaço pouco
precisa, e isto favorecia o aparecimento de gestos e deslocamentos desnecessários.
Em 1968, Angel já dava uma aula de balé diferente das referências tradicionais, com chão e
barra já diferentes, incluindo alongamentos e referências anatômicas. (...) A aula já era
carregada de uma necessidade de falar desse corpo que tinha uma representação
completamente diferente de um corpo tolhido, fechado, só vertical, como a gente foi muito
condicionado. Não só mais uma linha vertical. Mas a ideia de criar outros centros, outras
articulações, outras ideias de apoio. As terapias corporais na década de 70 também foram um
boom, que mudaram conceitos nas formas de trabalhar com o corpo. (...) Angel no seu processo
de composição coreográfica selecionava materiais propostos pelos bailarinos, mas não deixava
a coisa engessada. (...) Aproveitava o que o grupo tinha para dar. (...) Queria fazer junto. (...) E
22
Professora Doutora, ex-vice diretora da FAV, onde atualmente leciona História da dança.
76
também se mostrava disponível para intervir nas coreografias mesmo depois de prontas.
(depoimento em DVD, produzido por alunos da FAV).
Nas palavras de Bernardes é possível, mais uma vez, constatar a relação entre dança e
Preparação Corporal. Podemos discriminar procedimentos metodológicos do trabalho de
Angel Vianna que, transformando os fundamentos da técnica clássica e inserindo referências
anatômicas em suas aulas, criou um caminho particular para trabalhar com atores. A
Conscientização do Movimento agrega em suas práticas informações de grande precisão
anatômica (nome de ossos, vetores de força, eixos articulares), ao mesmo tempo em que
trabalha com estímulos lúdicos que mobilizam a sensibilidade e a imaginação do ator.
Angel Vianna não elege um marco significativo que indique o amadurecimento de seu
trabalho como Preparadora Corporal. Ela aponta alguns espetáculos e diretores que teriam, ao
longo de anos, contribuído para que pudesse constituir um trabalho pessoal nesta área. Sua
passagem pelo Teatro Ipanema e pelo Teatro dos Quatro, ambos no Rio de Janeiro, contribuiu
para a criação de trabalhos importantes que aperfeiçoaram suas metodologias voltadas para
atores. A parceria com diretores como Luiz Carlos Ripper, Sérgio Britto e Paulo Mamede, na
opinião de Vianna, renderam trabalhos de grande entrosamento e qualidade.
Dentre os muitos trabalhos desenvolvidos por Angel Vianna, destaquei três exemplos
que refletem momentos importantes no desenvolvimento de seu trabalho com atores, pois ela
própria os considera espetáculos bem sucedidos e marcantes em sua trajetória como
Preparadora Corporal. Os espetáculos escolhidos são: A Rosa tatuada, Imaculada e O
casamento branco.
77
A Rosa tatuada, texto de Tennenssee Williams, com direção de Luiz Carlos Ripper foi
montado no Teatro Glória, na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1985. Angel Vianna
primeiramente havia sido convidada para fazer a Preparação Corporal do elenco, mas, como
uma das atrizes não pôde estar presente desde o início dos ensaios, Ripper decidiu que a
própria Angel Vianna faria o papel. A personagem era uma das vizinhas de Rosa
(protagonista vivida pela atriz Norma Bengell), e tinha apenas uma fala no texto original, que
Ripper e Vianna decidiram suprimir. A preparadora-atriz afirma que nos primeiros ensaios
chegou a trabalhar usando uma máscara de bode, possivelmente por indicação do diretor de
movimento Dácio Lima (1952-2002) 23, especialista neste trabalho, mas que com o avançar do
processo foi deixada de lado.
O gosto pela investigação, que orienta a pedagogia de Angel Vianna, estava em cena
com ela, enquanto atuava como atriz. Ela fez de A Rosa tatuada uma oportunidade para
aprofundar seu entendimento sobre a fisiologia do ator. Nas metodologias de Vianna os
sentidos são tratados como funções integradas. Ao valorizar a audição no trabalho de atuação,
23
Diretor de teatro, nascido no Maranhão. No início da década de oitenta, estudou com Jacques Lecoq e Philippe
Gaulier, na França. Em 1986, volta ao Brasil e forma um grupo, que em 1991 recebe o nome de “Companhia do
Gesto”.
78
2.3.3 Imaculada
Segundo Angel Vianna, que assinou seu trabalho como Direção de Movimento, o
relacionamento com a direção e a única atriz foi muito positivo e produtivo. O caráter
obstinado da atriz solicitava, constantemente, as observações de Vianna, na busca de
aperfeiçoamento para todos os gestos e deslocamentos. A atriz estava só no espaço e as outras
personagens eram figuras imaginárias, com as quais ela deveria contracenar. Os ensaios
corriam bem, até que a atriz teve que enfrentar um problema: relacionar-se com um anão
imaginário (um dos maridos de Imaculada). O direcionamento do olhar de Yara Amaral não
conseguia dimensionar com precisão, no espaço, a presença e os deslocamentos do pequeno
homem. Esta dificuldade foi deixando atriz e direção, assim como a Preparadora Corporal,
79
extremamente insatisfeitos. Então Vianna trouxe para participar dos ensaios um dos alunos de
sua escola, que era anão, Carlos Eduardo Vianna Moraes. Talvez ela tenha percebido o
mesmo que foi indicado pelo crítico Flávio Marinho, na edição do Jornal O Globo, de 7/1/
1986: “Yara Amaral faz parte de uma geração de atores e atrizes que rende mais quando têm a
possibilidade de estabelecer uma troca de energias com outro ator em cena. Ou seja, quando
existe a possibilidade de contracenar” (MARINHO, 1986: 3). Imediatamente, uma diferença
foi percebida e os ensaios ganharam outra dimensão. Com o novo parceiro de cena, uma
figura real, a relação da atriz com o espaço, e seus movimentos, tornou-se mais precisa e
inventiva. A atriz ganhou segurança para improvisar e sentiu-se motivada para criar novas
marcações para a cena-problema. A presença de outro corpo em cena modificou o modo de
Yara Amaral trabalhar a própria percepção e sua atenção no espaço.
Essa cena destacou-se no espetáculo, sendo comentada pelo crítico Marcos Ribas de
Farias, que valorizou especificamente a direção de movimento: “No episódio do anão-
barítono, o tom do delírio e da loucura é mais completo (e do forte elemento de sexualização),
quase perfeitamente assimilado pela direção de Paulo Mamede” (FARIAS, 1986: 3).
Ao mesmo tempo que se confessa ao público, ela comenta suas reações, desfecha comentários
ferinos, dialoga com seres invisíveis. Imita outras personagens. Não há pausa nem economia,
tudo é excessivo, redundante. Daí a opção de Yara por um trabalho posado, teatral, onde o
ótimo trabalho de expressão corporal orientado por Angel Vianna torna a marcação quase
milimétrica (SEM PAUSA, 1986: 51).
Angel Vianna conta que no espetáculo Imaculada, onde trabalhou intimamente com a
atriz Yara Amaral, pôde fazê-la usar de várias maneiras um único baú (a memória de
Imaculada). Deste lugar, Imaculada tirava suas “lembranças”, sendo necessário que a atriz
encontrasse a maneira exata de tratar cada um dos objetos que tirava do baú, para que eles
ganhassem sentido e dimensão teatral. Para conseguir isto, a Preparadora Corporal trabalhou
inúmeras formas de mobilização articular. Pediu que a atriz explorasse as articulações
caminhando, sentando, deitando, e também se relacionando com o baú. Angel Vianna
considera que Yara Amaral foi uma das atrizes que melhor entenderam seu trabalho. Constata
que ela compreendia perfeitamente o sentido da projeção de um gesto, que, segundo Vianna,
segue os mesmos princípios da projeção vocal (Anexo A). Na concepção de Angel Vianna, a
atriz sabia envolver o espaço cênico por meio de seus movimentos, controlando com maestria
gestos, posturas e deslocamentos.
80
O casamento branco
Angel Vianna conta que na cena do piquenique, pôde pôr em prática muitos dos
trabalhos que chama de Jogos Corporais (Anexo C, cena:3).
Neste trabalho, através do relacionamento corporal entre um ou mais atores, vão aparecendo
situações que levam a descoberta de posturas, movimentos e equilíbrios jamais pensados, face
à estimulação dada pelo companheiro, estimulando a criação através do autoconhecimento.
(RAMOS in SALDANHA, 2009: 72).
Desde 1995, trabalho como professor da CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), onde
leciono a disciplina Corpo e Movimento. O curso profissional desse estabelecimento é
organizado em quatro períodos, precedidos de um módulo preparatório e complementados por
uma prática de montagem final. No segundo período, os alunos fazem sua primeira montagem
aberta ao público. Como docente desse estabelecimento, de acordo com as necessidades da
coordenação, posso assumir a matéria acima citada em qualquer um dos períodos.
Por mais de quinze anos de trabalho, como professor de Corpo, tive a oportunidade de
acompanhar inúmeras montagens, onde textos importantes da dramaturgia nacional e
estrangeira foram encenados pelos professores de Interpretação. Um dos textos que tive a
oportunidade de trabalhar, mais de uma vez, nesse contexto escolar, foi Gota d’água, de
Chico Buarque e Paulo Pontes, escrito em 1974, que teve uma estreia histórica na cidade do
Rio de Janeiro em 1975 (Anexo B). Essa montagem estreou no Teatro Tereza Raquel e teve
como protagonistas a atriz Bibi Ferreira e o ator Roberto Bonfim. A peça foi escrita em verso,
oferecendo beleza literária e funcionalidade dramatúrgica, como afirma Paulo Pontes:
“Escrevemos a peça em versos, intensificando poeticamente um diálogo que podia ser
realista, um pouco porque a poesia exprime melhor a densidade dos sentimentos que move os
personagens, mas queremos, sobretudo, com os versos, tentar valorizar a palavra” (Paulo
Pontes in programa de Gota d’água). O crítico de teatro Yan Michalski considerou a peça um
“belo sopro de inspiração artística e clareza ideológica” (MICHALSKI, 1976: 2). As
qualidades apontadas por Michalski são características presentes no texto, que traça um perfil
político-econômico do Brasil de então, e é também dotado de qualidade dramatúrgica.
Gota d’água foi escrita a quatro mãos, pois Paulo Pontes elaborava os diálogos, que
eram versificados por Chico Buarque. Pontes relata que a preocupação de ambos era: 1)
Apresentar uma experiência capitalista predatória; 2) Questionar o sumiço do povo da
produção cultural brasileira de então; 3) Valorizar a palavra como parte importante do
fenômeno teatral (Paulo Pontes in programa de Gota d’água). Três objetivos de extrema
relevância, principalmente quando lembramos que nesse período o Brasil atravessava uma
fase de grande censura política. Escolherei refletir sobre o terceiro objetivo enumerado pelo
autor, pois o modo de apresentação da palavra no jogo teatral está intimamente relacionado ao
tema central desta pesquisa: a Preparação Corporal de atores.
83
Pontes e Buarque fazem uma transposição da tragédia de Eurípedes (Medeia 431 A.C.)
para o Brasil dos anos 70. O texto grego narra o mito de Medeia, mulher bárbara, por não ser
grega, dotada de poderes mágicos. Ela conhece Jasão em Corinto e, movida por enorme
paixão, casa-se com ele. Eles voltam para a Grécia, e Jasão a abandona. Como vingança,
humilhada, ela mata os dois filhos que teve com ele. A peça, de Pontes e Buarque, é
ambientada em um conjunto habitacional carioca, durante um momento considerado de
grande crescimento econômico e forte especulação imobiliária, época do chamado milagre
brasileiro (1969-1973), que coincide com o governo Médici. Na Vila do Meio Dia, nome do
conjunto habitacional onde a narrativa é situada, acompanhamos não somente a dificuldade de
seus moradores pagarem a prestação da casa própria, mas também o drama passional de Joana
e Jasão. Quando o espetáculo começa Joana acaba de ser abandonada por Jasão, que está se
relacionando com Alma, filha de Creonte, proprietário do conjunto acima citado.
Assim como a tragédia de Eurípedes, Gota d’água possui grande complexidade, pois
além de ser escrita em versos, apresenta vários números musicais, exigindo de seus atores
maturidade artística e humana. Medeia e Joana são heroínas que lutam contra injustiças. Joana
representa, através de seu drama pessoal, a voz de uma coletividade, esmagada por uma classe
superior e, assim como Medeia, estabelece relações com forças sobrenaturais. Na tragédia de
Eurípedes, Medeia é uma maga, enquanto em Gota d’água, Joana não hesita em recorrer à
macumba para tentar destruir a felicidade de Jasão e Alma, sem contudo obter êxito nessa
empreitada.
Uma pista sobre a atitude física a ser conquistada pelos atores, na construção das
personagens de Gota d’água, nos é oferecida tanto pelo autor Paulo Pontes, quanto pelo
crítico Yan Michalski, ao enfatizarem os aspectos poéticos do texto. Pontes fala de um
diálogo que poderia ser realista, mas apresenta-se intensificado pela poesia versificada.
1
Ator, diretor de teatro, professor de interpretação da CAL. Dirigiu inúmeros musicais, entre eles Dolores
(1999/2000), que contava a vida da cantora Dolores Duran.
2
Atriz, diretora de teatro, professora de interpretação da CAL.
3
Empenho com grande desgaste físico e emocional.
85
O embate entre texto escrito e a escritura corporal dos atores foi um obstáculo com o
qual nos deparamos. Quando Pontes fala sobre densidade de sentimentos e valorização da
palavra, está, de fato, dando uma pista para direção, elenco e Preparação Corporal. Está
dizendo que compreensão lógica e disponibilidade afetiva deverão estar presentes em cena,
amplificados pela consciência do jogo teatral como artifício. Diante da afirmação do autor,
não faria sentido transformar Gota d’água num drama sentimental. Como em várias tragédias
gregas, a peça expõe um drama humano, que deve ser avaliado criticamente por uma
coletividade. Eurípedes escreveu Medeia expondo um mito à reflexão. Joana, através de sua
revolta e ato criminoso, deve também ser capaz de instigar o espírito do público (mais uma
vez uso aqui o termo espírito no sentido moriniano: atividade mental). Afinal, na vida e no
palco, nossa dimensão racional não exclui a dimensão afetiva e vice-versa. Edgar Morin,
citando Antonio Damásio, explica:
Damásio chega a escrever que ‘existe uma paixão fundando a razão; e para certos aspectos, a
capacidade de emoção é indispensável à prática de comportamentos racionais’. Acrescenta que
a faculdade de raciocinar pode ser diminuída, até mesmo destruída, por um déficit de emoção,
e que o enfraquecimento da capacidade de reagir emotivamente pode ser a fonte de
comportamentos irracionais. (MORIN, 2007: 120).
Para atores ainda em formação, o sentido de construção em seus trabalhos, ainda não
foi totalmente apreendido. A verdade do comportamento cênico, para a maioria deles, está
baseada em procedimentos miméticos, que tentam “importar” a vida para o palco, tal como
ela é. No teatro, um gesto estabelece relações com o espaço-tempo, completamente diferentes
daquelas que experimentamos na vida. A passagem do movimento cotidiano à cena constitui
um processo complexo de transposição, que se dá de múltiplas maneiras. As adaptações
decorrentes desse processo muitas vezes podem ser desconfortáveis para atores em formação.
No mundo ocidental, o teatro é situado como arte da cena, em oposição à dança como arte
corporal; uma separação que mostra a dança como arte do corpo e do movimento, ao passo que
o teatro permanece arte da palavra. (...) Contudo sabe-se que a gênese da arte do ator e do
bailarino provém do mesmo culto dionisíaco. (...) A dança, como o teatro, realiza-se pela
expressão visível do movimento. Ambos são acontecimentos reais, na medida em que
envolvem ações concretas de corpos reais, revestidos de uma semântica rítmica de imagens
moventes, com suas diferenças apenas na concentração em ritmos e formas definidos pelo
movimento em relação ao objetivo cênico. (SÁNCHEZ, 2010: 23).
Os gestos dos quais estamos falando são os gestos apurados, escrupulosamente analisados,
desconstruídos e depois reconstruídos a fim de preservar somente o essencial. Pode-se
encontrar o mesmo processo na operação de passagem do oral para o escrito. Quando
queremos preservar no escrito alguma coisa do falado, tudo que estiver na categoria do
aproximativo, da onomatopéia, das inflexões, de suspensões da frase falada, deve ser escolhido
e reconstruído. (LASSALLE e RIVIÈRE, 2010: 54).
movimentos que, na cena, parecem com aqueles que encontramos no dia a dia, precisam ser
construídos, integrando o pensamento global da encenação.
Muitas vezes, alguns alunos-atores criavam uma rigidez excessiva para controlar seus
corpos, objetivando valorizar o sentido do texto. Um ator pode parar em cena, sem que isso
seja sinônimo de rigidez, quando sentimos que seu imaginário está em movimento. Uma
pausa que está plena de imaginação é muito diferente de outra excessivamente rígida,
monótona, que deixa de produzir sentido. Quando tive a oportunidade de assistir ao monólogo
Orlando (Anexo B), com direção de Bob Wilson e atuação de Isabelle Huppert, pude observar
que a atriz sustentava grandes tempos de imobilidade na cena, mas não estava absolutamente
rígida. Era possível constatar uma supressão dos movimentos do corpo, mas que a experiência
sensível da atriz não havia sido interrompida, e que isto fazia parte do projeto estético do
espetáculo, estimulando de modo particular a recepção do público. A rigidez muscular
implica em subutilização dos sentidos, crispando a musculatura, limitando a mobilização
articular. Evidentemente existem muitos níveis de tensão muscular e muitos modos de
abordarmos essas resistências. Dentre as estratégias possíveis, o trabalho com micro-
movimentos mostra-se muito eficaz, pois situa o ator em relação a seu espaço pessoal,
renovando seu interesse pelo movimento. Quando um ator está crispado em cena, o que
acontece no corpo tem um correspondente mental, indicando também uma relação pouco
flexível com a imaginação.
Seguidamente constato que, estabelecendo pontes entre os estudos que fazemos (em
sala de aula) com os micro-movimentos e os ensaios de meus alunos, eles compreendem que
pequenas mudanças físicas em cena podem atualizar consideravelmente o interesse pela ação,
se executadas conscientemente. A sensibilização da visão e do tato pode ajudar a equilibrar a
tonicidade muscular, fazendo com que o ator consiga fluir com maior liberdade através de
suas ações. Mas isso para atores em formação não é uma coisa evidente.
Bonis entendia por teatro-dança? Quais as referências desse diretor, para fazer uma solicitação
desse tipo? Kurt Joss, Pina Bausch, Josef Nadj, Mary Wigman são as primeiras referências
que me ocorrem ao ouvir a expressão teatro-dança. Minha formação com a Mímica Corporal
Dramática também é uma referência, quando trabalho nessa interface entre a dança e o teatro.
O teatro-dança, como mencionado no segundo capítulo deste trabalho, no exemplo do diretor
Eric Lacascade, é uma fonte de inspiração para a Preparação Corporal, pois problematiza os
limites mecânicos e expressivos do corpo. Diante da solicitação de De Bonis, considerei a
construção de frases gestuais (onde o material utilizado fosse constituído por gestos
cotidianos), assim como formas de espacialização para o texto.
Aqui encontro motivação para refletir sobre uma questão relevante. O que significa
imitar? Existem maneiras mais ou menos produtivas de se fazer isso? Anteriormente, citei a
diretora francesa Ariane Mnouchkine trabalhando com um casal de atores, fazendo a mesma
personagem, usando um para dar referências de “como fazer” para o outro. A diretora não
estava propondo uma mímese vazia (simplória), mas a compreensão de uma atividade
complexa, que inclui em si os meios que levam a um resultado.
4
L’agrandissement ne répond pas seulemente à une necessite théâtrale. Paradoxalment, il sert à la révélation
d’une vérité ordinairement cachée.
90
Como era Preparador e professor de Corpo da turma, várias vezes De Bonis assistiu às
minhas aulas, que já eram uma Preparação (não apenas um aquecimento) e também um
espaço de reflexão e discussão sobre os conteúdos do espetáculo. Nessas aulas, dedicávamos
uma parte do trabalho à sensibilização corporal, assim como também fazíamos variados jogos
de integração (como aqueles que foram apontados no segundo capítulo). Trabalhamos
91
A direção musical foi feita por um dos professores de música da escola, Daniel
Belquer, que ensaiava separadamente com o elenco, e também acompanhava os ensaios. As
primeiras tentativas de coordenar música e movimento, na cena, não foram bem sucedidas.
Foi necessário um investimento grande de tempo para que pudéssemos organizar os
deslocamentos dos atores e a parte musical, fundamental no espetáculo. A palavra, como disse
anteriormente, tem grande força no texto de Pontes e Buarque, e isso pode ser percebido
também nas letras das canções. Em Gota d’água, as músicas compõem a narrativa e
propulsionam a ação dramática.
A direção optou por escalar duas atrizes para o papel de Joana, não em alternância,
mas atuando juntas no espetáculo. Uma opção delicada, que precisava ser validada
cenicamente, de modo a levar o espectador a aceitar esta divisão como parte significativa do
espetáculo, e não apenas como estratégia pedagógica para aproveitar duas alunas-atrizes no
papel da protagonista. Joana é uma mulher “partida” pela dor do abandono. Vê seu
companheiro partir para viver com uma mulher mais jovem e rica. Em vários momentos do
texto ela oscila entre o descontrole e a ponderação, entre o amor, que ainda sente por Jasão, e
o ódio mortal, expressando seus sentimentos por meio da palavra falada e cantada. Em Gota
d’água, Joana canta canções de grande intensidade emocional, e isto exigia coordenação
precisa entre voz e corpo. Qualquer movimento desnecessário poderia funcionar como um
dispersor de energia, todavia um excesso de contenção poderia produzir rigidez. Junto com a
direção, procurei compor a movimentação das “Joanas”, de modo que o discurso corporal de
uma estivesse relacionado ao da outra, através de movimentos sincrônicos ou alternados.
Várias vezes elas se deslocaram ao mesmo tempo, com a mesma intenção, em outros
momentos, desenvolveram ações diferentes, com andamentos variados.
O modo como a encenação trabalhou as transições entre grande parte das cenas do
espetáculo também merece registro. Muitas vezes, uma cena começava enquanto outra ainda
estava terminando. “Restos” de uma cena adentravam o espaço de outra. Como no exemplo
acima, na cena em que Jasão agride Joana. Depois de caírem, os atores permaneciam em cena,
aguardando a saída dos protagonistas, e quando levantavam já anunciavam a próxima cena
por meio de narrações. Nesses momentos de transição, foi importante coordenar de modo
preciso os deslocamentos dos atores, deixando clara a opção estética da encenação.
Hoje constato que minhas intervenções, na Gota d’água de De Bonis, foram, na sua
maioria, ligadas à encenação do espetáculo. Ao entender as propostas do diretor pude
contribuir para a construção de uma espacialidade funcional e poeticamente coerente. Os
modos de ocupar, recortar, verticalizar ou horizontalizar o espaço cênico estão diretamente
relacionados às ideias que orientam a encenação. A cena teatral constitui pensamento, da
mesma forma que as ações dos atores que ocupam esse espaço.
Minha segunda experiência com Gota d’água teve características bem diferentes, pois
fundamentalmente não tive intervenção direta na concepção global da encenação. Esta
montagem foi dirigida por Nancy Galvão, e eu era professor de Corpo e Movimento do
elenco. Eu assisti a alguns poucos ensaios, e passei a desenvolver atividades, em minhas
94
aulas, coordenando conteúdos pedagógicos e o universo de Gota d’água. Esta era uma turma
de segundo período, onde costumo trabalhar em sala de aula com os esforços e as qualidades
de movimento, segundo o Sistema Laban5, em conexão com a Conscientização do
Movimento.
Esse estudo ampliou as possibilidades de movimento dos alunos, que foram capazes
de estabelecer relações desse material com os ensaios. Durante o período em que
pesquisávamos as oito Ações Básicas definidas por Laban, (aqui listadas por
contraste/oposição entre suas qualidades: socar X flutuar, açoitar X deslizar, pressionar X
espanar, torcer X pontuar), deixei claro que esse trabalho visa à ampliação das capacidades
motoras tanto quanto das sensíveis, expressivas e cognitivas. Enquanto trabalhávamos,
estimulava a percepção dos alunos, sugerindo que percebessem como sentiam as Ações
Básicas do Sistema Laban. Pedi que tentassem identificar maior afinidade com uma delas,
sem desconsiderar a possibilidade de trabalhar com a ação oposta. Durante as improvisações,
sugeri que os alunos explorassem, com seus movimentos, espaços próximos e distantes do
corpo, conscientizando diferentes círculos de atenção. Expliquei que esse trabalho de
movimento é capaz de revelar modos particulares de organização corporal e suas afinidades.
Aos poucos fui relacionando esse trabalho ao contexto da peça, pedindo que os alunos
percebessem entre as Ações Básicas, quais serviriam de estímulo, para pesquisar a
movimentação de suas personagens. Rapidamente, eles começaram a perceber relações entre
o material que estávamos trabalhando nas aulas e os ensaios que aconteciam paralelamente.
5
Sobre o assunto consultar: O Domínio do Movimento, de Rudolf Laban (Summus, 1978); Dicionário Laban, de
Lenira Rengel (Annablume, 2003) e Laban for Actors, de Jean Newlove (Routledge, 1995/1998).
95
adentrar sensivelmente o universo da peça, por meio de associações entre palavras e imagens
mentais. Quando digo imagem mental, não estou me referindo apenas às representações
mentais registradas em nosso sistema nervoso por meio da visão, mas me refiro a todos os
registros mentais que construímos por meio dos sentidos. Nesse jogo de associações, uma
palavra que é dita pode remeter a um cheiro, e o aluno que foi tomado por esta sensação
deverá expressar-se através de uma nova palavra. No encadeamento das palavras alternaram-
se algumas que estavam diretamente relacionadas com o universo da peça (sangue, dor,
traição), com outras que não estabeleciam uma conexão óbvia com este (sol, praia,
esperança). Era perceptível que os alunos tinham muita dificuldade de apreender as palavras
que eram ditas, por meio de imagens, dando a sensação de que estavam tentando resolver o
exercício unicamente de forma racional. Para realizar esse jogo é preciso escutar as palavras
que são ditas e deixar que elas ecoem na imaginação. É necessário tempo para que a
sensibilidade seja mobilizada. Quase nunca conseguíamos fechar o trabalho, pois os últimos
alunos apresentavam muita dificuldade para lembrar todas as palavras que haviam sido ditas
até então. Era possível notar quando uma palavra, aparentemente “fora do contexto” da peça,
mostrava-se totalmente integrada ao jogo de associações ou quando interrompia o caminho
sensível que vinha sendo construído pelo grupo. Esse jogo estimulou a escuta coletiva e o
imaginário dos alunos, fundamental para a composição de seus trabalhos. A cada aula, ao
retomar esse exercício, ele funcionava como um elemento agregador, desenvolvendo a
concentração de todos. Ao longo desse trabalho, criava-se uma narrativa comum, que nascia
do universo da peça e fazia com que o grupo ampliasse sua compreensão sobre o mesmo.
Nunca sabíamos onde a nova narrativa iria chegar, quais associações seriam feitas, e isso fazia
com que todos ficassem atentos. Quando jogávamos, o grupo ampliava sua
percepção/compreensão sobre a peça, mesmo que não chegasse a concluir o trabalho.
Idealmente, o jogo termina depois que cada membro do grupo fez sua contribuição e o último
aluno tem que criar uma história relacionando todas as palavras que foram ditas, em uma
única narrativa que faça sentido.
modo lógico, segundo o contexto e as situações da peça, mas acabava por fazer sentido. Por
exemplo: em uma sequência de palavras evocando uma passagem violenta da peça, palavras
leves também eram ditas, estabelecendo contrapontos e criando novas possibilidades de
compreensão. Era perceptível que os alunos haviam interagido com o universo da peça,
enquanto faziam um trabalho de prospecção pessoal. A relação entre ordem e desordem, base
do princípio Dialógico, no jogo de associação de palavras, revelou paradoxos presentes nas
personagens de Gota d’água. Isso foi fundamental para o entendimento do conflito central
entre Joana e Jasão. A relação de ambos, no momento em que a peça começa, é constituída
por ódio e violência, mas não é possível desconsiderar o passado do casal. Se a raiva é a
emoção determinante para ambos no momento presente da peça, ela não pode ser encarada
como um bloco único. Esta emoção é multidimensional, possuindo nuances e contrastes.
Joana não é só raiva o tempo todo. Ela guarda lembranças dos tempos em que sua vida com
Jasão era cheia de esperança, amor e desejo. Jasão não está sendo apenas irônico e frio ao
minimizar os males de seus atos. Ele ainda se preocupa com a ex-mulher, apesar de tê-la
abandonado.
O princípio Hologramático também pôde ser observado. Cada palavra era um estímulo
para o pensamento e passava a fazer parte de uma estrutura maior, constituindo um imaginário
coletivo. Acredito poder utilizar o conceito de noosfera6, segundo Morin, para descrever esse
espaço criado pelo imaginário dos alunos. Isto é, uma esfera de ideias e espíritos que emana
de grupos humanos, modificando e sendo modificada por seus elementos.
6
“Termo introduzido por Teilhard de Chardin, em o Fenômeno Humano, que designa o mundo das ideias, dos
espíritos/mentes, dos deuses, entidades produzidas e alimentadas pelos espíritos humanos na cultura. Essas
entidades, deuses ou ideias, dotadas de autonomia dependente (dos espíritos e das culturas que os alimentam)
adquirem uma vida própria e um poder dominador sobre os homens” (MORIN, 2007: 303).
97
objetiva é uma mobilização integral e potente de cada subjetividade, que produz um calor que
envolve o grupo, estimulando sua inventividade. As resistências e interrupções na execução
desse jogo apontam dificuldades que temos de dar e receber, qualidades importantes para que
o ator se faça “côncavo e convexo” (FERRAL, 2010: 46).
Enquanto os alunos estavam jogando, muitas vezes percebi que o jogo perdia a
continuidade porque alguém tentava ser original, interessante, e passava a controlar o jogo
apenas racionalmente. Nestes momentos, pude constatar que a preocupação de alguns alunos
em fazer algo novo e original reduzia o aparecimento de desvios, que, segundo Morin, podem
de fato constituir mudanças.
Depois desse jogo com palavras, estamos com a sensibilidade aquecida para
começarmos outros trabalhos.
98
O jogo das palavras pode ser feito, de modo análogo, com gestos, motivando a criação
de frases de movimento a partir do contexto da peça. Uma vez que as sequências gestuais,
criadas a partir de uma narrativa textual, ganham autonomia, podem ser exploradas de
múltiplas maneiras. A recursividade está fortemente presente nas interações entre dramaturgia
e escrita corporal. Se um texto dramático é capaz de estimular a criatividade de um grupo,
será também modificado por essa mesma força.
Algumas vezes, depois do jogo com as palavras, pedia que o grupo se mantivesse em
roda, de pé. Uma vez que havíamos conseguido esquentar o ambiente e nossas imaginações,
pedia que um aluno escolhesse algum colega da roda e andasse na direção dele. Sugeria que
essa escolha fosse orientada pelo desejo de encontrar algum parceiro de cena do espetáculo, e
que explorasse o exercício para investigar algum aspecto do relacionamento dessas duas
personagens. Como Gota d’água é um texto musicado, algumas vezes introduzi nesse jogo a
possibilidade de os alunos estabelecerem relações no círculo por meio do canto. As primeiras
tentativas foram tímidas, mas com o avançar do trabalho as resistências foram diminuindo.
Há (...) duas linguagens ligadas na linguagem; uma que denota, objetiva, calcula, baseia-se na
lógica do terceiro excluído; outra que conota (evoca o halo de significações contextuais em
torno de cada palavra ou exposição), baseia-se na analogia, tende a exprimir afetividade e
subjetividade. As duas linguagens formam uma só em nossa linguagem cotidiana. (MORIN,
2005: 100).
Confrontando experiências que tive com duas montagens de Gota d’água, senti-me
impelido a retomar esse material, aprofundando meu trabalho como Preparador Corporal,
utilizando a Conscientização do Movimento como estratégia metodológica. Para tanto,
convidei dois atores profissionais (ex-alunos que haviam trabalhado comigo na segunda
montagem que realizei na CAL), Marília Passos e Leandro Barbosa Pinheiro, que
interpretaram Joana e Jasão (daqui em diante, farei referência a ambos utilizando seus
primeiros nomes).
Decidi que trabalharíamos sobre uma única cena e escolhi um momento da peça que
nos propiciasse a abordagem de questões que não havíamos investigado anteriormente (Anexo
C, cena: 10). No texto, as três grandes cenas entre Joana e Jasão são muito ricas, mas a
primeira delas me pareceu um bom material de estudo, oferecendo grande dinâmica para o
jogo dos atores, que deveriam construir uma trajetória com muitas transições e nuances
interpretativas. As mudanças comportamentais de Joana e Jasão, nesta cena, seriam
apropriadas para um trabalho mais detalhado de Preparação Corporal (considerando espaço,
gestos, deslocamentos, intensidades, precisão) orientado pela Conscientização do Movimento.
Nessa primeira cena entre o casal, eles estão sem se ver há um tempo. Jasão saiu de
casa para viver com uma mulher mais jovem, abandonando Joana e os dois filhos. Esse é o
primeiro encontro entre eles, depois da separação. A cena possui grande complexidade,
expondo múltiplos aspectos da relação, e muito do passado do casal deve transparecer por
meio de minuciosas interações.
potencial expressivo de seus trabalhos. O diálogo dessas atividades com outras técnicas
corporais é possível, segundo a Preparação Corporal que busco, desde que exista uma
equilibrada e produtiva integração de todos os trabalhos envolvidos. Esse seria um caminho
possível para uma Preparação Corporal imbricada na construção de um projeto estético
potente.
Nas experiências que irei relatar, escolhi focar o trabalho na sensibilização corporal,
investigando aquilo que, no primeiro capítulo, denominei por Funções. Dediquei um dia de
trabalho a cada um dos conteúdos que pretendia investigar: articulação, pele e visão. Fizemos
ainda um quarto encontro onde trabalhamos especificamente um momento extremamente
técnico, que envolvia agressão, golpes e queda. Meu objetivo era investigar como as Funções
(articulação, pele e visão), experimentadas anteriormente, poderiam contribuir, de modo
integrado, para a construção desse momento.
Leandro: A dificuldade foi percebida depois da prática em si e não durante. Foi como se eu
estivesse mais preocupado com a forma ou a estética do movimento e não com o trabalho das
lideranças articulares em si. Soma-se a isso o longo período que estávamos afastados das
dinâmicas corporais... parece que o nosso corpo e nossa percepção regridem.
Marília: O trabalho inicial com as articulações nos auxiliou no sentido de sensibilizar o corpo,
que tendia sempre para o verbo, sem sentir o que estava fazendo. Articular para mim sempre
me passou a idéia de dar fluidez, de deixar passar o ar, respirar. Com esse trabalho, tivemos a
mais plena consciência de que não estávamos respirando, não estávamos ‘deixando fluir’.
Então me dei conta de que a articulação é um nó, um gomo que une partes, uma ponte, pela
qual poderia fluir o texto, a encenação, por um corpo pensante e integrado. Nesse mesmo
‘módulo’ de trabalho, fizemos muitos exercícios que integravam palavra e ação, pondo em
prática aquilo que vínhamos experimentando durante o dia.
propostas de exercícios e jogos para os ensaios, pois um novo trabalho sempre demanda
algum tempo para a quebra de gelo, e suas contribuições podem ajudar na integração do
coletivo. Em certos momentos, os atores também podem trabalhar sozinhos, fazendo dialogar
seu repertório particular de técnicas corporais com os exercícios e jogos apresentados pela
Preparação Corporal.
No trabalho com Leandro e Marília, aos poucos fui introduzindo novos elementos à
pesquisa, sempre mantendo o foco no trabalho articular. Pedi que explorassem com maior
atenção os movimentos parciais (de partes do corpo) e os movimentos globais (da totalidade
do corpo), assim como movimentos contínuos e fragmentados (interrompidos). Minha
intenção era desenvolver o sentido cinestésico dos atores.
Na fase inicial de uma Preparação Corporal, a pesquisa articular pode ser feita de
modo amplo e abrangente, pois o interesse maior é disponibilizar os atores para o movimento,
e não necessariamente colocá-los numa fase de composição. Despertar a escuta do movimento
103
é importante, mesmo para aqueles que já são corporalmente dotados e/ou treinados. O
objetivo dessa fase inicial é ampliar a disposição sensório motora do elenco, deixando-o mais
disponível e flexível para o trabalho.
Depois que os atores trabalharam algum tempo sozinhos, sugeri que segurassem uma
pequena bola de plástico na palma das mãos e continuassem pesquisando as articulações,
explorando as dimensões: vertical (subidas e descidas), horizontal (abrir e fechar o corpo
lateralmente) e sagital (avanços e recuos), tomando cuidado para não deixar a bola cair no
chão (Anexo C, cenas: 15, 16).
De fato, toda hipertensão está relacionada às fragilidades, das quais ela é uma compensação.
(...) A busca de um melhor equilíbrio de forças, a qual estamos apegados, provocará então esta
dupla ação: liberar hipertensões, enquanto restabelecemos e fortalecemos as sinergias
fundamentais, das quais a fraqueza fez suas compensações. (DROPSY, 1973: 101, tradução
livre do autor) 7.
Como foi explicado no primeiro capítulo deste trabalho, as articulações são estruturas
que funcionam de modo coordenado, e o movimento eutônico necessita da participação de
cada uma delas, plenas em sua capacidade de movimento. O bom tônus de nossos músculos,
qualidade importante, tanto na vida como no teatro, depende e é determinado pelo uso
harmônico de nossas articulações. Um ator deve compreender, empiricamente, que seu
potencial expressivo está diretamente relacionado à sua capacidade de mobilização articular.
Quanto mais complexos os conflitos enfrentados na cena, maior a demanda de trabalho das
articulações.
(Figura 19 e 20) Trabalho articular em dupla, com objeto (bola). (foto do autor).
Cada um dos atores deveria ter consciência de si, de suas variações tônicas e daquelas
do corpo do outro. Esses jogos ensinam muito sobre a Conscientização do Movimento,
7
En effet, toute hypertension est reliée à des faiblesses, dont elle est la compensation. (...) La recherche d’un
meilleur equilibre de forces, à laquelle nous nous attachons entraînera donc cette double action: détendre les
hypertensions, pendant que l’on rétablit et renforce les synergies fondamentales, dont la faiblesse a entraîne ces
compensation.
105
Assim, ‘o sujeito estrutura-se pela mediação dos outros sujeitos antes mesmo de conhecê-los de
fato’. O sujeito surge para o mundo integrando-se na intersubjetividade, no seu meio de
existência, sem o qual perece. Assim como o indivíduo não se dissolve na espécie nem na
sociedade, que estão nele como ele está nelas, o sujeito não pode dissolver-se na
intersubjetividade, que lhe garante a plenitude. O Eu do sujeito não passa de uma estação de
transmissão num tecido de intersubjetividade. Guarda a sua auto-afirmação irredutível.
(MORIN, 2007: 78).
Depois do trabalho com bolas, sugeri que eles continuassem a pesquisa articular, agora
com bambus (Anexo C, cena: 18).
(Figura 21) Trabalho articular em dupla, com objeto (bambu). (foto do autor).
Enquanto o jogo desaparece no animal adulto, exceto quando este, domesticado e alimentado,
permanece em situação infantil, o jogo persiste e mesmo desenvolve-se no mundo adulto,
conforme múltiplos modos, e dispõe de instituições específicas nas grandes civilizações. (...) O
jogo, cuja finalidade não é ‘séria’, comporta a sua própria seriedade no respeito às regras, na
aplicação, na concentração e na estratégia. (Ibdem, 2007: 130).
Quando dois atores interagem através dos Jogos Corporais, aprendem que possuem um
conhecimento muito maior que aquele explicado por suas mentes racionais. Essa parte de
nosso pensamento não pode ser desconsiderada, nem na vida nem no palco. Mas é preciso que
encontremos um modo equilibrado de lidar com a parte racional de nossa mente,
exageradamente valorizada nos dias atuais, reconhecendo que o corpo tem seu modo
particular de pensar, uma sabedoria própria.
Ao longo de um processo de ensaios, o trabalho articular deverá, cada vez mais, ser
direcionado para o contexto do espetáculo, integrado às múltiplas exigências do jogo na cena.
Se anteriormente sugeri iniciar a Preparação Corporal mobilizando as articulações de maneira
abrangente (aprimorando o sentido cinestésico daqueles que se movem), com o avançar dos
ensaios é necessário que toda a disponibilidade conquistada para o movimento seja
direcionada, de maneira mais focada, para o contexto da peça. Naturalmente, é isso que
acontece na maior parte dos casos, pois com o desenvolvimento do trabalho, os problemas
vão se fazendo cada vez mais particularizados, exigindo que toda a equipe se debruce com
maior atenção e precisão sobre eles. Várias poderão ser as demandas. Um ator fará uma cena
de queda, outro precisará subir numa peça de mobiliário com extrema habilidade, enquanto
um terceiro ainda deverá escalar uma parede, por exemplo. Esses movimentos, certamente,
exigirão boa mobilidade articular, assim como uma boa utilização dos apoios ósseos. Muitas
são as estratégias que poderão ser utilizadas. Uma queda poderá ser dividida em várias etapas,
aumentando o controle sobre a movimentação e facilitando a ida ao chão, que pouco a pouco
será feita com mais entrega. Um ator poderá subir com maior facilidade numa mesa, por
exemplo, se usar conscientemente o apoio das mãos e dos pés, as articulações dos joelhos e o
centro de seu corpo.
107
Assim como propus que Leandro e Marília trabalhassem com bolas e bambus, poderia
ter oferecido tecidos, bastões, sacos de areia, caixas, ou algum outro objeto, diretamente
ligado ao contexto da peça. Isso iria ajudá-los a fazer pontes entre o trabalho articular
preparatório e o jogo na cena.
Na conclusão de nosso primeiro dia de trabalho, pedi que Leandro e Marília fizessem
um último exercício, onde deveriam caminhar simultaneamente pelo espaço, e quando um
deles parasse, o outro deveria fazer o mesmo. Logo que um deles voltasse a caminhar, o outro
deveria acompanhá-lo, voltando a entrar em movimento. Num segundo momento, eles
deveriam alternar os deslocamentos. Quando Leandro estivesse em movimento, Marília
deveria estar parada, e quando Leandro parasse, ela deveria iniciar seus deslocamentos no
espaço. Para concluir essa etapa, mantendo a alternância dos movimentos, pedi que, antes de
se deslocarem pelo espaço, fizessem um movimento claro com uma parte do corpo
(movimento parcial). Trabalhamos algum tempo dessa maneira, depois sugeri que eles
incluíssem no trabalho uma relação de dominador X dominado. Propus que Marília
começasse sua movimentação explorando a atitude de dominador, que sugere força,
determinação, assertividade e outras qualidades afins. Em contrapartida, Leandro deveria
iniciar o trabalho explorando movimentos que sugerissem um status mais baixo, de hesitação,
dúvida, medo e outros estados correlatos. Nesse exercício, a relação de dominação é
trabalhada entre os jogadores, e também com o espaço. Os atores deveriam pesquisar
movimentos, durante algum tempo, mantendo a relação proposta inicialmente e, pouco a
pouco, deveriam inverter essa situação. Leandro passaria a dominar, enquanto Marília
adotaria a posição do dominado. Fiz essa proposta porque essa inversão de status é marcante
na cena que escolhi trabalhar. As indicações fornecidas pelo texto são de que Jasão chega
recolhido, ocupando o espaço cuidadosamente. Ele abandonou a mulher, saiu de casa, está em
“déficit”, devendo explicações. Ela possui as razões da pessoa que foi abandonada e quer
saber o que aconteceu para ele ter deixado a casa como o fez. Ao longo da cena, enquanto o
casal se enfrenta, essa situação se inverte. Ela o ataca verbalmente, o que o faz perder a
cabeça. Jasão a agride e aparentemente a subjuga. Joana termina humilhada, pedindo para que
ele fique. Durante o exercício, tanto Leandro quanto Marília mantiveram-se muito focados
nos próprios movimentos, e minimizaram a escuta um do outro, que seria fundamental para
construírem juntos esse jogo de alternância de status.
dos atores que está em jogo, mas a capacidade de se adaptarem às mudanças do colega. Nesse
jogo, é necessário que os atores percebam e controlem a progressão daquilo que estão
fazendo. A inversão das funções dominador/dominado não deverá ser abrupta, mas
progressiva, assim como na peça, a fim de que possa ser acompanhada pelo público, que ao
longo da cena compreende que Jasão não tem mais a intenção de viver com Joana, e vê o
comportamento de ambos sofrendo grandes mudanças.
Leandro: Notei uma maior concentração nos exercícios, como se o trabalho tivesse ganho uma
qualidade diferente. Talvez porque o toque seja algo muito intrínseco no texto e na relação
entre Jasão e Joana. É como se estivéssemos vivenciando as palavras e frases, mergulhando no
universo íntimo de atração e estranhamento dos dois.
Marília: No trabalho de sensibilização com foco na pele, me senti trabalhando com algo muito
mais sensorial (táctil) e presente. Senti-me mais integrada com meu parceiro e começaram a vir
sensações dos personagens, que realmente me remetiam a duas pessoas que passaram dez anos
casadas. Sensações que, muitas vezes, eu não conseguia delimitar bem, e, simplesmente, me
deixava agregá-las sem questionar e tentar racionalizar muito porque se juntariam ao trabalho
sem muitas explicações. E na cena, elas vieram. Senti-me muito mais presente em cena,
comungando melhor com o espaço e mais inserida na situação. Havia mais possibilidade de
criar com o meu parceiro de cena, pois estávamos mais integrados naquela história... juntos.
O fato de estar trabalhando com atores profissionais, deixou-me confiante para propor,
logo no início desse encontro, um exercício de contato em que eles deveriam se tocar (Anexo
C, cenas: 19, 20, 21, 22). A proposta consistia em que cada um, por sua vez, modelasse o
corpo do outro, começando o trabalho pela cabeça e terminando nos pés. O objetivo deste
trabalho é enformar e informar o colega. Enformar, porque o contato desenvolve a
consciência do volume, das dimensões e da tridimensionalidade do corpo. Informar, porque
através do contato com o outro, pode-se reconhecer a própria singularidade.
Leandro percebeu que durante o exercício teve mais facilidade para aceitar os toques
que foram feitos com maior pressão, e sentiu-se resistente aos toques que foram feitos com
leveza. Marília considerou esse trabalho de sensibilização fundamental para retomar a cena de
Gota d’água, pois ele amplia consideravelmente a percepção do outro e as possibilidades de
interação.
Como já foi dito anteriormente, a pele está conectada com todo o corpo, uma vez que
está em contato direto com o tecido conjuntivo fascial. O trabalho sobre o tecido cutâneo,
proporcionando uma maior consciência de nosso volume e espaço interno, é determinante
para que possamos equilibrar nossas trocas com o ambiente.
110
Jogos de integração ensinam ao ator, através de vivências práticas, o que são variações
tônicas. Essas alternâncias de tônus corporal são responsáveis por inúmeras adaptações que
tornam o jogo do ator vivo, dinâmico e estimulante, para ele mesmo e para o público.
Frequentemente, como Preparador Corporal, percebo que um ator deve mudar sua
atitude física quando um novo pensamento atravessa sua personagem. Constato que a
personagem modificou-se, por indicação do texto, mas muitas vezes o ator não percebe a
111
mudança apontada. Em outros casos, a personagem está desenvolvendo uma ação, e o ator
abusa do excesso de movimentos. Dois problemas diferentes que, comumente, enfrento como
Preparador Corporal. No primeiro caso, preciso estimular o desejo de movimento. No
segundo, devo contribuir para que o ator possa selecionar, ordenar e deixar suas ações mais
precisas. Nesses momentos, lembro-me de que não existem modelos pré-determinados que
possam unificar as reações humanas segundo normas e comportamentos previsíveis. Como
nos esclarece Jean-Loup Rivière8: “Não há, ou não há mais, código gestual fixo, quer dizer,
um modo estereotipado de significar corporalmente uma emoção ou uma paixão”
(LASSALLE e RIVIÈRE, 2010: 49). Uma vez que os estereótipos caíram por terra, o teatro
assume hoje grande variedade, das formas mais intimistas às mais operísticas, e o
compromisso do ator com sua movimentação e gestualidade faz-se cada vez maior.
O foco de atenção é portanto, o processo por meio do qual algo que não existia antes, como tal,
passa a existir, a partir de determinadas características que alguém vai lhe oferecendo. Um
artefato artístico surge ao longo de um processo complexo de apropriações, transformações e
ajustes. O crítico genético procura entrar na complexidade desse processo. A grande questão
que impulsiona os estudos genéticos é compreender a tessitura desse movimento. (SALLES,
2009: 17).
Após o exercício de leitura, sugeri que os atores trabalhassem a parte inicial da cena,
agora sem o texto na mão. Mantive as cadeiras no espaço, e pedi que fizessem sempre alguma
modificação na forma-atitude do corpo, por menor que esta fosse, ao perceber que estavam
diante de uma nova intenção. Aqui intenção é sinônimo de pensamento, desejo, objetivo.
Conforme avançávamos no trabalho, os atores passaram a se relacionar melhor com as
dimensões do espaço, utilizando com maior precisão a segmentação corporal e o
direcionamento do olhar. Explorando o espaço com maior precisão, os atores começaram a
respirar melhor. Assim como o trabalho articular do corpo mobiliza a respiração, a clareza
espacial da cena também modificou o modo de respirar dos atores. A espacialização de uma
cena, ou seja, a criação de um desenho cênico coerente que expressa seus conflitos, é um
processo complexo. Isto demonstra quão intima é a relação entre espaço pessoal e ambiente.
8
Crítico e pesquisador teatral, nascido na França (1948).
112
Ao término dessa segunda sessão de trabalho com Leandro e Marília, pedi que ambos
preparassem uma colagem para o encontro seguinte. As colagens deveriam compor um
conjunto de imagens, organizado da forma que achassem mais conveniente. As imagens
escolhidas deveriam apresentar características da personagem que estavam estudando, mas
não precisavam ter uma conexão direta com o universo de Joana e Jasão. Esse trabalho não
deveria ser orientado apenas pela inteligência racional, mas também pela “razão amorosa”
(MORIN, 2008: 27), para lembrarmos, novamente, Edgar Morin e Angel Vianna. Nessas
colagens, certamente, haveria espaço para imagens leves e alegres, e não somente figuras
pesadas e sofridas. As colagens deveriam estar relacionadas com a afetividade dos atores e,
consequentemente, dotadas de potencial para estimular a criação de movimentos.
Leandro: Foi para mim a parte mais complicada do trabalho. Achei difícil manter a
qualidade do olhar e o jogo cênico com a Marília. Era como se o olhar dela estivesse carregado
de um peso e eu quisesse fugir dele simplesmente por não ser forte o suficiente para sustentá-
lo. Muitas vezes eu acabava ficando nervoso, me desconcentrava e ria (como sempre acontece
quando fico nervoso). Ao longo das cenas, confirmei isso. O Jasão não podia suportar aquele
olhar da Joana por ser mais forte do que ele, carregado não só da mágoa como também das
lembranças, e acabava se desviando.
Terminada esta primeira atividade, pedi que observassem a colagem que haviam
produzido (Anexo C, cena: 27). Depois de um tempo, sugeri que cada um, individualmente,
fizesse uma improvisação a partir do material. Marília trabalhou com movimentos ondulados,
mudanças de nível e explorou a verticalidade, saindo e recuperando contato com o eixo
vertical. Seu trabalho apresentou momentos de sensualidade e força (Anexo C, cena: 28).
Depois de improvisar, a atriz relatou que entrou em contato com estados importantes, que
devem preceder o uso da palavra em cena. Leandro afirmou ter encontrado dificuldade para
selecionar os estímulos sobre os quais trabalhar. A colagem de Marília era composta
unicamente por imagens, enquanto a de Leandro era também constituída por muitas palavras.
Pude constatar que Leandro retomou alguns movimentos usados na montagem que
havia feito na CAL. O objetivo de nosso laboratório não era desconsiderar o que Marília e
Leandro haviam feito anteriormente. Mas seria importante estimulá-los, fazendo-os flexíveis
114
para encontrar novas ações. Mais disponíveis, poderiam reencontrar gestos, posturas e
deslocamentos, com uma nova disposição perceptiva.
Notei que as dificuldades encontradas na realização desse trabalho podem ter ocorrido
pelo fato de ambos terem se relacionado com as colagens de modo geral (abrangente),
tentando apreender e expressar muitas qualidades de uma só vez. Eles poderiam ter
selecionado um ou dois aspectos como estímulo e começado a pesquisa de forma mais
simples. Esse é um trabalho que possibilita múltiplos desdobramentos, onde os corpos criam
formas inusitadas. Algumas delas destoam, não condizendo com o contexto de estudo, mas
outras surpreendem por trazerem à tona aspectos não percebidos sobre as personagens,
situações e conflitos da peça. Esse é um processo que não pode ser compreendido de forma
linear, pois o que se objetiva não é explicar, ou ilustrar de maneira óbvia, o texto da peça ou
as colagens que serviram como motivação para os improvisos. O objetivo é estimular a
imaginação através do movimento, fazendo com que o ator perceba impulsos/motivações que
lhe são familiares, mas também outros que desconhece. Michael Tchécov9 adverte ser
importante que o ator perceba as diferenças entre ele e a personagem: “Como os impulsos de
vontade de minha personagem diferem dos meus? São mais ou menos fortes e rígidos,
persistentes ou frouxos, esporádicos, dominantes, gentis e até mesmo fluidos, etc.?”
(CHEKHOV apud POWERS, 2004: 25, tradução livre do autor).10
O Princípio Dialógico merece mais uma vez ser lembrado, valorizando a inventividade
humana como um importante fenômeno não linear, constituído por saltos, interrupções,
associações inesperadas e perturbações. Nesse exercício com as colagens a não linearidade
está evidente. Até mesmo os espaços “entre” os movimentos constituem-se como zonas de
investigação, lugares de transição potentes, que podem ser explorados com grande
dinamismo.
9
Sobrinho do escritor russo Anton Tchécov.
10
How do will impulses of my character differ from my own? Are they more or less strong and unbending,
persistent or wishy-wash, sporadic, dominating, gently and evenly flowing, etc.?
116
O problema está posto então: qual o papel da ação voluntária na regulação respiratória. Esse
problema divide muitos especialistas. Para ‘alguns’ é preciso fazer exercícios respiratórios,
treinar a respiração. Para outros, a respiração é um mecanismo tão complexo que é preferível
não tocá-lo, melhor deixar que a respiração ‘se faça’, permitindo que ela se harmonize por si,
desde que trabalhemos apenas sobre outros problemas, como as tensões musculares, o
equilíbrio e etc. (DROPSY, 1973: 82, tradução livre do autor).11
A relação com a pele ficou muito evidente, pois reencontrar a casa onde morou, para
Jasão, significava se relacionar com o espaço não apenas por meio da visão, mas também
podendo tocá-lo afetivamente. Isso logicamente envolve todas as funções perceptivas e a
capacidade de nossa pele apreender o espaço afetivamente, uma qualidade humana que se
manifesta através do sentido háptico. Este é um sentido que inclui não só o tato, mas nossas
capacidades proprioceptivas e o sistema óculo-vestibular, já mencionado anteriormente.
11
Le problème se pose donc: quel role joue l’action volontaire dans la régulation respiratoire. Ce problème
divise beaucoup les spécialistes. Pour les uns il faut ‘faire’ des exercices respiratoires, entraîner la respiration.
Pour d’autres, la respiration est une horlogerie si complexe qu’il est préférable de ne pas y toucher, de ‘laisser
faire’ la respiration en espérant qu’elle s’harmonisera d’elle-même si l’on travaille seulment sur d’autres
problèmes tels que les tensions musculaires, l’équilibre, etc.
117
amplificado aos olhos de um observador. Era preciso coordenar com precisão a vida psíquica
das personagens às ações dos atores. Uma questão fez-se presente: Como o corpo do ator
pode construir o espaço na cena?
crítica, segundo Edward Hall, região do espaço que separa a distância de fuga da distância de
ataque. Foi possível vivenciar na prática noções de proxêmica, teoria que estuda
cuidadosamente os modos como homens e animais usam o espaço.
A falta de compreensão geral da significação dos muitos elementos que contribuem para o
senso do espaço no homem pode dever-se a duas noções equivocadas: (1) de que para todo
efeito existe uma causa única e identificável; e (2) de que a delimitação do homem começa e
acaba com sua pele. Se pudermos livrar-nos da necessidade de uma explicação única e
pensarmos no homem rodeado de uma série de campos em expansão e redução, que fornecem
informações de muitos tipos, passaremos a vê-lo sob uma luz inteiramente diferente. Podemos,
então, começar a aprender a respeito do comportamento humano, incluindo tipos de
personalidade. Não apenas existem os tipos introvertidos e extrovertidos, autoritários e
igualitários, apolíneos e dionisíacos, e todos os outros matizes e graus de personalidade, mas
cada um de nós tem várias personalidades situacionais aprendidas. (HALL, 1989: 107).
No quarto encontro de nosso laboratório, meu objetivo foi demonstrar que os três
elementos da Conscientização do Movimento que estávamos investigando não são fatores
isolados, mas partes de um sistema integrado maior. O recorte proposto para orientar nossas
investigações, apresentando articulação, pele e visão como temas de estudo, não desconsidera,
absolutamente, outros elementos do trabalho de Angel Vianna.
A cena entre Jasão e Joana possui variados contrastes e nuances. Depois de discutir
com a ex-companheira, enraivecido, Jasão a agride violentamente. Esse momento exige
controle por parte dos atores, que precisam jogar juntos, no presente, pois o resultado da cena
depende de uma linha de ações, construída por ambos. Essas cenas exigem aguçado senso de
interação, pois quem golpeia é tão responsável pela boa realização da ação, quanto àquele que
recebe o golpe.
119
O passo seguinte foi dividir os movimentos de ida ao chão em três etapas. Os atores
deveriam fazer três pequenas pausas ao passarem do nível alto para o baixo, entendendo
melhor variadas possibilidades de mudança de nível (Anexo C, cenas: 42, 43). Com o
andamento do trabalho, sugeri que eles começassem a soltar cada vez mais o peso do corpo na
última etapa da descida, experimentando, rente ao chão, maior entrega de movimentos.
Tivemos a oportunidade de vivenciar, na prática, a relação entre estrutura corporal e
funcionalidade motora. Permitir que o movimento se revele/aconteça é um modo de
conscientizar a estrutura corporal, porque aquilo que o corpo pode em termos de
movimentação é consequência de sua organização anatomofisiológica.
associação é válida, desde que não se perca de vista que dinâmicas baseadas na
Conscientização do Movimento, onde muitas vezes podemos ter a impressão de estarmos
trabalhando uma única parte do corpo (ou função perceptiva), objetivam a integração
corporal. Por exemplo: 1) O trabalho de Lideranças, onde o isolamento de partes do corpo é
estudado numa rede de relações capazes de estabelecer múltiplas organizações. 2) O exercício
de mudanças de nível, citado acima, onde visão e audição, integradas, são imprescindíveis
para a manutenção do equilíbrio do corpo.
A ação em que Jasão pega Joana e a joga no chão deveria também ser dividida em
etapas: 1) Ele a segura; 2) Eles giram no eixo vertical fazendo uma meia volta; 3) Ele a joga
no chão (Anexo C, cenas: 46, 47, 48). Nas três etapas os dois atores deveriam estar
sintonizados e disponíveis para experimentar constantes adaptações. A terceira etapa do
exercício exige uma escuta mais apurada, pois as articulações de ambos devem funcionar de
modo coordenado a fim de que o golpe desfechado por Jasão possa ser sugerido, e “recebido”
sem danos pela atriz. À medida que repetíamos essas ações, mais percebíamos que todos os
elementos trabalhados nos encontros anteriores mostravam-se agora como uma rede
integrada. A audição emergiu como elemento importante e Marília também comentou que o
olfato, estimulado no exercício de sensibilização da pele, havia proporcionado maior
intimidade entre Jasão e Joana.
Durante os trabalhos sobre Gota d’água, nos certificamos que a percepção é uma
grande aliada no trabalho de criação do ator, motivação fundamental para que ele se mantenha
presente na cena, em adaptação constante com seus parceiros, espaço e espectadores.
Conforme o trabalho avançava foi possível perceber que os órgãos dos sentidos funcionam de
maneira integrada e que os elementos que elegi investigar, potentes em um trabalho de
121
conscientização corporal, e que não devem ser abordados como únicas possibilidades para
isso, são modos de organização (Funções) e proporcionam um fluxo de experiências que
alterna, constantemente, ordem e desordem no corpo.
Nos limites deste trabalho, escolhi concentrar meus esforços e interesses em três
elementos da Conscientização do Movimento, intimamente ligados às questões motoras e
relacionais do ser humano, fundamentos da arte do ator.
Para concluir minhas indagações, faço um breve relato, um exemplo de como nossas
funções perceptivas acontecem de modo integrado.
Numa das cenas do espetáculo, Kirílov, amigo de Chatov, recebia a notícia de que este
havia sido morto violentamente. O ator que interpretava Kirílov, durante toda a temporada,
segurava e cheirava minha mão na coxia, antes de fazer a cena acima citada. Ele dizia que isso
era importante para que pudesse realizar seu trabalho com verdade. Sempre achei intrigante
esse procedimento, e o fato de nunca o ter compreendido totalmente me ensina que a
percepção do ator constitui-se como um riquíssimo objeto de estudo, complexo e aberto a
múltiplas investigações.
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
encontros, na vida e no palco, não se dão a toda hora. Mas é essa Preparação que elegi como
objeto de estudo, por acreditar que ela pode existir como um trabalho transformador e força
constitutiva de um espetáculo.
Mesmo que esse trabalho possa ser efetivado de muitas formas, nesta pesquisa
valorizei os procedimentos que favorecem a expansão sensível do ator através da
Conscientização do Movimento. Esse é um enfoque possível, aberto ao diálogo com outros
trabalhos e técnicas de corpo.
Uma vez que não assumo a perspectiva de que existe um ator pronto ou completo,
acredito que sempre existirá espaço para que profissionais da Preparação Corporal possam
intervir nas mais diversas produções. Ao longo de minha escrita, vários exemplos foram
dados, inclusive o de uma grande diretora de teatro, Ariane Mnouchkine, que enfrentou
problemas com um ator de sua companhia, pelo fato dele não estar conseguindo emitir bons
sinais com o corpo. Haveria, nesse caso, lugar para a intervenção de um Preparador Corporal?
Acredito que sim. Mnouchkine sugere a mobilização do tronco, explicando a importância da
utilização da coluna, mostrando-se convencida de que somente o trabalho na cena trará o bom
resultado. Isso é um fato, pois como disse acima, não é possível conceber a organização
corporal de um ator dissociando seu trabalho do jogo na cena. Mas diferentes profissionais da
Preparação Corporal, expondo aquilo que fariam se estivessem junto à diretora, mostraram
que uma abordagem mais focada no corpo do ator seria possível.
Comecei esta dissertação expondo a ideia de corpo que serviria de base para minhas
reflexões, pois isto me parece fundamental para o entendimento dos procedimentos que
constituem a Preparação Corporal que valorizo, embasada pelo pensamento complexo. A
ideia que me serviu como orientação foi aquela que desenvolvi ao longo de anos
experimentando o trabalho de Angel Vianna, que me treinou para aceitar as múltiplas
instabilidades e perturbações que constituem o corpo vivo. Essa habilidade para aceitar
minhas alternâncias foi determinante em minha formação como ator, professor e Preparador
124
Durante esta pesquisa, pude perceber que não existe uma formação sistematizada no
campo da Preparação Corporal, pois mesmo no curso de Pós-Graduação da FAV, projeto que
ainda experimenta adaptações e mudanças, seu corpo docente tem consciência de estar
buscando aquilo que se poderia considerar uma formação viável, em consonância com o
1
Como foi descrito no terceiro capítulo desta dissertação, através de minhas atuações como Preparador Corporal
em montagens, e experiências laboratoriais, do texto Gota d’água.
125
mercado profissional atual. Estamos diante de uma atividade relativamente nova, que carece
de reflexão e de trabalhos que a possam desenvolver. Ousadia e paixão pelo conhecimento são
qualidades importantes para um Preparador Corporal, da mesma forma que Angel Vianna
afirma: “Para ousar é preciso ter conhecimento!” (Depoimento ao autor).
Até que ponto esse trabalho pode ser considerado fundamental para a construção de um
espetáculo, e não apenas uma atividade acessória isolada?
Nesta pesquisa, elegi os trabalhos de Angel Vianna e Edgar Morin como orientadores
de minhas ações por valorizarem a questão humana, fundamento do trabalho teatral. Essas
referências mostraram-se grandes estímulos para que pudesse pensar o homem, seu corpo e
sua inexorável necessidade de expressão e criação. Vianna e Morin ajudaram-me a constatar
que toda ação humana deve buscar a integração de saberes, para que de fato possa constituir-
se como prática inovadora, coordenando de modo harmônico inteligência racional e
afetividade, a fim de revelar ao próprio homem sua grandeza e potencialidade. A Preparação
Corporal orientada pelo pensamento complexo poderá constituir, efetivamente, uma
possibilidade de integração e produção de conhecimento.
2
Como indica o espetáculo Roda Viva, exemplo dado na introdução deste trabalho.
127
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DVD
Eu conheci a Gerda (Alexander) por causa da Lola Brickman, em 1974. Lola veio para
um seminário no Conservatório Brasileiro de Música, em 71. Eu dava aulas lá. A Lola veio
com a Patricia Stokoe, que tinha sido professora dela. A Lola disse: Você dá aula que eu sei
Angel. Eu disse: Sim! Atualmente de Expressão Corporal. Ela pediu para ir assistir. Eu disse
que sim. Quando acabou a aula ela disse: Engraçado, você tem um método muito interessante.
Parecido com o de Gerda Alexander. Eu perguntei: Quem é ela? A Lola respondeu: Ela criou
a Eutonia. Eu perguntei: O que é a Eutonia? Ela explicou: É um trabalho que mexe com o
tônus muscular. Eu disse: Deve ser uma pessoa interessante, você me deixou curiosa!
Ninguém nunca me falou dela. Onde que eu posso conhecer esta senhora? Lola disse: Ela vai
todo ano dar um curso em Talloires, num mosteiro. Um lugar lindo, que fica a sete horas de
Paris. Eu disse: Me dá o endereço desta senhora que eu vou escrever e perguntar se eu posso
fazer o curso. Klauss tinha ganhado o Prêmio Moilère, eu tinha que ir a Paris com ele. Foi a
coisa mais linda. Eu, Klauss e minha amiga Nena (Marilena Martins) fomos a Talloires. Klaus
estava operado do coração e não podia fazer nada.
Foi interessante, porque o que Gerda falava e fazia... eu me identificava com ela.
Quando a Lola falou que eu tinha uma identidade com a Gerda, eu na hora não entendi, mas
hoje eu entendo. A Gerda trabalhou com muita gente com quem eu trabalhei. Não com as
próprias, mas com os assistentes dessas pessoas. Eu encontro as pessoas sem procurar. Ela
falava muito de Rosalia Chladek. Que havia sido com a Rosalia que ela tinha percebido
claramente a importância das torções. Então eu me lembrei que quando eu estive na Bahia,
um alemão, Rudolf Piffl, que havia sido aluno da Rosalia Chladek, foi dar aulas sobre o
trabalho dela. A Gerda trabalhou com a Rosalia buscando a torção do movimento. Ela
trabalhava muito contrações laterais do tronco. Tudo é torção.
Você pega as coisas no ar. A Gerda falou muito do Feldenkrais também. Disse que ele
era um dos grandes conhecedores de corpo do mundo.
A Gerda, como eu, também dava aulas para atores. Eu me interessava muito por
anatomia. Eu estudei anatomia até em Faculdade de Odontologia em Belo Horizonte. No Rio
135
de Janeiro, sabe como eu estudava anatomia? Eu disse para o Klauss que eu já estava cansada
de saber a teoria. Então eu queria fazer o seguinte trabalho: fazia o movimento, e a professora
dizia para mim, qual o músculo que trabalhava e qual descansava, músculos agonistas e
antagonistas no movimento. Esse foi meu grande aprendizado. E então eu pude perceber o
que a Gerda falava sobre agonistas e antagonistas. Não só pensar em quando um músculo
descansa e o outro trabalha, mas sim uma harmonia dos dois. Como tudo na vida. Se aquele
que trabalha vai além, aí desgasta. Eu queria entender o corpo. Isso me interessava. Eu e
Klauss éramos muito interessados pelo corpo. Tudo que era possível aprender a gente queria
aprender. A gente queria sempre descobrir novas maneiras de trabalhar o corpo e novas
percepções em relação ao próprio corpo.
Hoje se pensa essa relação entre músculos agonistas e antagonistas como cadeias
musculares trabalhando em sinergia.
Se eu não sei o sentido de alguma coisa no meu corpo, se eu não sei o que eu estou
sentindo, eu não passo nada adiante. Isso eu não faço. Eu gosto de experimentar.
Sim. Principalmente osso e articulação. A coisa mais importante que eu aprendi com a
Gerda, e que eu incluí na minha vida, foi a relação com a pele. Eu falava mais da parte óssea,
trabalhando a musculatura através dos ossos.
Você e Klauss sempre tiveram muito interesse pelos ossos. Você usa muito a expressão
direção óssea, o pessoal da Técnica Klauss Vianna usa muito o termo vetores. É tudo a
mesma coisa?
É vetor ou direção.
136
Durante muito tempo seu trabalho foi denominado Expressão Corporal. Você pode falar
um pouco sobre esse nome?
Quando Klauss foi chamado para fazer o trabalho da Ópera dos três vinténs, o elenco
tinha 40 pessoas, incluindo o (José) Wilker, a Marília Pêra, o (Osvaldo) Loureiro, a Dulcina,
era muita gente. Eu entrei como bailarina do cabaré. Eu, Julia Otero, Sonia Magalhães
fazíamos as prostitutas.
Sim. Eu organizava aulas com o Klauss para os atores. A gente sabia que tinha
Expressão Corporal com o Jacques Lecoq, em Paris, com Patricia Stokoe, na Argentina. Ficou
sendo Expressão Corporal porque o Klauss dizia: Olha só que expressão corporal bonita tem
aquele ator. Então achamos que deveria ser Expressão Corporal, naquele momento.
Nas aulas que você começou a dar para atores no Rio, em 1965, já tinha esse nome?
Para mim, o começo de tudo é a percepção de dobra. Agora eu estou com mania de
papel. A pele do papel me dá prazer. Sensibiliza a minha pele. Já que sensibiliza, eu comecei
a criar. Eu pego o papel e faço milhões de coisas com ele. Eu gosto de pegar um objeto e ir
fundo nesse objeto. De todas as maneiras. Eu acho que é um apoio, que te ajuda. Peço para
dobrar o papel. Depois peço para deitar, perceber e começar a trabalhar as dobras. É para
lubrificar o corpo. Locomoção! Andar, sentir o chão, depois andar na meia ponta, na borda
externa, na borda interna. Para ir tomando consciência do espaço. Primeiro ver o espaço,
sentir o espaço. Organizar a percepção visual sentindo a distância entre a parede e você.
1
Bailarina russa, naturalizada brasileira.
137
Depois a distância entre as pessoas, e o espaço entre elas. Depois os apoios. Apoio na parede,
apoio no chão, apoio no ar. Percepção de lado direito e lado esquerdo, a lateralidade, que tem
relação com a verticalidade. Sair do eixo para encontrar o eixo.
Na minha turma da Tatiana (Leskova) tinha ator, cantor, tinha de tudo. E ficavam
chamando Expressão Corporal. Depois eu e Klauss começamos a questionar esse nome, uma
vez que nós íamos muito fundo no trabalho corporal. Então eu sugeri ao Klauss que
mudássemos o nome porque as pessoas não estavam cumprindo as propostas de aula. Eu
comecei a perceber que a sensibilização do corpo era um negócio muito profundo, para que
fosse feito de qualquer jeito. Então eu decidi mudar o nome do meu trabalho para
Conscientização do Movimento e Jogos Corporais. Jogos porque eu trabalho com a
criatividade do aluno, individualmente, a dois, a três, quartetos e com as qualidades do
movimento.
Nessa época das aulas em Copacabana, na Tatiana Leskova, você já tinha um trabalho
amadurecido com atores em termos de Preparação Corporal?
Quando acabou a Ópera dos três vinténs, o elenco perguntou a mim e ao Klaus se era
possível continuarmos dando aulas para eles. O Klauss disse que não poderia dar aulas de
Expressão Corporal porque estava trabalhando na Escola do Teatro Municipal, mas que eles
iriam ficar comigo.
Você considera que a década de oitenta é um momento em que seu trabalho com atores está
suficientemente maduro? Você elegeria um espetáculo que pudesse ser considerado um
marco deste amadurecimento?
Eu já tinha trabalhado com atores, desde Belo Horizonte. Mas acho que a década de
oitenta foi de fato um momento em que meu trabalho estava bem amadurecido.
No Teatro dos Quatro. Mas antes no Teatro Ipanema eu fiz A China é Azul, com o
Wilker. O Klauss estava ocupado e pediu que eu fizesse a Preparação Corporal da peça. O
Wilker me chamava de general. Ele achava que o Klaus tinha uma docilidade e que eu era
severa. Eu dizia pra ele: Eu não perco o meu tempo. Eu quero que você aprenda logo.
Sim, um conjunto... O trabalho com o Luiz Carlos Ripper, com o Sérgio Britto... Eu
amava o Ripper. Ele me pediu que conseguisse alguém para trabalhar na Rosa Tatuada.
Queria uma atriz que fizesse uma das vizinhas da Rosa, que fosse uma espécie de bruxa. Uma
bruxa que deveria conviver com um bode. Ele tentou levar um bode de verdade, mas fedia
muito. Então ele me deu uma máscara de bode para trabalhar, como se o bode vivesse perto
de mim.
139
Acabou não entrando. Mas o Ripper queria a vizinha o tempo inteiro em cena. Então
quando ele me pediu que fizesse o espetáculo... Eu me disse: Então eu vou experimentar o
meu trabalho, aquilo que eu faço com os alunos. Procurar ter a presença através da postura,
da verticalidade e não verticalidade. Sair do eixo e voltar ao eixo. A percepção do topo da
cabeça além do teto, encontrando as oposições. Trabalhei, para encontrar a personagem, a
possibilidade de estar no eixo, sair do eixo e os apoios. Era muito bom trabalhar com o
Ripper. Quando começamos os ensaios, a única coisa que ele falou é que eu não poderia
entrar na casa da Rosa. Ele disse que eu poderia subir na árvore, fazer muitas coisas... Ele
disse que eu fazia muitas coisas com os atores, e agora queria que eu fizesse. Eu me disse:
Angel você se concentra, procura o eixo, e quando você achar que não deve ter o eixo, você
sai dele. Toma outra forma do corpo. Eu disse: eu vou trabalhar com o que eu dou nas
minhas aulas. Em minhas aulas eu trabalho a percepção dos sentidos, a percepção espacial, os
esforços. O que eu queria mostrar era a verticalidade bem presente. Enquanto meu pé estava
sentindo além do chão, minha cabeça estava sentindo além do teto.
A primeira coisa que eu fiz foi entrar na casa da Rosa, que ele havia me pedido para
não entrar. Ele não queria isso, mas eu fui pela curiosidade. E pra ele foi bom. Era uma
curiosidade para saber quem era a Rosa tatuada. Por que todo mundo tinha medo dela? O
Ripper não queria que eu saísse de cena nem um minuto. Em muitos momentos eu ficava
sentada, na beira do palco, ouvindo o que a Rosa falava. E fiz uma experiência. Deixar que a
vibração da palavra, entrasse pelo meu ouvido e me projetasse este movimento interno,
através da audição. Eu comecei a sentir a vibração da voz da Rosa. E me disse: se eu ficar
aqui nesse local, eu ouço bem a voz dela, sinto a vibração, sei a hora que eu tenho que
entrar. É uma maneira de eu já estar dentro. Usando isso eu saía e entrava diversas vezes, na
peça. Eu fiquei usando só a energia do corpo. Então eu percebi que existe energia de verdade.
Corpo pra mim é energia. A energia tem vida própria. Nosso corpo é energético.
Energia pulsa. Energia é uma pulsação. Sabe como é que eu sinto energia também? Quando a
música bate no corpo, a vibração sonora ajuda você a perceber a sua própria energia também.
140
Tem música que bate nas pernas, tem música que bate em outra parte. Principalmente o
atabaque, que é percussão.
Você fala muito que seu trabalho está apoiado nas articulações, na pele e na visão... E a
relação com a audição?
O meu trabalho não está só apoiado nas articulações, na pele e na visão. Teve uma
época que eu fazia muitos trabalhos com o paladar, o olfato... Então eu comecei a perceber
como era legal trabalhar com a percepção dos sentidos. A sensibilidade. Sentir o cheiro, o
paladar... O paladar tem muito a ver com a língua e a cavidade bucal. Isso é uma coisa que eu
trabalhei muito.
Eu vim da música, das artes plásticas, do teatro e da dança. Isso foi muito importante.
Eu não sabia qual eu queria mais. Eu gostava de tudo. Mas eu tinha que escolher. Eu gostava
da música, queria ser uma grande pianista. Eu gostava de escultura, queria ser uma grande
escultora.
Eu expus em Belo Horizonte no Salão de Belas Artes. Eu ainda era estudante e ganhei
o primeiro lugar da crítica, que me considerou uma grande acadêmica. Estavam já me
colocando fazendo parte do academicismo. Eu contei essa história quando fui receber o
notório saber na Bahia.
141
Eu trabalhei no Conservatório por dez anos. Eu trabalhava muito com linhas retas e
curvas, na parte rítmica. Eu vim da música. Caíque Botkay2 foi meu aluno. Eu ficava com um
mesmo grupo por três anos. Em 1975, quando abri minha primeira escola, eu ainda estava no
Conservatório. Eu trabalhava com linhas retas e curvas por causa do meu aluno cego. Eu
trabalhava também deslocamentos explorando os compassos. Pedia para os alunos andarem
de frente, numa linha reta, depois virando para o lado direito, novamente de frente, virando
para o lado esquerdo. Para desenvolver no corpo deles, a noção da tridimensionalidade. Os
giros também trabalham a tridimensionalidade. Você dá uma volta no seu próprio eixo. Eu ia
criando. Eu pensei: o que eu vou fazer para meu aluno cego andar reto? Eu disse para ele:
quando você der o primeiro passo, você coloca o seu pé no meio do seu corpo. E assim você
vai fazendo com cada passo, sempre colocando o pé no meio do corpo. Anda pensando
sempre no centro do seu corpo. Eu estava na frente dele e quando olhei para trás e vi o grupo,
ele era o único que estava andando reto. A linha reta dele era perfeita. E como eu queria
trabalhar o movimento, então eu primeiro trabalhei linhas retas, depois linhas curvas,
sinuosas, formas geométricas: círculos, quadrados, triângulos... Se você tem a geometria no
corpo, pode trabalhar isso na locomoção. Eu gosto muito do quadrado. Pedia para os alunos
trabalharem deslocamentos nas linhas do quadrado. Sem sair da linha. Misturava também as
figuras. Quadrado com círculo. A gente não riscava nada no chão. Eu dava um quadrado, por
exemplo. Um lado do quadrado deveria ser feito com uma locomoção simples. O outro com
mudanças de direção e saltos. Eles podiam repetir na terceira linha o que haviam feito na
primeira, e na quarta linha aquilo que fizeram na segunda. Depois, um dos vértices do
quadrado podia tocar num círculo. E eles iam criando, sem perder a linha.
Mas primeiro eu começo só com linhas retas no espaço. Peço 8 tempos andando numa
linha reta, 4 tempos em outra, 2 em outra, sempre mudando de direção. Pedia para que eles
observassem os espaços entre eles para não se trombarem. Com um aluno cego, eu tinha que
criar, criar...
2
Diretor musical e compositor, formado pelo Conservatório Brasileiro de Música em 1975.
142
É muito interessante, que mesmo que os olhos de um cego não consigam enxergar, eles
fazem movimentos para equilibrar a movimentação do corpo.
A relação com a escultura deve ter ajudado muito você a entender melhor o corpo não?
Sim. Além da Escola de Belas Artes eu conheci uma escultora chamada Jane Milde. Ela era
belga, e foi contratada pela polícia de Belo Horizonte para fazer retratos falados de assassinos.
Ela fazia o desenho e depois a máscara da pessoa. Eu sabia que ela era uma grande escultora.
Quando eu soube disso, eu pensei: ela deve entender muito do corpo humano, de toda a parte
anatômica. Eu já estava na Escola de Belas Artes quando fui estudar com ela. A Jane Milde
me deu um conhecimento anatômico muito especial. Eu adorava. Eu fiquei muito afeita para
trabalhar essa parte anatômica verdadeiramente, o volume, tamanhos, as proporções todas
bem claras. Já era uma forma de interdisciplinaridade. Eu estudei música, artes plásticas,
dança e o teatro. Uma coisa levava a outra.
A música lhe dava o tempo, a escultura o espaço. Isso lhe ajudou a conceber uma visão de
corpo. Você acha que faz sentido?
Faz. E depois com as crianças eu fui perceber o tocar. O toque dos dedos da criança, quando
ela segura a mão da mãe, ou da amiga, ou de qualquer pessoa, é muito interessante. Porque
não é um toque de força, é um toque vital. Existe a força vital.
Às vezes parece que dar aula para crianças é como se a criança fosse idiota, que ela não sabe
nada. Eu dava coisas fantásticas nas minhas aulas para crianças e elas percebiam tudo. É o
jeito de falar, o jeito de se colocar. Minha relação com as crianças influenciou na questão dos
Jogos, mas eu não falo Jogos Corporais somente no sentido lúdico. Minha intenção não é só
falar que é pra rir, pra brincar, pra divertir. O corpo precisa de alegria mesmo. Mas você tem
que trabalhar com seriedade, buscando a percepção das sensações, porque sem elas você não
percebe o corpo. As sensações são dicas para você perceber o que você sente em relação e
143
esse corpo. E às vezes você pode não ter sensações, nem agradáveis nem desagradáveis. Isso
acontece.
Você fala muito do eixo vertical no seu trabalho, da importância desta linha para o corpo
humano. Como você vê a relação desse eixo com os eixos horizontais que atravessam o
corpo?
O trabalho sobre a verticalidade lhe dá noção de oposições. Desta forma é mais fácil você
encontrar outros eixos. Tanto o anterior, quanto o posterior e os laterais. A verticalidade te
conduz naturalmente a isso. O corpo é tridimensional.
Tudo que eu faço com a dança eu faço com atores. Para eles entenderem a
tridimensionalidade é sempre bom falar de eixo.
Eu faço muitos jogos. O Jogo Corporal. Uso muito a palavra, o som. Trabalho som e
movimento. Trabalho muito pela percepção. Sentir no próprio corpo é perceber tudo. Até o
intelecto. Porque corpo e movimento caminham juntos. Sem pensamento não existe
movimento. Sem movimento não existe pensamento.
Fala um pouco dos trabalhos que você faz com voz e movimento.
Eu peço para os alunos andarem. Depois falam uma frase andando. Peço que parem e falem a
frase parados. Eu não indico quem vai falar. Um fala, depois o outro e assim vai. Então eu
vou trabalhando locomoções e às vezes acaba virando um espetáculo. São Jogos Corporais.
Tem outro trabalho que eu chamo de “contra e a favor”. Formo duplas de alunos e eles
começam a discutir um tema. Se eles começam a falar de teatro, um vai colocar o teatro nas
alturas, o outro vai falar tudo ao contrário. Um diz: eu amo o teatro, e o outro: eu detesto o
teatro. E de repente eu peço que troquem de ponto de vista. É um jogo ótimo, mexe muito
com o tônus.
144
Você busca muito a integração dos saberes. Por isso eu acho que seu trabalho dialoga com
princípios da Teoria da Complexidade de Edgar Morin.
No seu trabalho uma coisa que chama muito a atenção é a constante busca da boa
quantidade de força para realizar um movimento.
Sim. Peço que os alunos observem detalhes do espaço, para depois perceberem a totalidade do
mesmo.
145
Trabalho muito o contato com os objetos (parede, chão, bola, papel), antes dos alunos se
tocarem.
Levava!
Você apontaria algum ator ou atriz que tenha demonstrado com maior evidência a relação
com seu trabalho?
Muitos foram os atores que perceberam o trabalho e continuam percebendo. Mas a Yara
(Amaral) era especial.
Eu preparava o corpo. Trabalhava as articulações dela. No chão, em pé. Botava pra andar,
espreguiçar, sentar, levantar. Yara era muito disciplinada. Ela não queria parar de trabalhar. Já
tinha trabalhado, percebido, visto... Eu dizia: Yara, chega, está ótimo. E ela respondia: Não,
ainda falta isso, aquilo...
Às vezes. Não era sempre não. Primeiro era o corpo que me interessava.
146
Nas peças ela fazia. Ela era algo superior. Eu dizia para ela: Projeta o movimento como você
projeta a voz... E ela entendia. Parecia que o movimento dela chegava onde ela queria. Eu me
comovia com o que ela fazia.
ANEXO C – DVD
164
ANEXO D - ENTREVISTAS
Duda Maia
Quando eu tinha catorze anos, meu pai morava em Londres. Então eu fui para lá,
passar um tempo. O ensino na Inglaterra nessa época era muito interessante. Minha escola
tinha um convênio com o The Place, que tinha uma turma destinada aos alunos das escolas
públicas. O The Place fazia uma audição com todos os alunos dessas escolas e escolhia os
melhores. Eu fui uma das duas pessoas que passou na minha escola. No The Place, eu me
lembro de um trabalho que a gente fez. Fomos na Tate Galery ver os quadros. Podíamos
escolher o que era mais forte para nós, e fazer alguma coisa a partir do que fosse escolhido.
Eu fiz um trabalho baseado no Matisse cego. Uma colagem. Outro trabalho foi assistir a um
espetáculo e fazer uma crítica, ou uma análise. Escrever sobre uma sensação sua. Foi muito
legal ver a dança com um olhar que não fosse só técnico, ou só físico, mas como um
pensamento. Não que eu ache que quando você está fazendo uma aula de balé você não está
pensando. Mas mais como um criador e não só como alguém que está procurando aprender
uma técnica.
Então, eu voltei para Recife, larguei o balé e entrei numa escola chamada Contato, que
tinha como matéria facultativa, dança contemporânea. No terceiro ano do segundo grau eu fiz
vestibular para artes cênicas e passei.
166
Eu fiz Educação Artística, com especialização em artes cênicas porque era o que tinha
em Recife na época. Cheguei a cursar dois semestres de artes cênicas, enquanto participava do
grupo de dança da Paula Costa Rego, que pesquisava a dança popular. No grupo da Paula
ninguém quis seguir o caminho das artes. Então ela foi para a Bahia e eu vim para o Rio. Eu
bati na porta da Angel para fazer um curso livre, fui fazer aula com a Lúcia Aratanha. Eu nem
sabia que tinha curso de formação ali dentro. A Lúcia disse que eu devia fazer o Curso
Técnico, e eu entrei. O teatro veio também com a Lúcia. A Lúcia era Preparadora Corporal do
Kike (Enrique Diaz), época de A bao a qu, um lance de dados. Eu achava muito difícil aquilo.
Não tinha planos de fazer Preparação.
Porque, como ainda acho, para trabalhar com Preparação Corporal você tem que ter
um conhecimento de teatro que eu não tinha. Eu não sabia como começar. Para mim era
muito mais fácil dar uma aula de dança.
Eu acho que a pessoa que trabalha com o corpo do ator, mais do que ser um bom
entendedor do movimento, ele tem que ser um bom psicólogo. Porque um bailarino quando
entra numa sala de aula, ele já sabe que vão mexer com o corpo dele. Quando você pega
atores que têm disponibilidade corporal é muito mais fácil. Mas às vezes você pega um elenco
de sete pessoas, onde tem uma que faz circo, outra faz ginástica vinte quatro horas por dia,
outra faz yoga, e uma pessoa que está com uma hérnia e não pode se mexer. Então, como é
que você organiza um trabalho? Eu sempre fui muito dura dando aula e eu tive que ficar um
pouco mais doce, para fazer esse trabalho de Preparação Corporal. Ator é um bicho vaidoso.
Se ele confia em você, você pode pedir qualquer coisa, que mesmo com a hérnia ele vai fazer.
Bailarino às vezes está mancando, mas faz. Eu tento deixar os atores na minha mão. Na
primeira aula eu não coloco no chão ou peço um monte de abdominais. Faço uma aula onde
as pessoas se sentem dançando e faço muitos elogios. Tento fazer com que elas sintam prazer
em se mexer, que elas confiem no que eu falo para elas.
167
Na especificidade da relação com um ator, você tem que convencê-lo que o trabalho
de corpo é importante, porque nem todo mundo tem essa disponibilidade. Eu sou mais
chamada para trabalhar via atores do que via diretores. Os atores me querem mais do que os
diretores.
Varia muito. Eu acho que esta relação com o diretor é um casamento. É um namoro. É
uma relação séria. Eu acho que tem que ter uma cumplicidade, uma confiança. Se o diretor
duvida do trabalho do Preparador, ou se o Preparador duvida do trabalho do diretor, a chance
do trabalho ser ruim é enorme. E no final das contas vai ser mais frustrante para você, porque
você não está assinando o trabalho. Você não pode bater o pé e peitar que você quer aquilo.
Mas claro que você pode discutir. Eu tive sorte de fazer grandes parceiros. Ensina-me a viver,
com o João Falcão, foi um trabalho tipo: um levanta e o outro corta. Às vezes ele ficava dois,
três dias escrevendo, e eu fazendo as coisas que ele me pedia, e raramente ele fazia uma
mudança radical. Geralmente ele fazia do jeito dele, mas seguindo linhas que havíamos
pensado juntos.
Como era? Você dava aulas para a Glória Menezes e para o Arlindo?
Não! Não cheguei a dar aulas para eles. A peça tem quatro atores e cinco outros que
fazem uma espécie de contra-regragem. Toda vez que acaba uma cena, tem uma transição
para mudar um cenário, para começar outra cena. Por exemplo: tira uma mesa, coloca uma
cadeira, acerta uma bandeja, entrega um copo. Todas essas cenas eram coreografadas.
E você deve ter trabalhado não só a coreografia, mas também o sentido dessas marcações.
Claro! Mas isso é uma coisa que o João dirige muito bem. O João é muito
coreográfico. Eu acho que ele não precisa de mim, nem de ninguém. Ele precisa porque ele
não dá conta da quantidade de coisas para fazer.
168
Ele é... mas eu tenho mais técnica do que ele. Às vezes eu me perco nessa trajetória
com o João Falcão, sem saber o que eu fiz, o que ele fez, o que fizemos juntos. Eu virei
assistente dele. Isso é outra coisa que, durante muito tempo, me deu um “tesão” muito grande,
mas que hoje em dia não sei se eu aconselho. Eu acho que a demanda da assistência de
direção é tão grande, que você não faz um bom trabalho de corpo. O Preparador Corporal
trabalha com o olho, e quando a gente faz assistência, grande parte do tempo a gente está
anotando. Eu fazia as duas coisas com o João e com várias pessoas. Fiz isso para o Aderbal
(Freire Filho), para o Marcelo Mello, para o João das Neves, para o André Paes Leme. Várias
coisas de corpo, nesses trabalhos, eu resolvi depois da estreia. Eu cobrava do cenário, eu
cobrava do figurino, eu cobrava da luz, eu fazia ponte com a produção, eu cobrava do João
(Falcão) para terminar o texto, mas não cobrava de mim mesma como Preparadora. Quem
cobrava de mim era o João. Por exemplo, o Dhrama, eu acho que foi o melhor trabalho que eu
fiz com o João, pensando na direção de movimento especificamente. Quando o João me
chamou, ele tinha uma pessoa para fazer assistência, que era o Luis Estelita, que foi quem
convidou o João para fazer o Dhrama, baseado no Baghava Gita. O João me chamou para dar
aula para o elenco, que era o Osvaldo Mil e a Aline Moraes. Ele me chamou para isso. Então
combinei com João de fazer um trabalho com eles para conhecer os corpos dos atores, e que
ele não precisava ir. Isso é uma coisa muito minha e dele. Ah! Hoje você não precisa ir não!
Ele sempre me deu muita liberdade de ficar quieta com os atores. Porque às vezes é ruim,
quando tem quinze pessoas na sua frente e o diretor diz: faz aí! E fica olhando atrás. Por mais
experiência que eu tenha, eu gosto de dizer: Não, não, sai daqui! Eu não quero ninguém. Eu
quero só os atores comigo numa sala. Eu produzo melhor. Então eu comecei a trabalhar com
os atores, fazendo uma improvisação que era uma bobagem. Eu disse gruda a mão e vê todas
as possibilidades que vocês têm de mexer, sem se separar. E aí eles começaram a fazer umas
coisas lindas. E o João insistindo: eu quero cada um de um lado, talvez sentados numa
cadeira. Era uma peça que não ia ter movimento nenhum. Então eu liguei para o João e disse:
João eu descobri uma coisa muito bonita. Você me dá mais dois dias para eu mostrar? Ele
disse: Dou! Então eu continuei.
169
Exatamente. Era só para dar o aquecimento. Mas os atores foram se abrindo para as
coisas que eu estava falando. Os dois eram super disponíveis. Ela faz aula de balé. Ele anda,
corre na areia. Passei mais dois dias trabalhando com eles, sem ninguém ver. No terceiro ou
quarto dia eu mostrei para o João e disse: Você não precisa usar, mas pelo que eu conheço de
você, acho que você vai gostar. E aí ele enlouqueceu vendo os dois dançando, porque era uma
coisa de pegar, virar de cabeça para baixo. O trabalho ficou lindo. Ele foi todo coreografado.
Sim. Por exemplo... agora nessa cena o Arjuna esta atrás de Krishna, e vai falando os
textos dele procurando os espaços dela, enquanto ela faz algo lentamente. Passava umas
quatro horas numa sala de ensaio descobrindo junto com eles, falando: abre o cotovelo abaixa
a cabeça. Depois que eu montava a cena, do jeito que eu tinha combinado com o João, ele
vinha e dirigia. Às vezes mudava um movimento ou outro...
170
Trabalhando o sentido?
É! E o tom. Aquilo que ele queria que falasse parado, o que podia falar mexendo.
Botava a cena exatamente como ele queria. E aí entrava o lado da assistente. Eu dizia: Ok, vai
para a sua casa, a gente vai repetir duzentas vezes e amanhã está bom. E aí no outro dia a
gente pegava outra cena e fazia tudo de novo.
Sim
Eu falo muito que acho mais difícil fazer um trabalho de corpo do que ser um
coreógrafo com seus bailarinos. Não que eu ache que seja melhor ou pior. Mas eu acho que é
mais difícil, porque não é a partir de uma ideia sua. Quando é a partir de uma ideia sua, você
tem suas inseguranças, suas dúvidas, mas você tem que entender você. O que você quer. Mas
quando você está fazendo um trabalho de corpo, de direção de movimento, é como se você
tivesse que entrar na cabeça de alguém e olhar com o olhar dela. Não é com o seu olho. Então,
não adianta o movimento ser perfeito, você tem que entender o que aquela pessoa quer, e
fazer que o corpo ajude e não sobressaia.
171
Essa coisa é difícil. Eu peço um tempo. E digo que preciso de um ensaio para mim só
com os atores. Eu faço muita questão de não ter ninguém. Ninguém de produção, nem diretor
se possível.
E uma coisa que eu gosto muito de fazer, depois que a cena está marcada, é trabalhar
sem o texto. É trabalhar mudo. Eu trabalho muito mudo.
Qualquer cena.
Outro trabalho que eu fiz com o Aderbal foi O relicário de Rita Cristal, um show,
meio teatralizado, com a Vera Fajardo. Eu entrei no meio do processo, o Aderbal já tinha
praticamente levantado todas as cenas. Era um trabalho muito... espacial. Naquela hora você
senta, naquela hora você pega. Então, em cima de todas essas ações que o Aderbal tinha
feito, a gente foi criando minúcias, de trejeitos, de tornar aquela ação um pouco menos
cotidiana.
Sim.
172
Quem está ali do lado, fazendo esse trabalho de corpo tem que ter um olhar muito
atento para ajudar o ator a fazer o que o diretor quer. Isso para mim é o mais difícil.
No caso com o João Falcão, tenho uma parceria de anos. Mas já rolou dele dizer: faz
aí, e depois não ser nada daquilo. Ele também, às vezes, faz uma coisa e depois muda tudo.
Ele não acerta todas.
Você se sente uma tradutora? Traduzindo a linguagem de um diretor para um ator e vice-
versa?
Algum exemplo?
Às vezes com o próprio João (Falcão) já aconteceu isso algumas vezes. Mas alguns
diretores têm medo que o Preparador Corporal possa destruir uma linha que vinha sendo
construída. No trabalho de voz eu já vi ator que sai da preparação vocal com a voz mais
empostada. Eu tento ser muito respeitosa ao que o diretor quer. Comigo já aconteceu de ver
na cara do João que ele não tinha gostado e eu falei, Vamos mudar. Você não gostou. Vamos
jogar essa ideia fora e pensar em outra? Deve ser difícil para um diretor deixar alguém
trabalhando com um elenco cinco horas e depois dizer: Não é nada disso!
173
Eu vejo forte sempre. A questão de você ser um bom professor, e eu sempre gostei
muito disso, te dá uma clareza no falar. Quando você vai explicar alguma coisa. Professor
explica.
O exemplo da Luana. Que encontrou um estado muscular pelo fato de brincar sem
parar de bola com uma criança. Porque a criança é incansável e a gente cansa. Eu dizia: então
vai, propõe outra coisa, não para... Senão vai ficar chato e ele vai desistir de brincar com
você. A criança tem isso, você tem que virar quinze coisas, porque se ficar uma coisa só, ela
quer fazer outra. A Luana no Pequeno príncipe foi um exemplo disso.
No momento, mais nas aulas que tenho dado. Sentindo a estrutura óssea antes de
qualquer coisa. E sentir que você dobra. E perceber que é por causa dessa dobra que você
pode criar uma postura que não seja estereotipada. Porque se você muda uma coisa mínima na
sua estrutura óssea você vai andar diferente. Seu andar vai ser outro, mesmo que isso não seja
tão perceptível. A partir de uma mudança da sua estrutura óssea você entra numa nova
postura, que não é a sua postura natural. Eu posso começar pedindo que as pessoas andem
prestando atenção em como elas caminham. Peço que parem e modifiquem um pouco a
estrutura óssea, por exemplo, colocar o púbis um pouco mais na direção do umbigo. E peço
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que voltem a andar percebendo as diferenças. Peço para parar de novo, voltar à postura
natural e andar. Parar novamente e fazer outra mudança. Por exemplo, descer um pouco a
escápula direita. Voltar a andar.
Sim! Se você mudou sua bacia de lugar é como se ela naturalmente fosse assim. Então
vai se criar uma nova postura e consequentemente um novo andar. Não porque você está
querendo fazer um trejeito, mas porque organizou a estrutura óssea de outra forma. Se a
postura muda, o modo de se movimentar muda. Esse é um trabalho que eu faço muito. A
partir disso, o que eu faço é sugerir que brinquem com essa estrutura origami, que é tudo que
dobra e desdobra no seu corpo. Entender que quanto mais você dobra mais formas você tem.
A gente trabalha com forma, a gente trabalha com estética. Então se você dobra pouco você
tem algumas formas, quanto mais você dobra, mais formas você tem. Só tem movimento
porque você tem a dobra, porque você é capaz de ser esse origami. Onde não tem dobra não
tem mudança. Você nunca vai poder fazer uma forma diferente com o meio do seu antebraço,
mas com o seu pulso você pode fazer várias, porque ele mexe. Então é descobrir onde tem
movimento no corpo. Eu tento fazer que a pessoa pesquise e encontre um lugar que para ela
seja estranho, um lugar que ela não frequenta.
Nessa pesquisa com as dobras, você sugere que o aluno/ator fique num lugar estranho?
Mas que também é bom de estar. Geralmente as pessoas ficam muito tortas nesse
trabalho. A partir daí, dependendo do grupo, eu chego à musculatura. Como é que a sua
musculatura está respondendo? Prende a musculatura! Solta a musculatura! Às vezes eu
entro em coisas específicas. Posso pedir que a partir desse trabalho articular e muscular se
trabalhe alguma característica forte de uma personagem. Por exemplo, no caso de um velho
com uma bengala, não me interessa a bengala, mas eu quero ver o velho. Achar essa
humanidade não por uma voz, mas pela musculatura. Se você acha a musculatura, vem a voz,
vem o corpo. A minha linha de trabalho tem sido ativar esse canal que é muscular. Eu acho
que quando você tem que fazer uma cena de paixão e a sua musculatura está relaxada, eu não
vou acreditar nunca.
175
Essa história de trabalhar com a musculatura não é uma coisa simples e demanda
tempo. Como você lida com isso?
É difícil! Por isso eu acho que estou me voltando mais para a dança. Mesmo
percebendo que meu entendimento do teatro agora é muito maior. Eu consegui fazer isso com
o João das Neves, na Farsa da boa preguiça. A gente trabalhou com boneco, mamulengo, e
ele não quis nem saber, se quer fazer... todo mundo vai fazer teatro de grupo. Então todos
tiveram que fazer oficina de mamulengo. E você vê que resulta numa linguagem.
Eu trabalhei também com o Paulo José. Foi uma experiência boa. Eu fiz a assistência
dele no Ana Cristina Cesar. A Ana Kutner me chamou. O Paulo não tem muito esse lugar do
corpo. Ele é ótimo. Muito inteligente, e tem um dom com a palavra, que para mim é
estarrecedor, eu nunca vi nada igual. E a Ana (Kutner) é muito corporal. Ficou muito na
minha mão trabalhar com ela sozinha.
E como foi essa relação como o corpo num trabalho em que a palavra ocupa um lugar tão
importante?
Nesse caso, não foi uma Preparação que apareceu tanto na cena. Foi uma coisa mais
para o processo dela, de fazer aula. A gente fez várias improvisações com ela rabiscando no
chão, na perna. O que a personagem mais fazia era escrever. Então trabalhamos muito com
essa imagem, que não foi utilizada na peça. Quando ela escrevia na peça ela de fato tinha uma
176
caneta, um papel e estava de fato escrevendo. Mas a Preparação deu algo para ela! Por isso
que eu acho que às vezes você é mais chamado pelo ator do que pelo diretor. O ator quando
sente o trabalho funcionar, ele realmente sente na pele.
Eu acho que você tem que lutar um pouco pelo nome que você quer. Como você quer
assinar. Hierarquicamente, quando você assina Preparação Corporal você está lá embaixo.
Quando você assina Direção de Movimento, você está junto do cenário, do figurino, você está
lá em cima, com um status maior.
Você acha que a Direção de movimento deixaria mais claro uma assinatura e uma
interferência maior?
É! E acho que a Preparação tem mais relação com você preparar. Deixar os atores
disponíveis. Ajeitar uma coisa ou outra. Aquela queda ali não funcionou, então você vai lá.
Mas eu geralmente assino Direção de movimento.
Depois de ver a cena do documentário ‘Le soleil même la nuit’, caso você estivesse
trabalhando como Preparadora Corporal naquela produção, o que você proporia como
estratégia para colaborar?
Ver a Juliana fazendo é muito forte. Vendo o corpo dos dois, a Juliana está muito
mais com ela quando faz o Tartufo.
Nesses trabalhos de busca de afeto eu procuro sempre propor alguma coisa que não
está ali.
O que me ocorre, na situação do ator que faz o Tartufo, quando você chega ao ponto
de se declarar para uma pessoa dizendo: eu quero você. E você está recebendo um não, é
177
porque você está perdendo alguma coisa que deseja. A primeira coisa que me ocorre é
trabalhar um sentimento de afeto entre os dois.
Sim. É uma rejeição que ele está vivendo. Se você cria uma ideia de repetição, por
exemplo, um de frente para o outro e os dois se aproximam, ele faz um gesto e ela responde a
esse gesto de uma maneira afetuosa. Algo bem físico. Ele abraça e ela dá um beijo. O que
você faz com uma pessoa que faz um carinho em você e isso é bom? Como você responde? E
quando eu, de fora, perceber que ele encontrou um afeto por essa mulher. Eu diria: Agora ela
rejeita. Ele vai abraçar, ela não deixa. Ele vai beijar, ela não quer. Ele se aproxima e ela vira
de costas. Como ele faria a cena em seguida? Como seria ter a mão dessa mulher e, de
repente, a mão dessa mulher não querer mais? Com ele vai atrás dessa mão? Eu procuraria
trabalhar o afeto, mesmo que através de situações que não são citadas na peça.
Eu tento inventar situações diferentes, que às vezes nem estão no texto. E sempre sem
usar a palavra. Às vezes eu até emendo no texto, mas quando eu sinto que a coisa está
acontecendo fisicamente.
178
Márcia Feijó
Então foi na Belas Artes que você ouviu falar do Klauss e da Angel?
Sim. Com um amigo pintor e escultor. Ele me conhecia, já tinha me visto dançar.
Sabia que eu era bailarina mesmo. Ele me levou para uma aula no Coringa. Com a Graziela
Figueroa, tudo muito bom, mas eu precisava de uma técnica. Lá era tudo muito aberto. Aí fiz
um workshop do Klauss, que foi fundamental. Doeu muito! Aí eu fiquei curiosa. Eu me disse:
Meu Deus, eu acredito no ele está falando, mas meu corpo está doendo muito. Meu corpo
estava en dehors, e ele me colocou en dedan, muito mais alongada. Então eu fui para a Escola
da Angel. Fiz o Técnico e conheci as pessoas que me mudaram completamente: Lúcia
Aratanha, Paula Nestorov e Luciana Bicalho. As três pessoas que me apontaram uma
corporeidade diferente. Tudo mudou. Meu mundo já era da arte. Eu vim da pintura. Meus pais
são pintores. A questão plástica era muito forte em mim. Aquela mudança de código do
movimento é que mudou a minha visão de mundo. Eu comecei a dar aula de balé para
crianças aos dezesseis anos. Eu dei aula de balé por vinte anos, até eu dizer: não quero mais
dar aula de balé clássico. E acho que o jeito que se ensina balé clássico é o pior possível. Por
isso eu tentei fazer tudo diferente. E para mim chegaram todos os patinhos feios da cidade.
Aqueles que não se encaixavam na Dalal Aschcar, ou nos outros balés, apareciam na minha
porta querendo dançar. E dançavam. Montei O lago dos Cisnes, Copélia, todos. E dançando
as novidades que a gente tinha na escola, o pensamento contemporâneo, a dança
contemporânea.
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Mas como eu sempre fui muito observadora, me convidavam para fazer Direção de
movimento, sem ter esse nome.
Eu parei a Belas Artes e fiz uma exposição. Era uma exposição de gravuras, na PUC.
E ela foi toda assim: Bacia, sacro, atlas e axis... E eu disse: Meu Deus! Só isso está na minha
cabeça agora. Essa foi a última exposição que eu fiz. Era uma coletiva e a minha parte ficou
assim.
As Belas Artes, a questão visual, foram fundamentais para sua compreensão de corpo e
movimento. Angel também passou por isso...
Ela fez com as mãos, muitas esculturas. E eu também esculpi muito. A mimese para
mim como professora ou diretora de alguma coisa, não é meu foco. Eu preciso que o
aluno/ator faça, e então descubra. Quando ele descobre alguma coisa, ele começa a dialogar
comigo. Ah! Eu sinto tal e tal coisa, e aí vai. Eu posso mostrar algum movimento. Foi como
eu aprendi. No balé ninguém experimenta. Tem que fazer igual. A professora manda, e aquilo
me cansou ao extremo. Quando eu descobri na Angel que eu podia ter um jeito próprio, eu
comecei a assinar meus movimentos. Eu sou dona deles. Não posso mais com uma doutrina
datada, estrangeira, num país corporal, tropical. A corporeidade brasileira sempre me
chamou muito a atenção. Eu deixei a escola do Teatro Municipal e fui para a Angel. Por isso
cheguei lá de colant e malha. Eu já estava parada, fiquei seis meses parada. Nesse tempo eu
180
fiz capoeira, jiu-jitsu. Coisas que eram o extremo oposto da dança, mas uma experiência de
vigor. Eu fiz dança de salão, vários estilos. Passei para outros campos da corporeidade, mais
populares. Lá na Angel voltei a fazer o clássico de outra forma, com a Vera Andrade. E como
ela tinha percebido que eu gostava daquilo, que eu estava aprendendo a refazer aquilo de
outra forma, eu assumi muitas turmas dela. E tive que montar muitos espetáculos com
crianças.
O que, de toda essa sua diversificada experiência, você considera que existe de singular na
sua relação com os atores?
Isso! Agora! Porque você está diferente de ontem, da semana passada. E a gente
começa a colocar os afetos da personagem no corpo já tranquilo. Muitos atores que eu pego,
fazem trabalhos corporais. Fazem Yoga, uma malhação. Têm até uma tonicidade latente, que
facilita. Um ator “paradão” pode até ser bom se ele tem disponibilidade. Atores que não têm
disponibilidade são os ansiosos. Os mais jovens também. Eles trazem um “que” televisivo,
que corrói um pouco. Uma coisa na respiração. Eu falo: observa a respiração, o esqueleto,
sua musculatura.
tinta e de traço? A pessoa tranquila, se vendo, colocando então nuances posturais. São os
rascunhos.
O rascunho. Bom... Você tem uma postura natural. Nesse ponto a técnica de
Alexander me ajudou muito, porque ela mostra o que é uma neutralidade. O Pilates mostra o
que é uma coluna neutra. Trabalhos que me deram isso, então eu posso ver isso no outro.
Você vai fazer um homem muito mau. De onde vai sair essa maldade? E aí a gente vai
fazendo esse rascunho. É importantíssimo o ator se ver. E também se ver personagem.
Os desequilíbrios tônicos!
Isso! Quando o ator está afrontado na ação... Esses laboratórios, que para mim são os
rascunhos, eu adoro. São fundamentais. Por isso eu repito muito. Às vezes os trabalhos são
curtos, mas têm ecos grandes. Eu evito falar muito. Eu falo pouco e baixo. Raramente eu
grito. E como eu não falo muito eu tenho que exercitar a palavra.
De onde sai essa raiva que ele tem? Como ele faz isso? O corpo que luta, é assim? É
assado? A pessoa vai colocando. Então eu falo: Não, vamos tentar outra coisa. Vamos fazer
de outro jeito. Aí eu boto obstáculos nas pessoas, para elas irem incorporando outros modos
de fazer.
Eu estava trabalhando com uma atriz, que era um amor, e ela tinha que fazer uma
personagem bipolar, depressiva e drogada. O tipo de droga, o diretor deixou livre. Podia ser
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uma bola, cocaína, podia ser tudo misturado com bebida alcoólica. Como é que é isso? Então
vamos ver o que é cada um. Isso era cinema. A gente podia fazer, desfazer, mas tínhamos
poucas horas de filmagem, e devíamos ser certeiros. Então eu pensei: o dano é tamanho... não
tem equilíbrio. Eu disse para a atriz: eu vou amarrar um braço numa perna, para você chegar
do outro lado. A marca é essa. Você sai daqui e vai para lá. O exercício de amarrar o braço
na perna foi um obstáculo.
Sim. Na hora de filmar não tinha nada amarrado, mas aquilo estava inscrito na
experiência. E aquilo apareceu. As articulações presas e o deslocamento com dificuldade.
Vendo a pessoa não amarrada você se pergunta: de onde vem esse desequilíbrio? Isso me veio
porque na escola da Angel a gente trabalha com extrema criatividade. A gente tinha que ser
criativo corporalmente. Todos os dias.
Tudo isso, tanto para o ator como para o cantor, implica numa ética impressionante. O
respeito ao movimento, ao corpo e ao que se está fazendo. Além de ser arte, é do trato
humano, ético.
Você está falando de coisas que mostram como os ensaios são intensos. Você também fica
mobilizada nesse período?
Sim! Penso no projeto o tempo inteiro, até dormindo. De saber o texto todo. De ter
insight. De acordar e ter que escrever de madrugada. Ah! Achei um negócio! Eu vou propor
isso! É tudo muito intenso.
Juntando com o que a gente aprendeu na Angel. Toda a experiência interna que ela nos
propõe, não pode passar em vão pela gente. A gente codificou isso. Se a gente esta fazendo
uma aula com a Angel, numa experiência intensa com o corpo interno, a gente está ali
nominando aquela experiência de sensações.
eu tive que buscar em mim, nas vísceras, no movimento interno, no deslizamento ósseo, uma
questão mental. E aí eu jogo essa imagem para o ator e vejo como é o caminho dentro dele. Só
concebo falar isso agora, porque eu tive uma intensa vivência do corpo interno, por causa da
Angel. Por isso eu pude entender de onde pode sair uma tristeza, um riso. Por que vai gritar?
Por que vai botar o peito para frente ou as costas para trás. Como desequilibrar a pessoa? O
susto vai bater onde? A reação rápida vem de onde? Porque eu nominei isso tudo para mim, e
fui colocar tudo isso agora, no gesto daquela personagem. E isso é Preparação Corporal só?
Ou isso já é uma Direção de movimento? Porque preparar corporalmente: Vamos lá! É um, é
dois, é três e foi! Eu não faço isso.
É básico para mim, no momento dessa alta intensidade. Eu tenho uns mergulhos tão
profundos que eu esqueço a hora. Claro que a gente dá uma respirada final, recupera o eixo,
mas resíduos ficam. É aí que eu digo que tem que fechar. Quem é você, quem sou eu, onde
estamos...
Tive peças difíceis, porque a opção do diretor era extremamente contrária a minha.
Então eu tinha que estar muito segura de mim. Por isso que eu falo que essa forte ética do
trabalho é muito séria para mim. O gesto tem que ser necessário, preenchido, para ele ter
realidade. Plateia, público não é idiota. Se a proposta é fazer palhaço, então vamos fazer
palhaços. Mesmo o palhaço para mim tem uma extrema densidade. Eu fui fazer curso de
palhaço para saber isso.
E além da Conscientização do Movimento, o que você usa para que um ator compreenda a
necessidade de um gesto?
É o laboratório. Mas eu tenho outro recurso. Eu filmo o ator. Peço que ele se veja. E aí
ele às vezes fica chocado. Eu digo: Olha só, essa coisa aqui não me convenceu. Isso não está
bom. Tem coisa demais, está meio nervoso, não entendi o que você falou, tem que ter clareza.
Clareza fonética, que é muito difícil de encontrar no jovem ator. Esse recurso de filmar a
pessoa eu faço sempre individualmente. Mostro só para ele e converso. Muitas vezes eu filmo
quando é cinema, que a gente vai fazer os planos. Não importa onde está a câmera, eu tenho
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que sentir verdade em todos os ângulos, mesmo que a cena seja de perfil. Isso é projeção. É
treinado, montado. Treinado à exaustão.
Num elenco, muitos detalhes acontecem com cada um. Cada um que vai criando uma
atmosfera gestual, postural. Se for uma coreografia, eu vejo do fundo, da frente, de todos os
ângulos.
Já! Mesmo que eu esteja trabalhando numa salinha, sempre peço que os atores
projetem seus movimentos. O movimento não acaba nas extremidades do corpo. Se você dava
dois passos e agora dá dez, como você vai respirar? E a fala? Se ela durava dois passos agora
vai durar dez! Como vai trabalhar as pausas? Na limpeza dos movimentos a pausa é
fundamental, as pausas naturais, sinestésicas.
As pausas são momentos difíceis. Assim como as transições. Lugares onde o ator pode
muito facilmente perder energia.
Perde energia e perde o texto às vezes. Tropeça. Erros acontecem nas transições. Por
isso elas devem ser ensaiadas. Até mesmo mudanças por trás do cenário eu ensaio. O ator vai
passar pela coxia no escuro, qual a postura? A cena não é só o que está de frente não. Ela está
dos lados, ela é inteira. Entra com uma coisa na mão, sem coisa na mão. Falando de frente,
falando de costas, como é que entra? Como é que sai?
Mas isso não é o elemento do nosso trabalho? Isso não é o fundamento do gesto do
ator em cena? Que é visto tridimensionalmente. E a plateia captura todos os aspectos que ele
está expondo. O ator no teatro é o ser mais exposto. Por isso eu digo: Purifica, não excede.
Cinema então... nem pensar. Não pode exceder nada. Porque é uma tela imensa, e você vai
185
botar uma fala, um piscar, aí sujou tudo. Tem que ser muito menor. Um close de cinema é
uma coisa gigante. Teve treino que eu fiz de piscar o olho. E eu nem sabia de que lado estava
a câmera. Então, do ângulo que vier é real.
E você saberia dar um exemplo de algum trabalho seu, como Preparadora, que tenha
contribuído para a construção de linguagem de um espetáculo?
Os espetáculos em que eu acho que não chego neste lugar da linguagem são os que
ficam na minha memória. São os elementos das minhas tentativas futuras. Os espetáculos
bons, tudo bem. Mas os ruins, que eu digo: não foi. São os que ficam.
O termo Preparador Corporal exige certo cuidado, porque ele pode dar uma ideia de que
apenas os aspectos mecânicos do movimento estão em jogo. A funcionalidade do gesto, ou
noções que poderiam estar vinculadas apenas á noção de esquema corporal. Mas não
podemos esquecer que a noção de esquema e imagem corporal estão imbricadas.
O gesto tem que ser necessário, tem que ter conteúdo e ser preenchido. Não pode ficar
um monte de rabisco no vazio, porque suja. O pintor sabe que o azul é pleno, o amarelo é
pleno, o vermelho é pleno. Se você vai misturar o azul, o amarelo e o vermelho, vai dar nada,
um borrão, marrom fosco. Calcular e dosar são necessários para o ator. Tem que ter nuance e
as camadas. Uma partitura... eu sempre falo partitura porque são aquelas notinhas musicais
encadeadas. São gestos encadeados. Existe a partitura do ator. Quando você faz o movimento
livre, mesmo assim existem marcas a serem cumpridas dentro daquela liberdade. Mas as
marcas têm que estar ali. Isso eu tenho que fazer com que aquele ator entenda. Monólogo
demanda horas de trabalho!
A nudez foi uma das coisas mais interessantes nesse trabalho. Eu já tive outro trabalho
com nudez, mas esse eu gostei mais.
Hoje eu digo que aquela foi uma nudez plena. Mas foi uma conquista.
Não. Foi crescendo durante a temporada. Foi crescendo sempre. Nós estamos no
quarto ano de Alma imoral. Casa cheia em qualquer estado brasileiro. São Paulo não teve um
dia que não estivesse lotado. Uma coisa incrível. E o conforto com a nudez é de uma verdade
corporal, que o sujeito esquece que ela está pelada. Uma mulher de meia idade, que não tem
esse padrão violão, chegar a esse conforto com a nudez. É uma conquista. É uma questão
muito bem resolvida. Todos os movimentos eu vi de todos os ângulos, afim de que a nudez
não fosse explícita. Eu me coloquei como platéia em todas as cadeiras.
É a questão da Proxêmica! Um conceito que vem da antropologia. Ele fala dos modos
como as pessoas ocupam e se relacionam no espaço.
Mas aquilo mudou. Nos teatros de São Paulo, todos bem maiores.
Desde o início já era sabido que ela ficaria nua, ou aconteceu no processo?
Aconteceu no processo. Ela mesma falou: Eu não visualizo meu figurino. E tínhamos
uma figurinista.
Isso a Kika. Mas estávamos fazendo um trabalho nós duas e eu disse: Clarice, vamos
usar um pano. A Clarice perguntou: Que pano? A Kika disse: Um veludo, um cetim. Eu disse:
Não! Uma malha, porque prende no corpo. Fomos comprar, lá no rio comprido, no pólo
têxtil. Compramos dois tipos. Um pesado, outro leve. O pano do ensaio foi a vestimenta
principal durante dois anos e meio. Até que furou. A gente foi cortando o pano, e decidindo.
Tem que ser maior, menor, tem que ter peso aqui, ali. Eu fazia em mim.
Vocês tiveram um trabalho muito íntimo! Você foi quase diretora também não?
Não, era o Amir Haddad. Ele fazia assim: Ah! Tira essa frase. Vamos tentar uma
outra! Ele ficava na cadeira, mas quem ficava em pé era eu. Para que a Clarice se visse,
muitas vezes eu fazia junto com ela. Um espelho.
Era um jogo? Se você mudasse algum movimento ela teria que mudar?
Não. Ela tinha que lembrar as marcas. Com mais de um ano de palco a gente ainda
continuou trabalhando. Se vamos fazer uma turnê... Eu vou lá de novo.
188
Era o seguinte. Eu dizia: Clarice, você vai jogar o pano com força, e falar com força,
e depois ficar encarando. Vamos diminuir! Fala com força. Respira, e aí joga o pano. Como
é que ficou? Na respiração você encara. A gente faz umas três vezes. Então o Amir fala: Ah!
Gostei da novidade! Vamos fazer um passadão. Então o que acontece? Ela passa direto as
marcas. Então eu vou lá e faço o movimento junto, mas ela não pode dar na pinta. Ela não
para, haja o que houver é um passadão. Raramente Clarice falou: Eu vou parar. Passadão ela
vai fazendo e colocando as novidades. E apareceram novidades durante anos.
E você acha que esta disponibilidade para continuar descobrindo novidades, durante a
temporada, tem relação com o trabalho integrado que foi feito desde o início?
Sim. Isso pelo perfil da atriz e pela abertura total da direção. Porque tem diretor que
estreou, estreou.
Você acha que o tom dos ensaios pode determinar o desenvolvimento de uma temporada?
Sim. A cada vez que eu vejo o trabalho, eu vejo novas coisas. E cada vez fica mais
profundo. Frases com entonações diferentes. Foi um laboratório imenso para mim. Como
nuances em pinturas, observar muito. Saber que aquela pintura final tem muito rascunho atrás.
Mexo. Eu faço muito isso. A pessoa tem um padrão que não condiz com a
personagem. Esse padrão é um pouco complicado. Porque é uma segurança da pessoa. Eu não
quero deixar ela insegura. Ao contrário, quero mostrar que minha intenção é potencializar.
Deixar claro que ela pode ser como é, que eu quero resguardar aquilo que ela escolheu ser. A
gente vai só expandir as capacidades. Eu uso muito essa palavra: Vamos expandir! Você vai
poder ir, voltar, ser o que desejar, realizar. Por isso que eu escolho poucos trabalhos. Tem
muitas propostas que eu não aceitei. Por que não estava no momento de dar mergulhos, ou
estava ocupada com outros projetos. Escolher é importante, atirar para todo lado não é uma
proposta minha.
É o desnudamento. Como no caso da Clarice. Ela podia estar nua e não aberta.
Claro! Como algumas “estrelas” conseguiriam chegar naquela pureza gestual? Tem
que ter o Ator. A pessoa!!! A filosofia de vida daquele ator. Isso para mim é um Mega-man!
Então variados papéis acontecem! E não tem vida fácil não. Os Mega-men enfrentam
problemas desde os financeiros até os de saúde. É Mega-man por isso! Ultrapassa tudo isso.
Tem as estrelas que estão sempre com os mesmos papéis. Sempre iguais. Respiração e pausa
igual em todo tipo de peça.
190
Não se deixam mudar! Mas eu acho muito importante o meu jeito de chegar. Eu
sempre tento me diferenciar do diretor. Meu jeito de chegar é táctil. Tem calor humano. Tem
compreensão. Meu jeito de fazer o elo é afetivo. Uma coisa que eu aprendi com a Elizabeth
Paulon: é pelo afeto. Sem Bowlby não há trabalho. Eu não dou aula, eu não trabalho, não me
relaciono...
191
Denise Stutz
Em 2002, eu comecei a fazer o View Points, com o Kike (Enrique Diaz). Isso tudo era
uma balaio de coisas, de investigação. Mesmo hoje, quando me chamam atriz, eu não me
considero atriz. Meu lugar vem da dança, mesmo quando eu atuo, mesmo que eu faça coisas
muito teatrais. Minha primeira abordagem é pelo movimento. Essa foi a minha questão
sempre. Como o meu corpo pode ir para outros lugares. Posso trabalhar com outras pessoas,
fazer uma peça, falar um texto, mas a abordagem é pelo movimento. Por isso vem o trabalho
192
de corpo com atores, a relação que eu tenho com esse tipo de trabalho, que é investigativo
também. A minha questão passa por aí. Quando me chamam, eu não tenho nenhum método. É
completamente investigativo. Mesmo que seja para montar uma peça. Tem toda uma
abordagem investigativa. A partir daí, a gente vai descobrindo como trabalhar o corpo do ator.
Muitas vezes, não é isso que o diretor me pede. Muitas vezes ele me pede para trabalhar o
movimento de cena.
Eu entro num trabalho sem saber. Sem conhecer. Eu acho que é um espaço para eu
desenvolver alguma outra coisa.
Denise, depois de ver a cena do documentário ‘Le soleil même la nuit’, você proporia
algum trabalho como Preparadora Corporal?
O que interessa ali são os estados. Eu jamais trabalharia qualquer questão passando
pela forma. Pelo estado sim. Por isso que muitos exercícios meus, passam primeiro pela
percepção. A mim interessa um corpo que está em cena percebendo.
Mas quando Mnouchkine fala que o tronco tem que inclinar mais para que o ator possa
expressar o desejo da personagem...
Essa é uma forma de falar de desejo. Como no balé clássico, se eu faço um movimento
que alonga, quer dizer isso... É forma. Eu estou falando de estado. Estado é outra coisa. Passa
pela percepção, que passa pela presença. Eu acho que o diretor tem que dar liberdade para o
ator. Como o ator vai criar? Você dá um monte de ferramentas, um monte de mecanismos, e
ele também vai atrás disso. Há interesse do ator em buscar coisas.
193
Mas se você estivesse ali na função de Preparadora? Quais os mecanismos que você
poderia propor?
Eu não trabalho muito dessa forma. A primeira coisa que eu faria seria desestruturar o
ator, mas não como ela desestrutura. Faria com que ele percebesse a si mesmo. Perceber o
próprio padrão. Quando ela fala que ele está de um jeito e não de outro... Eu me pergunto: Por
que ele tem que estar do jeito que ela propõe? E ele vai e faz a pose. A Juliana (Carneiro da
Cunha) tem uma qualidade que não é só a qualidade corporal dela. Ela vai para uma qualidade
de estado.
É muito difícil saber o que propor sem ver e entender a pessoa, como provocar a
criação dele. É deixar ele criar. Eu trabalho a partir da criação do outro. Quebrar o padrão de
uma pessoa não é deixar ela perdida, não é jogar fora o que ela sabe, é levar o que ela sabe
para outro lugar. Porque, às vezes, nesse lugar que ela conhece, ela se acomoda. Então, o que
mais, além disso? Às vezes é muito simples. Comigo o que acontece é que muitas vezes me
convidam para uma coisa que chamam Direção de movimento. Que não é trabalho de corpo.
Mas é! Você movimenta o que? Movimenta o corpo. Esse trabalho é corpo, é espaço, é tudo.
As pessoas se relacionam com tudo. É outro lugar que você entra além de trabalhar com o
ator, você trabalha com o espaço, com o movimento. Eu acho muito legal você perceber a
qualidade dos atores e trabalhar pela dificuldade. Não como a Mnouchkine faz, mas outro tipo
de dificuldade. A dificuldade de fazer o outro se perguntar também, pelo corpo. Não
racionalizar. Teatro para mim é algo muito desconhecido. Eu trabalho com outra vertente de
teatro. Mais na linha do teatro-dança.
Você poderia dar um exemplo onde você se sentiu mexendo com os padrões dos atores?
Uma vez eu fiz uma Preparação numa peça que tinha apenas um casal de atores. Na
peça a mulher era submissa, mas na vida real quem era submisso era o homem. Como você
trabalha isso no corpo? Com a força. Você pede que o homem segure a mulher, que é mais
frágil, e não a deixe escapar. Você está quebrando um padrão dele. Porque na vida ele jamais
a seguraria daquela maneira. Eu digo: Não deixa ela sair. Ele tem condição de segurar ela.
Mas na vida real, na primeira investida dela ele largaria, porque ele sempre ficou num lugar
de submissão. Pela própria condição dela como atriz e dele como ator. Ela é uma demi-
celebridade, faz um pouco de televisão. Ele é um ator que sempre “ralou”, então é quase uma
194
relação social. Isso acontece muito. A primeira reação dela é dizer: não me segure tanto.
Quando entrei eu disse: Segura e não deixa ela sair. Então ela tinha que se debater de verdade
e ele tinha que segurar ela de verdade. Ele começou a perceber que tinha força também, que
podia fazer coisas sem representar, da mesma forma que ela teria que usar a força física para
tentar sair de certas situações. Trabalhei com a realidade do corpo. O que o corpo pode
provocar.
Trabalhei também com o Grupo Piollin, da Paraíba. Aprendi muito com eles. Eu fazia
uns exercícios com o Everaldo, que é o ator mais velho, e de repente ele entrava num estado
em que o ar parecia mais denso. Eu ficava observando como ele conseguia fazer isso. Como
tudo ao redor dele ficava mais denso. Era do corpo dele que vinha isso, do movimento dele.
Eu queria perceber como o corpo dele trazia aquilo, aquela densidade.
Lento?
Não era um tempo lento pesado. Era um tempo lento leve. Que é completamente
diferente do lento pesado. Tinha também uma relação dos movimentos com o espaço. Ele
conseguia jogar o espaço do corpo para fora. Às vezes vinha o volume, e em outros momentos
espacializava o volume. Muitas vezes a gente trabalha o volume e fica sempre em volta da
gente. Ele conseguia espacializar o volume.
Tem outro trabalho que eu faço com atores. Formo duplas e peço que um dos atores se
mova livremente, enquanto o outro anota tudo que vê, sem julgamentos ou psicologismos.
Todos os padrões, o que quiser. Depois quem moveu observa e anota, enquanto aquele que
fez anotações se move. Na sequência, eles conversam um pouco e dizem tudo que observaram
sobre a movimentação do colega. Então eu peço que eles se movimentem novamente, mas
desta vez procurando movimentos e qualidades que sejam o oposto das observações feitas
pelo colega. É muito emocionante quando eles tentam limpar a movimentação, tirar o
“chantilly”. Parece que eles entram neles mesmos. Sinto que neste momento eles chegam num
195
lugar essencial de muita intensidade. Eu me emociono quando isso acontece, parece que eu
vejo a pessoa.
Depende muito do teatro e da televisão. O primeiro trabalho que eu fiz com o Luiz
Fernando Carvalho, que foi Hoje é dia de Maria (2005), eu não tive espaço para as minhas
inquietações, mas sim um espaço de aprendizado. Eu me interesso quando o Luiz fala de
enquadramento. Esse é um lugar que pode não ser o do corpo, mas me interessa por outra via.
Quando ele fala de cor, de textura, do close, tudo isso me interessa. Eu vou aprendendo. Em
Hoje é dia de Maria, trabalhamos com uns bonecos em stop motion. Construíam os bonecos e
depois fotografavam. É uma técnica de animação. Foi interessante estar ali pensando espaço e
movimento. Com o Luiz cada movimento é muito construído, tanto em Hoje é dia de Maria
como em Capitu (2008).
Todas as escolhas são políticas. O que você está fazendo e como você está fazendo. O
espaço tem um discurso, tem um pensamento.
196
Claro! E no casa da Ariane tem uma escolha política também. A escolha do poder. É a
minha escolha estética, não é sua escolha estética como ator. Ela reproduz o sistema político
do mundo. E isso é uma escolha política dela. O ator também está escolhendo. No que eu vi,
ele não tem voz. Ela pergunta se ele nunca foi paquerado. Então vai lá e mostra como você foi
paquerado. Ele poderia dizer: Fui, mas fui de outro jeito. É a escolha deles ali. O ator tem o
direito de estar ali ou não. Ele está entregando o corpo dele àquela escolha.
197
Entrevista IV (30/11/2005)
Marina Martins
1
Companhia Atores Bailarinos do Rio de Janeiro, dirigida por Regina Miranda.
198
um pouco sobre isso e verificar que realmente essas duas linhas se encontram e desembocam
nesta terceira linha que é a nossa dança atual.
Como percebe a função do Preparador Corporal? Você acredita que ele pode contribuir
para a construção da linguagem de um espetáculo?
Eu acho fundamental, quando o encenador não tem o domínio do corpo, de técnicas
corporais. O Preparador vai ajudar a conduzir o ator à estética que o encenador está propondo.
Eu acho importante que a formação do Preparador Corporal seja uma formação bem
diversificada, justamente para poder entender qual o desejo estético da encenação, para poder
trabalhar o corpo do ator de forma que ele corresponda a esse desejo estético. É uma função
importantíssima, que contribui fortemente para a linguagem do espetáculo, para a
interpretação, para a construção da personagem e para o desenho cênico. Muitas vezes, o
encenador pede ajuda no sentido do desenho cênico, da coreografia teatral, coreografia da
cena (da movimentação, das marcações cênicas). O Preparador ajuda o ator a incorporar o
texto, incorporar a personagem dentro da estética proposta. Uso o termo coreografia no
sentido do desenho da cena e não no sentido da dança. Acho que na formação dos diretores,
encenadores, deveria ser obrigatório uma cadeira de coreografia e corpo. Porque o teatro
contemporâneo é basicamente isso, corpo. Há uma carência nos diretores desta noção, desta
prática. Tenho um amigo, ele é bom de marcação de cena, ele sabe como fazer para chegar no
corpo do ator. Só que ele fica me pedindo para coreografar para ele. Eu digo: não, você não
precisa de ninguém. Você sabe fazer, é só você fazer. Toma coragem e faça. Mas acho que
deveria ter uma formação de corpo para o diretor, para o encenador. Para ele saber o que ele
vai puxar do ator. São muitas técnicas. A gente tem uma variação enorme de técnicas
corporais. Todas elas são úteis. Até o balé é muito útil. A formação é restrita a uma coisa de
expressão corporal, só no sentido da conscientização corporal, e não no sentido estético desse
corpo. Que corpo estético é esse que determinado texto e determinada encenação pede? Para
lidar com essa questão você tem que conhecer técnicas diversas. Porque você pode se utilizar
delas, de todas juntas, pode fazer um pout pourri delas para chegar a um determinado lugar.
Eu acho que tinha que ser uma cadeira mais ampla, mais aprofundada mesmo. Para ensinar o
diretor a puxar do ator esse corpo, a trazer à tona esse corpo.
199
Sim! Os Bartenieff fundamentals, que é uma técnica que eu aprendi com a Regina
Miranda. Ela visa o corpo como um todo. É quase holística mesmo. Um pensamento do corpo
inteiro, harmonioso e consciente das relações espaciais internas e externas, e da respiração
fundamentalmente. Pelo menos para começar a situar, eu trabalho a partir dos Bartenieff. É
uma técnica aberta, porque como ela trata do corpo nos seus movimentos mais fundamentais,
dos movimentos primários do ser humano, você pode ir acrescentando referências,
qualidades, ritmos diferentes a partir desses movimentos básicos. São os fundamentals,
movimentos fundamentais de conexão interna e de conexão interna-externa. Eu sempre parto
dos Bartenieff para qualquer coisa, e o Sistema Laban também, trabalhando os esforços.
Utilizo também algum exercício de Butoh que eu já tenha feito, ou alguma outra coisa que eu
tenha visto ou tenha lido. Eu experimento. Mas é basicamente a partir dos fundamentals, do
Sistema Laban e daí eu vou procurando chegar na estética necessária, na estética pedida.
Primeiro, uma conversa com o diretor. Saber o que ele quer, o que ele pretende. Ler o
texto do espetáculo. Ver qual é a idéia dele em relação a esse texto. Quais são as necessidades
da cena. Na sequência, conhecer o elenco. Observar os corpos daquelas pessoas. Ver quais
são as necessidades básicas para neutralizar esses corpos, no sentido de tentar colocar cada
corpo num ponto neutro. Não neutro de ausência, mas neutro no sentido de tabula rasa, no
sentido de papel em branco para começar a ser inscrita outra linguagem. Então eu começo a
preparar as aulas, os exercícios da Preparação Corporal propriamente dita, a partir da estética
proposta pelo diretor e dos corpos. Dos problemas que aqueles corpos têm. Às vezes leva
mais tempo... às vezes leva menos tempo... às vezes algumas pessoas do elenco têm mais
problemas que outras e é preciso dar atenção a elas para buscar um equilíbrio. Algumas têm
mais técnica corporal, outras não têm. Tentar equilibrar esse elenco. Botar todo mundo mais
ou menos no mesmo tom. Eu vou preparando as aulas dia a dia. Eu gosto muito de participar
da leitura, do trabalho de mesa. Vou compreendendo o que o diretor quer e como os atores se
comportam na mesa, na leitura do texto. Levanto qualidades das personagens e vou propondo
trabalhos de improvisação para a construção do corpo.
200
Então, primeiro eu tento neutralizar esse corpo de modo que ele fique aberto. Na
verdade é abrir o corpo para receber e dar informações. Depois conduzir esse corpo a
experimentar, a procurar movimentos e qualidades adequadas aos seus próprios personagens.
A partir daí, ponho todo mundo para fazer aula junto. E vou a cada um, tocando nas
partes que são necessárias. Tem problemas em comum e tem problemas particulares. Quando
tem um problema grave com alguém, depois eu trabalho especificamente com aquela pessoa
individualmente. Mas de modo geral, é todo mundo junto e a partir dali vai se improvisando.
E eu vou dando as indicações para cada um, durante o processo, todo mundo junto. Por
exemplo, as qualidades que podem buscar, os movimentos que podem aparecer. Aponto
quando aparece alguma coisa interessante e pode ser usada. Peço para repetir. Mas é sempre
todo mundo junto. Individualmente, só quando tem um problema real, muito complicado. Se
alguém, realmente, não está conseguindo se integrar, eu vou ao particular. Eu vou trabalhando
como se fosse um curso normal, só que o objetivo é uma estética corporal pedida.
muito inteligente. Ele fala! Eu tento fazer que as pessoas ouçam seus corpos, mais do que
conduzam seus corpos. Deixar o corpo falar. Não dar tanta ordem para ele. Onde é que
prende? O que é que pode vir? Menos racional e mais orgânico. Eu sou muito orgânica. Eu
acredito muito na inteligência corporal. O corpo fala muito e a gente ouve muito pouco. A
organicidade para mim é uma coisa da sensação corporal. De botar para fora, de deixar isso
vir. É quase o corpo do avesso. Perder a timidez. Odeio espelho, por exemplo. Não dou aula
de frente para o espelho. Detesto espelho. Detesto a cópia. Faça o que eu estou fazendo. Eu
não sou parâmetro para ninguém. Eu tenho as minhas próprias dificuldades, minhas próprias
qualidades. É importante que cada um descubra o seu modo de fazer. É muito importante que
cada um possa fazer da sua maneira. Claro que dando orientação técnica para ajudar esse
corpo a fluir. Mas é importante que cada um faça da sua maneira, que não copie a maneira do
outro. O modelo não pode ser externo. Não há um modelo. Há uma consciência do seu
próprio padrão e o desejo de mudar esse padrão. É isso que eu chamo de organicidade.
É difícil na nossa estrutura, que esta relação se estabeleça de modo produtivo. Sempre
tem pouco dinheiro e pouco tempo. Sempre tem uma hora que o diretor vai diminuindo o
tempo de trabalho do Preparador Corporal com o elenco. Muitas vezes, cria-se, em vez de
uma harmonia, um conflito. O Preparador Corporal sempre sai perdendo, porque é uma das
primeiras coisas que se lima. – Ah! Está bom! Agora vamos entrar na cena! – Então deixa eu
dar uma aula antes, deixa eu aquecer! Me dá uma hora! – Não! Tem quinze minutos para
aquecer o elenco. Deveria ter um tempo maior. A direção fica aflita porque quer levantar o
espetáculo. Porque não dá tempo... Você perde. É uma relação muito difícil.
E de como atingir esse ator e fazê-lo sair do lugar. Fazê-lo vir para o lugar desejado
pela cena. Isso é o mais difícil. A dança e a expressão corporal, ainda são fatores menores
dentro da estrutura da encenação. Continua sendo frívolo. –Ah! Resolve aqui esse gesto. Esse
movimento. Vem para limpar! É externo. Não dá tempo de você fazer o ator dar o que ele
pode dar. Não há tempo hábil. Não há uma conscientização dos atores também. São poucos os
atores que sabem como é importante esse trabalho. Quando eles sabem, eles se dedicam,
202
fazem e aparecem coisas muito boas. Mas tem muitos atores que não sabem a importância
desse trabalho.
chega ao teatro, ele tem um rito de passagem que ele tem que fazer. Senão ele não entra em
cena. Eu considero o teatro um rito de passagem. Você se prepara para passar, para deslocar.
É uma ponte. É o teatro Nô. É aquela ponte, que o ator sai do camarim e se transforma num
Deus, num Rei, numa flor. Aquela ponte do teatro Nô para mim é o teatro. É o momento. É
ajudar a atravessar essa ponte. Para cada espetáculo há uma ritualização diferente. Cada um
tem a sua. Cada um tem seu modo de se preparar para a cena. O Preparador Corporal ajuda a
melhorar o corpo, no sentido de abrir, de tentar tornar esse corpo branco para se inscrever
uma nova linguagem. Essa linguagem é interna. Ela se inscreve a partir da transformação do
ator. A função do Preparador é importantíssima, mas não é considerada como tal ainda.
Quando “costuro para fora”, como se diz popularmente, neste caso, se fincar pé na
resistência, eu largo de mão. Não vou me preocupar!
você fizer, respirar e seguir a condução, você vai trabalhar os seus abdominais. Eu,
ultimamente, ando muito resistente ao trabalho de Preparação Corporal.
Acho que a primeira fase é sempre aquela da conscientização. Para o ator reconhecer o
seu próprio padrão. Para o ator conseguir relaxar e respirar. Reconhecer seus problemas. Esta
é a primeira fase. A segunda fase é começar a explorar outros lugares, outras possibilidades.
Quando começa a marcação cênica, eu vou dar mais atenção ao desenho gestual, a
espacialização, a orientação espacial. Primeiro é uma orientação espacial interna, depois passo
para uma orientação espacial mais externa. Perto da estréia é o momento de limpeza mesmo,
mas às vezes você consegue dar um toque e a pessoa se ilumina. Para o caminho ser orgânico
é muito difícil. É longo o processo. No pouco tempo que a gente tem, às vezes as pessoas
encontram o caminho, mas ele não é essencial, interno. O caminho obedece a trajetória, mas
não produz aquela trajetória conscientemente. Porque não há tempo. A Preparação Corporal
tinha que começar muito antes. Geralmente por falta de dinheiro, paga-se mal, o tempo é
escasso e pedem milagres. Claro que tem grupos que trabalham juntos há muito tempo, onde
o processo é intenso e cotidiano.
Uma diferença enorme! Quando a gente não escolhe o elenco junto com o diretor,
porque não é com todo mundo que você tem intimidade para dar palpite. Às vezes o diretor
erra a mão. Erro de casting. As pessoas são muito desniveladas, de origens muito diferentes,
têm status artísticos diferentes. É mais difícil. Você tenta igualar para ter um conjunto,
respeitando as dificuldades e os lugares de cada um. Mas você tenta harmonizar essas
diferenças. Numa companhia que já está junta há um tempo, essas diferenças já estão
harmonizadas. O jogo é muito mais rápido entre os atores. A comunicação entre eles é muito
mais rápida porque eles já estão convivendo há muito tempo juntos. Já passaram por muitas
coisas, já experimentaram muitas coisas juntos. Isso cria uma unidade muito mais densa. Eu
sou a favor do trabalho de processo. A experiência conjunta é ótima, criativa. Ela facilita.
Porque um já conhece o corpo do outro, o peso do corpo do outro. Então o outro pode mudar,
porque já tem confiança. Num elenco que está se conhecendo ali, é o começo de tudo. Um
205
elenco que em dois meses vai levantar um espetáculo fica muito mais difícil de você acertar a
mão. A diferença é enorme, muito mais difícil. Porque geralmente tem aquela grande estrela e
o elenco de apoio, então há uma diferença de tratamento. E eu quero colocar todo mundo no
mesmo patamar.
O mercado também é muito ingrato para o ator. Eu defendo o ator, o bailarino, porque
é ele que se transforma. Ele ganha mal, ele tem pouco espaço, ele não tem tempo. Não dão
tempo para ele errar. Ele tem que acertar, corresponder. É tudo muito rápido. Eu sou meio
diletante com relação às artes. Eu prefiro os grupos experimentais. A relação entre arte e
mercado é uma questão muito séria. Principalmente a arte cênica, teatro e a dança. É muito
confuso. Tem que agradar o patrocinador. Botar a estrela global. E os resultados são
medíocres, na maioria das vezes. Poucas vezes você consegue ver um resultado muito bacana.
Quando você tem atores bons e uma direção muito boa, você consegue um resultado bacana.
Senão você vai ter resultado bom nos grupos experimentais, onde você vê resultados,
pesquisa. Erros e acertos. Você vê o movimento cênico. Arte. Porque senão não é arte, é
objeto de consumo. Isso é um problema ético muito grande para o ator e para o bailarino,
porque na verdade ele está vendendo o corpo dele. E ele tem que sobreviver. Ele é humano,
precisa pagar contas. Esse mercado ingrato é um impasse par o ator. Ele tem a ilusão que está
vivendo da arte dele, mas não está. Ele não está desenvolvendo todo potencial que poderia
desenvolver. Acho que a gente vive num país muito ingrato. Tem muita gente que dá aula, faz
qualquer coisa para poder fazer o seu trabalho. Outros não, ficam fazendo qualquer coisa para
sempre.
Então Marina? O que você proporia, caso estivesse trabalhando como Preparadora
Corporal na montagem de Tartufo do Théâtre du Soleil ?
Se eu fosse Preparadora Corporal da montagem, eu diria no ouvido da Ariane para ela
falar sobre a respiração e flexibilização, principalmente do tronco daquele ator. Um tronco
rígido, vertical e em bloco. Trabalharia a respiração no sentido de fazer a coluna vertebral
respirar. Torcer para entrar nas diagonais. Falaria um pouco sobre o significado das diagonais
do cubo, que dão essa tensão frente-atrás, em cima embaixo, simultaneamente. Isto dá um
poder e uma dubiedade na ação. Como ela quer uma sedução, é o desejo e a sedução o tempo
inteiro, se você for de frente, um engajamento direto, você não vai seduzir. O que uma
serpente faz? Ela enrosca. A torção, a entrada na diagonal é o melhor caminho para você
206
encontrar esse corpo sedutor. E a respiração dessa torção traz também uma voz sedutora, no
sentido de que não é óbvia, frontal, não é direta. Ela se torna indireta. Ela se torna dúbia,
dupla. Porque ela fala de atrás e frente, em cima e em baixo, simultaneamente. Quando você
age no vertical sagital, totalmente de frente, você não tem a outra possibilidade. Você dá
esclarecidamente uma fala. Quando você torce, você já cria um duplo sentido. Trabalharia a
respiração. Trabalharia coluna vertebral, no sentido de flexibilizar o tronco daquele rapaz,
para ele ficar mais solto e independente. Trabalhando as torções e nas diagonais do cubo
como orientação espacial. A Juliana nunca está de frente totalmente. A mão indica um
caminho e o rosto indica outro. Ela está sempre trabalhando no sentido cruzado, no sentido da
duplicidade. Do duplo em si mesmo. A postura torcida já é em si dupla. Era isso que eu falaria
para os atores e para a Ariane, se ela quisesse me ouvir!
147
ANEXO B
As observações que complementam os dados apresentados foram fornecidas por Angel Vianna
em depoimento ao autor.
O pagador de promessas
Obs: Angel Vianna dava aulas para o grupo e foi convidada para fazer a coreografia da peça. Ela
utilizou a Capoeira como motivação para criar as coreografias.
Elenco: Dulcina de Moraes, Marília Pêra, Fregolente, Oswaldo Loureiro, José Wilker e outros
Obs: Angel Vianna atuou neste espetáculo como bailarina e deu aulas de Expressão Corporal para o
elenco, junto com Klauss Vianna.
148
Obs: Angel Vianna realiza este trabalho em plena ditadura militar. Ela afirma que era possível
expressar com o corpo o que não era permitido dizer com palavras. Angel dava aulas para o elenco e
também participou da montagem de cenas. Vianna afirma que o Preparador observava ensaios e que se
o diretor permitisse opinava sobre tudo. O trabalho era em conjunto, diário, e o Preparador participava
o tempo todo. No programa da peça não há registro sobre o teatro em que o espetáculo foi realizado.
Obs: Mesmo tendo, fundamentalmente, trabalhado apenas nas coreografias do espetáculo, Angel deu
aulas para o elenco baseadas na Conscientização do Movimento e Jogos Corporais. Ela considera sua
parceria com Maria Clara Machado extremamente produtiva e o nível de profissionalismo da
montagem bastante alto. Vianna acredita que o teatro infantil deve ser bem elaborado, assim como o
teatro adulto. O crítico Yan Michalski reconheceu o trabalho coreográfico de Angel Vianna como um
dos melhores momentos da ação do espetáculo (Jornal do Brasil, 19/05/70).
149
Obs: Este trabalho foi iniciado por Nelly Laport, que indicou Angel Vianna para que desse
prosseguimento a ele.
Miss Brasil
Obs: Angel explica que assinou a coreografia do espetáculo, mas que também trabalhou na montagem
de cenas. Ela desenvolveu marcações e até mesmo trabalhos de corpo para auxiliar a projeção vocal de
alguns atores.
Woyzec
Obs: Neste espetáculo, Angel Vianna trabalhou com a cantora-atriz Maysa Matarazzo. O crítico
Macksen Luiz divulgou que o trabalho corporal havia sido realizado por Klauss Vianna.
A China é azul
Obs: O crítico Yan Michalski elogiou a expressão corporal do elenco, desenvolvida por Angel Vianna
(Jornal do Brasil, 8/11/1972). As apreciações de Michalski costumavam ser consideradas por Angel,
que o admirava como ser humano e profissional.
Tango
Papa Highirte
Obs: A fim de realizar este trabalho, Angel Vianna pesquisou em bibliotecas, museus e nas danças
populares, compilando informações sobre a Chula (uma dança típica do Rio Grande do Sul), que
deveria ser executada por dois atores (Tonico Pereira e Sérgio Britto), numa espécie de duelo.
A cotovia e o rouxinol
Cenário: Tawfik
Figurino: Tawfik
Eu posso?
Obs: Angel ressalta sua parceria com a atriz Yara Amaral como um ponto alto nesta Preparação
Corporal. Segundo Vianna, Yara Amaral era uma atriz que entendia seu trabalho.
A Rosa tatuada
Obs: Neste espetáculo, Angel não atuou como Preparadora Corporal, mas como atriz (participação
especial). Ela teve oportunidade de colocar em prática muitos dos experimentos que costumava
desenvolver com atores e bailarinos em sala de aula. Neste trabalho torna-se amiga de Dácio Lima,
que fez a direção de movimento do espetáculo. O crítico Macksen Luis escreveu que Angel Vianna
conseguiu criar uma figura visualmente forte (Jornal do Brasil, 20/06/85), e a crítica Tânia Brandão
(Revista Fatos, 8/07/85) a considerou a chave mestra do espetáculo.
Elenco: Luiz Carlos Arutin, Jaqueline Laurence, Eliane Giardine, Andrea Beltrão
A cerimônia do adeus
Elenco: Sérgio Britto, Nathalia Thimberg, Nelson Dantas, Othon Bastos, Emilia Rey, José Lewgoy e
outros.
Elenco: Yara Amaral, Ary Fontoura, Paulo Gracindo, Paulo Goulart e outros
Obs: Angel desenvolveu uma pesquisa sobre as máscaras da Comedia Dell’arte e criou uma
movimentação para o ator Nildo Parente que sintetizava o sentido de várias delas.
Imaculada
Obs: Angel confirma sua parceria com Yara Amaral num espetáculo que considera ter sido primoroso.
O casamento branco
Obs: Neste trabalho Angel exercitou vários de seus Jogos Corporais na montagem de inúmeras cenas,
especialmente a do pique-nique, e pôde também explorar seus gosto pessoal pelas formas
expressionistas.
A obscena senhora D
Texto: Adaptação de Eid Ribeiro e Vera Fajardo para o romance homônimo de Hilda Hilst
Elenco: Vera Fajardo, Rubens de Araújo, Jorge Emil, Afonso Drumond e outros.
O cortiço
Nostradamus
Cenário: J. C. Serroni
Figurino: J. C. Serroni
Elenco: Laura Cardoso, Cecil Thiré, Tonico Pereira, Luiz Furlanetto e outros
O mundo é um moinho
Gota d’água
Elenco: Bibi Ferreira, Roberto Bomfim , Bete Mendes, Luiz Linhares e outros
Teatro: Schaubühne
Texto: Ésquilo
Mão na luva
Os possessos
Orlando
As três irmãs
Gota d’água
Vereda da salvação
Anton e Olga
Gota d’água
CDD – 792.028