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universidade federal do rio de janeiro

A descolonização das imagens:


o livro ilustrado infantil no contexto
brasileiro contemporâneo

claudia mendes

Rio de Janeiro
2016
universidade federal do rio de janeiro

A descolonização das imagens:


o livro ilustrado infantil no contexto
brasileiro contemporâneo

claudia mendes

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes Visuais (Imagem e Cultura),
Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do título de Doutora em Artes Visuais
(Imagem e Cultura).

Orientador: Dr. Amaury Fernandes


Coorientadora: Dra. Angela Ancora da Luz

Rio de Janeiro
2016
cip – Catalogação na Publicação

Mendes, Claudia
m538d A descolonização das imagens: o livro ilustrado infantil
no contexto brasileiro contemporâneo / Claudia Mendes.
Rio de Janeiro, 2016.
257 f.

Orientador: Amaury Fernandes


Coorientadora: Angela Ancora da Luz
Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Escola de Belas Artes, Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais, 2016.

1. livro Ilustrado infantil. 2. ilustração. 3. Modernismo


brasileiro 4. descolonização. I. Fernandes, Amaury, orient.
II. Ancora da Luz, Angela, coorient. III. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da ufrj


com os dados formecidos pela autora
A descolonização das imagens:
o livro ilustrado infantil no contexto
brasileiro contemporâneo

claudia mendes

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes Visuais (Imagem e Cultura),
Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do título de Doutora em Artes Visuais
(Imagem e Cultura).

Orientador: Dr. Amaury Fernandes


Coorientadora: Dra. Angela Ancora da Luz

Aprovada em

Dr. Amaury Fernandes


ppgav / Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dra. Angela Ancora da Luz


ppgav / Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dr. Rogério Medeiros


ppgav / Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dr. Marcus Dohmann


ppgav / Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dra. Graça Lima


eba / Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dr. Mario Feijó


eco / Universidade Federal do Rio de Janeiro
Para minha avó Antonietta,
que me contava histórias da imaginação e da vida,

Para minha mãe Hortência,


que me deu livros lindos e entendeu minha fome de arte,

Para minha filha Juliana,


que embarcou no meu amor pelas histórias
contadas, escritas e desenhadas,

Para minhas netas que um dia virão,


a quem contarei histórias como as da minha avó...
 Agradecimentos

Antes de mais nada, agradeço ao ppgav, especialmente à linha de pesquisa Imagem e Cultura,
pelo ambiente acolhedor e estimulante para tantas pesquisas que, como essa, situam-se em zonas
limítrofes.

Agradeço à capes pelo apoio financeiro, que permitiu uma dedicação intensa à pesquisa no Brasil,
e especialmente pela bolsa sanduíche para o período de 12 meses em que estive na Universidade de
Cambridge, que enriqueceram enormemente essa pesquisa.

Ao meu orientador Amaury Fernandes, por mais essa parceria acadêmica.

À minha coorientadora Angela Ancora da Luz, inspiração de vida e de pesquisa.

À professora Graça Lima, interlocutora sempre estimulante e carinhosa.

Aos membros da banca de qualificação, professores Marcus Dohmann e Mário Feijó, pelos
comentários que muito auxiliaram uma melhor organização da pesquisa.

Ao professor Rogério Mederios, pela presença segura e tranquilizadora.

À professora Maria Nikolajeva, que tão bem me recebeu na Universidade de Cambridge.

À querida Aline Frederico, “amiga de infância” que fiz em Cambridge, pela alegria do convívio que
se mantém, mesmo à distância, um estímulo constante.

À querida amiga Sílvia Lucatto Hadeler e família, pelo apoio durante toda minha estadia, em
especial a acolhida na chegada e na partida.

A todos os que me apoiaram compartilhando conversas, carinhos, livros, pesquisas, e principalmente


paciência durante minhas ausências.

À querida Bete, sem cujo apoio cotidiano eu não poderia me dedicar aos estudos.

Ao Cadu, pelos caminhos compartilhados “na alegria e na tristeza” que muito me têm feito crescer.
Resumo

MENDES, Claudia. A descolonização das imagens: o livro ilustrado infantil no contexto brasileiro
contemporâneo. Rio de Janeiro, 2016. Tese (Doutorado em Artes Visuais). Escola de Belas Artes,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2016.

Principalmente a partir dos anos 1970, verifica-se nos livros ilustrados brasileiros uma
progressiva conquista de qualidades artísticas, num processo de amadurecimento que cul-
mina com a outorga do prêmio internacional Hans Christian Andersen de ilustração para
Roger Mello em 2014. Além de aprimorar suas habilidades técnicas, os artistas brasileiros
têm promovido um intenso diálogo entre referências locais e globais, resultando em obras
que desafiam as convenções aceitas. Este processo tem grande afinidade com aquele da
Antropofagia, um dos mais conhecidos movimentos brasileiros de resposta às vanguar-
das históricas, e que pode ser entendido sob a ótica de uma modernidade pós-colonial.
Esta pesquisa identifica três fases neste processo de desenvolvimento, elegendo um artista
como representante de cada período, respectivamente Angela Lago, Roger Mello e Fernan-
do Vilela, e escolhendo uma obra de cada um deles para uma análise semiótica detalhada.
Assim como os artistas modernistas, Lago, Mello e Vilela estão continuamente ampliando
os limites das convenções artísticas vigentes, ao mesmo tempo atraindo e desafiando os
leitores. Tendo conquistado um número expressivo de prêmios nacionais e internacionais,
seus livros alcançam amplas audiências e promovem uma descolonização das imagens.

Palavras-chave: livro ilustrado infantil, Modernismo brasileiro, descolonização


Abstract

MENDES, Claudia. The decolonization of images: Brazilian picturebooks in the contemporary


context. Rio de Janeiro, 2016. Thesis (Doctorate in Visual Arts). School of Fine Arts, Federal
University of Rio de Janeiro, 2016.

Mostly from 1970 onwards, Brazilian picturebooks have been progressively gaining artistic
quality, in a maturing process that culminated in the awarding of the Hans Christian An-
dersen prize to Roger Mello in 2014. Besides improving technical skills, Brazilian illustra-
tors have promoted an intense dialogue between local and global references, resulting in
works that challenge the accepted conventions. This process keeps great affinity with that
of Anthropophagy, as became known the Brazilian response to European Avant-garde,
and which can be understood in a postcolonial modernity frame. This research identifies
three stages in this developing process and chooses one author from each stage, namely
Angela Lago, Roger Mello and Fernando Vilela, picking one work from each of them for a
detailed semiotic analysis. Just like Modernist artists, Lago, Mello and Vilela keep pushing
the borders of accepted conventions, at the same time attracting and challenging the rea-
ders. Having won a number of national and international prizes, their books reach wide
audiences, promoting a decolonization of images.

Keywords: picturebook, Brazilian modernism, decolonization


Lista de Figuras

capítulo 1
Figura 1. Orbis sensualium pictus (edição de 1658) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
Figura 2. A Little Pretty Pocket Book, 1770 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
Figura 3. Livro dos Mortos, Papiro de Hunefer, c. 1275 ac . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
Figura 4. Ilustração de Arthur Rackman para A Rainha da Neve,
de Hans Christian Andersen . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Figura 5. Ilustração de Kay Nielsen para Rapunzel, dos Irmãos Grimm . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Figura 6. Ilustração de Walter Crane para A Bela e a Fera,
de Madame JeanneMarie Leprince de Beaumont . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Figura 7. Ilustração de Gustave Doré para Chapeuzinho Vermelho, de Charles Perrault . . . . . . . 61
Figura 8. Pinocho Boxeador (1929), ilustrações de Salvador Bortolozzi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
Figura 9. Gouden Vlinders [Borboletas douradas] (1927), ilustrações de Lou Loeber . . . . . . . . . . 68
Figura 10. Fairy Tales from the North [Contos de Fadas do Norte] (1946), de Einar Nerman . . . . 68
Figura 11. Macao et Cosmage ou l’experience du bonheur
[Macao e Cosmage ou a experiência da felicidade] (1919), de Edy-Legrand . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68

capítulo 2
Figura 12. Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, 1928 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
Figura 13. Abaporu, de Tarsila do Amaral, 1928 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
Figura 14. Capa de O patinho feio, ilustrações de Franta Richter . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
Figura 15. Capa de A filha da floresta, ilustrações de Franta Richter . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
Figura 16. Capa de Cafundó da infância, ilustrações de Anita Malfatti . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Figura 17. Capa de No país dos quadratins, ilustrações de Candido Portinari . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Figura 18. Capa de A chácara da rua Um, ilustrações de João Fahrion
(Cosac Naify, 2012) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Figura 19. O circo (Centro de Edições Francesa, 2010), de Tomás Santa Rosa, . . . . . . . . . . . . . . . 93
Figura 20. O negrinho do pastoreio (Civilização Brasileira, 1973), de Paulo Werneck . . . . . . . . . . 93
Figura 21. O Boi Aruá (José Olympio, 1940), de Luís Jardim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
Figura 22. Capa de O fio do riso, de Angela Lago . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
Figura 23. Ilustração de Outra vez, de Angela Lago . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
Tabela 1. Modernidade x Pós-modernidade. Ihab Hassan, 1987 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Tabela 2. Etapas e agentes da cadeia produtiva do livro. Andrew Haslam, 2007 . . . . . . . . . . . . 108
Figura 24. Modelo da comunicação. Albert Kientz, 1973 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
Figura 25. Cinta acobreada, aposta na capa da segunda edição de
Lampião & Lancelote, com a lista de prêmios conquistados. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
capítulo 3
Figura 26. As dimensões do espaço visual. Kress & van Leeuwen, 2006 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
Figura 27. Trípticos horizontal e vertical. Kress & van Leeuwen, 2006 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
Figura 28. A menina do narizinho arrebitado, capa com ilustrações de Voltolino (1920) . . . . . . 146
Figura 29. A menina do narizinho arrebitado, frontispício com ilustrações de Voltolino (1920) 146
Figura 30. A menina do narizinho arrebitado, ilustrações de Voltolino (1920) . . . . . . . . . . . . . . 146
Figura 31. A menina do narizinho arrebitado, ilustrações de Voltolino (1920) . . . . . . . . . . . . . . 146
Figura 32. Componentes de um livro. Andrew Haslam, 2007 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150
Tabela 3. Três níveis de design. Donald Norman, 2012 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157

capítulo 4
Figura 33. Capa de Cena de rua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
Figura 34. Ilustração de Cena de rua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
Figura 35. Ilustração de Cena de rua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
Figura 36. Ilustração de Cena de rua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174
Figura 37. Ilustração de Cena de rua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174
Figura 38. Ilustração de Cena de rua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174
Figura 39. Storyboard de Cena de rua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 178
Figura 40. Ilustração de Cântico dos cânticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
Figura 41. Ilustração de A banguelinha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
Figura 42. Ilustração de A raça perfeita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
Figura 43. Efeito cinético tridimensional em Cena de rua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
Figura 44. Capa de Lampião & Lancelote . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
Figura 45. Ilustração de Lampião & Lancelote . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
Figura 46. Ilustração de Lampião & Lancelote . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
Figura 47. Ilustração de Ivan Filho de Boi (2004) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
Figura 48. Capa de Olemac e Melô (2007) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
Figura 49. Capa de Caçada (2012) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
Figura 50. Capa de Le chemin (2007) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
Figura 51. Ilustração de Contêiner (2016) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
Figura 52. Capa aberta de Lampião & Lancelote . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
Figura 53. Cordéis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196
Figura 54. Simone Martini, Guidoriccio da Fogliano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196
Figura 55. Paolo Uccello, Batalha de São Romano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196
Figura 56. Fayga Ostrower, xilogravura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199
Figura 57. Lívio Abramo, xilogravura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199
Figura 58. Lívio Abramo, xilogravura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199
Figura 59. Lívio Abramo, guache . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199
Figura 60. Marcelo Grassman, xilogravura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199
Figura 61. Marcel Duchamp, Nu descendo uma escada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199
Figura 62. Storyboard de Lampião & Lancelote, ilustrações 1 a 6 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202
Figura 63. Storyboard de Lampião & Lancelote, ilustrações 7 a 10 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
Figura 64. Página painel de Lampião & Lancelote . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 204
Figura 65. Capa aberta de Zubair e os labirintos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206
Figura 66. Capa aberta de Zubair e os labirintos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206
Figura 67. Primeira capa de Zubair e os labirintos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206
Figura 68. Orelha dupla de Zubair e os labirintos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206
Figura 69. Ilustração de A flor do lado de lá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
Figura 70. Ilustração de O próximo dinossauro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
Figura 71. Capa de Maria Teresa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
Figura 72. Ilustração de A pipa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210
Figura 73. Ilustração de A pipa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210
Figura 74. Marc Chagall, O circo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210
Figura 75. Cícero Dias, Eu vi o mundo... ele começava no Recife . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210
Figura 76. Capa de Todo Cuidado é Pouco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210
Figura 77. Ilustração de Cavalhadas de Pirenópolis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210
Figura 78. Ilustração de O gato Viriato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210
Figura 79. Ilustração de Viriato e o Leão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210
Figura 80. Quarta capa de Zubair e os labirintos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215
Figura 81. Capa interna de Zubair e os labirintos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215
Figura 82. Ilustração de Zubair e os labirintos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215
Figura 83. Ilustração de Zubair e os labirintos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215
Figura 84. Ilustração de Zubair e os labirintos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215
Figura 85. Capa externa de Zubair e os labirintos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215
Figura 86. Capa interna de Zubair e os labirintos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215
Figura 87. Ilustração de Zubair e algumas comparações visuais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217
Figura 88. Menino brasileiro catando latinhas em meio ao lixo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217
Figura 89. Meninos em meio ao lixo em uma favela em Jacarta, Indonésia . . . . . . . . . . . . . . . . 217
Figura 90. Soldados durante ocupação militar em favela carioca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217
Figura 91. Soldado seguido por meninos durante a Guerra do Iraque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217
Figura 92. Cores da chita, tecido muito usado na cultura popular brasileira . . . . . . . . . . . . . . . 217
Figura 93. Cores da chita, tecido muito usado na cultura popular brasileira . . . . . . . . . . . . . . . 217
Sumário

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

capítulo 1. O livro ilustrado fazendo arte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30


1.1 O objeto livro: definições contemporâneas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
1.2 O que é um livro ilustrado: “Texto, ilustração, design integral” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
Terminologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
Campo de estudo recente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
Sinergia entre imagens, palavras e design . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
1.3 “uma experiência para a criança”: o leitor infantil, esse desconhecido . . . . . . . . . . . . . . . 41
Possibilidades e impossibilidades de definir os livros ilustrados por seu público leitor . . . . . . 44
1.4 “um documento histórico, social e cultural” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
Orbis pictus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
A invenção da infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
Contos de fadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
1.5 “um item manufaturado e um produto comercial” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
A Little Pretty Pocket Book . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
Galáxia de Gutenberg . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Ilustrado desde criancinha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
1.6 “uma forma de arte”: um objeto que se oferece à fruição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
Vanguardas artísticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
Alusões às artes plásticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
Livros ilustrados, livros de artista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
“Bons” ou “estranhos”? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

capítulo 2. Moderno desde criancinha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76


2.1 O Brasil e a modernidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
No mercado editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
Nas artes plásticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
Na ilustração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
2.2 Descolonização visual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
Pós-modernidade ou pós-colonialismo? Antropofagia! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Transpondo barreiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
2.3 Circuito do livro ilustrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
Etapas e agentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
Contrato de comunicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110
2.4 Legitimação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116
Compras governamentais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
Prêmios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
Crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124

capítulo 3. Quebrando o brinquedo para ver como funciona . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126


3.1 Análise visual: aprendendo com quem faz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
Semiótica à francesa: Barthes e Joly . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
Fazendo social: Kress & van Leeuwen . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132
Um toque de formatividade: Camargo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
A lista completa: Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136
Códigos condensados: Moebius . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
3.2 Uma questão de estilo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
3.3 Precisamos falar sobre o suporte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145
Aprendizado invisível de uma tecnologia centenária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151
Design também é emoção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155
3.4 Escolhas justificadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160

capítulo 4. Trinca de Ases . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 164


4.1 Angela Lago: Cena de rua (1994) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
4.2 Fernando Vilela: Lampião & Lancelote (2006) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
4.3 Roger Mello: Zubair e os labirintos (2007). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206

Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235

apêndice. Dados adicionais sobre os autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243


1. Angela Lago . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
2. Roger Mello . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248
3. Fernando Vilela . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251

anexo. Manifesto Antropófago . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255


Introdução

Sim, os livros infantis encerram um sentimento de nação; mas também guardam um senso
de humanidade. Eles descrevem a terra natal com amor; mas também descrevem as terras
distantes, onde vivem nossos irmãos desconhecidos. Eles traduzem o ser profundo de sua
raça; mas cada um deles é um mensageiro que atravessa montanhas e rios, que cruza os
mares, e que vai buscar amizades até na outra extremidade do mundo. Cada país dá e cada
país recebe; incontáveis são as trocas; e é assim que nasce, na idade das primeiras impressões,
a república universal da infância.
Paul Hazard1

Pensemos em uma história infantil da tradição mundial amplamente conhecida, por


exemplo “Branca de Neve”. Para muitos, a imagem mental da personagem principal, além de
obviamente jovem e de pele clara, provavelmente tem cabelos escuros na altura do queixo,
enfeitados por um laço vermelho, e veste saia longa amarela e blusa azul de mangas curtas
bufantes, arrematada por uma grande gola branca – o “uniforme” desenhado por Walt Dis-
ney em 1937, em voga até hoje. O mesmo vale para Cinderela, Bela (e a Fera), Bela Adorme-
cida, Alice e outras mais.2 Não cabe aqui uma crítica ideológica aos estúdios Disney,3 que têm
o mérito de veicular massivamente imagens tão fortes a ponto de impregnar o imaginário

1 “Oui, les livres des enfants entretiennent le sentiment de la nation; mais ils entretiennent aussi le
sentiment de l’humanité. Ils décrivent la terre natale avec amour; mais ils décrivent aussi les terres
lointaines où vivent nos frères inconnus. Ils traduisent l’être profond de leur race; mais chacun d’eux
est un messager qui franchit les montagnes et les fleuves, qui franchit les mers, et qui va chercher des
amitiés jusqu’à l’autre bout du monde. Chaque pays donne et chaque pays reçoit ; innombrables sont les
échanges; et c’est ainsi qui naît, a l’âge des impressions premières, la république universelle de l’enfance.”
Les livres, les enfants et les hommes, Paris 193, 190 apud Bettina Kümmerling-Meibauer (1995). Livre
tradução do original em francês. Todas as demais citações originais em idioma estrangeiro ao longo
dessa tese são livremente traduzidas por mim. Os originais são apresentados em nota de rodapé.
2 Em tempos politicamente corretos, junta-se ao grupo das Princesas Disney uma heroína negra,
ou melhor dizendo, afrodescendente – Tiana, do filme The Princess and the Frog, 2009. Ver http://
disney.go.com/disneypictures/princessandthefrog/ O filme não teve bons índices de público,
apresentando o mais baixo retorno financeiro dos estúdios Disney.
3 Crítica já feita de modo contundente por Ariel Dorfman e Armand Mattelart (1980). Ver
também considerações sobre a “disneyficação” de histórias por Maria Nikolajeva (1996, p. 36) e
Perry Nodelman (1992, p. 54).

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afetivo de gerações no mundo todo. Cabe, sim, a delimitação de um problema: as imagens
desenhadas, abundantes na cultura contemporânea, seguem códigos estritos – sejam os câ-
nones do realismo figurativo das belas artes, que permanece no senso comum como modelo
de representação artística facilmente aceito; sejam os traços estereotipados dentro das con-
venções dos produtos da indústria cultural. Originados principalmente das belas artes euro-
peias, até o século XIX, e da indústria cultural norte-americana, a partir do século XX, tais
códigos promovem uma colonização do imaginário num processo que acontece de modo
invisível a partir da infância, quando a cultura visual vai sendo adquirida espontaneamen-
te, sem um ensino formal. Se as crianças começam criando e fruindo imagens desenhadas
com bastante liberdade, seu repertório vai progressivamente se conformando a códigos mais
limitados à medida que crescem. Sendo a cultura visual contemporânea dominada por ima-
gens da indústria cultural globalizada, muitas dessas imagens aparecem em produtos volta-
dos para o público infanto-juvenil, como desenhos animados, games, quadrinhos, mangás,
livros ilustrados. Especialmente estes últimos, no entanto, vêm ampliando seu repertório
visual de maneira crescente, oferecendo uma significativa possibilidade de descolonização
das imagens. Daí decorre o especial interesse dessa pesquisa por esses objetos.
Em um mundo globalizado, as periferias estão em desvantagem. Grande parte dos
produtos culturais chegam prontos dos centros dominantes e colonizam as culturas locais.
Com os estudos pós-coloniais, as narrativas das periferias começam a ganhar visibilidade,
especialmente em textos escritos por autores nativos de países colonizados. Começando
no universo adulto, surgem depois narrativas para crianças dentro do mesmo espírito.
Muitas dessas narrativas combinam textos verbais e visuais na forma de livros ilustrados,
mas os estudos ainda se concentram em seu aspecto verbal. É pouco: as imagens tam-
bém carregam ideologias colonizantes, e os livros ilustrados de países periféricos merecem
mais estudos focados em seus discursos visuais. Entre as periferias mundiais, as de língua
inglesa estão em melhor situação: indianos, africanos, nativos australianos, canadenses e
norte-americanos já contam com alguns estudos.4 As periferias de outras regiões, como
as de língua espanhola e portuguesa dos países da América Latina, ganham menos aten-

4 Em Unsettling Narratives: postcolonial readings of children’s literature (2007), Clare Bradford


examina textos produzidos desde 1980 no Canadá, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia,
incluindo livros ilustrados, novelas e filmes.

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ção. Buscando contribuir para equilibrar essa assimetria, essa pesquisa examina o caso do
Brasil, analisando livros ilustrados infantis criados e publicados nas últimas três décadas e
ressaltando as características descolonizadoras de seus discursos visuais.
A inspiração para o título dessa tese vem de Serge Gruzinski, historiador francês
especializado na América Latina, mais especificamente no México. Em seu livro A Coloni-
zação do Imaginário (2003),5 o autor investiga a transformação do imaginário dos povos
locais após a chegada dos colonizadores espanhóis. Confrontando a linguagem visual de
mapas desenhados pelos nativos indígenas antes e depois desse encontro, Gruzinski de-
monstra como a absorção forçada do repertório europeu suprime os ricos códigos autóc-
tones até então utilizados.
A questão da colonização visual já faz parte de meus questionamentos desde a dis-
sertação de mestrado sobre os livros ilustrados de Roger Mello.6 O artista emprega em suas
primeiras obras um estilo figurativo realista, logo substituído pela pesquisa da cultura po-
pular brasileira e das vanguardas artísticas europeias, até chegar a uma linguagem própria
que funde uma variedade de referências em um estilo bastante particular. A evolução da
linguagem visual de Mello sinaliza um processo de “descolonização visual” que remete aos
ideais dos primeiros artistas modernistas brasileiros, expressos no Manifesto Antropó-
fago escrito por Oswald de Andrade depois da Semana de 22.7 A permanência dos ideais
“antropofágicos” é significativa na cultura brasileira em geral, e parece ser o caso também
na literatura infantil em particular. Não por acaso, o “pai fundador” da literatura infantil
brasileira, Monteiro Lobato, tem papel relevante, ainda que controverso, na difusão do
modernismo brasileiro. As propostas do grupo, inicialmente limitadas a um círculo da
elite paulistana, ganham maior repercussão a partir da polêmica instaurada pelos ataques
de Lobato às pinturas de Anita Malfatti, exibidas em São Paulo em 1917. Conhecido como
o “Andersen brasileiro”,8 Monteiro Lobato é, além de um escritor revolucionário, também

5 No original, La colonisation de l’imaginaire. Paris: Galimard, 1988.


6 Desenvolvida entre 2009 e 2011 no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de
Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGAV/EBA/UFRJ.
7 Ver no Anexo.
8 Conforme ele próprio, sem falsa modéstia, comenta em carta de 1943 ao amigo Godofredo
Rangel: “Estou condenado a ser o Andersen desta terra – talvez da América Latina, pois contratei
26 livros infantis com um editor de Buenos Aires” ( Lobato, 1972).

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um editor inovador. Motivado por um forte interesse pela infância, ele dá início a uma
revolução nos livros infantis brasileiros tanto em termos éticos quanto estéticos (Lajolo &
Ceccantini, 2008).
Após algumas décadas de estagnação, outro salto de qualidade na literatura infan-
to-juvenil acontece nos anos 1970, durante a Ditadura Militar. Autoras como Ana Maria
Machado e Lygia Bojunga9 escrevem narrativas revolucionárias, que no jargão político
da época seriam até mesmo chamadas de “subversivas”, voltadas para os jovens leitores,
passando desapercebidas pela censura oficial, ocupada com literatura “séria” voltada para
adultos (Sandroni, 2011).10 Esta (r)evolução nos textos escritos expande-se para os textos
visuais nas décadas seguintes. Conforme assinalado pelos próprios ilustradores,11 a década
de 1990 foi uma época decisiva para a ilustração brasileira, com a participação de muitos
artistas na Feira de Bolonha de 1995, quando o Brasil foi o país homenageado.12 Naquele
momento catalisa-se uma percepção autocrítica, tanto em termos de qualidade técnica

9 Ambas vencedoras do prêmio Hans Christian Andersen, o mais importante prêmio


internacional conferido bianualmente a autores (escritores e ilustradores) de literatura infanto-
juvenil, outorgado pelo International Board on Books for Young People – IBBY. Essa organização
internacional não-governamental, reconhecida pela UNESCO e UNICEF, foi fundada na Suíça
em 1953 como desdobramento do trabalho iniciado na Alemanha do pós-guerra por Jella Lepman,
incentivando a cooperação entre diferentes nações por meio da literatura infantil. Atualmente é
formada por 75 seções nacionais do mundo todo, sendo a Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil – FNLIJ a seção brasileira. O Hans Christian Andersen é considerado o prêmio Nobel da
área, conforme menção no site oficial: http://chlhistory.org/andersen/en.
10 Ver também o ótimo artigo de Maria Nikolajeva (2000), publicado no número especial da revista
Bookbird, do IBBY, dedicada ao prêmio Hans Christian Andersen de 2000, ano em que o prêmio
de melhor escritor foi concedido a Ana Maria Machado. Discorrendo sobre a obra da autora, a
professora Nikolajeva, nascida na União Soviética durante o regime comunista, aborda com particular
sensibilidade a situação da literatura infantil em períodos de regimes totalitários no mundo todo,
enfocando o caso do Brasil em particular. Disponível online em http://www.literature.at/viewer.
alo?objid=14724&viewmode=fullscreen&rotate=&scale=3.33&page=8. Acesso em 10 fev. 2015.
11 Embora consistentemente sustentado por inúmeros ilustradores, esse acontecimento conta
com poucas referências publicadas, como o prefácio de Ana Maria Machado para o livro de Rui de
Oliveira, Pelos Jardins Boboli (2008) e a entrevista de Graça Lima em Traço e prosa (2012).
12 A Fiera del Libro per Ragazzi é o mais importante evento mundial no segmento, dedicada
exclusivamente a livros infanto-juvenis. Em março de 2014 a feira comemorou cinquenta anos de
existência e o Brasil foi novamente o país homenageado, completando vinte anos desde a primeira
homenagem. Estive presente ao evento, onde pude coletar material de grande interesse para essa
pesquisa.

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quanto de autenticidade estilística, que leva à maturidade da ilustração brasileira – um
processo que vinha há tempos tomando corpo entre os ilustradores brasileiros.13
No Brasil, a ilustração de livros infantis segue a mesma evolução de outras mani-
festações culturais e artísticas: partindo de modelos europeus, desenvolve-se progressiva-
mente uma linguagem local que miscigena14 elementos iconográficos nativos tais como
fauna, flora, geografia, luz e cor, bem como etnicidade, arquitetura, vestuário, folclore,
narrativas orais, jogos e festividades (Arroyo, 2011). A fim de aprofundar o entendimento
sobre esse processo, essa pesquisa faz um recorte temporal abrangendo três gerações de
artistas que iniciam suas carreiras nos anos 1980, 1990 e 2000. Para cada década, elege-
se um artista que seja suficientemente representativo em relação à sua geração, usando
como critério inicial de seleção a qualidade e a diversidade da experimentação artística
em suas obras, bem como a premiação e circulação nacionais e internacionais que con-
quistam. Outro critério relevante para essa pesquisa é a presença de aspectos variados da
cultura nacional em suas obras, tanto em discursos visuais quanto verbais. Neste sentido,
considera-se importante que sejam não somente ilustradores, mas autores integrais (texto
e imagem) de livros ilustrados, e que também façam uso criativo do suporte material, o li-
vro impresso. Segundo esses critérios, são escolhidos Angela Lago (Belo Horizonte, 1945),
Roger Mello (Brasília, 1965) e Fernando Vilela (São Paulo, 1973).
Angela Lago pertence à geração de pioneiros,15 tendo começado a ilustrar nos anos
1980. Cria mais de trinta livros ilustrados de sua inteira autoria (texto e ilustrações), é
duas vezes indicada pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ (seção
brasileira do International Board of Books for Young People – IBBY) para concorrer ao
prêmio Hans Christian Andersen, em 1994 e 2004, e ganha importantes prêmios nacionais

13 Embora ainda não existam livros publicados sobre a história da ilustração brasileira, contamos
com ótimos trabalhos acadêmicos como os de Paula Viviane Ramos (2007) e Graça Lima (2012),
entre outros.
14 Ver Gilberto Freyre (2004) e Renato Ortiz (1994).
15 Ainda que importantes artistas, entre eles os modernistas Paulo Werneck, Tomás Santa Rosa
e Portinari, já viessem há tempos marcando com seus talentos o cenário da ilustração infantil
brasileira, considero que foi depois dos anos 1970 que se pôde notar uma tendência mais coletiva,
que permitisse fazer referência a “gerações” de artistas.

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e internacionais, entre eles o prêmio Noma16 de Ilustração (Japão, 1986) e a BIB Plaque da
Bienal Internacional de Ilustração de Bratislava17 (Eslováquia).
Roger Mello pertence à geração que começa a publicar nos anos 1990, consolidando
a iniciativa dos pioneiros. Até o presente momento, criou mais de vinte livros ilustrados de
sua inteira autoria, ganhando prêmios da Fondation Espace Enfants (Suíça), IBBY e Inter-
nationale Jugendbibliothek – IJB (Munique, Alemanha). É também o primeiro brasileiro a
ser premiado com o Hans Christian Andersen na categoria Ilustração, em 2014, na terceira
vez em que foi indicado pela FNLIJ. Em 2015 foi jurado dos prêmios Nami Concours18
(Coreia do Sul) da Bienal Internacional de Ilustração de Bratislava – BIB (Eslováquia).

16 O Noma Concours para Livros Ilustrados foi organizado bianualmente entre 1978 e 2008 pelo
Centro Cultural Asiático para a UNESCO – ACCU, com suporte do Fundo Internacional Noma
para o Desenvolvimento Literário, estabelecido por Noma Soichi, fundador e primeiro presidente
da Kodansha, maior editora de literatura e mangá do Japão, e vice-presidente do ACCU. Podiam
concorrer ao prêmio ilustradores, designers e artistas da Ásia (exceto Japão), Pacífico, África,
Estados Árabes, América Latina e Caribe. Os trabalhos premiados eram exibidos em Tóquio e na
Bienal de Ilustração de Bratislava, e reproduzidos no site do ACCU e em um catálogo impresso.
Fonte: site do Noma Concours. Disponível online em http://www.accu.or.jp/noma/english/
about/e_index.html. Acesso em 10 mai. 2016.
17 Criados em 1967, os prêmios para ilustração de livros infantis da Bienal Internacional de
Ilustração de Bratislava – BIB são dos mais antigos e prestigiosos, ao lado do Hans Christian
Andersen. Conta com a cooperação das seções nacionais do IBBY e tem apoio da UNESCO e do
Ministério da Cultura eslovaco. Artistas do mundo todo concorrem a doze prêmios: um Grand
Prix, cinco Golden Apples (Maçãs Douradas), cinco Plaques (Placas) e uma Menção Honrosa.
Muitos brasileiros já fizeram parte do júri da BIB, entre eles Roger Mello, na edição de 2015. As
obras vencedoras são exibidas em Bratislava, e na edição seguinte da bienal o vencedor do Grand
Prix tem a oportunidade de montar uma exposição individual de sua obra. Jovens artistas do
mundo todo podem concorrer a uma vaga no prestigioso workshop Albin Brunovky de ilustração,
oferecido durante a semana da premiação. A Bienal inclui ainda uma quantidade de eventos,
como simpósio internacional, exposições paralelas, concertos, encenações teatrais, exibição de
animações, lançamento de livros e encontros com ilustradores. Fonte: site da BIB. Disponível
online em http://www.bibiana.sk/index.php?id=33&L=2. Acesso em 10 mai. 2016.
18 O Concurso Internacional de Ilustração da Ilha de Nami – Nami Concours é organizado e
patrocinado pela Ilha de Nami, que patrocina também o IBBY. Em 2005, para marcar o 200º
aniversário de Hans Christian Andersen, foi criado o Festival do Livro de Nami – NAMBOOK. O
sucesso do evento estimulou a criação, em 2013, do Nami Concours, que rapidamente se tornou
uma referência internacional. Extremamente bem organizado, o Nami Concours concede os
prêmios Grand Prix (1), Golden Island (2), Green Island (5) e Purple Island (10), preparando
uma impressionante exposição com ambientes cenografados com exclusividade para cada uma
das oito obras premiadas nas três primeiras categorias, e exibindo originais das demais dez. Estive
presente na edição de 2015, quando o ilustrador brasileiro Marcelo Pimentel ganhou o Grand Prix

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Fernando Vilela é o representante escolhido para a geração mais nova de artistas.
Inicia sua carreira de ilustrador em 2004. Além de escrever e ilustrar livros, é também ar-
tista plástico, designer e educador. Publicou mais de dez livros de sua inteira autoria por
editoras brasileiras e estrangeiras, recebeu importantes prêmios nacionais (entre eles qua-
tro Jabutis da Câmara Brasileira do Livro – CBL, além de vários da FNLIJ) e internacionais
(Bologna Ragazzi Award 2007) e participou da BIB.
Além de serem autores de “tripla” vocação (além de texto e ilustrações, cuidam tam-
bém do design de muitos de seus livros), atuam em variados campos de expressão artís-
tica além do livro ilustrado – artes plásticas, animação, dramaturgia, cenografia e outros.
Vários de seus livros são traduzidos para idiomas como inglês, francês, espanhol, japonês
e chinês, bem como convertidos para outras mídias, como animação, curta-metragem e
teatro. A quantidade e a expressividade dos prêmios conquistados por estes artistas indi-
cam o apreço que especialistas do mundo inteiro dedicam a seus livros ilustrados.
Escolhidos os autores, são selecionados, dentre os livros ilustrados de sua autoria
integral, aqueles mais significativos para a condução desta pesquisa. Os critérios são se-
melhantes aos utilizados na escolha dos artistas, principiando pelas qualidades visuais das
obras, levando em consideração também a expressividade da premiação e difusão nacio-
nais e internacionais que conquistam. São privilegiadas as que exploram recursos visuais e
materiais pouco convencionais, mas que também guardam uma relação forte com algum
aspecto da cultura nacional. Selecionando um livro por artista, os escolhidos são Cena de
rua (Belo Horizonte: RHJ, 1994), de Angela Lago; Zubair e os labirintos (São Paulo: Cia das
Letras, 2007), de Roger Mello; e Lampião & Lancelote (São Paulo: Cosac Naify, 2006), de
Fernando Vilela.
Analisando detalhadamente os recursos visuais e materiais que constituem suas
narrativas, busca-se demonstrar suas afinidades com os ideais antropofágicos, examinan-
do também as tensões negociadas na publicação de tais obras pouco convencionais no
cenário contemporâneo brasileiro. Essa pesquisa prefere se concentrar em poucas obras
que possam “falar pelo todo”, e as três obras eleitas cumprem bem esse papel. A escolha

com seu O fim da fila, e recomendo fortemente uma visita ao site do concurso para conferir as
belas fotografias dos ambientes. Disponível online em http://www.namiconcours.com/main.php.
Acesso em 10 mai. 2016.

I NTRO DUÇÃO ฀฀•฀฀19


de poucas obras permite uma análise individual mais atenta, e não deixa de possibilitar
uma contextualização histórica. Não se pretende fazer um apanhado panorâmico com
referências breves a muitas obras, construindo uma evolução historiográfica. Tampouco
se contempla o leitor infantil, numa perspectiva que examine a recepção.19
A opção por focalizar algumas poucas obras não significa isolá-las de contextos mais
amplos, como num campo cirúrgico. Antes, essa pesquisa pensa nessa abordagem com
uma relação de figura e fundo bem conhecida nas artes visuais: a figura vem em primeiro
plano e domina a composição, mas está situada sobre um fundo que lhe dá suporte. É im-
portante, antes de mais nada, situar cada livro no conjunto da obra de seu autor. A própria
opção de selecionar autores de gerações sucessivas também evidencia um interesse pela
evolução histórica da ilustração brasileira.
Por sua vez, a ilustração brasileira apresenta características particulares dentro da
produção mundial, especialmente no cenário contemporâneo. O fato recente de o prêmio
Hans Christian Andersen de ilustração ter sido concedido pela primeira vez a um latino
-americano – o brasileiro Roger Mello, em 2014 – sugere um maior interesse internacional
por linguagens visuais não-eurocêntricas.20 É importante ressaltar como obras de artistas
de países periféricos vêm se fazendo presentes em instâncias de legitimação das culturas

19 Esta opção está em sintonia com minha trajetória profissional. Sou designer por formação,
há muitos anos desenvolvo projetos gráficos de livros e me interesso por seus elementos estéticos
– sou integrante do book people de que fala John Rowe Townsend (1969, p. 407-418). O autor
tipifica dois grupos de pessoas envolvidas com os livros infantis, o book people – autores, editores,
críticos – e o child people – professores, contadores de histórias, pais; ficando os bibliotecários
a meio do caminho. Como integrante do book people, acredito que as melhores contribuições
que posso oferecer venham desse lugar. No que diz respeito especialmente aos livros ilustrados,
Martin Salisbury (2004) alerta que os estudos acadêmicos têm vindo principalmente dos teóricos
da palavra. Sendo eu “praticante” das artes visuais, mais um motivo para assumir esse lugar de
origem e contribuir para equilibrar a assimetria.
20 O ilustrador e designer Rico Lins, jurado do Hans Christian Andersen e da BIB nos anos
1980, procurou chamar a atenção de seus colegas para as características intraduzíveis da ilustração
provinda de outras tradições culturais, conforme relato de Ana Maria Machado: “Encontrando
alguns desses jurados (e editores estrangeiros) em diferentes ocasiões, ouvi de alguns deles
pequenos depoimentos atestando como a argumentação de Rico Lins lhes abrira os olhos para a
especificidade de outras propostas visuais, sobretudo a ilustração latino-americana em geral a e
brasileira em particular.” In Oliveira, 2008, p. 16.

I NTRO DUÇÃO ฀฀•฀฀20


dominantes. Isso decorre não apenas da qualidade que essa produção vem alcançando,
como também da ampliação dos critérios de seleção do corpo de jurados.21
As relações entre periferia e centro, importantes para esta pesquisa, são examinadas
por Maria Nikolajeva (1996) no campo da literatura infantil tendo como referência a se-
miótica cultural de Yuri Lotman. Nikolajeva explica que, sendo o centro estável e passivo
e a periferia ativa e dinâmica, os textos periféricos movem-se em direção ao centro e pro-
movem uma revitalização dos códigos canônicos, “petrificados”. Esta pesquisa examina o
movimento dos textos visuais brasileiros contemporâneos, inovadores e periféricos, em
direção ao centro. Enquanto na Europa e nos Estados Unidos, centros que ancoram os câ-
nones, os livros ilustrados mais inovadores são considerado pós-modernos, o argumento
dessa tese é que no Brasil tais livros são antropofágicos. Seguindo a mesma estratégia dos
artistas modernistas brasileiros da primeira metade do século XX, os ilustradores con-
temporâneos devoram e deglutem as influências externas e regurgitam formas de arte
autônomas, desenvolvendo uma linguagem visual descolonizada. Mais do que pastiches,
paródias ou colagens pós-modernas, suas obras apresentam formas de mestiçagem carac-
terísticas de culturas colonizadas na América Latina, e promovem uma descolonização do
imaginário, principalmente (mas não apenas) para as novas gerações.
No Brasil, contamos atualmente com dezenas de editoras publicando obras para
crianças, sendo algumas delas com catálogo exclusivamente voltado para essa faixa etá-
ria. O setor apresenta índices expressivos22 e tem atraído o interesse de grandes grupos
europeus, que em décadas recentes intensificam sua participação no mercado brasileiro
por meio de aquisições parciais ou mesmo totais de editoras nacionais. Embora a maior

21 A inclusão crescente de não-europeus no corpo de jurados do Hans Christian Andersen


pode ser facilmente constatada na edição comemorativa do Jubileu do IBBY, em 2002, da revista
Bookbird, que apresenta dados dos prêmios de 1956 a 2002. Dados dos anos posteriores podem ser
consultados individualmente em edições bianuais da revista. Disponível online em http://www.
literature.at/viewer.alo?objid=14769&page=1&viewmode=fullscreen. Acesso em 10 mai. 2016.
22 Conforme números apresentados na terceira edição da pesquisa Retratos da Leitura no
Brasil, publicada em 2012 pelo Instituto Pró-Livro e disponível online em http://www.prolivro.
org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/4095.pdf. Acesso em 06 jan 2014. Uma quarta edição mais
atualizada foi divulgada no final maio de 2016 e pode ser consultada em http://prolivro.org.br/
home/images/2016/Pesquisa_Retratos_da_Leitura_no_Brasil_-_2015.pdf. Acesso em 05 jun. 2016.
Infelizmente não houve tempo hábil para analisarmos essa edição.

I NTRO DUÇÃO ฀฀•฀฀21


parte dos títulos direcionados para o público infantil se concentre em livros didáticos ou
paradidáticos, nos quais a qualidade artística não é necessariamente prioritária, os livros
de literatura vêm apresentando um aumento consistente nessa qualidade. Temos mui-
tos autores de tripla vocação23 reconhecidos e premiados internacionalmente, cujas obras
circulam no país inteiro, principalmente por meio de compras governamentais em larga
escala, como as do Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE. Tais autores vêm
colocando ao alcance de várias gerações a possibilidade de ampliar seus repertórios, por
meio de narrativas visuais de crescente complexidade, que representam um contraponto
às preponderantes mensagens estereotipadas da indústria cultural, de um lado, e aos códi-
gos canônicos da cultura erudita, de outro, ambas de matriz exógena.24
Os livros ilustrados já foram considerados artefatos pedagógicos ou entretenimento
pueril, até alcançarem o status de obras de arte, conforme assinala Barbara Bader já em
1976. Assim sendo, é possível entendê-los enquanto formas de arte que pertencem a um
mundo da arte, mais especificamente das artes visuais. Barbara Kiefer (1995), Sandra
Beckett (2012) e Bettina Kümmerling-Meibauer (2013) são algumas das poucas autoras a
analisar os livros ilustrados pela perspectiva das artes visuais, uma necessidade enfatizada
tanto por praticantes como Martin Salisbury (2004) quanto por estudiosos como Kenneth
Marantz (1992). Todos esses estudos examinam fundamentalmente obras europeias ou
anglófonas.
A respeito de livros ilustrados que desafiam convenções, um corpo crescente de estu-
dos qualifica-os como pós-modernos (Sipe & Pantaleo, 2012), radicais (Dresang, 1999), cros-
sover (Beckett, 2012), fusão (Evans, 2013) ou simplesmente desafiadores (Evans, 2015). Uma
outra tendência emergente é analisar livros ilustrados pouco convencionais enquanto textos
pós-coloniais. Entretanto, nenhum desses pontos de vista se mostra adequado às particula-

23 Proponho esse neologismo a partir do conceito de autor de dupla vocação, aquele que cria
tanto o texto verbal quanto o texto imagético de seus livros. A terceira vocação seria a criação do
projeto gráfico, ou planejamento das formas visuais e materiais que vão conformar a existência
sensível do objeto. Assim, um autor de tripla vocação cria o texto verbal, as imagens e o design de
seus livros.
24 Em Apocalípticos e Integrados (2006), Umberto Eco discorre sobre os três níveis da cultura:
erudita, popular e de massa, e como as mensagens se deslocam entre esses níveis. Eco destaca
também a importância da atuação, no mercado editorial, de editores que sejam “homens de
cultura”, não se restringindo aos aspectos comerciais desse mercado.

I NTRO DUÇÃO ฀฀•฀฀22


ridades da produção brasileira. A evolução cultural das colônias portuguesas apresenta ca-
racterísticas bastante singulares, tornando problemática a aplicação de teorias preexistentes
que se adequam melhor a países de língua inglesa ou mesmo espanhola. O sociólogo portu-
guês Boaventura Sousa Santos (2004) é um dos mais agudos analistas a apontar a inadequa-
ção das abordagens tanto pós-modernas quanto pós-coloniais, como se colocam hoje, para
analisar o caso do Brasil. O conceito de pós-modernidade colonial, tal como recentemente
formulado pelo historiador da arte nigeriano Chika Okeke-Agulu (2015), poderia se revelar
uma boa abordagem, merecendo um exame mais cuidadoso em futuras pesquisas.
Por situar o livro ilustrado no contexto da cultura visual e entendê-lo como elemen-
to particular em situações de comunicação visual, essa pesquisa adota como referência o
clássico modelo do processo de comunicação elaborado por Roman Jakobson25 a partir
dos estudos de Shannon & Weaver: o emissor (e seu repertório), a mensagem (contexto
/ canal / código) e o receptor (e seu repertório). Para examinar esse processo no campo
do livro ilustrado, são priorizados os dois primeiros componentes, enfocando, além dos
autores e suas obras, também as condições de produção e circulação dessas obras no con-
texto brasileiro contemporâneo, não sendo o receptor infantil diretamente contemplado.
No entanto, se por um lado os leitores infantis têm pouca voz ativa na sociedade de um
modo geral – não custa lembrar a etimologia de infância, infans, aquele que não pode falar
por si mesmo–,26 por outro lado são motivo da atenção dos muitos adultos envolvidos na
cadeia da produção cultural para a infância. Dessa maneira, é possível manter as crianças
no horizonte dessa pesquisa, na condição de leitores implícitos.27
Tendo em vista a tensão do duplo destinatário28 – adultos e crianças – característica
da literatura infantil, muitas questões se colocam. Crianças dependem de adultos para te-

25 Publicado originalmente em Closing Statements: Linguistics and Poetics (1960, pp. 350–377).
26 Literalmente “o que não se pode valer de sua palavra para dar testemunho”. Castello, L. A.;
Mársico, C. (2007).
27 Termo cunhado por Wolfgang Iser (1996), o conceito de leitor implícito (implied reader)
foi estendido à literatura infantil na figura do leitor infantil implícito (implied child reader),
que permeará as considerações teóricas dessa pesquisa. Vincent Jouve (2002) compara o leitor
implícito de Iser ao leitor modelo de Umberto Eco.
28 Barbara Wall (1991) foi a primeira estudiosa a examinar a questão do single address, double
address e dual address na literatura infantojuvenil, posteriormente retomada e desenvolvida, entre
outros, por Maria Nikolajeva (1996, 2012) e Teresa Colomer (1998).

I NTRO DUÇÃO ฀฀•฀฀23


rem acesso aos livros, e os critérios dos adultos sobre o que colocar ao alcance das crianças
dependem, entre outras coisas, de suas visões sobre a infância, o que nos coloca a neces-
sidade de investigar suas ideologias. Assim, em substituição a pesquisas de campo com
jovens leitores, buscamos comentários e esclarecimentos de alguns dos adultos envolvidos
na mediação de livros, tais como críticos, editores, professores, bibliotecários, livreiros e
familiares, além dos próprios autores.
Lago, Mello e Vilela são profissionais de amplos interesses, desenvolvendo conside-
rações críticas bastante pertinentes a respeito de suas atividades criativas. Estando ou não
conscientes das (ou intencionalmente se referindo às) influências vanguardistas em seus
livros ilustrados, certamente estão conectados às mudanças sociais contemporâneas, que
se refletem em seus textos, tanto verbais quanto visuais. Suas obras incluem uma varie-
dade de linguagens visuais, com aspectos que variam do realismo figurativo acadêmico a
características pós-modernas, oferecendo um amplo espectro de onde foi possível esco-
lher os livros mais significativos para compor o corpus deste estudo. Para efetuar a análise
visual do material selecionado, dentre as várias metodologias apresentadas por Gillian
Rose (2012) e Theo van Leeuwen & Carey Jewitt (2001), a mais adequada para os objetivos
dessa pesquisa parece ser a semiótica, tal como fazem Perry Nodelman (1989) e Maria
Nikolajeva & Carole Scott (2006) em seus livros de referência no campo da análise visual
de livros ilustrados. Assim, para definir e analisar o corpus, essa pesquisa emprega mode-
los semióticos da escola de Paris, em linha com Ferdinand de Saussure (1977) conforme
principalmente Roland Barthes (1971) e Martine Joly (2008). Partindo de seus conceitos
centrais, são acrescentadas contribuições da semiótica social conforme principalmente
Gunther Kress & Theo van Leeuwen (2006).
Esta tese contém quatro capítulos, sendo os três primeiros dedicados a considera-
ções teóricas e o último voltado ao estudo de caso. Os três capítulos iniciais exploram os
seguintes aspectos relativos aos livros ilustrados: o livro ilustrado enquanto forma de arte,
aspectos da modernidade no livro ilustrado brasileiro, e metodologia de análise visual. O
capítulo final é dedicado à análise visual de cada uma das três obras integrantes do corpus.
No capítulo inicial justifica-se a opção em entender o livro ilustrado como uma
forma de arte. Adotando a definição clássica de Barbara Bader (1976) para os livros ilus-
trados, o exame dos livros ilustrados é segmentado em seis categorias: texto, ilustração, de-

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sign integral; uma experiência para a criança; um documento social, cultural e histórico;
um item manufaturado e um produto comercial; e finalmente uma forma de arte.
Antes de mais nada, se examina como esse é um campo de estudos recente e dinâ-
mico, onde nem mesmo a terminologia se encontra consolidada, permitindo interessantes
discussões. Especialmente no Brasil, a inexistência de terminologia própria ainda causa
confusão. São revistas as propostas de conceituação desse objeto por diferentes autores,
bem como suas possíveis nomenclaturas, indicando e justificando as escolhas feitas – tra-
ta-se um campo de estudos ainda em processo de consolidação, onde tais escolhas se fa-
zem necessárias e merecem justificativas bem fundamentadas. São apontadas também as
particularidades narrativas do livro ilustrado – palavras, imagens e design em sinergia –
bem como suas características materiais.
A seguir, são examinados alguns aspectos do livro ilustrado enquanto um gênero da
literatura infantil, problematizando as controvérsias de se definir essa literatura pela audi-
ência. Seguindo uma vertente pedagógica, o primeiro livro ilustrado criado especialmente
para crianças é Orbis Pictus, publicado em 1658 pelo educador tcheco Jan Amos Comenius.
Segundo uma vertente de entretenimento, é A Little Pretty Pocket Book, do editor britânico
John Newbery, publicado em 1744. Entre utilitarismo pedagógico e entretenimento pueril,
o livro ilustrado infantil padece historicamente de um status de inferioridade, até que a va-
lorização da infância e das produções culturais a ela destinadas desencadeia um processo
de valorização também do livro ilustrado. Recentes estudos identificam as crianças como
sofisticadas leitoras de imagens em livros ilustrados (Arizpe & Styles, 2003), confirmando
a validade das obras menos convencionais e sua circulação entre diferentes públicos, que
incluem as crianças mas não se limitam a elas (Beckett, 2012; Evans, 2015; entre outros).
Tendo em vista a evolução histórica do livro ilustrado, justifica-se o interesse pelo
estudo de suas formas materiais no século XXI, quando o futuro do impresso vem sen-
do posto em questão pela disseminação das versões digitais. São destacadas algumas das
diferentes manifestações do livro ilustrado ao longo da história, a começar pelo primeiro
livro de que se tem notícia, o Livro dos Mortos egípcio, sublinhando momentos nos quais
o desenvolvimento tecnológico tem grande impacto sobre a natureza e circulação desse
objeto – como a adoção do formato de códice em substituição ao rolo, a introdução do
papel como suporte da escrita ou desenho, a introdução da impressão com tipos móveis

I NTRO DUÇÃO ฀฀•฀฀25


no Ocidente e, mais recentemente, de meios de reprodução como a litografia e a impres-
são em offset, seguidas no século XX pela adoção da escala Europa que possibilita uma
uniformização considerável na reprodução de cores.
Examina-se por fim alguns aspectos das interações entre os livros ilustrados e as
artes plásticas, destacando alguns dos artistas que ao longo da história criam livros ilustra-
dos, como William Blake, até chegar ao livro de artista contemporâneo. Tecem-se conside-
rações gerais sobre vanguardas históricas e modernismo, lembrando que no processo de
ruptura com estilos canônicos das belas artes, muitos artistas buscaram uma aproximação
com a arte popular e a arte infantil. Depois de despertar inicialmente reações controversas
no público e na crítica, as novas visões de mundo expressadas pelos artistas vanguardistas
em obras não conformadas aos cânones vigentes acabam sendo absorvidas pela cultura
dominante e alcançando o público infantil inclusive por meio de livros ilustrados.
No segundo capítulo, são examinados alguns dos impactos trazidos pela moderni-
dade ao livro ilustrado brasileiro. A renovação das artes plásticas no Brasil ganha destaque
com a Semana de 22, e o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade sintetiza os princí-
pios do movimento: deglutir o estrangeiro e regurgitar o nacional. Sem demora, o moder-
nismo alcança os livros infantis seja pelo texto, com as obras revolucionárias de Monteiro
Lobato, seja pela imagem, com artistas como Di Cavalcanti, Anita Malfatti e Portinari
dedicando-se também à ilustração, além da pintura. Esse capítulo, além de apresentar um
apanhado de alguns pontos de maior interesse do pensamento do modernismo brasileiro
desencadeado pela exposição às vanguardas históricas, busca observar a continuidade das
propostas modernistas nos livros ilustrados publicados desde então. Destacando as obras
de artistas como Paulo Werneck, Santa Rosa e Luís Jardim, que trazem importantes con-
tribuições ao livro ilustrado infantil, esse capítulo sinaliza um panorama que se consolida
a partir dos anos 1980: as propostas visuais descolonizadoras, a crítica especializada, as
compras governamentais, a recepção pelo público leigo (mediadores adultos e os leitores
infantis). Mais do que expressão de um movimento temporal e geograficamente restrito,
busca-se apontar que o ideal antropofágico permanece potente na cultura brasileira em
geral, e no livro ilustrado infantil em particular, notando-se no diálogo intericônico pós-
moderno a permanência do ideário modernista na contemporaneidade.

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A formação tardia da indústria editorial brasileira, a partir apenas de 1808, oferece
aos artistas uma liberdade de experimentação que não se encontra em mercados já mais
maduros. A identidade adolescente, que muitos (inclusive Angela Lago) indicam como tra-
ço característico da cultura brasileira, se traduz em um gosto pela experimentação e certa
leveza ao lidar com as tradições. Uma outra característica singular do mercado brasileiro
favorece as obras pouco convencionais. Além de livros didáticos, desde 1998 o governo fe-
deral é o principal comprador de livros de literatura infanto-juvenil para escolas de todo
o país por meio do Programa Nacional Biblioteca na Escola – PNBE.29 Embora em 2015 o
programa atravesse uma fase de instabilidade, em seus quase 20 anos de existência o PNBE
estabelece critérios de seleção mais atentos às qualidades artísticas dos livros, impactan-
do positivamente as decisões editoriais de muitas empresas mais focadas em resultados
comerciais. Também as premiações constituem importante instância de legitimação dos
livros inovadores, sendo os prêmios da FNLIJ os mais significativos no contexto nacional.
Este capítulo aborda também a participação de ilustradores brasileiros na Feira do
Livro Infantil de Bolonha num intervalo de 20 anos. Em 1995, quando o Brasil é o país
homenageado, a presença na feira tem duplo efeito para os artistas: expandir seus hori-
zontes quanto à produção mundial, e ao mesmo tempo ampliar a autoconsciência de suas
particularidades nesse cenário. Para alguns artistas e estudiosos da área, esse encontro re-
presenta um divisor de águas para a ilustração nacional. Infelizmente há escasso material
publicado a esse respeito, como por exemplo o prefácio escrito por Ana Maria Machado
para o livro de Rui de Oliveira (2008). Em 2014, o Brasil é novamente o país homenagea-
do, e Roger Mello anunciado como vencedor do prêmio Hans Christian Andersen de ilus-
tração. Sendo a primeira vez que este prestigioso prêmio internacional é concedido a um
brasileiro, e mesmo a um latino-americano, representa a coroação de um processo de
maturação artística que tem entre seus marcos iniciais a participação nessa mesma feira
20 anos antes.

29 Mais informações sobre o programa podem ser consultadas no portal do Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação – FNDE, disponível online em http://www.fnde.gov.br/programas/
biblioteca-da-escola/biblioteca-da-escola-apresentacao, e no portal do Ministério da Educação,
disponível online em http://portal.mec.gov.br/programa-nacional-biblioteca-da-escola. Acesso
em 10 jan. 2014.

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Os livros ilustrados brasileiros mais inovadores, que trazem proposições pouco
convencionais tanto em termos narrativos quanto formais, parecem corresponder per-
feitamente à classificação como pós-modernos ou radicais (Dresang, 1999). No entan-
to, aplicar o conceito de pós-modernidade no contexto brasileiro pode ser problemático,
considerando, entre outros fatores, a difusão tardia do modernismo em nossa arte e cultu-
ra. Entendemos que a apropriação antropofágica que os ilustradores brasileiros contem-
porâneos fazem de variadas referências das artes visuais vai além de paródias ou pastiches
pós-modernos, termos fortes para os quais Sandra Beckett (2012) propõe a alternativa
mais suave de alusões. A miscigenação característica da cultura brasileira (Freyre, 2011) re-
sulta em obras com uma identidade bastante característica e com maior densidade do que
as apropriações pós-modernas. Integrar, nos livros ilustrados, códigos pouco familiares
como os da arte moderna a outros já bem aceitos pelo público, por um lado oferece aos
artistas um potencial criativo muito fecundo, mas por outro lado pode também colocar
desafios à circulação e recepção das obras. Considerando as características do mercado
brasileiro contemporâneo, pode-se concluir nesse capítulo que as propostas “antropofá-
gicas” dos ilustradores brasileiros têm significativa circulação no país e podem contribuir
para a descolonização das imagens.
O capítulo três examina a metodologia de análise visual escolhida, com algumas con-
siderações sobre sua aplicação aos livros ilustrados. A semiótica francesa nos termos de
Roland Barthes é o eixo central, com contribuições da semiótica social conforme Gunther
Kress & Theo van Leeuwen (2006). Quanto à análise das obras em si, além dos critérios
propostos por Barthes (1971), também são utilizadas categorias de Martine Joly (2008), Luís
Camargo (1995), Rui de Oliveira (2008), William Moebius (1990) e Perry Nodelman (1989).
A emergência do livro digital traz de volta a noção de que o livro impresso é também
ele uma tecnologia, que de tão entranhada em nossa cultura letrada se torna invisível. O
uso do livro impresso demanda um aprendizado e proporciona um tipo de experiência
que se soma à fruição de imagens e palavras, uma vez que o suporte material – o manu-
seio do livro como objeto – é elemento integrante e fundamental da experiência total de
leitura. Aqui conta-se com o apoio de Roger Chartier (1999, 2010) e Don McKenzie (1999)
quanto à materialidade do suporte de leitura, investigando a interação do leitor com esse
suporte pela perspectiva do design emocional conforme Donald Norman (2008).

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Este capítulo detalha ainda os critérios que norteiam a escolha dos artistas e a obra
selecionada para análise crítica. Em primeiro lugar, apresenta-se e justifica-se o processo
de escolha dos três autores. Indica-se a pertinência de tipificarem três gerações sucessivas,
bem como diferentes regiões brasileiras com particularidades culturais próprias, com-
pondo assim um panorama temporal e espacial suficientemente representativo. Os três
são autores de tripla vocação, respondendo pelo texto, ilustração e design de seus livros. O
tipo de participação norteia o estabelecimento de uma primeira categoria para classificar
suas obras em dois grupos: apenas ilustração ou autoria integral. Apresenta-se então a jus-
tificativa para a escolha de uma obra dentre este último grupo para análise mais detalhada.
A metodologia empregada na coleta de dados para o próximo capítulo divide-se entre
pesquisas de gabinete e de campo, que se complementam e informam a análise semiológica
das obras. No processo de definição da metodologia de coleta de dados, a referência às meto-
dologias empregadas por outras pesquisas semelhantes representa valioso auxílio no sentido
de agregar esforços para a definição de um campo de estudos em processo de consolidação.
O capítulo 4 é dedicado ao estudo de caso, nos termos definidos pelo referencial
teórico. São analisados criticamente, em abordagem semiológica, o conteúdo e as carac-
terísticas formais dos três livros que compõem o corpus. O exame detalhado inclui, além
da análise semiológica e de considerações sobre seu design emocional, também a biografia
de cada um dos três autores, breve ficha técnica do livro, uma sinopse da história e uma
descrição visual e material do livro.
A sequência de apresentação obedece à data de publicação de cada livro, começan-
do por Cena de rua (1994), seguida por Lampião & Lancelote (2006) e terminando com
Zubair e os labirintos (2007). Cada livro é contextualizado dentro da obra dos autores. São
apresentados dados biográficos relacionando vida e obra de cada autor, com destaque para
a expressiva premiação conquistada nos contextos nacional e internacional. Sempre que
possível, busca-se incluir comentários pertinentes dos autores, extraídos de entrevistas,
artigos, e outras fontes disponíveis, com especial destaque ao contexto de criação do livro.
Uma relação completa dos livros ilustrados e da premiação conquistada por cada
autor encontra-se no anexo. Considerando que todos os três artistas têm uma produção
extensa tanto como autores quanto como ilustradores, os livros que ilustraram são seg-
mentados em duas categorias – somente ilustração ou autoria integral.

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•฀฀capítulo฀1฀฀•

O livro ilustrado fazendo arte

Um livro ilustrado é texto, ilustração, design integral; um item manufaturado e um produto


comercial; um documento histórico, social e cultural; e, acima de tudo, uma experiência
para a criança. Enquanto forma de arte, se articula na interdependência entre imagens e
palavras, na disposição simultânea de páginas duplas e no drama da virada de página. Em
seus próprios termos, suas possibilidades são ilimitadas.1
Barbara Bader, 1976, p. 1. Grifo meu

Em 1976, Barbara Bader formula uma das melhores definições do livro ilustrado,
amplamente acolhida pelos estudiosos do campo da literatura infantil e hoje considerada
clássica. Chama a atenção que, já naquela época, o livro ilustrado infantil pudesse ser con-
siderado uma forma de arte, e não apenas um recurso pedagógico. Esta acurada definição
de Bader é a referência que norteia este primeiro capítulo, onde se examina e delimita
cuidadosamente o objeto de estudo dessa pesquisa: o livro ilustrado infantil. Vejamos:
1. O livro ilustrado é texto, ilustração, design integral
2. Um item manufaturado e um produto comercial
3. Um documento histórico, social e cultural
4. Uma experiência para a criança
5. Uma forma de arte que se articula:
· na interdependência entre imagens e palavras
· na disposição simultânea de páginas duplas
· no drama da virada de página
6. Em seus próprios termos, suas possibilidades são ilimitadas

1 “A picturebook is text, illustrations, total design; an item of manufacture and a commercial


product; a social, cultural, historic document; and foremost, an experience for a child. As an art form it
hinges on the interdependence of pictures and words, on the simultaneous display of two facing pages,
and on the drama of the turning page. On its own terms its possibilities are limitless”.

O LIVRO I LUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀30


A própria expressão “livro ilustrado infantil” sinaliza a necessidade de examinar
cada um dos termos que a compõe, de modo a alcançar a complexidade e as particula-
ridades deste objeto. Sendo um produto cultural de existência relativamente recente, é
proveitoso resumir brevemente, em perspectiva histórica, a confluência dos três sistemas:
 Livro: a evolução do livro em sua forma material como o conhecemos hoje, em
especial enquanto suporte de narrativas, quer verbais, quer imagéticas;
 Ilustração: como as imagens narrativas acompanham a humanidade desde seus
primórdios, chegando a nossa globalizada cultura visual contemporânea; e
 Infância: de que maneira a evolução do conceito de infância se reflete na produção
cultural a ela destinada.

Será útil ainda examinar os três diferentes pares formados pela combinação destes
elementos: livro infantil, ilustração infantil e livro ilustrado. Com essa exploração sistemá-
tica, chega-se finalmente ao objeto de estudo dessa pesquisa: o livro ilustrado infantil. A
partir daí, pode-ses avançar, no capítulo seguinte, na discussão sobre a produção brasileira
contextualizada no cenário mundial.
Eamina-se, de forma resumida, o percurso evolutivo do livro ilustrado para crianças,
desde as primeiras obras assim identificadas,2 chegando às proposições contemporâneas,
que incorporam uma estética pós-moderna a estruturas narrativas pouco convencionais.
Também é problematizado certo utilitarismo pedagógico que associa ao livro infantil um
status de inferioridade, destacando o modo como a concepção contemporânea de infância
e da produção cultural a ela destinada contribui para valorizar este objeto, afirmando sua
autonomia artística.
São examinadas as principais propostas de conceituação desse objeto por diferentes
autores, bem como suas possíveis nomenclaturas, e os critérios que norteiam a escolha
pela expressão utilizada preferencialmente ao longo dessa pesquisa: livro ilustrado, fican-
do o termo “infantil” em suspenso para discussão.

2 Dependendo do enfoque, o título de mais antigo livro ilustrado publicado especialmente


para o público infantil fica entre o didático Orbis Pictus, criado pelo educador tcheco Jan Amos
Comenius em 1658, ou o divertido A Little Pretty Pocket Book, publicado pelo editor inglês John
Newbery em 1744. Estes livros são examinados mais adiante neste capítulo.

O LIVRO I LUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀31


1.1฀ O฀objeto฀livro:฀deinições฀contemporâneas

Há várias possibilidade de definição para o objeto livro como o conhecemos hoje,


em forma de códice. Em sua obra de referência A construção do livro (2008), Emanuel
Araújo parece endossar a opinião explícita de Albert Labarre (2005) ao comentar que “Já
se afirmou, aliás, que o códice significou uma mudança radical na história do livro, talvez
mais importante do que a de Gutenberg, pois o atingiu em sua forma.” (p. 41). Segundo o
Dicionário Houaiss (2009), livro é uma “coleção de folhas de papel, impressas ou não, cor-
tadas, dobradas e reunidas em cadernos cujo dorsos são unidos por meio de cola, costura,
etc., formando um volume que se recobre com capa resistente”.
Já a Unesco3, para fins de normatização internacional de estatísticas relativas à publi-
cação de livros e periódicos, define livro como “publicação impressa não-periódica, de no
mínimo 49 páginas, excluindo as capas, publicada no país e acessível ao público” (p. 143).
De acordo com essa definição, uma quantidade expressiva de livros infantis, que frequen-
temente têm menos de 48 páginas, seriam considerados folhetos: “publicação impressa
não-periódica, de no mínimo 5 e no máximo 48 páginas, excluindo as capas, publicada no
país e acessível ao público”. No entanto, a mesma resolução enumera expressamente quais
tipos de publicação devem ser incluídas nas estatísticas, especificando no item “Obras
ilustradas”: “(ii) álbuns, livros com ilustrações e panfletos escritos em forma de narrativas
contínuas, com imagens ilustrando certos episódios; (iii) álbuns e livros ilustrados para
crianças.”4 No Brasil, a ABNT se baseia na definição da Unesco ao publicar em 2006 a NBR
6029,5 que trata da informação, documentação e apresentação de livros e folhetos: “livro:
publicação não periódica que contém acima de 49 páginas, excluídas as capas, e que é ob-
jeto de Número Internacional Normalizado para Livro (ISBN).” (p. 3)
Essas e outras definições norteadas por preocupações legais e regulamentações tri-
butárias são consideradas insatisfatórias por Andrew Haslam, autor de O livro e o designer

3 Unesco. Records of the General conference. Paris, 1964. Disponível online em http://unesdoc.
unesco.org/images/0011/001145/114581e.pdf. Acesso em 14 jan. 2012.
4 “(ii) albums, illustrated books and pamphlets written in the form of continuous narratives, with
pictures illustrating certain episodes; (iii) albums and picture books for children”.
5 ABNT. NBR 6029. Disponível online em http://www.ufpi.br/subsiteFiles/ppgaarq/arquivos/
files/6029-LivroseFolhetos.pdf. Acesso em 14 jan. 2012.

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀32


II (2007). Para ele, mais do que descrever fisicamente o livro, é preciso expressar seu poder
e influência. A definição que propõe busca estimular uma discussão mais ampla: “um su-
porte portátil que consiste em uma série de páginas impressas e encadernadas que preser-
va, anuncia, expõe e transmite conhecimento ao público, ao longo do tempo e do espaço”
(p. 9). Pela proposta de Haslam, portanto, além dos elementos materiais que caracterizam
o livro contemporâneo – a forma, o material e o processo de registro de informações –
deve ser acrescentada também a interação com o usuário, o que aponta para a valoriza-
ção do leitor. Compartilhando com Haslam a convicção de que esse componente merece
especial atenção, essa pesquisa considera fundamental contemplar e investigar a maneira
como os componentes materiais do livro ilustrado podem servir a um propósito narrativo
de tal modo que despertem respostas emocionais nos leitores.

1.2฀฀ O฀que฀é฀um฀livro฀ilustrado:฀
“Texto,฀ilustração,฀design฀integral”

A definição de picturebook formulada por Barbara Bader aparece em seu livro Ame-
rican Picturebooks: from Noah’s Ark to the Beast Within (1976), onde a autora examina o de-
senvolvimento do livro ilustrado por meio de uma extensa análise das obras editadas nos
Estados Unidos até meados dos anos 1970, buscando também, em certos casos, entender as
circunstâncias de sua publicação. A definição, apresentada por Bader na abertura, tornou-
se clássica, e descreve com precisão o livro ilustrado – termo que vem se consolidando no
Brasil como tradução para picturebook. Desde a definição pioneira de Bader, a ênfase na
articulação entre texto, imagem e suporte é uma constante entre estudiosos no campo da
literatura infantil. Em uma das recentes publicações de referência na área, a crítica france-
sa Sophie van der Linden, especialista em literatura infantil que tem no livro ilustrado seu
foco principal, reforça a definição de Bader, afirmando que “a articulação texto-imagem-
suporte é o que fundamenta o livro ilustrado” (2011, p. 23).

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀33


 Terminologia

No cenário mundial, o estudo desse tipo de livro ganha força apenas no final do
século XX, e a terminologia empregada para designá-lo ainda se encontra em processo
de consolidação. Picturebook é o termo em inglês usado para designar este tipo específico
de livro onde a narrativa é construída por meio da interação entre palavras e imagens –
retire-se qualquer uma das linguagens, e o livro perde sua identidade. Na língua inglesa
existe uma crescente aceitação a respeito do emprego da palavra picturebook, formada pela
junção de picture (imagem) + book (livro). Picturebook é um neologismo que vem sendo
usado por especialistas preferencialmente à forma dicionarizada Picture book, como uma
estratégia para enfatizar o caráter único desse tipo de publicação. A adoção dessa grafia foi
resultado de um acordo estabelecido entre os estudiosos participantes de uma das primei-
ras conferências internacionais dedicadas exclusivamente ao livro ilustrado, New Impulses
in Picturebook Research, realizada em 2007 na Universidade Autônoma de Barcelona. É um
termo bastante operacional, que aponta para um tipo específico de livro onde a constru-
ção da narrativa se dá por meio da interação entre imagens e palavras, e guarda também
certa vinculação ao público infantil, embora a segmentação por faixas etárias seja uma
questão bastante discutida, estando longe de haver consenso entre os estudiosos – mesmo
porque o meio acadêmico não acompanha a velocidade de transformação do mercado
editorial, onde em anos recentes têm proliferado livros ilustrados que transpõem a barrei-
ra etária entre adultos e crianças, principalmente nos países nórdicos.
Enquanto que na língua inglesa chega-se a um consenso a respeito do conceito es-
pecífico expresso pelo termo picturebook, em outros idiomas há diferentes maneiras de
denominar esse tipo de livro, com algumas sutilezas a respeito de suas particularidades,
que Van der Linden elenca:

Designação pouco conhecida do grande público, não há em muitos países um termo fixo
para definir o livro ilustrado infantil. Conforme o contexto, em francês recebe o nome de
“album” ou “livre d’images”, em Portugal “álbum ilustrado”, em espanhol “álbun” e em
língua inglesa “picturebook”, “picture book” e “picture-book”. (2011, p. 23)

O livro de Van der Linden é um dos poucos estudos teóricos publicados no Brasil
sobre livros ilustrados, e sua leitura torna-se indispensável para os interessados na área.

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀34


Esse campo de estudos, de configuração recente, se beneficia com as considerações da
autora, fortemente amparadas por estudos de caso de livros ilustrados franceses, uma ex-
ceção num cenário dominado por traduções de obras de língua inglesa. Entre nós, ao
invés de uma afinidade com os termos empregados nas línguas latinas, mais próximas ao
português falado no Brasil (a começar pelo português falado em Portugal), tem sido mais
frequente a aproximação com a língua inglesa. O termo “livro ilustrado” tem sido empre-
gado nas traduções de publicações estrangeiras, como é o caso do próprio livro de Van der
Linden – no original francês Lire l’album (2006), traduzido como Para ler o livro ilustrado
pela editora brasileira Cosac Naify. Como essa editora foi pioneira na tradução e publi-
cação em português de importantes estudos na área,6 pode-se supor que a nomenclatura
adotada em suas traduções venha a se consolidar no Brasil, como aponta a tradução, pela
Rosari, do livro Livro Infantil Ilustrado: A arte da narrativa visual (no original em inglês,
Children’s Picturebooks: The Art of Visual Storytelling) de Morag Styles e Martin Salisbury,
publicado em 2013.
Na tradução para o português de outro importante livro de referência, How pictu-
rebooks work, de Maria Nikolajeva e Carole Scott (2006), a Cosac Naify assim justifica em
nota de rodapé a escolha do termo “livro ilustrado”: “Como no Brasil essa nomenclatura
ainda é controversa, optou-se pelas seguintes traduções: picturebook para ‘livro ilustrado’,
illustrated book, picture book e books with pictures para ‘livro com ilustração’” (2011, p. 13).
Como esse tipo de livro inscreve-se em um campo de configuração recente, ainda em pro-
cesso de consolidação, a explicação da editora é bastante oportuna, uma vez que o termo
“livro ilustrado” em português ainda não remete indubitavelmente para o picturebook, e
seu uso pode gerar confusão. De fato, em artigo publicado em 24 de agosto de 2012 no site
brasileiro de notícias sobre o mercado editorial PublishNews, o colunista norteamericano
Mike Shatzkin discorre sobre a evolução dos livros ilustrados na era digital, enumerando
as características e variedades desse tipo de publicação:

6 A Cosac Naify encerrou suas atividades em 2016. Até o momento da redação final dessa tese,
constavam em seu catálogo quatro livros traduzidos, sendo o de Alan Powers o primeiro (2008),
seguido de Peter Hunt (2010), Maria Nikolajeva & Carole Scott (2011) e Sophie Van der Linden
(2011), além de um título nacional, Traço e prosa (2012), escrito a seis mãos pelos ilustradores
Odilon Moraes e Maurício Paraguassu e pela educadora e especialista em literatura infanto-juvenil
Rona Hanning.

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀35


Livros são ilustrados por duas razões: beleza ou propósito de explicação, mais a segunda do
que a primeira. Se são ilustrados para explicar melhor, como tricotar, fazer uma vela ou uma
joia, não seria um vídeo uma opção melhor na maioria das vezes? Se a ilustração for um
mapa, não é provável que organizar digitalmente as camadas (pelo movimento do tempo,
das tropas num campo de batalha ou o ajuste das fronteiras) vai trazer mais clareza do que
as imagens nos livros?7

Na verdade, Shatzkin se refere a “livros com ilustrações” – illustrated books, como se


pode conferir ao consultar o texto original em seu blog8. A confusão gerada pela impreci-
são da terminologia em português chama a atenção da editora especialista em literatura
infanto-juvenil Dolores Prades, também colunista do PublishNews, que publica uma res-
salva poucos dias depois:

[...] o panorama atual do livro infantil, o mercado, e as transformações que ele vem sofrendo
devido às novas plataformas digitais, colocam o livro ilustrado em evidência. Na última
sexta-feira, o PublishNews publicou a coluna de Mike Shatzkin dedicada à discussão. Me
chamou logo a atenção o fato de ele abrir um espectro vastíssimo para se referir ao livro
ilustrado e não tratar em momento algum do livro ilustrado infantil.9

Não é exagero, portanto, enfatizar a importância de deixar bem claro o tipo de publi-
cação que configura o objeto de estudo dessa pesquisa. Considera-se que este seja um dos
passos fundamentais para delimitar de maneira inequívoca esse campo de estudos, de con-
figuração relativamente recente no cenário internacional, e mais recente ainda no Brasil.

7 “Qual é o caminho para o mercado de livros ilustrados?” PublishNews, coluna “Arquivos de


Shatzkin”, 24/08/2012. Disponível online em http://www.publishnews.com.br/telas/colunas/
detalhes.aspx?id=69949. Acesso em 25 ago. 2012. Na coluna “Arquivos de Shatzkin”, o consultor
novaiorquino aborda os desafios e oportunidades apresentados pela nova era digital. Os textos
originais, em inglês, são publicado em seu blog, “The Shatzkin Files”.
8 No original: “Books are illustrated for two reasons: beauty or explanatory purpose, more the latter
than the former. When they’re illustrated to better explain, such as showing you how to knit a stitch
or make a candle or a piece of jewelry, wouldn’t a video be a better option most of the time? If the
illustration is a map, isn’t it likely that being able to manage overlays digitally (for the movement of the
weather or the troops on the battlefield or the adjustment of borders over time) will deliver more clarity
than whatever stills were in the book?” “Somebody please tell me the path to survival for the illustrated
book business”. The Shatzkin Files, 6/10/2012. Disponível online em http://www.idealog.com/blog/
somebody-please-tell-me-the-path-to-survival-for-the-illustrated-book-business/. Acesso em 25
ago. 2012.
9 “O futuro dos livros ilustrados”. PublishNews, coluna Pequenos Grandes Leitores, 27/08/2012.
Disponível online em http://www.publishnews.com.br/telas/colunas/detalhes.aspx?id=69972.

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀36


 Campo฀de฀estudo฀recente

O livro ilustrado se insere no campo da literatura infantil, que vem se firmando


como um campo de estudos relevante no cenário acadêmico internacional há não mui-
tas décadas. No Brasil, as primeiras publicações aparecem com Leonardo Arroyo (2011
[1968]), reeditado até hoje; Cecilia Meireles (1984 [1950]), Nelly Novaes Coelho (1981) e
Regina Yolanda (1977), para mencionar alguns dos mais conhecidos. Além destes e outros
títulos brasileiros tratando do livro infantil em geral, o exame da literatura de referência
nacional que enfoque especificamente o livro ilustrado revela sua extrema escassez. Até o
momento da conclusão dessa pesquisa, é possível localizar apenas sete títulos de autores
nacionais sobre o tema: ao pioneiro Luís Camargo (Ilustração do livro infantil, 1995), se-
guem-se, neste século, Guto Lins (Livro infantil? projeto gráfico, metodologia, subjetivida-
de, 2004), Ieda de Oliveira (O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com
a palavra o ilustrador, 2008), Rui de Oliveira (Pelos Jardins Boboli: Reflexões sobre a arte
de ilustrar livros para crianças e jovens, 2008), Lúcia Pimentel Goés (A Alma da Imagem: a
ilustração nos livros para crianças e jovens na palavra de seus criadores, 2009), Graça Ra-
mos (A imagem nos livros infantis: Caminhos para ler o texto visual, 2011) e Rona Hanning,
Odilon Moraes e Maurício Paraguassu (Traço e Prosa, 2012).
Há que se destacar, neste cenário, a atuação da editora Cosac Naify que, em seus de-
zoito anos de existência, além de publicar livros ilustrados infantis de esmerada qualidade,
traduz para o português importantes títulos de referência para este campo de estudos:
Alan Powers (Era uma vez uma capa: história ilustrada da literatura infantil, 2008), Peter
Hunt (Crítica, teoria e literatura infantil, 2010), Maria Nikolajeva & Carole Scott (Livro
ilustrado: palavras e imagens, 2011) e Sophie Van der Linden (Para ler o livro ilustrado,
2011). Outras casas editoriais também demonstram interesse pela área, como denota a
publicação em português, pela Rosari,10 do importante livro de referência Livro Infantil
Ilustrado: A arte da narrativa visual (2013), de Morag Styles e Martin Salisbury.
A literatura em idiomas estrangeiros sobre livros ilustrados é bem mais extensa, e
vem continuamente crescendo em quantidade e qualidade. Alguns dos títulos em língua

10 A editora tem catálogo voltado para obras na área de design e artes gráficas, tendo publicado
em 2004 o livro de Guto Lins.

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀37


inglesa que trazem maiores contribuições para essa pesquisa são os de Perry Nodelman
(Words about Pictures: The Narrative Art of Children’s Picture Books, 1989), Maria Nikola-
jeva e Carole Scott (How picturebooks work, 2001), Evelyn Arizpe & Morag Styles (Children
Reading Pictures, 2003), Teresa Colomer et al. (New Directions on Picturebook Research,
2010), Sandra Beckett (Crossover Picturebooks: a genre for all ages, 2012) e Evelyn Arizpe et
al. (Picturebooks: Beyond the borders of art, narrative and culture, 2013).11

 Sinergia฀entre฀imagens,฀palavras฀e฀design

Especialistas como Nikolajeva e Scott afirmam que “o caráter ímpar dos livros ilus-
trados como forma de arte baseia-se em combinar dois níveis de comunicação, o visual e
o verbal” (2011, p. 13, grifo meu). Na extensa análise que Nikolajeva e Scott fazem do livro
ilustrado cabe acrescentar, conforme já assinala Bader (1976), que, além da interação entre
palavras e imagens, o livro ilustrado é uma obra que resulta também de um projeto com-
plexo de design gráfico, que contempla, além dos aspectos visuais, também os aspectos
materiais do suporte físico, o códice. Trata-se de um tipo de livro que apresenta especial
interação entre pelo menos três linguagens: além da sinergia entre palavras e imagens na
construção da narrativa, também o projeto gráfico contribui nessa construção.
Conforme os diferentes graus de prevalência de palavras ou de imagens, são comu-
mente classificados em três diferentes categorias: 1. livros de imagem, 2. livros ilustrados e
3. livros com ilustrações. Na prática percebe-se uma vinculação a diferentes faixas etárias,
ou melhor dizendo, competências de leitura verbal:12 pré-leitores são geralmente as crian-
ças pequenas, que ainda não dominam o código escrito mas são perfeitamente capazes
de ler a narrativa imagética; leitores iniciantes ou leitores em processo, que já dominam
o código escrito mas ainda não têm fôlego para acompanhar textos muito extensos ou

11 Pude ampliar consideravelmente meu conhecimento a respeito da literatura de referência


publicada em língua estrangeira durante uma estadia de três meses, em 2011, na Internationale
Jugendbibliothek, Munique, na condição de pesquisadora bolsista do Ministério das Relações
Exteriores da Alemanha, e no período de 12 meses de doutorado-sanduíche na Universidade de
Cambridge, entre 2014 e 2015, com bolsa da agência CAPES do governo brasileiro.
12 A respeito da classificação dos leitores conforme seus diferentes níveis de fluência na leitura,
empregamos as definições apresentadas Nelly Novaes Coelho (2000).

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀38


complexos; e leitores fluentes, leitores críticos ou leitores jovens, capazes de ler e fruir, sem
auxílio, textos de maior extensão ou complexidade.

 1. No livro de imagem a narrativa acontece por meio de uma sequência de ilus-


trações, prescindindo do uso de palavras. Há mesmo quem se refira a eles como “livros
sem texto”, denominação que não consideramos adequada, por limitar o conceito de texto
à existência de palavras. No entendimento dessa pesquisa, os textos podem ser construídos
por meio de outras linguagens além da verbal, sendo aqui privilegiado o texto imagético.
Em língua inglesa, são chamados de wordless picturebooks, o que de certa forma os coloca
como uma subcategoria dos livros ilustrados, ideia endossada por essa pesquisa. Mantem-se
essa ideia mas, por questões de síntese, simplifica-se a tradução literal “livro ilustrado sem
palavras” em favor da expressão “livro de imagem”, mais sintética e de uso corrente no Bra-
sil. O autor dos livros de imagem é essencialmente o ilustrador, embora haja casos onde a
concepção da história seja de autoria de outra pessoa. Embora tradicionalmente associados
às crianças pequenas (os pré-leitores), não se restringem necessariamente a esse público. Há
vários livros de imagem de grande complexidade narrativa, estética e temática, que podem
ser apreciados também por leitores mais velhos e experientes, como é o caso de Cena de rua.

 2. No livro ilustrado a narrativa acontece por meio da interação inseparável en-


tre palavras e imagens. O texto verbal é geralmente curto, e as ilustrações são abundantes
e imprescindíveis – se forem eliminadas, ou mesmo substituídas por outras, o livro perde
sua identidade e torna-se uma obra diferente. Esse tipo de livro é concebido em sistema
de coautoria entre o escritor e o ilustrador, que frequentemente assume as duas funções.
Nesse caso, é por vezes chamado de autor de dupla vocação, entre muitas outras variações,
não havendo ainda consenso a respeito dessa nomenclatura. Seu público leitor é formado
preferencialmente por crianças mais velhas, os leitores em processo ou iniciantes.

 3. No livro com ilustrações a presença de imagens é mais discreta, desempe-


nhando um papel periférico na construção da narrativa, que é elaborada essencialmente
por meio de textos verbais mais extensos e complexos. Ou seja, as ilustrações podem ser
substituídas por outras, ou mesmo suprimidas, sem que o livro perca sua identidade. O

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀39


escritor é o autor da obra, cabendo ao ilustrador uma contribuição acessória. De certa
forma, esses livros representam uma transição para os livros destinados ao público adulto,
sendo voltados para um público jovem e mais experiente – os leitores críticos ou fluentes.

Essa pesquisa não contempla a análise de livros com ilustrações, onde as imagens
desempenham papel acessório. Embora existam livros com ilustrações de excepcional
qualidade artística, adota-se aqui o critério de examinar apenas as outras duas categorias,
onde a narrativa imagética tem papel fundamental. Além da quantidade de imagens e de
sua importância na construção da narrativa, há outras características formais considera-
das no projeto gráfico que diferenciam os livros com ilustrações, de um lado, e os livros de
imagem e os livros ilustrados, de outro.
Nos livros com ilustrações, já mais próximos das características formais de publica-
ções para adultos, parecem prevalecer critérios de otimização comercial dos custos de pro-
dução. Obedecem a padrões mais constantes praticados pelo mercado quanto a medidas
(sendo 14 x 21 cm e 16 x 23 cm as mais frequentes) e formato (quase que exclusivamente
verticais), economia de cores no miolo (frequentemente impressos em preto e branco,
eventualmente incluindo uma segunda cor), papel mais barato (não sendo a impressão
colorida, o papel pode oferecer menos qualidade para reprodução de cores, sendo também
mais barato, como o do tipo offset), necessário para equilibrar o maior gasto de papel
ocasionado pela maior quantidade de páginas (a narrativa verbal, mais extensa, demanda
mais páginas para acomodar o texto diagramado). A capa é colorida, mas o acabamento
é geralmente padronizado (a laminação fosca substituindo os outrora mais frequentes
verniz brilhante e plastificação), assim como a encadernação em brochura.
Os livros de imagem e os livros ilustrados oferecem um espaço para experimentação,
principalmente formal, de que poucos livros para o público adulto ou jovem dispõem. Por
apresentarem narrativas mais curtas, têm menor número de páginas (em geral, até 48),
porém demandam papel de qualidade superior (geralmente do tipo couché, recoberto
por uma camada de gesso) que oferece melhor suporte para a impressão das abundantes
ilustrações, quase sempre coloridas (reproduzidas por meio da combinação por sobrepo-
sição de tintas transparentes em quatro camadas – cyan, magenta, amarelo e preto – que
resultam em razoável aproximação das cores das ilustrações originais). Sendo o suporte

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀40


tão importante na identidade desses livros, nota-se um elevado grau de variação em suas
medidas e formatos – além de verticais, horizontais e quadrados, há também livros em
diferentes formas geométricas ou orgânicas, que dialogam com a temática (por exemplo,
livros sobre animais que seguem suas silhuetas). Além disso, há outros recursos como re-
cortes vazados, dobras, pop-up (engenharia de papel onde formas recortadas e dobradas
saltam das páginas viradas, em efeito cinético tridimensional), tintas e vernizes especiais
(luminosos, metálicos, texturizados, holográficos) e muitas outras possibilidades que o
desenvolvimento tecnológico vem cada vez mais oferecendo. Todos esses recursos podem
ser empregados pelos artistas na criação de obras com forte apelo estético e lúdico, sendo
esse último componente fundamental para estabelecer uma conexão bem-sucedida com o
público infantil, particularmente.

1.3฀฀ “uma฀experiência฀para฀a฀criança”:฀
o leitor infantil, esse desconhecido

A atração pelo lúdico não se restringe ao universo infantil, no entanto: faz parte da
natureza humana. Em seu livro pioneiro Homo Ludens (2008 [1938]), hoje uma referência
clássica, o historiador e teórico da cultura Johan Huizinga defende que, mais do que homo
sapiens ou homo faber, nossa espécie é melhor definida como homo ludens, tal a importân-
cia que o componente lúdico tem na cultura. O autor é enfático ao sublinhar que o jogo é
não apenas um elemento na cultura, mas da cultura. Huizinga discorre amplamente sobre
as relações do jogo com diversas atividades humanas, como o direito, a guerra, o conheci-
mento, a filosofia, a poesia, a música, a dança, mas seu exame das conexões entre o jogo e
as artes plásticas deixa a desejar – ele cita como exemplo “o arquiteto, o escultor, o pintor,
o desenhista, o ceramista e o artista decorativo” que, apesar do impulso estético criativo,
estão sujeitos às regras de execução material de suas obras “mediante um trabalho longo e
penoso” (p. 185-186). Essa pesquisa entende que o livro ilustrado se oferece ao leitor infantil
como um jogo, atividade muito importante na cultura infantil, para cuja realização, nesse
caso, acontece a celebração de um contrato de comunicação13 entre o autor e o leitor. No

13 Ver mais sobre contrato de comunicação com o leitor infantil no próximo capítulo.

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀41


jogo, há regras previamente definidas entre os participantes, que podem ser negociadas
com certa flexibilidade segundo suas vontades. Essa relação, no entanto, é fortemente as-
simétrica: lembremos que a própria palavra “infância” vem de infans, aquele que não tem
condições de falar por si, que ainda não tem voz própria. Ainda que essa concepção sofra
uma grande mudança ao longo dos séculos, e agora se entenda que a criança é sujeito ativo
na construção de sua identidade, seu conhecimento, com cultura própria, ela se move em
um universo adulto, até nele ser absorvida com a progressão dos anos e da aculturação.
Em ensaio polêmico publicado em 1984, Roland Barthes proclamava a morte do au-
tor, destronado por força da tomada de poder pelo leitor, esse sim o verdadeiro construtor
da narrativa: “O nascimento do leitor deve ser pago com a morte do autor”.14 Teria o leitor
infantil o mesmo poder atribuído por Barthes ao leitor adulto? Poderia o leitor infantil
empreender a leitura de um texto (verbal ou visual) em seus próprios termos, de modo tão
autônomo? Parece difícil que essa “democratização” nos papéis negociados em contratos
de leitura contemple as crianças, e uma dentre as muitas razões que se pode apontar diz
respeito ao pouco conhecimento sobre as experiências estéticas do leitor infantil, para
além dos aspectos de seu desenvolvimento sensório-motor, psicológico, cognitivo, etc.
Até a ascensão da burguesia não há uma percepção social a respeito da infância
enquanto fase do desenvolvimento humano com características particulares. As crianças,
que já foram vistas como “pequenos selvagens” ou, no extremo oposto, excessivamente
romantizadas, hoje são objeto de atenção principalmente na pedagogia e na psicologia,
e também no marketing, constituindo um importante segmento consumidor. Para me-
lhor compreender as experiências estéticas vividas pelo leitor infantil, seria proveitoso
empreender pesquisas de campo diretamente com as crianças, em contextos variados, e
não apenas nas escolas, que de modo geral tendem a enfatizar mais o aspecto pedagógico
e instrumental da leitura, ainda que inúmeros projetos de leitura por todo o país venham
promovendo uma renovação dessas concepções. Tais pesquisas de campo com as crianças
informariam os agentes adultos da cadeia produtiva do livro com dados reais, quando o
que existe atualmente vai pouco além de suposições diversas a respeito da recepção pelo

14 “La naissance du lecteur doit se payer de la mort de l’auteur”. La mort de l’auteur. In: Le
bruissement de la langue. Essais critiques IV. Paris: Seuil, 2000, p. 63-69.

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀42


público infantil. Para tanto, uma abordagem fenomenológica poderia ser proveitosa: a
suspensão do juízo proposta pela fenomenologia parece bastante benéfica a uma pesquisa
interessada em respostas autênticas do público infantil, com todas as surpresas que pos-
sam revelar.
A vertente que mais se interessa pelas experiências estéticas de leitura é a Estética da
Recepção, e aqui se apresenta um possível ponto de tensão com a fenomenologia quanto
ao “horizonte de expectativas”. Para a Estética da Recepção, existe um horizonte de expec-
tativas em torno das obras literárias, e experiências prévias do leitor seriam mobilizadas
quando do contato com novas narrativas. Teriam os leitores infantis tais horizontes de ex-
pectativas? Não estariam eles mais próximos de uma experiência fenomenológica em sua
interação com os livros ilustrados? Um instigante ponto de atrito, que pode trazer uma
faísca iluminadora, tomando-se o devido cuidado de evitar um incêndio. Por essa e por
outras razões, essa pesquisa opta por manter em suspenso uma abordagem mais explícita
do leitor infantil, assinalando mesmo assim o interesse para o campo da literatura infantil
de futuras pesquisas investigando as condições de produção e circulação dos livros ilus-
trados no contexto brasileiro.
Essa pesquisa trata de examinar o jogo que propõem os criadores do livro ilustrado,
concentrando-se naqueles de dupla vocação – assim chamados os que tanto escrevem
quanto ilustram, e que nos três casos específicos aqui examinados, bem podem ser desig-
nados por autores de tripla vocação, visto que pensam o livro ilustrado também enquanto
objeto de design. Quando se busca analisar o livro ilustrado, encontramo-nos em zona de
transição onde os limites são cambiáveis: não se trata de literatura feita apenas de pala-
vras, tampouco se trata de imagens únicas que se oferecem à contemplação; trata-se antes
de uma combinação de linguagens, um jogo complexo que o autor cria entre a palavra, a
imagem e o design, e que se oferece à fruição do leitor infantil, desafiando-o à decifração.
Um grande desafio do livro ilustrado reside na mobilização do imaginário do leitor,
fenômeno bem estudado pela Estética da Recepção no que diz respeito principalmente
à palavra impressa. Nos livros ilustrados, bem como em outras formas narrativas onde
participam imagens sequenciais, como quadrinhos, animação ou cinema, a interação das
linguagens verbais e visuais pode oferecer ao leitor (ou espectador) as mesmas qualidades
de abertura oferecidas pelas narrativas verbais. Não apenas questões de competências de

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀43


leitura verbal, mas também a formação de uma cultura visual e os mecanismos de leitura
de imagens necessitam ser contempladas. Que papel poderia desempenhar o leitor infantil
desse tipo de narrativa por imagens sequenciais no livro ilustrado? Para a pesquisadora
francesa Jacqueline Danset-Léger (1988),

O livro é um objeto complexo, com vários aspectos. E falar sobre as reações das crianças é
usar um termo vago que cobre uma variedade de registros. [...] Por isso, é apenas um dos
componentes do livro, a imagem, que é enfocado aqui, e são essencialmente as respostas de
preferência e de compreensão que se considera.15

 Possibilidades฀e฀impossibilidades฀de฀definir฀
os฀livros฀ilustrados฀por฀seu฀público฀leitor

Os livros infantis percorrem um longo caminho a partir de uma concepção mera-


mente dulcis et utile (Hunt, 2010) até alcançarem, nos melhores casos, um status artístico
nos dias atuais, e os livros ilustrados, em particular, são agora considerados como uma
singular forma de arte, que compreende uma rica combinação de textos verbais e visuais
(Nikolajeva & Scott, 2011; Colomer et al., 2012). Uma maneira possível para definir esse
objeto de estudo é chamá-lo de livro ilustrado infantil, mas seria mesmo essa expressão
mais adequada? Antes de mais nada, se o livro ilustrado pode ser entendido como um
gênero da literatura infantil, parece ser incrivelmente difícil para pesquisadores chegar
a um consenso sobre o que seja de fato a literatura infantil. Uma exaustiva discussão das
diferentes visões, no mais das vezes conflitantes, que numerosos pesquisadores vem pos-
tulando para a literatura infantil é apresentada por Perry Nodelman (2008), sem chegar a
uma definição conclusiva. Algumas das mais aceitas definições dessa literatura colocam a
ênfase no leitor: ou são livros especialmente criados para crianças, ou são livros que, mes-
mo não sendo criados para esse público, caem em suas graças, como é o caso de As Viagens

15 “Le livre est un objet complexe, à multiples aspects. Et parler des réactions des enfants c’est employer
une expression vague, qui recouvre une variété de registres. [...] Aussi est-ce à un seul des composants
du livre, l’image, que l’on s’attache ici, et ce sont essentiellement des réponses de préférence et de
compréhension que l’on envisage.” p. 7.

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀44


de Gulliver e tantos outros que se convertem em clássicos da literatura infantil, como os
contos de fadas oriundos da tradição oral dos camponeses medievais.
Esse tipo de definição que toma o leitor infantil como ponto focal é refutado radi-
calmente por Jacqueline Rose, em seu provocativo The Case of Peter Pan, Or the Impossibi-
lity of Children’s Fiction (1993 [1984]). Escapando da polarização centrada nos leitores, há
também propostas como a de Peter Hunt (2010), que sugere que classificar um livro como
“infantil” é antes de mais nada uma conveniência do mercado editorial. Uma das obser-
vações de Nodelman (2008) é a de que a literatura infantil “exclui” de seu campo aquelas
obras consideradas inadequadas para os leitores infantis. Uma vez que essa pesquisa se
interessa por propostas que desafiam as convenções, ou seja, situam-se por natureza às
margens do cânone, faz mais sentido adotar as definições mais inclusivas, apresentando as
devidas justificativas. Esse é, no entanto, um caminho excessivamente longo que se desvia
da rota principal, de modo que essa pesquisa prefere chamar seus objetos de estudo de
livros ilustrados apenas, sem o infantil. Assim, o espectro se mantém abrangente o sufi-
ciente para incluir aquelas obras que Sandra Beckett chama de crossover picturebooks, caso
dos livros de nosso corpus.
Ademais, ainda que possa ser considerado um gênero da literatura infantil, o livro
ilustrado não se encaixa perfeitamente nessa definição orientada pelo público leitor: uma
crescente tendência contemporânea, especialmente forte nos países nórdicos, leva a re-
pensar sobre a natureza desses objetos e sua relação com o os leitores de diferentes faixas
etárias. A identificação dos livros ilustrados com o público infantil deve-se à persistente
noção de que a ilustração serve ao propósito de acessório do texto verbal. No caso específi-
co do livro ilustrado, o fato de trazer imagens faz essa associação com o leitor infantil ain-
da mais forte: enquanto nos livros de imagem para os pré-leitores e nos livros ilustrados
para os leitores em processo as ilustrações são ricas e abundantes, nos livros para leitores
críticos já não existem mais ilustrações. Esse é um dos aspectos fundamentais da acultura-
ção que diz respeito à alfabetização: à medida em que a aquisição de habilidades literárias
progride, a habilidade para ler e criar imagens desenhadas diminui, como concluem Ariz-
pe & Styles (2003) a partir dos resultados de sua pesquisa de campo em escolas britânicas.
Além dos educadores, também os autores estão conscientes desse movimento de
“encolhimento” da visualidade nos livros, lamentado pelo premiado ilustrador britânico

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀45


Anthony Browne: “Creio que, enquanto sociedade, nós subestimamos o visual. Com de-
masiada frequência vejo como, na educação, as crianças são privadas de imagens – pas-
sando de livros ilustrados para palavras – como se isso fosse parte do desenvolvimento de
sua formação; a transformação de uma criança em um adulto.”16 Chegando à idade adulta,
alguns indivíduos escapam a esta restrição, entre eles os artistas visuais, categoria onde se
incluem os ilustradores; e dentre estes, particularmente aqueles que se dedicam aos livros
infantis mantém um contato próximo com o imaginário infantil, seja por serem as crian-
ças seu principal público alvo, seja por mobilizarem suas próprias memórias afetivas da
infância. Nota-se que muitos deles lidam com as imagens com a mesma desenvoltura e
falta de preconceitos como fazem as crianças, e suas obras refletem por sua vez a maneira
igualmente desprovida de preconceitos com a qual esses artistas percebem o público in-
fantil. Essa aproximação dos imaginários pode favorecer a diminuição da assimetria no
contrato de comunicação, mas ainda assim essa é uma questão que permanece aberta a
considerações.
Uma característica particular da literatura infantil é o fato de se dirigir a uma au-
diência dupla, formada não apenas por crianças, os leitores implícitos, mas também por
mediadores adultos. Jochen Weber, especialista da IJB, questiona se certos livros ilustrados
são livros para crianças pequenas, para adultos experientes ou as duas coisas – ou melhor
ainda, se a questão da audiência é sequer importante (apud Beckett, 2012, p. 200). De fato,
nos países nórdicos os livros ilustrados já superam a barreira etária e existem publicações
de grande complexidade temática e estilística. Allalderslitteratur, traduzido literalmente
como “literatura para todas as idades”, é o termo criado na Noruega para designar esses
livros que atraem audiências duplas, e naquele país tornam-se itens de colecionador para
art conoisseurs (Beckett, 2012, p. 167).
Por outro lado, Carole Scott considera que a criança com pouco ou nenhum letra-
mento verbal está em situação vantajosa quanto à leitura de imagens:

16 “I believe we undervalue the visual as a society. Too often I see children’s education mean that they
grow out of pictures – away from picturebooks into words – as though that’s part of the development of
a child’s education; the development of a child into an adult.” Anthony Browne apud Beckett (2012,
p. 205).

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O livro ilustrado tende a fazer da criança e do adulto parceiros mais igualitários, uma vez
que ler imagens não só está dentro das capacidades da criança, como também sua visão,
imperturbada e imaculada pela sedução da palavra impressa, pode ser até mais intensa e
perceptiva que a do adulto17 (2014, p. 40).

A ponderação de Scott, subvertendo a primazia tradicional da palavra em relação


à imagem, traduz uma visão bastante inovadora e instigante que convida a posteriores
explorações, ainda que fora do escopo da presente pesquisa.

1.4฀฀ “um฀documento฀histórico,฀social฀e฀cultural”฀

 ฀Orbis฀pictus

A imagem está a serviço do aprendizado da leitura desde o primeiro livro ilustrado


voltado especialmente para as crianças: o dicionário ilustrado Orbis Sensualium Pictus,
publicado em 1658, em Nuremberg, pelo educador tcheco Jan Amos Komensky, nome
mais conhecido em sua forma latinizada, Comenius. Comenius foi um educador com
ideias muito avançadas para a época, sendo considerado o precursor de Rousseau, Pestalo-
zzi, Fröbel. Sua influência na educação chega a ser comparada à que seus contemporâneos
Bacon e Descartes exercem na ciência e na filosofia, e de fato Comenius busca aplicar na
educação, de maneira sistemática, os princípios de pensamento e investigação que aqueles
desenvolvem. Um aspecto importante da influência de Comenius na educação diz res-
peito a seus métodos de ensino, baseados no emprego de uma série de livros de natureza
inovadora: Janua Linguarum Reserata, Vestibulum e Atrium, publicados a partir de 1631.
Para facilitar o acesso das crianças a esses livros, de texto apenas, em 1658 Comenius pu-
blica Orbis pictus, que logo alcança grande popularidade – pela primeira vez, imagens são
empregadas com sucesso para ensinar as crianças.18 Orbis pictus e os livros anteriores de

17 “The picturebook tends to make the children and the adult more equal partners, for reading
pictures is not only within the child’s capacity, but also, undistracted and unspoiled by the seduction of
the printed word, the child’s vision may be even more intense and perceptive than the adult’s.”
18 Verbete “Comenius, Johann Amos”. Gilman, D. C.; Thurston, H. T.; Colby, F. M., eds. New
International Encyclopedia, 1905. Disponível online em https://en.wikisource.org/wiki/The_New_
International_Encyclopædia/Comenius,_Johann_Amos. Acesso em 29 mar 2016.

O L IVRO I LUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀47


Comenius têm por base alguns princípios fundamentais, como promover a educação uni-
versal; proporcionar às crianças um conhecimento amplo de seus ambientes físico e social,
bem como instruí-las em assuntos religiosos, morais e clássicos; e fazer desta aquisição
de conhecimento um prazer mais do que uma obrigação. Para tal, Comenius considera
importante formar ideias a partir de objetos, mais do que por palavras, começando pelos
objetos familiares à criança, à maneira de introdução ao mundo de objetos mais remotos
e a idiomas estrangeiros.
Orbis pictus é portanto um livro demonstrativo, sem narrativa, apresentando uma
estrutura constante: em cada página, uma ilustração na parte superior mostra um item
acompanhado de seu nome, e um texto explicativo aparece ora na parte inferior da página,
ora na página ao lado, conforme o volume de texto necessite de mais ou menos espaço
para ser acomodado. Na primeira edição, de 1658 em Nuremberg, o texto aparece em ale-
mão e latim, em duas colunas. Na maior parte das traduções subsequentes, o texto aparece
na língua nativa da criança e em latim, mas em 1685 surge uma edição tcheca quadrilíngue,
em tcheco, latim, alemão e húngaro.

Figura 1. Orbis sensualium pictus (edição de 1658).

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No “Prefácio do Autor ao Leitor”, Comenius deixa claro que o leitor a quem se dirige
não é primeiramente a criança, mas o mestre que a instrui:

Vejam então aqui um novo auxílio para escolas, Uma Imagem e Nomenclatura de todas
as principais coisas no mundo, e das ações dos homens em seu modo de viver: As quais
vocês, bons Mestres, não devem relutar em examinar com seus alunos, eu lhes contarei,
brevemente, que bem podem esperar disto. (1887, xv)19

Apesar da referência explícita aos “bons mestres”, a preocupação com as crianças é


onipresente, contemplando não apenas o objetivo final de proporcionar conhecimento sem
sofrimento, mas observando o que parece de fato agradar a elas: “I. Atrair crianças espertas,
de modo que não considerem um tormento estar na escola, mas antes uma atividade agra-
dável. Pois é evidente que as crianças (mesmo desde tenra idade) se encantam com Imagens,
e de bom grado satisfazem seus olhos com suas luzes.” (idem, xvi).20 O acesso ao livro deve
ser livre, mesmo antes de qualquer expectativa de desempenho escolar, para que as crian-
ças se deleitem com as imagens conforme sua própria vontade: “I. Que sejam oferecidos às
crianças em suas próprias mãos, para que se deleitem com eles como queiram, com a visão
das imagens, mesmo em casa, antes que sejam colocadas em escolas.” (idem, xix)21
De fato, Comenius parece ter atingido seu propósito, pois o livro alcança enorme
popularidade, circulando por toda a Europa em várias traduções durante séculos, chegan-
do mesmo aos Estados Unidos.22 As constantes reimpressões causam desgaste nas matri-
zes, e torna-se difícil conseguir cópias de boa qualidade para fazer reproduções, como se
lê no prefácio do editor da edição americana de 1887, disponível em versão e-book pelo
Projeto Gutenberg:

19 “See here then a new help for schools, A Picture and Nomenclature of all the chief things in the
world, and of men’s actions in their way of living: Which, that you, good Masters, may not be loath to
run over with your scholars, I will tell you, in short, what good you may expect from it.”
20 “To entice witty children to it, that they may not conceit a torment to be in the school, but dainty
fare. For it is apparent, that children (even from their infancy almost) are delighted with Pictures, and
willingly please their eyes with these lights.”
21 “I. Let it be given to children into their hands to delight themselves withal as they please, with the
sight of the pictures, and making them as familiar to themselves as may be, and that even at home
before they be put to school.”
22 Comenius chega a ser convidado para ser Presidente do Harvard College, mas prefere perma-
necer na Suécia.

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Quando se lembra que esta obra é não apenas um clássico educacional de importância
primordial, mas que foi também o primeiro livro ilustrado feito para crianças e, por
séculos, o livro-texto mais popular da Europa, e que ainda assim tenha sido por muitos anos
inacessível em virtude de sua raridade, é admirável não que ele esteja sendo reproduzido
agora, mas que não tenha sido reproduzido antes. A dificuldade residiu, no entanto, em
achar uma cópia satisfatória. Por muitas que tenham sido as edições, poucas cópias foram
preservadas. Era um livro adorado pelas crianças, que desgastavam suas páginas folheando-
as vezes sem conta para ver as figuras.23

A preocupação de Comenius com as preferências infantis são precursoras de um dos


princípios definidores do que seja a literatura infantil – aquelas obras que circulam entre
as crianças, caindo no seu gosto, mesmo que não tenham sido incialmente concebidas
para esse público, como é o caso de tantos clássicos.

 ฀A฀invenção฀da฀infância

Na verdade, a separação entre os mundos infantil e adulto é um fenômeno rela-


tivamente recente na cultura ocidental. Em História social da criança e da família (2014
[1960]), livro que representa um divisor de águas no estudo da infância, o pesquisador
francês Philippe Ariès defende que durante a Idade Média esse conceito é inexistente.24 A
mortalidade infantil altíssima faz com que as crianças só sejam levadas em conta depois
que são capazes de viver sem ajuda de suas mães, babás ou outros cuidadores, quando
então ingressam no mundo dos adultos. A percepção social em relação às crianças co-
meça gradualmente a se alterar em função de fatores como a diminuição da mortalidade

23 “When it is remembered that this work is not only an educational classic of prime importance, but
that it was the first picture-book ever made for children and was for a century the most popular text-
book in Europe, and yet has been for many years unattainable on account of its rarity, the wonder is,
not that it is reproduced now but that it has not been reproduced before. But the difficulty has been to
find a satisfactory copy. Many as have been the editions, few copies have been preserved. It was a book
children were fond of and wore out in turning the leaves over and over to see the pictures.” Disponível
online em http://www.gutenberg.org/ebooks/28299. Acesso em 15 jan. 2016.
24 A obra de Ariès é considerada um texto fundador no campo de história da infância, mas
nem por isso seus postulados são unanimemente aceitos. Há muitas críticas, por exemplo, à sua
afirmação que o conceito de infância não existia no período medieval, aos critérios que emprega
para compilar seus argumentos, ou ao uso que faz de artefatos artísticos como evidência histórica,
para citar apenas algumas das principais.

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀50


infantil, as mudanças no sistema de educação, o aumento da estratificação social, e um
gradual isolamento da família da rede ampliada de relações sociais. Mais que uma ideia,
o “sentimento” de infância começa a se formar nas classes altas nos séculos XVI e XVII,
consolidando-se no século XVIII e a seguir espalhando-se para as classes média e baixa,
onde apenas em fins do século XIX e início do século XX chega a ser realmente absorvido.
Ariès recolhe evidências para seus argumentos ao examinar obras de arte onde crian-
ças são retratadas – antes do Renascimento, existem bebês nas pinturas, mas não crianças.
Estas são representadas como adultos em miniatura, traduzindo visualmente a percepção
social vigente. Aliás, o proprio conceito de idade cronológica não existe na época – as
pessoas não sabem nem se importam em saber suas idades. Apenas com o surgimento do
conceito de infância, quando as crianças passam a ser percebidas como um grupo social
de características próprias, é que a segregação por idade começa a acontecer. Até então, as
crianças compartilham indistintamente as atividades com adultos, como trabalho, jogos,
brincadeiras – até mesmo aquelas de conotação sexual: na era pré-moderna, considera-se
que as crianças são absolutamente desprovidas de sexualidade, portanto indiferentes a
qualquer referência de natureza sexual. Segundo Ariès, é a partir da ascenção das escolas,
onde grande parte dos educadores se compõe por religiosos preocupados não apenas com
a formação intelectual mas sobretudo com a salvação moral de seus pupilos, que as crian-
ças passam a ser percebidas como seres inocentes, cuja pureza deve ser resguardada de in-
fluências nocivas. Nos núcleos familiares que diminuem de tamanho, as crianças ganham
importância e recebem cada vez mais cuidados e atenção, e cresce a noção que devem ser
poupadas dos fatos duros da vida real.

 Contos de fadas

Um bom exemplo desse processo de “edição” – que Jack Zipes (2012) considera mes-
mo uma censura25 – dos conteúdos considerados adequados para estar ao alcance das

25 “A domesticação das fantasias ‘selvagens’ dos contos de fadas orais e literários, que pode
ser chamada de sanitização, foi consideravelmente popular no século XIX, e os contos clássicos
de Charles Perrault, Madame D’Aulnoy, irmãos Grimm e Hans Christian Andersen sofreram
adaptações bastante curiosas para crianças, devido a censura explícita ou implícita.” (No original:
“The taming of the ‘wild’ fantasies of the oral and literary fairy tales, what one might call sanitization,

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀51


crianças está nos contos da tradição oral. Durante a Idade Média, tais contos populares
circulam livremente na cultura oral dos camponeses, sendo ouvidos indistintamente por
adultos e crianças. Trazem conteúdos jocosos, sexuais, trágicos, retratando as impiedosas
condições de vida da época e frequentemente propondo subversões. Com as mudanças
sociais, culturais e econômicas trazidas pelo Renascimento, vários escritores em diferentes
partes da Europa passam a recolher e dar forma literária a tais contos, como os pioneiros
Giovanni Francesco Straparola (I piacevoli notte, 1550) e Giambattista Basile (Pentamero-
ne, publicado postumamente em 1634) na Itália.
É na França, no entanto, que a forma literária dos contos se consolida. Tradicio-
nalmente contados por mulheres das classes populares, os contos conquistam espaço nos
salões aristocráticos graças à moda lançada entre as précieuses francesas de dar forma li-
terária aos contos ouvidos de suas amas na infância, ganhando de Madame D’Aulnoy o
nome de “contos de fadas” (Les Contes des Fées, 1697). Inicialmente destinados a um públi-
co adulto, os contos de fadas são gradualmente expurgados de conteúdos violentos ou se-
xuais de modo a alcançar mais facilmente as crianças, com tal sucesso que nos séculos XIX
e XX já estão plenamente associados à literatura infantil. Ainda em 1695, Charles Perrault
publica Histoires ou Contes du Temps passé: Les Contes de ma Mère L’Oye sob pseudôni-
mo, assinando como seu filho mais velho, Pierre Darmancourt, e dedicando o livro à filha
do rei Luís XIV. Em 1740, uma das últimas précieuses, Madame Jeanne-Marie Le Prince de
Beaumont publica sua versão de A Bela e a Fera, que se torna definitiva.
Em 1812, os irmãos Grimm publicam na Alemanha Kinder- und Hausmärchen com
a preocupação de manter um registro fiel das fontes orais. Diferentemente de seus ante-
cessores, que basicamente dão forma literária a contos da tradição oral, o dinamarquês
Hans Christian Andersen publica em 1835 o primeiro volume de contos de fadas de sua
própria autoria, passando a ser considerado o “pai da literatura infantil” (Tatar, 2002, p.
335). Maria Tatar não deixa de observar que esse é um processo de certa forma redutor:
“O que uma vez pertenceu à infância da cultura foi relegado à cultura da infância” (2015,

was quite common in the nineteenth century, and the classical tales of Charles Perrault, Madame
D’Aulnoy, the Brothers Grimm, and Hans Christian Andersen underwent very curious adaptations
for children due to explicit or implicit censorship.”). p. xi.

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p. 2).26 A cultura da infância de que fala Tatar passa a incluir cada vez mais os livros como
objetos estéticos, com forte apelo lúdico, mesmo mantendo as preocupações pedagógicas
que inspiraram Comenius. De fato, quase um século depois da publicação de Orbis pictus,
o editor inglês John Newbery segue o mesmo princípio de instruir divertindo, mas ado-
tando uma postura mais comercial. Se o livro de Comenius alcança grande popularidade
nas escolas, as publicações de Newbery tornam-se grandes sucessos de mercado.

1.5฀฀ “um฀item฀manufaturado฀e฀um฀produto฀comercial”฀

 A Little Pretty Pocket Book

A Little Pretty Pocket Book é o primeiro livro para crianças publicado por John
Newbery, em 1744, sendo considerado o primeiro livro ilustrado em língua inglesa (o que
leva muitos pesquisadores a considerarem-no o primeiro livro ilustrado de todos). Ao
conceber este pequeno livro, Newbery, que já tinha experiência no ramo editorial, inspira-
se nas ideias do filósofo inglês John Locke (2007 [1693]), para quem “as crianças podem
ser levadas ao conhecimento das letras; ser ensinadas a ler, sem perceberem nisso senão
um jogo, e divertirem-se quando outras seriam castigadas”.27
O apelo ao divertimento infantil fica claro já a partir do título completo do livro,
endereçado ao “Little Master Tommy” e à “Pretty Miss Polly”: A Little Pretty Pocket-Book,
intended for the Amusement of Little Master Tommy and Pretty Miss Polly with Two Letters
from Jack the Giant Killer [Um Bonito Livrinho de Bolso, destinado à Diversão do Peque-
no Mestre Tommy e da Linda Senhorita Molly, com Duas Cartas de Jack, o Matador de
Gigantes]. Newbery dirige-se não apenas aos adultos que adquirem suas publicações, mas
também às crianças que as lêem, o que representa uma considerável inovação na época. A
Little Pretty Pocket Book traz poemas de rimas simples sobre jogos e brincadeiras, um para

26 “What once belonged to the childhood of culture has been relegated to the culture of childhood”.
27 “children may be cozened [tricked] into a knowledge of the letters; be taught to read, without
perceiving it to be anything but a sport, and play themselves into that which others are whipped for.”
Disponível online em www.fordham.edu/halsall/mod/1692locke-education.html. Acesso em 15
jan. 2015.

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Figura 2. A Little Pretty Pocket Book, 1770.

cada letra do alfaberto em sequência. Uma ilustração em xilogravura no topo da página


mostra o jogo em questão, e na parte inferior o poema acompanhado de uma moral.
Para incentivar nas crianças o aprendizado de boas maneiras e comportamento ade-
quado de maneira lúdica, o livro é acompanhado por bolas pretas e vermelhas, para os
meninos, ou uma almofada para alfinetes, para as meninas. Boas ações são recompensadas
com a colocação de um alfinete do lado vermelho, caso contrário são punidas com um
alfinete do lado preto. A apresentação gráfica do livro é esmerada: seu tamanho pequeno,
7 x 10 cm, é proporcional às mãos dos leitores infantis, e seu acabamento é sofisticado e
inovador, com capa de cores vivas, encadernação em papel dourado holandês28 e bordas
douradas. Mesmo considerando seu custo relativamente alto para a época (6 pence, o que
corresponde à metade do pagamento médio diário de um trabalhador), as famílias de
classe média consideram-no um objeto que vale o investimento, e o livro alcança vendas
expressivas durante muitas décadas, com sucessivas reimpressões e traduções para outros
idiomas (Townsend, 1994; Kokkola, 2009). O sucesso de mercado de John Newbery e sua

28 No original, Dutch gilt paper: papel altamente decorativo usado no século XVIII, conhecido
como “dourado holandês” apesar de fabricado na Alemanha e Itália. A decoração buscava imitar
os brocados e adamascados da época. A impressão em relevo era feita por blocos de madeira ou
metal e rolos metálicos, folheado a ouro e com aplicação de cor em estêncil. Eram importados
e exportados em toda Europa, e também nos Estados Unidos. Fonte: Dutch gilt papers (Dutch
flowered papers). Bookbinding and the Conservation of Books: A Dictionary of Descriptive
Terminology. Disponível online em http://cool.conservation-us.org/don/dt/dt1131.html. Acesso
em 15 mai. 2016.

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importância como referência na literatura infantil mostram a íntima ligação entre comér-
cio e cultura nesse campo, como sublinha Jan Susina (1993):

Ao honrar John Newbery, em cuja homenagem é nomeada a Medalha Newbery, concedida


anualmente por contribuição excepcional para a literatura infantil norte-americana, aqueles
envolvidos com a literatura infantil reconhecem-na tanto como um ramo da literatura
quanto um empreendimento comercial. [...] Considerações comerciais e mercadológicas
sempre foram fatores importantes na criação da literatura infantil. Consequentemente, o
exame dos usos ideológicos de textos infantis e a subsequente produção de sentido para
jovens leitores é um dos objetivos primários do estudo da literatura infantil. Como campo
de estudo literário que ainda está em processo de autodefinir o que é e o que faz, o próprio
termo “literatura infantil” permanece sujeito a debate. É revelador que uma das descrições
mais conhecidas do que constitui um livro infantil seja a observação de John Rowe Townsend
em A Sense of a Story (1971): “um livro que aparece no catálogo infantil de uma editora”,
uma definição que nitidamente liga os mundos da cultura e do comércio.29

 Galáxia de Gutenberg

Notamos, assim, que além dos dois segmentos reconhecidamente importantes na


gênese da literatura infantil – a criação de livros didáticos com preocupações pedagógicas
e a transformação de contos populares da tradição oral em contos de fadas escritos para
crianças –, a difusão comercial desse gênero permite a formação de um vigoroso mercado
consumidor. A popularização dos livros impressos tem enorme impacto na cultura oci-
dental. Marshall McLuhan, em A Galáxia de Gutenberg (2002 [1962]), defende de maneira
extremada o impacto e as consequências que os livros impressos têm na cultura ocidental
moderna, principalmente a partir da criação da imprensa de tipos móveis por Johannes

29 “In honoring John Newbery, for whom the annual Newbery Medal is named and which is given
for the outstanding contribution to American literature for children, those involved in children’s
literature acknowledge it as both a field of literature and a commercial enterprise. […] Commercial
and market considerations have always been important factors in the creation of children’s literature.
Consequently, the examination of the ideological uses of children’s texts and subsequent production
of meaning for younger readers is one of the primary goals of the study of children’s literature. As a
field of literary study that is still attempting to define itself, and what it does, the very term “children’s
literature” remains open to debate. It is revealing that one of the best known descriptions of what
constitutes a children’s book is John Rowe Townsend’s observation in A Sense of a Story (1971) ‘a
book which appears on the children’s list of a publisher’ (10), a definition that neatly links the world
of culture and the world of commerce.” Disponível online em http://muse.jhu.edu/journals/uni/
summary/v017/17.1.susina.html. Acesso em 15 jan. 2015.

O L IVRO I LUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀55


Gutenberg em 1450, donde o título do livro. Para o autor, é o advento da imprensa que
possibilita o surgimento de características da cultura moderna no Ocidente, como indi-
vidualismo, democracia, protestantismo, capitalismo e nacionalismo. Uma de suas prin-
cipais concepções é que o surgimento de uma nova tecnologia que expande a demanda
de uso de um dos sentidos, provoca uma reorganização nos sistemas cognitivos e sociais:
“Quando a tecnologia estende ou prolonga um de nossos sentidos, a cultura sofre uma
transposição tão rápida quanto rápido for o processo de interiorização da nova tecnolo-
gia” (p. 60) McLuhan identifica quatro fases distintas na linha evolutiva da cultura: cultura
oral, cultura manuscrita, galáxia de Gutenberg e idade eletrônica. Na verdade, essa pers-
pectiva de evolução histórica pode ser aplicada à evolução individual – McLuhan pensa o
“homem tipográfico” como um produto da época moderna, mas podemos pensar em um
paralelo entre essas fases históricas e o desenvolvimento infantil, especialmente quanto à
organização cognitiva ao longo do processo de alfabetização:

 Cultura oral tribal: antes da invenção da escrita, o modo de transmissão oral


conforma os modos de socialização, que pode ser visto ainda hoje em certas culturas ágrafas.
O universo da cultura oral é o primeiro a que a criança tem acesso, por meio de cantigas,
quadrinhas, parlendas, contação de histórias, etc. Os contos de fadas, uma das linhas princi-
pais na gênese da literatura infantil, vem das formas de transmissão oral da cultura popular.
 Cultura manuscrita: A transição para a cultura escrita acontece quando a crian-
ça começa a aprender a ler e a escrever, depois de praticar o desenho e adquirir destreza
manual e capacidade de expressão.30 O desenho se sofistica, e as formas iniciais de garatu-
jas se integram em uma só composição, até que a capacidade de desenhar acaba por fim
“murchando” (especialmente nas culturas ocidentais) e apenas a escrita predomina. Com-
parada à cultura impressa, predominantemente visual, a cultura manuscrita ainda é muito
audiotáctil. O livro iluminado medieval é um esplêndido produto da cultura manuscrita,
e considerado o precursor dos livros ilustrados infantis.31

30 Sobre desenvolvimento do desenho infantil, ver por exemplo Edith Derdyk, Formas de pensar
o desenho: desenvolvimento do grafismo infantil. Porto Alegre: Zouk, 2010.
31 Os desenhos animados contemporêneos, produtos da idade eletrônica, são considerados por
McLuhan semelhantes às pinturas rupestres quanto ao seu caráter audiotáctil: “O contorno muito

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 Galáxia de Gutenberg: o surgimento da impressão de tipos móveis no Ocidente
intensifica o processo de transição de uma cultura oral/aural coletiva para uma predomi-
nantemente visual, de caráter mais individualista, que vem acontecendo desde a invenção
da escrita. Depois de dominar os códigos de leitura e escrita, a criança ganha fluência na
leitura de palavras, e de certa forma perde fluência na leitura de imagens: os livros perdem
suas ilustrações em ordem proporcional à competência leitora, e o componente audiotac-
til da fruição literária diminui.
 Idade eletrônica: antecipando em trinta anos o que viria a ser a Worl Wide Web
a partir dos anos 1990, McLuhan antevê que a Galáxia de Gutenberg viria a ser suplanta-
da pelo que chama de “cultura eletrônica”: as pessoas estão ligadas por uma identidade
coletiva, simultaneamente conectadas em nível mundial, e o planeta se torna uma aldeia
global, de certa forma retornando à ideia de cultura tribal. As crianças nascidas a partir
dos anos 1990, chamadas de “nativos digitais”, já se encontram imersas nessa cultura, com
efeitos ainda muito debatidos.

McLuhan fala como a emergência de uma forma vai gradualmente eclipsando a an-
terior: como a invenção da escrita enfraquece o modo audiotactil de comunicação; como
a invenção da impressão seriada provoca o desaparecimento do manuscrito; e como che-
gamos agora a um novo ponto de transição, onde a cultura digital parece prestes a suplan-
tar a cultura letrada da Galáxia de Gutenberg, podendo causar um muito debatido mas
ainda pouco conclusivo “fim do livro”.32 As crianças mais novas, especialmente, por vezes
demonstram maior familiaridade na interação com mídias digitais do que com os livros
físicos. É interessante situar os livros ilustrados nesse cenário contemporâneo, onde é pos-
sível ressaltar o papel importante de interação e usabilidade desse suporte físico, ou seja,
sublinhar seu componente táctil.

nítido do desenho animado, do mesmo modo que o das pinturas rupestres, tendem a constituir
uma zona de interação dos sentidos e, portanto, de caráter dominantemente háptico ou táctil, que
dizer, tanto a arte do desenhista como a do gravador ou celator, são fortemente tácteis e palpáveis.”
p. 59.
32 A esse respeito, ver, por exemplo, Umberto Eco e Jean-Claude Carrièrre (2010): Não contem
com o fim do livro, Robert Darnton (2010): A Questão dos Livros ou Regina Zilberman (2000): Fim
do livro, fim dos leitores?.

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 Ilustrado desde criancinha

Templos e túmulos têm sido os maiores livros do homem, mas com o desenvolvimento da
vida individual (assim como do ritual religioso e da necessidade de registros), ele sentiu
necessidade de algo mais familiar, simpático, portátil, e tendo, com o passar do tempo,
inventado o estilete, a pena, e experimentado o papiro, a folha de palmeira, o pergaminho,
escreveu seus registros ou pensamentos, e pintou-os ou simbolizou-os, primeiro em rolos
e tabuletas; mais tarde encerrou-os em livros encadernados, com toda a beleza permitida
pela arte caligráfica, enriquecidos e valorizados por comentários pictóricos e ornamentais,
coloridos e dourados. Walter Crane33

O livro nasce ilustrado: os primeiros livros de que se tem registro são os Livros dos
Mortos egípcios, usados no Egito antigo, entre cerca de 1550 a 50 ac. como objetos ritu-
ais para acompanhar funerais (Taylor, 2010). Feitos por encomenda, esses rolos extensos,
medindo de 1m até 40m de extensão, são compostos pela colagem de diversas folhas me-
nores de papiro, planta abundante nas margens do rio Nilo. Contêm ricas combinações
de imagens desenhadas e fórmulas mágicas e orações em escrita hieroglífica, destinadas a
acompanhar e auxiliar o falecido em sua transição para o outro mundo, protegendo-o de
eventuais perigos que possa encontrar. Mais do que um suporte de registros religiosos, o
Livro dos Mortos é em si mesmo um objeto sagrado.

Figura 3. Livro dos Mortos, Papiro de Hunefer, c. 1275 ac.

33 The Decorative illustration of books. Londres: Senate, 1994. Tradução de Dorothée de Bruchard.
Disponível online em http://www.escritoriodolivro.com.br/oficios/crane.html. Acesso em 15 jan
2015.

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O rolo de papiro ou tecido continua a ser o suporte mais usado para registro de
desenhos e informações escritas por vários séculos, até ser suplantado pelo códice, que
é a forma do livro como se conhece ainda hoje, cerca de 2.000 anos depois de seu apa-
recimento. Em seu História do Livro, Frederic Barbier conta que “sua primeira aparição
conhecida, por meio de Martial, data de 85. [...] Trata-se originalmente de uma lâmina de
madeira (lat. caudex), depois, por extensão, de uma reunião de lâminas mantidas juntas
por um laço” (2009, p. 52). A popularização do códice, no entanto, acontece apenas três
ou quatro séculos depois, possibilitada pelo uso de um novo material, o pergaminho. Até
então, o volumen ou rolo, feito de papiro enrolado, é a principal forma do livro, sendo o
códice empregado apenas para trabalhos mais rápidos e breves, como notas ou rascunhos.
Ao contrário do quebradiço papiro feito de fibras vegetais, o flexível pergaminho,
produzido a partir da pele de carneiro, admite ser dobrado formando cadernos (do latim
quaterni, dobra em quatro) que, reunidos, costurados e encadernados, conformam o livro
tal como se conhece hoje. Sendo de produção extremamente trabalhosa, o pergaminho é
substituído com vantagem pelo papel depois de sua introdução na Europa pelos árabes,
entre os séculos IX e XI.
Na Idade Média, o livro continua a ser usado primordialmente em contextos reli-
giosos, na forma de manuscritos iluminados, embora a partir do século XIII um número
crescente de textos seculares comecem também a ser iluminados, como tratados de ciên-
cias, especialmente de astrologia e medicina. De produção inicialmente restrita aos mo-
nastérios, a demanda crescente por livros transforma os scriptoria em empreendimentos
comerciais urbanos, que contratam também escribas e iluminadores seculares. Precurso-
res dos modernos ilustradores, os iluminadores medievais são frequentemente reconhe-
cidos e aclamados, e muitas de suas identidades são preservadas (De Hamel, 1992, p. 60).
Um dos inconvenientes da produção de manuscritos em maior quantidade reside
na dificuldade de manter a uniformidade nos textos. Buscando superar essa dificuldade,
Johanes Gutenberg promove em 1450 o que Lawrence Hallewell (2012) chama de “a orga-
nização comercial da impressão” – o autor defende que a tecnologia em si já existia, tendo
inclusive sofrido poucas melhorias até o início da Era Industrial, no final do século XVIII.
A impressão de tipos móveis possibilita a reprodução seriada de livros com conteúdo
idêntico. No início, os livros impressos buscam uma semelhança com os manuscritos, sen-

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do chamados de incunábulos.34 Gradualmente, os livros impressos se popularizam com
notáveis efeitos na sociedade, e assumem suas próprias características. Uma delas, não
muito positiva, é a separação entre o sistema de reprodução impressa do texto, a partir de
tipos metálicos móveis, e das imagens, a partir de blocos gravados em madeira ou metal.
Essa restrição técnica provoca um certo empobrecimento nas ilustrações especialmente
no que concerne à cor, quando comparadas à exuberância das iluminuras medievais. Com
o desenvolvimento posterior das técnicas de impressão, a imagem impressa volta a assu-
mir o papel de protagonista principalmente nos livros infantis, enquanto que nos livros
para adultos não mais deixa de ser uma coadjuvante.

Impressão de tipos móveis: livros por toda parte, até nas mãos das crianças

Uma das consequências positivas da impressão de tipos móveis é baratear os livros,


permitindo sua popularização. Se os manuscritos medievais são por demais valiosos para
circular entre mãos infantis, a não ser as mais nobres, os livros impressos alcançam as
crianças de classe média, quer pelo uso escolar, como Orbis Pictus, quer enquanto entre-
tenimento, como A Little Pretty Pocket Book. Entre esses dois exemplos, publicados com
um intervalo de apenas 86 anos na Europa e Estados Unidos respectivamente, nota-se a
progressiva evolução na apresentação gráfica: embora ambos tenham no miolo ilustrações
impressas em uma cor apenas, o segundo conta com encadernação mais caprichada, um
luxo considerável para a época. O desejo de oferecer produtos graficamente atraentes para
o público infantil pode ser alcançado quando a evolução das técnicas de impressão – co-
meçando pela gravura em metal no Renascimento, continuando com a litografia em 1760
e a impressão em offset por volta de 1850 – permite o surgimento da chamada Era de Ouro
da Ilustração.

34 Antes da impressão por tipos metálicos móveis, existiu no Ocidente, tal como no Oriente, a
impressão por blocos de madeira entalhados em xilogravura, para produção dos chamados block
books. Alguns autores consideram os block books como um tipo de incunábulos.

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Figuras 4, 5, 6 e 7 (em sentido horário). Ilustrações de Arthur Rackman para A Rainha da Neve,
de Hans Christian Andersen; Kay Nielsen para Rapunzel, dos Irmãos Grimm; Walter Crane
para A Bela e a Fera, de Madame Jeanne Marie Leprince de Beaumont; Gustave Doré para
Chapeuzinho Vermelho, de Charles Perrault.

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As técnicas de impressão avançam:
Era de Ouro da Ilustração estabelecendo códigos duradouros

A evolução das técnicas de impressão é decisiva para o florescimento da ilustração


de livros e revistas, permitindo a reprodução, com alta qualidade e baixo custo, de obras de
artes gráficas que alimentam um público ávido por novos produtos. A arte da ilustração
de livros infantis alcança sua Era de Ouro entre 1860 e 1930, quando artistas americanos e
ingleses revolucionam as publicações para crianças, com desenhos caprichosamente con-
cebidos, executados e reproduzidos. Não há naquela época uma percepção de menor valor
para os artistas que se dedicam à ilustração, como acontece hoje no meio das Artes Visuais.
Muitos dos ilustradores recebem uma formação convencional como artistas plásticos, mas
conquistam sólida reputação como ilustradores. Na verdade, era para eles uma satisfação
que seu trabalho circulasse entre um público tão vasto, e vários conquistam fama e rique-
za. Influenciados pelos Pré-Rafaelitas e por movimentos como Arts and Crafts, de William
Morris, Art Nouveau e os Nabis, artistas como Richard Doyle, John Tenniel, Walter Crane,
Randolph Caldecott, Kate Greenaway, Beatrix Potter, Howard Pyle, Jessie Wilcox Smith,
Arthur Rackham, Edmund Dulac, Kay Nielsen e os irmãos Robinson seguem a trilha aber-
ta por George Cruikshank no início do século XIX.
Também o trabalho pioneiro do impressor inglês Edmund Evans e dos gravado-
res William James Linton e irmãos Dalziel, contribuem para tornar possível a impressão
de livros de alta qualidade. Dezenas de livros opulentos em formato in-quarto contendo
pranchas coloridas com as ilustrações, além de centenas de outras publicações mais bara-
tas porém não menos bonitas, são publicados anualmente durante o auge da Era de Ouro,
entre 1905 e 1914, até o início da Primeira Guerra Mundial. Para Richard Dalby, editor e
colecionador de livros da Era de Ouro, “Esta incrível riqueza de talentos da ilustração de
livros; os inúmeros belos desenhos e pinturas combinando fantasia, humor e pura beleza;
a organização de designs magistrais de capas ricamente decoradas em relevo dourado
nunca foram igualados” (2002, p. 8).35 Após o fim da Primeira Guerra, a produção de livros

35 “This incredible wealth of talent of book illustration, the innumerable fine drawings and paintings
combining fantasy, humor and sheer beauty, the array of masterly pictorial cover designs richly
adorned in gilt have never been equalled”.

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não retoma sua prévia pujança, mas mesmo assim a Era de Ouro se estende por mais algu-
mas décadas, até 1930, graças ao trabalho do americano Arthur Rackham e outros jovens
artistas, até que, por fim, o início da Segunda Guerra vem marcar o fim definitivo da Era
de Ouro da Ilustração.
Alguns dos mais prestigiosos prêmios contemporâneos para livros infantis são ba-
tizados em homenagem a grandes artistas dessa era, como a Caldecott Medal, para o me-
lhor livro infantil americano, ou a Kate Greenaway Medal, concedida anualmente para
o melhor ilustrador britânico. Altamente atraentes para crianças e adultos, as primeiras
edições dos livros desse período são hoje cobiçadas e valiosas peças de colecionador. Os
ilustradores e editores da Era de Ouro compreendem o valor que a arte pode representar
nas publicações para crianças. Autores e ilustradores contemporâneos continuam sendo
inspirados pelo alto padrão de qualidade alcançado pelos artistas de então, e a influência
desses mestres continua presente em grande parte dos livros ilustrados publicados hoje,
tanto em termos formais quanto de concepção.
Anne Lundin considera que os livros da Era de Ouro constituem

nosso horizonte histórico, o panorama cultural contra o qual nossos livros modernos destacam-
se em primeiro plano. De fato, os livros infantis, particularmente os do fim da era vitoriana,
ainda hoje nos parecem familiares. Ao invés de proporcionar simples instrução, os livros infantis
apelam ao gosto tanto de adultos quanto de crianças. Livros ilustrados eram celebrados como
obras de arte e tiveram um grande número de apreciadores” (2001, p. 21-57).36

A partir do material coletado em suas pesquisas em mais de 70 periódicos da época,


a autora traça um panorama crítico da Era de Ouro, examinando o contexto de produ-
ção, recepção e circulação dos livros ilustrados na época vitoriana, destacando o papel da
crítica na formação de um forte mercado consumidor. Lundin contextualiza a recepção
desses livros dentro do horizonte de expectativas da época, no último quarto do século
XIX, identificando os seguintes aspectos que configuram um espectro abrangente:

36 “our historical horizon, the cultural landscape against which our modern books are foregrounded,
silhouetted. Indeed, children’s books, particularly from the late Victorian period, look familiar to us
today. Instead of the plain fare of instruction, books for the young appealed to adult as well as child
fancies. Picture books were celebrated as works of art and enjoyed a large following.” Disponível online
em http://www.encyclopedia.com/article-1G2-3480200012/golden-age-children-illustrated.html.
Acesso em 14 jan 2015.

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1. Livros infantis tratados como commodities: lucratividade do mercado de li-
vros infantis, afirmação do gênero como “livro-presente” (gift book), e associação
dos livros infantis com eventos festivos e com a leitura familiar;
2. Elevação dos livros infantis à categoria de obras de arte: indica a dupla
audiência dos livros ilustrados, sua autonomia estética, e um status percebido como
a apoteose da cultura artística;
3. Ênfase na ilustração e nos efeitos pictóricos na literatura: confere credi-
bilidade à literatura infantil enquanto forma narrativa altamente visual;
4. Ausência de uma separação rígida entre literatura infantil e adulta:
cria um grande atrativo por livros ilustrados e livros de ficção do tipo aventura, e
encoraja a participação dos literatos;
5. Uma crescente segmentação por gênero: leva posteriormente à classificação
de livros infantis por categorias de gênero e idade, à expansão do mercado juvenil e
ao desaparecimento de uma audiência unificada;
6. Variações na tradição didática: reflete a atenção do mercado comercial para
princípios morais seculares, e a transição de prescrições e instruções estritas em di-
reção à satisfação de um espectro mais amplo de interesses;
7. Debate contínuo entre fantasia e realismo: reflete a rejeição evidente do di-
daticismo, os efeitos correlatos nas sensibilidades românticas, os conflitos entre pu-
ritanismo e cientificismo, e a adoção dos contos de fadas como um gênero vitoriano
“da moda”;
8. Idealização romântica da infância e sua literatura: investe a criança de um
status cult, traz os estudos da infância para o primeiro plano dos interesses acadêmi-
cos e populares, e estabelece uma distinção entre livros para e sobre crianças;
9. Atenção à historiografia da literatura infantil: se desenvolve a partir de
um interesse acadêmico quanto ao colecionismo de livros, à bibliografia e às artes
do livro; de uma nostalgia romântica pelas leituras da infância; e de uma resposta
conservadora a uma crescente onda de pluralismo;
10. Ansiedade quanto ao caráter mutável da literatura infantil: é expressa
na pesquisa e na crítica de livros infantis, na articulação de um cânone de obras clás-
sicas, e na percepção do livro mais como ferramenta do que como arte.

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀64


A autora elabora assim um quadro crítico das complexas e até mesmo conflitantes
condições de recepção dos livros infantis no período final da era vitoriana, quando essas
questões, de certa forma já presentes desde o início da formação de um mercado de livros
para crianças na Europa em meados do século XVIII, convergem para criar o clima único
da Era de Ouro na Inglaterra e nos Estados Unidos no final do século XIX. Dentre essas
questões, vamos examinar mais detidamente as considerações que Lundin tece no segun-
do e terceiro itens, respectivamente “Elevação dos livros infantis à categoria de obras de
arte” e “Ênfase na ilustração e nos efeitos pictóricos na literatura”, que apresentam mais
interesse para essa pesquisa.

1.6฀ “uma฀forma฀de฀arte”:฀um฀objeto฀que฀se฀oferece฀à฀fruição฀

A elevação dos livros ilustrados infantis à categoria de obras de arte acontece den-
tro de um contexto de valorização da cultura artística em meados do século XIX, com
destaque para o movimento Arts and Crafts, especialmente a Kelmscott Press de William
Morris.37 O Esteticismo, nome que reflete a ênfase conferida aos princípios artísticos apli-
cados a produtos domésticos, como mobília, cerâmica, têxteis, papéis de parede, se estende
também aos livros, no que William Morris chama de “the book beautiful” (o belo livro,
ou o livro bem-feito). Beneficiada pelas evoluções técnicas, a ilustração acompanha a ele-
vação do padrão estético em voga. Em contraste com os livros publicados anteriormente,
“simples e toscos à feiúra em seus exteriores”, em citação extraída do jornal Dial (1881)
por Lundin (1994, p. 36), os livros infantis contemporâneos são avaliados no mesmo arti-
go como belos volumes, resplandecentes em capas douradas e primorosas ilustrações. O
Magazine of Art (1882) compara as baixas expectativas gráficas de meados do século XVIII
aos padrões elevados em relação ao uso de papel, tipografia e, especialmente, impressão
colorida, que conferem aos livros “status para ser considerados obras de arte”. De fato,
o maior elogio a um livro ilustrado é ser descrito como “artístico”, e esse chega a ser um
argumento de venda dos editores, como Lundin exemplifica: um anúncio de E. P. Dutton

37 Ver mais sobre o Arts and Crafts e a Kelmscott Press em Philip B. Meggs, História do Design
Gráfico, capítulo 10 “O movimento arts and crafts e seu legado”, p. 215-242.

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no jornal Critic (1884) tem como título “Artistic Children’s Books”, com chamadas promo-
cionais citando um dos livros como um modelo para estudantes de aquarela e desenho, e
outro livro como “o espécime mais encantador de um livro infantil realmente artístico que
vimos em muito tempo”.
Os livros ilustrados são concebidos para o público infantil, mas tendo em mente
também os critérios estéticos do público adulto, que percebe a ilustração como parte inte-
grante da experiência literária, a ponto de o jornal Illustrated London News afirmar, em seu
número de abertura em 1842, que “a arte se tornou a noiva da literatura”. Essa populariza-
ção da imagem impressa é possível graças à evolução das técnicas de impressão em massa,
que permite a reprodução de imagens em jornais e revistas com qualidade e baixo custo.
Além de tornar-se uma presença constante no jornalismo popular, a ilustração acompa-
nha gêneros como ficção seriada, poesia, literatura de viagem, novelas. O número de novas
casas publicando livros e periódicos cresce rapidamente, assim como a reputação dos ar-
tistas, que desfrutam então de uma popularidade e influência sem precedentes. O ilustra-
dor, em colaboração com o autor, torna-se mais interessado em desenvolver sua própria
interpretação do texto, ao invés de simplesmente decorar a página. A ênfase no visual, na
atratividade física do livro, cria um ambiente estimulante para a experimentação gráfica.

 Vanguardas฀artísticas

Enquanto a ilustração floresce e de certa forma estabelece padrões que vão a partir
daí se tornar referência para as próximas gerações de artistas dos livros ilustrados, nas
artes plásticas o cenário é de profundas transformações e de ruptura com os cânones vi-
gentes. Os movimentos das vanguardas históricas manifestam uma nova visão mais livre
do mundo, um mundo profundamente transformado pelo desenvolvimento tecnológico
e por mudanças socioeconômicas e culturais. Despertando reações controversas no pú-
blico e na crítica, as propostas inovadoras dos artistas de vanguarda são posteriormente
absorvidas pela cultura dominante e alcançam os livros infantis, ainda que com menos in-
tensidade. A influência dos Pré-Rafaelitas e do Art Nouveau já se faz notar nas ilustrações
características da Era de Ouro, com representações naturalistas. Livros com características
mais experimentais, acompanhando as novas tendências das artes plásticas, como Impres-

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sionismo, Fauvismo, Cubismo, Expressionismo, Construtivismo, Dadaísmo, Surrealismo,
De Stijl, Pop Art e mesmo Arte Abstrata, vão surgir ao longo do século XX, continuando
no XXI. Ainda pouco explorado pela comunidade acadêmica, este tema desperta grande
interesse na pesquisa contemporânea, como indicam as recentes publicações de Sandra
Beckett (2012), Philip Nel (2009) e Elina Druker & Bettina Kümmerling-Meibauer (2015),
para citar apenas alguns. O último título traz uma coletânea de alguns dos artigos apre-
sentados na conferência Children’s Literature and the European Avant-Garde,38 realizada
em 2012 na Linköping University, em Norrköping, Suécia. Na introdução, Drucker explica
que, enquanto existe um profundo conhecimento do impacto dos artistas de vanguarda
russos nos livros ilustrados daquele país, o mesmo não se pode dizer sobre a influência
das vanguardas em outros países europeus, para não falar da influência em países não-
europeus, apesar dos muitos artistas de renome que integram os movimentos de vanguar-
da nesses países terem criado obras instigantes para o público infantil.
Ainda que várias exposições tenham mostrado o impacto da arte de vanguarda no
desenvolvimento da literatura infantil moderna em diferentes países da Europa e fora
dela, Drucker aponta para a falta de estudos mostrando como essas influências dizem
respeito não apenas a autores e ilustradores isolados, mas também como se expandem
além de fronteiras nacionais de maneiras multifacetadas (2015, p. 6). No caso brasileiro, a
influência das vanguardas históricas se faz sentir nos livros ilustrados a partir das propos-
tas da Semana de 22, que funciona como um marco do modernismo no país, examinada
com maiores detalhes no próximo capítulo. Livros de vários países, dentre eles o Brasil,
são apresentados durante a conferência e podem ser vistos no blog Nine Kinds of Pie, de
Philip Nel, pesquisador americano presente no evento, que reuniu e comentou muitos
desses livros, conteúdo que reproduzimos a seguir. Mesmo já detendo um conhecimento
considerável sobre o assunto, Nel comenta que desconhecia muitas das obras apresentadas
pelos demais conferencistas.
O interesse do pesquisador sobre as vanguardas e o livro ilustrado é expresso em seu
livro The Avant-Garde and American Postmodernity: Small Incisive Shocks, onde Nel ques-

38 Da qual participei com apoio financeiro da European Science Foundation – ESF, apresentando
comunicação derivada de minha dissertação de mestrado.

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Figuras 8, 9, 10 e 11 (em sentido horário). Pinocho Boxeador (1929), ilustrações de Salvador
Bortolozzi; Gouden Vlinders [Borboletas douradas] (1927), Lou Loeber; Fairy Tales from the
North [Contos de Fadas do Norte] (1946), de Einar Nerman; Macao et Cosmage ou l’experience du
bonheur [Macao e Cosmage ou a experiência da felicidade] (1919), Edy-Legrand.

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tiona uma possível ruptura súbita na transição do modernismo para o pós-modernismo,
defendendo que tal transição acontece por meio de pequenas porém marcantes mudan-
ças, e que o agente dessas mudanças é exatamente a vanguarda artística. Neste livro, além
de analisar os impactos das vanguardas históricas nas artes e cultura americanas em geral,
Nel dedica dois capítulos aos livros ilustrados de dois importantes autores americanos,
Dr. Seuss e Chris Van Allsburg, cotejando o primeiro com os artistas de vanguarda, e
mostrando como o segundo usa o “idioma surrealista” para se comunicar com a “geração
internet” (p. 116).

 Alusões฀às฀artes฀plásticas

Muitos outros ilustradores fazem em seus trabalhos referências às artes plásticas,


com exemplos bem conhecidos como a preferência declarada de Anthony Browne pelo
surrealismo, especialmente por Magritte; ou a popularidade de certas obras como Campo
de Trigo com Corvos de Van Gogh ou O grito de Edvard Munch; constituindo uma ten-
dência muito forte no livros ilustrados contemporâneos. Centenas de livros com tais ca-
racterísticas são exaustivamente examinados por Sandra Beckett, uma das pesquisadoras
que explora mais consistentemente o que chama de “alusões” às artes plásticas em livros
ilustrados. Em Crossover picturebooks: a genre for all ages (2012), a autora defende que os
livros ilustrados constituem hoje um gênero que transpõe fronteiras sob muitos aspectos,
não apenas por seus temas sem idade (ageless) que atingem audiências de adultos e crian-
ças igualmente, mas também enquanto evento de leitura, enquanto fenômeno editorial,
enquanto meio artístico, destacando nesse último quesito o importante papel das referên-
cias às artes plásticas que os ilustradores incluem em seus trabalhos, de sofisticado caráter
intericônico. Estas referências são chamadas de citações, alusões, empréstimos, recicla-
gens, paródias e até mesmo pastiches. Beckett parte das afirmações que Linda Hutcheon
faz em A Theory of Parody: the teachings of twentieth-century art forms (1985), de que
a paródia, no sentido genérico de qualquer tipo de revisitação ou recontextualização de
obras de arte preexistentes, é uma característica das formas de arte pós-modernas, e ob-
serva que os livros ilustrados, que não figuram entre os exemplos citados por Hutcheon,
podem ser incluídos entre essas formas de arte. Tomando cuidado em preferir, ao termo

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀69


“paródia”, o termo menos pejorativo de “alusões”, Beckett examina várias maneiras como
esse fenômeno pode ser observado nos livros de centenas de ilustradores contemporâne-
os: reciclagem de estilos; fantasias artísticas; metadiscurso artístico; alusões diretas a obras
de arte específicas; paródias brincando com obras emolduradas; paródias em múltiplos
níveis (intertextuais e intratextuais); estúdios de artistas e museus; e dentro de um mundo
onírico são as categorias definidas pela autora a partir do exame exaustivo de obras de
vários países.
Além da inclinação genérica da cultura pós-moderna pela paródia, existem outras
motivações para as alusões às artes plásticas nos livros ilustrados, como ajudar a compor
o “clima” da história, ou levar ao conhecimento do público mais informações sobre ar-
tistas ou movimentos artísticos, e isso quase sempre sem qualquer pretensão pedagógica.
De fato, colocar as “Belas Artes” ao alcance de leitores sem prévio conhecimento da “Alta
cultura” move artistas como Anthony Browne:

Eu gosto da ideia de fazer a ‘Arte’, com A maiúsculo, mais acessível para crianças [...] Quero
que as crianças percebam que as belas artes não precisam ser sérias e pesadas ou mesmo
parte do processo de educação. Podemos simplesmente nos perder e nos ver em uma
pintura que foi feita há 500 atrás.39

Vladimir Radunsky reflete sobre as possíveis futuras reações das crianças que to-
mam conhecimento da existência de determinadas obras de arte por intermédio dos livros
ilustrados: “Talvez um dia, quando as crianças virem as versões originais dessas pinturas,
vão se lembrar de onde as viram pela primeira vez e tratá-las como velhas amigas”,40 en-
quanto Mitsumasa Anno diverte-se ao imaginar uma transgressão na ordem das referên-
cias artísticas dos pequenos leitores: “Espero pelo dia em que as crianças de hoje se tornem
adultos. Elas irão ver as pinturas no Louvre e dirão ‘Millet fez aquilo inspirado pelo Sr.

39 “I like the idea of trying to make ‘Art’, with a capital A, more accessible to children. […] I want
children to realize that fine art doesn’t have to be serious and heavy or even part of the education
process. We can just lose ourselves and see ourselves in a painting that was painted 500 years ago.”
TeachingBooks.net, “Anthony Browne” apud Beckett 2012, p. 205.
40 “Perhaps someday when the children see the originals of these paintings, they will remember
where they saw them first and will treat them as old friends”. Lodge, “All Things Asparagus”, 32 apud
Beckett 2012, p. 204.

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀70


Anno’”.41 Nota-se assim algumas das diversas motivações pessoais que levam os ilustra-
dores a estabelecer um diálogo intericônico criativo com obras preexistentes – é comum
que os ilustradores tenham recebido formação em artes plásticas e sejam naturalmente
influenciados pelos artistas e obras que estudaram, e a admiração por determinados mes-
tres, escolas, estilos ou obras pode aparecer em suas ilustrações como inspiração, homena-
gem ou até mesmo brincadeira. Não necessariamente os ilustradores pretendem que tais
alusões sejam reconhecidas e compreendidas pelos leitores, principalmente as crianças
menores; por vezes é acima de tudo o prazer do jogo estético que lhes motiva.

 Livros ilustrados, livros de artista

Não apenas as ilustrações, mas o próprio suporte livro representa para os artistas
um meio de expressão consideravelmente rico, e o livro ilustrado pode muitas vezes assu-
mir semelhança considerável com os livros de artista. Muitas definições enfatizam o jogo
estético de palavras e imagens, além da exploração de características materiais do objeto
em si, como possibilidade criativa. A definição proposta pela artista plástica portuguesa
radicada em São Paulo, Constança Lucas, por exemplo, deixa entrever várias similaridades
entre os dois tipos de livro:

Os livros de artista são livros produzidos por artistas, na sua maioria para manuseio direto,
assim possibilitando uma aproximação física, tátil e visual com a produção artística. Os
livros de artista são sempre edições especiais, podendo o artista fazer edição de exemplar
único ou múltiplos exemplares. Os livros de artista são espaços de criação, onde se exploram
vários tipos de narrativas, são locais privilegiados para experiências plásticas, no livro de
artista é possível fazer uso de várias linguagens poéticas (artes visuais, poesia, literatura...)
somando e criando interligações de tempo e espaço, tempo e movimento. É de extrema
importância o desenho das palavras, as palavras como imagens, as imagens como palavras,
com igual relevância poética.42

41 “I await the day when today’s children will be adults. They will go to see the paintings in the Louvre
and will say: ‘Millet did that after Mr. Anno’”. Mitsumasa Anno, “Anno 85 – Anno 87”, observações
coletadas por Geneviève Patte e Annie Pissard e por Catherine Germain e Elizabeth Lortic, Revue
des livres pour enfants 118 (inverno 1987), 56 apud Beckett 2012, p. 204.
42 Disponível online em http://livrosdeartista.blogspot.com.br. Acesso em 202 jan. 2016.

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Há, no entanto, um aspecto fundamental que diferencia livros de artista e livros ilustra-
dos. O livro de artista é inteiramente concebido e realizado pelo artista, que tem total respon-
sabilidade e autoria sobre a obra. Os livros ilustrados são resultado do trabalho conjunto de
vários profissionais: além do artista que concebe o livro, acumulando muitas vezes os papéis de
escritor, ilustrador e designer, também os editores, produtores gráficos, impressores interferem
no resultado final. Vamos examinar mais detidamente essa interação no próximo capítulo.
Clive Phillpot e Cornelia Lauf (1998), organizadores do catálogo da primeira mostra
de livros de artista exibida pela The American Federation of Arts em 1998 e 1999, identifi-
cam treze diferentes categorias de livros de artista, sendo algumas delas coincidentes com
livros ilustrados: além da categoria explicitamente denominada livros com ilustrações,
também as de reproduções e sketch books, poesia visual e histórias em quadrinhos, por
exemplo, poderiam ser aplicáveis aos livros ilustrados, informando uma ainda inexistente
categorização de livros ilustrados quanto às suas características diferenciadas.
É interessante assinalar que dois nomes fundamentais na história do livro de artista
também criaram livros ilustrados para crianças. William Blake, considerado o primeiro
artista a empregar o livro como suporte de uma obra de arte no século XVIII, é autor de
Songs of Innocence and of Experience. O livro contém versos endereçados diretamente às
crianças e é escrito, ilustrado, impresso, colorido e encadernado por Blake e sua esposa
Catherine. A integração de texto, imagem e forma permanece sendo um dos conceitos
fundamentais do livro de artista, assim como dos livros ilustrados.
O livro de artista se define como categoria artística autônoma apenas no século XX,
primeiro como experimento de artistas vanguardistas como Sonia Delaunay, Marinetti e
Marcel Duchamp, até alcançar sua configuração moderna com Dieter Roth e Ed Ruscha,
nas décadas de 1950 e 1960. Antes de criar seu famoso Bok, em 1958, Roth faz alguns ex-
perimentos em livros para crianças: Kinderbuch, de 1954, e Bilderbuch, em 1956. Os livros
ilustrados de Roth e de muitos outros autores, entre eles nomes de referência como Bruno
Munari, Katsumi Komagata e Paul Cox, são exaustivamente examinados por Carole Scott
e Sandra Beckett em seus artigos “Artists’ Books, Altered Books and Picturebooks” e “The
Art of Visual Storytelling”, respectivamente. Além de um extenso inventário e análise de
livros ilustrados que transitam pelo território dos livros de artista, as autoras oferecem
algumas considerações que ajudam a entender melhor essas aproximações:

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀72


Assim como os livros ilustrados, os livros de artista exploram a relação e o jogo entre o
linear e o gráfico, palavras e imagens e, mais importante de tudo, entre tempo e espaço. De
especial interesse é o uso de diferentes formatos e meios, incluindo a tridimensionalidade e
as camadas de imagens conforme contribuam para essas relações, e as abordagens filosóficas
e teóricas que as diferentes formas empregam conforme forcem as fronteiras da expressão.
Isso caracteriza suas forma e intenção. (Scott, 2014, p. 37)43

Muitos artistas do livro no século XX exploraram e questionaram as convenções da forma


do códice (encadernação, tamanho padrão de páginas, sequência fixa, e assim por diante),
a fim de encontrar novas estruturas para o livro e novas formas de contar (e ler) narrativas.
Um número significativo coloca suas explorações do livro a serviço das crianças, criando
obras inovadoras em que a narrativa é contada parcial ou inteiramente pela forma física.
Esses artistas experimentam com todas as facetas do livro e usam todos os recursos para sua
produção, tais como papel, corte e encadernação, para contar a história. (Beckett, 2014, p. 54)44

Indo ainda mais longe do que estabelecer aproximações entre livros de artista e livros
ilustrados, Beckett defende que, assim como os primeiros são a “arte quintessencial” do
século XX, no século XXI esse título cabe aos segundos (2012, p. 307). No entanto, a mesma
autora pondera que a popularização desses livros esbarra nos altos custos de produção, que
inevitavelmente se refletem nos preços finais ao consumidor. Em muitos casos, as coedições
(caso dos países nórdicos) ou as vendas governamentais (caso do brasileiro PNBE) favo-
recem uma diminuição nos preços que beneficia a circulação de obras de alta qualidade.

 “Bons”฀ou฀“estranhos”?฀

No entanto, os livros ilustrados que trazem características experimentais, inovado-


ras, podem colocar sérios desafios para o leitor infantil, que ainda não dispõe de códigos

43 “Like picturebooks, artists’ books explore the relationship and play between the linear and the graphic,
words and images, and, most significant of all, between time and space. Of special interest is the use of
different formats and media, including three-dimensionality and layering of images as they contribute to
these relationships, and the philosophical and theoretical approaches that the different forms employ as
they press against the boundaries of expression. That characterizes their form and intent.”
44 “Many book artists of the twentieth century explored and questioned the conventions of the codex
form (binding, standard-size pages, fixed sequence, and so forth) in order to find new structures for the
book and new ways of telling (and reading) narratives. A significant number put their explorations of
the book to the service of children, creating innovative works in which the narrative is told partially
or entirely by the physical form. These artists experiment with every facet of the book and use all the
resources of bookmaking, such as paper, die-cutting, and binding, to tell the story.”

O L IVRO I LUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀73


para sua fruição. Para autores como Leonardo Arroyo (2011) e Carmen Bravo-Villasante
(1985), pioneiros no estudo da literatura infanto-juvenil brasileira e espanhola, respectiva-
mente, o único critério válido para legitimar a literatura infantil é precisamente o interesse
despertado nas crianças. Esse interesse, no entanto, situa-se hoje em um cenário complexo
de produções culturais que oferecem mensagens visuais excessivamente estereotipadas.
Em qual medida obras pouco convencionais, caso de Cena de Rua, Lampião e Lancelote
e Zubair e os labirintos, constituem um elemento de atração para um público assim “ali-
mentado”, e a partir de qual ponto as mensagens mais complexas passam, ao contrário,
a repelir o leitor infantil por serem constituídas por códigos para os quais ele não tem
as chaves para a decodificação e a fruição? Como seria possível às crianças decodificar
propostas intertextuais (ou intericônicas) muito complexas? Onde situar o limite entre o
desconhecido que atrai e o desconhecido que afasta? Para o editor francês François Ruy-
Vidal, é importante oferecer um cardápio variado aos leitores, pois “mesmo se o leitor não
tem essa cultura e não reconhece as ligações culturais, é alimentado da mesma forma, até
mesmo as crianças!”45 Por vezes, mesmo extrapolando a capacidade de entendimento dos
leitores infantis, os ilustradores têm consciência da dupla audiência e oferecem jogos vi-
suais para os mediadores adultos, como diz Stian Hole: “Eu gosto sempre de enviar alguns
‘cartões postais’ para os leitores adultos, já que eu mesmo aprecio o humor quando leio
livros ilustrados com meus filhos.”46
Uma outra abordagem mais objetiva para essas questões é apresentada em termos
muito diretos por Bettina Kümmerling-Meibauer e Jörg Meibauer (2011) em artigo que
trata especificamente de livros ilustrados criados no contexto da Pop Art, mas cujo enfo-
que pode ser aplicado a quaisquer livros trazendo propostas pouco convencionais: são li-
vros “bons” ou livros “estranhos”? O que se pode entender como bom ou estranho em um
livro ilustrado tem a ver com seus códigos serem de fácil ou difícil assimilação pelo leitor
infantil (ao menos no entendimento dos adultos). Aos nossos olhos atuais, a estranheza
dos livros Pop Art estaria ligada às múltiplas transgressões que propõem, desafiando as
convenções tradicionais do que seja um “bom” livro ilustrado:

45 Apud Beckett 2012, p. 151.


46 Bernie Goedhart, “Author/Illustrator Stian Hole: The Complete Interview”, Montreal Gazette,
12 de maio, 2012. Apud Beckett 2012 p. 201.

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transgressões relativas ao estilo artístico (influenciado pelo movimento Pop Art),
transgressões relativas ao conteúdo das histórias (com sua ênfase em personagens estranhos,
reviravoltas surpreendentes na narrativa e no enredo, e uma combinação fantástica de
cenários), e transgressões em relação à ideia de que política e problemas econômicos e
sociais deveriam ser banidos de livros ilustrados (exibindo uma atitude anti-capitalista ou
anti-autoritária). p. 10347

Os autores propõem que a noção de estranheza seja considerada como um dos itens
descritores na análise de livros ilustrados. Kümmerling-Meibauer & Meibauer ressaltam
que “livros ilustrados estranhos não só erguem barreiras para sua compreensão, mas tam-
bém convidam a transgredir esses limites” (p. 103). Combinando aspectos de mais fácil
reconhecimento com outros que causam estranhamento, os livros ilustrados com propos-
tas artísticas menos convencionais oferecem aos leitores, tanto infantis quanto adultos, a
oportunidade de ampliar seus repertórios e expandir seus horizontes, como fazem Angela
Lago, Roger Mello e Fernando Vilela. Sabe-se que a habilidade de lidar com mensagens
visuais é parcialmente inata e parcialmente adquirida: ver é diferente de olhar (Arnheim,
1980; Aumont, 2005) e demanda a criatividade do receptor, que mobiliza seu próprio “mu-
seu imaginário” (Malraux, 2011). No entanto, à medida que as crianças tornam-se mais
velhas e experientes, a evolução de suas habilidades como leitoras de imagens parece mais
uma involução, como demonstrado por Arizpe & Styles (2003), que registram a variação
nos tipos de resposta de leitores em diferentes faixas etárias, apontando para uma adesão
cada vez menor a propostas que não se encaixam em códigos estritamente convencionais.
Numa era pós-moderna, visualmente orientada, é importante estarmos mais conscientes
sobre o que nos acontece como criadores e fruidores de imagens, desde a pluralidade e
liberdade na infância até os estereótipos e códigos restritivos na idade adulta, que limi-
tam também nossas habilidades e emoções pois, como pondera Clifford Geertz (1999),
sem arte, “algumas coisas sentidas não poderiam mais ser ditas e, talvez, depois de algum
tempo, deixassem até de ser sentidas – e, com isso, a vida ficaria um pouco mais cinzenta”.

47 “transgressions regarding artistic style (influenced by the Pop Art movement), transgressions
regarding the stories’ content (with their emphasis on weird characters, surprising twists in narration
and plot, and a fanciful combination of sceneries), and transgressions regarding the idea that politics
and economic and social problems should be banned from picturebooks (displaying an anti-capitalist
or anti-authoritarian attitude).”

O LIVRO ILUSTRAD O FAZEND O ARTE ฀฀•฀฀75


•฀฀capítulo฀2฀฀•

Moderno desde criancinha

O capítulo anterior mostra como o livro ilustrado alcança o status de uma for-
ma de arte a partir do final do século XIX, com as bem cuidadas publicações da Era de
Ouro da Ilustração, e as condições que permitem que isso aconteça. Ao mesmo tempo
que na ilustração se consolida uma linguagem visual bastante naturalista e de certo
modo continuadora de estilos já consolidados como o dos Pré-Rafaelitas, no mundo das
Belas Artes acontece o movimento de ruptura promovido pelas vanguardas históricas.
As influências desse novo modo de percepção e expressão visual alcançam a America,
chegando mais rápido nos Estados Unidos, com o Armory Show em 1913, e na déca-
da seguinte no Brasil, tendo como marco a Semana de Arte Moderna, em 1922 – um
movimento que de certa forma repete a expansão colonial, com a influência do centro
colonizador europeu sobre as periferias colonizadas americanas. Do mesmo modo, todo
um pensamento plástico das Artes Visuais afeta a arte aplicada da ilustração, ainda que
de modo bem menos radical.
A influência europeia, no entanto, não é absorvida no Brasil de modo irrefletido,
como simples imitação. O processo “antropofágico” de devorar as influências estrangeiras
e regurgitar formas nacionais proposta pelo grupo paulista da Semana de 22 ganha ex-
pressão concreta no Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, publicado em 1928.
Além da literatura, teatro, artes plásticas, os artistas brasileiros também se dedicam à ilus-
tração, e alguns dos primeiros modernistas, como Anita Malfatti, ilustram livros infantis.
O movimento de renovação na literatura infantil é facilitado pela constituição recente do
mercado editorial brasileiro, cuja início datando de apenas um século não havia oferecido
ainda tempo suficiente para o estabelecimento de tradições dominantes: o primeiro livro
ilustrado inteiramente feito no Brasil (tradução, ilustração e impressão) é publicado ape-

M O DERNO DESDE CRIANCI NHA ฀฀•฀฀76


nas em 1915 (Arroyo, 2011). Apesar do início tardio, a produção editorial brasileira evolui
a passos largos. No que diz respeito à publicação de livros ilustrados, o desenvolvimento
segue ritmo mais lento, mas não menos impactante: em menos de 100 anos desde a publi-
cação do primeiro livro ilustrado para crianças no país, em 1915, o Brasil passa de impor-
tador a ganhador do mais importante prêmio internacional na área de literatura infanto-
juvenil, o Hans Christian Andersen de ilustração para Roger Mello em 2014. Considerado
o Nobel da literatura infantil, esse prêmio já havia sido concedido a Lygia Bojunga, em
1982, e a Ana Maria Machado, em 2000, na categoria texto, e é concedido a Roger Mello
em 2014 na categoria ilustração. Mais que uma vitória individual, o prêmio representa a
consolidação de um percurso evolutivo de gerações de artistas empenhados em desenvol-
ver uma linguagem visual autônoma, que se intensifica a partir da década de 1970. Um
significativo indicador da qualidade alcançada é a presença crescente de brasileiros entre
os ganhadores de prêmios internacionais da área.
Depois de delinear no capítulo 1 um quadro geral da evolução histórica e da
configuração formal dos livros ilustrados infantis, este segundo capítulo busca ampliar
o entendimento a respeito das condições que possibilitam a publicação, no cenário
brasileiro contemporâneo, de obras que mantém o espírito modernista, antropofágico,
que desafia convenções. O especial interesse que esses livros despertam deve-se ao fato
de empregarem linguagens verbais, visuais e de design que expandem as convenções
vigentes no mercado editorial contemporâneo, não mais de origem apenas europeia
como também norte-americana. Ampliando os horizontes da cultura visual a que as
crianças têm acesso rotineiramente, tais livros podem oferecer uma alternativa à colo-
nização visual.

2.1฀ O฀Brasil฀e฀a฀modernidade

Saber quem somos já envolveu escritores, pintores, políticos, poetas, gente do povo e das
elites. Pensar o nosso país é pensar sobre nos mesmos. Por isso, a questão da identidade
cultural brasileira não está apenas no passado; ela atravessou este século e chega vibrante
aos dias de hoje. São outras pessoas pensando, novas formas de expressão e linguagem.
(Velloso, 2000, p. 17)

M O DERNO DESDE CRIANCI NH A ฀฀•฀฀77


 No mercado editorial

O mercado de livros para crianças no Brasil evolui em três etapas, começando com
a importação de livros, seguida por traduções de textos estrangeiros feitas por escritores
brasileiros, até que finalmente uma produção genuinamente nacional se consolida:

Colônia de Portugal, o Brasil sofria sua influência também no campo da literatura,


evidentemente ligado às contingências histórico-econômicas. Sem tradição própria, a
evolução de nossas letras debateu-se entre a importação pura e simples dos modismos
literários e a tentativa de afirmação da nacionalidade. Assim, a literatura infantil, que dentro
da evolução da literatura em geral aparece tardiamente, permanece no Brasil inteiramente
dominada pela metrópole até o aparecimento de Monteiro Lobato, o primeiro a conseguir
uma obra de ficção com características literárias. (Sandroni, 2011, p. 2.3)

Ao contrário de outros países do Novo Mundo, no Brasil a impressão tem um iní-


cio bastante tardio. Apenas em 1808, com a vinda da família real portuguesa, impressão é
autorizada no país com a instalação da Impressão Régia. Algumas iniciativas não-autori-
zadas existem, como a instalação de prelos pelos governadores de Pernambuco, em 1703, e
do Rio de Janeiro, em 1704, mas são logo reprimidas. Os livros são impressos em Portugal
e na França, principalmente. O início tardio da impressão no Brasil não impede que em
poucos tempo a produção nacional alcance um considerável nível de qualidade, destacan-
do-se dentre os impressos dos demais países latinoamericanos.
É essa qualidade que chama a atenção do pesquisador britânico Lawrence Hallewell,
e que o leva a empreender uma investigação ampla da história editorial brasileira como
tema de sua tese de doutorado, posteriormente transformada na publicação O livro no
Brasil: sua história.1 Hallewell mostra que, durante os 14 anos em que deteve o monopólio
da impressão no Rio de Janeiro, a Impressão Régia publica mais de 1.000 itens, principal-
mente documentos de governo, cartazes, volantes, sermões, panfletos, mas também livros
escolares e mesmo um Thesouro dos Meninos, tratado de “moral, virtude e boas maneiras”
dedicado a D. Miguel, segundo filho de D. João VI. Os livros escolares publicados pela Im-

1 Escrito originalmente em inglês em 1975 e traduzido para o português em 1982, uma nova
edição revisada pelo autor é publicada em 2005 em duas versões – uma de luxo, ilustrada, em
tamanho grande e encadernada em capa dura, e outra mais barata, sem ilustrações, tamanho
pequeno e encadernada em brochura.

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pressão Régia vêm suprir uma lacuna causada pelos transtornos provocados pelas guerras
napoleônicas, que dificultam as remessas da Europa. Mesmo depois do restabelecimento
dos fluxos normais de intercâmbios, os livros escolares constituem um produto pouco
atrativo para as editoras nacionais, não apenas devido ao mercado incipiente, como tam-
bém aos “métodos primitivos de ensino” utilizados por muitas escolas, que dispensam
inteiramente o uso de livros. Por sua vez, a falta de livros escolares que possam atender às
condições locais é considerada “um fator impeditivo do progresso da educação nacional”
(2012, p. 242).
Apenas a partir dos anos 1860 o editor francês estabelecido no Rio de Janeiro, Bap-
tiste Louis Garnier, se arrisca a investir na produção de livros escolares, principalmente
para as escolas primárias. A Garnier tem como principal concorrente a casa editora Laem-
mert, que publica também alguns livros ecolares, sendo o mais conhecido deles Por que me
Ufano do meu País, escrito por Afonso Celso em 1901, que Hallewell considera uma “incrí-
vel expressão do chauvinismo brasileiro”. Mas é Francisco Alves quem domina o mercado
de livros didáticos, que no final do século já é expressivo: “Os livros didáticos constituem
uma linha de vendas segura e permanente, além de proporcionar ao editor nacional uma
vantagem sobre os competidores estrangeiros, cujos produtos jamais podem adaptar-se
tão bem às condições ou aos currículos locais.” (idem, p. 313)
Não há uma separação nítida entre os livros escolares e aqueles de uso doméstico,
e são as traduções de obras do cânone mundial que fazem da Laemmert a pioneira da
literatura infantil propriamente dita no Brasil. Carlos Jansen Müller, professor de alemão
do Colégio Pedro II, é o responsável pela tradução e adaptação para o público infantil de
obras como Contos Seletos das Mil e Uma Noites (1882), Robinson Crusoe (1885), As Viagens
de Gulliver a Terras Desconhecidas (1888), Aventuras Pasmosas do Celebérrimo Barão de
Münchausen (1891) e Dom Quixote (1901).
Outra importante editora de literatura infantil é a Livraria Quaresma, que provoca
uma revolução ao contratar o jornalista Figueiredo Pimentel para escrever e traduzir tí-
tulos estrangeiros empregando o português do Brasil, mais informal. Até então, a maioria
dos livros disponíveis para crianças provém de Portugal, escritos em um português já
bastante diferente daquele falado no Brasil. Editor de livros populares, sendo mesmo co-
nhecido como “editor de baixas letras”, Quaresma conhece as necessidades de seus leitores

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e sonha em “abrasileirar o comércio de livros, entre nós”.2 A inovação na linguagem dos
livros de Pimentel causa escândalo em escritores acadêmicos como Olavo Bilac, Coelho
Neto ou Francisca Júlia, que escrevem para crianças usando o mesmo estilo culto que
dedicam ao leitores adultos, mas é muito bem recebida pelo público. A coleção de livros
que formam a Biblioteca Infantil Quaresma conta com títulos como Contos da Carochi-
nha (1894), Historias da Avozinha e Historias da Baratinha (1896), adaptados de Andersen,
Grimm e Perrault, e outros títulos originais, como Os Meus Brinquedos, Theatrinho In-
fantil e Album das Crianças, que se popularizam de tal maneira, a ponto de garantirem ao
editor “o virtual monopólio do mercado de livros infantis” (idem, p. 306).
O “monopólio” de Quaresma é abalado pelo “furacão” Monteiro Lobato (Azevedo
et al, 1997), que toma de assalto o mercado de literatura infantil a partir da década de 1920,
com a publicação de A Menina do Narizinho Arrebitado (1921) e toda a série de livros do
Sítio do Picapau Amarelo que se seguem a esse primeiro sucesso. Para Laura Sandroni,
Lobato é “o primeiro autor cuja obra apresenta características literárias, seja na linguagem
inventiva e transgressora dos rígidos cânones gramaticais de sua época, seja na introdução
de temáticas até então circunscritas ao leitor adulto.” (2011, p. 6)
Lobato escreve para adultos desde a juventude e começa a desenvolver uma carreira
expressiva como escritor e editor, com Urupês e O Saci-Pererê: resultado de um inquérito,
ambos publicados em 1918. Quando se decide a escrever para crianças, Lobato também se
preocupa, assim como Quaresma, com o abrasileiramento da linguagem, como escreve
ao amigo Godofredo Rangel: “Estou a examinar os contos de Grimm dados pelo Gar-
nier. Pobres crianças brasileiras! Temos de refazer tudo isso – abrasileirar a linguagem”
(Lobato, 1972, p. 453). Mais do que abrasileirar a linguagem, Lobato rompe radicalmente
com a ideologia cívico-pedagógica que norteava a literatura infantil até então (Hansen,
2007). Dono de uma personalidade inquieta e combativa – para Marisa Lajolo (2008),
um verdadeiro enfant terrible – Lobato é uma figura excepcional, autoproclamado sem
falsa modéstia o Andersen brasileiro, conforme carta ao amigo Godofredo Rangel: “Estou
condenado a ser o Andersen desta terra – talvez da América Latina, pois contratei 26 livros

2 Luís Edmundo, O Rio de Janeiro do Meu Tempo, Vol. II, p. 702, apud Leonardo Arroyo, 2011, p.
110.

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infantis com um editor de Buenos Aires” (Lobato, 1972, p. 345). Além de revolucionar a
literatura infantil brasileira com a série de livros do Sítio, é um editor visionário e tem
também um papel decisivo na modernização do parque gráfico brasileiro. Nacionalista
apaixonado, não se furta a denunciar as mazelas nacionais e lutar por soluções. Em 1927 é
adido comercial nos Estados Unidos e volta entusiasmado com o desenvolvimento tecno-
lógico que vê, convencido que o Brasil deve trilhar o mesmo caminho de modernização.
Esse entusiasmo nacionalista causa-lhe sérios problemas políticos durante o Estado Novo,
quando chega a ser preso por insistir em divulgar suas ideias em defesa da viabilidade da
produção nacional de petróleo, contrariando os interesses do governo na época (Azevedo
et al, 1997).

 Nas฀artes฀plásticas

Se na literatura infantil Lobato é reconhecido como um nome da maior importân-


cia, nas artes plástica é também personagem decisivo: a polêmica que se cria em torno de
seu ataque à exposição de Anita Malfatti, realizada em 1917, dá impulso à divulgação das
propostas modernistas na Semana de 22, em São Paulo.3 Anita estuda pintura na Alema-
nha e nos Estados Unidos entre 1910 e 1915, onde conhece e se interessa pelos movimentos
de vanguarda. As obras exibidas em 1917, em estilo expressionista, desafiam os cânones
vigentes no cenário nacional na época, mais identificados com uma estética e temática
naturalistas, num enaltecimento romântico de uma identidade nacional. Além de Anita
Malfatti, outros artistas como Mário de Andrade, Victor Brecheret, Menotti Del Picchia,

3 O espírito inovador de Lobato leva muitos estudiosos a considerá-lo um precursor do


modernismo no Brasil. Sua participação no campo das artes plásticas, no entanto, permanece
longamente obscurecida pelo episódio com Anita Malfatti, a ponto de ser considerado o “mal-
amado” dos modernistas. Rótulos como “anti-modernista”, “pintor ressentido”, “nacionalista
empedernido” e “algoz de Anita Malfatti” constituem preconceitos que só recentemente vêm
sendo derrubados por trabalhos acadêmicos como De Jeca a Macunaíma: Monteiro Lobato e o
modernismo (1988), de Vasda Bonafini Landers, Um Jeca nos vernissages (1995), de Tadeu Chiarelli,
além do já mencionado Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia. A oposição de Lobato não impede
que compartilhem projetos em mais de uma ocasião: a artista ilustra alguns livros de Lobato e,
juntamente com Menotti Del Picchia, participam na década de 1940 do programa “Desafiando os
Catedráticos”, da Rádio Cultura, no qual os três respondem a perguntas dos ouvintes.

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Heitor Villa-Lobos, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Manuel Bandeira, entre outros, bus-
cam a derrubada dos cânones que até então legitimam a criação artística brasileira, atua-
lizando sua linguagem. Inspirados pela revolução cultural e artística em curso na Europa
desde fins do século anterior, e imbuídos ao mesmo tempo de um espírito nativista que
valoriza as expressões regionais, para esses artistas “o aguçamento da percepção sensível
em relação à nossa realidade local se daria, contraditoriamente, em decorrência da am-
pliação dos horizontes culturais pela vivência europeia” (Amaral, 1992, p. 28).
Até o final da Primeira Guerra Mundial, o Brasil quer ser francês, como bem observa
Lima Barreto: o intelectual brasileiro “ainda come, dorme, sonha em Paris” (1961, p. 234).
A guerra vem substituir o entusiasmo da belle époque pelas incertezas da modernidade.
Com o deslocamento de poder da Europa para a América emergente, políticos, intelectu-
ais, artistas, gentes do povo e das elites passam a acreditar no futuro do Brasil. O cenário é
de grandes transformações urbanas, de grande agitação social, política, econômica e cul-
tural. Enriquecida pelo comércio do café, São Paulo deseja assumir um papel de liderança
no país, criando para si a imagem de uma locomotiva com energia suficiente para puxar
vinte vagões, os demais estados brasileiros.
Nas artes, esse clima de mudança se faz sentir, por exemplo, com as exposições de
pintura de Lasar Segall em 1913 e de Anita Malfatti em 1915 e 1917, as esculturas de Victor
Brecheret, as revistas Papel e Tinta e Pirralho, de Oswald de Andrade, os poemas de Má-
rio de Andrade e Menotti Del Picchia, que mostram o desejo de renovação cultural. Para
impulsionar e concretizar esse processo de renovação, um grupo de intelectuais e artistas
concebem a Semana de Arte Moderna, também chamada de Semana de 22, entre 11 e 18
de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. É uma semana agitada, uma es-
pécie de happening, com a proposta de “criar uma arte mais moderna e sobretudo mais
brasileira. Através de exposições, concertos, palestras, debates e leituras de obras, o grupo
mostrava a urgência da renovação.” (Velloso, 2000, p. 43) Sem ter um programa definido,
o evento tem por objetivo reunir aqueles que defendem uma nova visão da país e da arte
e experimentar diferentes caminhos. A urgência de modernizar o país mobiliza intelec-
tuais e artistas. Copiar o modelo dos outros não é suficiente: é possível se atualizar, sendo
moderno e ao mesmo tempo original. Porém, ao se voltarem para seu próprio país, os
brasileiros percebem o quão pouco sabem sobre sua própria cultura.

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A Europa deixou de ser nosso espelho e referencial. O brasileiro tem que ver a sua cara, o que
significava entender sua cultura e sua história. Para isso devia se sensibilizar, prestar atenção
em sua própria cultura e parar de macaquear os outros países. O importante agora era o
Brasil se encarar. Voltar à próprias raízes e começar a se valorizar enquanto nacionalidade.
(idem, p. 31)

Percebendo o desconhecimento recíproco entre as regiões do país e valorizando a


diversidade cultural, modernistas cariocas e paulistas procuram sair de suas “ilhas cultu-
rais” e viajam pelo Brasil, estudando as raízes étnicas e culturais, valorizando a memó-
ria nacional, experimentando novas linguagens. Mario de Andrade, que viaja pelo Brasil
estudando o folclore, as cantigas de roda, as danças, os hábitos alimentares, entende a
tradição não como algo fixo e imóvel, mas sim como “tradições móveis”, vivas e atuais: “A
ideia era respeitar a cultura de cada região, mas se esforçando para que essa cultura não
ficasse lá, isolada e solitária, parecendo apenas algo exótico. A proposta era o contato e a
troca cultural entre as várias regiões brasileiras.” (idem, p. 74) O conceito de cultura, até
então restrito ao universo intelectual “das letras e dos livros”, passa a incluir também as
manifestações populares, que fazem parte da vida cotidiana: “priorizava-se uma questão: a
arte tem que ser nacional! Para ser nacional, é preciso que ela se inspire em nossas lendas,
contos, música, enfim, nas fontes da cultura brasileira. [...] No modernismo, a questão das
raízes populares está em primeiro plano.” (idem, p. 56)
A valorização das raízes culturais indígenas e afro-brasileiras é algo bastante revo-
lucionário e causa estranhamento: Villa Lobos é vaiado ao apresentar em sua orquestra
instrumentos de congada, tambores e uma folha vibratória de zinco. Para os modernistas,
ao querer esconder a cultura negra e indígena, o Brasil perde o que tem de mais próprio
e original. Procurando ser igual aos outros, o Brasil torna-se culturalmente mais pobre:

Era assim que pensavam os modernistas. Eles achavam necessário sacudir as elites,
conscientizando-as do quanto estavam sendo esnobes e artificiais. Para isso, precisavam
mostrar que nossa cultura não era selvagem nem bárbara. Ao contrário: tem elementos
originais que deviam ser integrados e mostrados ao público (idem, p. 43).

O público e a crítica, de orientação conservadora, não apreciam a “sacudida” e a


rejeição é praticamente unânime: os vanguardistas são chamados de “subversores da arte”
e o evento é apelidado de “Semana de Arte Baderna”. Paradoxalmente, a realização da

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Semana de 22 é patrocinada justamente pelas elites, especialmente a aristocracia cafeeira:
“Era um movimento de rebeldia contra a ordem estabelecida, mas um movimento que
contou com o apoio dos próprios setores ligados a essa ordem estabelecida. O industrial
e fazendeiro Paulo Prado é o grande mecenas da Semana de Arte Moderna de São Paulo.”
(idem, p. 44) São Paulo e Rio de Janeiro dão a partida no modernismo mas, a despeito do
desenvolvimento desigual nas regiões do país, outras cidades também participam: Belo
Horizonte, Cataguazes, Salvador, Teresina, Porto Alegre e Belém, por exemplo, publicaram
revistas, jornais, manifestos.
Dos manifestos modernistas, o mais impactante é provavelmente o Manifesto An-
tropófago (ou Antropofágico), cerne teórico que fundamentou a Antropofagia, escrito por
Oswald de Andrade e publicado em 1928 na Revista de Antropofagia. Concebido em forma
de frases de impacto, o manifesto é posteriormente revisto por Oswald com elaboração filo-
sófica mais consistente. “Tupi or not tupi, that is the question” – com essa frase de efeito ba-
seada em Shakespeare, Oswald busca expressar a ideia do “índio antropófago que, em vez de
maldizer o colonizador, devora-o, incorporando assim os atributos do inimigo para vencer
as barreiras da alteridade” (Schwartz, 2002, p. 11). A imagem síntese da Antropofagia é o qua-
dro Abaporu, de Tarsila do Amaral, presente de aniversário para seu então marido Oswald

Figuras 12 e 13. Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, 1928; e Abaporu, de Tarsila do


Amaral; 1928.

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de Andrade em 11 de janeiro de 1928. O homem nu com pés enormes sentado solitário ao
lado de um cacto verde, sob um céu profundamente azul onde brilha um sol intenso, tem
nome indígena que significa homem (aba) que come (poru), uma “grande representação da
cultura brasileira, a dos índios antropófagos que devoraram o bispo Sardinha, incorporando
seu espírito e produzindo algo que já não era índio, nem português, era brasileiro”.4

O abaporu é claramente inspirado em nossa mistura étnica e cultural. Antes do modernismo,


era problemático reconhecer a imagem de um Brasil negro e índio. A maior parte de nossos
intelectuais preferia negar o fato ou, então, narrar a realidade de uma maneira ufanista e
idealizada. [...]
Para os modernistas, a imagem do abaporu passou a significar a imagem do homem
brasileiro. A cara do homem brasileiro. Caía a mascara do pierrô francês para aparecer
o abaporu: o home que come. Mas por que essa ideia do home que come? A imagem
simbolizava a capacidade do brasileiro de absorver as mais variadas culturas. O quadro
de Tarsila do Amaral era a expressão de uma corrente do pensamento modernista: a
antropofágica. Liderado por Oswald de Andrade, o grupo antropofágico oferecia uma
interpretação específica do Brasil. (Velloso, 2000, passim 63-65)

A corrente de pensamento antropofágica acrescenta ao ideal modernista uma ree-


laboração do aspecto negativo do conceito eurocêntrico do canibal primitivo e inferior,5
transformando-o em uma metáfora da formação da cultura brasileira:

Desde o Manifesto Pau-Brasil, os vanguardistas pretendiam criar uma arte e uma literatura
modernas no Brasil ‘autenticamente nacional’. Mas como renovar, ser moderno, sem copiar
os modelos europeus? A Antropofagia aparecia como maneira de conciliar o desejo de
abrasileiramento, de construir, pela arte, uma identidade cultural própria com a admiração
pelas vanguardas europeias: no canibalismo, o inimigo era devorado somente se exibisse
qualidades especiais; para ser comido e não apenas morto, deveria ter atributos desejáveis
como valentia na luta e coragem na derrota. Assim, a degustação do inimigo possibilitaria a
aquisição de suas qualidades através de sua destruição. (Resende, s/d)

4 Isabel Lustosa, apresentação em Monica Velloso, 2000, p. 12-13.


5 Em 1580, Montaigne escreve o ensaio “Dos Canibais” onde reflete a respeito de seu encontro
com três índios tupinambás levados do Brasil para a Europa, enaltecendo o modo de vida dos
indígenas e questionando a visão predominante na época, que os considera bárbaros: “não vejo
nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera
bárbaro o que não se pratica em sua terra.” Montaigne explica sobre o costume de devorar os
inimigos, não para alimentação, mas como um ato ritual para se apropriar de suas forças e afirmar
a própria, e conclui o ensaio observando jocosamente que “Em tudo o que aí fica dito não há nada
de mau; o que há é que esta gente não usa calções.” Coleção Os pensadores, 1978, Capítulo xxxi;
Ensaios I, p. 100-106.

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Com o tempo, as propostas renovadoras do movimento se difundem e populari-
zam, com reflexos profundos e duradouros na cultura brasileira, a tal ponto que Aracy
Amaral equipara a Semana de 22 a marcos da arte brasileira, como a chegada da Missão
Francesa ao Rio de Janeiro, no século XIX, e a obra do Aleijadinho em Minas Gerais, no
século XVII. Para Monica Velloso, a Semana “mudou a cara do Brasil, ou pelo menos da
maneira como o Brasil se via. Rompeu com os arcaísmos, com a sisudez acadêmica. Para
os modernistas a alegria era a prova dos nove.” (Velloso, 2000, p, 42). Para outros ainda,
mais do que um marco historicamente localizado, o movimento modernista permanece
até nossos dias tanto como elemento identitário no imaginário nacional quanto como
referência criativa, como defende Jorge Schwartz, a respeito da mostra “Da Antropofagia
a Brasília: Brasil 1920-1950”:

Do banquete antropófago se nutriram desde as vanguardas históricas até os movimentos


da poesia concreta, da música tropicalista e do Cinema Novo. A vigência do conceito é
tamanha que, setenta anos mais tarde, converteu-se em tema central da XXIV Bienal de São
Paulo (1998) e hoje é [...] ponto de partida de “Da Antropofagia a Brasilia: Brasil 1920-1950”.
(2002, p.12)

Essa exposição, apresentada originalmente em 2000 no Instituto Valenciano de Arte


Moderna – IVAM, em Valência, Espanha, com o título “Brasil: 1920-1950: De la antropo-
fagia a Brasilia”, é posteriormente exibida no Museu da Arte Brasileira – MAB-FAAP, São
Paulo, em 2002, por ocasião das comemorações dos 80 anos da Semana de 22. Na apresenta-
ção do livro sobre a mostra, organizado por Schwartz, Celita Procópio de Carvalho explica:

A exposição não traduzia apenas o interesse do olhar europeu em analisar o modo como as
ideias vanguardistas do século XX germinaram e frutificaram ao sul do Equador e do outro
lado do Atlântico. Seu sentido principal estava no desejo de conhecer as peculiaridades
da cultura brasileira no período em questão. Estava na intenção de conhecer como nós,
brasileiros, vemos o mundo; esse mundo [...] que para nós começa também em Recife,
Salvador, Belém, Rio de Janeiro, Porto Alegre e em tantos outros lugares. (idem, p. 9)

O recorte cronológico da mostra busca cobrir desde as manifestações anteriores à


Semana de Arte Moderna de 22, considerada o marco do Modernismo brasileiro, até o pla-
no de construção de Brasília, “coroamento definitivo do triunfo da arquitetura moderna
nos trópicos” (idem ibidem). Na mesma publicação, José Miguel Wisnik acrescenta que

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Certas linhas de força do período estendem-se ainda, para além dos quadros cronológicos
desta exposição, ao Cinema Novo de Glauber Rocha e à Tropicália de Caetano Veloso e
Gilberto Gil, nos anos sessenta, movimentos que se alimentam diretamente das proposições e
das realizações modernistas. Cito intencionalmente exemplos que vão da literatura à música,
ao cinema e à arquitetura, e onde se combinam manifestações eruditas com manifestações
da cultura popular e de massas. Quero assinalar com isso o caráter algo fusional e mesclado
da singularidade cultural brasileira, ligado à sua vocação para cruzar ou dissipar fronteiras,
o que não deixa de ser um traço “antropofágico”. (idem, p. 297)

Nossa vocação antropofágica para “cruzar ou dissipar fronteiras” convida a incluir,


entre os muitos exemplos citados por Wisnik, os livros ilustrados, formas de arte que por
sua vez dissipam fronteiras entre literatura, artes plásticas, artes gráficas, cultura erudita,
cultura popular, cultura de massa, públicos de diferentes faixas etárias e origens sociocul-
turais. A busca por uma identidade própria que move tão intensamente os modernistas
na primeira metade do século XX alcança também a literatura infantil em geral, e os livros
ilustrados em particular, na segunda metade do século.

 Na฀ilustração

Especialmente no contexto do expressionismo alemão, a atuação simultânea de ar-


tistas plásticos como ilustradores é bastante forte. No Brasil, à exceção de Di Cavalcanti,6
os modernistas têm na ilustração uma atividade pontual ou apenas comercial, não che-
gando porém a constituir uma forma de expressão artística especialmente significativa.
Há, no entanto, um campo onde a ilustração floresce enquanto forma de arte inconfor-
mista no início do século XX: as revistas humorísticas. Enquanto em São Paulo a Semana
de 22 sacode o cenário artístico e cultural, no Rio de Janeiro os caricaturistas promovem
questionamentos generalizados, inclusive sobre a própria modernidade. No mesmo ano
de 1922, a realização da Exposição Internacional no Rio de Janeiro dá margem a inúmeras
charges e caricaturas colocando em questão a natureza dessa tão celebrada modernidade
que chega ao país: “os caricaturistas mostram que, no Brasil, a modernidade é uma espécie
de farsa, uma máscara. [..] as revistas humorísticas mostram a Exposição de 1922 como

6 Ver o ótimo artigo do ilustrador Daniel Bueno “O ilustrador Di Cavalcanti”, publicado em


24/09/2012 em sua coluna no site da Sociedade dos Ilustradores do Brasil – SIB. Disponível online
em http://sib.org.br/coluna-sib/o-ilustrador-di-cavalcanti/. Acesso em 30 jan 2015.

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uma festa onde são barrados na porta os pobres, índios, malvestidos, negros, enfim todos
aqueles elementos considerados indesejáveis”. (Velloso, 2000, p. 129) Os caricaturistas ca-
riocas e os modernistas paulistas compartilham o mesmo interesse em discutir a imagem
de nacionalidade que então se forma:

A Exposição Internacional de 1922 é apenas um pretexto que os caricaturistas usaram para


discutir um questão maior: a própria ideia de nacionalidade [...].
Desde o inicio do século, as revistas cariocas, através das caricaturas visuais e verbais,
mostravam, na sua mais perfeita tradução, o espirito de uma modernidade inquieta e
profundamente indagadora. Se o ano de 1922 é resgatado na história como um dos marcos da
modernidade brasileira, é preciso avaliar os acontecimentos que estavam em jogo.
No Rio de Janeiro, sede do governo, aconteceu, em 1922, a Exposição Internacional. Em São
Paulo, a Semana de Arte Moderna. Ambos os eventos pretendiam reforçar a imagem do Brasil
moderno, mostrando as suas conquistas no campo das artes ou no da ciência e tecnologia.
Na década de 1920, são essas as perguntas que pairavam no ar: que país era o nosso?
Que lugar ocuparíamos no conjunto das nacionalidades? Como fazer, enfim, para não ser
mera projeção e ter luz própria? Essas indagações se impunham. Era urgente que o Brasil
encontrasse a sua identidade cultural no contexto internacional. (idem, p. 130)

Revistas humorísticas como Fon-Fon, Careta, O Malho, D. Quixote, Revista da Se-


mana são publicadas semanalmente e têm grande popularidade, a ponto de os caricatu-
ristas serem considerados verdadeiros formadores da opinião pública da época. Alguns
dos principais ilustradores dessas e de outras revistas, desde o final do século XIX, são
Alfredo Storni, Angelo Agostini, Arquimedes João da Silva, Bordalo Pinheiro, Carlos
Chambelland, Castro Silva, Chin, Cornélio Penna, Di Cavalcanti, Heitor Malagutti, Hé-
lios Aristides Seelinger, Henrique Bernardelli, Henrique Cavalleiro, J. Carlos, João Batista
Ramos Lobão, Julião Machado, K. Lixto (Kalixto Cordeiro), Manoel Constantino, Orestes
Acquarone, Oswaldo Teixeira, Raul Pederneiras, Rodolfo Amoedo, Seth (Álvaro Marins).
Para Graça Lima, “As revistas ilustradas, publicadas no início do século XX, difundiram,
através do desenho, os ideais de uma modernidade que se faz sentir até os nossos dias,
um progresso que consolidou de maneira definitiva a imagem” (2012, p. 122). Em 1905, a
editora de O Malho lança a revista infantil O Tico Tico, que se torna um verdadeiro su-
cesso de vendas e um referencial para muitas gerações de leitores. Inspirada pela revista
francesa Le Semaine de Suzette, é a primeira revista a publicar histórias em quadrinhos no
Brasil, lançando personagens infantis que se tornariam famosos, como Reco-Reco, Bolão e

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Azeitona, Lamparina, Kaximbown, além de Chiquinho, o personagem mais popular que é
praticamente uma cópia não-autorizada do americano Buster Brown, ainda que adaptado
para características brasileiras. Mesmo tendo a maioria dos desenhos copiados de revistas
francesas, há espaço para artistas locais como J. Carlos, Angelo Agostini, Max Yantok, Luiz
Sá, Alfredo Storni, Monteiro Filho, entre outros (Martins, 2001).
Assim, o Brasil já conta com muitos ilustradores experientes quando livros ilustra-
dos para crianças começam a ser publicados no país. O primeiro deles é O patinho feio,
tradução do clássico de Andersen lançado como o primeiro volume da Biblioteca Infantil
da Weiszflog Irmãos Editores (a razão social mudaria posteriormente para Cia. Melho-
ramentos), de São Paulo, em 1915. O aspecto gráfico dos livros infantis ganha impulso a
partir da publicação dessa coleção, cujo caráter revolucionário está “sobretudo em seu as-
pecto gráfico. Ilustrações a cores de Francisco Richter, da mais alta qualidade, impressão e
acabamento primorosos.” (Sandroni, 2011). A coleção é um sucesso e continua sendo edi-
tada por décadas, até 1958, sendo que a partir de 1926 o texto é revisto pelo professor Lou-
renço Filho, com um vocabulário mais simples que facilite a leitura por crianças mais no-
vas. Para Graça Lima, o “aspecto gráfico refinado dos livrinhos de capa dura e ilustrações a
cores é responsável por boa parte do sucesso da coleção”, bem diferente do aspecto gráfico
mais simples comumente adotado nos livros escolares. Encadernados em capa dura e me-
dindo 13 x 17 cm, tamanho menor do que o convencional, o projeto gráfico da coleção traz
no miolo mancha gráfica “adornada por arabescos que formavam uma moldura delicada,
aproximando o conteúdo ao tratamento de obras de arte. As letras utilizadas são maiores
e o papel utilizado no miolo era delicado” (2012, p. 172). Em belo depoimento memoria-
lístico, a escritora Ana Maria Machado relembra seu encanto infantil por esses que são os
primeiros livros infantis que conheceu:

Havia uma coleção deles que me parecia um tesouro, com pequenas e encantadoras
ilustrações coloridas ou a bico de pena, de Franta Richter, pintor tcheco radicado em São
Paulo. São bem pequeninos, num tamanho bom para serem folheados por mãos miúdas. [...]
Eu tinha paixão por essas histórias. Nunca vou esquecer da imagem da clareira na floresta
em que os anõezinhos montavam guarda ao caixão da Branca de Neve. Ou da belíssima
garça branca que dominava o primeiro plano da paisagem com que se abria O Patinho Feio.
(Machado apud Lima, 2012, p. 175)

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Figuras 14 e 15. Capas de O patinho feio e A filha da floresta, de Franta Richter.

É interessante notar que, mesmo já contando com ilustradores brasileiros de qualida-


de atuando no mercado editorial nacional, as ilustrações de O patinho feio e demais títulos
da primeira fase da Biblioteca Infantil são de autoria de um artista tcheco emigrado para o
Brasil em 1914, aos 42 anos de idade: Franta Richter, conhecido também como Francisco ou
Franz Richter. A provável formação clássica de Richter, ainda que não documentada, se faz
notar no estilo de suas ilustrações, no “traçado elegante das aquarelas no estilo dos clássicos
ilustradores europeus” da Era de Ouro da Ilustração (Lima, 2012, p. 174). Vários títulos da
coleção trazem na capa a mesma ilustração, de nítida orientação europeia (figura 14): uma
cena doméstica em ambiente fechado, com crianças reunidas à volta de uma idosa que pos-
sivelmente lhes conta histórias, estando os personagens vestidos com roupas fechadas, de
cores neutras, destacando-se o detalhe inconfundivelmente europeu da touca branca que
cobre a cabeça da idosa. Ilustrações posteriores de Richter para a mesma coleção, como as
das capas dos livros A Filha da Floresta (figura 15) e Flor Encarnada, mostram que o artista
não demorou a incorporar elementos regionais ao seu repertório: os personagens são mo-
renos, vestem-se com roupas leves, estão ao ar livre, em paisagens com iluminação, vegeta-

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Figuras 16, 17 e 18. Capas de Cafundó da infância, com ilustrações de Anita Malfatti;
No país dos quadratins, com ilustrações de Candido Portinari; e A chácara da rua Um,
com ilustrações de João Fahrion (Cosac Naify, 2012).

ção e fauna tropicais. Os outros ilustradores em atividade na primeira metade do século XX


variam entre um estilo realista, na linha dos ilustradores europeus de contos de fadas, ou
traços mais estilizados, próximos dos quadrinhos ou cartuns, porém sempre de orientação
figurativa naturalista. No primeiro grupo, além do próprio Richter, encontram-se Henri-
que Cavalleiro, Manoel Victor ou Monteiro Filho; no segundo destacam-se Voltolino, Max
Yantok, Luis Sá, Francisco Acquarone ou André Le Blanc.
Paradoxalmente, o mesmo Monteiro Lobato conservador nas artes plásticas, cujo
ataque a Anita Malfatti funciona como catalisador do movimento modernista, é o pri-
meiro escritor a romper com o tradicionalismo que domina a literatura infanto-juvenil
até então, e um editor pioneiro na valorização do aspecto gráfico dos livros que publica,
chegando mesmo a convidar Anita para desenhar algumas capas. Mesmo não sendo mui-
to prolíficos, os artistas modernistas trazem importantes contribuições para periódicos e
livros em geral, e alguns chegam mesmo a ilustrar livros para crianças, como Anita Mal-
fatti e Portinari. Anita ilustra, em 1938, o livro Cafundó da infância, de Carlos Lebéis, que
lamentavelmente permanece inédito até 2012, quando é publicado pela Cosac Naify numa
edição revista. Do mesmo autor, a editora publica no mesmo ano uma reedição de No país
dos quadratins, com ilustrações de Portinari. Como os originais se perderam, a editora
digitaliza as imagens da primeira edição do livro, de 1928, mantendo na reedição o mesmo

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tamanho do livro original. No interesse da editora em resgatar e trazer a público essas
obras, pode-se notar um sinal da permanência do modernismo como referência cultural.
Dentre os artistas modernistas que trazem significativas contribuições para o livro
ilustrado, podemos destacar aqui Paulo Werneck e Tomás Santa Rosa, que figuram expres-
samente entre as referências artísticas de Roger Mello, constituindo mais um elemento na
ponte que une esse ilustrador ao modernismo brasileiro:

Paulo faz livros belíssimos sobre o Negrinho do Pastoreio. Era uma geração que fazia de
tudo, acho bacana isso. Eles são excelentes ilustradores também, porque visitam outros
meios. Insisto de novo com isso – por exemplo, o Santa Rosa faz o cenário da peça Vestido
de Noiva. É uma referência entre os estudantes de teatro como o cenógrafo maior, porque
o Vestido de Noiva é um marco na cenografia, os diversos planos da narrativa, é bárbaro.
(Mello in Kikuchi, 2003, p. 38)

Paulo Werneck (pai da ilustradora, professora e pesquisadora Regina Yolanda, pio-


neira em estudos da ilustração brasileira) é um artista de muitos talentos. Pintor, dese-
nhista, ilustrador, modernizou no Brasil a técnica do mosaico e faz mais de 300 painéis em
edifícios como Instituto Resseguros, Ministério da Fazenda, Marquês do Herval, Banco
Boavista (Rio de Janeiro); na Igreja de São Francisco de Assis, na Pampulha (Belo Ho-
rizonte) e no Palácio do Itamaraty (Brasília), colaborando com arquitetos como Oscar
Niemeyer e os irmãos MMM (Marcelo, Milton e Maurício) Roberto.7 Nacionalista convic-
to, Paulo Werneck publica dois livros ilustrados sobre lendas brasileiras – Lenda da Car-
naubeira (1939) e Negrinho do Pastoreio (1941), sendo o primeiro publicado também nos
Estados Unidos pela editora Grosset & Dunlap (1940). Este livro, com texto de Margarida
Estrela Bandeira Duarte, é o vencedor de um concurso promovido em 1936 pelo Comitê
de Leitura do Ministério da Educação e Saúde para “Álbuns de Estampas para Crianças
Menores de 7 anos”, com a finalidade de publicar e distribuir “belos livros ilustrados” a
escolas e bibliotecas de todo o país. Já se nota então um interesse por parte do governo em
abastecer os jovens leitores com livros ilustrados de qualidade.
Tomás Santa Rosa é outro artista da geração de modernistas brasileiros a circular
por vários campos de atividades artísticas: é ilustrador, artista gráfico, pintor, gravador,

7 Para mais informações, consultar o site do Projeto Paulo Werneck em http://www.projeto


paulowerneck.com.br. Acesso em 18 out. 2010.

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Figuras 19, 20 e 21. Ilustrações de Tomás Santa Rosa, O circo (Centro de Edições Francesa, 2010);
Paulo Werneck, O negrinho do pastoreio (Civilização Brasileira, 1973); e Luís Jardim, O Boi Aruá
(José Olympio, 1940).

decorador, cenógrafo, figurinista, professor e crítico de arte. Considerado o primeiro ce-


nógrafo moderno brasileiro, seu trabalho para a montagem de Vestido de Noiva (1943), de
Nélson Rodrigues, revoluciona a concepção cenográfica no Brasil. Como pintor, auxilia
Portinari na execução de diversos murais. Durante toda sua vida, trabalha como designer
e ilustrador para a Livraria José Olympio Editora, em livros de autores como Jorge Amado,
Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Carlos Drum-
mond de Andrade. Além disso, coordena e dá aulas de artes gráficas e desenho em cursos

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na Fundação Getúlio Vargas; na área de teatro do Museu de Arte Moderna do Rio de Ja-
neiro (MAM/RJ) e no Ateliê de Decoração Teatral da Escola Nacional de Teatro, chegando
a fazer parte da Comissão Nacional de Artes Plásticas e a dirigir o Conservatório Nacional
de Teatro, até falecer subitamente em 1956 em Nova Delhi, Índia, quando integra a comis-
são brasileira que participa da Conferência Geral da Unesco para a Educação, a Ciência e a
Cultura. Seu único livro ilustrado para crianças é O circo, também premiado no concurso
promovido em 1936 pelo Ministério de Educação e Saúde para “Álbuns de Estampas para
Crianças Menores de 7 anos”.8
Vale mencionar ainda Luís Jardim, que tem seu O Boi Aruá (José Olympio, 1940)
premiado na edição de 1937 do concurso do Ministério da Educação. Jardim nasce em
1901 em Garanhuns, Pernambuco, e começa a desenhar na infância, incentivado pelos tios.
Deixa de frequentar a escola aos 13 anos, por problemas de saúde e, poucos anos depois,
tem de deixar também a cidade, depois que sua família é assassinada em desavenças po-
líticas. Chegando a Recife, começa a fazer serviços gerais e trata de aproveitar ao máximo
as oportunidades que tem: aprende inglês, lê todos os livros a que tem acesso e continua
desenhando. Por influência de Gilberto Freyre, vai ao Rio de Janeiro fazer uma exposição
de suas aquarelas e instala-se em definitivo na cidade. Em 1937, ganha os dois primeiros
lugares do Concurso Literário Infantil promovido pelo Ministério da Educação com seus
livros O Boi Aruá, considerado por Monteiro Lobato “o mais belo do gênero escrito no
Brasil” e O Tatu e o Macaco. Os livros são publicados em 1940, e em 1942 são traduzidos
para o inglês e publicados em Nova York. Escreve outros livros infanto-juvenis, como
Proezas do Menino Jesus (1968), Aventuras do menino Chico de Assis (1971), Façanhas do
Cavalo Voador (1978), Novas Façanhas do Cavalo Voador (1978), além de livros para adultos
e uma peça de teatro, e ilustra vários livros de outros autores.9

8 Fontes: Serra, Elizabeth (org.) A arte de ilustrar livros para crianças e jovens no Brasil, 2013;
Cardoso, Rafael (org.) O design brasileiro antes do design: aspectos da história gráfica, 1870-
1960, 2005; Enciclopédia de Artes Visuais – Itaú Cultural. Disponível online em http://www.
itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_
verbete=3276&lst_palavras=&cd_idioma=28555&cd_item=1. Acesso em 18 out. 2010.
9 Barbosa, Virgínia. Luís Jardim. Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível online em
http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=
803:luis-jardim&catid=47:letra-l. Acesso em 16 mar. 2014.

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Após a revolução lobatiana iniciada no contexto modernista dos anos 1920, algumas
décadas de estagnação se seguem no Brasil, enquanto o mundo enfrenta os efeitos devasta-
dores da Segunda Guerra Mundial. Apenas na década de 1970, considerada um marco divi-
sório na edição de livros para crianças no Brasil, o cenário da literatura infanto-juvenil vol-
ta a florescer, impulsionando também os aspectos visuais e gráficos dos livros.10 Publicado
em 1969, Flicts, de Ziraldo, é um marco na ilustração de livros infantis, contando por meio
de ilustrações não-figurativas, apenas com grandes áreas de cor chapada, a história de uma
cor que não consegue se encaixar no planeta Terra e acaba encontrando seu lugar na Lua.11
Examinando a obra de Lygia Bojunga, uma das mais destacadas escritoras que inicia
sua carreira nesse período, Laura Sandroni observa que desde seu primeiro livro publica-
do – Os colegas, em 1971 – os livros da autora têm um cuidado editorial marcante também
no que toca aos aspectos gráficos. Os colegas é um texto premiado em concurso do Insti-
tuto Nacional do Livro de Literatura Infantil, que logo a seguir promove outro concurso
para escolher as ilustrações que acompanhariam o texto premiado, sendo Gian Calvi o
vencedor. Lygia Bojunga publica, a seguir, outros livros como Angélica, com ilustrações
em aquarela de Wilma Pasqualini; A bolsa amarela, com desenhos de Marie Louise Nery;
A casa da madrinha, primeiro de vários com desenhos de Regina Yolanda, com ilustrações
mais sutis: “as capitulares trabalhadas, as páginas emolduradas por delicados desenhos
num trabalho minucioso e detalhista que remete às belas iluminuras da idade medieval”

10 Vale destacar aqui a coleção Clássicos da Literatura Juvenil, lançada entre 1971 e 1973 pela Abril
Cultural, com um total de 50 volumes lançados quinzenalmente. Trazendo releituras de clássicos
universais, os livros da coleção têm aspecto gráfico atrativo, encadernados em capa dura, com
ilustrações coloridas na capa e ilustrações em preto e branco no miolo. Dispostos lado a lado,
suas lombadas coloridas formam um belo conjunto. Assim como eu, muitos leitores guardam
dessa coleção memórias afetivas da infância e juventude, e uma dessas leitoras, a pesquisadora
Fabiana Tavares, lançou em 2010 um blog resgatando essas memórias e publicando semanalmente
resenhas de cada um dos livros. É interessante conferir os comentários de muitos dos leitores que
acompanham o blog em http://classicosdaliteraturajuvenil.blogspot.com.br/2010/01/50-livros-
em-50-semanas.html. Acesso em 11 mar. 2012.
11 Ziraldo costuma contar de modo anedótico o processo de criação do livro: para cumprir o
prazo exíguo de entrega dos originais para a editora, pensou que a maneira mais rápida de executar
as ilustrações seria fazê-las em cor chapada, e a partir daí pensou na história. Ver entrevista a
Carolina Drago, Larissa Rangel, Lorena Ferraz e Lucas Conrado, em junho de 2010. Memória do
Jornalismo Brasileiro. Disponível online em http://memoriadojornalismo.com.br/depoimentos_
interna_fotos.php?id=54. Acesso em 15 jun. 2015.

M O DERNO DESDE CRIANCI NH A ฀฀•฀฀95


(Sandroni, 2011, p. 24); O sofá estampado, ilustrado e diagramado por Elvira Vigna; e o
belíssimo 7 cartas e 2 sonhos, onde a ordem de autoria se inverte: a pedido da editora Ber-
lendis & Vertecchia, o texto é criado por Lygia a partir de telas da pintora nipo-brasileira
Tomie Ohtake, integrando a série “Arte para Criança”. Sandroni destaca a produção gráfica
esmerada: “Todo em papel couché, capa dura, folha de guarda em azul claro, o livro, além
do belo trabalho da pintora, apresenta-se numa edição especialmente cuidada.” (idem). A
qualidade da produção textual abre o caminho que leva à “maioridade” dos livros ilustra-
dos no país, no que diz respeito tanto à produção gráfica quanto à ilustração.

2.2฀฀ Descolonização฀visual

A ilustração de livros infantis segue a mesma evolução de outras manifestações cul-


turais e artísticas no Brasil: a partir de modelos europeus, desenvolve-se progressivamente
uma linguagem local miscigenando elementos iconográficos nativos tais como fauna, flo-
ra, geografia, luz e cor, bem como etnicidade, arquitetura, vestuário, folclore, narrativas
orais, jogos e festividades (Arroyo, 2011). Desde o “descobrimento” em 1500, o modelo cul-
tural segue o modelo econômico de exportar matéria-prima para a matriz e de lá importar
produtos industrializados. Mesmo tendo conquistado a independência política em 1822,
o modelo colonial ainda continua vigente na cultura nacional, embora a maior influên-
cia tenha se deslocado dos cânones europeus para indústria cultural norte-americana.
Continua bastante frequente nas ilustrações, mesmo que de modo não intencional, a ma-
nifestação de certa colonização visual que prioriza ideais estéticos estrangeiros, como por
exemplo nos estereótipos das fadas e heroínas preferencialmente louras. A própria Angela
Lago comenta sobre esse e outros estereótipos que inadvertidamente usou ao ilustrar seu
primeiro livro, O fio do riso (1980) (figura 22):

A heroína é loura, a empregada da sua casa usa uniforme completo. [...] A melhor crítica
a esse trabalho escutei, por acaso, de um desconhecido que o folheava em uma feira de
livros: “Parece que as fadas preferem as louras.” Comecei em seguida a usar referências mais
nossas. Um gosto pela cultura popular veio à tona e passei a referendar meus textos no
nosso folclore, embora continuasse a utilizar tons pastéis e linhas suaves nos desenhos.12

12 Site da autora, disponível online em http://www.angela-lago.com.br. Acesso em 12 set. 2008.

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Figuras 22 e 23. Capa de O fio do riso e ilustração de Outra vez.

A fala de Angela Lago aponta os estereótipos que reforçam a percepção das relações
de poder associados à classe social e à etnia nas caracterizações que emprega para a peque-
na patroa, que é a heroína da história, e sua empregada: cabelo louro e uniforme de traba-
lho, respectivamente. Se o uniforme da empregada funciona como um código de vestuário
que demonstra a divisão de classe que as separa, o cabelo louro da menina a identifica
como pertencente a uma elite dominante. Esses estereótipos estão de tal maneira naturali-
zados em seu sistema de representações visuais, que Angela Lago não se dá conta deles até
o momento em que ouve anonimamente o comentário do leitor. O fato desse comentário
ressoar nela com tal intensidade a ponto de levá-la a reformular seu repertório visual indi-
ca, por outro lado, o reconhecimento da importância de não reproduzir esses estereótipos.
O caminho vislumbrado pela artista para escapar dos estereótipos estrangeiros é voltar-se
para referências nacionais, expressamente a cultura popular e o folclore, mas sem abrir
mão de recursos das artes plásticas europeias, como os tons pasteis e as linhas suaves. Essa
interessante combinação pode ser vista em Outra vez (figura 23).
Esse e outros livros ilustrados de Angela Lago, Roger Mello e Fernando Vilela, den-
tre outros artistas, mostram uma combinação de referências das artes plásticas europeias,
principalmente das vanguardas históricas, com elementos das nossas culturas popular
e urbana que expressa uma atitude tipicamente antropofágica, resultando em criações
bastante particulares que refletem a miscigenação característica da cultura brasileira. Em
Casa-grande & Senzala, publicado em 1933, Gilberto Freyre contraria as ideologias racistas
então vigentes e defende que a miscigenação é o elemento chave na formação da identi-
dade brasileira:

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Entre tantos antagonismos contundentes, amortecendo-lhes o choque ou harmonizando-
os, (temos) condições de confraternização e de mobilidade social peculiares ao Brasil: a
miscigenação. [...] Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América
a que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um
aproveitamento de valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado; no máximo
de contemporização da cultura adventícia com a nativa, da do conquistador com a do
conquistado. (Freyre, 2011, p. 160)

Renato Ortiz (1994) retoma criticamente a questão da mestiçagem no capítulo “Da


raça à cultura: a mestiçagem e o nacional”, entendendo que o trabalho de Freyre vem aten-
der à demanda das transformações sociais orientadas politicamente com a Revolução de
1930, quando as teorias raciológicas tornam-se obsoletas:

A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambiguidades das teorias racistas,
ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum. [...]. O que era
mestiço torna-se nacional. [...] Ao retrabalhar a problemática da cultura brasileira, Gilberto
Freyre oferece ao brasileiro uma carteira de identidade.” (passim p. 401-42)

A mistura de referências é frequente no processo criativo de muitos artistas. Espe-


cificamente a dinâmica de ingestão e digestão de referências preexistentes é citado por
vários ilustradores, como Katy Couprie, que destaca que as imagens não são criadas a
partir no nada: “Elas são ressurgências, imagens que são comidas, digeridas. Fazem parte
do nosso patrimônio pessoal.” (Beckett, 2012, p. 151). O conceito de patrimônio pessoal
aponta para diferentes maneiras de apropriação criativa de referências e tradições. No
caso brasileiro, as tradições são bastante recentes deixando os artistas também bastante
livres para experimentar:

O Brasil não é herdeiro de uma grande tradição pictórica, como os outros países da America
Latina colonizados pela Espanha, centro de grandes mestres de todos os tempos. Todavia,
por essa mesma razão, o artista brasileiro por certo se beneficia de uma abertura maior
diante das novas informações, sempre mais permeável que seus colegas de outros países
à renovação de linguagens, e é menos conservador, enfim, que o profissional das artes
de nosso continente. Essa dado é perceptível nas artes plásticas e também no cinema, na
televisão, na arquitetura, na música popular e nas experiências teatrais, sobretudo de fins
dos anos 60 e início dos 70. [...]
A extrema receptividade às novidades, característica da arte brasileira, reflete nossa
contemporaneidade sempre vigente no meio das artes visuais por parte dos artistas (Amaral,
2006, p. 241-242)

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Essas considerações de Aracy Amaral fornecem uma importante chave para de des-
tacar a originalidade da “mistura” brasileira em meio aos pastiches, paródias e colagens
indiscriminados da arte pós-moderna.13

 Pós-modernidade฀ou฀pós-colonialismo?฀Antropofagia!

... [pós-modernidade] que também já encheu o saco, porque tudo cabe dentro da pós-
modernidade. Tudo! Elza Soares é pós-moderna, Cleópatra era pós-moderna, Roma era
pós-moderna, Aristóteles era pós-moderno... [risos] Tudo cabe dentro da pós-modernidade.
O moderno tem uma proposta, o pós-moderno não tem, o que é? O pós-moderno é
multirreferenciado, mas tudo é multirreferenciado... ah, desde que o mundo é mundo que
tem coisas multirreferenciadas! (Mello apud Mendes, 2011, p. 95)

O comentário jocoso de Roger Mello expressa seu desconforto com as condições ex-
tremamente fluidas e incertas da pós-modernidade, confrontando-a com a modernidade.
Tais contrastes são elaborados por Ihab Hassan em uma lista comparativa (1987, p. 91-92),
onde coteja características dos dois momentos com o objetivo não de excluir e isolar, mas
antes de facilitar o raciocínio “compulsivamente contrastivo” do cérebro humano:

Tabela 1. Modernidade x Pós-modernidade. Ihab Hassan, 1987.

Modernismo Pós-modernismo
Romantismo/Simbolismo Patafísica/Dadaísmo
Forma (conjuntiva, fechada) Antiforma (disjuntiva, aberta)
Propósito Jogo
Projeto Acaso
Hierarquia Anarquia
Maestria/conhecimento Exaustão/Silêncio
Objeto de arte/Obra acabada Processo/Performance/Happening
Distância Participação
Criação/Totalização Descriação/Desconstrução
Síntese Antítese
Presença Ausência
Centramento Dispersão

13 Para uma discussão amplamente fundamentada sobre livros ilustrados pós-modernos,


ver Lawrence R. Sipe e Sylvia Pantaleo (eds). Postmodern picturebooks: Play, parody, and self-
referentiality, 2008.

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Gênero/Fronteira Texto/Intertexto
Semântica Retórica
Paradigma Sintagma
Hipotaxe Parataxe
Metáfora Metonímia
Seleção Combinação
Raiz/Profundidade Rizoma/Superficialidade
Interpretação/Leitura Contra interpretação/Interpretação errada
Significado Significante
Lisível Escrevível
Narrativa/Grande História Anti-narrativa/Pequena História
Código principal Idioleto
Sintoma Desejo
Padrão Mutante
Genital/Fálico Polimorfo/Andrógino
Paranoia Esquizofrenia
Origem/Causa Diferença-Diferença/Indício
Deus Pai Espírito Santo
Metafísica Ironia
Determinação Indeterminação
Transcendência Imanência

Hassan enfatiza a fluidez dessas diferenças, que são ““inexatas, suspeitas, pois se des-
locam, mudam, e até se desfazem”, uma vez que “o Modernismo não deixa subitamente de
existir para que o Pós-modernismo possa começar: eles agora coexistem – de fato, eu dizia
que o Pós-modernismo encontra-se profundamente enraizado no corpo do Modernis-
mo”.14 A ressalva de Hassan quanto à passagem da modernidade para a pós-modernidade
aponta para o problema da sequência temporal: embora pós-moderno signifique depois
do moderno, ambos coexistem simultaneamente. Além do problema da continuidade

14 Tradução minha do original em inglês: “Well, once I also tried to characterize Postmodernism
by contrasting it with Modernism, since the human brain is compulsively contrastive” e “Modernism
does not suddenly cease so that Postmodernism may begin: they now coexist – in effect, I was saying
that Postmodernism lies deeply within the body of Modernism”. Entrevista concedida a Frank L.
Cioffi entre nov 1998 e jan. 1999, por telefone, e-mail e carta. Disponível online em http://www.
ihabhassan.com/cioffi_interview_ihab_hassan.htm. Acesso em 20 out. 2010.

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temporal, o sociólogo português Boaventura Sousa Santos adverte ainda para as desigual-
dades no desenvolvimento das diferentes sociedades centrais e periféricas:

Desde o início adverti que a designação pós-moderno era inadequada, não só porque
definia o novo paradigma pela negativa, como também porque pressupunha uma sequência
temporal – a ideia de que o novo paradigma só podia emergir depois de o paradigma da
ciência moderna ter seguido todo o seu curso. Ora, se, por um lado, tal estava longe de
acontecer, por outro lado, tendo em conta que o desenvolvimento tanto científico como
social não era homogéneo no mundo, a pós-modernidade podia ser facilmente entendida
como mais um privilégio das sociedades centrais, onde a modernidade tem tido maior
realização. (Sousa Santos, 2004, p. 4)

A modernidade é um conceito europeu, assim como o conceito de culturas civiliza-


das versus primitivas, esse último já superado mas ainda utilizado na falta de um termo
melhor. Admitindo-se o conceito de “mundo civilizado” dentro dos padrões europeus,
grande parte do mundo atual sequer existia quando a Europa já era moderna – Américas,
Oceania, África, Ásia passam a integrar esse “mundo civilizado” a partir dos processos de
colonização na era moderna. Sublinhando que “a modernidade ocidental é originaria-
mente colonista” (idem, p. 22), Sousa Santos observa que

[…] a ideia da pós-modernidade aponta demasiado para a descrição que a modernidade


ocidental faz de si mesma e nessa medida pode ocultar a descrição que dela fizeram os que
sofreram a violência com que ela lhes é imposta. Essa violência matricial teve um nome:
colonialismo. Esta violência nunca é incluída na auto-representação da modernidade
ocidental porque o colonialismo é concebido como missão civilizadora dentro do marco
historicista ocidental nos termos do qual o desenvolvimento europeu apontava o caminho
ao resto do mundo. (idem, p. 6-7).

Assim, para o autor, falar de pós-modernidade nas sociedades colonizadas implica


falar de pós-colonialismo. Sousa Santos esclarece seu entendimento do pós-colonialismo
como sendo

um conjunto de correntes teóricas e analíticas, com forte implantação nos estudos culturais,
mas hoje presentes em todas as ciências sociais, que têm em comum darem primazia teórica
e política às relações desiguais entre o Norte e o Sul na explicação ou na compreensão
do mundo contemporâneo. [...] a partir das margens ou das periferias, as estruturas de
poder e de saber são mais visíveis. Daí o interesse desta perspectiva pela geopolítica do
conhecimento, ou seja, por problematizar quem produz o conhecimento, em que contexto
o produz e para quem o produz. (idem, passim p. 8-9)

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Sousa Santos problematiza a hegemonia do cânone britânico nos estudos pós-
coloniais, uma vez que a especificidade do colonialismo português e espanhol em relação
ao colonialismo britânico ou francês leva a especificidades do pós-colonialismo nas regiões
de colonização ibérica não contempladas pela perspectiva britânica: no espaço da língua
oficial portuguesa “os processos de descolonização são parte da nossa actualidade política
e também eles contêm especificidades que correrão o risco de ser desvalorizadas ou esque-
cidas se o cânone do pós-colonialismo hegemónico (ou seja, britânico) dominar acritica-
mente”. (idem, p. 42). No decorrer dessa pesquisa, verificou-se a prevalência da perspectiva
britânica também nos estudos sobre livros ilustrados pós-coloniais, e a inadequação dessa
perspectiva para tratar da descolonização visual na produção brasileira contemporânea.
Mostrando-se inadequada, essa que seria uma das possíveis abordagens converte-se em
tópico para uma investigação futura. Sousa Santos é um dos raros pesquisadores, reconhe-
cido internacionalmente, a abordar a especificidade brasileira no cenário global:

Em que está a diferença? Eu costumo dizer que o colonialismo português, parafraseando


Shakespeare, não é um colonialismo de Próspero, é um colonialismo entre Próspero e
Calibã. É um colonialismo que é algo entre o civilizado e o primitivo, digamos assim. O
próprio português como colonizador não é aquela figura do Próspero na Tempestade do
Shakespeare, que é o grande representante da civilização ocidental, o qual é servido pelo
escravo que é Calibã (que Shakespeare vai buscar, naturalmente, com uma apropriação
de canibal, que é o primitivo selvagem). Ora bem, é essa polarização entre o civilizado
e o primitivo, entre Próspero e Calibã, que é fundamental para entender o colonialismo
britânico. Penso, no entanto, que no caso português não é bem assim, porque o português
é um colonialismo periférico, como o espanhol de resto. Portugal, no momento em que é
centro das suas colônias, era, ele próprio também, uma colônia da Inglaterra. Portanto, a
natureza semiperiférica de Portugal conferiu ao colonialismo português uma característica
muito especial. Eu penso que até agora os estudos pós-coloniais do Brasil não referiram
a esta questão, não analisaram com a coragem que ela precisa ser analisada, porque é um
colonialismo próprio que criou situações próprias. (idem, p. 7-8)

É interessante ressaltar que, na analogia proposta pelo autor entre o colonialismo


português e os personagens de Shakespeare, a singularidade brasileira se manifeste no en-
contro entre o agente “civilizador” Próspero e o nativo “canibal” Calibã, o que nos remete
ao modernismo antropofágico. Entre as situações próprias nascidas desse encontro, Sousa
Santos destaca, entre outras coisas, a “enorme criatividade” que pode aflorar no âmbito do
relativamente fraco poder colonizador que Portugal exerce (idem, p. 8).

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Além de uma análise crítica das condições coloniais e pós-coloniais, Sousa Santos
também aponta propostas para um “pós-modernismo de oposição”, dentre elas: “Em vez
do sincretismo acrítico, proponho a mestiçagem ou a hibridação com a consciência das
relações de poder que nela intervêm, ou seja, com a investigação de quem hibrida quem, o
quê, em que contextos e com que objetivos” (idem, p. 10). É justamente à luz da oposição
entre “sincretismo acrítico” e “mestiçagem consciente” que essa pesquisa situa os livros
ilustrados brasileiros em uma genealogia antropofágica, encontro de Próspero com o “ca-
nibal” Calibã, alinhada com a proposta de Sousa Santos, que conclui: “devido a essa situ-
ação intermédia – aquilo que eu chamo as interidentidades do espaço da Língua Portu-
guesa –, essa cultura que se criou é extremamente rica, cheia de virtualidades, muito mais
cosmopolita e universalizante que a cultura que é possível criar no espaço inglês” (idem,
p. 8). Angela Lago reflete a respeito da formação dessa cultura brasileira, rica e cosmopo-
lita, e das possibilidades exploradas pelos artistas locais no processo de descobrimento e
apoderamento da própria história:

E afinal o que é caracteristicamente nacional em cidades cosmopolitas como as do final do


nosso século? Acontece que vivemos num país adolescente, em plena crise de identidade, e
talvez esta questão se coloque para nós de uma maneira diferente. Ainda não conhecemos
bem a nossa mutante cara e precisamos desenhá-la no espelho, [...] e descobrir o que é
realmente nosso, para nos apoderarmos de nossa própria história. Por isso torna-se tão
significativo o fato de alguns artistas brasileiros estarem buscando suas fontes no barroco,
que embora de origem europeia, em nossa terra é tocado pela genialidade dos artesãos
mulatos. Ou o trabalho daqueles ilustradores que em busca do autenticamente brasileiro
retomam as características do movimento modernista de 22, a cor caipira, o traço solto, o
olhar que pousa crítico, zombeteiro, liberador. Ou a pesquisa dos que encontram na cultura
popular uma fonte vigorosa, ou dos que pesquisam as artes indígenas e a cultura negra
reinventando sua plasticidade. (Lago, 1989, p. 88)

 Transpondo฀barreiras

A riqueza da criatividade nos livros ilustrados brasileiros salta aos olhos da professo-
ra Maria Nikolajeva, uma das mais proeminentes teóricas de literatura infantil em âmbito
mundial. Nascida na antiga União Soviética, naturaliza-se sueca e leciona na universidade
de Estocolmo por 25 anos, até 2008, quando aceita o convite para lecionar na Universidade
de Cambridge e muda-se para o Reino Unido. Membro do júri do prêmio Hans Christian

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Andersen que premiou a escritora brasileira Ana Maria Machado em 2000, Nikolajeva
tem grande interesse e conhecimento da produção brasileira contemporânea, com decla-
rada admiração por sua qualidade e diversidade. A professora tem também amplo conhe-
cimento sobre o mercado editorial britânico, declarando que muitos dos mais inovadores
livros brasileiros não encontrariam receptividade para publicação entre as editoras bri-
tânicas, reticentes em investir em propostas menos convencionais, de retorno comercial
incerto.15 A receptividade a propostas inovadoras no mercado nacional do livro infantil
vai ao encontro da afirmação de Sousa Santos sobre a natureza “extremamente rica, cheia
de virtualidades, [...] cosmopolita e universalizante” da cultura brasileira. Ainda concor-
dando com Sousa Santos, os ilustradores brasileiros que deliberadamente transitam nos
espaços de inovação, desafiando as convenções aceitas, demonstram estar conscientes das
condições em que uma obra inovadora alcança o público, tendo “consciência das relações
de poder que nela intervêm, ou seja, com a investigação de quem hibrida quem, o quê, em
que contextos e com que objetivos” (2004, p. 10). Angela Lago explica o que pensa sobre a
circulação dos livros de imagem de características mais experimentais que cria:

Tenho consciência que o campo do livro de imagem é extremamente interessante porque


ele é um campo de experimentação sim, hoje. Mas como ele tá dirigido pro público infantil,
eu quero que ele chegue ao público infantil. [...] O mercado é pra criança, eu sei disso. Eu tô
interessada que a criança entenda o livro, sim. Se o livro se alargar pro público adulto, tá muito
bem também, ele é muito bem-vindo, eu não excluo ninguém, mas a direção é a direção do
mercado, e se eu mentir ia ser uma bobagem. (Lago apud Araújo, 2010, passim p. 56-57)

Elisa Dresang (1999) identifica algumas das principais características desses livros
mais experimentais, que expandem os limites tradicionalmente aceitos no mercado con-
temporâneo:

 Mudanças nas formas e formatos: design gráfico explorando novas formas e


formatos; palavras e imagens em novos níveis de sinergia; organização de conteúdo e for-
mato não-lineares; múltiplas camadas de significados; formatos interativos (p. 19)

15 Depoimento pessoal durante nossos encontros no Cambridge-Homerton Research and


Teaching Centre for Children’s Literature da Universidade de Cambridge, UK, onde estive em
doutorado sanduíche por 12 meses, entre 2014 e 2015.

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 Mudanças de perspectiva: múltiplas perspectivas, visuais e verbais; vozes não
ouvidas anteriormente; crianças e jovens que falam por si mesmos (p. 24)
 Mudanças de limite: assuntos anteriormente proibidos; configurações anterior-
mente negligenciadas; personagens retratados de maneiras novas e complexas; novos ti-
pos de comunidades; finais não resolvidos (p. 26)

Se muitas dessas características já podem ser observadas eventualmente em livros


publicados até a primeira metade do século XX, Dresang sublinha que em nossa “era di-
gital” tais características vêm sendo extremamente frequentes, a ponto de constituírem o
que chama de “mudança radical” (radical change): uma mudança fundamental a partir do
que é comum ou tradicionalmente aceito na literatura para jovens leitores, que, embora
não trazendo mudanças extremas, apresenta desenvolvimentos extremamente diferentes
das formas anteriores (1999, p. 4). Todas essas características estão presentes nas obras de
Lago, Mello e Villela, e nos três livros do corpus grande parte delas pode ser observada,
com destaque para os seguintes aspectos:

 Abordagem de temas da cultura local sem reducionismo, “exotismo” tropical ou


paternalização em relação a grupos socialmente desfavorecidos ou excluídos;
 Releitura de referências visuais da cultura local: arte popular, arte das periferias urbanas;
 Apropriação criativa (antropofágica) de referências das artes plásticas mundiais
(europeias, americanas, orientais, africanas);
 Uso da cor como efeito narrativo, dramático, mais expressionista do que naturalista;
 Uso do suporte como recurso narrativo: efeito cinético/paralaxe da virada de pági-
na, página com dobra dupla, capa com orelhas que se prolongam, sentido de leitura.

Tendo nos livros ilustrados espaços de experimentação, os três artistas buscam am-
pliar seu repertório criativo empregando linguagens diversificadas, pela interação entre
palavras, ilustrações e design, oferecendo ao público infantil produtos que podem en-
riquecer sua cultura visual em processo de formação, caso as novidades apresentadas
ofereçam pontos de entrada para seu entendimento e fruição. Como é negociada a trans-
posição de limites nas propostas transgressoras dos ilustradores, de modo que circulem

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socialmente, passando primeiro pelos mediadores adultos até chegarem aos leitores in-
fantis, a ponto de serem absorvidas pelo mainstream e ampliarem o repertório estético
desses leitores? Para esclarecer esse processo, faz-se oportuno examinar alguns conceitos
de comunidades e como seus códigos de comunicação são validados e passam a fazer
parte daquele sistema cultural.

2.3฀ Circuito฀do฀livro฀ilustrado

O conceito de mundo da arte conforme apresentado pelo sociólogo americano


Howard Becker (2005) explica a complexa composição das redes de colaboração em torno
da produção de obras de arte, onde não apenas artistas mas diversos outros agentes têm
papel fundamental. Aplicar esse conceito ao mundo do livro ilustrado evidencia a maneira
como propostas inovadoras são recebidas e negociadas pelos diferentes agentes. Além do
papel de cada um deles e o impacto de sua atuação nessa cadeia, é importante considerar a
formação de seus repertórios, que vai afetar o contrato de comunicação16 que se estabelece
entre eles. Para o bom entendimento entre esses agentes, são muito importantes os códigos
e convenções adotados, com o cânone representando o consenso estabelecido pela tradição.
Pela perspectiva da semiótica, todos estes elementos constituem a semiosfera. No
centro do sistema ficam as convenções já bem estabelecidas, estáticas, enquanto as ino-
vações ocupam dinamicamente a periferia e tendem a migrar para o centro, renovando
as convenções e o cânone. Maria Nikolejeva (1996) examina esse processo, no campo da
literatura infantil, à luz da semiótica da cultura de Yuri Lotman, investigando a formação
e transformação dos códigos e convenções que regulam o cânone e regem o contrato de
comunicação entre os agentes. Se os artistas propõem as inovações, são agentes como crí-
ticos, estudiosos ou bibliotecários que concedem legitimação às suas propostas inovado-
ras, facilitando sua circulação.17 O circuito completo abrange várias etapas e configura um

16 Conceito aplicado à literatura infantil por Ieda de Oliveira (2003) a partir das formulações de
Patrick Chareaudeu, ao qual voltaremos mais adiante.
17 A tese de doutorado do ilustrador Dominic Catalano, The Roles of the Visual in Picturebooks:
Beyond the conventions of current discourse, defendida no Departamento de Artes da The Ohio
State University em 2005, é um dos melhores trabalhos acadêmicos que foi possível localizar sobre
os agentes envolvidos na criação do livro ilustrado contemporâneo. Na qualidade de integrante

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conjunto complexo, como observa Anne Lundin: “Um livro reflete um complexo processo
de produção [...] Os livros infantis são o produto de editores, livreiros, bibliotecários, pro-
fessores e outros que intervêm trazendo livros para o público” (2001, p. 235-236). Pode-se
agrupar essas etapas em quatro principais segmentos: produção, legitimação, circulação e
recepção. Alguns dos principais integrantes destes segmentos são: no primeiro caso, além
obviamente dos autores, também os editores, profissionais que efetivamente possibilitam
que os livros venham a público; no segundo grupo os críticos especializados, que conferem
legitimidade institucional às obras consideradas de superior qualidade artística; no terceiro
grupo estão pais e professores, mediadores do contato direto que as crianças têm com os
livros; e por fim, mas não menos importante, o leitor infantil, sobre quem o conhecimento
é consideravelmente limitado e, no mais das vezes, ideologicamente comprometido.

 Etapas฀e฀agentes

No caso do livro infantil, é importante observar a separação entre as etapas de


circulação e recepção. Enquanto o público adulto tem acesso direto aos livros, os leitores
infantis dependem da mediação de adultos para esse acesso. Essa é uma dentre as várias
tensões presentes nos livros ilustrados infantis, conhecida como tensão do duplo desti-
natário em referência ao fato de que, para chegarem às crianças, supostamente seu públi-
co-alvo final, os livros passam antes pela seleção de adultos responsáveis pela aquisição
ou mediação dos livros a que as crianças terão acesso. Quanto aos livros ilustrados pouco
convencionais, há, entre esses adultos, diferentes (e muitas vezes divergentes) suposi-
ções a respeito de sua adequação ao público infantil. Peter Hollindale (1988) identifica
dois diferentes grupos com orientações divergentes quanto às convenções: o book people,
formado por autores (escritores e ilustradores), editores, designers, produtores gráfi-
cos, críticos especializados, distribuidores, divulgadores e livreiros, teria critérios mais
conservadores do que o child people, formado por professores, contadores de histórias,
familiares (os bibliotecários ficam numa categoria intermediária). Essa segmentação é
bastante debatida ao longo dos anos e, embora possa fazer sentido no contexto ameri-

do que chama de picturebook community, Catalano traça um quadro extremamente lúcido dessa
comunidade e propõe questões interessantíssimas e pouco exploradas nesse campo de estudo.

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cano da época, no Brasil parece acontecer o contrário. As observações de campo dessa
pesquisa sobre a adesão dos diferentes grupos de agentes adultos a concepções mais con-
servadoras ou mais progressistas a respeito da infância e dos livros ilustrados aponta uma
melhor acolhida às propostas inovadoras entre o grupo do livro, e maior resistência entre
o grupo das crianças.18
A produção de um livro envolve vários profissionais e obedece a um fluxo de desen-
volvimento relativamente estável, que Andrew Haslam (2007, p. 22) sintetiza em oito eta-
pas. O autor explica que existem variações na sequência de participação dos profissionais
nessa cadeia, especialmente nos quatro estágios iniciais:

Tabela 2. Etapas e agentes da cadeia produtiva do livro. Andrew Haslam, 2007.

1 ➤ 2 ➤ 3 ➤ 4 ➤ 5 ➤ 6 ➤ 7 ➤ 8
autor editora editor designer produção impressão distribuição varejo

conclusão
editora autor editor designer produção impressão distribuição varejo
início

editor editora autor designer produção impressão distribuição varejo


ilustrador
designer autor editora editor produção impressão distribuição varejo
fotógrafo

O modelo que apresenta maior interesse para essa pesquisa é justamente o último, o
menos tradicional, onde a concepção do livro parte do ilustrador ou designer. Na verdade,
nos livros ilustrados acontece cada vez com maior frequência a fusão, na mesma pessoa,
das funções de autor, ilustrador e designer. Essa situação possibilita uma especial autono-
mia na concepção do livro enquanto objeto em sinergia com o conteúdo. Normalmente,
os designers (que no caso do livro ilustrado podem ser os próprios ilustradores) ocupam
uma posição de mediadores entre o universo imaterial do autor ou editor, que idealizam o
livro, e o universo material das condições industriais de produção, por sua vez impactadas
por critérios comerciais. Em outras palavras, o designer editorial projeta um corpo – im-

18 Previa-se no projeto inicial que o material recolhido em entrevistas e conversas com editores,
distribuidores, livreiros, especialistas, professores e pais viesse a integrar a tese final. No entanto,
a abundância e a variedade das informações colhidas demandariam um extenso e cuidadoso
trabalho de sistematização e análise crítica, para que os resultados não fossem distorcidos. Optou-
se então por manter esse material inédito, para exploração em uma futura investigação.

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presso ou digital – para bem acolher e expressar a alma de uma publicação. Os designers
têm seu lugar localizado aproximadamente no centro na cadeia produtiva de livros – li-
dam em sua prática profissional cotidiana com um horizonte que abrange a extensa gama
dos agentes envolvidos na criação, produção e circulação: escritores, ilustradores, editores,
produtores gráficos, impressores, divulgadores, distribuidores, críticos especializados; to-
dos eles integrantes do grupo do livro, conforme Hollindale (1988). O envolvimento do
designer com o livro, como aponta Haslam, pode ultrapassar a fronteira que delimita as
funções de cada membro da cadeia produtiva do livro na indústria cultural contemporâ-
nea. O próprio designer pode assumir a liderança do processo de desenvolvimento de um
livro, lugar tradicionalmente ocupado pelo autor.
A adesão dos editores é fundamental na realização dos projetos pouco convencio-
nais. Muitos editores revelam em seus depoimentos um interesse por propostas inovado-
ras, esclarecendo aspectos importantes das condições reais de produção dos livros ilus-
trados.19 Nem sempre esses profissionais contam com uma fundamentação crítica que
lhes auxilie a lidar com imagens, como destaca Rui de Oliveira (2008) ao apresentar as
motivações para publicar seus estudos sobre ilustração:

Diante da importância da imagem nos livros destinados aos públicos infantil e juvenil,
incluindo novas relações do audiovisual com a palavra, não apenas por questões plásticas,
mas até por seus aspectos ideológicos e alienantes, a intenção destes estudos é propor um
modo conceitual de leitura da ilustração que auxilie, sobretudo, os educadores, bibliotecários,
animadores culturais e até mesmo os editores, que, em sua maioria, formados em faculdades
de letras, apresentam dificuldades no trato com a ilustração. (p. 38)

Depois de publicados, os livros são avaliados por especialistas que emitem suas im-
pressões a respeito das obras, registradas em documentos como resenhas e artigos em
jornais e revistas; pareceres que fundamentam o processo de avaliação para indicação de
aquisição por programas governamentais; justificativas para concessão de prêmios nacio-
nais ou internacionais. No Brasil, as premiações e avaliações da crítica especializada têm

19 Um deles é o depoimento de Isabel Coelho, editora de literatura infanto-juvenil da Cosac


Naify, que publicou Lampião & Lancelote. A casa editoral, que lamentavelmente encerrou suas
atividades em 2015, destaca-se por seus projetos ousados. Depoimento recolhido pela pesquisadora
em agosto de 2015 durante visita técnica à IJB, em Munique, onde também se encontrava Isabel
Coelho, na qualidade de pesquisadora bolsista em estadia de dois meses.

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certo impacto sobre as decisões de compra por parte de programas governamentais, sendo
o PNBE o mais expressivo dentre eles; por sua vez tais compras influenciam também as
adoções escolares; e as duas combinadas constituem a maioria esmagadora de vendas. A
venda em livrarias diretamente para o público leigo é pouco influenciada por pareceres
especializados e premiações, e apresenta um perfil diferente – e até mesmo conflitante –
em relação ao que consideram os especialistas, no que diz respeito à aceitação de obras de
características pouco convencionais.
Ainda que não formalmente incluídos nos resultados dessa pesquisa, os depoimen-
tos de agentes que disponibilizam os livros ilustrados diretamente para o público infantil,
como livreiros, bibliotecários, professores, promotores de leitura e familiares, acrescentam
outra camada de entendimento sobre o processo de circulação dos livros ilustrados inova-
dores. Um universo de suposições diferentes sobre a infância divide especialistas e leigos
em lados opostos. Entre os leigos, predominam crenças sedimentadas pelo senso comum,
apontando para a escolha de obras com conteúdo e forma conservadores. Entre os espe-
cialistas, a preferência recai sobre livros pouco convencionais, que desafiam os padrões já
bem conhecidos.

 Contrato฀de฀comunicação

[…] o livro ilustrado é antes de tudo um objeto artístico. Mais amplamente, é a combinação
de imagens e ideias apresentadas numa sequência, cuja criação está fundamentada de três
maneiras: um artista cria o objeto artístico para um público. Ao longo da nossa história
humana, o artista, o público e o objeto têm sido influenciados pela sociedade, pela cultura
e pela tecnologia. O que permanece constante é que a experiência estética surge a partir
da combinação de imagens e ideias, e que se completa quando o público acrescenta seus
entendimentos intelectuais e emocionais. (Bader, 2012, p. 1)20

20 “[…] the picturebook is first and foremost an art object. Most broadly it is the combination of
image and idea presented in sequence whose creation is grounded in three ways. An artist creates
the art object for an audience. Over our human history the artist, the audience, and the object have
been influenced by society, culture and technology. What has stayed constant is that an aesthetic
experience arises from images and ideas combined in some complete form when an audience brings to
it intellectual and emotional understandings.”

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Sendo considerados uma forma de arte, mais do que recursos pedagógicos, os livros
ilustrados oferecem aos artistas inúmeras possibilidades de exploração, porém dentro de
certas limitações do mercado editorial: são obras comerciais que devem estabelecer um
contrato de comunicação com o público leitor. Existe uma fina linha de equilíbrio entre
códigos familiares e não-familiares que os artistas precisam observar em suas propostas
inovadoras, para conseguir se comunicar de modo bem-sucedido com os leitores, ao mes-
mo tempo atraindo-os e desafiando-os.
Muito embora sem voz própria, os leitores infantis são objeto da atenção de estudos
realizados por adultos em busca de uma melhor compreensão a respeito das condições de
interação entre leitor e obra. A análise do discurso visual pode iluminar de modo original
certos aspectos ainda obscuros nesse processo, em especial no que toca ao estabelecimento
de um contrato de comunicação entre autores adultos e leitores infantis quando as pro-
postas dos primeiros ultrapassam o repertório dos últimos. O papel das convenções nesse
processo de comunicação é ressaltado por Perry Nodelman: “as convenções determinam
não apenas o reconhecimento, como também o sentido” (1989, p. 16).
Como visto no capítulo anterior, o estabelecimento dos primeiros cânones e con-
venções do livro ilustrado contemporâneo acontece entre o período vitoriano e o início
da Segunda Guerra Mundial, durante a Era de Ouro da Ilustração. Desde então, os ilus-
tradores estão sempre expandindo as fronteiras das convenções vigentes, buscando novas
formas de expressão e desafiando a compreensão do público. O campo da arte é mais
voltado para a expressão do que para a comunicação, enquanto que a ilustração tem uma
vocação essencialmente comunicativa, não podendo portanto desafiar excessivamente o
horizonte de expectativas21 do público. Rui de Oliveira problematiza os limites dessas pro-
postas pouco convencionais na ilustração de livros infantis

[...] acima de tudo porque trabalha com um público de psicologia própria. Isso não quer
dizer que as crianças sejam refratárias às soluções gráficas contemporâneas – elas ainda nem
têm tempo para criar preconceitos ou conceitos sobre a arte do século XXI e, sobretudo, do
século XX. [...]

21 Conceiro formulado por Hans Robert Jauss (1994 e 2002) no campo da literatura. A formação
dos cânones na literatura infantil, e mais especificamente no livro ilustrado, são estudados por
Ann Lundin, pesquisadora americana com livros e artigos publicados sobre o tema. Ver http://
www.encyclopedia.com/article-1G2-3480200012/golden-age-children-illustrated.html

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O impasse surge quando o ilustrador deifica sua linguagem. Narrar para e se comunicar
com a criança são os requisitos básicos da arte de ilustrar. Frequentemente o virtuosismo
estilístico da imagem, autista e narcisista, enamorada de si mesma, torna o livro infantil
uma obra de arte digna das paredes de uma galeria ou de um museu. Todavia, em termos de
emocionar a criança, nada diz. Muitos livros encantam os adultos cultos e informados, e as
crianças os detestam. (2008, p. 39)

Guto Lins, que é autor, ilustrador e designer, considera ser possível afinar o tom das
mensagens para atender as particularidades do público infantil sem que isso represente
um fator restritivo:

A criança de todos os tempos sempre enxergou o mundo diferente do que os adultos. Ainda
bem! Sempre utilizo uma analogia: é possível contar a mesma piada para uma criança de 8
e para um idoso de 80. Para cada um deles, procura-se o vocabulário, o tempo e o volume
da voz adequados. Ou seja, cada “público alvo” tem seus códigos e o meu barato é descobrir
esses códigos, é tentar me comunicar de todas as maneiras. [..]
Descobrir a linguagem adequada para que a comunicação se estabeleça, grosso modo,
é um vetor criativo e estimulante tanto na criação de um conceito estético para um livro
infantil quanto para solucionar um cartaz para cinema ou uma revista para adultos. O
designer tenta atender a inquietude e a necessidade de fazer a comunicação acontecer.22

A importância da interação com o destinatário – que pode ser chamado de receptor,


leitor, espectador, usuário, conforme se queira privilegiar um ou outro referencial teórico
– é ressaltada por diferentes teóricos: no texto encontram-se lacunas que serão preenchi-
das pelo leitor, observa Sartre (1989); para analisar uma imagem, deve-se saber para quem
é feita, afirma Martine Joly (2008); o designer deve conhecer seu o público-alvo, reitera
Donald Norman (2012). Essas observações se referem, respectivamente, a cada um dos
três sistemas que se conjugam na composição do livro ilustrado – texto verbal, ilustração
e design. Para teóricos do campo da literatura infanto-juvenil, esse destinatário é o “leitor
implícito infantil”, como dizem Teresa Colomer (1998) e Maria Nikolajeva (2005), entre
outros; já para Ieda de Oliveira (2003) ele é um “leitor infantil imaginado” que toma parte
em um contrato de comunicação com o autor adulto. Oliveira recorre à análise semiolin-
guística do discurso, de Patrick Chareaudeau, para investigar esse contrato de comunica-

22 Entrevista a Annete Baldi. O livro e a busca de um conceito estético de literatura infantil. Tigre
Albino. Vol. 4 n. 1 – 15.11.2010. http://www.tigrealbino.com.br/texto.php?idtitulo=aaac7dd2c993bde
85a92d168dc182727&& idvolume=abd2170283077948edd086842c165e3f

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ção que se estabelece entre o autor adulto e esse leitor infantil, analisando cuidadosamente
as formulações do texto verbal em duas importantes obras de Ruth Rocha e Maria Alice
Vieira, respectivamente O Reizinho Mandão e Graças e Desgraças da Corte de El-Rei Tadi-
nho.
Para empreender uma análise dos textos imagéticos, faz-se necessário recorrer a fer-
ramentas de outros campos, dentre as quais essa pesquisa elege a semiótica, como se verá
no próximo capítulo. É proveitoso, portanto, construir antes um quadro de referências
para orientar a análise do livro ilustrado enquanto elemento que integra um processo
de comunicação visual. Para chegar ao contrato de comunicação visual proposto pelos
artistas criadores de livros ilustrados, parte-se de um modelo de comunicação que vem
sendo aplicado a diferentes campos desde meados do século passado. A partir dos estudos
sobre a Teoria da Informação elaborados pelos engenheiros Shannon e Weaver no con-
texto da então nascente indústria dos meios de comunicação de massa, o linguista russo
Roman Jakobson (2008 [1958]) elabora uma compilação dos componentes do processo de
comunicação verbal. O modelo das funções da comunicação verbal de Jakobson pode ser
aplicado também ao estudo da comunicação visual, como faz Albert Kientz ao adaptá-lo a
canais temporais, que fixam as mensagens em suportes materiais, principalmente impres-
sos, conforme o seguinte diagrama (1973, p. 19):

O ato elementar de comunicação implica a existência de um EMISSOR, que elabora uma


mensagem a partir de sinais tomados de um REPERTÓRIO (código), de um CANAL pelo
qual a mensagem é transferida através do espaço e do tempo, e de um RECEPTOR, o qual
recebe a mensagem e a decifra (decodifica), com a ajuda dos sinais que ele tem armazenados
em seu próprio repertório.

Figura 24. Modelo da comunicação. Albert Kientz, 1973.

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O pesquisador, ilustrador e educador Luis Camargo, autor do pioneiro Ilustração do
livro infantil (1995) também toma o modelo de Jakobson como referência, transpondo-o
ao campo da ilustração. Além de elaborar uma tipologia das funções da ilustração baseada
nas funções da linguagem verbal, Camargo inspira-se no conceito de tradução intersemió-
tica de Jakobson para propor o conceito de convergência intersemiótica que caracteriza o
tipo de interação entre diferentes linguagens – palavras e imagens – no livro ilustrado. A
imagem narrativa vai além de simplesmente traduzir um sistema de signos verbais para
um sistema de signos visuais. Os dois sistemas transmitem mensagens que podem intera-
gir de diferentes maneiras, sendo a mensagem final resultante de um processo de conver-
gência entre ambos.
Analisar as funções da ilustração conforme as categorias propostas por Camargo é
um caminho fascinante, porém para essa pesquisa ainda mais importante é investigar os
componentes do processo de comunicação visual, com destaque para o papel que a exis-
tência ou formação de um código comum desempenha na comunicação entre os partici-
pantes, conforme destaca Kientz:

Para que haja comunicação, é necessário que a cadeia emissor-canal-receptor-repertório


funcione corretamente em todos os seus pontos. Isto pressupõe, em primeiro lugar, que
o emissor e o receptor falem a mesma linguagem, que tenham em comum, pelo menos
parcialmente, um mesmo repertório. (1973, p. 18).

Interessa aqui observar a interação dos leitores infantis com os livros ilustrados en-
quanto fenômeno da comunicação visual, entendendo que a ilustração configura uma
linguagem, ou seja, um sistema de signos duplamente articulados que comunica ideias.23
Tendo em mente que o livro ilustrado é uma publicação – produto designado para dar a
público as propostas do autor (de palavras ou imagens) –, verifica-se a primeira dentre
várias tensões existentes na sua produção e circulação: a tensão inerente ao próprio gê-
nero livro ilustrado, nascida do encontro entre as linguagens verbal e visual, e aos valo-
res díspares socialmente atribuídos a cada uma delas. A outra grande tensão refere-se ao
duplo destinatário: tendo por usuário final o público infantil, a produção e a circulação
dos livros ilustrados é feita por adultos, e esses com frequência têm opiniões divergentes

23 Ver Saussure, 1977 e Barthes, 1971.

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a respeito de sua adequação às crianças. Ou seja, quando da formulação do contrato de
comunicação visual, os autores precisam levar em conta que estão se dirigindo a dois tipos
distintos de audiências com interesses bastante diferentes, e que para alcançar o público
final, é preciso antes que esse contrato seja autorizado pelos mediadores adultos.
Tendo em vista essa dupla audiência dos livros ilustrados, essa pesquisa considera
proveitoso segmentar o público não apenas entre os dois grupos etários formados por
crianças e adultos, mas ainda aplicar a classificação de Townsend (1996) para esses últi-
mos, com o grupo do livro incluindo os especialistas (pesquisadores, críticos, editores, etc)
e o grupo das crianças incluindo os não-especialistas (professores ou mediadores sem for-
mação específica, familiares, etc). Essa divisão é particularmente útil na investigação sobre
o tipo de respostas que os livros inovadores – e porque não dizer, até mesmo desafiadores,
como os três examinados nessa pesquisa – despertam nos mediadores adultos, e de que
maneira isso pode impactar a autorização ou interdição (ou pelo menos a não-indicação,
o que, no final das contas, tem o mesmo efeito) à circulação destes livros entre o público fi-
nal. Assumindo que os artistas estão sempre expandindo as convenções já assimiladas pela
sociedade, eles lidam com os três tipos de público (crianças, adultos especialistas e adultos
não-especialistas) simultaneamente, despertando respostas variadas que podem afetar as
condições de produção dos livros – uma complexa combinação de muitas etapas, desde a
concepção artística até critérios comerciais. No que diz respeito aos códigos visuais, os três
grupos têm repertórios distintos. Em termos gerais:

 Crianças ainda estão desenvolvendo sua linguagem visual, sendo expostas maci-
çamente a produtos da indústria cultural e com acesso escasso às formas visuais mais so-
fisticadas das artes plásticas. Algumas propostas inovadoras ultrapassam sua possibilidade
de entendimento e o contrato de comunicação não se estabelece. Porém, muitas outras
vezes o desconhecimento de formas mais sofisticadas ou complexas aguça sua curiosidade
e abre caminho para a celebração desse contrato (Arizpe & Styles, 2003; Evans, 1998; Pan-
taleo, 2008);
 Adultos não-especialistas tendem a ter gostos mais conservadores, e a rejeitar
como inapropriadas as propostas menos convencionais, aceitando apenas as mais estereo-
tipadas e portanto de fácil decodificação (Townsend, 1996); e

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 Adultos especialistas contam com um espectro mais amplo de convenções vi-
suais e portanto recebem com maior facilidade as propostas inovadoras (Townsend, 1996).

Muito resumidamente, poderia-se então concluir que as crianças se dispõem a acei-


tar propostas inovadoras por falta de um repertório restritamente codificado, que os es-
pecialistas aceitam tais propostas por terem um repertório amplo o suficiente para aco-
modá-las, e que os não-especialistas as rejeitam por extrapolarem o escopo limitado de
seus repertórios. A conclusão natural seria que crianças e especialistas apresentam maior
afinidade quanto à aceitação de propostas inovadoras. Na prática, porém, o que se verifica
é que esses dois grupos raramente estão em contato, e quem de fato coloca os livros ao
alcance das crianças é o grupo de não-especialistas. Ou seja, mesmo quando endossados
pelos especialistas, os livros pouco convencionais precisam ainda transpor a resistência
dos não-especialistas antes de alcançar de fato o público infantil.24 Os pareceres dos espe-
cialistas alcançam e impactam os critérios dos não-especialistas por meio de três princi-
pais instâncias de legitimação: os prêmios, a crítica e, especialmente no caso do Brasil, as
compras governamentais.

2.4฀ Legitimação

O cenário atual da ilustração infantil brasileira é bastante diversificado: coexistem


livros com estética mais “comercial” ao lado de outros bem pouco convencionais. O mer-
cado brasileiro de livros infanto-juvenis tem uma característica singular: há quase vinte
anos o governo é o maior comprador de livros de literatura, além de didáticos e paradidá-
ticos. Os livros ilustrados mais inovadores encontram boa acolhida entre os especialistas

24 Além das notícias veiculadas frequentemente na mídia sobre livros que permanecem
encaixotados nas escolas, há um ótimo estudo publicado pela professora e pesquisadora Aparecida
Paiva, da UFMG: Literatura fora da caixa: o PNBE na escola (2012). Paiva explica: “O problema
é que essa política universal de distribuição de livros não vem acompanhada de uma formação
de mediadores de leitura. Antigamente, questionava-se que os alunos de escolas públicas não
têm acesso aos livros. Hoje os livros chegam às bibliotecas, mas permanecem dentro das caixas.”
“Livros barrados na escola”. Entrevista a Tory Oliveira. Carta Educação, 22 de novembro de 2013.
Disponível online em http://www.cartaeducacao.com.br/entrevistas/livros-barrados-na-escola/.
Acesso em 12 fev. 2015.

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cujos pareceres fundamentam essas compras, sendo adquiridos em grandes quantidades
e circulando por escolas de todo o país. Mesmo num contexto onde as compras governa-
mentais impactam fortemente o mercado, as imagens de apelo comercial ainda predomi-
nam nas publicações. No entanto, embora muitos empreguem estilos mais conservadores,
que encontram fácil aceitação entre o público, cada vez mais ilustradores vêm criando
propostas altamente inovadoras, que despertam reações controversas, indo da admiração
ao incômodo. Esse movimento se faz notar com mais intensidade principalmente desde a
década de 1980, quando o chamado boom da literatura infanto-juvenil verificado na déca-
da de 1970 (Sandroni, 2011) chega à ilustração. Os prêmios têm um peso considerável no
catálogo das editoras, que frequentemente destacam essa informação na capa dos livros
– por exemplo, Lampião e Lancelote ganhou uma cinta acobreada onde a editora divulga a
informação que é o livro mais premiado do Brasil.

Figura 25. Cinta acobreada,


aposta na capa da segunda
edição de Lampião & Lancelote,
com a lista de prêmios que o livro
conquistou.

No entanto, são as compras escolares, principalmente as governamentais, que exer-


cem a influência mais significativa nas decisões das editoras. A crítica, infelizmente, não
desempenha papel relevante na formação do público. Vamos examinar aspectos dessas
três principais instâncias de legitimação – compras governamentais, prêmios e crítica.

 Compras฀governamentais

Os livros infantis estiveram sempre estreitamente ligados à escola, como visto no


capítulo 1, e especialmente no caso do Brasil, como visto início deste capítulo. Destacam-

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setrês momentos nos quais as compras governamentais têm um impacto decisivo nos
rumos do mercado, nos anos 1920, nos anos 1970 e a partir dos anos 1990.
Nos anos 1920, o sucesso editorial de Monteiro Lobato é incentivado por uma enor-
me compra escolar de seu primeiro livro, Reinações de Narizinho, um caso por ele narrado
de maneira anedótica (2009, p. 192-193): Lobato decide imprimir a quantidade exorbitan-
te – tanto para a época como ainda hoje – de 50.000 exemplares do livro, e como estratégia
de divulgação distribui 500 exemplares para escolas primárias estaduais. O livro cai nas
graças dos alunos e os exemplares disponíveis nas bibliotecas escolares ficam a tal ponto
desgastados pelo uso, que chamam a atenção do então presidente do Estado de São Paulo,
Washington Luís, durante uma visita às escolas. Instruído a comprar mais exemplares, o
Secretário de Estado Alarico Silveira pergunta a Lobato quantos livros ele poderia entregar
e, ouvindo como resposta “quantos queira”, acredita tratar-se de uma brincadeira. Enco-
menda então 35.000 exemplares e só se dá conta de seu engano quando recebe a remessa
junto com a fatura.25 Tal sucesso de estreia incentiva Lobato a investir em mais livros do
Sítio do Picapau Amarelo, que revolucionam a literatura infantil brasileira.
Nos anos 1970 acontece outro salto de qualidade e quantidade na literatura infantil,
favorecido pela conjugação de alguns importantes eventos, como o lançamento da revista
Recreio, a criação da FNLIJ, seção brasileira do IBBY, e, principalmente, a diretriz do go-
verno militar de adquirir livros de autores nacionais para as escolas públicas, como lembra
Laura Sandroni:

Estávamos em plena década de 1970, quando, por um conjunto de circunstâncias – sendo


a principal delas a obrigatoriedade de leitura de obras de autores brasileiros nas escolas,
descrita na Lei de Diretrizes e Bases/71 –, a produção voltada para a infância e juventude
começou a crescer, dando inicio ao que é, impropriamente, chamado pela mídia de boom
da literatura infanto-juvenil [...].
Era realmente um momento de efervescência na área, com a revista Recreio publicando
semanalmente contos de nomes ainda pouco conhecidos, a FNLIJ realizando no Rio de

25 A versão de Lobato é muito interessante, mas problematizada pela pesquisadora Alice


Koshiyama (2006): “Alarico Silveira, Secretário de Estado de Washington Luís, recebeu ordens do
seu chefe para adquirir, em quantidade, mais exemplares do livrinho e distribuí-lo gratuitamente
às crianças. ‘Em quantidade’ é traduzido para trinta mil exemplares vendidos ao governo. No seu
relato, Lobato omitiu sua íntima amizade com Alarico Silveira e suas sempre ótimas relações com
Washington Luís, a quem devia sua promoção ao cargo de promotor público de Areias, no distante
1907.”

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Janeiro o 14º Congresso do IBBY [...]. A criação de concursos para a revelação de novos
autores também data dessa década, entre eles o do Instituto Nacional do Livro, então
chamado prêmio Viriato Corrêa e o João de Barro, da Secretaria Municipal de Cultura de
Belo Horizonte. (Sandroni, 2011, p. 7-8)

Na diretriz oficial de leitura de autores nacionais nas escolas públicas também há,
como no episódio de Lobato, um componente quase anedótico: o mesmo governo auto-
ritário que censura obras para adultos não presta atenção em obras para crianças, o que
enseja a publicação de livros infantis altamente revolucionários – até mesmo subversivos,
para empregar um termo popular na época – de Ana Maria Machado, Lygia Bojunga Nu-
nes e Ruth Rocha, para citar apenas algumas.
O governo federal é o maior comprador de livros do país, principalmente didáticos,
mas também adquire títulos de literatura infanto-juvenil por meio de inúmeros projetos
de incentivo à alfabetização e à leitura, sendo o maior deles o PNBE, lançado em 1998
(Amorim, 2012). As enormes compras feitas anualmente por esse programa são orienta-
das por pareceres de especialistas26 e têm impacto profundo no mercado – não apenas em
termos de resultados econômicos, mas também (e, para o interesse dessa pesquisa, princi-
palmente) quanto aos critérios de legitimação do que sejam obras adequadas para um pú-
blico leitor que não pode falar por si próprio. Além de outros programas governamentais,
os livros de Lago, Mello e Vilela são selecionados com regularidade pelo PNBE, chegando
até as escolas públicas, onde podem circular entre alunos (via de regra mais carentes em
termos socioeconômicos e culturais) que têm limitadas possibilidades de acesso a livros
ilustrados pouco convencionais. No entanto, não se sabe exatamente como os professores
e demais mediadores de leitura interagem com tais livros, o que inevitavelmente influencia

26 Em 1999, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE, órgão do Ministério


da Educação responsável pelo PNBE, contratou a FNLIJ para selecionar 106 títulos, e nos anos
seguintes é formada uma comissão técnica com integrantes de várias instituições, entre elas o
Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita – CEALE, da Universidade Federal de Minas Gerais –
UFMG. Os dados sobre os critérios de seleção dos acervos não são muito transparentes no site
oficial do programa, em http://www.fnde.gov.br/programas/biblioteca-da-escola/biblioteca-da-
escola-apresentacao, mas um apanhado considerável de informações são compiladas e analisadas
no artigo “Os critérios de avaliação e seleção do PNBE: um estudo diacrônico”, de Célia Fernandes
e Maisa Cordeiro (2012). Disponível online em http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/
faced/article/viewFile/11749/8389. Acesso em 12 mar 2015.

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sua circulação entre os alunos. Crianças em escolas particulares, além de lerem os livros
recomendados no ambiente escolar, também têm acesso a livros comprados por paren-
tes e amigos. Estes adultos não são necessariamente especialistas, sendo mais usualmente
guiados pelo senso comum quando escolhem livros ilustrados. Em entrevistas informais
realizadas ao longo dessa pesquisa, livreiros e distribuidores apontam uma certa rejeição
às propostas pouco convencionais de Lago, Mello e Vilela por parte dos integrantes deste
grupo, que aparentemente preferem narrativas visuais mais conservadoras.

 Prêmios

O concursos do Ministério de Educação e Saúde, que premiam em 1936 os belíssi-


mos Lenda da Carnaubeira, de Paulo Werneck e O circo, de Tomás Santa Rosa, e em 1937
Boi Aruá, de Luís Jardim, e do Instituto Nacional do Livro, que em 1971 premia Os colegas,
com texto de Lygia Bojunga e ilustrações de Gian Calvi, também apoiam a impressão des-
ses livros, mostrando a importância de incentivar a publicação de obras de alta qualidade
estética.27 Como acontece com qualquer empreendimento capitalista, o mercado editorial
infantil é condicionado pelo retorno comercial de seus produtos, e tais livros não neces-
sariamente alcançam vendagens suficientes para cobrir seus altos custos de produção. A
editora Cosac Naify, que banca um investimento considerável na publicação de Lampião
& Lancelote, acumula uma quantidade expressiva de prêmios em seus dezenove anos de
existência, mas por fim sucumbe ao desequilíbrio entre o retorno comercial e os altos cus-
tos de produção de livros com elevada qualidade gráfica.
Os prêmios sinalizam para o público quais livros são considerados de superior qua-
lidade pelos especialistas, segundo seus critérios. Também ajudam na escolha dos livros
que são adquiridos pelos programas governamentais e outras compras escolares, aconte-
cendo mesmo de alguns votantes participarem tanto como jurados nos prêmios quanto
como pareceristas nas seleções de governo.

27 A primeira edição de Os colegas saiu pela editora Sabiá em convênio com o INL. Logo depois
de publicado, recebeu em 1973 o prêmio Jabuti de Literatura Infantil da CBL (Sandroni, 2011).

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Os principais prêmios nacionais são concedidos pela FNLIJ, com dezoito diferentes
categorias específicas para publicações infanto-juvenis;28 Jabuti da CBL, com 27 categorias
gerais sendo quatro para infanto-juvenis;29 Academia Brasileira de Letras – ABL, com sete
prêmios literários, dentre eles um para Literatura Infanto-juvenil.30 Existem ainda o João
de Barro, da Prefeitura de Belo Horizonte, com as categorias texto literário e livro ilus-
trado,31 além de listas de livros recomendados, como a da revista Crescer (Os 30 Melhores
Livros Infantis do Ano).
No cenário internacional, o prêmio mais importante é o Hans Christian Andersen,
do IBBY, considerado o Nobel da literatura infantil e juvenil, conforme explica o site ofi-
cial. A indicação para concorrer ao Hans Christian Andersen é feita pelas seções nacionais
do IBBY (no Brasil, a FNLIJ), e a indicação em si já representa um reconhecimento insti-
tucional da qualidade da obra do artista. Angela Lago é indicada em 1994 e 2000, e Roger
Mello em 2010, 2012 e 2014, ano em que ganha o prêmio, concedido pela primeira vez a um
ilustrador latino-americano desde que a categoria Ilustração é instituída, em 1966.
O prêmio é anunciado durante a Feira do Livro Infantil de Bolonha, o maior even-
to mundial do setor. Embora menor do que a renomada Feira do Livro de Frankfurt,
que conta com expressiva parte dedicada à literatura infanto-juvenil, a feira de Bolonha
destaca-se por ser exclusivamente dedicada a esse segmento. A cada edição, a feira elege
um país homenageado, que ganha um espaço privilegiado para apresentação de palestras,
workshops e exibição de livros impressos e ilustrações originais de seus artistas. Em 1995,

28 Criança, Jovem, Imagem, Poesia, Informativo, Tradução Criança, Tradução Jovem, Tradução
Informativo, Tradução Reconto, Projeto Editorial, Revelação Escritor, Revelação Ilustrador,
Melhor Ilustração, Teatro, Livro Brinquedo, Teórico, Reconto e Literatura de Língua Portuguesa.
Fonte: site da FNLIJ. Disponível online em http://www.fnlij.org.br/site/premio-fnlij.html. Acesso
em 13 mai. 2016.
29 Infantil, Juvenil, Ilustração de Livro Infantil ou Juvenil (há uma categoria Ilustração com a
ressalva: “Nesta categoria não poderá concorrer ilustração de livro infantil e juvenil, que deverá ser
inscrita na categoria Ilustração de Livro Infantil ou Juvenil”) e, em 2016, a nova categoria Infantil
Digital. Fonte: site do Prêmio Jabuti. Disponível online em http://premiojabuti.com.br/o-jabuti/
categorias/. Acesso em 13 mai. 2016.
30 Fonte: site da ABL. Disponível online em http://www.academia.org.br/academia/premios.
Acesso em 13 mai. 2016.
31 Fonte: site da Fundação Muncipal de Cultura de Belo Horizonte. Disponível online em http://
www.bhfazcultura.pbh.gov.br/content/concurso-joão-de-barro-literatura-para-crianças-e-
jovens ?platform=hootsuite. Acesso em 13 mai. 2016.

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pela primeira vez o Brasil é o país homenageado. A participação de artistas brasileiros
na feira de 1995 tem profunda repercussão na ilustração nacional: ao mesmo tempo que
percebem a necessidade de aprimoramento técnico frente aos trabalhos estrangeiros, tam-
bém se conscientizam de suas próprias qualidades originais, que os singulariza no cenário
mundial. O deslocamento crítico do olhar entre nacional e estrangeiro promove profun-
das transformações artísticas no Brasil, desde a chegada dos artistas da missão francesa em
1816, passando pelos modernistas nos anos 1920, até chegar à ilustração contemporânea. O
olhar dos viajantes franceses dá aos brasileiros uma visão diferente de si mesmos, e oferece
aos artistas novos modelos para exercer seu ofício. Muitos dos modernistas fazem o per-
curso inverso, indo ao exterior em busca de novos modos de ver e de expressar suas visões,
e ao interior do Brasil, em busca de suas raízes e tradições. Assim como os modernistas, os
ilustradores descortinam em Bolonha um universo que amplia sua autoconsciência e os
estimula a buscar uma maior valorização da cultura nacional, num movimento que essa
pesquisa chama de descolonização visual. Ao mesmo tempo, em eventos internacionais
ilustradores como Rico Lins incentivam a ampliação do olhar dos especialistas que ava-
liam os livros ilustrados:

Nunca lhes ocorrera que ilustração também exige tradução e que o olhar europeu ou
norte-americano, oriundo das belas artes canônicas, é muito diferente da mirada dos povos
tropicais e mestiços que nós somos, confluência de tradições culturais diversas e artesanatos
ricos, formados por um amálgama de diferentes continentes entrelaçados, estuários de
linguagens autóctones originais e de um patrimônio riquíssimo e dinâmico, em explosiva
mutação, fruto de heranças diversas de múltiplas imigrações e variados contatos. (Machado
in Oliveira, 2008, p. 16-17)

Vinte anos depois, o Brasil é novamente o país homenageado na feira de 2014. Des-
sa vez, a participação dos artistas brasileiros mostra que as sementes lançadas em 1995
frutificam: o prêmio Hans Christian Andersen é concedido a Roger Mello. Mais do que o
merecido reconhecimento institucional do extraordinário talento individual do artista, a
premiação chega com sabor de conquista coletiva da ilustração brasileira.32 Comentando

32 Estive presente no auditório ao lado do artista no momento do anúncio da premiação, quando


pude fazer uma entusiasmada observação participante da intensa e calorosa comemoração que
tomou conta do ambiente e impediu a continuação da fala do presidente, que não conseguiu
concluir seu discurso como previsto pelo protocolo da cerimônia. Palmas, gritos, abraços, riso,

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o prêmio, Roger Mello declara: “Vencemos o eurocentrismo”. Essa premiação sugere o
interesse dos próprios europeus em superar o eurocentrismo, ao compor um corpo de
jurados cuja diversidade cultural se reflete na diversidade dos artistas premiados. A com-
posição culturalmente diversificada dos jurados do Hans Christian Andersen e de outros
concursos internacionais em anos recentes permite maior visibilidade mundial para pro-
postas menos convencionais, contrabalançando a tendência de uniformização em termos
de estilos e temas, muito relacionada à preponderância de obras de língua inglesa e suas
traduções que dominam economicamente o mercado.33 Vale destacar dois desses concur-
sos que primam pela diversidade cultural – a tradicionalíssima Bienal de Ilustração de
Bratislava e o recente Nami Concours. Artistas brasileiros sempre participaram do corpo
de jurados da Bienal de Bratislava, na Tchecoslováquia, começando por Regina Yolanda
nos anos 1970 e chegando a Roger Mello na edição passada, em 2015. O Nami Concours
é um concurso bem recente, que começa a ser promovido pela Nami Island da Coreia do
Sul em 2013, vindo de certa forma preencher a lacuna deixada na Ásia pelo fim do prêmio
Noma, do Japão. Roger Mello também integra o corpo de jurados da edição de 2015, que
tem como vencedor do prêmio Grand Prix o brasileiro Marcelo Pimentel, com o livro
ilustrado O fim da fila.

choro, emoções intensas que revelavam um sentimento coletivo de conquista catalisado na vitória
de Roger.
33 O trânsito entre a arte brasileira e o circuito europeu, tão importante para nós desde a Missão
Francesa, alcançava bom termo na ilustração de livros de um modo que em muito remetia ao
modernismo e à Semana de 22, em especial a Antropofagia. Diante do resultado do Hans Christian
Andersen 2014, tal associação entre a ilustração contemporânea e a Antropofagia modernista, já
vislumbrada durante a dissertação sobre Roger Mello realizada no PPGAV entre 2009 e 2011, se
provava acertada e descortinava terreno extremamente fértil para essa pesquisa. A tese já seguia
adiantada – disciplinas cursadas, qualificação bem sucedida – quando a tão esperada premiação é
concedida a Roger Mello, coincidindo com a segunda homenagem ao Brasil na feira Bolonha em
2014. Diante disso, é confirmado o acerto de nossa proposta de iluminar a questão da descolonização
das imagens no livro ilustrado brasileiro contemporâneo privilegiando a dialética entre particular
e universal sob vários aspectos – regional / global; periferia / matriz; tradição / inovação; popular
/ erudito; individual / social; público / crítica; mercado / legitimação institucional.

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 Crítica

A crítica especializada de literatura infanto-juvenil sempre foi um ponto fraco en-


tre nós, e investigar as razões que levam isso mereceria um estudo mais detalhado, que
infelizmente não caberia no escopo deste trabalho. Durante o levantamento da fortuna
crítica dos livros do corpus foi possível comprovar não apenas a escassez de fontes como
principalmente a falta de comentários mais consistentes a respeito dos aspectos visuais
dos livros ilustrados. Laura Sandroni é a exceção nesse cenário, tendo mantido uma colu-
na semanal no suplemento Caderno da Família,34 do Globo, por quase três décadas, entre
1975 e 2002. Dirigida a um público leigo, a coluna tem, segundo Maria Antonieta Antunes
Cunha, “intenção bastante clara e simples: pretendia sempre, sem teorizar, apresentar ao
leitor interessado os últimos lançamentos das editoras na área da literatura infantil e ju-
venil”, empregando “linguagem bastante acessível, sem nomenclatura técnica complicada
e sem alimentar questões teóricas que só teriam sentido com outro tipo de interlocutor.”
Assim, mais do que propriamente uma crítica, a coluna traz resenhas dos livros e cumpre
“uma importante função de divulgação de obras, autores de texto e de ilustração, editoras”
e muitas vezes “serviu de primeira vitrine nacional para muitos valores depois consagra-
dos”. (Cunha in Sandroni, 2003, p. 4) Comentando o cenário brasileiro na década de 1970,
quando inicia a coluna em pleno boom da literatura infanto-juvenil brasileira, Sandroni
ressalta que

O programa da FNLIJ para o Ano Internacional da Criança (1979), instituído pela UNESCO,
é o fecho de ouro da década, porque chamou a atenção da mídia para o tema do livro
infantil e motivou a criação de colunas semanais em vários jornais do país, assinadas por
especialistas da área, que, infelizmente, não permaneceram. (Sandroni, 2003, p. 7)

Sandroni elenca vários jornais do Rio de Janeiro que, desde o tempo do Brasil colô-
nia, publicam comentários e suplementos sobre literatura brasileira: Jornal do Commercio,
A Manhã, O Jornal, O Correio da Manhã, Diário de Notícias, Diário Carioca, Jornal do
Brasil, Tribuna da Imprensa, além do próprio O Globo; até que em 1979 vários jornais em

34 A coluna passou depois para os seguintes cadernos e suplementos: Segundo Caderno, Rio
Show, Livros e Prosa e Verso.

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todo o país abrem colunas especializadas em literatura infantil: Maria Antonieta Cunha
no Estado de Minas, Tatiana Belinky no Estado de S. Paulo, Fanny Abramovich e Marisa
Lajolo na Folha de S. Paulo, Antonio Holfeldt no Correio do Povo de Porto Alegre, e Paula
Saldanha no Globinho, mas lamenta que “tudo isso durou pouco. A verdade é que a produ-
ção de livros para crianças e jovens não é historicamente considerada digna de um comen-
tário sistemático que pudesse orientar pais e professores” (Sandroni in Serra, 2002, p. 27).
Mesmo sua longeva coluna no O Globo sofre um esvaziamento a partir de 1996, quando é
transferida para o Prosa e Verso, “caderno criado para reunir todas as resenhas sobre livros
publicados”. Sandroni observa que, a partir daí, “tendo que competir com a produção para
adultos e apesar de ser muitíssimo maior, em número de títulos publicados e exemplares
vendidos, os livros destinados às crianças e aos jovens perdem espeço e as resenhas sobre
eles saem sem periodicidade definida.” (2003, p. 28). Comentando a coluna de Laura, Ma-
ria Antonieta Cunha lança uma série de questões que podem orientar uma investigação
sobre essa lacuna histórica, e inspirar possíveis saídas para melhorar o quadro atual:

Por que hoje, quando temos muito mais consciência (ou o discurso) da necessidade da
informação e da crítica; quando cada vez mais se discutem formas de programas de promoção
de leitura; quando se mostra claramente a força do mercado do livro infantil e juvenil, por
que colunas como esta, a mais duradoura da área, não encontram espaço nos Cadernos
da Família? Pais e educadores em geral têm atualmente outras fontes de informação sobre
obras literárias para crianças, ou a questão deixou de ter importância na esfera doméstica?
Por que a literatura infantil – na verdade, a produção cultural infantil – só esporadicamente
chega aos Cadernos de Cultura? A divulgação mais qualificada das obras pode contentar-se
com os catálogos das próprias editoras? Apesar de todos os avanços da literatura infantil e
juvenil, seus estudos não conseguiram ultrapassar os preconceitos acadêmicos com relação
a essa produção. (Cunha in Sandroni, 2003, p. 4)

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•฀฀capítulo฀3฀฀•

Quebrando o brinquedo para ver como funciona

Para explicar as funções da análise semiótica da imagem, Martine Joly faz a feliz
analogia que pegamos emprestado para batizar esse capítulo: “Um desejo de compreender
melhor, que requer uma desconstrução artificial (‘quebrar o brinquedo’) para observar os
diversos mecanismos (‘ver como funciona’) com a esperança, talvez infundada, de uma
reconstrução interpretativa mais bem fundamentada” (2008, p. 47). Ao contrário de es-
tragar a brincadeira, matando o prazer estético na recepção espontânea da obra, a análise
pode “a posteriori, aumentar o prazer estético e comunicativo das obras, pois aguça o sen-
tido e o olhar, aumenta os conhecimentos e, desse modo, permite captar mais informações
(no sentido amplo do termo) na recepção espontânea das obras.” Afinal, como bem sabem
as crianças, “compreender também é um prazer”. Falando especificamente sobre livros
ilustrados, Perry Nodelman esclarece:

Quanto mais somos capazes de compreender e encontrar palavras para descrever nossas
respostas às obras de arte, mais somos capazes de apreciá-las. Muitas crianças e adultos
têm poucas palavras a dizer sobre livros ilustrados – apenas generalizações relativamente
grosseiras que fazem com que percam muito do prazer e valor. (1988, p. xi)1

Este terceiro capítulo explora as ferramentas e procedimentos utilizados para “que-


brar” o livro ilustrado e ver como funciona, estabelecendo ainda os pressupostos que fun-
damentam a seleção e análise dos livros que compõe o corpus. Uma gama razoavelmente
extensa de diferentes metodologias disponíveis atualmente para empreender a análise de
fontes visuais é apresentada por Gillian Rose (2012) e Theo van Leeuwen & Carey Jewitt
(2001). A opção dessa pesquisa por examinar a maneira como os aspectos visuais e materiais

1 “The more we are capable of understanding and finding words to describe our responses to works of
art, the more we are able to enjoy them. Too many children and adults have too few words to say about
picture books – only relatively crude generalizations that cause them to miss much of pleasure and value.”

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(ilustração e design) dos livros ilustrados se conjugam para produzir sentido nas diferentes
comunidades envolvidas em sua criação, circulação e fruição, ldireciona naturalmente a es-
colha da análise semiótica na linha de Roland Barthes (1971) e da semiótica social, especial-
mente aplicada às mensagens visuais por Gunther Kress e Theo van Leeuwen (2006).
Na construção da perspectiva de análise do livro ilustrado nessa pesquisa, necessa-
riamente transdisciplinar, busca-se contribuições de certos aspectos dos estudos da cultu-
ra visual e da cultura material, sob a perspectiva do design emocional de Donald Norman
e da sociologia dos textos (materialidade dos livros) de Donald McKenzie. A sociologia
dos textos – sociology of texts na acepção inglesa, próxima ao que os franceses denomi-
nam histoire du livre e que tem como expoentes Roger Chartier, Frédéric Barbier e Lucien
Febvre – é um campo de configuração relativamente recente que enfatiza o papel da ma-
terialidade dos livros na experiência de leitura, o que a aproxima dos estudos de outro
campo ainda mais novo, a design culture. Desse campo destaca-se o conceito de design
emocional proposto por Donald Norman, que identifica três diferentes níveis de respostas
emocionais dos usuários a objetos de uso cotidiano, conceito que essa pesquisa aplica ao
livro ilustrado no contexto da formulação de um contrato de comunicação com os leitores
contemporâneos. Busca-se, assim, reunir referências transdisciplinares que se coordenem
para permitir uma análise conjunta dos aspectos visual e tátil dos livros ilustrados, confi-
gurados pela ilustração e pelo design gráfico, mantendo em vista sua inseparável articula-
ção com a narrativa verbal.
Finalmente, depois de formulados os pressupostos teóricos necessários para a aná-
lise do corpus, este capítulo detalha o processo de seleção e organização das obras que o
compõe, concluindo assim a fundamentação para o capítulo seguinte que encerra essa
tese, dedicado ao estudo de caso.

3.1฀ Análise฀visual:฀aprendendo฀com฀quem฀faz

Muitos teóricos no campo da literatura infantil enfatizam a necessidade de um me-


lhor equilíbrio no enfoque das análises do livro ilustrado, que têm partido principalmente
dos teóricos da palavra, ou seja, privilegiando aspectos da narrativa verbal em detrimento
da narrativa visual. Luís Camargo destaca em 1995 a escassez de referências para análise

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crítica de livros ilustrados: “O caso da ilustração é completamente diferente: o estudioso
não tem categorias próprias de análise: ora adapta conceitos das artes visuais, ora das artes
gráficas, ora da literatura.” (Camargo, 1995, p. 18) Vinte anos depois, esse quadro apresen-
ta ligeira melhora, com o livro de Rui de Oliveira (2008), entre os autores nacionais, e o
artigo de William Moebius (1990) e os livros de Perry Nodelman (1989) e Maria Nikola-
jeva & Carole Scott (2006), entre os estrangeiros, por exemplo. Esses autores fornecem os
conceitos necessários para contemplar as especificidades da análise semiótica dos livros
ilustrados, a partir da observação desse sistema específico dentro do escopo mais amplo
da semiótica, conforme apresentada Martine Joly (2008). Antes de mais nada, observa-se
que uma das particularidades do livro ilustrado é integrar três diferentes sistemas narrati-
vos para compor uma rede de significados, como detalha o Ricardo Azevedo:

[...] necessariamente, um livro ilustrado, ao nível da linguagem* é composto de pelo menos


três sistemas narrativos que se entrelaçam:
a) o texto propriamente dito (sua forma, seu estilo, seu tom, suas imagens, seus motivos,
temas etc);
b) as ilustrações (seu suporte: desenho? colagem? fotografia? pintura? e também, em
cada caso, sua forma, seu estilo, seu tom etc);
c) o projeto gráfico (a capa, a diagramação do texto, a disposição das ilustrações, a tipologia
escolhida, o formato etc.).
Examinando bem, há livros em que esses três sistemas têm autoconsciência e procuram
o diálogo e outros em que isso não ocorre.
* Simplificando: um sistema de signos com função simbólica e capacidade de formar
discursos que transmitem vários tipos de mensagem que, por sua vez, possibilitam a
interação entre pessoas. (1998, p. 107)

Na produção brasileira contemporânea, encontram-se vários livros com a autocons-


ciência de que fala Azevedo. Tais obras apresentam características bastante especiais, que
exemplificam o uso criativo e consistente das muitas possibilidades oferecidas pelo supor-
te livro. Já foi visto no capítulo 2 que no relativamente jovem mercado editorial brasileiro,
cujo amadurecimento remonta a décadas recentes, a falta de uma tradição consolidada e
de códigos estritos sobre adequação comercial deixa espaço livre para o exercício criativo
de autores de tripla vocação, que à dupla vocação de escritores e ilustradores acrescentam
a terceira vocação de designers. Criando projetos gráficos diferenciados, que levam em
conta as especificidades do livro enquanto objeto e jogam com elas na construção da nar-

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rativa, esses autores de tripla vocação integram palavras, imagens e design, de certa forma
contrabalançando um quadro que já era criticado por Ana Luísa Escorel (1974) há mais
de quarenta anos e que ainda persiste no mercado de livros para adultos: a incongruên-
cia entre entre capa e miolo. Dos três sistemas – texto, ilustração e projeto gráfico – essa
pesquisa enfatiza os dois últimos, deixando o texto em segundo plano, abordando-o na
medida apenas em que isso beneficie a análise visual.
Para além da apreciação da cada imagem isoladamente, é preciso considerar o con-
junto da obra, onde a sequência de várias imagens confere um ritmo ao livro como um
todo, como ressalta Camargo: “O livro ilustrado para crianças apresenta uma sequência
de imagens – e imagens para serem folheadas. Não são quadros que podem ser vistos cada
um por si.” (1989, p. 42). Angela Lago explica que, por este motivo, “antes de se projetar
cada desenho, se projeta o volume. Não se trata de pintar uma série de quadros. Há toda
uma conjugação necessária, todo um ritmo, um movimento, uma tensão, uma direção
que perpassa o trabalho como um todo” (Lago apud Camargo, ibid). Esta é uma das par-
ticularidades que distingue ilustradores de artistas plásticos – conceber antecipadamente
o efeito narrativo produzido pela sequência das imagens isoladas.
Todos esses fatores, visuais e materiais, empregados pelos ilustradores para contar
histórias se conjugam num processo de comunicação visual que pode ser analisado siste-
maticamente em uma abordagem semiótica. Martine Joly esclarece que “abordar ou es-
tudar certos fenômenos em seu aspecto semiótico é considerar seu modo de produção de
sentido, ou seja, a maneira como provocam significações, isto é, interpretações.” (2008, p.
29, grifo da autora). O processo de associações simbólicas é especialmente importante na
ilustração, como aponta Rui de Oliveira: “a arte de ilustrar está dirigida essencialmente para
o despertar da imaginação. [...] a estética da ilustração passa pela experiência individual e
emocional, bem como pelo curioso deslumbramento.” (2008, p. 76). Essa dimensão da ilus-
tração não exclui nem é prejudicada pela análise crítica, que vem acrescentar um compo-
nente cognitivo ao processo de fruição. Para Oliveira, no caso do livro ilustrado a fruição é
“uma construção, um equipamento cognitivo que nos faz apreciar o belo sem, contudo, no
caso da arte da ilustração, renunciar ao encanto e à emoção” (idem, p. 75). Mesmo havendo
um forte componente de emoção ou prazer estético na contemplação de um livro ilustrado,
o aspecto mais importante neste caso é a narratividade das imagens, ou seja, o modo como

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provocam interpretações, sendo portanto a abordagem semiótica absolutamente adequa-
da. É o que pensam Nikolajeva & Scott e Nodelman, que elegeram a semiótica para analisar
livros ilustrados. Nodelman explicita sua escolha no seguintes termos:

Tendemos a supor que o principal objetivo das pinturas que vemos em galerias de arte é
fornecer estímulo visual ou excitar nossas sensibilidades estéticas. Mas ainda que as imagens
em livros ilustrados possam fazer o mesmo, essa não é a sua principal finalidade; elas existem
principalmente para ajudar a contar histórias.
[...] Livros ilustrados têm características distintas, que organizam a informação visual de uma
maneira diferente do que costumamos esperar das artes visuais, e podemos compreendê-los
melhor examinando-os à luz de alguma forma de teoria semiótica.
A razão para isso é clara: uma vez que a principal tarefa das imagens visuais em livros
ilustrados é comunicar informações, elas fazem mais sentido nos termos de uma abordagem
que incida sobre as condições em que os significados são comunicados. A semiótica
[...] é uma tal abordagem; seu interesse principal está nos códigos e contextos de que a
comunicação do significado depende. (1988, passim p. vii-ix).2

 Semiótica฀à฀francesa:฀Barthes฀e฀Joly

A “ciência geral dos signos” concebida pelo linguista suíço Ferdinand de Saussure, na
Europa, e pelo cientista Charles Peirce, nos Estados Unidos, vai “estudar os diferentes tipos
de signos interpretados por nós, estabelecer sua tipologia, encontrar as leis de funciona-
mento de suas diversas categorias” (Joly, 2008, p.30). A análise semiótica começa com uma
descrição: “etapa aparentemente simples e evidente, a descrição é capital, pois constitui a
transcodificação das percepções visuais para a linguagem verbal.” A descrição corresponde
a uma “verbalização da mensagem visual [que] manifesta processos de escolhas percepti-
vas e de reconhecimento que presidem sua interpretação, promovendo uma passagem do

2 “We tend to assume that the main purpose of the paintings we see in art galleries is to provide
visual stimulation or to excite our aesthetic sensibilities. But while the pictures in picture books may
do those things, it is not their main purpose; they exist primarily so that they can assist in the telling
of stories.
[...] picture books have distinct characteristics, that they organize visual information in a way different
from what we usually expect of visual art, and that we might best understand them by considering
them in the light of some form of semiotic theory.
The reason for that is clear: since the major task of the visual images in picture books is to communicate
information, they make most sense in terms of an approach that focuses on the conditions under which
meanings are communicated. Semiotics [...] is such an approach; its prime interest is in the codes and
contexts on which the communication of meaning depends.”

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‘percebido’ ao ‘nomeado’” (idem, p. 72). Nos livros ilustrados (da mesma maneira que nos
anúncios publicitários analisados por Barthes e Joly), existe a combinação de mensagens
linguísticas e mensagens visuais, estas últimas compostas por signos icônicos e plásticos.
Segue um resumo dos elementos das mensagens visuais apresentados por Joly:

 Signos visuais (distintos e complementares, funcionando de modo circular):


1. Signos figurativos ou icônicos: motivos figurativos reconhecíveis, posturas dos
personagens, disposição dos personagens entre si.
2. Signos plásticos: mais do que simples atributos dos signos figurativos, são em si
mesmos signos plenos.
•฀ Formas: a interpretação varia culturalmente, acontecendo muitas vezes de modo
imperceptível. É preciso algum esforço para observá-las por si mesmas, ignorando
o que representam.
•฀ Cores e iluminação: a interpretação também varia culturalmente, ainda que mais
“natural”, por sua interação com as condições atmosféricas naturais.
•฀ Composição / diagramação: a “geografia interior” da imagem, que hierarquiza o per-
curso do olhar, orientando a leitura da imagem.
•฀ Textura: representa a qualidade tátil da superfície.
•฀ Suporte: meio físico sobre o qual a imagem é veiculada, que interfere na significação
global da mensagem.
•฀ Quadro: o limite físico da imagem e sua moldura. Conforme a imagem extrapole
ou esteja contida dentro dos limites do suporte, provoca efeitos particulares sobre o
imaginário do espectador. No primeiro caso, o espectador constrói imaginariamen-
te o que está fora do campo visual da representação, num movimento centrífugo.
O segundo caso, quando há uma imagem pequena sobre um suporte vazio, induz a
uma leitura centrípeta, convidando o espectador a entrar na profundidade fictícia
da imagem.
•฀ Enquadramento: estabelece a distância entre observador e objeto por meio do tama-
nho da imagem, que produz impressão de proximidade ou afastamento e a sensação
de grande ou pequeno.

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•฀ Ângulo de tomada e escolha de objetiva: vindos da fotografia e do cinema, os con-
ceitos de plongé / contre-plongé provocam respectivamente a impressão de esmaga-
mento ou engrandecimento dos personagens; já o foco influencia a percepção da
profundidade de campo. (Joly, 2008, p. 94).

Joly destaca a “circularidade icônica / plástica”, ou seja, a associação entre figuras


e elementos visuais, como importante indicador na produção de sentidos. Para Barthes
(1984), essa produção de sentidos compreende a associação de conteúdos simbólicos a
signos plenos (um significante ligado a um significado), partindo da denotação, num pri-
meiro nível, para a conotação, como explica Joly: “para Barthes, uma imagem pretende
sempre dizer algo diferente do que representa no primeiro grau, isto é, no nível da deno-
tação.” (2008, p. 83). Nas palavras de Barthes: “em suma, todas estas ‘artes’ imitativas [de-
senhos, pinturas, cinema, teatro] comportam duas mensagens: uma mensagem denotada,
que é o próprio analogon, e uma mensagem conotada, que é o modo como a sociedade
representa, em certa medida, o que ela pensa do analogon.” (1984, p. 15)

 Fazendo฀social:฀Kress฀&฀van฀Leewen

A produção de sentidos pode ser entendida como uma prática social condicionada
por circunstâncias culturais específicas, sendo investigada por um ramo da semiótica, a
semiótica social (social semiotics).3 O termo aparece pela primeira vez no título do livro
pioneiro do linguista britânico Michael Halliday, Language as Social Semiotics, de 1978, que
inspira Robert Hodge e Gunther Kress (Social Semiotics, 1988) a expandirem a investigação
sobre o uso de diferentes sistemas semióticos em práticas sociais para além da linguística,
como som e imagens visuais. Esse último sistema merece particular atenção de Gunther

3 A semiótica social traz abordagens riquíssimas para o estudo dos livros ilustrados que
infelizmente não será possível explorar no âmbito desta tese. Além das referências teóricas já
mencionadas, indica-se algumas outras para possíveis estudos futuros:
KRESS, G. e VAN LEEUWEN, T. Multimodal Discourse: The Modes and Media of Contemporary
Communication. Arnold: London, 2001.
RANDVIIR, A. Mapping the World: Towards a Sociosemiotic Approach to Culture. (Dissertationes
Semioticae Universitatis Tartuensis 6). Tartu: Tartu University Press, 2004.
VAN LEEUWEN, T. Introducing Social Semiotics. Nova York: Routledge, 2005.

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de Gunther Kress e Theo van Leeuwen em Reading Images: the grammar of visual design
(2006), onde os autores desenvolvem a ideia que imagens podem ser lidas como textos –
daí a metáfora no título de uma “gramática” da comunicação visual, não no sentido de
um conjunto de regras para uso correto, mas antes de um conjunto de elementos social-
mente constituídos para a produção de sentidos. Muitos desses elementos são variações
dos signos já vistos em Joly, mas Kress & van Leeuwen trazem aspectos diferenciados
sobre alguns códigos que operam no layout das imagens para produzir sentido e criar
coerência textual, destacados aqui por serem especialmente interessantes para a análise
de livros ilustrados:

 Saliência: o peso visual conferido a elementos em uma imagem é resultado da


interação entre tamanho, foco, cor e distância, bem como localização: em geral, elementos
posicionados no topo ou à esquerda de uma imagem tornam-se mais pesados.
 Percurso de leitura: é orientado pelos elementos salientes da imagem, começan-
do pelo mais saliente e movendo-se em direção aos menos salientes.
 Vetores: direcionam o leitor de um elemento para outro, por meio de linhas (visí-
veis ou não) criadas pela direção do olhar, dedos apontados ou braços estendidos; por um
objeto apontado para uma determinada direção ou por protuberâncias de vários tipos.
 Eixos compositivos:

Margem Margem
Ideal Ideal
Conhecido Novo

Centro

Margem Margem
Real Real
Conhecido Novo

Figura 26. As dimensões do espaço visual. Kress & van Leeuwen, 2006.

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Os autores indicam que o posicionamento polarizado dos elementos ao longo dos
eixos compositivos horizontal e vertical lhes confere respectivamente as qualidades de
conhecido ou novo e ideal ou real.
No eixo horizontal, o lado esquerdo apresenta valores conhecidos (given), já fami-
liares ou aceitos pelo espectador, representando o ponto de partida para a mensagem. O
lado direito apresenta valores novos (new), ainda não conhecidos, aos quais portanto o
espectador deve prestar mais atenção. O novo pode também ser mais problemático ou
contestável, enquanto o conhecido é auto-evidente ou traduz o senso comum.
No eixo vertical, os elementos posicionados no alto representam o ideal, de apelo
mais emocional, traduzindo sonho ou aspiração, aquilo que “pode ser”; também enten-
dido como a essência genérica da informação e portanto sua parte mais saliente. A parte
de baixo representa o real, aquilo que “é”, de orientação mais mundana, apresentando
informação mais específica, factual ou de ordem prática. Geralmente há mais conexão ou
trânsito entre as partes horizontais do que entre as partes verticais de uma composição;
nestas há, ao invés, um maior sentido de oposição ou contraste.
As composições podem também estar estruturadas segundo centro e margem, uma
configuração frequente em desenhos infantis e na arte bizantina e oriental, porém mais
rara na cultura ocidental. O centro apresenta o núcleo da informação,4 e as margens são
subordinadas ou auxiliares, com elementos idênticos ou quase idênticos, em disposição
simétrica.
As dimensões conhecido-novo e ideal-real podem se combinar com centro-margem,
resultando em uma cruz, um símbolo espacial fundamental na cultura ocidental. Mesmo
quando o centro está vazio, ele existe como um divisor invisível. Um modo comum dessa
combinação é o tríptico, que pode tanto funcionar numa estrutura simples e simétrica
margem-centro-margem, quanto pode estruturar uma composição polarizada onde o cen-
tro funcione como mediador entre conhecido e novo ou entre ideal e real, formando uma
ponte entre os extremos e reconciliando os elementos de alguma maneira:

4 Para considerações mais aprofundadas sobre a dinâmica das composições cêntricas e


excêntricas, ver O poder do centro (2002) onde Rudolph Arnheim demonstra, por meio de análises
de diversas formas de composição na arquitetura, pintura e escultura, as relações dinâmicas dos
dois sistemas visuais, cêntrico e excêntrico, que derivam de nossa forma de perceber o mundo.

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Ideal

Conhecido Mediador Novo Mediador

Real

Figura 27. Trípticos horizontal e vertical. Kress & van Leeuwen, 2006.

Os autores têm o cuidado de ressalvar que essa associação de valores é condicionada


pela cultura ocidental, e que culturas com outras orientações em seus sistemas de leitura
terão associações diferentes, ainda que a orientação seja um recurso semiótico universal:
“Todas as culturas trabalham com margem e centro, esquerda e direita, em cima e em bai-
xo, ainda que não concedam os mesmos significados e valores a estas dimensões espaciais.”
(2006, p. 192)
Se Barthes, Joly e Kress & van Leeuwen estabelecem critérios para a análise semiótica
de um espectro variado de mensagens visuais, busca-se em Luís Camargo, Rui de Oliveira,
William Moebius e Perry Nodelman fornecem algumas considerações complementares e
específicas para a análise particular de livros ilustrados.

 Um฀toque฀de฀formatividade:฀Camargo

Camargo vai buscar em Heinrich Wöllflin (1984 [1915]) a ideia de que “formas de
representação (ou de visão de mundo) presidem o fazer artístico” e aplicar à ilustração de
livros infantis os cinco pares de conceitos formulados pelo historiador da arte suíço em
sua análise formalista da arte renascentista e barroca, exemplificando cada par de concei-
tos com imagens de livros brasileiros:

 Linear e pictórico: “o estilo linear valoriza a linha, o contorno, o aspecto plástico


e tangível dos objetos. O estilo pictórico não está preocupado com a forma e o volume dos

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objetos, mas com as impressões visuais que essas formas e volumes provocam.” (Camargo,
1995, p. 43)
 Plano e profundidade: “os elementos de uma ilustração – figuras, animais, ob-
jetos, etc. – podem ser dispostos em camadas planas, paralelas às margens, ou enfatizar a
profundidade” (idem, p. 47)
 Forma fechada e forma aberta: a forma fechada é aquela que “apresenta a ima-
gem como uma realidade limitada em si mesma, que, em todos os pontos, se volta para si
mesma. O estilo de forma aberta, ao contrário, extrapola a si mesmo em todos os sentidos
e pretende parecer ilimitado.” (Wölfflin, 1984, p. 135)
 Pluralidade e unidade: “o estilo clássico obtém a sua unidade atribuindo às par-
tes uma função autônoma, e o estilo Barroco destrói a independência uniforme das partes
em favor de um motivo geral mais unificado. No primeiro caso há uma coordenação de
acentos; no segundo, uma subordinação.” (idem, p. 173)
 Clareza absoluta e clareza relativa: “o primeiro modo de representar busca
apresentar as formas em sua totalidade e clareza. O segundo [...] não se preocupa em
apresentar a forma em sua totalidade, mas apenas seus elementos mais característicos.”
(Camargo, 1995, p. 51)

A aplicação destes conceitos à análise de livros ilustrados brasileiros é interessante


e original, atendendo aos objetivos de Camargo: “Essas categorias me parecem úteis para
entender algumas características da ilustração do livro infantil, apesar de elaboradas com
finalidade diferente, em contexto diferente.” (idem, p. 42) Para os objetivos dessa pesquisa,
no entanto, a análise formalista deixa a desejar quando se atém às formas, uma vez que
nos livros ilustrados as imagens não apenas se oferecem à fruição estética, como são prin-
cipalmente elementos na construção de narrativas visuais.

 A฀lista฀completa:฀Oliveira

Rui de Oliveira (2008) dá um passo além, não apenas identificando detalhadamen-


te os elementos formais das ilustrações como também relacionando-os a determinadas
intenções narrativas. Oliveira segmenta a análise do livro ilustrado em dois momentos,

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começando pelos aspectos constitutivos gerais, elaborados depois em elementos bastante
detalhados para leitura estrutural das ilustrações. Os aspectos constitutivos são:
1. A cor: pintar ou colorir?
2. O cenário e a perspectiva: espaço físico, contínuo e atmosférico; o espaço plani-
métrico
3. O ritmo: o livro como arte sequencial
4. A composição: a composição como harmonia e narração; a tríade do olhar; as
composições tipográficas; arquitetura, design e composição da imagem; olhando a
paisagem e pensando em composição

Oliveira faz uma extensa lista com dezenove diferentes aspectos5 a observar em uma
leitura estrutural das ilustrações, aqui agrupados em quatro eixos:

 Composição
•฀ Tipo de composição: estática (simétrica) / dinâmica (assimétrica). Formas geométri-
cas que mais se destacam na composição: triângulo, quadrado, retângulo, círculo,
elipse. Letras do alfabeto perceptíveis na composição
•฀ Tipo de perspectiva utilizada: aérea; planimétrica; diversos pontos de fuga; linha do
horizonte baixa; linha do horizonte alta; ponto de vista de cima para baixo; ponto
de vista de baixo para cima; linha do horizonte no meio da ilustração; ausência de
linha do horizonte; fundo neutro sem cenário.
•฀ Linha guia de leitura visual: baixo para cima; cima para baixo; linha sinuosa; linha
espiralada; linha oblíqua; linha quebrada; lateral esquerda ou direita
 Desenho
•฀ Tipo de contorno utilizado: linhas; linhas esfumadas, hachuras; vários traços; cores;
linhas grossas; digital; sem contorno
•฀ Linhas predominantes: inclinadas; verticais; horizontais; radiantes; quebradas; sinuo-
sas; circulares.

5 Excluímos o último dos dezenove itens, “Sentimento que lhe desperta a ilustração: alegria;
tristeza; medo; lirismo; romantismo; amor; ódio; solidão” por apresentar um caráter mais subjetivo,
que demandaria uma abordagem de orientação psicológica, o que não vem ao caso nessa pesquisa.

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•฀ Técnica utilizada: aquarela; acrílico; bico-de-pena; aguada (preto + água); óleo; mis-
ta; lápis de cor ou de cera; aquarela liquida; gravura (xilo, linóleo, metal); material
tridimensional; colagem; texturas diversas; colorização digital.
•฀ Relação de forma e fundo: contraste; interligado.
 Cor e iluminação
•฀ Tipo de esquema tonal utilizado: quente predominante; frio predominante; cores
sombrias; cores rebaixadas (cor + preto ou cinza); cores claras e suaves (cor + bran-
co); esquemas a partir de uma única cor (monocromático); contrastes acentuados;
preto e branco; velaturas (sobreposição de cores transparentes); cores chapadas uni-
formes; cores por meio de manchas.
•฀ Tipo de contraste de cor utilizado: quente-frio, claro-escuro; complementares; de ex-
tensão; de matiz (cor primária); simultâneo.
•฀ Gênero e origem de luz utilizados: frontal; de cima para baixo; de baixo para cima; la-
teral (esquerda para direita); lateral (direita para esquerda); gênero noturnal; gênero
diurno; gênero luz artificial; diversas fontes.
•฀ Tipos de sombra: luz e sombras suaves; luz e sombras contrastadas; sombras projeta-
das; ausência de sombras; as figuras possuem sombras e mais o contorno.
 Estilo
•฀ Tipo de figuração utilizado: realista; clássico; não-realista; com influências do car-
tum; com influências dos quadrinhos; fantástico; caricatural; cômico.
•฀ Movimento artístico com que a ilustração apresenta semelhanças: clássico; neoclássi-
co; acadêmico; impressionista; expressionista; realismo e naturalismo; surrealismo;
art nouveau; pré-rafaelismo ou dos Pintores de Contos de Fadas; futurismo; cubis-
mo; art déco; arte naïf; indefinido.
•฀ Gênero de imagem: históricas; folclóricas; de contos de fadas; fantásticas; do cotidia-
no. (Oliveira, 2008, p. 103-107).

Dentro do esforço para definir sistemas de análise próprios da ilustração, Oliveira


ressalva que esta extensa lista de elementos para orientar a leitura dos signos plásticos “se
refere apenas à leitura de algumas questões estruturais da ilustração. Os amplos signifi-

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cados metafóricos da arte da ilustração não estão encerrados em nenhum esquema ou
‘receita’ de leitura.” (op cit, p. 102).

 Códigos฀condensados:฀Moebius

William Moebius (1990) também examina muitos desses elementos, agrupando-os


em cinco códigos, e dedicando maior atenção ao potencial narrativo que oferecem. Tra-
zendo exemplos concretos de vários livros ilustrados, Moebius demonstra como certos
elementos formais das ilustrações configuram códigos particulares, apresentando primei-
ro uma breve explicação de cada elemento em si, para então desenvolver mais extensa-
mente o modo como o uso desses códigos manifesta diferentes potencialidades narrativas:

 Códigos de posição, tamanho e repetição diminutiva: a posição do assunto


na página constitui um código – se o personagem principal é mostrado no alto ou em bai-
xo da página, no centro ou nas bordas, à esquerda ou direita. Posicionamento no alto pode
indicar uma condição de êxtase, uma visão onírica, uma marca de status social ou poder,
ou uma autoimagem positiva. Um posicionamento inferior, ao contrário, indica baixo-as-
tral, fundo do poço ou uma posição social desfavorável. Tudo isso pode ser enfatizado ou
enfraquecido conforme o personagem esteja localizado no centro ou nas margens, seja
grande (próximo) ou pequeno (distanciado), ou apareça em uma ou mais cenas na mes-
ma página (repetição diminutiva). Quanto mais vezes o mesmo personagem seja mostra-
do na mesma página, menor a probabilidade que esteja no controle da situação, mesmo
ocupando o centro da página. Um personagem ocupando as margens ou a parte de baixo
da página, distanciado ou em tamanho reduzido, é percebido como em desvantagem em
relação a outro que esteja centrado, em tamanho grande. O tamanho grande pode não
indicar uma vantagem, pode ser uma representação de um ego exagerado. Assim como no
palco, um personagem à esquerda tenderá a parecer mais seguro em comparação a outro
posicionado à direita, que parecerá movimentar-se numa situação de risco ou aventura. A
página da esquerda completa o pensamento da página anterior, indicando que podemos
prosseguir.

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 Códigos de perspectiva: complementando os anteriores, nos códigos de perspec-
tiva há a presença ou ausência de horizontes, pontos de fuga e contraste entre fachadas
e profundidade. A súbita ausência de horizonte, ou de uma clara demarcação entre “em
cima” e “em baixo” sugere perigo ou problemas (caso de Cena de rua e Zubair e os labirin-
tos). Um personagem localizado sobre uma fachada bimensional parece menos capaz de
dar vazão imaginativa a seus desejos do que um outro representado sobre um plano com
profundidade tridimensional.
 Códigos de moldura (reta ou redonda): o quadro permite que o espectador se
identifique com um mundo dentro ou fora da história – a ilustração enquadrada oferece
uma visão para dentro desse mundo, enquanto uma não enquadrada oferece uma visão a
partir desse mundo. Como o quadro geralmente marca um limite para a imagem, a que-
bra desse limite pode sugerir um senso de transgressão, do proibido ou do miraculoso.
O quadro pode ser retilíneo, o que frequentemente enfatiza um problema, ou o encontro
com as desvantagens da disciplina ou da vida civilizada; e pode ser circular, quando então
o personagem parece mais seguro e satisfeito do que no caso anterior.
 Códigos de linha e capilaridade: a intensidade da experiência do personagem
pode ser indicada pela espessura da linha, sua suavidade ou irregularidade, sua econo-
mia ou profusão, se correm paralelas ou em ângulos agudos. Linhas suaves e espaçadas
sugerem mobilidade e velocidade; linhas grossas ou borradas indicam paralisia ou estag-
nação confortável; linhas irregulares ou que correm em ângulos agudos entre si geral-
mente acompanham emoções problemáticas ou perigo de vida. Por capilaridade Moebius
entende o amontoado de linhas em feixes ou rabiscos, indicando vitalidade ou mesmo
excesso de energia, tornando a cena lotada, nervosa, hiperativa, como se cada linha fosse
um organismo vivo.
 O código da cor: além das associações do código cromático com fatores extra-
textuais, deve-se também observar o que diz a cor dentro do texto. Além das tradicionais
associações de certas cores com determinados estados de espírito; além da associação de
cores vivas com animação e descoberta, e de cores escuras com desapontamento e con-
fusão; é preciso também observar a cor enquanto elemento de ligação entre diferentes
objetos dentro da história.

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3.2฀ Uma฀questão฀de฀estilo

Perry Nodelman também examina detalhadamente os elementos apresentados an-


teriormente (linha, cor, forma, quadro, foco, etc), para então dedicar um capítulo inteiro
ao tema “Estilo como Significado”, onde mostra que esses elementos formais se conjugam
nos livros ilustrados para configurar estilos particulares cujos potenciais narrativos trans-
mitem diferentes significados: “Todas as imagens nos livros ilustrados têm função narrati-
va. Suas várias estruturas e cores, suas várias linhas e formas e meios e, acima de tudo, seu
estilo, todos têm o potencial de expressar o sentido e o estado de espírito de uma história.”
(1989, p. 98). Essa abordagem semiótica é de grande interesse para essa pesquisa conside-
rando não apenas os estilos pessoais dos ilustradores que são examinados de perto, como
também as relações que estabelecem com aqueles de seus predecessores e de outras áreas
das artes visuais. Nodelman começa afirmando que o estilo não é uma entidade separada,
sendo antes “o efeito de todos os aspectos de uma obra de arte considerados conjuntamen-
te.” (idem, p. 77, grifo do autor). Essa definição algo vaga ganha melhor contorno com
Meyer Schapiro (1953, p. 287):

O estilo é, acima de tudo, um sistema de formas com uma qualidade e expressão significativa
por meio das quais a personalidade do artista e as perspectivas globais de um grupo são
visíveis. É também um veículo de expressão dentro do grupo, comunicando e fixando certos
valores da vida religiosa, social e moral por meio da sugestividade emocional das formas.6

Outra boa definição para estilo é apresentada por Camargo, que além disso desen-
volve considerações a respeito da evolução de estilos nas artes visuais europeias e brasi-
leiras, e problematiza como essa evolução se manifesta (ou não) na ilustração de livros
infantis. É uma avaliação crítica bastante lúcida e razoavelmente concisa, que vale a pena
transcrever integralmente:

Podemos entender estilo como o conjunto de determinados traços formais próprios de um


autor ou grupo de autores, de um período ou de uma região. [...]

6 “Style is, above all, a system of forms with a quality and meaningful expression through which the
personality of the artist and the overall outlook of a group are visible. It is also a vehicle of expression
within the group, communicating and fixing certain values of religious, social, and moral life through
the emotional suggestiveness of forms.”

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Essas características formais frequentemente estão associadas a preferências temáticas.
Preferências formais e temáticas geralmente se associam a uma determinada visão de
mundo, ou seja, expressam os valores de um grupo humano, filtrados/elaborados por um
indivíduo que seleciona e tematiza – nem sempre conscientemente – os valores coletivos.
Na Europa, a partir da segunda metade do século XIX, as artes visuais apresentaram
rápidas mudanças nas formas de representação e até na própria maneira de conceber a
arte. Surgiram vários estilos: impressionismo, expressionismo, cubismo, abstracionismo,
surrealismo, dentre outros.
No Brasil, as mudanças não se deram com tanta rapidez. Nos anos 20, o Modernismo
desencadeou um processo de atualização estética e de pesquisa da realidade nacional.
As mudanças na ilustração – na ilustração infantil particularmente – vão mais devagar:
o estilo dominante remonta à estética do século XIX anterior ao impressionismo, com
apropriações da linguagem da publicidade e das historias em quadrinhos. É um estilo
figurativo, com predominância dos elementos descritivos e narrativos, em prejuízo da
pesquisa estética.
Isso é compreensível: enquanto a vanguarda procura romper com o horizonte de
expectativas do público, não se importando com o tempo que ele demore para compreendê-
la e apreciá-la, o livro infantil é um produto industrial, um bem de consumo que envolve
investimento de capital e do qual se espera que não dê prejuízo, dê retorno do capital
investido e – não só isso – que dê lucro.
Para isso, o livro infantil não pode se afastar demais das expectativas dos leitores.
Por isso, as inovações formais e temáticas acompanham, com atraso, maior ou menor, a
literatura para marmanjos. Com a ilustração acontece algo parecido: ela acompanha o gosto
dominante por uma arte figurativa que não se afasta muito da representação da pintura
acadêmica. (Camargo, 1995, p. 41-42)

Além deste estilo figurativo da pintura acadêmica bem aceito pelo gosto dominan-
te, Rui de Oliveira acrescenta uma crítica contundente a um estilo duvidoso massifica-
do em livros, catálogos e premiações que chama de “doce de coco”, ou seja, “ilustrações
apetitosas e açucaradas”, que geralmente apresentam “traços ingênuos e cores chapadas,
um naifismo aculturado e contrabandeado dos cartuns, RPGs, gibis e séries de TV. São
ilustrações que parecem padrões têxteis para quartos e enxovais de crianças, ou mesmo
papel de embrulho para presentes.” (2008, p. 37) No polo oposto, Oliveira alerta para o
uso sem critério de referências das artes plásticas: “a pretexto de encontrar uma linguagem
contemporânea, o ilustrador absorve superficialmente soluções expressionistas, cubistas,
fauvistas ou mesmo pós-modernistas”, criando um problema sério quando “o formalismo
supostamente contemporâneo ou modista adotado pelo ilustrador” acaba por desviar a
atenção da narrativa (idem, p. 39). Oliveira ressalta ainda um outro aspecto da natureza
particular da ilustração, distinguindo-a das artes plásticas:

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Mesmo nos dias atuais – passado mais de um século desde quando as vanguardas artísticas
começaram a ser incorporadas pelas artes plásticas e, posteriormente, até pela indústria
cultural – a ilustração segue com certo atraso as inovações propostas nas artes plásticas.
A expressão da sensibilidade original do artista, já bem incorporada no universo das artes
plásticas, ainda está em processo de consolidação no campo da ilustração, sendo, portanto,
“inteiramente inadequado” associar o desenvolvimento da ilustração ao das artes plásticas
(2008, p. 39).

Nodelman, por sua vez, argumenta que a busca pela afirmação da individualidade
estilística, altamente valorizada nas artes plásticas, como defende André Malraux, não se
aplica à ilustração, que tem por função, acima de tudo, ser parte integrante de uma nar-
rativa que faça sentido para o público, mais do que exclusivamente expressar a personali-
dade de seu criador.

Por mais individual que possa ser, um estilo sempre expressa mais do que apenas
individualidade, e porque estilos transmitem significados, os ilustradores devem criá-los nos
livros ilustrados fazendo escolhas deliberadas no contexto da concepção do efeito narrativo
que pretendem, mais do que fazendo escolhas inconscientes no contexto de suas experiências
ou meramente em termos de suas preferências pessoais. (Nodelman, 1989, p. 78)

Assim, os livros ilustrados oferecem uma oportunidade singular para os artistas con-
tarem histórias lançando mão de um repertório de estilos preexistentes, como observa o
ilustrador brasileiro Fábio Sgroi: “O estilo, mais do que simplesmente tornar identificável
o desenho de um ilustrador, [...] também pode contar a história.”7 Nodelman alerta, além
disso, que pode ser bastante complicado para um ilustrador tentar escapar de influências
alheias e desenvolver um estilo pessoal único, uma vez que, por mais especial que seja esse
estilo, nenhum bom ilustrador tem apenas um, como afirma o icônico artista americano
Maurice Sendak: “Estilo, para mim, é puramente um meio para atingir um fim, e quanto
mais estilos você tenha, melhor [...] Cada livro obviamente demanda uma abordagem
estilística particular.” (Sendak apud Nodelman, 1989, p. 79). Nodelman conclui, portanto,
que “imitar as características dos estilos de outros artistas, ou mesmo de outros tempos ou
culturas, é um hábito característico dos artistas do livro ilustrado.” (idem, p. 83)

7 Estilos de desenho também contam histórias. Sociedade dos Ilustradores do Brasil. Disponível
online em http://sib.org.br/coluna-sib/estilos-de-desenho-tambem-contam-historia/. Acesso em
10 jan 2015.

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O que fazem os ilustradores brasileiros, no entanto, vai além de imitar estilos de ou-
tros artistas e épocas. Como visto no capítulo dois, desde o Modernismo a arte brasileira
se atualiza devorando antropofagicamente as referências estrangeiras e voltando-se para
a cultura nacional, particularmente suas manifestações populares, criando nesse processo
um estilo que miscigena local e global, erudito e popular, artesanal e industrial. Já tendo
sido plenamente integrada ao horizonte de expectativas das artes visuais, a estética mo-
dernista ainda representa uma inovação e um desafio para o público do livro ilustrado,
pelos motivos tão bem explicados por Camargo na citação da página anterior.
Concordando com Nodelman que se “estilos funcionam como significantes que ex-
pressam os valores de quem primeiro os criou, um ilustrador pode usar um estilo pree-
xistente em particular para evocar e portanto ilustrar um conjunto particular de valores”
(idem, p. 83, grifo meu), as análises do corpus destacam a maneira como os ilustradores
brasileiros contemporâneos atualizam o modo antropofágico de devorar referências va-
riadas para criar narrativas inovadoras que desafiam várias formas de colonização visual,
evocando assim os valores dos modernistas. Isto tanto pode acontecer de maneira in-
consciente, como assinala Nodelman: “Porque os estilos falam tão fortemente dos valores
daqueles que os originaram, os ilustradores que pegam emprestado esses estilos podem
até mesmo evocar ideias e atitudes dos quais não estão eles próprios conscientes.” (idem,
p. 85) quanto pode acontecer de maneira deliberada, como conta Graça Lima a respeito da
mudança no estilo dos ilustradores depois de participarem da Feira do Livro de Bolonha
em 1995: “Para mim e para o Roger [Mello] com certeza foi um movimento consciente.
Quando a gente voltou, o Roger se dedicou a estudar a questão do folclore brasileiro, as
raízes, eu direcionei o olhar para a arte brasileira, para o Movimento de 22, a Semana de
Arte Moderna.” (In Hanning et al., 2012, p. 172).
A afirmação de Lima vai ao encontro de outra observação de Nodelman, de que
“porque vemos os vários estilos artísticos através do filtro da história, vamos interpretá-los
em termos de nosso próprio entendimento corrente de suas épocas e de seus criadores”
para concluir que “É menos nossa percepção acurada dos significados originais dos estilos
do que nosso próprio entendimento corrente que lhes confere valor narrativo.” (1989, p.
84). No caso da ilustração brasileira contemporânea, a referência aos valores antropofá-
gicos assume um caráter de afirmação de uma identidade artística original, semelhante

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ao espírito das vanguardas artísticas, porém dentro de um contexto pós-moderno onde a
apropriação de referências preexistentes assume as formas mais superficiais de pastiche,
paródia ou colagem.

3.3฀ Precisamos฀falar฀sobre฀o฀suporte

Além do estilo da ilustração, a contribuição do suporte e do design na construção


da narrativa é enfatizada por vários estudiosos do livro ilustrado, como William Moebius:
“Nenhuma abordagem do livro ilustrado pode ignorar a importância do suporte e do de-
sign como parte da experiência do leitor” (1990, p. 134); Carole Scott: “A interação entre o
livro como um objeto material e seus leitores o traz para a vida, assim como sua materiali-
dade interage com a narrativa” (2014, p. 40) ou Sandra Beckett: “Artistas que abordam um
público jovem imediatamente percebem que as crianças têm uma relação muito sensorial
e física com os livros. O ato de leitura podem envolver todos os sentidos.” (Beckett, 2012,
p. 46).8
Moebius destaca a influência exercida pelo editor Edmund Evans, no início do sécu-
lo XX, na importância que a forma material do livro ilustrado assume:

De Edmund Evans em diante, aumenta mais e mais a percepção de que a produção do


livro ilustrado exige uma relação integral entre a imagem e a palavra, um “design integral”.
Ao invés de ser um álbum de imagens, ou um texto com algumas ilustrações espalhadas,
o livro ilustrado é, depois de Edmund Evans, concebido como um “produto” integral. [...]
Capa, guardas, frontispício, todos são elementos cuidadosamente escolhidos para compor
um todo; uma experiência embrulhada, não sem intenção consciente, como um presente.
(1990, p. 133)9

8 “No approach to the picturebook can overlook the importance of medium and design as a part
of the reader’s experience”; “The interaction between the book as a material object and its readers
brings the book to life, just as the materiality of the book interacts with its narrative”; “Artists who
address a young audience immediately perceive that young children have a very sensorial and physical
relationship with books. The act of reading can envolve all the senses”.
9 “From Edmund Evans on, the making of the picturebook was seen more and more to require
an integral relationship between picture and word, a “total design”. Rather than being an album
of pictures, or a text with some ‘tipped-in’ illustrations, the picturebook was, after Edmund Evans,
conceived as a whole ‘product’. […] Cover, endpapers, title-page design, all were carefully chosen
elements of a whole, an experience wrapped, not without conscious intention, as a gift.”

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Figuras 28, 29, 30 e 31.
Capa, frontispício e ilustrações de A menina do narizinho arrebitado, por Voltolino (1920).

No Brasil, os livros infantis editados por Lobato trazem esse acabamento esmerado:
o primeiro deles, A menina do narizinho arrebitado, de 1920, tem tamanho grande, 21,7 x
29 cm, capa dura, 44 páginas todas ilustradas em uma, duas ou três cores (preto; preto e
verde; preto e ocre; preto, verde e laranja; preto, ocre e rosa; preto, cinza e vermelho) por
Voltolino, o mais importante caricaturista de São Paulo na época. No entanto, o formato
de “livro-presente”, de grandes dimensões, encadernado em capa dura com guardas deco-
radas e profusamente ilustrado em cores, não se firma no Brasil.

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Por questões econômicas e culturais, o padrão predominante é o de publicações
mais baratas, encadernadas em grampo canoa ou brochura, muitas vezes não tendo se-
quer orelhas. Até recentemente, a capa dura era tão rara em livros impressos no Brasil, que
o trio formado por Graça Lima, Mariana Massarani e Roger Mello batizou jocosamente
sua empresa de “Capa Dura em Cingapura”, em referência ao fato de só ser viável impri-
mir livros de capa dura na China (Lima in Hanning et al, 2012, p. 174). Em anos recentes,
as editoras nacionais têm conseguido investir em livros com acabamento superior, em
alguns casos publicando duas edições com diferentes acabamentos e preços correspon-
dentes, como Carvoeirinhos, de Roger Mello, que conta com uma edição “luxo” mais cara,
em capa dura e pop-up no miolo, e outra mais simples e barata, em brochura e sem pop-
up. Esse procedimento, comum nos mercados europeu e norte-americano, não é usual
no Brasil. Observando o acabamento dos livros ilustrados de Angela Lago, Roger Mello e
Fernando Vilela, pode-se confirmar que a maioria deles são brochuras, com poucos exem-
plares em capa dura.
No Brasil, a inexistência de formação acadêmica específica para ilustradores em ní-
vel de graduação acaba levando os estudantes para áreas correlatas, como Artes Plásticas,
caso de Fernando Vilela, ou Design Gráfico, caso de Lago e Mello, que aliam um pen-
samento plástico vigoroso a um profundo conhecimento do livro enquanto objeto de
design industrial. Além de explorar as possibilidades narrativas de palavras e imagens,
estes artistas empregam o próprio suporte de modo integrado, em projetos gráficos que
exploram as características do códice em diferentes graus de intervenção. Conscientes das
limitações de orçamento que possibilitam às editoras manter o preço de capa dentro de
uma faixa acessível aos compradores brasileiros, esses artistas exploram com inteligência
as possibilidades oferecidas pelo livro ilustrado como suporte material e elemento consti-
tuinte da narrativa. Para isso, aliam o conhecimento técnico das possibilidades industriais
à experimentação artística, conjugando ambas por meio do exercício da criatividade. Sen-
do artistas de tripla vocação, além do texto e das ilustrações os três empregam também
a materialidade do suporte como elemento narrativo, cujo uso configura mais exceção
do que regra, e que aparece quase sempre associado a projetos com forte caráter artístico
aproximando-os dos livros de artista, como visto no capítulo inicial.

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Para identificar nos três livros do corpus as estratégias narrativas que exploram ar-
tisticamente os recursos oferecidos pelo suporte, busca-se contribuições de alguns campos
de estudo que analisam os aspectos materiais dos livros impressos. No Brasil, é grande a
influência de Roger Chartier, nome de referência no recente campo da história do livro e
possivelmente o intelectual contemporâneo de maior circulação entre nós. Em sua aula
inaugural no Collège de France, Chartier (2010) relembra os iniciadores Henri Jean Mar-
tin e Lucien Fèbvre, cuja obra O aparecimento do livro, publicada em 1958, “é tida com
razão como fundadora da história do livro ou, pelo menos, de uma nova história do livro”;
Armando Petrucci, cuja lição fundamental é “a de sempre associar, numa mesma análise,
os papéis atribuídos ao escrito, as formas e suportes da escrita, e as maneiras de ler”; e Do-
nald McKenzie (1931-1999), para quem o sentido de qualquer texto “depende das formas
que o oferecem à leitura, dos dispositivos próprios da materialidade do escrito”.
Nascido na Nova Zelândia e professor da cátedra de Textual Criticism na Universi-
dade de Oxford, esse “sábio que vivia entre dois mundos”, na definição afetuosa de Char-
tier, exerce grande influência sobre o pesquisador francês, que declara: “é na perspectiva
por ele [McKenzie] aberta que situarei um ensino que se propõe a nunca separar a com-
preensão histórica dos escritos da descrição morfológica dos objetos que os trazem”. Para
McKenzie, as formas materiais do impresso, “o formato do livro, a construção da página,
a divisão do texto, a presença ou ausência de imagens, as convenções tipográficas e a pon-
tuação” fornecem a base para uma “sociologia dos textos”. A denominação “sociologia dos
textos”, que à primeira vista pode parecer um tanto vaga, refere-se na verdade a um campo
de estudos bastante específico, qual seja a materialidade dos livros, como explica o autor:
“Quanto aos impressos, seu estudo pode ser chamado histoire du livre, ou a sociologia dos
textos, ou mesmo (desde que os livros têm sido, tradicionalmente, sua fonte e substância)
bibliografia” (McKenzie, 1999, p. 5).10 Interessam a McKenzie não apenas a forma final do
objeto, mas também o contexto socioeconômico de suas produção e circulação, com espe-
cial destaque para os agentes nelas envolvidos:

10 “As to print, its study might be called histoire du livre, or the sociology of texts, or even (since books
have been traditionally its source and substance) bibliography.”

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Pois um livro nunca é simplesmente um objeto notável. Como qualquer outra tecnologia, ele
é invariavelmente o produto da ação humana em contextos complexos e altamente voláteis,
que um estudo responsável deve procurar recuperar se quisermos compreender melhor
a criação e a comunicação de significado como característica definidora das sociedades
humanas. (idem, p. 4)11

A grande importância de McKenzie para o estudo da materialidade dos livros é in-


versamente proporcional à sua pouca visibilidade, que pode ser atribuída à escassez de ma-
terial que deixa escrito. De fato, seu mais conhecido texto, Bibliography and the Sociology of
Texts, é uma compilação feita por seus alunos da Faculdade de Inglês, na Universidade de
Oxford, das Panizzi lectures, proferidas em 1985 a convite da British Library. O ano inicial
do curso era composto por dezesseis semanas, das quais as oito primeiras eram dedicadas
à produção do texto (text production): “o arquivo de textos sobreviventes, a força de traba-
lho que os criou, os materiais que os compõem, as tecnologias e os processos envolvidos
em sua feitura, e as fórmulas para descrevê-los em toda a sua variedade”12 (1999, p. 17) e
as oito semanas remanescentes eram dedicadas à sociologia dos textos (sociology of texts),
quando os alunos exploravam as “complexas interrelações entre essas condições de pro-
dução e os tipos de conhecimento que geravam”. As diretrizes estabelecidas por McKenzie
para a primeira metade do curso orientam também nossa perspectiva de análise dos livros
selecionados: a força de trabalho que os criou, os materiais que os formam, as tecnologias
e processos envolvidos em sua produção. A intenção que nos move é a mesma declarada
por McKenzie: “A investigação particular que desejo seguir é se as formas materiais dos
livros, os elementos não-verbais das notações tipográficas dentro deles, a própria dispo-
sição do espaço em si, têm ou não uma função expressiva para transmitir significado.”13
Resumidamente, os elementos e processos envolvidos na produção dos livros são:

11 “For a book is never simply a remarkable object. Like every other technology it is invariably the
product of human agency in complex and highly volatile contexts which a responsible scholarship
must seek to recover if we are to understand better the creation and communication of meaning as the
defining characteristic of human societies.”
12 “the archive of surviving texts, the labour force that created it, the materials that form it, the
technologies and processes involved in making it, and the formulae for describing it in its full variety”
13 “The particular inquiry I wish to pursue is whether or not the material forms of books, the non-
verbal elements of the typographic notations within them, the very disposition of space itself, have an
expressive function in conveying meaning.”

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 Anatomia do livro: sobrecapa, capa, lombada, guardas, orelhas, cadernos, forma-
to, medidas.

lombo / lombada cabeça

cabeceado

charneira folhas

seixa superior pasta do verso

pasta frontal quarta capa

capa frente

seixa lateral virada

placa

seixa do pé base

guardas guarda branca

Figura 32. Componentes de um livro. Andrew Haslam, 2007.

 Suportes de impressão: papel (medidas, peso, opacidade, cor, acabamento su-


perficial); outros suportes (livros de tecido, plástico e outros materiais); materiais
combinados.
 Sistemas de impressão: offset, serigrafia.
 Tintas: impressão a 4 cores (cmyk), cores especiais.
 Encadernação: brochura, capa flexível, capa dura, espiral, grampeado, colado,
costurado; dobra e colecionamento de cadernos.
 Acabamento: plastificação, laminação, vernizes, hot stamping, cold stamping, relevo
seco, facas especiais.14

14 Adaptado de Andrew Haslam (2007) e Amaury Fernandes (2003).

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 Aprendizado฀invisível฀de฀uma฀tecnologia฀centenária

Defendendo o passado-vivo no presente, já publiquei aqui uma análise do precursor do


Computador, o Livro, que muitos julgam extinto: L.I.V.R.O. Local de Informações Variadas,
Reutilizáveis e Ordenadas. É um insuperável conceito de tecnologia de informação.
L.I.V.R.O. não tem fios nem baterias. Não é conectado a nada e facílimo de usar –
qualquer criança pode operá-lo. Basta abri-lo.
Millôr Fernandes15

Reinando soberano durante séculos como suporte privilegiado de informações, a


ponto do conteúdo se confundir com a forma, o livro impresso volta hoje a ser objeto
de apaixonadas discussões face à iminente “deposição” por seu suposto sucessor, o livro
digital. A emergência do livro digital traz de volta à consciência o fato de o livro impresso
ser também ele uma tecnologia, que de tão entranhada em nossa cultura letrada apaga a
noção de que seu uso demanda um aprendizado e proporciona um tipo de experiência
que vai além da fruição de imagens e palavras, uma vez que o suporte – o manuseio do
livro como objeto – é elemento integrante e fundamental da experiência total de leitura.
Esse processo de aprendizagem requerido para o uso do livro físico fica bem evidente em
um pequeno filme humorístico, realizado em 2007 pela Norsk Rikskringkasting – NRK,
TV pública da Noruega16. Fazendo uma paródia dos problemas vividos atualmente pelos
“imigrantes digitais”,17 o filme mostra as dificuldades que usuários medievais, acostuma-
dos a lidar com o rolo, enfrentam na transição para a então recém-criada tecnologia do
códice. A cena inicial mostra uma cela parcamente iluminada por velas sobre uma mesa,

15 Ver o texto completo em Pré e pós maravilhas. Daily Míllor . Ano 08, n. 38, novembro de 2008.
Disponível online em http://www2.uol.com.br/millor/aberto/dailymillor/008/ 038.htm. Acesso
em 12 fev. 2010.
16 Disponível online em http://www.youtube.com/watch?v=Z7JRm2a1Sdg. Acesso em 14 jan.
2012.
17 Assim são chamadas as pessoas que nasceram e cresceram antes da disseminação de tecnologias
digitais como videogames, internet, telefones celulares, MP3, tablets, etc. e que posteriormente
migraram do ambiente analógico para o digital. Os nativos digitais, nascidos a partir da década
de 1980 em diante, e familiarizados com as tecnologias digitais desde muito jovens, têm fluência
no uso dessas tecnologias e já prescindem do papel nas tarefas com o computador, por exemplo.
Ver trechos da entrevista concedida em 03/10/2011 à Folha de S. Paulo por Marc Prensky, autor
que cunhou as expressões “nativos” e “imigrantes digitais”. Disponível online em http://www.
marcprensky.com/international/Leia%20entrevista%20do%20autor%20da%20expressao%20
imigrantes%20digitais.pdf. Acesso em 14 jan. 2012.

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onde repousam rolos e um códice fechado, que um monge observa com fisionomia des-
consolada. Eis uma tradução livre dos diálogos, a partir das legendas em inglês.

— Com licença? O senhor é o irmão Ansgar?


— Ah, sim, olá!
— Qual é o problema?
— Bem, é essa coisa [mostrando o livro fechado]. Não quer se sentar?
— Obrigado.
— Não consegui fazer nada a manhã toda por causa disso.
— Entendo, senhor; bem, sinto muito. Estamos introduzindo esse novo sistema e todo
mundo quer suporte imediatamente. Eh... então o senhor não consegue usá-lo?
— Isso. Ele ficou paradinho aqui o tempo todo.
— O senhor tentou abrir?
— Abrir?!? Se fosse assim tão simples eu não teria chamado o suporte, teria?
— Hmhm.
— Quer um café?
— Não, obrigado, vai ser rápido. Deixa ver... você faz bem assim... [abrindo a capa] e pronto,
já iniciou.
— Certo, até aí já fiz por minha conta! Mas então parei porque achei que o texto pudesse
sumir. Daí fiquei com medo de continuar.
— OK. Bem, olha só: nessa coisa estão guardadas centenas de páginas com texto. [batendo
com a mão na página] Então, para continuar, é só pegar uma folha de papel e virar assim.
[virando a página]
— Ah! Mas e se eu quiser voltar?
— Então você vira a página de volta segurando o papel aqui... e aí volta para onde estava.
— OK, então acaba aqui... [apontando o final da página] e aí continua aqui! [vira a página
e indica o topo] Fantástico! Mas quando terminar, o que eu faço?
— Aí você fecha a capa assim. Agora está fechado e tudo está seguro aí dentro.
— Então tem certeza que não vou perder nenhum texto? [batendo na capa]
— Não, não. Tudo está seguro, a menos que você taque fogo na coisa toda. O que não é
muito provável.
— Quando a gente está acostumado com os rolos, leva tempo para virar as páginas de um...
litro.
— Livro. Mas então o resto está bem?
— Está. Só mais uma coisa. Deixa eu fazer de novo antes que você saia. Eu abro assim. Aí
eu... como você diz? Viro a página. Viro a página para trás e para frente. E quando acabo, eu
fecho. [fecha o livro deixando a contracapa voltada para cima, ficando a lombada à direita]
Beleza. Obrigado.
— Ótimo. Tchau...
— Peraí! Não acredito... está desse jeito de novo. Não consigo abrir! [bate na contracapa e
mexe na lombada à direita] Não dá pra abrir.
— Você está tentando do lado errado.
— Como assim, errado?
— Tem que abrir do outro lado.

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— Então faz diferença de que lado você abre?
— Sim, tem que abrir desse lado. [vira o livro com a capa para cima, colocando a lombada
à esquerda, e o abre pela direita]
— Entendi.
— Você leu o manual?
— Manual?
— Sim, o livro vem com um guia para usuários. Aqui está. [pegando na mesa um livreto]
— Tá, mas tem o mesmo problema, não consigo abrir! [mexendo na lombada, que está do
lado direito]
— Ah. Não tínhamos pensado nisso.

O filme propõe um interessante exercício de distanciamento e observação relativa-


mente “neutra” de um objeto cujas características e uso são intuitivamente aprendidas em
nossa cultura letrada ocidental. Suspendendo esse conhecimento prévio, pode-se notar
algumas das características do livro, em formato de códice, e de seu uso:
 uma coleção de folhas de papel dobradas, sobrepostas e unidas pelo lado da dobra,
formando uma lombada;
 a coleção de folhas de papel é protegida por uma capa que a envolve, fixada na lom-
bada, deixando a extremidade oposta solta, de modo que se pode abrir e folhear as páginas;
 no modo ocidental de uso, a lombada fica do lado esquerdo e as páginas são viradas
da direita para a esquerda;
 informações – palavras ou imagens que formam um texto – são grafadas nos dois
lados da folha;
 o texto é escrito sobre a página em linhas horizontais sucessivas, a partir do alto: da
margem esquerda até a margem direita, preenchendo a página até embaixo, quando então
flui para o alto da página seguinte;
 a sequência do fluxo de texto entre as páginas segue a mesma lógica espacial da dis-
tribuição do texto na página simples: começa na página à esquerda e segue para a página
à direita;
 para que se consiga ler um texto corretamente, no sentido ocidental, é preciso co-
nhecer a lógica de funcionamento do livro: a lombada deve estar à esquerda, caso contrá-
rio não se consegue abri-lo;
 finalmente, para aprender a usar o livro não adianta apenas receber instruções, é
melhor manuseá-lo diretamente, sendo esse processo facilitado pela orientação presencial.

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Para o público infantil contemporâneo, formado por nativos digitais que já têm
mais familiaridade com objetos eletrônicos do que com livros de papel, a analogia entre
novas e antigas tecnologias pode assumir a direção inversa àquela mostrada no filme da
NRK – para compreender a “antiga” tecnologia do livro de papel, recorre-se à experiência
com os aparelhos eletrônicos. É esse o tema de É um livro, de Lane Smith,18 traduzido do
inglês e publicado no Brasil para jovens leitores em 2010, pela Companhia das Letrinhas.
O livro mostra o diálogo entre um burro, que usa um aparelho eletrônico, e um macaco,
que folheia um livro. Curioso sobre o livro manuseado pelo macaco, o burro tenta com-
preender que objeto é aquele, e faz perguntas sobre o livro buscando construir analogias
com relação à sua própria experiência com o aparelho digital:

— O que você tem aí???


— É um livro.
— Como você lê? Rola o texto pra baixo?
— Não. Viro a página. É um livro.
— Você bloga?
— Não. É um livro.
— Tuíta?
— Não.
— Manda mensagem? Tem wifi? Precisa senha?
— Não.
— Faz isso? [clica e emite um som alto de alarme]
— Não. É um livro.

O burro pega o livro das mãos do macaco e começa a ler. Na parede, os ponteiros
do relógio mostram que se passam horas enquanto o burro lê, concentrado. Por fim, o
macaco pergunta:

— Pode me devolver?
— Não. Mas eu carrego a bateria quando terminar!

— [O macaco suspira] Não precisa. É um livro!!!


A sinopse da editora diz:

18 Uma irreverente entrevista na qual o autor explica sobre o processo de criação do livro pode
ser lida em http://curiouspages.blogspot.com.br/2010/07/lane-smith-on-its-book.html. Acesso
em 10 jan 2014.

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Com a invenção dos e-books, e a proposta de revolução que trazem consigo, surgem
inúmeras dúvidas a respeito do futuro do livro. Muitos aproveitam essa onda para reafirmar
seu amor às letras impressas em papel, e dizem que o livro é uma espécie de deus grego: não
morre nunca. Sem enveredar pelas malhas da vidência, mas deixando claro que um livro é
um livro e isso basta, Lane Smith criou uma história ilustrada, tanto para crianças quanto
para adultos, sobre o nosso velho e bom – e amado – livro. Aquele que, ao contrário dos
produtos eletrônicos, não apita, não interage, não conecta nem retwitta. Mas que, só pela
emoção da narrativa e das imagens, prende a atenção (e ainda rouba o coração) de qualquer
um.

Pela referência à narrativa por imagens, percebe-se que deve se tratar de um livro
ilustrado, destinado especialmente, mas não apenas, ao público infantil, e que costuma
ser justamente um dos responsáveis pelo aprendizado intuitivo do uso da tecnologia livro
na infância. Como visto anteriormente, o livro ilustrado e o livro de imagens são consi-
derados especialmente adequados para as crianças menores, que ainda têm pouca (senão
nenhuma) fluência na leitura. Nessa etapa, a leitura costuma ser mediada pela intervenção
de adultos – comumente pais ou professores – que manuseiam o livro e contam histórias.
Para facilitar o processo de alfabetização, inclusive, recomenda-se aos adultos que a leitura
em voz alta seja acompanhada pela movimentação do dedo sobre a linha de texto impres-
so correspondente, um recurso pedagógico simples que mostra à criança a correspon-
dência entre a palavra escrita e a palavra falada.19 Considerando a importância que pode
desempenhar o suporte na experiência de leitura do livro ilustrado, e da pouca atenção
dedicada ao estudo dos componentes, processos e resultados relativos ao projeto gráfico
desse tipo de livro, essa pesquisa busca no campo do design contribuições que possam
conferir-lhe maior densidade.

 Design฀também฀é฀emoção

Existem hoje abundantes publicações no campo do design gráfico dedicadas ao de-


sign de livros, mas para lançar nova luz sobre a interação material com esses objetos,

19 Ver, por exemplo, as orientações do MEC para os professores da educação básica publicadas
em Pró-letramento: Alfabetização e linguagem. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Básica, 2007. Fascículo 1, p. 26. Disponível online em portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/
fasciculo_port.pdf . Acesso em 14 jan. 2014.

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recorre-se aqui aos conceitos apresentados por Donald Norman (2012)20 sobre o design
emocional, que examina as respostas emocionais suscitadas pelos objetos com os quais
as pessoas lidam cotidianamente, e cujos conceitos são aplicados ao livro ilustrado. As
proposições do autor fornecem importantes chaves para se pensar o livro ilustrado en-
quanto objeto de design e analisar as emoções que desperta em seu usuário, o leitor. Se em
seu livro anterior, O design do dia-a-dia (publicado originalmente em 1988 com o título
The Psychology of Everyday Things), o autor não dava atenção ao componente emocional
nas interações dos usuários com os objetos, em Design emocional, publicado quinze anos
depois, faz uma espécie de mea culpa bem-humorado e apresenta proposições sólidas em
defesa do papel fundamental das emoções. Norman inicia o livro citando como exemplo
sua coleção pessoal de bules de chá – mais do que objetos funcionais para fazer chá (na
verdade, muitos deles são praticamente “inusáveis”, como o que tem alça e bico do mesmo
lado), os bules são como pequenas esculturas, obras de arte que alegram seu dia. Sem des-
merecer os elementos práticos, Norman afirma que o componente emocional do design
pode ser ainda mais decisivo para o sucesso de um produto do que aqueles. Ele defende
que a experiência do usuário com os objetos envolve três níveis de respostas emocionais:

 Visceral. Nível pré-consciente, anterior ao pensamento, corresponde ao impacto


inicial de um produto. Os aspectos sensoriais – como aparência, toque, sonoridade – do-
minam. As primeiras impressões aparentes é que contam. É o design feito pela natureza,
que provoca sensações agradáveis: formas arredondadas e simétricas, sabores e cheiros
doces, cores saturadas, sons harmônicos, toque suave.
 Comportamental. Refere-se à usabilidade de um produto, seu desempenho nas
funções para as quais foi projetado, a facilidade com que o usuário compreende seu fun-
cionamento e consegue fazê-lo funcionar, e também o prazer que obtém nisso. O bom
design comportamental deve observar o uso real que as pessoas fazem dos objetos, com-
preendendo e satisfazendo suas necessidades.

20 Graduado em engenharia elétrica e PhD em psicologia, Norman é um dos pioneiros no


estudo das ciências cognitivas. Ex-vice-presidente da Apple e ex-executivo de empresas de alta
tecnologia como a Hewlett Packard, é professor de ciência da computação e psicologia.

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 Reflexivo. Nível onde pensamento e emoção se conjugam, onde a consciência
atinge níveis mais altos de interpretação, compreensão e raciocínio. Diz respeito à cultura,
ao significado de um produto, às associações que evoca, à auto-imagem e auto-expressão;
mobiliza e reforça o repertório mental do usuário.

Além de extensas e detalhadas explicações, o autor apresenta, em uma pequena ta-


bela, um mapeamento simplificado dos três níveis, defendendo sua utilidade e praticidade
para propósitos de aplicação (2008, p. 59). A título de teste inicial de aplicação prática
dessas categorias à experiência de leitura do livro impresso, emprega-se o texto de quarta-
capa de É um livro! de Lane Smith, mencionado anteriormente, que traz uma descrição
sucinta do tipo de resposta emocional que essa experiência desperta: “[...] o nosso velho e
bom – e amado – livro [....] só pela emoção da narrativa e das imagens, prende a atenção (e
ainda rouba o coração) de qualquer um.” (grifos meus)
A tabela de Norman tem duas colunas, às quais uma terceira é acrescentada, estabe-
lecendo uma analogia entre os três níveis de interação do design emocional e os trechos
destacados do texto de quarta-capa de É um livro!:

Tabela 3. Três níveis de design. Donald Norman, 2012.

Emoção da narrativa
Design visceral Aparência
e das imagens

Design comportamental Prazer e efetividade do uso Prende a atenção

Auto-imagem, satisfação
Design reflexivo Rouba o coração
pessoal, lembranças

Aplicando os conceitos de design emocional ao livro ilustrado, destaca-se as diferen-


tes maneiras de explorar cada um dos três níveis. A sabedoria popular alerta que “não se
deve julgar um livro pela capa”, ou seja, antecipar juízos de valor baseando-se apenas na
aparência. A razão de ser da advertência evidencia que é justamente isso o que acontece: a
capa, com seu título e imagens, provoca no usuário uma resposta visceral pela “emoção da
narrativa e das imagens”, que se estende ao miolo do livro.

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Sendo o design visceral bem realizado nessa fase, ou seja, se a primeira impressão
é atraente21 (no caso do livro, além da visualidade da capa, incluem-se também aspectos
táteis – como textura, tamanho, peso – e até mesmo olfativos – o “cheiro de livro”), leva
ao nível seguinte, do design comportamental, que liga-se ao prazer e à efetividade do uso.
Assim, à emoção visceral despertada pela capa, segue-se o manuseio do livro, onde a fa-
cilidade proporcionada pela familiaridade com a “tecnologia” ou “sistema” favorece o en-
volvimento com a narrativa e “prende a atenção” do leitor, levando-o nos melhores casos
a entrar num estado de fluxo.22
No terceiro nível, reflexivo, o livro “rouba o coração” do leitor: após o manuseio e a
leitura atenta de palavras e imagens, o livro provoca reflexão, integra-se a seu repertório
de referências pessoais, conquista um lugar em suas memórias afetivas, contribui para sua
autoimagem de leitor, promove uma revisão e ampliação de suas experiências pessoais e
pode chegar até mesmo a impactar sua ideologia23 – em outras palavras, converte-se em
objeto estético.
Pode-se assim observar o modo como o suporte material impacta a experiência de
leitura, tal como defendem Chartier e McKenzie. Pensar o livro ilustrado pela perspecti-
va do design emocional sublinha o papel fundamental da materialidade que esse objeto
oferece, diferente do livro digital. Robert Darnton, historiador e diretor da biblioteca de
Harvard, defende a ideia que livros impressos e digitais podem não apenas coexistir, mas

21 Na verdade, a atração pode ser desencadeada por propostas não necessariamente agradáveis. O
próprio Norman adverte que “Os seres humanos adultos gostam de explorar experiências muito
além das preferências básicas biologicamente predeterminadas.” (p. 89). Acrescentaríamos que não
apenas os seres humanos adultos, mas também as crianças – que adoram, por exemplo, histórias
assustadoras, que provocam “um frio na barriga”. Em se tratando de experiências desafiadoras no
campo da arte, Jean-Marie Guyau faz, já em 1889, importantes reflexões a esse respeito em L’Art au
point de vue sociologique (A arte do ponto de vista sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2009).
22 Proposto pelo psicólogo húngaro Mihaly Csikszentmihalyi, o conceito de fluxo refere-
se a um estado mental em que a pessoa fica totalmente imersa no que está fazendo, com um
sentimento de profundo envolvimento no processo. Ver mais sobre esse fascinante tema em Flow:
The Psychology of Optimal Experience. Nova York: Harper & Row, 1990.
23 Ver, por exemplo, Os filhos de Lobato: o imaginário infantil na ideologia do adulto (1997),
de José Roberto Whitaker Penteado. O autor defende a ideia de que a influência exercida por
Monteiro Lobato, por meio de seus livros infanto-juvenis, impregnou de tal modo o imaginário
de seus jovens leitores, que sua ideologia progressista e antiautoritária formou toda uma geração,
persistindo mesmo na idade adulta.

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reforçar uns aos outros.24 O que pode o livro impresso apresentar como experiência dife-
renciada e atraente para um nativo digital, que tem os mais variados conteúdos ao alcance
dos dedos? Certamente não informação utilitária ou entretenimento. Para isso existem
Wikipedia, games, redes sociais, entre tantas outras opções. É a experiência com o objeto
material que pode oferecer um tipo de interação diferenciada, marcada pela emoção, que
muitas vezes acontece de forma tão intensa que impregna o imaginário e as memórias
afetivas até a idade adulta.
No entanto, a importância das respostas despertadas por objetos com os quais as
pessoas interagem cotidianamente é subestimada, sendo comum que os designers desco-
nheçam as reais condições de interação entre o usuário e o produto por eles desenvolvi-
do. “Ah. Não tínhamos pensado nisso”, responde o suporte para o monge desorientado,
na última fala do filme da NRK. “Muito interessante!” respondem os projetistas de uma
empresa de software visitada por Norman, quando ele lhes apresenta uma longa lista de
problemas que ele próprio, bem como outros usuários, enfrentava ao tentar executar ati-
vidades rotineiras com o produto que projetaram. “Fiquei satisfeito com o fato de que [os
projetistas] me dessem atenção, mas incomodado com o fato de que aqueles pontos, bas-
tante básicos, parecessem ser novidade para eles. Será que nunca observavam as pessoas
usarem seus produtos?” (2008, p. 93) pondera o autor.
O distanciamento entre criadores e usuários assume um aspecto crítico quando os
primeiros são adultos e os últimos são crianças, que raramente têm possibilidade de ex-
pressar suas experiências de modo a fornecer aos autores – bem como aos demais agentes
da cadeia produtiva, exceto àqueles com os quais têm contato imediato, como profes-
sores e parentes – um feedback que leve a um melhor entendimento sobre quais livros
de fato representem experiências de leitura satisfatórias. A interação dos leitores infantis
com esses objetos desperta respostas emocionais que impactam a cognição, o que pode
apontar novamente para a antiga e sempre presente questão do dulcis et utile em torno
da literatura infantil. Entre esses dois polos – fruição estética versus utilitarismo – oscilam
os agentes adultos da cadeia produtiva do livro: autores, editores, divulgadores, livreiros,
bibliotecários, críticos especializados, professores, parentes. Envolvidos na produção e cir-

24 Ver A Questão dos Livros (2010).

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culação dos livros ilustrados para o público infantil, a ideologia de tais agentes a respeito
da infância se faz notar em sua adesão ou rejeição às propostas pouco convencionais dos
artistas contemporâneos.

3.4฀฀ Escolhas฀justiicadas

O próximo capítulo é dedicado à análise de uma obra escolhida dentre os livros


de inteira autoria de Angela Lago (Belo Horizonte, 1945), Roger Mello (Brasília, 1965) e
Fernando Vilela (São Paulo, 1973), artistas que iniciam suas carreiras respectivamente nas
décadas de 1980, 1990 e 2000, cobrindo um período significativo da ilustração brasileira.
Acrescente-se a isso a diversidade de suas origens geográficas (nascidos respectivamente
em Minas Gerais, Brasília e São Paulo) e trajetórias (Angela Lago vive muitos anos no
exterior, Roger Mello se muda para o Rio de Janeiro na juventude) para reforçar a repre-
sentatividade desses autores em relação ao conjunto da ilustração brasileira.
Para chegar às três obras escolhidas, sucessivos filtros seletivos são aplicados, levan-
do-se em conta principalmente características objetivas facilmente identificáveis. Partindo
do mapeamento prévio de todos os livros ilustrados pelos artistas, o conjunto é separado
em duas categorias, de identificação objetiva: os livros que foram apenas ilustrados por
eles, e aqueles dos quais são autores integrais. Estes últimos formam um conjunto de 39
livros para Angela Lago, 23 para Roger Mello e 16 para Fernando Vilela. A segunda etapa
de seleção também obedece a um critério objetivo: identificar nestes conjuntos as obras
premiadas, ou seja, já submetidas à avaliação de especialistas que atestam suas elevadas
qualidades artísticas. A redução no número de livros para a próxima etapa não é tão signi-
ficativa, pois uma quantidade expressiva dessas obras obtiveram prêmios, principalmente
as dos dois artistas com tempo mais longo de carreira: 29 livros premiados de Angela Lago,
17 premiados de Roger Mello e 2 premiados de Fernando Vilela. A terceira etapa de seleção
consiste em analisar quais destes livros premiados fazem uso criativo do suporte enquanto
componente da narrativa, característica compartilhada com os livros de artista. Os crité-
rios dessa etapa final são mais complexos, buscando identificar as obras onde estilo e tema
se conjuguem em benefício da narrativa. Essa dinâmica entre estilo e narrativa, bem como

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a contribuição do uso criativo do suporte, é detalhada na análise semiótica de cada uma
das obras no próximo capítulo.
O critério escolhido para ordenar a sequência de apresentação das obras é apontado
por características intrínsecas dos próprios livros, conjugadas a características extrínsecas,
como data de publicação de cada obra e a geração à qual pertencem seus autores. Embora
o critério inicial de seleção dos artistas observe a sequência cronológica de sua entrada
no mercado, de modo a contemplar um recorte temporal suficientemente amplo da ilus-
tração brasileira, e pareça um critério igualmente válido para ordenar a análise das obras,
com o decorrer da pesquisa revela certa inadequação – o objetivo principal não é traçar
um panorama histórico dos ilustradores brasileiros, mas sim iluminar aspectos específicos
de suas obras. Deslocando então o foco dos autores para as obras, outro critério possível
de ordenamento é por suas respectivas datas de publicação, donde a sequência: Cena de
rua (1994), Lampião & Lancelote (2006) e Zubair e os Labirintos (2007). Por esse critério,
temos também uma coerência quanto ao grau crescente de complexidade no uso dos re-
cursos materiais do suporte: Cena de rua é um livro com estrutura convencional, uma
sequência de apenas 24 páginas encadernadas em brochura; Lampião & Lancelote lança
mão de páginas duplas encartadas em certo momento chave na narrativa e conta com
recursos mais elaborados de impressão (tintas metalizadas) e encadernação (capa dura); e
finalmente Zubair e os labirintos, o mais complexo de todos os objetos, com capa formada
por três abas dobradas em torno do miolo, cujo sentido de leitura é aquele praticado nas
culturas orientais.
Nesse ponto, é oportuno lembrar que o objetivo principal desta pesquisa é ressaltar
não apenas o uso criativo dos recursos de produção material do objeto, mas avaliar esse
uso enquanto elemento contribuinte na formulação de propostas narrativas que não se
conformem a códigos tradicionais, apontando para a descolonização do livro ilustrado.
Tendo isso em mente, fica claro que é possível formular um critério de crescente com-
plexidade observando, para cada uma das três obras, o conjunto composto pelas três lin-
guagens, ou seja, levando em conta seus aspectos verbais, visuais e materiais ao mesmo
tempo e em grau equivalente de importância, como essa pesquisa acredita que devem ser
entendidos os livros ilustrados pela natureza de sua constituição.

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Os aspectos da narrativa verbal coincidem com os aspectos materiais quanto ao grau
crescente de complexidade: Cena de rua apresenta uma história sem palavras, Lampião &
Lancelote é escrito em forma de cordel, constante, e Zubair e os labirintos apresenta uma
narrativa verbal complexa, quase uma novela com um “livro dentro do livro”. Quanto aos
aspectos visuais, considera-se que os três livros exploram recursos pouco convencionais
de maneira igualmente original, cada um apresentando estilo em perfeita sinergia com
o tema narrado. Assim sendo, a combinação dos três sistemas narrativos (texto verbal,
ilustração e design) confirma a sequência sugerida pela ordem cronológica de publicação:
Cena de rua, Lampião & Lancelote e Zubair e os labirintos.
O primeiro livro mostra os acontecimentos na vida de um menino de rua, que ven-
de frutas à noite para os motoristas que param no sinal fechado. A narrativa prescinde de
palavras, sendo contada unicamente pela sequência de imagens e por sutil efeito de aproxi-
mação e afastamento dos personagens quando as páginas são viradas. O tema já introduz
por si mesmo um grau maior de dificuldade, mostrando uma lamentável realidade de ex-
clusão social; dificuldade acentuada pelo estilo das ilustrações, de formas e cores distorcidas
à maneira do expressionismo alemão. O segundo narra o encontro e confronto entre dois
cavaleiros das tradições moderna brasileira e medieval europeia, contando com linguagem
verbal à moda dos populares cordéis, de onde vem também a inspiração para o estilo das
ilustrações. O terceiro e último livro conta sobre o menino Zubair, morador de uma Bagdá
bombardeada durante a guerra no Iraque, em 2003, que foge para os labirintos do mercado
levando consigo um misterioso objeto que descobrira em meio aos destroços do museu
histórico. A complexidade da narrativa verbal, das ilustrações e do design é considerável, a
ponto de levantar dúvidas quanto à possibilidade de fruição pelo leitor infantil.
Como contextualização de cada obra, apresenta-se antes de mais nada um resumo
dos dados biográficos de seus autores, incluindo um apanhado da premiação por eles
conquistada ao longo de suas carreiras; e um breve panorama comentado dos principais
livros ilustrados de cada autor. No anexo, pode-se consultar a relação completa dos livros
que ilustraram, com ficha técnica mostrando autor, editora, data e local de publicação e
premiação. Para os livros de sua inteira autoria, inclui-se também uma imagem da capa.
Desse modo, pode-se vislumbrar mais facilmente como a obra destacada nessa pesquisa
se situa na produção de cada autor.

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Apresenta-se a seguir a ficha técnica de cada um dos três livros, incluindo relação de
prêmios recebidos, seleção em programas de governo, adaptações e traduções, reprodução
dos paratextos, quando existentes, e uma sinopse. Na análise, justifica-se a escolha dos livros,
procedendo-se a uma análise crítica de seu conteúdo e características formais. Os comentá-
rios a respeito da narrativa verbal, quando existente, cumprem um papel de apoio à análise
dos aspectos visuais e materiais de cada livro, foco principal dessa pesquisa. A análise do
discurso visual é orientada pela semiótica, contemplando os níveis denotativo e conotativo
das imagens (Barthes, 1984). Para analisar os aspectos relativos ao design das obras, são em-
pregados os conceitos de design emocional propostos por Donald Norman (2012).
Busca-se identificar a autoconsciência do suporte enquanto elemento narrativo e
ressaltar certos aspectos da identidade nacional, construídos nos diálogos entre cultura
popular e oficial, regionalismo e globalização, tradição e transgressão, bem como nas re-
ferências às artes plásticas, resultando em propostas de aceitação mais ou menos fácil pelo
público leigo e pelos especialistas. Também são observadas perspectivas de descolonização
quanto a estereótipos relativos ao tema e à forma, e quanto à suposta adequação ao públi-
co infantil.
Além da análise crítica dos aspectos visual e material, para cada obra é reunido um
conjunto de informações e comentários provenientes de diversas fontes, de modo a for-
mar um quadro mais denso de sua inserção social, contemplando as circunstâncias que
envolveram sua criação, produção, publicação e circulação, e as variadas acolhidas que
tiveram entre especialistas e leigos, especialmente algumas das respostas mais significati-
vas do público infantil que se encontram disponíveis. São destacados os comentários mais
relevantes dentre a fortuna crítica que foi possível levantar para cada obra, com especial
atenção aos pareceres de especialistas que informam as premiações nacionais e internacio-
nais, bem como as compras governamentais. São listadas as traduções das obras, mostran-
do o interesse que despertam em editoras estrangeiras. Ademais, algumas falas dos autores
iluminam aspectos especiais de suas obras, nem sempre identificáveis à primeira vista.

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• ฀ ฀ C A P Í T U LO ฀ 4 ฀ ฀ •

Trinca de Ases

Neste último capítulo, são examinados os três livros escolhidos para compor o cor-
pus, na sequência de suas datas de publicação. O exame de cada livro segue o seguinte
roteiro:

 Capa e ficha técnica contendo: cidade, editora e ano de publicação; medidas; nú-
mero de páginas; capa, encadernação e acabamento; papel e impressão do miolo;
prêmios; seleção em programas governamentais; traduções e adaptações
 Biografia do autor
 Contextualização do livro escolhido dentre as obras do autor
 Sinopse: breve resumo da história, de redação própria ou extraído de outras fontes,
quando disponíveis
 Descrição: etapa inicial da análise semiológica (Joly, 2008)
 Análise: aspectos visuais e materiais (Joly, 2008; Kress & van Leeuwen, 2006; Camar-
go, 1995; Oliveira, 2008; Moebius, 1990; Nodelman, 1989; Norman, 2008)
 Comentários adicionais

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀164
4.1฀฀ Angela฀Lago฀:฀Cena de rua

Figuras 33, 34 e 35.


Capa e ilustrações de Cena de rua.

Belo Horizonte: RHJ, 1994


20 x 21 cm, 24 páginas
Grampeado, capa plastificada, miolo em
4/4 cores sobre papel couché fosco
 Biografia

Nasci em Belo Horizonte, no ano em que acabou a segunda guerra. Não sei porquê resolveram
me chamar de anjo. Este diabo de nome me dá um trabalho que vocês nem imaginam.
Escrevo, desenho e faço animações. De preferência para crianças. E estou aprendendo a
tocar violoncelo.

I was born in Brazil in 1945. I lived abroad for some years, and came back to Minas, my
homeland. Minas means mines. The gold was gone to Portugal and England long time ago, but
we are rich of mountains and stories.

Soy latino-americana: dura y tierna a la vez. Vivo en una calle que se llama Sagarana. Sagarana
significa muchas historias, tantas historias que uno sabe que nunca las terminará. Debe ser por
eso que me da flojera traducir y les cuento otras cosas.
Angela Lago 1

Angela Anastácia Cardoso Lago nasce em 1945, em Belo Horizonte, MG. Escritora,
ilustradora, designer, desde 1980 já tem mais de trinta livros publicados no Brasil e no
exterior, além de ilustrar mais de quinze títulos de outros autores. Angela Lago dedica a
maior parte de seus livros às crianças. Entre eles, destaca-se Cena de Rua (1994), premiado
na França e na Bienal de Bratislava e incluído na coletânea Best Children’s Books In The
World, da Abrams Press, Nova York, como um dos quinze melhores livros de imagem do
mundo, tendo sido publicado também no México, na França e nos Estados Unidos.
Em 1969, ainda estudante na Escola de Serviço Social da Universidade Católica de
Minas Gerais, trabalha como assistente no Instituto Psicopedagógico, para crianças com
dificuldades psicopedagógicas e psiquiátricas. Formada em Artes Plásticas, Serviço Social
e Psicopedagogia Infantil, entre 1970 e 1975 mora na Venezuela e na Escócia, onde estuda
Design for Printing no Napier College, em Edimburgo. Quando volta ao Brasil, em mea-
dos dos anos 1970, acontece no país o boom da literatura infanto-juvenil.
Em 1975 abre seu próprio atelier de comunicação visual para publicidade, onde cria
logotipos, propaganda institucional, etc. Em 1980, em Belo Horizonte, participa do Núcleo
Experimental/Oficina de Criatividade em Artes Plásticas, com orientação do escultor Amil-
car de Castro. Nessa época inicia-se como autora de livros infantis, com a publicação de San-
gue de Barata, sucesso de público e de crítica, e trabalha também com animação interativa.

1 Página de abertura do site da autora. Disponível online em http://www.angela-lago.net.br/


prof.html. Acesso em 14 jan 2014.

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀166
Alguns dos muitos prêmios que recebe são: Prémio Iberoamericano de Ilustración,
La Consejería de Cultura, Junta de Andalucia, Sevilha, Espanha, 1994; Prêmio Octogone
d’Ardoise (1994-1995); Prix Graphique, Centre International d’ Etudes en Littératures de
Jeunesse, Paris, pelo livro Cena de Rua; BIB Plaque, Prêmio da Bienal Internacional da
Bratislava (2007) e Prêmio Jabuti, da CBL, na Categoria Melhor Ilustração de Livro Infan-
til ou Juvenil (2008) pelo livro João Felizardo, o rei dos negócios. Em 1994 e 2000 é a candi-
data brasileira ao Prêmio Hans Christian Andersen de Ilustração, por indicação da FNLIJ.2

 Contextualização

Angela Lago tem uma produção extensa, com mais de trinta livros ilustrados de sua
autoria integral e mais de vinte ilustrados para outros autores. A autora passeia por temas
e gêneros tão variados quanto exclusão social; manipulação genética; poemas, parlendas,
travalínguas e adivinhas; mistério e morte; fábulas; recontos da tradição oral ou popular;
variando de técnica e estilo conforme a história. Ela começa a ilustrar empregando técnicas
tradicionais como aquarela, acrílica, lápis de cor; usa montagem fotográfica; é das primei-
ras a experimentar com o computador, incorporando o aspecto algo tosco, de baixa defi-
nição dos primeiros tempos da tecnologia, passando pela linha incerta traçada pelo mouse
até chegar à mesa digitalizadora, a principal técnica que usa atualmente. Bons exemplos da
variedade na combinação entre tema, técnica e estilo são A banguelinha (2002), contada
por um senhor idoso cujo tremor das mãos se reflete nos traços das ilustrações (figura 41);
A raça perfeita (2004), uma história de manipulação genética contada por ilustrações em
fotomontagem digital (figura 42); além obviamente de Cena de rua, com suas pinceladas
expressionistas narrando uma história de exclusão social. Angela Lago explica que, para
esse livro, em vez do computador preferiu a tinta acrílica, reforçando que suas escolhas de
técnica e estilo se alternam de maneira livre, descompromissada:

2 Fontes: site da autora, op cit; Coelho, 2006, p. 92-93; site da editora Cosac Naify, disponível online
em http://editora.cosacnaify.com.br/Autor/546/Angela-Lago.aspx e Diccionario de Ilustradores
Iberoamericanos, da Fundação SM, disponível online em http://www.smdiccionarioilustradores.
com/ilustrador.php?b=1&i=2&l=L&p=&s=. Acesso em 14 jan. 2014.

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀167
Porque eu gosto de pintar com a pintura acrílica, e por essa falta de compromisso. Amanhã
eu posso resolver fazer aquarela, que é uma coisa que eu gosto e tem muito tempo que
eu não faço. Pode me dar vontade de mudar no próximo, o próximo livro ser feito em
aquarela, então não vou te prometer nada, nem pra mim. Porque senão perde a graça, veja
bem, a gente escolhe uma profissão que é um brinquedo e transforma em lei. Sou uma
pessoa tentando, vou continuar mudando, não faço questão de estilo.[...] Me interessa ir
experimentando todas as possibilidades que passarem pela minha frente, todos os pincéis,
tudo que eu tiver vontade. Não vou me privar disso. Em nome de um estilo pessoal, é por
isso que eu mudo tanto. (Lago in Araújo, 2008, p. 71)

 Sinopse

As sinopses oferecidas pelo PNBE e pela editora são concisas:

Livro de imagens que narra o drama de meninos que vendem coisas nos sinais de trânsito,
em suas relações com os passageiros dos automóveis, que os vêem como mendigos ou
ladrões. O livro configura, em poucas imagens, o relato deste drama social. Temas: Questão
social; criança e adolescente3

Premiadas cenas do cotidiano de uma criança trabalhando na rua, criadas pela artista plástica
Angela Lago. Imagens e cores fortes, plenas de movimentos, ângulos surpreendentes, em
uma reportagem visual. A linguagem expressionista fala à emoção sem usar palavras; e o
estilo universal da produção gráfica fez este livro correr o mundo.4

Já o texto do catálogo White Ravens, da IJB, que concede a Cena de rua o prêmio
“Menção Especial”, apresenta uma resenha mais detalhada:

Este livro de imagem mostra cenas da vida cotidiana de um menino de rua preso no círculo
vicioso da pobreza, da fome e do roubo, entre os carros no trânsito pesado de uma cidade
grande onde ele ganha a vida como vendedor de rua. Embora pareça estar em estreito
contato com as pessoas, os passantes reagem a ele com medo e rejeitam-no de forma
agressiva. Seu anseio por segurança permanece por cumprir. As cenas opressivas em páginas
duplas com margens pretas são banhadas por uma luz artificial. As cores saturadas e planas
elucidam a atmosfera agressiva, ameaçadora, da cidade grande. Perspectivas incomuns
sublinham o confinamento e o caos; tudo está em movimento, não há nada oferecendo-lhe

3 Extraído do Catálogo acervo 1 – Escolha PNBE 2005. Disponível online em ftp://ftp.fnde.gov.


br/pub/acervos/acervo_01_pnbe2005.pdf. Acesso em 28 jan 2014.
4 Editora RHJ. Disponível online em http://www.lojarhj.com.br/product/53480/cena-de-
rua. Acesso em 28 jan 2014.

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀168
apoio ou proteção. Neste livro Angela Lago mostra um lado completamente novo de seu
multifacetado talento. 5

 Descrição

Publicado pela RHJ em 1994, Cena de rua ganha prêmios importantes (Associação
Paulista de Críticos de Arte – APCA, 1994 – Melhor Livro sem Texto; Bienal Internacional
da Bratislava, 1995 – BIB Plaque; CBL, 1994, 34º Prêmio Jabuti – Melhor livro infantil e
Melhor Ilustração; Centre International d’Etudes en Littératures de Jeunesse, 1995 – Octo-
gone d’Ardoise, Prix Graphiques, Octogonales; IJB, 1995 – Catálogo White Ravens; FNLIJ,
1995 – O Melhor Livro de Imagem Hors Concour6; foi selecionado em programas gover-
namentais (Projeto Cantinho de Leitura, Programa Nacional Salas de Leitura Bibliotecas
Escolares – FAE, PNBE 2005); é incluído na coletânea Best Children’s Books In The World
da Abrams Books for Young Readers, Nova York, 1996; e traduzido para o espanhol (De
Noche en la calle. Caracas: Ekaré, 1999) e francês (Le petit marchand des rues. Paris: Rue de
Monde, 2005).
O livro é quadrado, medindo 21 cm de lado. Para o miolo de 28 páginas a encader-
nação mais indicada é em grampo canoa, o tipo mais simples e barato existente, mas a
editora busca melhorar o aspecto externo simulando uma pequena lombada quadrada
por meio de dobras e acrescentando grandes orelhas. A capa é escura e contém poucos
elementos: sobre um fundo em preto chapado que domina aproximadamente 3/4 da área

5 “This wordless picture book shows scenes of everyday life of a street boy caught up in the
vicious circle of poverty, hunger and theft, between the cars in the heavy traffic of a big city where
he scrapes a living as a streetside seller. Though he appears to be in close contact with people,
passersby react to him with fear and aggressively reject him. His yearning for security remains
unfulfilled. The oppressive scenes on the black-bordered double-page spreads are bathed in an
artificial light. The flat, glaring colors elucidate the aggressive, threatening atmosphere of the big
city. Unusual perspectives underline the confinement and the chaos, everything is in motion, there
is nothing offering him support or protection. In this book Angela Lago shows a completely new
side of her many-facetted talent.” Disponível online em http://www.childrenslibrary.org/servlet/
WhiteRavens?title=Brazil&where=country%3D%27Brazil%27. Acesso em 31 jan. 2015.
6 Depois de ganhar por três vezes o mesmo prêmio, um autor passa a ser considerado
hors concour: continua concorrendo ao prêmio, mas abre espaço para que outros autores também
tenham chance de ganhar.

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀169
disponível, aparece um quadrado branco de contorno irregular com 12 cm de lado, cen-
tralizado, contendo apenas o título, nome da autora e nome da editora. Todas as palavras
são manuscritas, com letras de desenho anguloso, geometrizado e irregular. O título é es-
crito em vermelho, com pinceladas grossas de pouca tinta que deixam perceber a textura
granulada do papel. A quarta capa e as orelhas (grandes, com 11 cm, metade da largura
do livro) são totalmente pretas, reforçando a impressão de continuidade com a capa. Na
quarta capa aparece apenas o número ISBN, composto em fonte American Typewriter
corpo 11, vazado em branco e centralizado na largura, distante 2 cm da margem inferior.
O miolo é impresso a 4/4 cores sobre papel couché fosco 180g/m2. Das suas 28 pá-
ginas, as duas primeiras e as duas últimas são totalmente pretas, sem nenhum elemento,
funcionando assim como falsas guardas, de maneira que as demais 24 páginas (páginas 3 a
26, não numeradas) correspondem de fato ao miolo do livro. As ilustrações são dispostas
sempre em página dupla, dentro de quadro de contorno irregular equidistante das extre-
midades externas, superior e inferior do livro, formando uma margem de aproximada-
mente 1,2 cm em preto nas páginas duplas.
A primeira ilustração (p. 4-5) se repete na última página dupla (p. 24-25), forman-
do uma narrativa circular que se desenvolve em dez ilustrações diferentes, apresentando
todas elas as mesmas escolhas plásticas. O estilo é expressionista, com formas irregulares
e distorcidas, sem contorno marcado, em pinceladas grossas de tinta acrílica que deixam
perceber a textura do suporte. A palheta de cores das figuras principais concentra-se em
vermelho, amarelo, verde e azul saturados, com poucas variações tonais e sombreado. O
fundo é sempre escuro, com a mesma palheta de cores das figuras em gradações próxi-
mas do preto. A perspectiva é geralmente achatada, com o ponto de vista ligeiramente
alto (plongée). O enquadramento é em plano médio em todas as ilustrações, exceto pelas
páginas 10-11 e 12-13, que mostram os personagens em plano americano. Os personagens
aparecem quase sempre de frente, ou no máximo em quase-perfil (3/4) e, em alguns casos,
rosto e corpo são orientados para lados diferentes. A anatomia é distorcida, por vezes exa-
geradamente (nariz e dentes pontiagudos, pescoço). A composição é centralizada no eixo
horizontal, organizada em função do encontro das páginas (espinha do livro).

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 Análise

Em Cena de rua, Angela Lago faz uma combinação precisa entre tema, estilo e técni-
ca. Para contar a história do menino de rua que sobrevive precariamente vendendo frutas
aos motoristas que param no sinal de trânsito, a autora dispensa as palavras e deixa que as
imagens falem ao leitor:

Imagine escrever esse livro com texto? Seria intolerável a possibilidade de texto porque ficaria
um texto tão demagógico... [...] Com imagem eu posso falar da desigualdade, com palavra
eu não daria conta, acho que eu seria demagógica. O texto não cabia, e ia ficar ridículo, sem
força, sem eloquência, sem dramaticidade, ou com uma dramaticidade piegas, ou com uma
dramaticidade demagógica. [...] Eu não tinha chance de fazer esse livro com palavras, eu
tenho que fazer uma reportagem, mas uma reportagem visual, porque as pessoas não vão
acreditar se eu falar. (Lago in Araújo, 2008, passim p. 54-56)

A escolha de Angela Lago em fazer um livro sem palavras, buscando uma solução
que fale à emoção do leitor sem resvalar para uma postura paternalista, mostra sua empa-
tia com o tema abordado, que acontece pelo

[...] sentimento de orfandade, então eu tive o sentimento de simpatia aguçado pelo menino
de rua. Eu vi o menino abandonado com muito mais simpatia. Eu perdi meu pai muito
mais madura, envelhecendo, com mais de 50 anos, mas, na hora que você fica órfã, você é
órfã com 50, com 70. (idem, p. 59)

Com essa abordagem, Angela Lago demonstra afinidade com os expressionistas, que
“alimentavam sentimentos tão fortes a respeito do sofrimento humano, violência e pai-
xão” e “ queriam enfrentar os fatos nus e crus da existência, e expressar sua compaixão
pelos deserdados da sorte e pelos feios”. (Gombrich, 1999, passim p. 565-566). A autora
explica suas escolhas plásticas: “Para testemunhar minha simpatia pelos meninos de rua,
optei por cores fortes e pinceladas mais corajosas. E não usei nenhum detalhe além do es-
tritamente necessário para o relato. Nesse livro não quero distrair o leitor.”7 (idem). É uma
opção corajosa, tanto na escolha do tema quanto do estilo, visto que a percepção social da
infância romantizada ainda não perdeu, nos livros ilustrados infantis, a força que tinha na

7 Depoimento de 1995 publicado no site da autora. Disponível online em http://www.


angela-lago.net.br/palestra.html. Acesso em 8 fev. 2015.

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pintura anterior ao Expressionismo, como lembra Gombrich: “No passado, uma criança
na pintura tinha que ostentar um ar satisfeito e ser bonita. Os adultos não queriam saber
de penas e angústias na infância” (idem, p. 568).
A escolha pela essencialidade fica clara desde a capa. A se acreditar no ditado que
diz que “um livro se conhece pela capa”, Cena de rua seria considerado (equivocadamente)
um livro sem maiores atrativos: o título não revela muito sobre a história, e tampouco a
composição visual fornece pistas sobre o que esperar do livro. No entanto, a solução é
perfeita para dar o tom dessa história sem palavras, feita de silêncios eloquentes na hostil
noite urbana. O conjunto formado por capa, parte interna da capa, guardas (aqui falsas,
simuladas pela reserva de duas páginas vazias no início e no final do livro) e frontispício
predominante pretos e vazios transmite bastante bem o isolamento emocional do prota-
gonista no cenário urbano noturno: a cena de rua mencionada no título é vivida por um
menino que vende frutas à noite, para os motoristas que param seus carros no sinal fecha-
do. No miolo do livro, a história se desenrola em um clima de desconfiança e isolamento,
conferido em grande parte pela palheta de cores empregada pela autora: em cenários ur-
banos predominantemente escuros, os personagens refletem os tons e as cores distorcidas
da iluminação artificial e dos sinais de trânsito, em tons de vermelho, amarelo, verde e
azul. Embora em nenhum momento apareça um sinal de trânsito nas ilustrações, a caixa
retangular que o menino segura, bem no centro da primeira ilustração (figura 36), lem-
bra os sinais de trânsito na forma e na cor. Na caixa estão dispostas três frutas redondas
com as cores na mesma sequência que aparecem nos sinais de trânsito, código cromático
internacionalmente conhecido: vermelho significa perigo, pare; amarelo significa atenção,
cautela; e verde significa trânsito livre.
O uso da cor e o tipo de figuração remetem claramente ao fauvismo, com seus ver-
melhos, amarelos, verdes e azuis intensos: “A essência daquilo que veio a ser conhecido
como Fovismo, que cada pintor interpretou à sua própria maneira, localizava-se no uso
não inibido da cor para definir forma e expressar sentimento” (Denvir, 1977, p. 10). As
cores da pele dos personagens, em verde, azul, ou vermelho, têm uma função expressiva.
Dentro dos carros, os motoristas e passageiros hostis (humanos e cachorros) têm pele
vermelha e formas angulosas, de expressões frequentemente ameaçadoras, conferindo um
ar de estranhamento adicional às suas fisionomias. A cor vermelha, associada dentro do

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texto ao sinal vermelho que representa “pare, perigo”, também está associada a emoções
como raiva e agressividade, a guerra e sangue (Pedrosa, 2009, p. 120-121).
Apenas dois passageiros (figura 37) não têm pele vermelha, mas sim azul: uma mu-
lher que aconchega no colo um bebê. De acordo com Israel Pedrosa, a mais fria das cores
é também a mais profunda, onde o olhar “penetra, sem encontrar obstáculo e se perde no
infinito. É a própria cor do infinito e dos mistérios da alma” (idem, p. 126). Pedrosa lembra
que existe uma

analogia secreta do azul com o inacessível. Diante do azul, a lógica do pensamento consciente
cede lugar à fantasia e aos sonhos que emergem dos abismos mais profundos de nosso
mundo interior, abrindo as portas do inconsciente e pré-consciente. Por sua indiferença,
impotência e passividade aguda ele fere, ele atinge o clima do inumano e do suprarreal. [...]
fornece uma evasão sem vínculo com o real, uma fuga que se torna deprimente ao fim de
algum tempo. (idem)

A cor azul da mãe e do bebê transmite, ao mesmo tempo, a sensação de indiferença


(os dois são os únicos personagens que ignoram a presença do menino), de evasão do real,
de inacessibilidade, mas também algo de suprarreal ou celestial, uma certa serenidade e
plenitude reforçadas pelas amplas formas redondas da mulher que preenchem quase que
inteiramente a página direita. A composição faz pensar numa divindade maternal, como
uma madona segurando o menino Jesus, ou uma Iemanjá, orixá que personifica a grande
mãe nos cultos afro-brasileiros. Assim como essas duas figuras maternas arquetípicas, a
mulher da ilustração porta um vestido azul cuja padronagem em pequenos toques de
amarelo claro que remete ao manto de estrelas douradas de Nossa Senhora, e também ao
vestido de peixinhos do mar de Iemanjá. Essa figura faz lembrar um relato de Angela Lago
sobre seu deslumbramento na infância, quando viu pela primeira vez o céu estrelado:8

8 Experiências de deslumbramento na infância marcam as obras de muitos artistas, dentre


eles o pintor Guignard, que por toda sua vida pintaria os balões coloridos que seu pai soltava
em comemoração ao próprio aniversário, no dia de São João, numa grande festa com fogos de
artíficio. Ver Denise Mattar. Guignard: sonhos e sussurros. Catálogo da exposição realizada em
setembro de 2014. São Paulo: Almeida e Dale, 2014. Disponível online em http://almeidaedale.
com.br/file/publicacoes/7-folder%20ad%20guignard-2014_miolo_lr.pdf. Acesso em 9 jan. 2016.

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Figuras 36, 37 e 38. Ilustrações de Cena de rua.

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Há uma imagem que avassala toda a minha vida, que me traz de volta as maiores angústias
e a sensação de maior beleza, e esta imagem eu a vi, pela primeira vez, por volta dos 4 ou 5
anos.
Acostumada a ir para cama, mal começava escurecer, numa casa de muitos filhos e mãe
atarefada e enérgica, saí pela primeira vez à noite, quando fui a uma coroação, por volta
desta idade.
Maio, lua nova talvez, céu límpido, olhei para cima e fiquei estatelada. Mil furinhos
tilintando num céu imenso.
Na minha cabeça de menina, começei então a montar um quebra-cabeça interminável. A
noite coroada, o manto da poderosa Nossa Senhora Natureza, a voz da minha mãe dizendo:
– A terra é também do tamanho da cabeça de um alfinete e nós somos pequenas pulgas
pululando. [...]
Parece-me que tudo que escrever ou desenhar se remeterá sempre, de alguma maneira, a
esta experiência: eu vi um céu cheio de estrelas.9

Angela Lago emprega cores e formas fauvistas, enfatizando estados de espírito de


personagens que aqui remetem ao imaginário devocional brasileiro, combinando ambas
referências para narrar visualmente uma cena urbana cotidiana. Essa cena, como de resto
o livro inteiro, constitui um exemplo bastante eloquente da maneira antropofágica de
combinar referências das vanguardas históricas com questões locais, em um resultado de
grande vigor estético.
O protagonista tem a pele verde, cor que remete ao elemento intra-textual do sinal
de trânsito e também a um fator extra-textual, o estereótipo popular que no imaginário
coletivo identifica os habitantes de Marte, os homenzinhos verdes. Similares aos humanos
na forma, esses verdes ETs personificam visitantes estranhos saídos de outro mundo para
invadir e ameaçar a integridade do mundo conhecido. A pele verde do pequeno morador
de rua, igual à dos marcianos, empresta-lhe as mesmas qualidades de ET, um estranho in-
vasor que perturba a tranquilidade dos motoristas e passageiros.10 O verde também pode
estar associado a emoções como inveja e ciúme, sugerindo o desejo do menino por aquilo
que lhe falta. As roupas do menino são azuis, assim como as da mãe e seu bebê, o que fun-

9 “Um livro de areia”. Texto de 1989 publicado no site da autora. Disponível online em
http://www.angela-lago.net.br/aulaAreia.html. Acesso em 8 fev. 2015.
10 Divagando mais longe na interpretação, lembramos que a cor vermelha é associada ao
planeta Marte, deus da guerra na mitologia greco-romana, e também a cor dos belicosos motoristas:
não seriam eles mais “marcianos”, menos humanos do que o menino?

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ciona como um código intra-textual (Moebius, 1990) de identificação entre eles: o menino
está excluído daquele mundo, mas também poderia pertencer a ele.
O código de posição, tamanho e repetição diminutiva de Moebius indica que a posi-
ção e o tamanho direcionam a percepção de status social ou poder, e que figuras repetidas
na mesma página perdem a força. As figuras identificáveis nas ilustrações são poucas,
constantes e repetidas, mas em diferentes páginas: o menino, os motoristas e passageiros, a
caixa de frutas, cachorros. Alguns aparecem apenas uma vez, como a mãe e o bebê, a idosa
segurando a bolsa, bolos em uma vitrine e pacotes. Os carros são as figuras que mais se
repetem na mesma página, mas a repetição não tira sua força, pois posição e tamanho são
mais marcantes: eles dominam quase todas as cenas, ocupando a maior parte do espaço
disponível e pouco deixando entrever da rua ou construções. Têm formas sólidas e irre-
gulares, tendendo para retângulos com lados arredondados. De cor chapada com pouco
sombreado, nas cenas onde aparecem vários carros todos eles são da mesma cor: ora ver-
melhos, ora amarelos, ora verdes. Dessa maneira, Angela Lago cria um cenário uniforme
onde se destacam os personagens e objetos que desencadeiam as ações.
Conforme Kress & van Leeuwen (2006), os elementos salientes e os vetores dire-
cionam a leitura visual. Os elementos mais salientes das imagens são os rostos e mãos
dos personagens (humanos e cachorros). Nos rostos, os olhos são desenhados com um
mínimo de detalhes, apenas um pingo preto sobre uma pequena mancha branca, mas
mesmo em seu minimalismo são altamente expressivos e formam um importante vetor
que direciona o percurso da leitura visual. Outro vetor do rosto são os narizes e os dentes
pontiagudos. Também as mãos espalmadas, braços esticados e o pescoço exageradamente
distendido de alguns personagens funcionam como vetores.
Angela Lago cria formas em pinceladas espessas de tinta acrílica, deixando a textura
bem aparente. Não há linhas definidas demarcando as figuras, são formadas por áreas de
cor com limites borrados, em estilo pictórico que, conforme Camargo (1995), não está
preocupado com a forma e o volume dos objetos, mas com as impressões visuais que essas
formas e volumes provocam. Para Moebius (1990), linhas grossas ou borradas sugerem
paralisia ou estagnação, e linhas irregulares geralmente acompanham emoções problemá-
ticas ou perigo de vida. É o que acontece na história, onde o menino vive em condições de
extremo desamparo, sem perspectiva de mudança. Essa falta de uma perspectiva externa

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é evidenciada também pelas formas das figuras, em sua maioria fechadas e sólidas, que
apresentam “uma realidade limitada em si mesma, que, em todos os pontos, se volta para
si mesma” (Wölfflin, 1984, p. 135).
O efeito de textura das pinceladas, combinado à irregularidade dos contornos das
figuras, transmite uma sensação de aspereza, brutalidade. Essa sensação é reforçada pela
moldura irregular: ocupando páginas duplas, todas as ilustrações estão afastadas 1 cm das
bordas da página, como se fossem folhas de papel com as bordas rasgadas sobrepostas a
um fundo preto. Esse tipo de quadro conduz o espectador para dentro da história: “a ilus-
tração enquadrada oferece uma visão para dentro desse mundo” (Moebius, 1990). Algu-
mas pinceladas e partes das figuras transpõe a margem, invadindo o fundo preto: “Como
o quadro geralmente marca um limite para a imagem, a quebra desse limite pode sugerir
um senso de transgressão, do proibido ou do miraculoso. O quadro pode ser retilíneo, o
que frequentemente enfatiza um problema, ou o encontro com as desvantagens da disci-
plina ou da vida civilizada.” (idem).
A perspectiva é plana, e em nenhuma cena se vê a linha do horizonte. Moebius
(1990) indica que a “ausência de horizonte, ou de uma clara demarcação entre ‘em cima’ e
‘em baixo’ sugere perigo ou problemas”. De fato, o protagonista está sempre em situações
de perigo ou problema. O enquadramento em ângulo ligeiramente alto (plongée) sugere
a existência de elementos acima da linha do horizonte, mas localizados fora do quadro e
portanto excluídos da cena. Essa configuração poderia ser interpretada, conforme Kress &
van Leeuwen (2006), como ausência do ideal: “os elementos posicionados no alto repre-
sentam o ideal, de apelo mais emocional, traduzindo sonho ou aspiração, aquilo que ‘pode
ser’”. Ou seja, ao menino não cabe sonho ou aspiração; sua vida se restringe à parte de bai-
xo, que “representa o real, aquilo que ‘é’”, sem perspectiva de transformação. Angela Lago
explicita essa falta de perspectiva de uma vida diferente (e melhor) para o protagonista
ao repetir no final da história a mesma ilustração da abertura, formando uma narrativa
circular que se repete indefinidamente.
A história é contada em onze cenas (figura 39):

1. Em meio aos carros verdes, o menino, carregando uma caixa com três frutas, troca
olhares com um motorista hostil

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Figura 39. Storyboard de Cena de rua.

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2. O menino fica espremido entre dois carros amarelos, ocupados por cachorros e mo-
toristas raivosos, que mostram para ele seus dentes arreganhados
3. A motorista de um dos dois carros vermelhos estica braço e pescoço para fora da
janela e rouba a fruta vermelha do menino
4. Com o rosto em close na janela do carro, o menino observa a senhora enfeitada de
joias que agarra ansiosamente sua bolsa
5. Novo close mostra o menino observando dois passageiros que não notam sua pre-
sença: uma mãe aconchegando seu bebê
6. Sentado na esquina, o menino com expressão triste come a fruta verde. Um ca-
chorrinho verde corre animado em sua direção, e os passageiros do carro vermelho
olham intrigados para eles
7. O menino oferece a última fruta, amarela, para o cachorrinho, enquanto seis carros
amarelos se aglomeram na esquina
8. O menino deixa a caixa vazia na calçada e se esgueira pela janela de um carro verde,
pegando um pacote do banco traseiro. No banco dianteiro, os ocupantes se sobres-
saltam
9. Segurando o pacote, o menino corre na noite escura sob a luz dos faróis de dois
carros. Seus ocupantes apontam dedos em riste, dentes arreganhados e narizes pon-
tiagudos na direção do menino
10. Escondido em um beco escuro, o menino abre o pacote e vê uma caixa com três
frutas, igual à que tinha antes
11. A cena 1 se repete formando uma narrativa circular: a vida do menino segue num
círculo vicioso

A análise detalhada das três primeiras cenas revela a riqueza dos recursos visuais
narrativos empregados pela autora para transmitir informações que permitam ao leitor
construir sentidos na história (esses recursos vão se repetir em diferentes composições nas
demais ilustrações, não sendo necessário repetir a análise para cada uma delas):

 Ilustração 1 (figura 36): A história começa mostrando a cena de rua do título:


o menino no meio dos carros olha, com expressão de surpresa, para um motorista com

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expressão hostil. A tensão entre os dois é explícita: os olhares se cruzam bem no centro
da página direita, formando um poderoso vetor (Kress & van Leeuwen, 2006). A página
dupla mostra, dentro do quadro, partes de quatro carros verdes que formam uma espécie
de pano de fundo onde os dois personagens se destacam, por serem mais detalhados e pela
cor vermelha do motorista, que contrasta com seu carro verde.
O menino, verde como os carros, parece mimeticamente disfarçado, e sua roupa
azul escura também se confunde com o preto azulado do asfalto, mas ele carrega frutas
tricolores dentro de uma caixa retangular, cujo colorido, forma e posição central atraem o
olhar do leitor como elemento saliente (Kress & van Leeuwen, 2006).
O motorista aparece na extrema direita, e o menino está no centro da imagem, seu
corpo e cabeça separados pela dobra central do livro – essa divisão não é um defeito, mas
um efeito intencional da autora. Ela usa deliberadamente a dobra central como um recur-
so narrativo, oferecendo ao leitor um jogo sutilmente perceptível de aproximar ou afastar
os personagens conforme se vira as páginas: o centro é importante não apenas na com-
posição visual (Kress & van Leeuwen, 2006), mas também como eixo do efeito cinético.
O olhar e a atenção do leitor são direcionados para o confronto entre menino e mo-
torista por alguns elementos salientes e vetores (Kress & van Leeuwen, 2006). Os rostos
e mãos dos dois personagens são os pontos de maior saliência, com o nariz pontudo do
motorista e o braço direito estendido do menino funcionando como vetores, reforçando
o sentido de leitura. A postura dos personagens (Joly, 2008) mostra a vulnerabilidade do
menino em contraste com a tensão raivosa do motorista: o menino tem o corpo fron-
talmente voltado para o leitor, exposto com braços e pernas abertos, mas seus membros
e especialmente a cabeça assumem ângulos incongruentes em relação ao tronco, dando
ao personagem um aspecto de desintegração; através da janela dianteira do carro se vê
o motorista agarrando o volante com mãos crispadas, seu tronco e rosto em quase perfil
formando um ângulo que se projeta na direção do menino, à esquerda. O queixo protu-
berante, o nariz pontudo e o cenho franzido reforçam a impressão de hostilidade trans-
mitida pelo motorista.
Conforme Kress & van Leeuwen (2006), no eixo horizontal a cena se desenrola do
conhecido, na página esquerda, onde aparecem os carros e o corpo do menino com a caixa
de frutas, ao novo, na página direita, onde está o confronto visual entre ele e o motorista.

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Deslocando-se da esquerda para a direita, o menino sai de uma posição estável e coloca-se
em uma situação de risco, conforme Moebius (1990), que explica ainda que a página direita
“completa o pensamento da página anterior, indicando que podemos prosseguir”. Fica cla-
ro, assim, que o menino vai enfrentar novas situações de risco na continuação da história.
 Ilustração 2 (figura 37): Na sequência, o menino aparece em meio a outros carros
e motoristas hostis. Dessa vez, são dois carros amarelos que ocupam simetricamente as pá-
ginas esquerda e direita, vistos de cima, em câmera alta. No exíguo espaço entre os carros,
esgueira-se o o menino, que tem o corpo e a cabeça separados pela dobra central como na
ilustração anterior. Ele aparenta estar acuado por dois cachorros raivosos que ocupam os
bancos do carona em cada um dos carros. Assim como os cachorros, o motorista do carro
à direita tem cor vermelha e dentes pontiagudos, e os três olham ameaçadoramente para o
menino, cuja expressão parece ainda mais assustada do que na ilustração anterior. O mo-
torista agarra o volante com firmeza, enquanto o cachorro, sentado no banco do carona,
rosna ameaçadoramente para o menino. No outro carro o cachorro parece latir, apoiando
as patas dianteiras no vidro lateral semicerrado. Aqui, o posicionamento e tamanho dos
elementos (código de posição, tamanho e repetição diminutiva de Moebius) aumenta a
percepção de vulnerabilidade do menino, encurralado entre dois animais agressivos pre-
cariamente contidos por vidros semicerrados, sugerindo a iminência de um ataque e a
dificuldade em escapar. Nesta cena o eixo horizontal é simétrico, mas no eixo vertical a
metade superior da imagem mostra apenas a traseira dos carros, uma massa amarela com
pouco detalhamento, enquanto na metade inferior estão os personagens mais detalhados,
com maior variação de cores e formas. Esses elementos direcionam o olhar de cima para
baixo, indo do ideal, possivelmente a expectativa idealizada do menino em encontrar me-
lhor acolhida quando se aproxima de novos carros, ao real, quando recebe a costumeira
reação hostil (Kress & van Leeuwen, 2006).
 Ilustração 3 (figura 34): Nessa cena, o aumento gradual da agressividade poten-
cial dos motoristas sugerido nas duas cenas anteriores assume um caráter explícito: uma
motorista estica seu braço e pescoço para fora da janela e pega uma das frutas da caixa
do menino. A configuração dos elementos e a linguagem corporal dos personagens (Joly,
2008) deixa claro que ela não está comprando, está roubando. Os elementos mais salientes
são a cabeça e o pescoço exageradamente esticado da motorista, que se projetam para fora

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da janela em direção à caixa de frutas que o menino segura, direcionando assim o olhar
para o centro dramático da cena. Braço e pescoço distendidos e nariz pontiagudo formam
um poderoso vetor que direciona o olhar (Kress & van Leeuwen, 2006) para o roubo. A
composição é dramática e sugere ao leitor o mesmo sobressalto do protagonista. Na cena
aparecem apenas dois carros vermelhos, cor do perigo máximo do sinal de trânsito (có-
digo cromático de Moebius, 1990), em composição diagonal, com a parte superior de um
carro aparecendo no lado inferior esquerdo do quadro, e a parte inferior do outro carro
no lado superior direito. Essa organização espacial e cromática confere um dinamismo
nervoso à cena (Oliveira, 2008).

Enquanto objeto, Cena de rua é um livro bastante simples e até mesmo desprovido
de atrativos à primeira vista, com tamanho médio e formato quadrado, poucas páginas e
papel não muito encorpado no miolo. Nota-se o esforço da editora para conferir maior
dignidade ao produto por meio da encadernação com simulação de lombada quadrada e
orelhas grandes, esforço um pouco prejudicado pelo acabamento com um dos recursos
mais básicos disponíveis no mercado, a plastificação brilhante. A baixa atratividade ofe-
recida pela configuração material do livro é reforçada pela capa minimalista, com poucos
elementos de interesse visual. Portanto, a primeira impressão visceral (Norman, 2008)
oferecida pelo livro não causa no leitor maiores expectativas. Em nível comportamental,
o manuseio do livro é bastante confortável e mesmo neutro, uma vez que sua estrutura
material segue o padrão secular do códice ocidental, não oferecendo nem desafios nem
atrativos ao leitor. Há, no entanto, uma sutileza construtiva planejada de modo engenhoso
pela autora no movimento de virada das páginas, que se revela ao leitor mais atento.
Ao manusear o objeto livro, o leitor torna-se coautor da narrativa quando, ao virar
as folhas, converte o espaço bidimensional e estático da página desenhada em um espaço
tridimensional. Esse movimento da página cria diferentes ângulos de leitura e acentua de-
terminados aspectos da imagem, convertendo-se em efeito narrativo. Angela Lago explora
esse recurso em livros como Cântico dos cânticos (figura 40), A banguelinha (figura 41) ou
Cena de rua. Cântico dos cânticos fala sobre a ilusão amorosa, a história de dois jovens que
se buscam, se afastam e voltam a se buscar. Angela Lago conta como explora o aspecto ilu-
sório da terceira dimensão na folha de papel: “A partir do trabalho de Escher e dos estudos

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Figuras 40, 41 e 42 (acima, em sentido horário).
Ilustrações de Cântico dos cânticos,
A banguelinha e A raça perfeita.
Figura 43 (abaixo). Efeito cinético
tridimensional em Cena de rua.

sobre percepção visual desenhei um livro que pode ser lido de cabeça para baixo, portanto
de trás para frente, e ainda assim fazer sentido.” Desse modo, “de cada lado do livro a his-
tória é contada por um dos personagens.” (Lago, 2008, p. 28) Por sua vez, A banguelinha
apresenta a história de uma menina, narrada por seu vizinho idoso, sob cuja ótica o leitor
vê os outros personagens. Assim, a síndica aparece ao leitor como parece ao narrador –
uma bruxa cuja intromissão fica bem evidente passando de uma página para a outra.

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Cena de rua é um exemplo ainda mais contundente, e por isso é aqui analisado, do
efeito proporcionado pelo movimento das páginas como elemento constituinte da nar-
rativa, convertendo o leitor de mero espectador para participante ativo – o que é espe-
cialmente adequado no caso desse livro, que fala sobre exclusão social. Ressalvando que a
perspectiva renascentista é apenas uma dentre as muitas possibilidades de representação
da terceira dimensão, Angela Lago aponta o espaço bidimensional das páginas de um livro
como um espaço de representação, onde o desenho constrói imagens que podem até mes-
mo desafiar os limites da realidade conhecida (2008, p. 28). Angela Lago coloca em pági-
nas opostas o menino e os ocupantes dos carros, de modo que quando a folha é virada, os
personagens se aproximam ou se afastam (figura 43):

[...] nesse trabalho resolvi melhor um dos desafios do livro de imagem que mais me
interessa: o da utilização da junção central das páginas. O desenho para o livro pressupõe a
utilização de oito margens e não apenas as quatro de uma folha sem dobra. A linha formada
pela dobradura do meio do livro é em geral vista como uma perturbação a ser evitada pelo
ilustrador. No Cena de Rua, acho que consegui utilizá-la como um recurso, de forma a
acentuar a emoção e movimento dos desenhos. Para isso coloquei, por exemplo, justo no
encontro das páginas, o cotovelo e o joelho do menino em movimento, ou fiz coincidir ali
a quina mais profunda de uma construção em perspectiva. Quando passamos a folha e o
ângulo de abertura da página varia, este cuidado pode vir à tona.11

O manuseio do livro, uma experiência familiar e reconfortante para o usuário, as-


sume uma função narrativa que provoca resposta comportamental positiva, e o efeito
cinético interativo contribui para que o leitor alcance o nível reflexivo (Norman, 2008),
favorecendo um envolvimento mais íntimo com a história.

 Extras

O tema difícil e as ilustrações expressionistas deste livro de imagem provocam emo-


ções intensas nos leitores infantis, oscilando entre a atração e a repulsa, como conta An-
gela Lago:

11 Depoimento de 1995 publicado no site da autora. Disponível online em http://www.


angela-lago.net.br/palestra.html. Acesso em 8 fev. 2015.

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Acho que Cena de Rua é o melhor trabalho que já fiz, embora seja o menos querido por
meu sobrinho de seis anos, com quem faço hoje minha pesquisa de opinião. Na verdade,
Chiquinho tem tal horror desse livro, que cheguei a cogitar na possibilidade de sugerir a
minha irmã que o usasse como castigo. No entanto Chiquinho se refere a esse trabalho com
mais frequência do que aos outros, e quero acreditar que ele é, pelo menos, o que mais o
impressionou. (op cit)

Outros depoimentos sugerem que essa abordagem expressionista funciona muito


bem para se comunicar com as emoções das crianças e despertar empatia. No blog Recanto
das Letras, Tânia Du Bois comenta sobre o livro e relata a resposta de sua filha pequena:

Cena de rua é literatura infantil que mostra a realidade em que vivemos, através da arte.
Pintar também é escrever, como nas palavras de P. M. Bardi, “Um pintor de talento, também
é um escritor”.
Com sensibilidade podemos “ler” o livro e reconhecer o quanto a criança está sozinha;
até Júlia, de 5 anos, reconheceu a Cena de Rua e logo montou a sua história para ajudar o
menino. Então, em cada sinaleira em que hoje paramos, Júlia diz: “O menino não tem casa,
nem dinheiro. Coitadinho! Ele está trabalhando como o menino da história”.
Cena de Rua tem a escuridão como pano de fundo, ressaltada em cores fortes e pinceladas
corajosas. É diferente e interessante, porque a criança conta o que vê dentro do seu coração
e da sua realidade. A parte mais bonita é a da revelação, onde crianças impressionadas e
emocionadas com as imagens podem acrescentar uma história para Cena de Rua, criando
seus próprios livros.12

Essa é a ideia do Projeto de Regularização do Fluxo Escolar, do Estado da Bahia, que


promove um concurso convidando os alunos a escrever suas próprias histórias a partir das
imagens de Cena de rua. O vencedor é Douglas Silva, que conta sua história em forma de
rap. Essa versão é publicada pela mesma editora RHJ, com projeto gráfico de Angela Lago
que remete ao livro original, e é selecionado pelo PNBE 2005.13
O livro também foi selecionado para o catálogo White Ravens da IJB, com o seguin-
te comentário:

O impressionante livro ilustrado Cena de rua, de Angela Lago, publicado pela primeira vez
em 1994, atraiu a atenção mundial. A sequência de imagens sem palavras segue uma criança
que está presa num círculo vicioso de pobreza e ganha a vida trabalhando como vendedor de

12 Disponível online em http://www.recantodasletras.com.br/resenhasdelivros/2777280:. Acesso


em 7 fev 2015.
13 Fonte: FNDE. Disponível online em ftp://ftp.fnde.gov.br/pub/acervos/acervo_01_pnbe2005.pdf.
Acesso em 8 fev. 2015.

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rua. Recentemente, um concurso literário focado neste livro foi realizado para adolescentes
brasileiros. O autor de 16 anos de idade, finalista do concurso, expressa pensamentos de
uma criança que giram em torno de sonhos para o futuro e a questão da dignidade humana.
Para o projeto gráfico, Angela Lago usa as cores e alguns detalhes de seus desenhos originais.
Os versos rítmicos são lidos como um rap e, assim, combinam perfeitamente com a dura
realidade do protagonista.14

14 “Angela Lago’s impressive picture book ‘Cena de rua’ (Street scene), first published in 1994,
attracted worldwide attention. The sequence of pictures without words follows a child who is trapped
in the vicious circle of poverty and scrapes a living by working as a street vendor. Lately, a writing
competition that focused on this book was held for Brazilian teenagers. The 16-year-old author – who
made it to the competition final – expresses a child’s thoughts that revolve around dreams for the
future and the issue of human dignity. For the design, Angela Lago used the colours and a few details
from her original drawings. The rhythmic verses read like a rap recitative and thus perfectly match the
protagonist’s harsh reality.”

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4.2฀ Fernando฀Vilela:฀Lampião & Lancelote

Figuras 44, 45 e 46.


Capa e ilustrações de Lampião & Lancelote.

São Paulo: Cosac Naify, 2006


35,5 x 24,8 cm · 52 páginas
Capa dura em 3 cores (preto e hot stamping
prata e cobre) com laminação fosca
Miolo em 3/3 cores (preto, prata e cobre)
sobre papel couché fosco 200g/m2

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀187
 Biografia

Artista plástico, escritor, ilustrador e educador, Fernando Vilela (São Paulo, 1973) é
graduado em Artes Plásticas pela Unicamp e mestre em Artes pela ECA-USP. Casado com
a também escritora e artista plástica Stela Barbieri, com quem faz vários livros em par-
ceria, ministra cursos, oficinas e palestras sobre arte e ilustração. Trabalha com gravura,
pintura e fotografia, e expõe com frequência seus trabalhos de arte no Brasil e no exterior.
Em 2005 e 2007, participa da Bienal Internacional de Ilustração de Bratislava, na
Eslováquia, e em 2008 da Ilustrarte, em Portugal. Realiza ainda exposições em diversos
países e, em 2012, expõe na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Seus trabalhos estão em
importantes acervos como o do MoMA, em Nova York, que em 2013 compra duas séries
de gravuras que são incorporadas ao acervo de seu Departamento de Gravuras e Livros
Ilustrados.
Já ilustrou mais de sessenta livros para crianças e jovens para editoras brasileiras e
estrangeiras, dentre os quais 17 são de sua autoria. O primeiro deles, Lampião & Lancelote
(2006), recebe no Brasil quatro prêmios da FNLIJ (Escritor Revelação, Melhor Poesia,
Melhor ilustração e Melhor Projeto Editorial no Brasil) e dois prêmios Jabuti, além de
menção honrosa na categoria Novos Horizontes, na Feira Internacional do Livro Infantil
de Bolonha. Tem dois livros incluídos no catálogo White Ravens da Biblioteca Internacio-
nal de Munique. Em 2008 entra para a lista de honra do IBBY.15

 Contextualização

Fernando Vilela tem formação e atuação sólidas como artista plástico, e possivel-
mente suas maiores experimentações plásticas aconteçam nesse campo. Na ilustração, ele
parece manter a continuidade de um mesmo tipo de pensamento plástico entre diferentes

15 Fontes: site do autor, disponível em <http://www.artebr.com/fernando/curriculo.html>;


Diccionario de Ilustradores Iberoamericanos, da Fundação SM, disponível online em <http://
www.smdiccionarioilustradores.com/ilustrador.php?b=1&i=23&l=V&p=&s=> acesso em 14 jan.
2014.

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livros, como se pode observar em sua produção ao longo dos anos, destacando aqui alguns
exemplos:16

Figuras 47 a 51. (de cima para baixo, esquerda para direita) Ilustração de
Ivan Filho de Boi (2004), capas de Olemac e Melô (2007), Caçada (2012) e Le chemin (2007),
e ilustração de Contêiner (2016).

16 Dos três artistas pesquisados, o site do autor é o mais completo e atualizado, e mostra uma
relação completa de todos os livros ilustrados por ele entre 2004 e 2016, incluindo capas e
ilustrações, onde se pode verificar a continuidade de estilo. Ver em http://www.fernandovilela.
com.br/fernando/livros.html. Acesso em 7 jun 2016.

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Por um lado, essa continuidade funciona como uma identidade visual do artista,
sendo seus livros facilmente reconhecíveis. Por outro lado, ele abre mão de empregar o
estilo como recurso narrativo que se afinize com os diferentes temas das histórias, ainda
que algumas cheguem mesmo a apresentar temáticas semelhantes, como Le Chemin (Au-
trement, 2007) (figura 50) e Lampião & Lancelote. Ao contrário de Angela Lago e Roger
Mello, que experimentam com diferentes técnicas e estilos, Fernando Vilela mantém seu
interesse centrado na pesquisa de uma linguagem mais próxima da gravura. Essa técnica
é particularmente adequada no caso de Lampião e Lancelote, por sua aproximação com
o universo do cordel, tão identificado com a cultura nordestina à qual pertence um dos
protagonistas e em cujo contexto se passa a história.

 Sinopse

Lampião & Lancelote narra um encontro inusitado que atravessa tempo e espaço
geográfico: um cavaleiro medieval e um cangaceiro nordestino se enfrentam, no que para
o primeiro é uma justa e para o segundo um duelo. Mesclando as linguagens do cordel,
com sua rima e improviso, e da novela de cavalaria, com seu léxico medieval, Fernando Vi-
lela conta sobre o encontro de Lampião e Lancelote, depois que a feiticeira Morgana ma-
gicamente transporta este último para o Nordeste brasileiro. Os protagonistas disputam
quem faz o melhor repente e se enfrentam numa batalha, que termina transformando-se
em um grande baile. É um dos livros mais premiados do Brasil, informação destacada na
cinta que envolve a segunda edição (figura 25), e grande parte deste sucesso se deve ao
projeto gráfico e produção extremamente bem cuidados, mencionados no texto de divul-
gação da editora Cosac Naify:

O que poderia acontecer se o nosso famoso cangaceiro do sertão nordestino se encontrasse


com um dos cavaleiros medievais da Távola Redonda do Rei Arthur? Este encontro mais
do que inusitado fez com que o ilustrador e autor Fernando Vilela compusesse uma obra
extremamente original, mesclando linguagens diversas: em verso, na sextilha do cordel
sertanejo, e em prosa, no tom das narrativas épicas da cultura medieval; em carimbo e
xilogravura. O confronto entre Lampião & Lancelote se estende nas cores especiais que vêm
preencher as páginas: o prata e o cobre, em contraste com o negro, compondo imagens de
uma beleza plástica deslumbrante. O livro ainda traz um glossário de termos e um texto
explicativo sobre as referências de Vilela para desenvolver esta obra grandiosa, no tamanho

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e no talento. O resultado, como diz Braulio Tavares no texto de quarta capa, “é uma aventura
visual e poética à altura das duas culturas que a inspiraram”.17

O texto do catálogo White Ravens tenta explicar para o público estrangeiro certas
particularidades da cultura brasileira:

Este livro é escrito em forma de cordel, uma narrativa em verso que constitui um gênero
importante da cultura popular brasileira. Nele, o autor arquiteta um encontro inusitado entre
o cavaleiro medieval Lancelote e o lendário cangaceiro (bandido) Lampião. Eles competem
em um combate verbal que evoca suas diferentes épocas, seus hábitos, o imaginário da
literatura medieval e a linguagem e ambiente típicos do norte do Brasil. O resultado é uma
história verdadeiramente original, em cada passagem e cada pincelada. As ilustrações muito
expressivas em formato paisagem extra-grande contêm numerosas alusões às duas épocas
e culturas diferentes: enquanto o universo de Lancelote é retratado em prata, uma cor que
também foi usada na arte do livro medieval, as ilustrações em xilogravura em cobre, uma
reminiscência da técnica de impressão da literatura de cordel, representam o mundo de
Lampião. Tanto no texto quanto nas imagens, os dois mundos diferentes são fundidos em
um conjunto fascinante.18

 Descrição

Publicado em 2006 pela Cosac Naify, Lampião & Lancelote ganha em 2011 sua 4ª
reimpressão, somando mais de 55 mil exemplares vendidos. Conquista uma quantida-
de expressiva de prêmios (abigraf/abtg, 2008 – 18º Prêmio Fernando Pini de Excelên-
cia Gráfica. Categoria: livros infantis; cbl, 2006. 48º Prêmio Jabuti, Melhor livro infantil,

17 O texto esteve disponível no site da editora Cosac Naify até 2016, em http://www.cosacnaify.
com.br. Com o encerramento das atividades da editora neste ano, o site foi retirado do ar.
18 “This book is written in the form of a »cordel« text, a verse narrative that constitutes an important
genre of popular Brazilian culture. In it, the author crafts an unusual encounter between the medieval
knight Lancelot and the legendary »cangaceiro« (bandit) Lampião. They compete in a verbal combat
that evokes their different times, their habits, the imaginary of medieval literature, and the typical
language and setting of northern Brazil. The result is a truly original story in each passage and every
brushstroke. The very expressive illustrations in extra-large landscape format contain numerous
allusions to the two different epochs and cultures: Whereas Lancelot’s universe is depicted in silver, a
colour that was also used in medieval book art, the woodcut-like illustrations in copper, reminiscent
of the printing technique of »cordel« literature, represent Lampião’s world. Both in the text and the
pictures, the two different worlds are merged into a fascinating whole. Keywords: Popular culture
– Middle Ages – Poetry – Fight”. Disponível online em http://www.childrenslibrary.org/servlet/
WhiteRavens?title=Portuguese&where=language+like+’%25Portuguese%25’. Acesso em 15 jan. 2015

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Melhor ilustração de livro infantil ou juvenil e Capa (2º lugar); Feira de Bolonha, 2007
– Prêmio Bologna Ragazzi, Novos horizontes menção honrosa; FNLIJ, 2007 – Escritor
revelação, Melhor ilustração, Melhor livro de poesia e Melhor projeto editorial; IBBY, 2007
– Catálogo White Ravens, Honour list – ilustrador) e é selecionado nos programas PNBE
2008 e Lendo e Aprendendo 2007. É também adaptado para o teatro e encenado no teatro
SESI-SP em 2013, com dramaturgia de Braulio Tavares, direção de Daniela Dubois e mú-
sicas de Zeca Baleiro.
O livro é grande, de formato horizontal, medindo 35,5 x 24,8 cm fechado e 71 x 24,8
cm quando aberto. Encadernado em capa dura, a capa é impressa em preto e hot stamping
prata e cobre, com acabamento em laminação fosca. Na composição da capa se destacam
as metades dos rostos dos cavaleiros em plano detalhe. À esquerda, em hot stamping prata,
aparece de perfil parte do elmo medieval de Lancelote. À direita, em hot stamping cobre,
aparece parte do rosto de Lampião em quase perfil, identificado pelo chapéu de cangaceiro
e óculos redondos característicos. No espaço central, entre os dois, o título está disposto na
vertical, correndo do pé para o topo do livro, com o nome Lancelote em prata e Lampião
&m cobre. O nome do autor aparece vazado em branco na horizontal, centralizado sob
o título, compondo com ele um conjunto em forma de “T” invertido. Todas as palavras
são compostas em fonte19 Vendetta, caixa alta, sendo o nome do autor em corpo menor
do que o título. A lombada tem largura de 1 cm, suficiente para acomodar título, nome do
autor e nome da editora em tamanho confortável para leitura, correndo da cabeça para o
pé do livro, destacando-se todos em preto sobre um fundo prata, que se prolonga a partir
do elmo de Lancelote na capa.
Na quarta capa aparece uma composição semelhante à capa, mostrando as metades
laterais das cabeças dos cavaleiros que ficaram fora do quadro da capa, com Lampião à
esquerda e Lancelote à direita, em continuidade com a capa.20 Entre os dois está disposto

19 Com o uso dos computadores pessoais, o termo “fonte” se popularizou como abreviação de
“fontes tipográficas”, designando um tipo de desenho das letras do alfabeto (e também algarismos,
sinais de pontuação, sinais ortográficos). Fonte vem do latim foundere (fundir). Antes da era
digital, fundir era a técnica usada para fazer tipos de metal para impressão (Fernandes, 2003).
20 Por vezes, a continuidade entre capa e quarta capa é explorada em displays nas livrarias. No
caso de Lampião & Lancelote, seria possível formar uma linha contínua dispondo frente e verso
dos livros em sequência e, na junção deles, se veria os rostos completos dos dois cavaleiros.

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Figura 52. Capa aberta de Lampião & Lancelote.

o texto de quarta capa, em fonte Vendetta vazada em branco sobre o fundo preto, justifi-
cado em 17 linhas que formam um bloco de texto aproximadamente quadrado. A 1 cm de
distância da margem inferior aparece o código de barras, dentro de um retângulo branco
de cantos arredondados. As guardas são impressas em preto sobre papel offset, simulando
uma textura que sugere veios de madeira. No frontispício, o nome do autor e o título são
compostos em Vendetta, caixa alta, corpo maior no título, numa linha diagonal que vai do
lado inferior esquerdo em direção ao lado superior direito da página. O nome da editora
está entre o nome do autor e o título, disposto na direção transversal.
O miolo é formado por 52 páginas, impresso em 3/3 cores (preto, prata e cobre)
sobre papel couché fosco 200g/m2. Todas as ilustrações são sangradas21 em página dupla
e contêm uma área chapada onde o texto é aplicado. As páginas 36 e 39 têm folha dupla,
dobrada ao meio, e quando abertas formam um painel de 142 cm de largura, onde aparece
a cena do auge do confronto entre os dois grupos liderados por Lampião & Lancelote. A
história se divide em três partes: a apresentação dos personagens, a travessia de Lancelote
e a batalha. No final do livro, são explicadas as escolhas do autor para marcar essa divisão
por meio de diferentes estilos textuais:

Nas falas do cangaceiro, Fernando usou a métrica mais tradicional do cordel, a sextilha
heptossilábica [...]. Já nas falas do cavaleiro, foi empregada a sextilha, [...] consagrada nos
versos escritos por José Costa Leite. Por fim, para a travessia de Lancelote, Vilela apropriou-
se dos termos e estrutura de sentenças das novelas de cavalaria. (p. 51)

21 Uma área de impressão sangrada chega até o limite da borda da página, extrapolando o
corte do papel (Fernandes, 2003, p. 247).

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As três cores usadas (preto, prata e cobre) se combinam em três variações: preto e
prata, preto e cobre ou preto, prata e cobre. As ilustrações são feitas com uma técnica de
carimbos de borracha entalhada, com efeito semelhante à xilogravura. Assim, nota-se ao
longo do livro a repetição de vários elementos, como grafismos e ornamentos ou gado
e plantas. A textura da borracha dos carimbos aparece nas figuras, destacando-se so-
bre fundos lisos em cores chapadas em todas as ilustrações. Em algumas ilustrações que
mostram o chão do sertão, há aplicação da mesma textura de veios de madeira presente
nas guardas. As formas são predominantemente angulosas, pontiagudas, de acordo com
as possibilidades oferecidas pela técnica utilizada. Em poucas cenas aparecem figuras
inteiras, sendo mais frequente que apareçam partes delas, muitas vezes repetidas. Quase
nunca há traços de contorno, exceto quando as figuras se destacam em branco sobre um
fundo de cor; nesses casos seu contorno é traçado em linhas pretas, predominantemente
retas, grossas e com textura de borracha. A anatomia dos personagens humanos e ani-
mais é bastante esquemática, traçada com economia de detalhes, como de resto todos
os demais elementos (vegetação, paisagens, construções). A perspectiva é praticamente
inexistente, a linha do horizonte aparece claramente em apenas uma imagem, estando
sugerida em poucas outras.
Depois que a história termina, uma página dupla traz do lado esquerdo uma ilus-
tração com galhos brancos vazados sobre fundo preto chapado, e do lado direito inferior
a dedicatória, em fonte Vendetta vazada em branco. A página dupla seguinte é branca,
com informações sobre o livro: à esquerda um glossário e à direita dados sobre o autor,
o texto e as ilustrações. Na parte inferior da página esquerda, preenchendo o espaço
vazio, há uma vinheta que reproduz em escala reduzida uma das ilustrações do miolo.
Na página direita, aparecem dispostas em linha horizontal quatro reproduções de capas
de cordéis e duas pinturas antigas de cavaleiros, estando o conjunto aproximadamente
centralizado na altura da página. A última página traz informações técnicas (referências
bibliográficas e de pesquisa iconográfica, prêmios, créditos, ficha catalográfica, dados da
editora e colofão22).

22 Pequeno texto aplicado geralmente no final do livro, indicando a autoria dos serviços
gráficos e dados da impressão (Fernandes, 2003, p. 235).

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 Análise

Lampião é um personagem histórico controverso, sendo considerado bandido ou


herói por diferentes grupos. Em torno de sua figura e seus feitos, forma-se todo um ima-
ginário popular. Lancelote é um personagem mítico também controverso. Um dos Cava-
leiros da Távola Redonda na lendária corte do Rei Arthur, é o melhor amigo do rei até que
seu adultério com a Rainha Guinevere é descoberto, causando a ruína do reino. Fernando
Vilela faz com que Lampião e Lancelote se enfrentem em igualdade de condições, dese-
nhando os dois personagens em posição e tamanho de equivalente destaque ao longo do
livro, o que sinaliza um equilíbrio de status ou poder entre eles (códigos de posição, tama-
nho e repetição diminutiva de Moebius, 1990). Ao lado de elementos da cultura medieval
presentes na tradição europeia, o autor apresenta elementos importantes da cultura nor-
destina em geral, como cordéis, desafios de repente, festas, danças, música, o ecossistema
da caatinga; e dos cangaceiros em particular, como vestimentas, artesanato, armas, rela-
ções sociais e afetivas. Sem sinal de exotismo ou paternalização, Fernando Vilela mostra
como o enfrentamento entre as duas tradições termina em integração.
Para contar visualmente a história, Vilela emprega referências europeias e brasilei-
ras, incorporando estilos das duas tradições (Oliveira, 2008 e Nodelman, 1989). As ilu-
minuras medievais são uma das referências europeias usadas pelo artista, assim como
pinturas renascentistas, armas e armaduras da época (figuras 54 e 55). Dentre as fontes
brasileiras, estão registros fotográficos históricos que inspiram a indumentária e o univer-
so do cangaço de Lampião e seu bando, e cenas de filmes como Deus e o diabo na terra do
Sol (1936-64), de Glauber Rocha.
A associação entre a cultura popular nordestina e a cultura medieval europeia, base
da história criada por Fernando Vilela, está no cerne do Movimento Armorial, liderado
por Ariano Suassuna nos anos 1970. Integrado por artistas com atuação em áreas variadas,
como literatura, teatro, música, cinema, artes plásticas, o Armorial defende uma arte liga-
da às raízes populares da cultura brasileira, e que seja ao mesmo tempo erudita e universal.
No Manifesto Armorial, lançado em 1974, Suassuna declara:

A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o
espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel),

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Figura 53 (alto). Cordéis.

Figura 54 (acima). Simine Martini,


Guidoriccio da Fogliano.

Figura 55 (ao lado). Paolo Uccello,


Batalha de São Romano.

com a música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus “cantares”, e com a Xilogravura
que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares
com esse mesmo Romanceiro relacionados (Suassuna, 1974, p.7).

É interessante assinalar que, tendo desde muito jovem demonstrado pendor para
várias formas de expressão artística, Suassuna opta por concentrar-se na escrita, sem no
entanto abandonar por completo o desenho, como observa Carlos Newton Júnior:

Um dos aspectos mais interessantes e originais do extenso romance que Ariano Suassuna vem
escrevendo desde 1958 – e, ao que parece, dos menos salientados pela crítica – é a presença
das gravuras que se intercalam ao texto. Criadas pelo próprio autor, as gravuras não são

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simples ilustrações, feitas a posteriori, que pudessem vir a ser dispensadas, em determinada
edição da obra. Elas complementam o sentido do texto, enriquecendo-o, aproximando o
romance do ideal de integração das artes, próprio da estética armorial. (1999, p. 113)

Outros exemplos dessa integração entre escrita e desenho citados por Newton Jú-
nior são dois álbuns de iluminogravuras confeccionados por Suassuna nos anos 1980. A
descrição se aproxima muito daquela dos livros ilustrados, onde acontece a integração das
artes da palavra e da imagem. Nota-se, assim, uma aproximação entre Lampião & Lan-
celote e o Movimento Armorial por mais de uma via. Além disso, no Armorial notam-se
certas influências de Gilberto Freyre, como a concepção de raça e o interesse pela cultura
popular, e também uma ligação com as ideias modernistas.23
Se em Fernando Vilela não se nota um procedimento antropofágico tão intenso
como em Angela Lago e Roger Mello, a aproximação com aspectos importantes do Movi-
mento Armorial inscrevem Lampião & Lancelote no campo de influência do modernismo.
A referência mais importante do livro, bem evidente nas ilustrações, são as xilogravuras dos
cordéis brasileiros, muito populares no Nordeste (figura 53) e igualmente importantes no
Movimento Armorial. O artista emprega uma técnica semelhante à xilogravura, entalhando
blocos de borracha que formam matrizes móveis independentes e funcionam como carim-
bos. Essa técnica favorece a criação de formas simples e estilizadas, com um estilo despojado
e algo rústico, que se afina muito bem com o ambiente agreste da história. A associação
entre técnica e estilo é muito evidente no caso dos cordéis, mencionados expressamente por
Fernando Vilela como fonte de inspiração, que remetem diretamente ao universo nordesti-
no onde acontecem os principais momentos da história. Camargo (1995, p. 41) lembra que
“características formais frequentemente estão associadas a preferências temáticas”, e Nodel-
man explica que, nas ilustrações, “Suas várias estruturas e cores, suas várias linhas e formas
e meios e, acima de tudo, seu estilo, todos têm o potencial de expressar o sentido e o estado
de espírito de uma história.” (1989, p. 98)
Além dessa referência da cultura popular, vale lembrar o uso da xilogravura na arte
moderna, que remete aos expressionistas da Die Brücke (A Ponte). Os quatro artistas –

23 Suassuna é considerado, ao lado de João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, Guimarães
Rosa, Lygia Fagundes Teles, Mário Quintana, um integrante do que alguns críticos identificam
como a geração de 45 do Modernismo.

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Ernst Ludwig Kirchner, Erich Heckel, Max Pechstein e Karl Schmidt-Rottluff – que fun-
dam o grupo em 1905 “não tinham experiência com a pintura mas viram nela uma forma
de libertação, uma maneira de expressar certa mensagem social” (Denvir, 1977, p. 28), e
encontram na xilogravura um meio mais barato e imediato do que a pintura para expres-
sar seus interesses revolucionários. As formas simples e deformadas, com forte linha de
contorno em composição sem uso de perspectiva, vão contribuir para formar um voca-
bulário estético reduzido ao essencial, que realça o impacto e a intensidade das imagens.
No Brasil, a gravura moderna ganha força na década de 1920 com as obras de Lasar
Segall e, posteriormente, de Oswaldo Goeldi e de Lívio Abramo. Certas obras deste últi-
mo, em especial, apontam caminhos que podemos reconhecer em algumas das ilustrações
de Fernando Vilela (figuras 57, 58 e 59). As ilustrações xilografadas são responsáveis pelo
despertar da vocação artística de Abramo, posteriormente revelada quando o artista visita
uma exposição de gravuras dos expressionistas alemães em São Paulo:

Em verdade, o gosto pela gravura começou a despontar em mim quando, ainda estudante, em
casa de meus pais, eu admirava as vinhetas gravadas em madeira que ilustravam os poemas
de um famoso poeta italiano, e de autoria de um gravador de nome De Károlis.
Esse foi o despertar de uma vocação – a exposição dos grandes gravadores expressionistas
alemães foi a revelação.24

Seu depoimento pessoal evidencia a importância da relação entre gravura e ilustra-


ção, como sublinha Marcus Lontra:

Ao contrário dos pintores, os artistas gravadores não abandonaram suas relações com a
ilustração. A grande maioria das imagens produzidas pela gravura tem como tema o homem,
o seu tempo, a sua luta, a sua vida. Por essa ligação com a política e com a literatura, a gravura
sempre trabalhou como uma espécie de síntese entre a palavra e a imagem. Num país sem
tradição visual como o Brasil, a gravura foi e é de extrema importância: ela aproxima a
literatura das artes plásticas.25

24 Lívio Abramo. Catálogo das Artes. Disponível online em http://www.catalogodasartes.com.br/


Detalhar_Biografia_Artista.asp?idArtistaBiografia=24. Acesso em 21 abr. 2016.
25 A gravura no Brasil no século XX. Disponível online em http://www.opapeldaarte.com.
br/historia-da-gravura-no-brasil/. Acesso em 9 fev. 2016.

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Figura 56. Fayga Ostrower, xilogravura.

Figura 61. (abaixo) Marcel Duchamp.

Figura 57, 58 e 59. Lívio Abramo, xilogravura


(alto e alto à direita) e guache (acima).

Figura 60. Marcelo Grassman, xilogravura.

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É possível estender as associações entre ilustrações de Fernando Vilela e xilogravuras
de outros artistas, como a composição abstrata de Fayga Ostrower (figura 56), ou as figu-
ras fantásticas de Marcelo Grassmann (figura 60).
Os movimentos artísticos com que as ilustrações apresentam semelhanças (Oliveira,
2008) vão além das ilustrações expressionistas e das xilogravuras dos cordéis. Em certas
cenas, Vilela representa o movimento por meio da superimposição de imagens de uma
maneira que faz pensar no quadro Nu descendent un escalier nº2 (figura 61), onde Marcel
Duchamp combina elementos do cubismo e do futurismo, inspirando-se nas fotografias
estroboscópicas de movimento e nas fotografias stop-motion de Étienne-Jules Maray e
Eadweard Muybridge:

Meu objetivo era a representação estática do movimento, uma composição estática com
indicações das várias posições assumidas por uma forma em movimento – sem nenhuma
pretensão de produzir efeitos cinematográficos por meio da pintura. (Duchamp in Brooker
& Thacke, 2005, p. 102)

O código cromático, combinando duas tintas metálicas ao preto, tem funções intra-
textuais e extra-textuais marcantes na narrativa (Moebius, 1990). As cores cobre e prata
funcionam como um código de identificação para os personagens e seus contextos histó-
ricos de origem:

A primeira [cobre] evoca as balas, anéis, moedas e roupas de Lampião. Os adornos em


metal das armas, bolsas, chapéus, calçados etc. eram um trabalho de alta sofisticação
artística dos cangaceiros de Lampião. Já a cor prata lembra a armadura, a espada e a lança
do cavaleiro. As cores metálicas e brilhantes eram muito usadas nas iluminuras medievais,
pois representavam o espaço divino refletido. 26

As cores metálicas são aplicadas sem gradações, em grandes planos chapados ou


pontuando detalhes das figuras traçadas em preto. Esse modo de utilização maximiza o
efeito do contraste claro/escuro, que por sua vez reforça o contraste entre os dois univer-
sos que se confrontam (Oliveira, 2008). Aplicadas em detalhes de armas e vestimentas, as
superfícies lisas das tintas metálicas contrastam com os traços preços texturizados, confe-
rindo um brilho metálico especial a estes objetos. Além de importantes na caracterização

26 Extraído do texto explicativo da página 51 de Lampião & Lancelote (2006).

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dos personagens, os objetos de formas pontiagudas com brilho metálico funcionam como
vetores que direcionam a leitura visual (Kress & van Leeuwen, 2006).
As formas, angulosas, em traços grossos e texturizados, se prestam bastante bem
para transmitir a sensação de enfrentamento em um ambiente árido. As linhas se mul-
tiplicam em ângulos agudos, sugerindo risco de vida, conforme Moebius (1990): “linhas
irregulares ou que correm em ângulos agudos entre si geralmente acompanham emoções
problemáticas ou perigo de vida”. As figuras são apenas sugeridas em traços esquemáticos,
deixando lacunas formais para serem preenchidas pela imaginação do leitor. Em muitas
das ilustrações, o enquadramento muito próximo deixa grandes partes das figuras fora
do quadro, convidando o leitor a completar as cenas imaginariamente (Joly, 2008). No
extremo oposto, há outras cenas em plano extremamente aberto, mostrando as figuras pe-
quenas, perdidas na distância (código de posição e tamanho, Moebius, 1990). Na verdade,
a alternância cinematográfica entre planos fechados e abertos estabelece uma dinâmica
narrativa que desloca o leitor para dentro e fora da cena em transições surpreendentes.27
Uma breve descrição das primeiras dez páginas duplas fornece um bom exemplo dessas
variações e seus efeitos dramáticos de aproximação e afastamento, estabelecendo o ritmo
do livro como arte sequencial (Oliveira, 2008):

1. Sobre fachadas medievais em plano médio, destaca-se Lancelote montado em seu


cavalo, em pleno salto, na extremidade direita da página dupla
2. Ainda em plano médio, a figura de Lancelote é esboçada em traços nervosos no cen-
tro da cena, irradiando um movimento de lanças e construções que parecem voar
pelos ares, despedaçadas
3. À esquerda, um close no elmo de Lancelote mostra pedaços de fitas esvoaçantes em
torno de seus ombros, enquanto sua espada desembainhada rasga diagonalmente a
página direita
4. Corta para o sertão nordestino: em plano conjunto, um vaqueiro em silhueta con-
duz um grande rebanho

27 Ver as obras fundamentais de Jacques Aumont, A Estética do filme (1995) e Jaques Aumont e
Michel Marie, Dicionário teórico e crítico de cinema (2003), p. 230-231.

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Figura 62. Storyboard
de Lampião & Lancelote,
ilustrações 1 a 6.

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Figura 63. Storyboard
de Lampião & Lancelote,
ilustrações 7 a 10.

5. Em primeiro plano, galhos de mandacaru ocupando a parte inferior da página dei-


xam entrever um tropel de cavaleiros. Na parte superior pode-se vislumbrar apenas
as patas dos cavalos movendo-se para o lado esquerdo
6. Na extremidade direita da página dupla, aparece em plano detalhe uma parte do
rosto de Lampião, caracterizado pelos óculos redondos e chapéu adornado. O cano
de seu rifle aponta para a esquerda, onde explode o clarão de um tiro
7. Em plano geral, Lancelote parte da esquerda galopando em direção a um castelo distante
8. O enquadramento se aproxima, mostrando o perfil de Lancelote e seu cavalo em
plano médio

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Figura 64. Página painel de Lampião & Lancelote.

9. Em primeiríssimo plano, galhos de mandacaru na parte de baixo deixam entrever,


no alto, as pernas dos cangaceiros do bando de Lampião
10. Um plano geral do sertão mostra as silhuetas de uma árvore sem folhas e de um
cavaleiro que se afasta em direção ao horizonte, ambas projetando sombras duras e
alongadas

Na maior parte das cenas, aparecem apenas os dois protagonistas, ora individual-
mente, ora se enfrentando; mas em outras cenas aparecem coletivamente os integrantes dos
dois bandos opostos. Nestes casos, nota-se o funcionamento do código de repetição dimi-
nutiva (Moebius, 1990): quanto maior a repetição, menor o controle da situação exercido
pelo personagem. A falta de controle se encaminha para o caos especialmente nas cenas
de batalha, cujo exemplo máximo é aquela apresentada na página dupla que se desdobra
em um painel (figura 64): armas, elmos e chapéus se repetem exaustivamente por meio
da aplicação dos carimbos. A multiplicação de vetores e a ausência de elementos salientes
(Kress & van Leeuwen, 2006) nessa página/painel de grande extensão horizontal (142 x 24,8
cm) configura antes uma padronagem, faltando à cena elementos que construam a tensão
dramática correspondente a uma cena épica que marca uma virada na narrativa.
Lampião & Lancelote é um livro que causa um impacto inicial marcante pela produ-
ção gráfica, com seu tamanho grande e concepção gráfica da capa – não à toa, ganhou o
prêmio Fernando Pini de Excelência Gráfica. O forte contraste de cor e textura, com im-
pressão em hot stamping prata e cobre sobre fundo preto fosco, e a encadernação em capa
dura reforçam a percepção de um produto luxuoso e bem cuidado, numa época em que
o padrão usual eram livros em brochura, sem orelhas, com acabamento em plastificação
brilhante. Quando de seu lançamento, o uso de hot stamping e tintas metálicas não era tão

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simples do ponto de vista técnico, dado que se confirma no agradecimento especial do
autor endereçado “a Sérgio Sister pela pesquisa de tintas reflexivas” (Vilela, 2006, p. 52).
Também a encadernação em capa dura apenas começava a ser viável, principalmente por
meio da impressão na China, como é o caso deste livro.
A resposta visceral do leitor (Norman, 2008) é orientada positivamente pelo design
do livro, e o nível seguinte, da resposta comportamental, é também positivo, considerando
a facilidade de manuseio do livro conforme códigos previamente aprendidos de modo
espontâneo. À facilidade de uso soma-se uma surpresa que o leitor descobre aproximada-
mente no meio do livro: as duas páginas espelhadas que se desdobram na horizontal for-
mando um grande painel medindo 142 x 24,8 cm, onde se desenrola a cena de um imenso
campo de batalha. Há também um interessante contraste sensorial entre as texturas su-
geridas pelas tintas metálicas, aplicadas quase sempre em extensas áreas chapadas, lisas;
a rugosidade das figuras carimbadas em preto por matrizes de borracha; a angulosidade
dos entalhes nessas matrizes; a textura natural de veios de madeira aplicada em algumas
das áreas de cor metálica. Percebe-se que Lampião & Lancelote é um livro feito para im-
pressionar, e a extensa relação de prêmios conquistados e a quantidade de exemplares
vendidos indica que alcançou esse propósito. No entanto, a grandiosidade da produção
gráfica como que esmaga a singeleza da história inspirada no cordel. Esta pesquisa se per-
gunta, assim, que tipo de experiência estética resulta desse desnível entre linguagens, e se
a resposta reflexiva do leitor chega a alcançar níveis mais elevados.

 Extras

Lampião & Lancelote tem adaptação para o teatro por Braulio Tavares. O musical,
com direção de Debora Dubois e trilha sonora de Zeca Baleiro, estréia com grande su-
cesso no Teatro do Sesi, em São Paulo, em 2013, sendo reencenado em 2014 em diferentes
cidades do Brasil como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador,
Recife, retornando em 2015 ao Teatro Sesi-sp. O espetáculo ganha os prêmios de melhor
ator, figurino, cenário, direção e espetáculo – Prêmio Bibi Ferreira; melhor ator – Prêmio
Arte Qualidade Brasil; e melhor espetáculo – Prêmio da Associação Paulista dos Críticos

de Arte (apea), além de ser indicado ao prêmio femsa Coca-Cola em 11 categorias.

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀205
4.3฀ Roger฀Mello:฀Zubair e os labirintos

Figuras 65 e 66. Capa aberta


de Zubair e os labirintos.

São Paulo: Cia das Letras, 2007


16,4 x 27 cm, 32 páginas
Brochura com orelha tripla
Capa em 4/2 cores com laminação fosca
Miolo em 2/2 cores sobre papel offset

Figuras 67 e 68. Primeira capa e orelha dupla de Zubair e os labirintos.

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀206
 Biografia

Roger Mello nasce em Brasília, em 1965. Formado em Desenho Industrial e Pro-


gramação Visual pela Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro – ESDI/UERJ, é ilustrador, autor de livros infantis, artista plástico e
dramaturgo. No início de sua carreira, trabalha ao lado de Ziraldo, na Zappin, e também
se dedica ao desenho animado: cursos no SENAC, na UERJ e no grupo Animation, com a
equipe do National Film Board, do Canadá. Na televisão, faz as vinhetas de encerramento
da novela Vamp, para a TV Globo, além de diversas participações na TV Educativa do Rio
de Janeiro, nos programas Canta Conto e Um salto para o futuro. Em 2000, seu livro Maria
Teresa é destaque na estreia da série Livros Animados, do canal Futura.
Ganha diversos prêmios nacionais e internacionais por seus trabalhos como ilustra-
dor e escritor de livros infanto-juvenis, sendo o mais importante deles o Hans Christian
Andersen, do IBBY, na categoria ilustração, em 2014. Recebe o prêmio suíço Espace-enfants
em 2002 com seu livro Meninos do mangue. Conquista nove prêmios Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro, nas categorias Literatura Infanto-juvenil e Ilustração. Com vários tra-
balhos premiados, torna-se hors-concours dos prêmios da FNLIJ. Antes de receber o Hans
Christian Andersen em 2014, é indicado pela FNLIJ para concorrer ao prêmio em 2010 e
2012, sendo o primeiro brasileiro a figurar entre os cinco finalistas, nas duas ocasiões.
Juntamente com outros autores brasileiros, tem sua obra exposta no Escale Brésil
do Salão de Montreuil, na França, em 2005. No mesmo ano, as ilustrações do livro Nau
Catarineta são exibidas em mostra itinerante pelas bibliotecas de Paris. Três de seus
livros (A flor do lado de lá, Todo cuidado é pouco! e Meninos do mangue) constam da
“Lista de livros que toda criança deve ler antes de virar adulto”, publicada pela Folha
de São Paulo em 2007. Uma exposição individual de seus livros, intitulada O fantástico
mundo de cores do ilustrador brasileiro Roger Mello,28 é exibida em 2011 e 2012 na IJB,
em Munique, com curadoria de Jochen Weber, Claudia Mendes e da FNLIJ. Ao tér-

28 No original: Das Fantastische Farbenreich des brasilianischen illustrators Roger Mello.

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mino da exibição em Munique, é transformada em exposição itinerante, percorrendo
várias cidades na Europa, Japão e Coreia do Sul.29

 Contextualização

Examinando as trajetórias pessoal e profissional de Roger Mello, despontam mui-


tos pontos de convergência com o modernismo, a começar por sua cidade natal, Brasília,
erguida sob inspiração de ideais modernistas. Nascido em 1965, logo no início da implan-
tação do regime militar no Brasil, Mello cresce em cenário de contradições: em meio ao si-
lêncio imposto pela censura, lê-se visualmente na paisagem de Brasília os ideais expressos
pela arquitetura de Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Mais tarde, essa experiência de mundo
é expressa no livro de imagens A pipa (1997).

A gente não podia falar, não entendia por que as pessoas foram presas. Eu era criança na
época, e falavam em leituras que eram proibidas e tal. [...] E aí o que aconteceu? Acho
interessante é que na obra – principalmente a obra de arte, a própria arquitetura do
Niemeyer, de diversos artistas – os conceitos do Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, enfim,
aquilo estava encruado. Então nós viramos um pouco, nessa fase silenciosa, uma cambada
de leitores de imagens. (Mello in Kikuchi, 2003, p. 30)

Tendo iniciado sua carreira como ilustrador no final dos anos 1980, Roger Mello faz
sua estreia como autor de dupla vocação em 1990, lançando o livro de imagens A flor do
lado de lá, a que se seguem O gato Viriato, em 1993, e O próximo dinossauro, em 1994. Esses
livros trazem uma linguagem visual de fácil aceitação pelo público leitor, principalmente
pelos mediadores adultos sem formação específica, com repertório visual marcado por
gosto mais convencional.
No entanto, já em 1996, Mello faz uma mudança de estilo definitiva, lançando Ma-
ria Teresa. O livro conta as aventuras vividas pela protagonista, uma carranca protetora
de um barco que navega pelo rio São Francisco. Concebido como um projeto pessoal, o
livro marca uma transição na linguagem visual do artista. Mello já é àquela altura um au-

29 Fontes: entrevista por telefone a Claudia Mendes, em 01/02/2014; Diccionario de Ilustradores


Iberoamericanos, da Fundação SM, disponível online em http://www.smdiccionarioilustradores.
com/ilustrador.php?b=1&i=39&l=M&p=&s=; e site do autor, disponível online em http://www.
capaduraemcingapura.blogspot.com.br, acesso em 30 jan. 2014.

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀208
Figuras 69, 70 e 71. Ilustrações de
A flor do lado de lá (no alto à esquerda),
O próximo dinossauro (à esquerda) e
capa de Maria Teresa (acima).

tor reconhecido pela crítica e pelo mercado, sendo premiado diversas vezes e alcançando
expressivas tiragens – por exemplo, seu primeiro livro, A flor do lado de lá, é traduzido
para o espanhol, e continua sendo publicada ainda hoje, mais de vinte anos depois de seu
lançamento.
Seu domínio das técnicas de representação tradicionais, tais como consagradas pelo
cânone renascentista – luz e sombra, perspectiva, anatomia – garantem-lhe pronta acei-
tação e reconhecimento, estabelecendo eficiente contrato de comunicação com diferentes
públicos – editores, críticos, pais, professores, crianças. Artista de temperamento inquieto,
como bem assinala Ziraldo texto de quarta capa de Maria Teresa, Mello não se acomoda
ao estilo consagrado e expande suas pesquisas visuais por outros estilos artísticos, de certo
modo atualizando o percurso dos modernistas brasileiros ao referenciar-se nas vanguar-
das históricas e na cultura popular nacional.
Em Maria Teresa, chama a atenção, além da temática regionalista da cultura popular
brasileira, o repertório empregado na narrativa visual. Roger Mello aproxima-se da esté-
tica da cultura popular, além de fazer referência a obras de arte e empregar elementos do
vocabulário visual de artistas como, por exemplo, Tarsila do Amaral, nas ondas sinuosas
ou na palheta de cores; ou nas bandeirinhas e casinhas multicoloridas de Volpi.
Em A pipa, há também referências que remetem, por exemplo, além das cores, for-
mas e paisagens de Tarsila do Amaral, ao fauvismo ou às esculturas de Victor Brecheret:

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Figuras 72 e 73. Ilustrações de A pipa.

Figuras 74 e 75. Marc Chagall, O circo, e Cícero Dias, Eu vi o mundo... ele começava no Recife.

Figuras 76 e 77. Capa de Todo Cuidado é Pouco e ilustração de Cavalhadas de Pirenópolis.

Figuras 78 e 79. Ilustrações de O gato Viriato e Viriato e o Leão.

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A pipa lembra mesmo Miró, e também Matisse. Mas A pipa é uma coisa que me lembra muito
Brasília, aqueles espaços amplos. Acho que alguns artistas, principalmente nas esculturas de
Brasília, foram influenciados por essa arte fauvista, ou essa estilização da forma figurativa
que vem de Picasso e também de Matisse, e pelo modernismo, da maneira como ele ficou
presente. Não pensava [intencionalmente] nem em Miró, nem em Matisse, mas na hora
em que estava fazendo eu pensava: “Isso está parecendo Matisse e Miró”. Mas é um pouco
Brasília – você vê aquela cabecinha sem cara, com aqueles braços assim: tem a ver com a
estátua dos dois candangos, Brecheret talvez, tem alguma coisa sim... Mas era por causa do
livro mesmo, o livro era Brasília. (Mello in Kikuchi, 2003, p. 34)

Em Todo cuidado é pouco, certo clima surrealista evoca não apenas Marc Chagall
como também Cícero Dias (por exemplo, Eu vi o mundo... ele começava no Recife, 1926-29).
Outra das notáveis referências das vanguardas históricas, reprocessadas para a cul-
tura brasileira, pode ser observada na palheta de cores, onde as saturadas cores fauvistas
dialogam com as da arte popular, como por exemplo aquelas empregadas nas estampas
da chita. A perspectiva passa a incorporar simultaneamente vários pontos de vista, como
nas representações medievais, bem evidente em cenas como a quadra de Cavalhadas de
Pirenópolis; e ainda planos vertiginosos, de inspiração cubista, como em Viriato e o Leão.
O contraste entre esse livro, onde o gato assume uma personalidade visual moder-
nista em cenário que beira a abstração geométrica, e seu antecessor O gato Viriato, ainda
da fase naturalista pré-Maria Teresa, evidencia a passagem, bem como a convivência si-
multânea, entre tradicionalismo e vanguarda no cenário contemporâneo do livro ilustra-
do infantil de Mello.

 Sinopse

Zubair e os labirintos é uma história contemporânea, inspirada por um aconteci-


mento real: repositório do legado artístico e cultural de povos milenares, o Museu de
Bagdá é alvejado pelos bombardeios aéreos que atingem aquela cidade durante a guerra
do Iraque, em 2003 – a criação de gerações sem conta é pulverizada em instantes pela bar-
bárie da guerra, ficando exposta a saques e pilhagens. Em meio ao caos, o menino Zubair
resgata um pequeno tesouro entre os escombros, um livro envolto em um tapete, arris-
cando-se em fuga pelos labirintos do mercado até estar a salvo para mergulhar nos treze
labirintos do livro que tem em mãos. Diante de seus olhos, nas páginas do livro desfilam

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀211
enigmas do passado, orgulhosos poderes decaídos, sabedorias milenares esquecidas, con-
flitos sem solução. O final aberto leva o menino a mais uma correria, procurando a saída
no último labirinto perdido.

 Descrição

Publicado pela Companhia das Letrinhas em 2007, Zubair e os labirintos é premiado


pela CBL (49º Prêmio Jabuti, Melhor Livro Infantil 3º lugar) e pela FNLIJ (Melhor Projeto
Editorial, 2008). O livro tem formato vertical e tamanho médio, medindo 16,4 x 27 cm,
encadernado em brochura. A capa, impressa em 4/2 cores (CMYK / preto e verde claro)
com laminação fosca, é formada pelo prolongamento da orelha esquerda, grande, com
quatro dobras formando uma estrutura de rocambole30 que envolve o livro (figuras 76 e
77). O miolo tem 32 páginas impressas em 2/2 cores (preto e laranja) sobre papel offset.
A história é narrada nas três partes internas da capa/orelha e termina com a frase:
“Aqui dentro, o tapete no colo. Desembrulhando uma duas três vezes, o tecido espesso
abraçava um livro em que se lia: Os treze labirintos”. À direita dessa última dobra da orelha
está o miolo do livro, com uma nova capa intitulada “Os treze labirintos”. A lombada fica
do lado direito, sendo o sentido de leitura inverso ao que é convencional no Brasil.
A capa e duas das três abas da orelha trazem ilustrações em técnica mista – pintura
e colagem sobre papel amassado. A colagem é de fragmentos de papel picado, formando
amontoados na parte inferior das imagens, e também no alto, representando explosões de
prédios. Alguns outros pedaços de papel colado mostram grades trabalhadas em arabes-
cos, painéis de azulejos azuis e fachadas de prédios modernos em perspectiva. As cores são
vivas e contrastadas, com predomínio de laranja e verde, além de amarelo, azul e preto e
detalhes em magenta. As figuras são pintadas em cores chapadas, sem sombreado, com
alguns detalhes delineados em preto. A anatomia e arquitetura são bastante esquemáticas,
mais sugerindo do que detalhando os elementos. A perspectiva é evocada pela diminuição

30 Como o nome indica, em impressos dobrados nesse sistema as abas se enrolam como num
rocambole. Luís Seman. Pequeno dicionário ilustrado de termos gráficos (2010), p. 53. Disponível
online em https://issuu.com/luizseman/docs/_em_baixa_-mini__dicionario-v15g. Acesso em 13
mai. 2016.

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dos elementos mais distantes, sem compromisso com ponto de fuga. Não se vê linha do
horizonte.
Na capa, a verticalidade da ilustração é reforçada pela diagramação: o lado esquerdo
é tomado por uma faixa vertical preta com quase 1/3 da largura da capa, que ocupa toda a
sua altura, contendo o título e nome do autor em laranja e verde, respectivamente, com-
postos na vertical. Na parte inferior, aparece o logotipo da editora em verde. A ilustração
sangrada ocupa pouco mais de 2/3 da largura da capa, à direita. A composição mostra o
interior do Museu de Bagdá em tomada levemente alta, onde se destaca em primeiro pla-
no, à direita, a monumental estátua de uma esfinge suméria em cor verde, ocupando toda
a altura da imagem. Uma estante em perspectiva planimétrica está disposta à esquerda,
formando uma faixa vertical oposta à estátua. Uma coleção de objetos – vasos, pratos, pe-
quenas esculturas – repousa em suas quatro prateleiras pretas, que contrastam com o fun-
do azul, a lateral amarela e o chão laranja. Na parte inferior há uma colagem de pequenos
pedaços rasgados de papel impresso em cores variadas, compondo um amontoado que
toma mais de um terço da altura. Outros fragmentos e objetos estão espalhados pelo chão,
que se estende até o alto da cena, formando um corredor delimitado por uma sucessão de
paredes verticais – a primeira em verde claro, a segunda em verde médio, a terceira com
painel em mosaico azul e, mais ao fundo, uma faixa preta indica o final do salão.
Ao abrir a capa (na verdade a primeira dobra da orelha), aparece no lado esquerdo,
em preto sobre fundo verde claro, um bloco de texto justificado, composto em fonte Gill
Sans, com o início da história. Na parte à direita aparece uma ilustração, com as mesmas
cores, técnica e composição verticalizada da capa. Porém, aqui se vê uma cidade destro-
çada por explosões, com o chão em primeiro plano coberto de escombros, onde andam
dois personagens em vestimentas árabes, e mais ao fundo outro personagem em roupas
ocidentais corre de um tanque. No lado esquerdo da imagem vê-se a metade direita da
grande cúpula arredondada de uma mesquita laranja, cortada verticalmente por um poste
escuro. Desenrolando outra aba da orelha, aparece a terceira ilustração mostrando à direi-
ta a outra metade da mesquita e, no lado esquerdo, em posição simétrica à da estátua da
capa, um soldado ocidental verde em primeiro plano, de costas. Na parte inferior a cola-
gem de fragmentos ocupa cerca de 2/5 da altura. Na parte superior se vê, ao centro, uma

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀213
torre em dois tons de azul e, mais ao fundo, construções cercando uma área aberta onde
correm personagens em tamanho reduzido.
Desenrolando a última aba da orelha, aparece o terceiro bloco de texto e, na parte di-
reita, a capa do livro “Os treze labirintos”, com o desenho de um labirinto quadrado de 6,5
cm de lado e sob ele o título manuscrito, ambos em laranja sobre um fundo roxo chapado
(figura 81). A capa se abre para a direita, seguindo o sentido da leitura oriental. No miolo
de 28 páginas numeradas, cada uma mostra um labirinto traçado em preto sobre fundo
laranja, quase todos acompanhados por um texto na página oposta, composto em fonte
Bembo. Na penúltima página aparece o trecho final da história de Zubair, composto em
fonte Gill Sans. A última página traz dados do autor, créditos, ficha catalográfica, dados
da editora e colofão.
Na quarta capa, o texto configura uma composição gráfica em dois blocos em forma
de triângulos equiláteros alinhados no eixo vertical, com vértices apontados para o centro,
onde aparece em tamanho pequeno o desenho de um avião de guerra, com padrão de
camuflagem (figura 80).

 Análise

Zubair e os labirintos conta uma história ficcional ambientada em um cenário real,


geograficamente distante do Brasil, mas próxima da realidade local: assim como Zubair,
muitos meninos brasileiros buscam objetos de valor em meio a destroços, fogem da per-
seguição de polícias e milícias, escondem-se em vielas e labirintos, não conseguem encon-
trar uma orientação para suas vidas (figuras 88 a 91). Assim como Angela Lago em Cena
de rua, aqui Roger Mello não escamoteia os aspectos mais duros da vida do protagonista,
nem tampouco recorre a uma “dramaticidade piegas”, como diz a autora, contando sua
história sem paternalizar o jovem em situação precária, nem retratar com exotismo uma
cultura periférica. A sequência das ilustrações narra expressivamente os acontecimentos: a
cidade bombardeada, o museu destroçado, uma cultura milenar despedaçada pela guerra
contemporânea, as pessoas minúsculas face ao poder bélico.
Para contar visualmente a história, Roger Mello emprega uma interessante técnica
mista, semelhante à que usa em Meninos do mangue, onde fala sobre um grupo de meninos

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀214
Figuras 80 e 81. Quarta capa e capa interna de Zubair e os labirintos.

Figuras 82, 83 e 84
(acima). Páginas de
Zubair e os labirintos.

Figuras 85 e 86 (ao lado).


Capa externa e interna
de Zubair e os labirintos.

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀215
catadores que vivem nos manguezais nordestinos, em situação parecida com a de Zubair.
Prepara uma base colando papel amassado em um suporte, e sobre essa superfície de
textura irregularmente vincada faz desenhos, pinturas e colagem de fragmentos de papel
impresso. Essa colagem transmite muito bem a impressão de fragmentos, cacos, destroços
espalhados caoticamente no cenário da guerra no Iraque onde se passa a história. Remete
também a elementos da realidade brasileira dos catadores e da reciclagem do lixo (figuras
88 e 89). Por fim, a experimentação com formas de representação pouco convencionais o
aproxima do pensamento plástico das vanguardas europeias, antropofagicamente aplica-
do a uma cultura periférica oriental construindo um paralelo com a cultura brasileira das
periferias urbanas.
Assim como em muitos outros livros de Mello, uma temática expressionista ga-
nha traços fauvistas, com formas distorcidas e cores vibrantes. Em sua palheta de cores
predominam o laranja, o amarelo, o verde e tons de azul em saturação máxima, além de
preto e magenta pontuando certos detalhes. Tal tratamento fauvista de cores e formas
indica o aspecto expressionista da composição, mais preocupada em transmitir ao lei-
tor as impressões impactantes da guerra do que em construir uma representação realista.
São cores frequentes na palheta do artista, que remetem a uma sensibilidade cromática
tropical muito presente na arte popular, tão cara ao autor.31 Remetem, assim, a fatores
extra-textuais (Moebius, 1990) como outros livros do autor e artefatos da cultura popular
brasileira (figuras 92 e 93).
Nas relações cromáticas intra-textuais, percebe-se que o laranja do chão do museu
se repete na mesquita, que o amarelo da prateleira com objetos se repete no plano de fun-
do dos prédios, mas principalmente que o verde da esfinge suméria se repete no uniforme
do soldado. Essas duas figuras dominam a cena na capa e na ilustração interna, e além da
cor compartilham a mesma escala ampliada, em primeiro plano, afastadas do cenário de
destruição em segundo plano que contemplam à distância. O soldado aparece de costas,
no lado esquerdo da imagem, com o rosto voltado para a cidade bombardeada, onde
pessoas fogem de explosões. A esfinge aparece de perfil, com os olhos fechados parecendo

31 Entrevista a Claudia Mendes in Singular e plural: Roger Mello e o livro ilustrado (2011), p.
64.

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀216
Figura 87. Ilustração de Zubair
e algumas comparações visuais.

Figuras 88 e 89 (abaixo).
Menino brasileiro catando
latinhas em meio ao lixo.
Meninos em meio ao lixo
em uma favela em Jacarta,
Indonésia.

Figuras 90 e 91 (mais abaixo).


Soldados durante ocupação
militar em favela carioca.
Soldado seguido por meninos
durante a Guerra do Iraque.

Figuras 92 e 93. Cores da chita, tecido muito usado na cultura popular brasileira.

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀217
não querer ver o interior do museu com poucos artefatos remanescentes nas estantes, en-
quanto a maioria deles jaz espatifada pelo chão. Em ambos os casos, esse enquadramento
parece sugerir que as impressões individuais se agigantam e de certa forma se alheiam do
cenário desolador à volta dos personagens (códigos de quadro e de posição e tamanho,
Moebius, 1990). Esse estado de espírito é o mesmo do protagonista Zubair, que não é di-
retamente representado em nenhuma ilustração, mas cuja presença é pressentida nestes
dois cenários.
Os eixos compositivos das duas ilustrações podem ser analisados isoladamente ou
em conjunto, em interessantes combinações (Kress & van Leeuwen, 2006). No eixo ver-
tical, os elementos reforçam a verticalidade das composições. O real, na parte inferior, é
composto por uma massa caótica de fragmentos de papel representando os destroços dos
bombardeios. Na parte superior, o ideal mostra construções e artefatos ainda intactos, ou
pelo menos pouco danificados. Essa composição parece indicar que, em tempos de guer-
ra, apenas a simples ordem material do cotidiano já constitui uma aspiração idealizada.
No eixo horizontal, as duas ilustrações ocupam o mesmo lado externo da capa, estando
separadas pelas dobras que delimitam as orelhas. Assim, é possível combiná-las em três
variações: 1. capa, orelha 1 e orelha 2 separadamente; 2. orelha 1 e orelha 2 juntas; e 3. capa
e orelha 2 juntas.
1. Na capa isolada, as prateleiras com artefatos à esquerda representam o conhecido,
enquanto a esfinge à direita representa o novo. Uma possível interpretação para esta con-
figuração indica que a experiência conhecida de fragmentação e isolamento (diferentes
pequenos objetos dispersos em prateleiras) pode se transformar em uma experiência nova
de integridade abrangente (a esfinge sólida, monumental e seu ponto de vista panorâ-
mico). A orelha 1 isolada mostra uma parte da mesquita como o conhecido à esquerda e,
como o novo à direita, prédios explodindo e pessoas discutindo e correndo; sugerindo que
uma situação conhecida de estabilidade religiosa transforma-se em uma situação nova de
guerra. A orelha 2 isolada mostra à esquerda o soldado e, à direita, um conjunto formado
por prédios explodindo, pessoas correndo e uma parte menor da mesquita; sugerindo que
o poder militar conhecido provoca destruições novas.
2. As orelhas 1 e 2 são separadas por uma dobra que, quando aberta, revela a ilustra-
ção completa, que oferece uma leitura estrutural com uma variação em relação às análises

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀218
anteriores: em vez de assimétrica, essa composição tem como elemento central a mesqui-
ta, funcionando como um mediador entre o soldado e o cenário urbano de guerra. Essa
disposição poderia sugerir que os valores espirituais, atemporais e elevados, fossem os
mais importantes e pudessem permanecer como centro estável a equilibrar os excessos da
guerra.
3. A última variação mostra a capa e a orelha 2 combinadas, em composição cen-
tralizada. No centro, as costas da esfinge e do soldado se tocam formando uma unidade
visual, por terem o mesmo tamanho, cor e traçado. Assim disposta, essa figura lembra
Janus, deus romano de duas caras,32 mediando o conhecido, o museu, e o novo, a guerra.
Outras ilustrações de estilo diferente aparecem no miolo de “Os treze labirintos”, li-
vro interno que se revela ao desenrolar todas as abas da capa. O miolo traz doze labirintos
desenhados em traço preto sobre fundo laranja, e na capa mais um desenhado em laranja
sobre fundo roxo, perfazendo um total de treze. Para cada desenho, Roger Mello busca
referências tão variadas quanto as perspectivas de Escher, tabletes sumérios, meandros de
um cérebro ou impressão digital, caminhos de rato, circuitos digitais, jogos de tabuleiro
(Oliveira, 2008). Não há necessidade de examinar cada um deles isoladamente, uma vez
que o sentido da narrativa é dado pelo conjunto que formam: uma combinação intrigante
de desenhos e textos fragmentados, que deixam muitos vazios para o leitor preencher,
convidando-o a compartilhar o percurso do protagonista Zubair.
Além dos desenhos, há mais um elemento visual que contribui para a construção da
narrativa, bastante sutil para olhos leigos. Trata-se da diferenciação nas fontes em que são
compostos os trechos do livro “Os treze labirintos” e a parte que narra as experiências de
Zubair: enquanto essas são compostas em fonte Gill Sans, sem serifa, aqueles são compos-
tos em fonte Bembo, serifada (apenas essa última fonte é mencionada no colofão).
Com projeto gráfico diferenciado, Roger Mello cria um produto sofisticado, usando
recursos gráficos de maneira criativa sem onerar excessivamente os custos de produção.

32 Janus é o deus das decisões e das escolhas, associado a portas, inícios e transições. A sua face
dupla olha ao mesmo tempo para o passado e para o futuro, personificando um conceito binário.
O mês de janeiro, início de um ano e fim de outro, é baseado em aspectos de Janus. Fonte: Gill, N.
S. Verbete “Janus” da enciclopédia online Ancient History. Disponível em http://ancienthistory.
about.com/od/jgodsandgoddesses/g/122709Janus.htm. Acesso em 8 mar. 2016.

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀219
O livro poderia até mesmo vir acompanhado de um manual de instruções, tal a carga de
informações e simbolismo que carrega, bem como os aspectos de leitura pouco usuais
que comporta. O próprio manuseio deste livro-objeto é uma aula de história, passando
do rolo ao códice: a sequência de desenrolar a capa, com a orelha esquerda em “rocambo-
le” dando três voltas no livro, faz o leitor repetir os movimentos do protagonista Zubair
quando desembrulha o tapete que envolve seu tesouro precioso, o livro “Os treze labirin-
tos”. Esse efeito não é evidente à primeira vista, só se revelando no manuseio.
Assim, a impressão visceral (Norman, 2008) inicial é causada pela composição e téc-
nica empregadas na ilustração capa, combinando o apelo sensorial da textura da colagem
em papel, o uso de cores vivas impactantes e a pouco usual disposição vertical do título.
O formato acentuadamente vertical do livro também se destaca do comum. Abrir as su-
cessivas dobras da orelha e chegar ao livro com sentido de leitura oriental (a sequência de
numeração das páginas confirma que o sentido da leitura é da direita para a esquerda) ofe-
rece uma experiência incomum e desperta uma resposta comportamental diferenciada no
leitor: ele está lidando com um objeto que à primeira vista parece familiar, mas cujo uso é
na verdade bem diferente do que se conhece. Essa impressão é reforçada pela mudança de
estilo na narrativa verbal, quando se passa da orelha para o miolo. A fase reflexiva conta
portanto com muitos elementos novos para serem integrados ao repertório do leitor e
provocar nele uma resposta intensa.

 Extras

Além das camadas de leitura mais ou menos evidentes no livro, há ainda outras que
ficam ocultas do leitor, reveladas em depoimentos do autor, que explica por que essa é
uma de suas obras favoritas:

Zubair e os Labirintos porque é minha homenagem a todos os escritores que trabalharam o


percurso, como Kafka, Borges, Cortázar, Calvino, Lobato... Eles entenderam que um jeito de
chegar aos grandes temas foi fazendo o percurso ou desfazendo o percurso. A arte labiríntica

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ou a arte de percurso – é importante passar por esse tipo de arte, que te leva para caminhos
insondáveis.33

O autor explica a importância de revelar e ocultar coisas em seu processo criativo:


“Gosto de investigar as possibilidades criativas. O processo criativo é alimentado por ano-
tações, desenhos, coisas. Você faz esse inventário. É importante que algumas coisas fiquem
de fora, não é para entrar tudo, eu acho” (idem).
Especialmente no caso de Zubair, a investigação das possibilidades criativas ofere-
cidas pelo suporte leva a extremos de experimentação que desafiam não apenas o leitor,
como também a equipe de produção. Essa é uma constante na obra de Roger Mello, que
ganha o reconhecimento tanto de um júri internacional, quanto da equipe editorial da
Companhia das Letras, editora de Zubair. Em depoimento postado no blog da editora
quando da notícia da outorga do prêmio Hans Christian Andersen de ilustração para Ro-
ger Mello na Feira do Livro Infantil de Bolonha, em 2014, a editora Lilia Moritz Schwarcz
declara:

Estamos todas aqui na Feira do Livro de Bologna e muito emocionadas com esse prêmio,
mais que merecido, que Roger acaba de receber. É a terceira vez que ele é nomeado para o
Hans Christian Andersen e finalmente, nesse ano dedicado ao Brasil, ele conquista esse feito.
Roger é o primeiro ilustrador da América Latina a receber um reconhecimento dessa
importância, que abre as portas também para o Brasil e para o trabalho tão relevante que
nosso país tem feito na área da literatura infantil. Roger Mello é um grande artista, um
grande pesquisador e um grande inovador. Além do mais, ele está sempre nos desafiando
com projetos tão originais como ousados; nos ajudando a crescer como editoras e nos
forçando a querer ser sempre mais.
Todos os livros que o Roger criou para a Letrinhas estão exposto aqui em Bologna para
o nosso imenso ORGULHO.
Parabéns, Roger: nosso amigo, nosso artista, nossa inspiração.34

33 Roger Mello em entrevista a Gabriela Romeu. Colaboração para a Folha de S. Paulo. Disponível
online em: http://noticias.bol.uol.com.br/entretenimento/2012/03/17/ilustrador-roger-mello-adora-
experimentar-novidades-e-coleciona-premios.jhtm. Acesso em 5 jan. 2015.
34 “Roger Mello é o ganhador do prêmio Hans Christian Andersen”. Coluna Sala do Editor, Blog da
Companhia, publicado em 24 de março de 2014. Disponível online em http://www.blogdacompanhia.
com.br/2014/03/roger-mello-e-o-ganhador-do-premio-hans-christianandersen/. Acesso em 8 abr.
2014.

TR IN CA DE ASES ฀฀•฀฀221
Conclusão

Sem esquecer a necessidade de contribuições do povo das crianças (child people)


ao campo da leitura de imagens no livro ilustrado, ao longo dessa tese fica clara a opção
em assumir um lugar entre o povo do livro (book people) e desse lugar apresentar uma
contribuição. Algumas razões levaram essa pesquisa a identificar esse lugar próprio no
universo da produção cultural para a infância e perceber as vantagens de falar a par-
tir dele. O acesso à literatura estrangeira durante estágio doutoral na Universidade de
Cambridge tornou possível confirmar o acerto desta escolha, respaldada por importantes
pesquisadores como Barbara Kiefer, Kenneth Marantz e Martin Salisbury. Tais autores
enfatizam a importância de mais investigações sobre o livro ilustrado oriundas das artes
visuais, como é o caso dessa pesquisa. Foi possível, então, perceber que essa pesquisa não
apenas pertence ao povo do livro, em contraste com povo das crianças, mas que naquele
grupo se alinha com o povo da imagem, em contraste com o povo da palavra, como co-
loca Salisbury (2004, p. 13).
Ao término da dissertação de mestrado sobre livros ilustrados de Roger Mello, fica
patente a crescente complexidade de suas obras. Muitos destes livros mais complexos con-
quistam vários prêmios nacionais e internacionais, sendo adquiridos pelo governo para
as bibliotecas escolares em todo o país. No entanto, algumas conversas informais, não
incluídas na redação final da dissertação, apontam que a percepção sobre estes livros entre
o público geral e alguns professores do ensino fundamental não está em conformidade
com a percepção dos especialistas. Também alguns livreiros e distribuidores confirmam
que estes livros não vendem muito bem, sendo percebidos como “muito difíceis” para os
leitores infantis. Especialistas e não-especialistas parecem ter visões conflitantes sobre o
tipo de livros aos quais as crianças devem ter acesso: “difíceis” ou “fáceis”? No entanto, os
principais interessados – as próprias crianças – não têm voz neste dissenso. Muito poucos
estudos no Brasil abordam as respostas das crianças a livros ilustrados: sendo a literatura
infantil um campo de estudo muito recente no país, faltam pesquisas acadêmicas tratando
especificamente de livros ilustrados.

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Felizmente, entre a literatura estrangeira é possível encontrar inúmeras referências
sobre as respostas das crianças para diferentes tipos de livros ilustrados. Além daquelas
já mencionadas ao longo dessa tese, como Arizpe & Styles (2003) e Evans (1998), destaca-
se aqui a investigação de Barbara Kiefer, conforme relatada em seu livro The potential of
picturebooks: from visual literacy to aesthetic understanding (1995), onde ela explica que seu
ponto de partida foi a questão “De que tipo de ilustrações em livros ilustrados as crianças
gostam”, que se adequa perfeitamente aos interesses dessa pesquisa. No entanto, ao longo
da investigação de Kiefer, essa pergunta aparentemente simples evoluiu para uma forma
mais abrangente: “Como é que as crianças respondem a uma variedade de livros ilustrados
em diferentes estilos e formatos?” Assim como Kiefer, a intenção inicial desse trabalho era
ampliar o pouco conhecimento disponível sobre as respostas do público infantil a obras
com tais características, buscando enriquecer o debate em torno das propostas contem-
porâneas pouco convencionais no livro ilustrado infantil, especialmente no contexto da
formação da cultura visual iniciada na infância. Esse interesse pelo público infantil decorre
do entendimento do livro ilustrado enquanto objeto participante na formação da cultura
visual desde os primeiros anos de vida, um aprendizado basicamente informal e “invisível”.
Para isso, seria preciso encaminhar a metodologia para um trabalho de observação
participante, com cunho etnográfico, em condições ideais onde presença de um pesquisa-
dor como observador não promovesse uma distorção exagerada nos resultados, a ponto
de comprometer sua validade. Seria preciso também suspender pressupostos a respeito
das crianças, ampliando o quadro teórico de modo a incluir conhecimentos de psicologia
e de educação infantie e, concomitantemente, intensificar a proximidade com as crianças
em um trabalho de campo que permitisse verificar as reais condições de interação desse
público com os livros.
O projeto inicial estabelecia como foco da pesquisa as respostas dos leitores infan-
tis a diferentes livros ilustrados publicados no Brasil desde os anos 1990, destacando-se
aqueles com reconhecimento da crítica especializada como as melhores obras. Surgiu daí
a ideia de fazer pesquisa de campo diretamente com os leitores infantis, ocasião em que se-
ria possível testar a validade das pressuposições, frequentemente contraditórias, dos dois
grupos diferentes de adultos – leigos e especialistas no campo da literatura infantil –, a
respeito da recepção de obras com propostas visuais inovadoras, pouco convencionais.

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A pesquisa sobre recepção de livros ilustrados infantis é um campo ainda pouco
explorado e promissor,1 contando com algumas publicações estrangeiras, mas no Brasil
restrito a apenas um livro, A imagem nos livros infantis: Caminhos para ler o texto visual
(2012), de Graça Ramos; além de algumas poucas dissertações, desenvolvidas principal-
mente no âmbito da Educação. Historicamente, o livro infantil tem sido objeto de estudo
em duas grandes áreas: na Educação, em primeiro lugar, e a seguir em Letras. Apenas em
décadas recentes tem despertado interesse no campo das Artes Visuais, constituindo um
terreno fértil para contribuições, a ser explorado por artistas visuais, artistas gráficos, edi-
tores, e outros integrantes do grupo do livro.
Os dois únicos trabalhos acadêmicos realizados no Brasil sobre recepção infantil
de livros ilustrados que foi possível localizar até a conclusão dessa pesquisa2 mostravam
dois contextos bastante diferentes. Barbara Necyk, em dissertação apresentada em 2007 no
curso de Pós-Graduação em Design na Puc-Rio, é exceção no conjunto de pesquisas reali-
zadas no campo da Educação. Ela obtém interessantes respostas na pesquisa de campo que
faz com seu filho ainda pequeno, beneficiada pelo contato íntimo e rotineiro que causa
pouca interferência no universo da criança. Mara Rosângela Ferraro apresenta sua disser-
tação de mestrado sobre recepção de livros ilustrados no Programa de Pós-Graduação em
Educação, na Unicamp, em 2001. Com experiência como professora dos anos iniciais do

1 Participei das três edições mais recentes do congresso History and Theory of the Picturebook,
realizados em setembro de 2011 na Universidade de Tübingen, Alemanha, em setembro de 2013 na
Universidade de Estocolmo, Suécia, e em setembro de 2015 na Universidade de Gdansk, Polônia,
quando tive a oportunidade de travar contato com pesquisadores que estão no momento realizando
trabalhos sobre recepção infantil de livros ilustrados em países como Venezuela, Estados Unidos,
Reino Unido, Itália, Espanha, além de outros países europeus.
2 Muito recentemente, em março de 2016, Hanna Araújo defendeu no Instituto de Artes da
Unicamp sua pesquisa de doutorado Processo de criação e leitura do livro de imagem: interlocução
entre artistas e crianças. Professora de Creche Central da USP, a pesquisadora desenvolve pesquisa
de campo com seus alunos com a interessante proposta de promover a circulação direta de obras
especialmente criadas por ilustradores para a pesquisa, apresentando estes livros de imagens para as
crianças, registrando suas respostas e levando-as aos autores, num processo circular. Araújo conclui
que as crianças “são bastante habilidosas na leitura da imagem e que a despeito de seus repertórios
mais restritos em relação aos adultos, elas dispõem-se de maneira mais intensa para a construção dos
significados”. Espera-se que em breve a pesquisa esteja disponível para consulta no banco de teses
da Unicamp. Fonte: CCMUSP Informa – Informativo da Comissão Creches Mobilizadas USP. 22
de março de 2016. Disponível online em https://crechecentraluspcom.wordpress.com/2016/03/22/
professora-da-creche-central-defende-tese-de-doutorado/. Acesso em 16 mai. 2016.

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ensino fundamental, Ferraro conduz sua pesquisa de campo interagindo diretamente com
um grupo de crianças que não conhece previamente, em condições que, segundo seu rela-
to, se não chegam a comprometer a validade de suas observações, produzem perturbações
inesperadas que colocam desafios à análise e validação dos dados colhidos. Ou seja, mes-
mo uma pesquisadora com prévia experiência com o tipo de grupo social a ser observado,
registra ocorrências inesperadas e perturbadoras.
Avançando no desenvolvimento da pesquisa, refinando as hipóteses e buscando for-
matar metodologias de trabalho, especialmente para a pesquisa de campo, vai ficando
claro que, por limitações decorrentes da condição de integrante do povo do livro (book
people), seria possível, no máximo, realizar com as crianças um tipo de observação par-
ticipante com registro etnográfico das práticas empreendidas por professores. Não inte-
ressava a esse trabalho empreender uma pesquisa intimista, observando algumas poucas
crianças – como aliás faz Necyk de maneira bem sucedida – mesmo sabendo que essa
metodologia abre possibilidades de resultados e análises respeitáveis, como aquelas con-
duzidas por Freud e Piaget com seus próprios filhos. Ao invés disso, era desejável observar
grupos de crianças em diferentes contextos socioeconômicos, buscando uma abordagem
mais sociológica ou antropológica, em sintonia com a linha Imagem e Cultura na qual
essa investigação se inscreve.
Esse tipo de abordagem se encontra na pesquisa acadêmica conduzida no Reino
Unido por Evelyn Arizpe e Morag Styles, que resulta na publicação do livro Children Re-
ading Pictures: Interpreting Visual Texts (2003), onde as autoras apresentam a metodolo-
gia empregada, os resultados obtidos e sua análise crítica, além de um amplo arcabouço
teórico. Arizpe e Styles reúnem uma equipe de sete colaboradores e trabalham durante
dois anos revendo e refinando progressivamente sua metodologia de pesquisa, para que a
aplicação em sete diferentes escolas britânicas possa apresentar resultados consistentes –
um trabalho de fôlego que, mais de dez anos depois de sua publicação, permanece sendo
a principal referência de pesquisas do gênero.
Durante as pesquisas de campo, realizadas em escolas com perfis socioeconômicos
variados, localizadas em diferentes regiões do país, são recolhidas as respostas – tanto
verbais quanto visuais, por meio de conversas, textos escritos e desenhos – das crianças a
livros ilustrados de dois artistas diferentes. Posteriormente, tais respostas são apresentadas

CO NC LUSÃO ฀฀•฀฀225
aos autores, e as impressões daí resultantes são apresentadas em entrevistas no final do
livro. É uma metodologia extremamente criativa e sofisticada, que amplia o universo das
respostas no campo da cultura visual e conecta dois elementos na cadeia de comunicação
do livro ilustrado – autores e público – que raramente entram em contato de modo sis-
tematizado, embora o façam de modo informal em feiras literárias, encontros nas escolas
onde seus livros são adotados, etc. Por sua abrangência, seu rigor metodológico e pela
qualidade dos resultados alcançados, Children reading pictures é uma das referências que
nortearam o projeto inicial dessa tese, constituindo o ponto de partida para a definição de
seus pressupostos metodológicos quanto ao trabalho de campo. Embora a metodologia
empregada pelas autoras tenha sido posteriormente revista e eventualmente substituída,
seu exame foi extremamente útil para formar o quadro inicial.
À medida que o trabalho avança, se torna mais claro que, para realizar uma pesquisa
com o alcance e a validade daquela conduzida por Arizpe e Styles, não basta lançar mão de
sua rica metodologia; é também necessário estabelecer parcerias com mediadores de leitu-
ra em diferentes contextos socioeconômicos. Uma ideia tentadora para uma pesquisadora
interessada em expandir suas fronteiras, mas que inevitavelmente traz desafios e impre-
vistos, como mostra a experiência de Ferraro. Para enfrentar os desafios, são estabelecidos
contatos iniciais com diferentes mediadores de leitura. Embora não pertencendo ao povo
das crianças (child people), a pesquisadora conta com bom trânsito em diferentes círculos
nos campos da Educação Infantil e de Letras.3
Durante a execução da pesquisa, os contatos com o povo das crianças revela seu gran-
de interesse pelo universo das artes visuais oferecido pelo livro ilustrado; interesse prejudi-
cado, no entanto, por certa timidez originada possivelmente da pouca familiaridade teórica
com esse universo. Descortina-se então uma nova perspectiva para esta tese: em vez de
desenvolver pesquisas de campo diretamente com crianças, a condição de povo do livro em
diálogo com o povo das crianças permite oferecer contribuição mais consistente e significa-

3 Ao cursar a Pós-graduação em Literatura Infantil e Juvenil na Faculdade de Letras da Univer-


sidade Federal Fluminense, em 2007, tive como colegas professoras, bibliotecárias, contadoras de
histórias, um grupo majoritariamente feminino com raras e honrosas exceções. Concluído o curso,
mantive e ampliei esses contatos ao me tornar integrante do grupo de pesquisa Leitura, Literatura
e Saúde, do Programa de Alfabetização e Letramento – PROALE, da Faculdade de Educação da
mesma universidade, do qual faço parte até o momento de conclusão dessa tese.

CO NC LUSÃO ฀฀•฀฀226
tiva, a respeito dos aspectos visuais e materiais do livro ilustrado – suas características, sua
evolução histórica, sua cadeia produtiva, sua circulação, o cenário brasileiro contemporâ-
neo –, de modo a facilitar que futuras pesquisas sobre recepção infantil possam ser levadas
a cabo entre nós, com mais propriedade, por pesquisadores do povo das crianças.
A partir daí, mantendo como objeto de pesquisa o livro ilustrado infantil no con-
texto brasileiro contemporâneo, outras perguntas e hipóteses são formuladas para lidar
com a questão da leitura infantil de obras pouco convencionais. Suprimindo-se o capítulo
específico que trataria da infância, em cada um dos capítulos dessa tese há pelo menos um
item onde questões da infância são iluminadas pelo referencial teórico em tela, bem como,
no capítulo voltado para estudo de caso, são incluídas algumas das respostas dos leitores
infantis que é possível coletar para cada um dos três livros analisados. Essa reorganização
reflete também a opção de, reconhecendo as particularidades da infância, incluí-la no
quadro global da sociedade em vez de segregá-la em um grupo isolado.
O interesse por livros ilustrados pouco convencionais tem sua origem na observa-
ção, durante a dissertação de mestrado, da evolução na linguagem visual nos livros ilustra-
dos de Roger Mello. Naquele trabalho, ao examinar a produção do artista em seus mais de
vinte anos de carreira como autor e ilustrador, entre 1989 e 2009, demonstra-se a transição
de soluções acadêmicas clássicas para o desenvolvimento de uma linguagem visual muito
própria, resultante da sua pesquisa de modos de expressão pouco convencionais na ilus-
tração, com a incorporação de elementos da cultura popular e das artes visuais, especial-
mente a vertente das vanguardas históricas. Este processo parece muito próximo daquele
acontecido durante o movimento modernista brasileiro, quando artistas interessados na
atualização das artes plásticas no país promovem uma resposta antropofágica às influ-
ências estrangeiras, devorando-as e deglutindo-as, numa miscigenação característica da
cultura brasileira. Surge então a questão: é essa semelhança de processos mais do que mera
coincidência, estando inserida em uma maneira brasileira de constituir sua identidade
cultural? Mais do que um estilo pessoal de Roger Mello, estão outros ilustradores contem-
porâneos desenvolvendo processos semelhantes, que apontem um interesse coletivo pela
descolonização das imagens? É essa uma questão relevante a ser desenvolvida e discutida?
Duas referências iniciais apontam o interesse dessa discussão, tanto em termos mais
gerais de relações de colonização cultural na América Latina, quanto em termos mais

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específicos da evolução da ilustração brasileira, especialmente nas três últimas décadas.
Com mencionado na introdução, a primeira referência vem de Serge Gruzinki, pesquisa-
dor francês especializado na cultura latino-americana, especialmente no México, que em
A colonização do imaginário (2003) demonstra como o processo de colonização espanhola
naquele país suprime os riquíssimos modos de expressão visual autóctone, por meio da
assimilação forçada de modelos europeus. Parece válido, então, pensar que a um processo
de colonização visual seja possível contrapor um processo de descolonização visual, espe-
cialmente no contexto do crescente interesse mundial por estudos pós-coloniais.
Essa suposição é confirmada pela segunda referência, que vem de Ana Maria Macha-
do, renomada escritora brasileira com profundo envolvimento com a literatura infanto-
juvenil, tanto como autora quanto como pensadora. Prefaciando o livro de Rui de Oliveira,
Pelos Jardins Boboli: reflexões sobre a arte de ilustrar livros para crianças e jovens (2008),
Machado apresenta uma reflexão precisa a respeito da evolução da ilustração no Brasil
principalmente a partir dos anos 1970 e início dos anos 1980, conhecidos como a época do
boom da literatura infantil no país. Comparando a situação atual de estudos e crítica sobre
ilustração àqueles sobre textos, Machado conclui que “a produção de nossos ilustradores
não tem sido objeto de estudos críticos de forma análoga ou equivalente ao que tem acon-
tecido com o trabalho dos escritores. E isso está fazendo falta.” (in Oliveira, 2008, p. 14).
A autora ressalta a importância primordial que a atenção à cultura local desem-
penha no processo de desenvolvimento da ilustração brasileira em anos recentes. A per-
cepção dessa importância é evidenciada durante o trânsito de ilustradores e suas obras
em circuitos internacionais de exibição e premiação, especialmente a Feira de Bolonha e
o prêmio Hans Christian Andersen, quando fica patente a necessidade, por um lado, de
conscientizar os jurados internacionais a respeito das características particulares da ilus-
tração externa ao eixo europeu/norte-americano; e, por outro lado, de conscientizar os
artistas brasileiros não apenas da necessidade de aprimoramento técnico, mas sobretudo
de uma maior atenção aos valores locais.
Tal atenção, facilmente perceptível na obra de Roger Mello, se faz notar também
em muitos ilustradores de gerações imediatamente anteriores e posteriores à dele, o que
indica a validade de investigar a constituição de uma tendência coletiva na ilustração bra-
sileira. Assim, essa pesquisa opta por examinar artistas de três gerações sucessivas que

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possam falar pelo todo: Angela Lago (1945), Roger Mello (1965) e Fernando Vilela (1973);
e eleger dentre suas obras aquelas que melhor permitem sublinhar o processo de apro-
priação antropofágica de referências estrangeiras em miscigenação com aspectos locais,
promovendo a descolonização das imagens no livro ilustrado no contexto brasileiro con-
temporâneo. As obras escolhidas são Cena de rua (1994), Zubair e os labirintos (2007) e
Lampião & Lancelote (2006).
Nos quatro capítulos que compõem essa tese, constrói-se uma estrutura argumen-
tativa que culmina na análise semiológica dessas obras. A discussão principia pela defini-
ção do objeto de estudo no capítulo um: o que é um livro ilustrado? No Brasil, ainda há
confusão sobre o que é esse tipo de livro. A terminologia usada no país é diferente daquela
usada em outros países de línguas latinas, como Portugal, Espanha, Itália ou França. A
opção pelo termo livro ilustrado, que essa pesquisa acredita que esteja em processo de con-
solidação no país, justifica-se pela prática de mercado, verificada nas traduções recentes de
obras estrangeiras.
Além da definição da terminologia, são destacados alguns momentos marcantes na
história do livro ilustrado. Ainda que o livro tenha nascido ilustrado – o Livro dos Mortos
egípcio –, os manuscritos iluminados medievais são considerados os precursores do li-
vro ilustrado moderno. Com a desenvolvimento da imprensa, os livros se popularizam e
se tornam parte fundamental da cultura letrada ocidental. De preciosos objetos da elite,
passam a circular entre segmentos menos favorecidos, inclusive entre as crianças. Para o
público infantil, a ilustração representa um atrativo poderoso, seja para fins pedagógicos,
como em Orbis Pictus, seja para entretenimento, como em A Little Pretty Pocket Book. A
evolução das técnicas de impressão permite que os livros ilustrados alcancem sua Era de
Ouro na época vitoriana, com artistas como Walter Crane, Edmund Dulac, Arthur Ra-
ckham, Randolph Caldecott, entre tantos outros. Desde então, muitos artistas têm no livro
ilustrado um suporte para expressão artística. Diluindo as fronteiras entre artes aplicadas
e belas artes, coexistem hoje livros de artista, peças únicas, e livros comerciais, impressos
em grandes tiragens, com elevada qualidade artística. Muitos livros ilustrados contempo-
râneos chegam a ser considerados “museus de arte portáteis”.4

4 Ver, por exemplo, entrevista da premiada ilustradora tcheca Kveta Pakovska na revista Emília.
Disponível em http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=282. Acesso em 13 mai. 2016.

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O primeiro capítulo conclui demonstrando que, mais do que artefatos pedagógicos,
os livros ilustrados são hoje considerados um gênero muito especial da literatura infantil e
uma forma de arte. Partindo da definição fundamental de Barbara Bader, são examinados
os diferentes aspectos que se conjugam em torno dos livros ilustrados: texto, ilustração e
design integral; uma experiência para a criança; um documento social, cultural e históri-
co; um item manufaturado e um produto comercial; e finalmente uma forma de arte. São
problematizadas as tensões ocasionadas pela característica particular de dupla recepção
destes livros por um público de adultos e crianças, que provocam muitos questionamen-
tos, estando longe de haver um consenso entre os envolvidos em sua produção, circulação
e crítica. É destacada a combinação de ideologias sobre a infância e de tecnologias de pro-
dução como elementos definidores na evolução histórica do livro ilustrado, possibilitando
sua transformação de objeto pedagógico em objeto estético. Ressaltando as característi-
cas estéticas do livro ilustrado, observa-se como a Era de Ouro da Ilustração estabelece
padrões que se tornam canônicos, e como desde então as influências das artes plásticas
se fazem notar nesse campo. Por fim, assinala-se como as propostas inovadoras das van-
guardas artísticas são regularmente incorporadas por ilustradores de modo instigante, em
livros que causam um estranhamento nos leitores e levam-nos a expandir seus horizontes.
O capítulo seguinte destaca certos pontos-chave do cenário brasileiro quando a
influência das vanguardas históricas alcança o país, contemplando também as transfor-
mações que acontecem no mercado editorial nesse período. A formação sui generis do
mercado editorial brasileiro no contexto das demais colônias americanas tem sua origem
primordialmente no atraso na liberação da impressão local pela metrópole: enquanto Mé-
xico e Estados Unidos já produzem seus próprios impressos em 1539 e 1638 respectivamen-
te, no Brasil isso acontece apenas em 1808, com a chegada da corte portuguesa. O mercado
editorial permanece dominado por livros importados por quase um século. Apenas quan-
do os impressos nacionais – aí considerados livros, revistas e jornais – começam a ganhar
terreno, é que surge um mercado para ilustradores locais, isso já em fins do século XIX.
Nas artes plásticas, o Manifesto Antropófago, publicado depois da Semana de 22, é
um marco que expressa um importante aspecto do processo de modernização resultante
do trânsito entre arte local e circuitos internacionais. Até então, a arte brasileira segue
modelos canônicos das belas artes europeias. Inspirados pelas vanguardas históricas, os

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modernistas brasileiros dão um passo além da mera transposição dos ideais europeus, e
assumem suas identidades mestiças, valorizando a cultura popular local em diálogo com
a modernidade numa proposta antropofágica. Inicialmente restrito a um circuito da elite
paulistana, o modernismo se espalha pelo país em áreas variadas como cinema e música,
além de literatura e artes plásticas.
Muitos artistas se dedicam à ilustração de livros, como Di Cavalcanti, Paulo Wer-
neck ou Tomás Santa Rosa, entre outros, e são referência para artistas contemporâneos.
A partir da década de 1970, principalmente, tendo como marco a publicação de Flicts, de
Ziraldo, em 1969, os artistas brasileiros expandem as fronteiras do livro ilustrado. Suas
propostas não se restringem a modelos eurocêntricos e promovem uma descolonização
visual, mesclando elementos globais e locais. Essa mistura pode ser entendida no contexto
da arte pós-moderna, com seus pastiches e colagens de formas artísticas preexistentes. No
entanto, há vários pontos onde a singularidade brasileira se distingue na pós-modernidade
global, sendo dois deles especialmente relevantes: em primeiro lugar, a modernidade nas
artes visuais chega e se difunde no país tardiamente – mal houve tempo de ser modernos,
quanto mais para ser propriamente pós-modernos; em segundo lugar, a miscigenação é
um traço característico da cultura brasileira desde seus primórdios, muito anterior à pós-
modernidade, e a mistura que se promove no país vai além da colagem ou pastiche, pois
não se esgota nesse consumo e gera resultados frutíferos, com identidade própria.
Como alternativa à pós-modernidade, essa pesquisa considerava inicialmente con-
trapor os estudos pós-coloniais. No entanto, a concentração dos estudos pós-coloniais
em contextos de língua inglesa torna inviável sua inclusão no referencial teórico de ma-
neira consistente. Boaventura Sousa Santos apresenta uma reflexão muito útil, no sentido
de ressaltar a inadequação de ambas – pós-modernidade e pós-colonialismo – no caso
brasileiro, que apresenta particularidades decorrentes da colonização portuguesa. Nesse
cenário, o conceito de miscigenação, proposto por Gilberto Freyre e discutido por Rena-
to Ortiz, entre outros, traz uma importante chave para o entendimento da maneira an-
tropofágica de apropriação das influências estrangeiras que se verifica continuamente na
cultura e arte brasileiras, confirmando a hipótese inicial dessa pesquisa sobre o processo
de descolonização das imagens no livro ilustrado por meio da dialética entre referências
estrangeiras e elementos locais.

CO NC LUSÃO ฀฀•฀฀231
Pode-se observar esse processo de descolonização em muitas obras brasileiras, com
maior intensidade a partir dos anos 1970, com o boom da literatura infantil alcançando a
ilustração. A produção e circulação de obras com características que desafiam as conven-
ções aceitas intensifica-se, e as propostas inovadoras dos ilustradores, atingindo públicos
variados, promovem uma ampliação em seus repertórios. A produção contemporânea
de livros ilustrados se insere em um mundo da arte formado por leitores infantis, de um
lado, e por adultos que criam e promovem a circulação das obras, de outro. Celebra-se
entre esses dois lados um contrato de comunicação regido por códigos e convenções que
podem por vezes ultrapassar, até mesmo excessivamente, o repertório dos receptores. As
propostas mais inovadoras podem inicialmente causar estranhamento e resistência, mas
acabam por ser absorvidas pelo sistema dominante. O processo de inclusão no sistema
passa por instâncias de legitimação como premiação em concursos, compras escolares e
crítica favorável, sendo essa última ainda incipiente no país.
No Brasil, o mundo da arte do livro ilustrado é de constituição relativamente re-
cente, oferecendo um campo fértil para as propostas inovadoras dos artistas. Os especia-
listas têm impacto positivo nas compras governamentais, que por sua vez influenciam as
decisões editoriais. A inserção crescente de artistas e especialistas brasileiros no circuito
internacional contribui para a consolidação de propostas nacionais descolonizadoras. As
edições de 1995 e 2014 da Feira de Bolonha, quando o Brasil é o país homenageado, são
fundamentais para a ilustração brasileira. Um evento especialmente favorável para essa
pesquisa é a outorga do prêmio Hans Christian Andersen de ilustração para Roger Mello,
incluindo-o na categoria dos melhores ilustradores do mundo. Tal fato reforça as premis-
sas dessa pesquisa a respeito do vigor da maneira antropofágica de criar propostas visuais
que desafiam os padrões que ainda prevalecem em âmbito nacional e internacional.
Para investigar a constituição das mensagens visuais dos livros ilustrados do corpus,
analisando-os e neles identificando elementos que desafiam a colonização visual, elege-se a
semiótica como método preferencial. Surgida no início do século passado a partir das co-
locações de Saussure e Peirce, a partir dos anos 1950 a semiótica é empregada por Umberto
Eco e Roland Barthes na análise de peças da indústria cultural, como anúncios publicitários
ou quadrinhos. Na década de 1970 surge a semiótica social com o linguista britânico Mi-
chael Halliday, que inspira Gunther Kress e Theo van Leewen na aplicação ao campo visual.

CO NC LUSÃO ฀฀•฀฀232
O capítulo três desenvolve considerações sobre a análise semiótica, adotando principal-
mente a linha proposta por Martine Joly a partir de Barthes, enriquecida por contribuições
da semiótica social conforme Kress & van Leeuwen. Elementos específicos para a análise
de livros ilustrados são trazidos de Luís Camargo e Rui de Oliveira, pioneiros estudiosos
brasileiros e também ilustradores, e dos ingleses Perry Nodelman e William Moebius.
Observa-se que, além das mensagens visuais, também o suporte material integra e
contribui para a produção de sentido da narrativa, sendo necessário apresentar algumas
considerações sobre a materialidade desse suporte. Do campo do design, são trazidas pro-
posições de Donald Norman para informar a análise de aspectos da interação com o su-
porte. Os conceitos de design emocional propostos por Norman mostram-se ferramentas
muito úteis para empreender uma análise mais densa dos livros ilustrados que compõem
o corpus, contemplando as reações que esses objetos despertam nos usuários. Também
permitem descortinar aspectos projetados talvez de maneira intuitiva, ou ao menos não
inteiramente intencional, pelos artistas, ampliando o repertório ainda escasso de estudos
sobre a interação entre criadores e usuários infantis do livro ilustrado.
Além de apresentar e definir as categorias aplicadas à analise do corpus no capítulo
seguinte, esse capítulo também detalha os critérios de seleção que norteiam a escolha das
três obras. Se os artistas são escolhidos como representantes de suas respectivas gerações,
cobrindo um período de 45 anos, o mesmo princípio de tomar a parte pelo todo norteia
a escolha de uma dentre suas muitas obras para uma análise semiótica aprofundada. O
procedimento de concentrar a análise em apenas três obras oferece a possibilidade de, no
capítulo quatro, investigar com maior aprofundamento suas caraterísticas particulares,
detalhando as referências das artes visuais que apresentam e relacionando-as com elemen-
tos locais.
Após o levantamento da bibliografia analítica e do mapeamento do cenário con-
temporâneo da literatura infantil brasileira que informa a escolha do corpus, procede-se à
análise das três obras corpus à luz do referencial teórico. Os três autores, que contam com
expressiva premiação nacional e internacional, acumulam as funções de escritor, ilustra-
dor e designer. São artistas de interesses diversificados que desenvolvem um pensamento
crítico a respeito de suas atividades criativas. Examinando suas biografias e obras, é possí-
vel perceber que também possuem, em comum, um interesse crescente, ao longo de suas

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carreiras, pelo desenvolvimento de uma linguagem visual não-colonizada que contempla
a pesquisa de formas da cultura popular brasileira, numa abordagem que em muito re-
mete ao ideal modernista expresso no Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade.
Tradicionalismo e modernidade, regionalismo e cosmopolitismo, artesanal e industrial,
popular e erudito, são algumas das dialéticas que é possível identificar em suas obras ino-
vadoras ou até mesmo desafiadoras. Mesmo em um contexto pós-moderno, suas propos-
tas pouco convencionais ainda dividem as respostas do público – sejam crianças, adultos,
especialistas ou leigos.
Essa pesquisa conclui pelo acerto de suas premissas, confirmando a inserção dos
ilustradores examinados dentro de uma genealogia de autores antropofágicos que pro-
movem uma descolonização da arte e cultura nacionais. A proposta inicial de investigar
as respostas do público infantil a obras “descolonizadoras”, descartada em prol da concen-
tração na área de expertise da pesquisadora, mostrou-se acertada, podendo essa pesquisa
cumprir no futuro um papel relevante em auxiliar pesquisadores da área da Educação,
com contato próximo com crianças, a aproximarem-se do campo da leitura de imagens.
O contato com o referencial teórico estrangeiro, possível durante o estágio doutoral
de um ano na Universidade de Cambridge, trouxe inestimável enriquecimento para essa
pesquisa. Muitos dos trabalhos aqui mencionados, especialmente no campo do livro ilus-
trado, merecem tradução para o português, facilitando sua circulação entre estudiosos no
país. A conclamação de Ana Maria Machado por mais publicações brasileiras sobre ilus-
tração, feita em 2008, permanece válida. Essa pesquisa verifica que a mesma exiguidade de
estudos em circulação entre a comunidade acadêmica também acontece em relação à crí-
tica que poderia alcançar um público leigo, formado primordialmente por pais e profes-
sores, os principais mediadores da leitura infantil. Pretende-se, ao término dessa pesquisa,
compartilhar as referências teóricas levantadas, incluindo, sempre que possível, também
seu conteúdo (observando-se as leis de propriedade intelectual) em um banco digital de
livre acesso online, que possa converter-se em um ponto de encontro dos interessados em
investigar a literatura infantil e o livro ilustrado no país.

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SUSINA, J. Editor’s Note: Kiddie Lit(e): The Dumbing Down of Children’s Literature. The Lion
and the Unicorn, 1993. v. 17, n. 1, p. v–ix.
TATAR, M. (Org.). The annotated classic fairy tales. Nova York: Norton, 2002.

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TAYLOR, J. H.; BRITISH MUSEUM (Org.). Ancient Egyptian Book of the Dead: journey through
the afterlife; [published to accompany the exhibition at the British Museum from 4 November
2010 to 6 March 2011]. Londres: The British Museum Press, 2010.
TOWNSEND, J. R. (Org.). John Newbery and his books: trade and plumb-cake for ever, huzza!
Metuchen, NJ: Scarecrow Press, 1994.
______. The present state of English children’s literature. In: EGOFF, S. A. (Org.). Only connect:
readings on children’s literature. Toronto; Nova York: Oxford University Press, 1996.
VAN DER LINDEN, S. Lire l’album. Le Puy-en-Velay: Atelier du poisson soluble, 2006.
VAN DER LINDEN, S.; BRUCHARD, D. De. Para ler o livro ilustrado. Sao Paulo: Cosac Naify,
2011.
VAN LEEUWEN, T.; JEWITT, C. (Org.). Handbook of visual analysis. Londres; Thousand Oaks
[Calif.]: Sage, 2001.
VELLOSO, M. P. Que cara tem o Brasil?: as maneiras de pensar e sentir o nosso país. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2000.
VILELA, F. Lampião & Lancelote. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
WALL, B. The narrator’s voice: the dilemma of children’s fiction. Nova York: St. Martin’s Press,
1991.
WÖLFFLIN, H. Conceitos fundamentais de história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
YOLANDA, R. O Livro Intantil e Juvenil Brasileiro. São Paulo: Melhoramentos, 1977.
ZILBERMAN, R. Fim do livro, fim dos leitores? São Paulo: SENAC São Paulo, 2000.
ZIPES, J. Fairy tales and the art of subversion: the classical genre for children and the process of
civilization. Milton Park, Abingdon, Oxon, Nova York: Routledge, 2012.

REFERÊ N CI AS ฀฀•฀฀242
Apêndice
Dados adicionais sobre os autores

1.฀Angela฀Lago1  Bibliografia

Cena de rua Autoria integral no Brasil


Prêmios O Fio do Riso. Belo Horizonte: Vigília, 1980.
•฀ Associação Paulista de Críticos de Arte Belo Horizonte: RHJ, 2005
(APCA), Melhor Livro sem Texto, 1994 Sangue de Barata. Belo Horizonte: Belo
•฀ BIB Plaque, Bienal Internacional de Horizonte: Vigília, 1980. Belo Horizonte:
RHJ, 2005
Bratislava, 1995
•฀ Prêmio Jabuti, CBL, 1994 *Uni duni e tê. Belo Horizonte: Comunicação,
1982. São Paulo: Moderna, 2005
Melhor Livro Infantil
*Outra vez. Belo Horizonte: Miguilim, 1984
Melhor Ilustração
Belo Horizonte: RHJ, 2005
•฀ Prêmio Prix Graphiques, Octogone
*Chiquita Bacana e as outras pequetitas. Belo
d’Ardoise. Centre International d’Etudes
Horizonte: Lê, 1986. Belo Horizonte: RHJ, 2005
en Littératures de Jeunesse, 1995
*Sua Alteza a Divinha. Belo Horizonte:
•฀ Catálogo White Ravens. IBBY, 1995 RHJ, 1990
•฀ Prêmio FNLIJ O Melhor Livro de Imagem *Cântico dos cânticos. São Paulo: Paulinas, 1992
Hors Concour, 1995
*De morte! Belo Horizonte: RHJ, 1992
*Coleção Folclore de Casa. Casa pequena /
Seleção em programas de governo Casa de pouca conversa / Casa assombrada.
•฀ Projeto Cantinho de Leitura Belo Horizonte: RHJ, 1993
•฀ Programa Nacional Salas de Leitura *Charadas Macabras. Belo Horizonte:
Bibliotecas Escolares – FAE Formato, 1994
*Cena de Rua. Belo Horizonte: RHJ, 1994
Outros *Tampinha. São Paulo: Moderna, 1994.
•฀ Incluído na coletânea Best Children’s Books Moderna, 2008
In The World da Abrams Books for Young *Festa no céu. São Paulo: Melhoramentos, 1995
Readers, 1996 *O personagem encalhado. Belo Horizonte:
Lê, 1995. RHJ, 2009
Traduções *Pedacinho de Pessoa. Belo Horizonte: RHJ, 1996
•฀ Espanhol, Francês, Inglês *Uma palavra só. São Paulo: Moderna, 1996
*Um ano novo danado de bom. São Paulo:
Adaptações Moderna, 1997
•฀ Rap rua, de Douglas Silva A novela da panela. São Paulo: Moderna, 1998

1 Fonte: Dados até 2009 provenientes do site da autora. Disponível online em http://www.angela-
lago.net.br/. Acesso em 01 fev 2016. A a partir de 2010, levantamento realizado pela pesquisadora.
* Obras premiadas.

APÊNDI CE ฀฀•฀฀243
*ABC Doido. São Paulo: Melhoramentos, 1999 A árvore que pensava. Oswaldo França Jr.
*Indo Não Sei Aonde Buscar Não Sei o Quê. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986
Belo Horizonte: RHJ, 2000 Dourado. André Carvalho. Belo Horizonte:
*Sete histórias pra sacudir o esqueleto. São Lê, 1986
Paulo: Cia. das Letrinhas, 2002 Correspondência. Bartolomeu Campos
*A banguelinha. São Paulo: Moderna, 2002 Queirós. Belo Horizonte: Miguilim, 1986
Uma palavra só. São Paulo: Moderna, 2002 A mãe da mãe da minha mãe. Terezinha
Alvarenga. Belo Horizonte: Miguilim, 1988
E agora? São Paulo: Caramelo, 2004
A invasão das borboletas. Texto de Angela Lago,
*Muito capeta. São Paulo:
ilustrações de Liliane Dardot. Belo Horizonte:
Cia. das Letrinhas, 2004
RHJ, 1990
*A raça perfeita, Angela Lago-Lago e Gisele
O caso da Banana. Ronaldo Simões Coelho.
Lotufo. Projeto. Rio Grande do Sul, 2004
Belo Horizonte: Lê, 1990
Cântico dos cânticos. Paulinas, 2005
Layla. Terezinha Alvarenga. Belo Horizonte:
*Coleção Virando Onça: A casa do bode e da Miguilim, 1993
onça / A flauta do tatu / O bicho folharal. Rio
Pedacinho de Pessoa. Poemas de Alberto
de Janeiro: Rocco, 2005
Caieiro, heterônimo de Fernando Pessoa,
*João felizardo, o rei dos negócios. São Paulo: selecionados por Angela Lago. Belo Horizonte:
Cosac Naify, 2006 RHJ, 1996
*AEIOU. Angela Lago e Zoé Rios. Encontros. Luis Giffoni. Belo Horizonte: RHJ,
Belo Horizonte: RHJ, 2008 1997
*Marginal esquerda. Belo Horizonte: RHJ, 2009 A formiga Aurélia e outros jeitos de ver o
Triângulos vermelhos. Rio de Janeiro: mundo, Regina Machado. São Paulo: Cia. das
Rocco, 2009 Letrinhas, 1998
*A visita dos 10 monstrinhos. São Paulo: A criança e seus direitos. Eustaquio Rodrigues.
Cia. das Letrinhas, 2009 Belo Horizonte: Compor, 1999
*Minhas assombrações. Porto Alegre: A revolta das palavras, José Paulo Paes.
Edelbra, 2010 São Paulo: Cia. das Letrinhas, 1999
*Psiquê. São Paulo: Cosac Naify, 2010 Nasrudin, Regina Machado. São Paulo:
Isto também passará. Baobá, 2014 Cia. das Letrinhas, 2000
Príncipe Jacu. São Paulo: Melhoramentos, 2014 Um gato chamado Gatinho, Ferreira Gullar.
O caixão rastejante e outras assombrações de São Paulo: Salamandra, 2000
família. São Paulo: Cia das Letrinhas, 2015. O prato azul-pombinho. Cora Coralina.
O caderno do jardineiro. Coleção Comboio de São Paulo: Global, 2001
Corda de poesia. São Paulo: SM, 2016 O touro encantado. Ferreira Gullar. São Paulo:
Salamandra, 2003
Ilustrações no Brasil Lucas e o rouxinol. Antonio Ventura.
São Paulo: Melhoramentos, 2006
*O pintassilgo azul. Garcia de Paiva.
Rio de Janeiro: EBAL. 1982 Um livro de horas. Poemas de Emily Dickinson
selecionados por Angela Lago. São Paulo:
Os dois irmãos. Wander Piroli. Belo Horizonte:
Scipione, 2008
Comunicação, 1983
Bichos. Ronaldo Simões Coelho. B
Lambe o dedo e vira a página. Ricardo da
elo Horizonte: Aletria, 2009
Cunha Lima. São Paulo: FTD, 1984
Encontros. Luís Giffoni. Belo Horizonte:
Cabriolé, o cabrito. Lucília de Almeida Prado.
RHJ, 2009
São Paulo: Global, 1985
10 adivinhas picantes. Angela Lago e Inês
Juca Motorzinho. Mauro Martins.
Antonini. Belo Horizonte: RHJ, 2009
Rio de Janeiro: Rocco, 1985

APÊNDI CE ฀฀•฀฀244
Metamorfoses. Heloísa Seixas (org.). Le petit marchand des rues (tradução para o
São Paulo: Cia das Letras, 2010 francês de Cena de rua). Paris:
Zoo louco. Maria Elena Walsh. Porto Alegre: Rue de Monde, 2005
Projeto, 2011. Yendo a no sé dónde a buscar no sé qué
Achei! Zoé Rios. Belo Horizonte: RHJ, 2011 (tradução para o espanhol de Indo não sei
onde buscar não sei o que). Bogotá:
*Poemas com sol e sons. Cecilia Pisos. São
Babel Libros, 2006
Paulo: Melhoramentos, 2011
De morirse (tradução para o espanhol de
Menino Drummond. Poemas de Carlos
De morte!). Ed. Angela Lago, Joana Mello e
Drummond de Andrade selecionados por
Felipe Abranches. eBook Kindle, 2010
Angela Lago. São Paulo: Cia das Letrinhas, 2012
For heaven’s sake! (tradução para o inglês de
Esboços e fragmentos. Poemas de Rainer Maria
De morte!). Ed. Angela Lago, Joana Mello e
Rilke selecionados e traduzidos por Angela
Felipe Abranches. eBook Kindle, 2010.
Lago. São Paulo: Scipione, 2013
Brasil 12 x 12 Alemanha. Hedi Gnädinger
(org.) Angela Lago e mais 11 autores brasileiros Ilustrações no exterior
e 12 alemães. São Paulo: DSOP, 2014. Guess What I’m Doing. Kyoko Matsuoka et
O nome do jogo. Maria Zoé Rios. al. Asian Cultural Centre of Unesco, 1990
Belo Horizonte: RHJ, 2016 (publicado em 34 países)
La maison des mots. Rachel Uziel. Paris:
Seuil, 1995
Autoria integral no exterior
Under The Spell of the moon: Art for Chilfren
The party in the sky (posteriormente traduzido
from the world’s great illustrators. Angela Lago
para português em A festa no céu). Tóquio:
et al. Toronto: Groundwood Books, 2004
Gakken, Tokyo, 1989
Lucas y el ruiseñor (trad. para o espanhol de
The Banana Creak-Creak and other little pests
Lucas e o rouxinol). Antonio Ventura. Caracas:
(tradução para o japonês de Chiquita Bacana
Ekaré, 2005
e as outras pequetitas). Tóquio: Kagyusha, 1991
El cuento del joven mariñero. Isak Dinesen.
Chiquita Bandida y las otras diablitas
Fondo de Cultura Económica, 2006
(tradução para o espanhol de Chiquita
Bacana e as outras pequetitas). Bogotá: Norma
Editorial, 1991  Premiações
The party in the clouds (tradução para o chinês
de The party in the sky). China: Life, 1995 2011
Charadas Macabras (tradução para o espanhol •฀ Prêmio Jabuti, CBL, Categoria Infantil:
de Charadas Macabras). México: Pietra, 1995 Psiquê
Macabre charades (tradução para o inglês •฀ Prêmio FNLIJ O Melhor Reconto e
de Charadas Macabras). USA: Independent Melhor Ilustração Hors-Concours: Psiquê
Publisher, 1996 •฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável:
Cena de Rua está na antologia Minhas Assombrações
The Best Picture Books in the World. 2010
New York: Abhram Press, 1996 •฀ Prêmio Jabuti, CBL, Categorias Ilustração e
De Noche en la calle (tradução para o espanhol Juvenil: Marginal à esquerda
de Cena de rua). Caracas: Ekaré, 1999 •฀ Prêmio Jabuti, CBL, Categoria Infantil:
Juan Felizario Contento (posteriormente A Visita dos 10 monstrinhos
traduzido para português como João Felizardo, •฀ Finalista, Prêmio Jabuti, CBL:
o rei dos negócios). Mexico: Fondo economico Minhas Assombrações e Bichos
de Cultura, 2003

APÊNDI CE ฀฀•฀฀245
•฀ Seleção White Ravens, IJB/IBBY, um dos •฀ Prêmio Jabuti, CBL: Indo não sei aonde
cinco melhores livros infanto-juvenis do buscar não sei o quê
Brasil: Bichos •฀ Prêmio FNLIJ O Melhor para a Criança
2009 Hors-Concours: Indo não sei aonde buscar
•฀ Finalista, Fundação Biblioteca Nacional, não sei o quê
categorias Literatura Infantil e Juvenil e •฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável:
Projeto gráfico: Bichos Hoje é dia de festa
2008 •฀ Prêmio Adolfo Aizen, Categoria projeto
•฀ Prêmio Jabuti, CBL, Categoria Infantil: gráfico: A formiga Aurélia
João Felizardo o rei dos negócios 1999
•฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável, •฀ Selecionada para Octogonales, Prix
Categoria Criança: AEIOU Graphique, Centre International d’Etudes
2007 en Littératures de Jeunesse, Paris:
ABCD Doido
•฀ Prêmio BIB Plaque, Bienal Internacional
da Bratislava: João Felizardo o rei dos •฀ Prêmio FNLIJ O Melhor para a Criança
negócios Hors-Concours: ABCD Doido
•฀ Prêmio FNLIJ O Melhor Reconto Hors- •฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável:
Concours: João Felizardo o rei dos negócios A revolta das palavras
2006 1998
•฀ Indicação ao Prêmio Jabuti, CBL: Coleção •฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável
Virando Onça (ilustração): A criança e seus direitos:
declaração dos direitos da criança
2005
1997
•฀ Prêmio Jabuti, CBL, Categoria Infantil:
Indo não sei aonde buscar não sei o quê •฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável:
Um ano novo danado de bom
•฀ Prêmio FNLIJ O Melhor Reconto
Hors-Concours: Coleção Virando Onça •฀ Medalha da Inconfidência (comenda
concedida pelo Governo de Minas Gerais)
2004
pelo trabalho como escritora
•฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável:
1996
Muito Capeta
•฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável:
•฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável e
Uma Palavra só
O melhor livro de imagem: A raça perfeita
•฀ Prêmio Bloch Educação 25 anos, Literatura
•฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável:
Infantil, menção honrosa na categoria
ilustrações e projeto gráfico de Rap Rua
texto: Uma palavra só
2002
•฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável:
•฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável: A Pedacinho de Pessoa
Banguelinha
1995
•฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável
•฀ Prêmio Octogone d’Ardoise,
e O Melhor Para Criança Hors-Concours:
Prix Graphique, Centre International
Sete histórias para sacudir o esqueleto
d’Etudes en Littératures de Jeunesse, Paris:
2001 Cena de Rua
•฀ Prêmio Jabuti, CBL, de Ilustração: •฀ Prêmio Jabuti CBL, de Ilustração:
O gato chamado Gatinho Cena de Rua
•฀ Prêmio FNLIJ, O melhor livro de poesia: •฀ Prêmio BIB Plaque, Bienal Internacional
O gato chamado Gatinho da Bratislava: Cena de Rua
•฀ Prêmio FNLIJ, Altamente Recomendável: •฀ White Ravens IJB: Cena de Rua
ilustração de O prato azul-pombinho

APÊNDI CE ฀฀•฀฀246
•฀ Prêmio Fernando Pini de Excelência 1992
Gráfica, da Associação Brasileira de •฀ IBBY Certificate of Honour, International
Tecnologia Gráfica e Associação Brasileira Book Board for Young People, 23º
da Indústria Gráfica, ABIGRAF, categoria Congress of the International Book Board
Livros Infantis: Tampinha for Young People, Berlim, Alemanha: Sua
•฀ Prêmio Altamente Recomendável, FNLIJ: Alteza a Divinha
Tampinha •฀ Prêmio FNLIJ O Melhor Para Criança
•฀ Prêmio Altamente Recomendável, FNLIJ: Hors-Concours: De Morte!
O personagem encalhado •฀ Prêmio FNLIJ Imagem Hors-Concours:
•฀ Prêmio Altamente Recomendável, FNLIJ: Cântico dos Cânticos
Charadas Macabras 1991
•฀ Prêmio Adolfo Aizen, União Brasileira dos •฀ Prêmio Octogonales, Prix Graphique,
Escritores, pelo conjunto de obras Centre International d’ Etudes en
1994 Littératures de Jeunesse, Paris, projeto
•฀ Prêmio Jabuti CBL, Infantil: coleção gráfico: O caso da banana
Folclore de casa 1990
•฀ Prêmio Associação Paulista de Críticos de •฀ Prêmio FNLIJ Ofélia Fontes – o melhor
Arte – APCA, Setor de Literatura Infantil, livro infantil: Sua Alteza a Divinha
Categoria Livro sem texto: Cena de Rua •฀ Indicação para o Prêmio Hans Christian
•฀ Prêmio FNLIJ O melhor livro sem texto Andersen de Ilustração pelo conjunto de
Hors-Concours: Cena de Rua obras
•฀ Prêmio Adolfo Aizen, União Brasileira dos •฀ Prêmio APCA, Categoria Editoração
Escritores, Prêmio em Literatura Visual: e Projeto Gráfico, Setor de Literatura
Cântico dos Cânticos Infantil: Sua Alteza a Divinha
•฀ Selecionado no Prêmio Iberoamericano de •฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável:
Ilustração: Cântico dos Cânticos ilustrações de O caso da Banana
•฀ Prêmio Altamente Recomendável, FNLIJ: 1989
Festa no céu •฀ Prêmio FNLIJ Ofélia Fontes – o melhor
•฀ Indicação para o Prêmio Hans Christian livro infantil: ilustrações de A mãe da mãe
Andersen/IBBY, categoria Ilustração, pelo da minha mãe
conjunto de obras •฀ Indicação ao Jabuti: A mãe da mãe da
•฀ Prémio Iberoamericano de Ilustración, La minha mãe
Consejería de Cultura, Junta de Andalucia, •฀ Prêmio João de Barro, selecionado:
Sevilha, Espanha Na casa dos treze anos ou Estrelas e Pulgas
1993 1986
•฀ Prêmio Octogone de Fonte, Prix •฀ Prêmio de Ilustração Bienal do Livro,
Graphique. Centre International d’Etudes Bienal Internacional do Livro. São Paulo:
en Littératures de Jeunesse, Paris: Cântico CBL, pelas ilustrações do livro Outra Vez
dos Cânticos
•฀ Prêmio Noma Concours for Children’s
•฀ 1º lugar do MAConcurso, promovido Picture Book Illustrations – Runner up:
pela Genesys, representante da Aple, pela Chiquita Bacana e as outras pequetitas
utilização de computação gráfica em
•฀ Prêmio FNLIJ Luís Jardim – o melhor livro
conjunto de obra
de imagens: Chiquita Bacana e as outras
•฀ Prêmio Altamente Recomendável, FNLIJ, pequetitas
projeto editorial e ilustração: Layla
•฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável:
•฀ Prêmio Projeto Editorial e Altamente Correspondência
Recomendável, FNLIJ: coleção
•฀ Prêmio FNLIJ Altamente Recomendável:
Folclore de Casa
Poemas com sol e sons

APÊNDI CE ฀฀•฀฀247
1984 2.฀Roger฀Mello
•฀ Finalista do Prêmio Banco Noroeste
de Literatura Infantil e Juvenil, Bienal Zubair
Internacional do Livro de São Paulo, Prêmios
Categoria Ilustração: Uni duni e tê
CBL, 2007. 49º Prêmio Jabuti Livro Infantil
•฀ Prêmio FNLIJ O melhor livro sem texto:
(3º lugar)
Outra Vez
FNLIJ, 2008. Melhor Projeto Editorial
•฀ Prêmio APCA, Setor de Literatura Infantil,
Categoria de Livro Sem Texto: Outra Vez
Texto de quarta capa
•฀ 1º e 4º lugar no Concurso FNLIJ de
Cartazes para o Dia Internacional do Bagdá, abril de 2003. Mísseis sem rumo
Livro Infantil atingiam ruas e mercados. Feridos e mortos
em uma confusão de bombardeios. Prédios
1983
públicos como a Biblioteca Nacional e a
•฀ Câmara Mineira do Livro, Homenagem universidade são pilhados. Durante três dias
Placa Amiga do Livro o Museu de Bagdá foi saqueado diante dos
•฀ 1982 olhos das forças americanas e britânicas, que
•฀ Prêmio CBL Jabuti de Ilustração: ignoraram o apelo dos funcionários do museu
O Pintassilgo Azul e de arqueólogos do mundo todo. Entre os
•฀ Prêmio FNLIJ O Melhor para a Criança: artefatos roubados, relíquias da civilização
Uni duni e Tê mesopotâmica que chegavam a ter 7 mil anos
de idade, levadas de maneira organizada para
1981
ser vendidas no mercado de arte clandestino
•฀ Prêmio Maioridade Crefisul, I Concurso
Quando o menino Zubair encontra um objeto
Nacional de Literatura Infantil, Menção
em meio aos destroços, depara com enigmas
Honrosa: Salamê minguê
que o conectam à antiga Mesopotâmia, onde
•฀ Prêmio João de Barro, 1º lugar: Uni duni e tê surgiram a escrita, o cálculo e o conceito
outros de tempo. Por caminhos tortuosos como
•฀ A FNLIJ indicou Sangue de Barata, labirintos, Zubair alcança o tempo dos
juntamente com outros cinco títulos, sumérios, acádios, assírios e babilônios,
para a premiação anual da International antigos povos que agora têm seu legado
Reading Association, Nova York comprometido, da mesma maneira que os
atuais iraquianos em meio à guerra
•฀ Menção honrosa pelo livro A caminho
de casa (sob o pseudônimo de Mariana),
concedida pela União Brasileira de  Bibliografia
Escritores (UBE)
Autoria integral
•฀ O livro Cena de rua integra a antologia The
Best Picture books in the world de Abrahm A flor do lado de lá. Roger Mello. Salamandra /
Press, Nova York Global, 1990.
•฀ Membro do Júri do Prêmio da Bienal *O gato Viriato. Roger Mello. Ediouro, 1993.
Internacional da Bratislava, 2003 *O próximo dinossauro. Roger Mello.
•฀ Membro da Comissão Julgadora do FTD, 1994.
Concurso Nacional de Literatura Infantil *Uma história de Boto-vermelho. Roger Mello.
João de Barro, 1989 Salamandra, 1995.
Viriato e o Leão. Roger Mello. Ediouro, 1996.
*Bumba meu boi Bumbá. Roger Mello.
Agir, 1996.
*Maria Teresa. Roger Mello. Agir, 1996.

APÊNDI CE ฀฀•฀฀248
*Cavalhadas de Pirenópolis. Roger Mello. *Mistérios do mar oceano. Ana Maria
Agir, 1997. Machado. Nova Fronteira, 1992.
*Griso, o unicórnio. Roger Mello. É isso ali! José Paulo Paes. Salamandra, 1993.
Brinque-Book, 1997. *É só querer. Pedro Pessoa.
A pipa. Roger Mello. Paulinas, 1997. Nova Fronteira, 1993.
*Todo cuidado é pouco. Roger Mello. *O Golem e outras aventuras do rabino Judá
Cia. das Letrinhas, 1999. Levi, de Praga. Jayne Brener. FTD, 1993.
*Jardins. Roseana Murray. Manati, 2001. A lenda da noite. Daniela Chindler. Revan, 1993.
Meninos do Mangue. Roger Mello. *Não gosto, não quero. Luciana Savaget.
Cia. das Letrinhas, 2001. Ediouro, 1993.
Vizinho, vizinha. Roger Mello. Rômulo e Júlia: os caras-pintadas. Rogério
Cia. das Letrinhas, 2002. Andrade Barbosa. FTD, 1993.
*Em cima da hora. Roger Mello. *Em boca fechada não entra estrela.
Cia. das Letrinhas, 2004. Leo Cunha. Ediouro, 1994.
*Nau Catarineta. Roger Mello. Manati, 2004. *Fulustreca. Luiz Raul Machado. Ediouro, 1994.
*João por um fio. Roger Mello. *O macaco e a boneca de cera. Sonia Junqueira.
Cia. das Letrinhas, 2006. Atual, 1994.
*Desertos. Roseana Murray. Objetiva, 2006. *Praça das dores. José Louzeiro.
*Zubair e os labirintos. Roger Mello. Salamandra, 1994.
Cia. das Letrinhas, 2007. Ver-de-ver meu pai. Celso Sisto.
*Carvoeirinhos. Roger Mello. Nova Fronteira, 1994.
Cia. das Letrinhas, 2009. Coleção “Assim é se lhe parece”: Vou ali e volto
Ossos do ofício. Roger Mello. já (vol. 1) / Nem assim nem assado (vol. 2) /
Nova Fronteira, 2009. Cropas ou praus? (vol. 3) / Se faísca, ofusca (vol.
4) / Chamuscou, não queimou (vol. 5) / Quem
*Selvagem. Roger Mello. Global, 2010.
acorda, sonha (vol. 6). Angela Lago Carneiro,
Contradança. Roger Mello. Lia Neiva e Sylvia Orthof. Ediouro, 1994.
Cia. das Letrinhas, 2010.
O Caapora. Herberto Sales.
Civilização Brasileira, 1995.
Ilustrações *A cristaleira. Graziela Bozano Hetzel.
Coleção: Cadê / Catacrese! / Daniel, Dona Pata Ediouro, 1995.
e os Medos / Feliz / Girassol / Livro dos opostos. *O dinossauro: mais uma história ecológica.
Irles Carvalho & J. Pedro Veiga. Maco, 1990. Leo Cunha e Marcus Tafuri. Ediouro, 1995.
Que bicho é esse: Pantanal / Que bicho é esse: Flor-do-mato. Herberto Sales.
Amazônia. Irles Carvalho. Maco, 1991. Civilização Brasileira, 1995.
*Coleção De mãos dadas com a natureza. Gugu mania. José Louzeiro.
Vários autores. Salamandra, 1991. Civilização Brasileira, 1995.
*A Bolinha de Jornal. Fátima Portilho. Estação O inventor de palavras. Angela Lago Carneiro
Liberdade, Fund. Nestlé de Cultura, 1991. José Olympio, 1995.
*Eu quero uma coisa. Pedro Pessoa. Nova O mistério das Sete Estrelas. Herberto Sales.
Fronteira, 1991. Civilização Brasileira, 1996.
Atíria na Amazônia. Lúcia Machado de Pink: viagem ao submundo da mágica.
Almeida. Salamandra, 1991. José Louzeiro. Civilização Brasileira, 1996.
Babruxa, o Caldeirão e o Dragão. Irles *Sundjata: o príncipe leão. Rogério Andrade
Carvalho & J. Pedro Veiga. Maco, 1992. Barbosa. Agir, 1996.
*Fita verde no cabelo. João Guimarães Rosa. Coleção “Eles são sete”: *A Gula (vol. 1) . /
Nova Fronteira, 1992. A Ira (vol. 2) / A Preguiça (vol. 3) / O Orgulho

APÊNDI CE ฀฀•฀฀249
(vol. 4) / *A Inveja (vol. 5) . / A Avareza (vol. O dia da caça: aventuras do pequeno
6) / A Luxúria (vol. 7). Autores diversos. naturalista. Bia Hetzel. Brinque-Book, 1998.
Ediouro, 199. Amor, amor, amor. Luciana Fidalgo.
O Dia da Árvore. Patricia Bins. Bertrand Global, 1998.
Brasil, 1996. Carta a El Rey Dom Manuel Pero Vaz de
Em cima do ringue. Henrique Félix. Atual, 1996. Caminha. Versão moderna de Rubem Braga.
Gente bem diferente. Ana Maria Machado. Record, 1999.
Ediouro, 1996. Na marca do pênalti. Leo Cunha. Atual, 1999.
SOS Tartarugas marinhas. Rogério Andrade O pintor. Lygia Bojunga. Agir, 1999.
Barbosa. Melhoramentos, 1996. Jonas e a sereia. Zelia Gattai. Record, 2000.
The sweater of Mrs. Better. Telma Guimarães Coleção “Grandes Poemas em Boca Miúda”
Castro Andrade. Atual, 1996. (16 vol.). Org. Laura Sandroni e Luiz Raul
*A Terra dos Meninos Pelados (Raimundo im Machado. Arte e ensaio, 2001.
Land Tatipirún). Graciliano Ramos. Verlag Ana e a margem do rio. Godofredo de Oliveira
Nagel & Kimche AG (em português pela Neto. Record, 2002.
Record em 2003), 1996.
*O homem que não queria saber mais nada e
Coleção “Que bicho será?”: Que bicho será outras histórias. Peter Bichsel. Ática, 2002.
que botou o ovo? (vol. 1) / Que bicho será que a
Curupira. Texto Roger Mello, ilustrações
cobra comeu? (vol. 2) / Que bicho será que fez o
Graça Lima. Manati, 2003.
buraco? (vol. 3) / Que bicho será que fez a coisa?
(vol. 4) / Será mesmo que é bicho? (vol. 5). Memórias da ilha. Luciana Sandroni. Cia. das
Angelo Machado. Nova Fronteira, 1997. Letrinhas, 2003.
O dia da caça. Bia Hetzel. Brinque-Book, 1997. Pequeno pode tudo. Pedro Bandeira.
Moderna, 2003.
As borboletas. Irles Carvalho & J. Pedro Veiga.
Maco, 1997. Nuno descobre o Brasil. José Roberto Torero e
Marcus Aurelius Pimenta. Objetiva, 2004.
Conta uma história? Ana Lúcia Brandão.
Paulinas, 1997. Naná descobre o Céu. José Roberto Torero e
Marcus Aurelius Pimenta. Objetiva, 2005.
*Eu me lembro. Eustáquio Lembi de Faria
Dimensão, 1997. *Rodas e bailes e sons encantados. Lucia
Pimentel Goés. Larousse, 2005.
Pedro e Pietrina: uma história verdadeira.
Patricia Bins. Bertrand Brasil, 1997. Coleção “Banquete folclórico”: Assombrações
da Água / Assombrações da Terra / Quem faz
O penúltimo dragão branco. Márcio Trigo.
os dias da semana? / Rodas e bailes de sons
Ática, 1997.
encantados / Vamos Brincar com as Palavras.
O pequeno cantador. Celso Sisto. Lúcia Pimentel Góes. Larousse, 2006.
Dimensão, 1997.
É meu! Cala boca! Quem manda sou eu!
Seis vezes Lucas. Lygia Bojunga. Agir, 1997. Luciana Savaget. Larousse, 2006.
Perigo na Grécia. Elizabeth loibl. *Zoo. João Guimarães Rosa.
Melhoramentos, 1997. Nova Fronteira, 2008.
Coleção “Tião Parada: O Rei da Estrada”: O Hans Christian Andersen: Diferentes heróis,
livro do pode-não-pode (vol. 1) / Quanta casa! diferentes caminhos. Jason Prado e Ana
(vol. 2) / O caminhão que andava sozinho Claudia Mais (org.). Leia Brasil, 2008.
(vol. 3) / O peixe dos dentes de ouro (vol. 4)
O medo e o mar. Maria Camargo.
/ Os meninos-caracol (vol. 5). Rosa Amanda
Cia. das Letras, 2009.
Strausz. Moderna, 1998.
*Inês. Texto Roger Mello, ilustrações Mariana
O seco e o amoroso. Stela Maris Rezende.
Massarani. Cia. das Letrinhas, 2015.
Ediouro, 1998.
Tchau. Lygia Bojunga. Agir, 1998.

APÊNDI CE ฀฀•฀฀250
 Premiações฀ 3.฀Fernando฀Vilela2
Nacionais
•฀฀ FNLIJ:฀Prêmio฀Malba฀Tahan,฀1992; prêmio Lampião & Lancelote
Luís Jardim, 1994; 6 prêmios Ofélia Fontes São Paulo: Cosac Naify, 2006
– Melhor Livro Infantil, sendo 2 deles 4ª reimpressão em 2011, com mais de 55 mil
hors concours; prêmio Lucia Benedetti exemplares vendidos
– Melhor Livro de Teatro hors concours, 35,5 x 24,8 cm · 52 páginas
2003; 2 prêmios Melhor Projeto Editorial;
Capa dura em 3 cores (preto e hot stamping
3 prêmios Melhor Ilustração, 1994, 1995,
1996; 5 prêmios Melhor Ilustração hors prata e cobre) com laminação fosca , com
concours , 1997, 1998, 2002, 2005, 2006; guardas em 1 cor (preto)
prêmio Melhor Reconto hors concours, Miolo em 3/3 cores (preto, prata e cobre)
2005; 27 vezes Altamente Recomendável. sobre papel couché matte 200g/m2
•฀฀ União฀Brasileira฀dos฀Escritores:฀Prêmio฀
especial Adolfo Aizen; Menção Especial; Prêmios
Prêmio pelo conjunto da obra. ABIGRAF/ABTG, 2008. 18º Prêmio Fernando
•฀฀ CBL:฀8 prêmios Jabuti em 1993, 1997, 1999, Pini de Excelência Gráfica. Categoria: livros
2002 (2 categorias), 2005, 2007, 2008.
infantis
•฀ Prêmio฀ABL฀recebido฀em฀parceria฀com฀ CBL, 2006. 48º Prêmio Jabuti: Melhor livro
Roseana Murray pelo livro Jardins, 2002.
infantil, Melhor ilustração de livro infantil ou
•฀ Prêmio฀Monteiro฀Lobato,฀1996.
juvenil, Capa (2º lugar)
•฀฀ Folha฀de฀São฀Paulo.฀“Lista฀de฀livros฀que฀toda฀ Feira de Bolonha, 2007. Prêmio Bologna
criança deve ler antes de virar adulto”, 2007
Ragazzi Novos horizontes (menção honrosa)
FNLIJ, 2007. Escritor revelação, Melhor
Internacionais ilustração. Melhor livro de poesia, Melhor
•฀฀ IBBY:฀Hans฀Christian฀Andersen,฀ projeto editorial
Ilustração, 2014
IBBY, 2007. Catálogo White Ravens. Honour
•฀ IJB:฀5 selos White Ravens; Lista de Honra
list – ilustrador
do IBBY, indicado pela FNLIJ, 1998.
•฀฀ Prêmio฀internacional฀Fondation฀Espace฀
Seleção em programas de governo
Enfants, Suíça: Meninos do mangue.
Melhor Livro Infantil, 2002. Programa Nacional Biblioteca da Escola –
•฀฀ Astrid฀Lindgren฀Memorial฀Award฀–฀ PNBE, 2008
ALMA: 10 indicações pela FNLIJ: Maria Programa Lendo e Aprendendo, 2007
Teresa; Griso, o unicórnio; Cavalhadas
de Pirenópolis; Meninos do mangue; Nau Adaptações
Catarineta; Jardins; João por um fio; Zubair Adaptado para o teatro e encenado no teatro
e os labirintos; Zoo e Carvoeirinhos. SESI-SP em 2013, com dramaturgia de Braulio
Tavares, direção de Daniela Dubois e músicas
de Zeca Baleiro.

2 Fonte: site do autor. Disponível online em


http://www.fernandovilela.com.br/fernando/
curriculo.html. Acesso em 01 fev 2016.

APÊNDI CE ฀฀•฀฀251
Texto de quarta capa A Toalha Vermelha. Brinque Book, 2007
As aventuras de cavaleiros medievais estão *Lampião & Lancelote. Cosac Naify, 2006
no repertório dos livros infantis e juvenis do
mundo inteiro. Já as histórias de cangaceiros
Ilustrações no Brasil
são um dos ciclos mais populares da literatura
de cordel nordestina. Para o ilustrador e autor Como mudar o mundo?. Stela Barbieri.
Fernando Vilela, o encontro entre o cavaleiro FTD, 2015
Lancelote e o cangaceiro Lampião foi uma Onde a onça bebe água. Verônica Stigger.
ideia irresistível, que lhe permitiu mostrar Cosac Naify, 2015
as semelhanças entre os dois universos que O voo de Vadinho. Álvaro Faleiros.
parecem muito distantes Pequena Zahar.
Assim como na arte da xilogravura duas Sapo Comilão. Stela Barbieri. DCL, 2014
matrizes de madeira produzem cores Queixadas e outros contos guaranis. Olivio
diferentes sobre a mesma imagem, aqui as Jukupe. FTD, 2013
narrativas épicas da cultura medieval e as
A máquina. Adriana Falcão. Salamandra, 2013
sextilhas dos cordelistas do sertão são matrizes
que se juntam para criar uma história em Pedro Pedreiro. Chico Buarque. Casa da
prosa e verso, em carimbo e xilogravura, palavra, 2013
mostrando o instante em que dois universos A árvore Tamoromu. Ana Luisa Lacombe.
paralelos se cruzaram através das figuras de Formato, 2013
seus maiores heróis Simbá, o marujo. Stela Barbieri.
As cores especiais também dialogam para Cosac Naify, 2013
demarcar e unir os momentos do livro. O A menina a placa. Michel Gorski. Lafonte, 2012
cobre reflete os detalhes da indumentária, Mais narrativas preferidas de um contador de
balas e moedas de Lampião, enquanto o prata histórias. Ilan Brenman. DCL, 2012
caracteriza as vestes e armas d& Lancelote
Na travessa da macarronada. Ricardo Filho.
O resultado é uma aventura visual e poética à Tordesilhas, 2012
altura das duas culturas que a inspiraram
Col. O brinquedo faz a história: *O bicho
Braulio Tavares manjaléu / Boileição / A onça e o bode /
Como surgiram os vaga-lumes. Stela Barbieri.
 Bibliografia Scipione, 2012
Col. Machado de Assis: A cartomante / A causa
Autoria integral no Brasil
/ Umas férias / Uns braços secreta. Machado de
Três Tigres Tristes. Brinque Book, 2014 Assis. Escala Educacional, 2010
Aventura Animal. DCL, 2013 Dora e o Sol. Verônica Stigger. Ed. 34, 2010
Abrapracabra! Brinque Book, 2012 As mortes e o triunfo de Rosalinda. Jorge
Caçada. Scipione, 2012 Amado. Cia. das Letras, 2010
Os heróis do tsunami. Brinque Book, 2011 *O livro das cobras. Stela Barbieri e Fernando
Eu vi. Brinque Book, 2011 Vilela. DCL, 2010
O disfarce dos animais. Brinque Book, 2011 Em busca de Esmeraldo. Ilan Brenman e
Onde eles estão. Brinque Book, 2011 Fernando Vilela. Salesianas, 2010
*Seringal. Scipione, 2010 O livro das cobras. Stela Barbieri. DCL, 2010
O barqueiro e o canoeiro. Scipione, 2008 Contador de histórias de bolso CHINA. Ilan
Brenman e Fernando Vilela. Moderna, 2009
A Comilança. DCL, 2008
Contador de histórias de bolso GRÉCIA. Ilan
OlemaC e Melô. Cia. das Letras, 2007 Brenman e Fernando Vilela. Moderna, 2009
Tapajós: uma aventura nas águas da Amazônia. Contador de histórias de bolso RÚSSIA. Ilan
Ática, 2007. Brinque Book, 2015 Brenman e Fernando Vilela. Moderna, 2009

APÊNDI CE ฀฀•฀฀252
Mania de bicho. Donizete Galvão e Fernando *A menina do fio. Stela Barbieri.
Vilela. Positivo, 2009 Girafinha, 2006
O nascimento do universo. Judith Nuria Maida *Ivan filho-de-boi (Coleção Mitos do Mundo).
e Fernando Vilela. Ática, 2009 Marina Tenório. Cosac Naify, 2004
Desafios de Cordel. César Obeid. FTD, 2009 *Sabedoria das águas. Daniel Munduruku.
*Eros e Psique. Ferreira Gullar. FTD, 2009 Global, 2004
Curumim e Poranga. Neli Guiguer. Sistemas de Erros. Fábio Wentraub.
Paulinas, 2009 Pau Brasil, 1995
Col. Jeitos de Mudar o Mundo: A menina do
feijão suculento / Radija e os tapetes mágicos / Autoria integral no exterior
Reino dos Mamulengos / Satiko e o Vulcão / Na Le Chemin. Autrement. França
Sombra do Baobá / O Gênio do poço encantado
/ A ponte / O Amigo do Animais. Stela Barbieri
e Fernando Vilela. Escala Educacional, 2009 Ilustrações no exterior
Pedro Malasartes em quadrinhos. Stela Barbieri Arroz con Leche. Jorge Argueta. Groundwood.
e Fernando Vilela. Moderna, 2008 Canadá
*ABC do Japão. Stela Barbieri e Fernando Los espejos de Anaclara. Mercedes Calvo.
Vilela. SM, 2008 Fondo de Cultura Económica. México
Contador de histórias de bolso BRASIL. Ilan We are all born free. Amnesty International
Brenman e Fernando Vilela. Moderna, 2008 UK Section. Inglaterra
Contador de histórias de bolso ÁFRICA. Ilan The Great Snake. Sean Taylor. Francis Lincoln.
Brenman e Fernando Vilela. Moderna, 2008 Inglaterra
*Cobra Grande. Sean Taylor. SM, 2008 Transes. Álvaro Faleiros e Dominique Martin.
Ed. du Nord. Canadá
*A invenção do mundo pelo Deus-Curumim.
Braulio Tavares. Ed. 34, 2008
 Premiações
Col. Machado de Assis: Conto de Escola / Missa
do galo / Um Apólogo / O Espelho. Machado de 2011
Assis. Escala Educacional, 2008
•฀ Selo FNLIJ Altamente Recomendável,
Meio Mundo. Álvaro Faleiros. Categoria Reconto: O bicho manjaléu
Ateliê Editorial, 2008
2010
Ave Cachaça! Nascimento, vida, reza e glória.
•฀ Selo FNLIJ Altamente Recomendável,
Francisco Villela. do Autor, 2008
Categoria: Jovem: Seringal – uma aventura
Festa de Aniversário. Ilan Brenman. DCL, 2007 na Amazônia
O elefante infante. Ruyard Kipling. Musa, 2007 •฀ Selo FNLIJ Altamente Recomendável,
Bumba Meu Boi. Stela Barbieri. Girafinha, 2007 Categoria Reconto: O livro das cobras
Contos para crianças impossíveis. Jacques •฀ Selo FNLIJ Altamente Recomendável,
Prévert. Cosac Naify, 2007 Categoria Reconto: Eros e Psique
O Rebelde e outros contos amazônicos. Inglês de 2009
Sousa. Scipione, 2007 •฀ Selo FNLIJ Altamente Recomendável,
A lenda de Taita Osongo. Joel Franz Rosell. Categoria Informativo: ABC do Japão
SM, 2007 •฀ Prêmio Jabuti Melhor livro infantil: A
*A vingança do falcão. Rogério Barbosa de invenção do mundo pelo Deus-Curumim
Andrade. Brinque Book, 2006 •฀ Selo FNLIJ Altamente Recomendável,
*Hermes o motoboy. Ilan Brenman. Cia. das Categoria Reconto: A invenção do mundo
Letrinhas, 2006 pelo Deus Curumim
*O que cabe num livro. Ilan Brenman.
DCL, 2006

APÊNDI CE ฀฀•฀฀253
•฀ Selo FNLIJ Altamente Recomendável,
Categoria Tradução e adaptação:
Cobra grande
2008
•฀ Nomeado para lista de Honra do IBBY
nas categorias Melhor Escritor e Melhor
Ilustrador: Lampião & Lancelote
2007
•฀ Prêmio Jabuti melhor ilustração infantil-
juvenil: Lampião & Lancelote
•฀ Prêmio Jabuti melhor livro infantil:
Lampião & Lancelote
•฀ Prêmio Jabuti 2o lugar melhor capa:
Lampião & Lancelote
•฀ Menção Honrosa Novos Horizontes,
Feira do Livro Infanto-Juvenil Bolonha:
Lampião & Lancelote
•฀ Prêmio FNLIJ Melhor poesia:
Lampião & Lancelote
•฀ Prêmio FNLIJ Melhor ilustração:
Lampião & Lancelote
•฀ Selo FNLIJ Altamente Recomendável,
A vingança do falcão
•฀ Selo FNLIJ Altamente Recomendável:
Hermes o motoboy
•฀ Selo FNLIJ Altamente Recomendável:
O que cabe num livro
•฀ Selo FNLIJ Altamente Recomendável:
A menina do fio
•฀ Indicação para o Prêmio Jabuti:
A menina do fio
2006
•฀ Selo FNLIJ Altamente Recomendável:
A dobradura do samurai
•฀ Selo FNLIJ Altamente Recomendável:
As narrativas preferidas de um contador
de histórias
2005
•฀ Selo FNLIJ Altamente Recomendável:
Sabedoria das águas
•฀ Selo FNLIJ Altamente Recomendável:
Meu lugar no mundo
2004
•฀ Prêmio FNLIJ Ilustrador Revelação:
Ivan filho-de-boi

APÊNDI CE ฀฀•฀฀254
Anexo
Manifesto Antropófago1

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.


Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos.
De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com
o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exte-
rior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da sau-
dade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que
era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentali-
dade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.
Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revol-
tas eficazes na direção do homem. Sem n6s a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos
direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.
Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem na-
tural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução
Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos..
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na
Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-anal-
fabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o
açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.

1 Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.

A NEXO ฀฀•฀฀255
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da va-
cina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A
transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é
dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas.
E o esquecimento das conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
O instinto Caraíba.
Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Sub-
sistência. Conhecimento. Antropofagia.
Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingin-
do de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.
Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipeju*
A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens
dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da
possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comia.
Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?
Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não ru-
bricado. Sem Napoleão. Sem César.
A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os trans-
fusores de sangue.
Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.
Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde
de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.
Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo,
porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos ve-
getais.
Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distri-
buição. E um sistema social-planetário.

ANEXO ฀฀•฀฀256
As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios
e o tédio especulativo.
De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.
O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas+ fala de imaginação
+ sentimento de autoridade ante a prole curiosa.
É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não preci-
sava. Porque tinha Guaraci.
O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D.
Antônio de Mariz.
A alegria é a prova dos nove.
No matriarcado de Pindorama.
Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Supri-
marnos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instru-
mentos e nas estrelas.
Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.
A alegria é a prova dos nove.
A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do
homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do
inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém,
só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido
da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma
sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele
se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se.
Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja,
a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que
estamos agindo. Antropófagos.
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ra-
malho fundador de São Paulo.
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa
coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar
o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos,
sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

Oswald de Andrade
Em Piratininga
Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha

ANEXO ฀฀•฀฀257

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