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Biblioteca Setorial do Centro de Artes – Universidade Federal do Espírito Santo

FAROL – Revista do Programa de Pós-graduação em Artes. Universidade Federal do


Espírito Santo, Centro de Artes – número 24 – Vitória : Centro de Artes/UFES, inverno
2021.

Semestral

ISSN 1517 - 7858

1.Artes – Periódicos . 2. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Artes.

CDU 7 (05)
Verão 2020/2021– número 24, ano 17
Centro de Artes – Universidade Federal do Espírito Santo ISSN: 1517 - 7858
FICHA TÉCNICA

A Revista Farol é uma publicação do Programa de Reitor


Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Paulo Sérgio de Paula Vargas
Espírito Santo.
Vice-Reitor
Editores Roney Pignaton da Silva
Aparecido José Cirillo
Ângela Grando Diretora do Centro de Artes
Larissa Zanin
Editoras de Seção
Aissa Afonso Guimarães Coordenação do Programa de Pós-Graduação
Renata Gomes Cardoso Aparecido José Cirillo

Capa e Editoração Conselho Editorial


Rodrigo Hipólito Prof. Dr. Alexandre Emerick Neves (PPGA-UFES)
Profa. Dra. Almerinda Lopes (PPGA-UFES)
Imagem da capa Profa. Dra. Angela Grando (PPGA-UFES)
Charlene Bicalho. Onde você ancora seus silêncios #2. Profa. Dra.Cecília Almeida Salles (PUC-SP)
Fotografia: Luara Monteiro. Profa. Dra. Diana Ribas (UNDS, Argentina)
Prof. Dr. Dominique Chateau (Université Paris 1, Pan-
théon-Sorbonne)
Editora Prof. Dr. Gaspar Leal Paz (PPGA-UFES)
PROEX/Centro de Artes Profa. Dra. Isabel Sabino (FBA-UL)
Universidade Federal do Espírito Santo Prof. Dr. João Paulo Queiroz (FBA-UL)
Prof. Dr. José Cirillo (PPGA-UFES)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO Prof. Dr. Luis Jorge Gonçalves (FBA-UL)
Centro de Artes Profa. Dra. Maria Luisa Távora (EBA- UFRJ)
Campus universitário de Goiabeiras Profa. Dra. Maria de Fátima M. Couto (IAR-Unicamp)
Av. Fernando Ferrari, 514, CEMUNI I – Vitória, ES Profa. Dra. Monica Zielinsky (PPGAV-UFRGS)
CEP 29.075-910 Profa. Dra. Pilar M. Soto Solier (Univ. de Murcia, ES)
lab.artes.ufes@gmail.com Prof. Dr. Raoul Kirchmayr (Univ. de Trieste, Itália)
Profa. Dra. Teresa Espantoso Rodrigues (FFL-UFBA)
Profa. Dra. Teresa F. Garcia Gil (Univ. de Granada, ES)
Prof. Dr. Waldir Barreto (DTAM-UFES)
SUMÁRIO

7 Apresentação

10 ENSAIO
Bas Jan Ader’s Ludic Conceptualism: Performing a transnational identity
Janna Schoenberger

SEÇÃO TEMÁTICA
24 Arte Contemporânea e expressões artístico-culturais nas relações étnico-raciais
Aissa Afonso Guimarães
Renata Gomes Cardoso

27 A História da Arte branco-brasileira e os limites da humanidade negra


Kleber Amancio

39 A Lança e o Arco, ou Por um devir-quilombista da arte


Jorge Vasconcellos

45 Voltar à encruzilhada: a poética do retorno de Geovanni Lima


Maíra Freitas de Souza
Geovanni Lima

57 Não caminho sozinho: percurso para recordar e ressignificar na obra de Paulo Nazareth
Camila Calolinda da Silva
Alex Fabiano Alonso
Eluiza Bortolotto Ghizzi

69 Impulso Historiográfico na prática artística de Rosana Paulino: o caso da exposição


Atlântico Vermelho no Padrão dos Descobrimentos (2017)
Lucas Ferreira de Vasconcellos
Rita Lages Rodrigues

80 Sobre políticas do corpo negro feminino e territorialidades jongueiras no enfrenta-


mento ao racismo
Patrícia Rufino

94 Quilombo, território e patrimônio cultural: a visão de duas lideranças


Osvaldo Martins de Oliveira
Paula Aristeu Alves
108 Viva São Benedito! Resistência e experiência na Banda de Congo Amores da Lua
da cidade de Vitória, ES
Elisa Ramalho Ortigão

122 Benjamin de Oliveira: Palhaço Negro no Salão do Branco


Zeca Ligiéro

139 Uma escuta das migrações, músicos haitianos e performances em deslocamento


Daniel Stringini

ARTIGOS
152 Curadoria e Tecnologia, História e Arte: pensando a mediação
Ana Gláucia Oliveira Motta

160 Computador-atelier como agenciamento maquínico: análise sobre o processo de


criação da artista multimídia Liana Timm
Andresa Thomazoni
Tania Mara Galli Fonseca
Margarete Axt

174 Navegante: os caminhos para a experiência estética na arte/educação


Rafaela Pupin de Oliveira
Eliane Patricia Grandini Serrano

183 O expressionismo e a poética do lixo


Olga Kempinska

192 Sujeito criador através da auto-análise da própria produção artística. uma aborda-
gem transversal desde as artes visuais, a psicologia analítica e a arteterapia
Fernando Alvarez

TRADUÇÃO
205 O Conceitualismo Lúdico de Bas Jan Ader: Performando a Identidade Transicional
Janna Schoenberger
Tradução de Angela Grando, Léa Araújo

218 NORMAS DE PUBLICAÇÃO


Apresentação

Colocar a questão da pertinência da “Arte Contemporânea e expressões artístico-culturais nas re-


lações étnico-raciais”, eixo do dossiê temático desta edição, nos faz interpelar as adversidades que
atuaram e atuam no contexto da produção, circulação e recepção de períodos de significativa mu-
dança de paradigmas na arte. Sabemos que o primeiro teórico ocidental a analisar a arte africana
no plano formal e com um olhar livre de todo etnocentrismo foi Carl Einstein (1885-1940).1 Sua abor-
dagem, audaciosa e inovadora, contribuiu para transformar profundamente, com poder de trans-
gressão, a problemática da gênese da arte moderna. Apontando, através de textos balizares sobre a
“arte negra”,2 para uma outra inscrição do estético, Carl Einstein traça uma identificação de práticas
culturais, uma espécie de reconquista da linguagem e de uma nova percepção da realidade tal como
a descobre simultaneamente nos cubistas.

Nessa perspectiva, o que “novas” ideias viriam realmente continuar, muito mais do que a qualquer
outra tradição europeia, era justamente aquele processo emancipatório, que fora iniciado (no plano
teórico), décadas antes, por Carl Einstein, e lançar a partir dessa vontade de forma (Kunstwollen)
outros caminhos de exploração plástica. Nessa confluência, operando diretamente na abordagem
das produções artísticas numa perspectiva decolonial, com olhos em vivências estéticas de outros
povos fora do continente europeu, a exposição Primitivism in 20th Century Art: affinity of the tribal and
Modern Art (MoMA), nos anos de 1984/85, evidenciou não apenas o frescor estético de povos da Ocea-
nia e de partes da África, mas mostrou como elas demarcaram com seus traços culturais a produção
artística ocidental a partir das vanguardas históricas do século XX.

Adversidades em seus multifacetados significados são inerentes à humanidade, reiteradamente


solicitada a se reinventar e a reagir defronte ao imprevisível, respondendo pela aplicação de novas
estruturas, criando proposições abertas ao exercício imaginativo da arte. Em nosso país, cuja “bra-
silidade” se alimentou de duas correntes constitutivas da arte, a modernidade e o primitivismo, isto
se cumpriu quando uma visão crítica na identificação de práticas culturais se sobrepõe à “alienação”
dos discursos (totalizadores) sobre a “realidade brasileira”. Como assinalou Hélio Oiticica no Esquema
geral da nova objetividade (1967) – Da Adversidade Vivemos! Escrito em um período politicamente

1 EINSTEIN, Carl. Negerplastik. Leipzig: Verlag der Weissen Bücher, 1915.


2 “arte negra”, em acordo com a terminologia da época. Cf. EINSTEIN, Carl. La Sculpture Nègre. Paris: L’Harmattan, 1998.
tenso, e com abordagem e tomada de posição em relação à problemas políticos, sociais e éticos,
há neste texto determinantes questões do cenário artístico naquele período e dos desafios a serem
enfrentados. E da adversidade seguimos vivendo. E dúvidas permanecem. E criam uma fresta no
sistema e nos levam a questionar a visão de mundo a qual estamos subordinados, integrando assim
uma extensa e fértil cadeia de ações a qual chamamos Arte.

Nossos agradecimentos a todas e todos que empenharam seus esforços para a realização desta
edição, em especial as organizadoras do dossiê temático, e muito especialmente à Janna Schoenber-
ger pelo ensaio cedido para ilustrar este número da Revista Farol.

Editores
Inverno 2021
ENSAIO
9
farol

BAS JAN ADER’S LUDIC CONCEPTUALISM: PERFORMING A


TRANSNATIONAL IDENTITY

Janna Schoenberger
University of Amsterdam

Profa. Dra. Janna Schoenberger atua como professora da University of Amsterdam. Concluiu seu
PhD no Graduate Center, na City University of New York com a tese Ludic Conceptualism: Art and Play
na Holanda de 1959 a 1975.” Recentemente, Dra. Schoenberger concluiu bolsas no Rijksmuseum e na
Biblioteca Beinecke da Universidade de Yale. Seu livro, Waiting for the Witch Doctor: Robert Jasper
Grootveld’s Scrapbook and the Dutch Counterculture, foi publicado pelo Rijksmuseum em 2020. Este
artigo foi publicado originalmente pela John Benjamins Publishing Company no ano de 2015.

Abstract: Following Huizinga’s ideas in his Homo Ludens (1938), I propose the term Ludic Con-
ceptualism to describe the art that flourished in the Netherlands from 1959 to 1975. Unlike the more
severe strands of conceptualism developed in New York and the United Kingdom, play was central to
its Dutch incarnation. In this chapter I will show how Dutch conceptual artist Bas Jan Ader’s fixation on
his identity, as staged through satirical jokes based on national stereotypes, is key in understanding
his art. While a great deal of the humor is obvious in Ader’s work, there has been no serious inquiry into
his comedic practice. I will position Ader within the framework of post-war humorous conceptual art
prevalente both in the Netherlands and California, locales in which Ader had lived and studied. Using
theories of humor and identity I will demonstrate how Ader’s jokes are closely tied to social contexts
on both sides of the Atlantic, environments relevant to the artist’s development in the course of his
short career. A close examination of Ader’s work will reveal that the artist’s blurred identity as seen in
his use of humor is, in fact, a central feature of his art.

10
Figura 1 Bas Jan Ader, In Search of the Miraculous Bas Jan
Ader in his boat, 1975. © The Estate of Bas Jan Ader / Mary brated in a number of Dutch newspapers. For
Sue Ader Andersen, 2016 / The Artist Rights Society (ARS)
-New York, Courtesy Meliksetian| Briggs – Los Angeles and
example, The Hague’s liberal Het Vaderland (The
Metro Pictures – New York Homeland) praised Ader’s accomplishment and
noted that the one-man show was, “special re-
cognition which many artists never receive”
In 1960, Dutch teenager Bas Jan Ader (1942– (“Nederlander exposeert in Washington” 1961).1
1975) came to Bethesda, Maryland, for a high-s- One holdout, however, was Bob Nahuizen’s arti-
chool exchange program; by the end of the year, cle in the Dutch national newspaper Het Vrije Volk
he had landed a solo exhibition at Galerie Realité [The Free Nation], which focused not on his work
in Washington, D.C., where, it is rumoured, Jac- but on his unusual speech patterns. Ader, Nahui-
queline Kennedy purchased one of his drawings
1 The article title (translated as “Dutch man exhibits in
(Timmerman 1993: 74; Beenker 2006: 14).
Washington,”) points to national pride, as if Ader were repre-
His precocious artistic success was cele- senting the Netherlands.

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farol

zen observed, used too many English words and first published in 1938, Dutch cultural historian
spoke his Gronings dialect with an American Johan Huizinga argued that play is the formati-
accent. The reporter concluded that the artist’s ve element of culture and is present in nearly all
time in the United States had caused him to be- cultural expressions (1971).2 A linguist at heart,
come arrogant, a claim connected to Ader’s alle- Huizinga found that the best word to describe
ged difficulty speaking Dutch. Ader was quoted childlike, inquisitive, and inherently moral play
as saying (perhaps at the encouragement of the was the Latin ludus, hence the title of his book.3
interviewer): “I’m not a Groninger nor Dutch, but Following Huizinga, I use the term “ludic” to des-
I’m also not an American. I don’t want to be any- cribe the trend of playful art that was popular
thing than Bas Jan – myself ” (Nahuizen 1961). in both the Netherlands and the West Coast of
Who was Bas Jan Ader? His blurred identity, the United States in the 1960’s and early 1970’s.
re”ected in his use of humour, is, in fact, a central Unlike the more severe, bureaucratic, and tauto-
feature of his work. Specifically, in this chapter, I logical strands of conceptualism that developed
will show how understanding Ader’s fixation on in New York (such as that of Joseph Kosuth), hu-
his cross-cultural identity, as staged through sa- mour is central in the Netherlands and Califor-
tires of national stereotypes and tropes, is vital nia. I propose ludic conceptualism as the most
to understanding his art. appropriate term to describe the art made by
There has to date been no serious inquiry into Bas Jan Ader and others in this vein.
the comedic aspect of Ader’s practice. Writing Humour pervaded art created and exhibited
on Ader has instead focused on the tragic, spe- at Dutch institutions in the sixties. An affection
cifically the execution of his father during World for playfulness connects a variety of desig-
War II and Bas Jan’s mysterious death at sea in ns, photographs, films and performances. For
1975. Ader has been placed in a tradition of me- example, Constant Nieuwenhuis’s New Babylon,
lancholic Romanticism, in company with figures a plan for a utopian city as a never-ending play-
such as Caspar David Friedrich (Verwoert 2006; ground, was first exhibited in Amsterdam in
Sefermann et al. 2008). I argue, instead, that 1959. In this proposed city, citizens would not be
Ader should be positioned within the framework obliged to work but instead could live as creati-
of post-war humorous conceptual art that was ve beings; that is, their existence and meaning
prevalent both in the Netherlands and Califor- could be found in their anti-rational, anti-func-
nia, places where he lived and studied. I will ex-
plore how the use of humour developed on the 2 The widely available English translation is a synthesis of
West Coast from its position at the periphery of Huizinga’s 1944 German and English translations. In the
‘Foreword’ Huizinga clarifies that the subtitle should read
the art world and why the Netherlands was par-
“The Play Element of Culture”, but the unidentified transla-
ticularly receptive to ludic art. Using theories of tor explained that “The Play Element in Culture” was “more
humor and identity, I will show how Ader’s jokes euphonious”.
are closely tied to social contexts on both sides 3 For the most recent study on Huizinga and his work,
see Willem Otterspeer, Reading Huizinga, trans. Beverley
of the Atlantic, environments relevant to the ar- Jackson (Amsterdam University Press, 2011). The title Homo
tist’s development over the course of his short Ludens, man the player, is a direct response to Marxism the
career. importance of homo farber, man the maker, Huizinga argued
that the weight given to economic forces in the course of
In one of his most renowned books, Homo
the world by Marxists was a “shameful misconception.”
Ludens: A Study of the Play-Element in Culture, Huizinga, Homo Ludens, 192.

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tional contributions to society. Two years later, Why were museums and galleries in the Ne-
Wim T. Schippers staged a performance of emp- therlands so receptive to ludic conceptualism,
tying a bottle of soda into the sea, which was especially that coming out of Los Angeles, and
broadcast on television. In a series of works exe- why was humorous conceptual art so widespre-
cuted in 1961, artist Stanley Brouwn proposed ad in the Netherlands? As L.A. stood in relation
a new method of constructing maps that would to New York, so Amsterdam occupied a periphe-
better reflect a person’s subjective experience ral position with regard to the art powerhouse of
of navigating the city: This Way Brouwn, No Way Paris. Humour was a central critical strategy not
Brouwn, Brouwn this Way Public, and This Way only for Dutch artists but also for Dutch political
Brouwn for the Soul, all of which involve pedes- activists, who made use of satire’s potential to
trians drawing directions to places in Amster- provoke in order to question the current social
dam that may or may not exist. order. In the mid-sixties, the Provo anarchist mo-
The Dutch were not alone in their embrace of vement tried to address traffic and congestion
humour: California also produced a wave of ludic in the city by advocating the distribution of free,
art in this period, especially in conceptualism. It white-painted bicycles throughout Amsterdam,
is no surprise, therefore, that California concep- which became known as the “white-bicycle
tual artists, including John Baldessari and Allen plan.” The Provos used a series of provocative
Ruppersberg, were well received in the Nether- ludic tactics to confront both the conservative
lands: both had early solo exhibitions in Amster- Dutch government and the largely conformist
dam in 1972 and 1973, respectively. Humour was middle-class population – for example, in order
a popular mode of expression in Los Angeles in to bring attention to the way Amsterdam cate-
part due to the presence of the entertainment red to cars as opposed to cyclists and pedes-
industry and in part due to the relative lack of trians, they handed out currants in the middle
critical media, especially compared to New York of the street to disrupt traffic. In the tradition of
(Baldessari 2011).4 According to L.A. native and satirical humour, the Provos mocked social con-
former director of the Stedelijk Museum Amster- ventions, and in this instance they expressed
dam, Ann Goldstein, since entertainment was frustration with the burgeoning car culture in
the city’s main focus, L.A. was a great place to Amsterdam. Finally, Dutch artists were tapping
be an artist because “no one cared about you” into a long tradition of humour and satire in
(Larry Bell and Ann Goldstein 2013). In New York, art and literature, traceable as far back as the
artists could be certain that each artwork or sta- late fifteenth century; one need only think of
tement would be closely examined and analy- the artist Hieronymus Bosch and the humanist
zed, leading to a ponderous self-seriousness on scholar Erasmus’s In Praise of Folly, among many
the part of the art community. In Los Angeles, by other examples. Ader was thus part of a gene-
contrast, a lack of critical attention allowed ar- rational embrace of humour and satire in Dutch
tists the freedom to play (Baldessari 2011). 5 and American artistic practices.
It is fruitful to examine the satirical nature of
4 John Baldessari, in conversation with Ann Goldstein and Ader’s work through the lens of incongruity the-
Rudi Fuchs, tried to articulate why humor was a driving
force. and Sol LeWitt, who is well represented at the Stedelijk
5 In the same conversation Rudi Fuchs commented on the Museum Amsterdam. Fuchs referred to LeWitt as a “comic
humor he enjoyed in the work of Baldessari, Bruce Nauman, master.”

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farol

ory. According to this theory, currently dominant -Princess (and up until recently Queen) Béa-
in humour studies, humour is found in a thing trix – who, among other things, try to move a
or event that violates mental patterns or ex- weighty throne. In the image opposite the first
pectations (Morreall 2009). Philosopher Simon page, the name Béa Bloemkool is inscribed over
Critchley further posits that there is an implicit an abstracted map of the Netherlands. In ad-
social contract between the joke teller and the dition to the humorous alliteration, the name
audience, because in order to understand in- (bloemkool means cauliflower) alludes jokingly
congruence there must first be congruence. If to Ader’s native rural province of Groningen,
congruence is missing, then the joke won’t be where cauliflower is a typical crop and a com-
funny (Critchley 2002: 4). This explains, for exam- mon ingredient in traditional dishes. Probably
ple, why it is so hard to tell a joke in a foreign lan- not coincidentally, bloemkool was also a crude
guage: humour tends to be local, context-speci- slang term for breasts. (Its most well-known use
fic, and a form of insider knowledge (ibid.: 67). is in Dutch comedian and songwriter André van
According to Critchley, “The sweet melancholy Duin’s 1979 hit, “’k Heb Hele Grote Bloemkolen”
of exile is o0en rooted in a nostalgia for a lost [I have very large cauliflowers].) Even though
sense of humour” (ibid.: 68). He adds that the Ader wrote his short story in English, he chose
humour that brings us back to a home or to what a Dutch word to alliterate Béa’s name; and not
we know o0en does so by relating joint anxiety, just any Dutch word, but one that harks back to
difficulty, and shame (ibid.: 74). Satire only func- his hometown’s rather sexist humour. Ader also
tions with a common cultural base, or congruen- visually called out his local region with a star
ce, and the humour in satire exists in the attack above Groningen on his map of the Netherlands.
of those shared beliefs. It’s worth asking: who would get the joke? Nota-
As a Dutch immigrant in Southern California, bly, his fellow Dutch exile and friend Ger van Elk
Bas Jan Ader used humour to express the stru- must have been a part of Ader’s designated au-
ggle of living between two nations: his mother dience (Daalder 2008). Ader’s use of the site-spe-
country and his chosen home in the United cific humour local to the northern Netherlands
States. Ader, in a satirical manner, drew upon indicates a certain nostalgia and longing for his
clichés and stereotypes from both nations for native province.
his drawings, films, and photographs. In his In a poem in the same artist’s book, “What
use of satire, Ader looked to his own backgrou- does it mean? Cheep cheep?,” Ader further arti-
nd and identity as source material to question culates his homesickness. On the bottom of the
social norms. His artist’s book – published in first page, Ader explains that the poem is about
conjunction with his Master of Fine Arts gradu- “today and yesterday,” meaning his life betwe-
ation exhibition at Claremont Graduate Scho- en California and the Netherlands. Ader was
ol and the University in California in February seemingly happy with his wooden house and
1967 – is larded with puns that only his fellow American wife in L.A., where he apparently fit in,
Dutchmen were likely to catch. For example, he but he missed the Dutch brick houses and noted
wrote and illustrated a short story for the book “the grass was greener on the other side.” In this
entitled “What makes me so pure, almost holy? book, we can see Ader, writing as an expatriate
And more,” about the adventures of a Dutch in California, veiling his homesickness with a hu-
boy with his friend Béa – a nickname for then mour rooted in the Netherlands.

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Figura 2 Bas Jan Ader - Studies for Fall 2, Amsterdam, 1970.
Set of three black and white vintage prints, 3 1/2 x 5 inches: to Groningen in his 1967 book while exploiting
8.9 x 12.7 cm (each image) unique. © The Estate of Bas Jan obvious Dutch clichés: flowers, canals, and bi-
Ader / Mary Sue Ader Andersen, 2016 / The Artist Rights kes. From the late sixties to the early seventies,
Society (ARS)-New York, Courtesy Meliksetian| Briggs – Los
Angeles and Metro Pictures – New York.
Ader’s humour thus transitions from nostalgic
evocations of his birthplace to embracing (and
poking fun at) his recovered homeland. Whereas
Four years a0er his MFA exhibition, Ader retur- in the artist’s book we see a longing for his nati-
ned to the Netherlands to create works with a ve country with satirical remarks drawing upon
sensibility that was not only American but also Groningen jokes, only a few years later Ader was
distinctly Californian. The term “California Slap- using slapstick to play with Dutch stereotypes.
stick,” formulated by Jay Leyda in 1985, defined Several other works around the same time
a particular mode of humour associated with contain stereotypical allusions to the Nether-
the imaginary world of the burgeoning western lands and again show the use of California slap-
state, as seen, for example, in the films of Buster stick, though the subject changes from bikes
Keaton and Harold Lloyd (International Federa- and canals to a trope of Dutch art: De Stijl. One
tion of Film Archives 1988; Wolfe 2010: 169–190). clear example is Broken Fall (Geometric), Wes-
Ader evoked California Slapstick in artwork exe- tkapelle, Holland (1971). The fllm shows Ader on
cuted in the Netherlands in the early seventies. a cobblestone road leading to a lighthouse, and
Critics have identified Ader’s use of slapstick then toppling over a sawhorse due to extreme
and his allusions to Keaton (Schorr 1994: 37; Ste- wind. The sly allusion here is to the quintessen-
enbergen 1993; Andriesse 1988), but so far no tial Dutch artist, Piet Mondrian. Mondrian had
one has tried to understand how his comedic been part of the De Stijl movement from 1917
approach relates to a simultaneous identifica- through 1925, but left over a dispute about the
tion with two countries. use of diagonals. He had painted that particular
A Keaton-esque comedy is readily apparent in lighthouse several times, experimenting with
Ader’s Fall films, which reveal a sense of humour a reduction of colours that would eventually
influenced by California and perhaps a corres- lead to his primary-colour palette. In a 1972 in-
ponding changed sense of identity. For instan- terview, Ader claimed that the earth and water
ce, consider Fall II (Amsterdam) from 1970, filmed tower were the horizontal and vertical elements
on an Amsterdam Street. In it, the artist appe- present in a Mondrian painting, whereas the
ars riding a bike, holding a handful of flowers, sawhorse and the action of falling are diago-
before slowly pedalling headfirst into a canal. nals he added (Van Garrel 1972: 48). Ader thus
It is pure slapstick, recalling Buster Keaton’s fa- recreated a De Stijl painting and then defiled
teful car crash into a ditch in Three Ages (1923). it with Mondrian’s hated diagonals in a combi-
Here, Ader has abandoned the local references ned act of homage and sabotage. As with Fall II

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farol

Figura 3 Bas Jan


Ader, Broken Fall
(Geometric), West-
kapelle, Holland,
video, 1’49’’, 1971. ©
The Estate of Bas Jan
Ader / Mary Sue Ader
Andersen, 2016 / The
Artist Rights Society
(ARS)-New York,
Courtesy Melikse-
tian|Briggs – Los
Angeles and Metro
Pictures – New York.

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Figura 4 Bas Jan
Ader , On The Road
to a New Neo Plas-
ticism, Westkapelle,
Holland, 1971, four
c-type prints, each
30 x 30 cm. © The
Estate of Bas Jan
Ader / Mary Sue Ader
Andersen, 2016 / The
Artist Rights Society
(ARS)-New York,
Courtesy Melikse-
tian|Briggs – Los
Angeles and Metro
Pictures – New York.

(Amsterdam), Ader here incorporated California tially adding primary-coloured objects to form a
slapstick into a typical Dutch landscape. Ader’s translation of a Piet Mondrian painting. Perhaps
work can thus be viewed as a self-portrait, em- we can read On the Road as a contemporary in-
bodying and performing his bi-national identity. terpretation of a tableau vivant. A further explo-
Whereas the film Broken Fall (Geometric) is a ration of primary colours with a reference to Du-
conceptual nod to De Stijl, his On the Road to a tch art is the video Primary Time (1974),6 in which
New Neo Plasticism, Westkapelle Holland from Ader gradually rearranges a vase of flowers so
1971 can be seen as a formal citation of the that the assortment changes from entirely red
De Stijl movement. In this series of four pho- to yellow and finally to blue. Again, Ader is com-
tographs, Ader physically built himself into an
6 Primary Time is a video from 1974 and was made at the
abstracted De Stijl composition by becoming
same time as Untitled (Flower work), a series of photographs
black vertical and horizontal lines and sequen- from the same year.

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farol

Figura 5 Bas Jan Ader, I’m Too Sad to Tell You, video 16mm, 3’21’’, 1971. © The Estate of Bas Jan Ader / Mary Sue Ader Andersen,
2017 / The Artists Rights Society (ARS), New York. Courtesy of Meliksetian | Briggs, Los Angeles.

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bining Dutch tropes – in this case, flowers – with series of sea shanties that were recorded and
a dry comic sensibility. later played throughout the duration of the exhi-
Not all of Ader’s works are as amusing as the bition. Ader was to continue the journey with
Fall films, but the humour in much of his art has a voyage across the Atlantic Ocean, alone in a
been underrated. I’m Too Sad to Tell You was the twelve-and-a-half-foot sailboat – a feat that, had
title of three separate works that took on the it been successful, would have broken a world
same theme and imagery: the first was a pho- record. The concluding element was to have
tograph in 1970; the second a postcard sent to been an exhibition at the Groninger Museum,
his friends and acquaintances later that year; intended to include photographs of a night walk
and the third a three-minute film shot in 1971. in Amsterdam to mirror the L.A. images. Some
Thematically, I’m Too Sad to Tell You is arguably weeks after Ader left from Cape Cod, however,
his least funny work. All the pieces show a clo- radio contact was lost; the remains of his boat
se-up, cropped image of Ader shedding tears were found of the coast of Ireland four months
for no apparent reason. Ader described the film later (Roberts 1994: 32–35). Critics have focused
version as another one of his Fall films, yet it is on Ader’s death and have even suggested the
tears that obey the force of gravity this time ins- possibility of suicide (Verwoert 2006: 47). In his
tead of the artist’s body (Van Garrel 1972: 48). In book on In Search, Jan Verwoert wrote, “In the
1972, Ader explained that the work was his reac- end, through his disappearance and death, Ader
tion to the “he-man” culture of California (ibid.: came to embody this role of the romantic tragic
49). Could this be the culture shock of a Dutch hero in an unexpected and irrevocable way. The
foreigner abroad? Maybe I’m Too Sad to Tell You work is about the idea of the tragic and is itself
has more humour than appears at first glance. a tragedy” (2006: 8) – the artwork became his
The satire here can be found in Ader playing with death and ceased to be an artwork. I propose
and inverting the extreme masculinity he encou- instead to view In Search of the Miraculous as a
ntered in California. continuation of his artistic practice: in his use of
Certainly, his premature death, which occur- dry humour, which is evident in the night-walk
red as he was completing In Search of the Mira- photographs; in the questions of satirical trans-
culous, has cast such a pall over his earlier works national humour in the entire three-part plan;
that scholars have failed to take Ader’s humour and in the artist personally carrying out the
seriously. In Search of the Miraculous names a se- work, casting himself as a sailor in the Dutch
ries of 18 photographs from 1973, documenting nautical tradition.
a night-time walk from the freeway to the sea in
Los Angeles.7 Along the bottom of the photogra- Conclusion
phs, Ader has written the lyrics to the Coasters’ I have positioned Ader within the framework
1957 song “Searchin’.” The 1975 version of In of post-war humorous conceptual art prevalent
Search was composed of three parts, beginning both in the Netherlands and California, locales
with an exhibition at the Claire Copley Gallery in in which he has lived and studied. Using theo-
Los Angeles. On opening night, Ader’s students ries of humor and identity I have demonstrated
from the University of California, Irvine, sang a how his jokes are closely tied to social contexts
on both sides of the Atlantic and argued that
7 There is also a version of the work with 14 photographs. the artist’s blurred identity as seen in his use of

19
farol

Figura 6 Bas Jan humor is, in fact, a central feature of his art. In New York: Routledge.
Ader, In Search of
order to read the satirical humor in Ader’s work, DAALDER, Rene. 2008. Here Is Always Some-
the Miraculous (One
Night in Los Angeles), which resonates due to incongruence in his si- where Else. DVD. Cult Epics.
1973. © The Estate of te-specific references, studies on the artist must VAN GARREL, Betty. 1972. “Bas Jan Ader’s
Bas Jan Ader / Mary look to Ader’s bi-national identity. His final work, tragiek schuilt in een pure val.” Haagse Post,
Sue Ader Andersen,
2017 / The Artists
In Search of the Miraculous, is a continuation of January 5.
Rights Society (ARS), his artistic practice, lost at sea between the Uni- HUIZINGA, Johan. 1971. Homo Ludens: A
New York. Courtesy ted States and the Netherlands, he physically Study of the Play-Element in Culture. Boston:
of Meliksetian | Brig-
claimed the position performed in his earlier art. Beacon Press.
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21
farol

SEÇÃO TEMÁTICA
22
23
farol

APRESENTAÇÃO DA SEÇÃO TEMÁTICA


ARTE CONTEMPORÂNEA E EXPRESSÕES ARTÍSTICO-
CULTURAIS NAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Aissa Afonso Guimarães


(PPGA/CAR/UFES)
Renata Gomes Cardoso
(PPGA/CAR/UFES)

Conforme anunciamos na chamada para este número da Revista Farol, uma reflexão que se queira
atual sobre a arte e as culturas brasileiras deve considerar heranças distintas, que conduziram à com-
plexidade e diversidade da arte e das expressões culturais que circulam de norte a sul do país. Não
apenas no Brasil, mas também internacionalmente, as discussões sobre as relações étnico-raciais
se ampliam continuamente no meio acadêmico e em reconhecidas instituições, como resultado de
ações que partem de muitos agentes dentro da sociedade, trazendo questionamentos sobre as bases
do conhecimento ocidental e das políticas culturais de um sistema que é, ainda, estruturalmente
excludente.
O reconhecimento de diferentes sujeitos e de seus direitos culturais são questões que implicam
diretamente no campo do patrimônio cultural e da arte refletindo em transformações curatoriais,
exposições, palestras, entrevistas e demais eventos, bem como um aumento significativo de publi-
cações que contribuem para uma maior difusão das práticas e das discussões, sobre processos que
evidenciam relações entre arte e as especificidades culturais derivadas da questão étnico-racial, con-
ferindo uma maior circulação de autores, artistas, práticas e grupos antes marginalizados.
Trabalhar questões no âmbito das relações étnico-raciais implica necessariamente em construir
um diálogo interdisciplinar, que permita afirmar diferentes identidades e alcançar novas perspecti-
vas no campo das pesquisas acadêmicas em Arte. Os dez artigos que compõem esta seção temática
da Revista Farol ampliam o debate sobre diferentes campos como: arte contemporânea, patrimônio
cultural, teatro, etnomusicologia.
Os cinco artigos que abordam mais diretamente a arte contemporânea dialogam entre si na me-
dida em que propõem novas perspectivas de compreensão e de reflexão no campo da arte, com
recorte racial engajado na luta antirracista. O texto de Kleber Amâncio, “A História da Arte branco
-brasileira e os limites da humanidade negra”, parte de uma análise sobre a sistematização dos cam-
pos da história, e da própria História da Arte, para entender a constituição desse campo no Brasil,
epistemologicamente ancorado no modelo europeu, o que cria embates e contradições para situar
e analisar as criações artísticas relacionadas à temática racial e a artistas negros, diante de concei-
tos como “primitivo”, “negro”, ou ainda, afro-brasileiro. Jorge Vasconcellos, em “A Lança e o Arco, ou
Por um devir-quilombista da arte”, propõe um “giro minoritário” na arte contemporânea por meio
do “quilombismo”, como alternativa estética para movimentar todo o sistema da arte e da escrita
sobre ela, e como estratégia política para debater as pontes entre arte e ativismo, bem como re-

24
presentatividade e circulação de artistas no sis- como resultados de pesquisas realizadas em
tema vigente, determinado por dispositivos de Programas de Extensão da UFES, com grupos
racialização. Ambos debatem questões teóricas de jongos e caxambus no Espírito Santo, uma
do campo da arte e da história da arte no Brasil reflexão sobre ancestralidade nas práticas jon-
desconstruindo antigos conceitos e propondo gueiras, construções históricas do feminino e
novos caminhos teóricos. das políticas do corpo negro feminino, de lide-
O artigo de Maíra Freitas de Souza e Geovanni ranças de mulheres, de interseccionalidade, re-
Lima, “Voltar à encruzilhada: a poética do retor- metendo a práticas ritualísticas da religiosidade
no de Geovanni Lima”, apresenta o processo de afro-brasileira e a experiências no campo da
criação e performances deste artista capixaba educação no contexto da Lei 10.639/2003, como
que evidencia em seu trabalho uma investiga- formas de enfrentamento ao racismo.
ção entre poética e corpo como material po- Osvaldo Martins de Oliveira e Paula Aristeu
lítico e território de práticas de subversão das Alves, em “Quilombo, território e patrimônio
opressões, entre memórias e referências sub- cultural: a visão de duas lideranças”, se dedicam
jetivas e afetivas. Na mesma linha, o texto de a uma abordagem etnossociológica em campo
Camila Calolinda da Silva, Alex Fabiano Alonso e para discutir e apresentar narrativas sobre a for-
Eluiza Bortolotto Ghizzi, “Não caminho sozinho: mação da comunidade quilombola de Retiro,
percurso para recordar e ressignificar na obra Santa Leopoldina do Espírito Santo e a trans-
de Paulo Nazareth”, aborda a obra e trajetória missão cultural familiar a partir do final do sécu-
do artista Paulo Nazareth, em análise que am- lo XIX; e os processos de escolarização na comu-
plia e fornece material teórico para cotejamento nidade, tendo como referência quilombolas que
e continuidade das discussões sobre corpo, ter- concluíram curso universitário na atualidade, e
ritório, deslocamentos, ancestralidade e iden- suas visões sobre as lutas por território, herança
tidade. Lucas Ferreira de Vasconcellos e Rita cultural e direitos, em diálogo com a comunida-
Lages Rodrigues, em “Impulso Historiográfico de e as lideranças.
na prática artística de Rosana Paulino: o caso Elisa Ramalho Ortigão propõe uma aborda-
da exposição Atlântico Vermelho no Padrão dos gem sobre as práticas tradicionais do Congo, a
Descobrimentos (2017)”, enfocam a “experiên- partir do contato com a Banda de Congo Amo-
cia estético-sensorial e espaço-temporal” que res da Lua, do Mestre Ricardo Sales. O debate
retoma discussões sobre o sistema das artes e é conduzido com o cotejamento de conceitos
a reelaboração de circuitos que subvertem sua como cultura, experiência ancestral, estéticas
estrutura, em uma reflexão sobre memória, his- tradicionais, bem como patrimônio e salvaguar-
tória, patrimônio e musealização, em perspec- da, em uma reflexão que interliga a experiência
tiva decolonial e no embate com os sujeitos. Os local e o debate acadêmico.
três artigos abordam diretamente trabalhos de O texto de Zeca Ligiéro, “Benjamin de Oliveira:
artistas negros e negras que expõem e discutem Palhaço Negro no Salão do Branco”, apresenta o
questões raciais, de gênero e de memória. universo do teatro e suas relações com o circo,
No campo do patrimônio, o artigo “Sobre Po- por meio da reconstituição da biografia de Ben-
líticas do Corpo Negro Feminino e Territorialida- jamin de Oliveira (1870-1954), consagrado pa-
des Jongueiras no Enfrentamento ao Racismo”, lhaço negro do Brasil, através da construção de
de Patrícia Gomes Rufino Andrade, apresenta espetáculos orientados para formação e educa-

25
farol

ção para as relações étnico-raciais em artes cê-


nicias, tendo como base a Lei 10.639/2003. Por
último, Daniel Stringini, com “Uma escuta das
migrações, músicos haitianos e performances
em deslocamento”, contempla a circulação de
músicos e coletivos haitianos no sul do Bra-
sil, analisando práticas musicais e as relações
culturais nos fluxos migratórios, entre cidades,
territórios, tensões e deslocamentos. Ambos
trazem elementos riquíssimos para ampliar os
debates no campo da arte com as artes cênicas
e com a etnomusicologia, no que diz respeito a
questões ligadas a representações no campo da
educação para as relações étnico-raciais.
Os artigos organizados neste dossiê trazem
contribuições fundamentais para compreensão
e ampliação de temas relacionados às questões
étnico-raciais e ao patrimônio cultural no cam-
po da arte. Neste sentido, podemos observar o
caráter interdisciplinar de um crescente número
de pesquisas que tomam como eixo de investi-
gação esta temática, a partir de diferentes aná-
lises sobre arte, história da arte, performances,
tradições e patrimônio cultural, no debate aca-
dêmico atual.

26
A HISTÓRIA DA ARTE BRANCO-BRASILEIRA E OS LIMITES DA
HUMANIDADE NEGRA

THE HISTORY OF WHITE-BRAZILIAN ART AND THE LIMITS OF BLACK HUMANITY

Kleber Antonio de Oliveira Amancio


CECULT/UFRB

Resumo: Esse artigo visa apresentar o conceito de história da arte branco-brasileira a partir de uma
leitura crítica da tradição erigida por uma literatura da arte epistemologicamente eurocentrada. A
partir desse diagnóstico pretendemos apontar caminhos para a construção de um ambiente demo-
cratico e afeito a incorporação das narrativas por muito obliteradas pelo projeto colonial.

Palavras-Chave: arte afro-brasileira, história da arte, branquitude.

Abstract: This article aims to present the concept of white-Brazilian art history from a critical reading
of the tradition erected by an epistemologically Eurocentric art literature. Based on this diagnosis, we
intend to point out paths for the construction of a democratic environment to incorporate narratives that
were obliterated by the colonial project.

Keywords: afro-brazilian art, art history, whiteness

27
farol

História é fruto do poder, mas o poder por (HALL, 2006). O passado é agora. Ao menos
si só nunca é tão transparente que sua aná- aquele que se tornou historicamente relevante
lise se torne desnecessária. A marca última para os sujeitos que sobre ele escrevem; “as ruí-
do poder pode ser a invisibilidade; o desa-
nas de escombros que crescem até o céu” evi-
fio derradeiro, a exposição de suas raízes
[tradução nossa]. Michel-Rolph Trouillot denciam que não somos uma folha em branco.
Reconstruir a casa de Matacavalos não fará com
que nossa fisionomia remoce, mas colocará em
O fato é que a civilização chamada “euro- discussão as mudanças, inquietações diante de
peia”, a civilização “ocidental”, tal como ausências, permanências, exposições e silên-
foi moldada por dois séculos de regime cios de um processo [sempre] em curso.
burguês, é incapaz de resolver os seus dois
Como toda forma de produção de conhe-
principais problemas que sua existência
originou: o problema do proletariado e cimento a História é “fruto do poder”. Aqueles
o problema colonial. Esta Europa, citada que a escrevem o fazem de um locus – que na
ante o tribunal da “razão” e ante o tribunal pós-modernidade ao menos é informado, den-
da “consciência”, não pode justificar-se; e tre outras cousas, por conceitos que organizam
se refugia cada vez mais em uma hipocrisia
nossas respectivas subjetividades (DAVIS, 2017;
ainda mais odiosa, porque tem cada vez
menos probabilidades de enganar. A Euro-
GROSFOEGEL & BERNARDINO-COSTA, 2016).
pa é indefensável. Aimé Césaire A negação dessas condicionantes, seja sob o
verniz da objetividade ou da erudição, expõe o
desejo de representação narcísica do mundo
Sobre a parcialidade da narrativa histórica (WHITE, 1973; SAID, 1978).
A História tem se constituído, desde o século Há quem leia a História da Arte como um
XIX, como a ciência, ou o ofício, que se ocupa das campo de estudos autônomo e tributário das
transformações humanas ao longo do tempo tradições principiadas por Vasari e Winckel-
(BLOCH, 1974; LE GOFF, 1988). Mais do que sim- mann (BAROLSKY, 2010; POTTS, 1994), outros
plesmente investigar o passado, num ritual de ainda apontam para como as filosofias da arte
curiosidade inócuo, historiadores a formulam a de Kant e Hegel influenciaram decisivamente
partir das demandas de seu tempo; mediante a os pais fundadores da História da Arte moder-
presença de fontes elaboramos textos que dão na (HOLLY, 1984; CHEETHAM, 2001); de qualquer
conta de racionalizar acontecimentos, por vezes modo parece seguro afirmar que as diretrizes
desconexos, numa narrativa verossímil e inteli- dessa disciplina foram sistematizadas entre a
gível à nossa sensibilidade (GINZBURG, 1991). É segunda metade do século XIX e o início do sé-
um saber essencialmente parcial e transitório culo seguinte. Dvořák, Burckhardt e tantos ou-
que se esgota à medida que os litígios, que en- tros, guardadas as suas particularidades, sinte-
volvem a realidade temporal a qual pertencem, tizaram modos de pensar a História dos objetos
arrefecem. de arte a partir do olhar.
Ao produzir História dissertamos, necessaria- A História da Arte propõe-se a teorizar a evo-
mente, sobre uma terra estrangeira. O interesse lução dos objetos de arte ao longo do tempo,
por outro tempo, por outras estórias, delineia- seja em sua relação com a sociedade (WAR-
se a partir de uma reflexão crítica do campo, BURG, 2015; PANOFSKY, 2009; SCHAPIRO, 2010;
mas também de sua relação com o presente CLARK, 2004) ou por meio de uma conversa

28
ensimesmada, alheada do mundo e voltada às autocentrada e que apenas recentemente têm
transformações formais (FIEDLER, 2001; WÖL- sua suposta neutralidade questionada (BENJA-
FFLIN, 2006; GOMBRICH, 2013; RIEGL, 2004). MIN, 2003; MARTINEAU & RITSKES, 2014; COSTA,
Atualmente o campo se vê às voltas com uma 2018).
reestruturação contínua e acalorada que se faz
pelas práticas artísticas e curatoriais contem- A história da arte branco-brasileira
porâneas, pelo diálogo com outras disciplinas A História da Arte Brasileira é branca. É preci-
(CARDOSO, 2009; CLARK, 2007) ou ainda pela so dizê-lo. O cânone histórico foi construído por
emergência de novas teorias da arte gestadas uma sucessão de narrativas em que a sobressa-
a partir da emergência de um pensamento de lência de artistas [brancos] é o grande fio con-
fronteira (MUKHERJI, 2014). dutor. Da “Missão Artística Francesa” de 1816 ao
Se examinamos, por exemplo, o livro “História neoconcretismo, passando pelo modernismo
da Arte” de Ernest Gombrich notamos que se [paulista] da semana de 1922 (AMARAL 1998;PE-
trata de um grande elogio à arte europeia (GOM- DROSA, 1998; SCHWARCZ, 2008; SQUEFF, 2006;
BRICH, 2013). Ao longo dos vinte e oito capítu- ROSA, 2007). Ao mesmo tempo as epistemolo-
los que compõem o volume em apenas três a gias eurocentradas, largamente utilizadas na
temática não está relacionada à Europa.1 Diante construção dessas mitologias, costumeiramen-
disso ou cremos que toda a qualidade artística te tem se furtado a reconhecer complexidade
“universal” esteve concentrada no gênio de se- nas produção de artistas [negros], seja pelo
letos artistas que por acaso, ou providência divi- silenciamento ou pela criação de categorias de
na, nasceram em alguns poucos países do velho análises outras em que o efeito colateral ineren-
continente, ou questionamos as maneiras como te seja a subalternização do objeto investigado
esses cânones foram egoicamente construídos (CHRISTO, 2009; BITTENCOURT, 2015; CARDO-
(RANKIN, 1995; ÇEYLIK, 2000). SO, 2015; AMANCIO, 2016; LOTIERZO, 2017)
Não se trata, porém, apenas de visibilidade. Agimos, todos, dentro das possibilidades his-
Em outros momentos construiu-se uma nar- tóricas de nosso tempo; somos orientados por
rativa sobre o “outro” na qual objetos produzi- um acordo coletivo de caráter sociocultural que
dos para determinadas práticas sociais foram serve de matéria prima para as produções hu-
impetuosamente descontextualizados e trans- manas. A arte não é uma atividade mágica que
mutados em “arte”, em letras minúsculas (MU- pode escapar da implacabilidade do tempo. No
DIMBE, 1998). Quanto mais seguiu nessa direção mundo que se forjou a partir da experiência co-
o silenciamento sistêmico-epistemológico da lonial o lugar da branquitude é por excelência
História da Arte só fez revelar sua intrínseca re- neutro e universal, é dotado de humanidade
lação genética com o colonialismo (SAID, 1978). (FANON, 1952).
Ao definir uma narrativa para esses objetos a Os (poucos) artistas não-brancos que se en-
partir de seu umbigo, promoveu uma história contram no cânone ocupam lugares que lhe são
permitidos, um sistema em que são exceção
1 Os capítulos são “Strange Beginnings” em que trata sobre ou apêndice. Como se trata de uma narrativa
Arte pré-histórica, povos “primitivos” e América Antiga; “Art ficcional que se baseia numa visão de mundo
for Eternity”, no qual disserta sobre Egito, Mesopotâmia
seccionada, frequentemente não condiz com
e Creta; e “Looking Eastwards” em que aborda o Islam e a
China do século II ao XIII. as projeções que fazem de si (AMANCIO, 2016).

29
farol

São tidos e havidos como sujeitos transparentes Rodrigues entende que é na escultura que os
(SPIVAK, 2010). Qualquer tentativa de escapar a negros desenvolveram com maior apuro suas
essa expectativa é sumariamente silenciada. capacidades. Segundo o autor: “Os sentimen-
Nas representações que esse “outro”, subalter- tos, as crenças religiosas, fazem para os Negros,
no, faz de si eventualmente encontramos fis- como para as outras raças, as despesas das ma-
suras que evidenciam a sistematização desse nifestações primitivas da cultura artística”. Toda
processo capitaneado por uma comunidade a explicação passa por encaixar o entendimen-
que se irmana a partir de uma constituição ra- to que os grupos envolvidos tinham da religião
cial - constróem seu interlocutor simbolicamen- a fim de acertar o uso ritual das peças e por
te, e a si por meio de um sistema de privilégios conseguinte sua significação cultural. Rodrigues
(SCHUCMAN, 2014). Ao obliterar esse debate a fala em transposição e sobrevivência ao sugerir
História da Arte se alinhou, inescapavelmente, a que essas práticas atravessaram o Atlântico.3
um projeto epistêmico colonial. É a História da O autor ainda aponta as peculiaridades das
Arte branco-brasileira. artes produzidas pelos negros. Pensa as peças
a partir da coletividade. Cerca de meio século
Fundamentos para uma arte “negra” depois Arthur Ramos vai se enveredar por um
A exclusividade da branqutiude no canône caminho parecido (RAMOS, 1949). O etnógrafo
da Arte brasileira está intimamente ligada à alagoano, contudo, passa a estudar não apenas
elaboração de teorias da arte que dêem conta obras produzidas no contexto religioso, mas
de categorizar as obras produzidas por artistas também daqueles autores chamados primiti-
negros a partir do processo de subalternização. vos. Devemos nos atentar para o fato de que se
Essa divisão aposta na peculiaridade de suas hoje as fronteiras entre erudito e popular pare-
produções e na necessidade de se criar um apa- cem borradas, por muito tempo o entendimen-
rato teórico epistemológico particular. Em arti- to geral era de que os artistas populares, os nai-
go de 1904, por exemplo, Nina Rodrigues trata ve, produziam a partir de outro paradigma, que,
das esculturas dos “colonos pretos” no Brasil decididamente não era o da racionalidade.
(RODRIGUES, 1904). Em linhas gerais seu texto Mariano Carneiro da Cunha, por seu turno,
argumenta que a arte dos escravizados, a “arte retoma Rodrigues; faz uma detalhada exegese
negra”, era de altíssima qualidade uma vez que a respeito daquilo que chega a denominar de
refletia o fato do país contar com “os povos afri- “arte afro-brasileira”. Segundo o autor:
canos mais avançados em cultura e civilização”. Arte afro-brasileira é uma expressão conven-
Dessa maneira propõe que uma vez que não se cionada artística que, ou desempenha função
transponha as regras impostas ao fazer artístico no culto dos orixás. ou trata de tema ligado
ao culto. Esta maneira de definir o campo,
[branco], que em sua concepção encontrava-se
num estágio intelectual mais avançado, seria
possível perceber relevância e apuro nessa es- ofereça uma visão de mundo e as ideias que a acompa-
nham. Vide Cunha Marianno Carneiro da. Esboço histórico: o
pécie de manifestação artística.2 elemento negro nas artes plásticas. In: ZANINI, Walter (org.).
História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Moreira
2 É o mesmo ímpeto que, guardadas as devidas proporções, Salles, 1983. p.989-1017.
veremos mais tarde em Mariano Carneiro da Cunha. Em 3 Rodrigues sugere inclusive que a eventual “tosquice” das
texto de 64 anos depois o autor argumenta que “uma arte peças sejam causadas pela interrupção de um sistema de
só faz sentido na medida em que exprima padrões culturais, apuração da qualidade artística no novo mundo.

30
ligando-o a religiões vivas que apelam para partir de “temas negros” (CUNHA, 1983). Nessa Figura 1 . Emiliano Di
uma ascendência africana, traz aparentes Cavalcanti. Samba.
leitura, portanto, Tarsila do Amaral, Di Cavalcan-
anomalias. ligadas precisamente a vitalidade 1925. Óleo sobre
e, portanto, a apropriação de símbolos novos
ti e Portinari teriam produzido “arte afro-brasi- tela. 177 X 154 cm.
por essas religiões (CUNHA, 1983). leira”.
Outro crítico afeito ao tema, Clarival do Pra-
do Valladares, está no epicentro de um episódio
Contudo, diferentemente de Rodrigues, sui generis. Em 1966 foi o responsável por eleger
Cunha alarga o conceito de arte afro-brasilei- três artistas para compor a delegação brasileira
ra; cria quatro categorias explicativas dentre as no primeiro encontro Mundial de Artes Negras
quais a obra de artisas brancos que pensam a em Dakar (SALUM, 2000). Àquela oportunidade,

31
farol

Figura 2. Heitor dos


Prazeres. Samba
no Terreiro. 1957.
Óleo sobre tela. 55
x 65 cm. Coleção
Particular. Repro-
dução Fotográfica:
Pedro Oswaldo
Cruz. Disponível em:
SAMBA no Terreiro.
In: ENCICLOPÉDIA
Itaú Cultural de Arte
e Cultura Brasileiras.
São Paulo: Itaú Cultu-
ral, 2021. Disponível
em: <http://enciclo-
pedia.itaucultural.
org.br/obra4659/
samba-no-terreiro>.
Acesso em: 22 de
Jun. 2021. Verbete da
Enciclopédia. ISBN:
978-85-7979-060-7

cada país africano ou do mundo diasporico foi não apenas sua indignação pelo Teatro Experi-
convidado para enviar seus representantes. mental do Negro não ter sido um dos escolhi-
Valladares escolheu três artistas visuais, todos dos, mas porque cria que perdiamos uma gran-
autodidatas. Rubem Valentim, Agnaldo Manoel de oportunidade de mostrar a diversidade e a
dos Santos e Heitor dos Prazeres. potência do que os artistas negros produziam
A indicação de uma comissão deveras dimi- no país àquela altura.
nuta causou a ira de Abdias do Nascimento que Mas quem eram esses artistas? Segundo Valla-
acabou por escrever uma carta que expressasse dares, Agnaldo Manoel dos Santos era um “Primi-

32
tivo”. No seu entender: “Sua obra, portanto, mere- Wilson de Azevedo Sérgio e os limites da hu-
ce ser vista em seu caráter de exceção, tanto em manidade (?) negra
relação ao meio como ao tempo em que foi feita. Na carta de Abdias do Nascimento, que men-
Este caráter de exceção com que distingo a obra cionei a pouco aparece a seguinte citação:
de Agnaldo é a ancestralidade que ele vivenciou.” Alguns como o poeta Solano Trindade, o
(VALLADARES, 1983; 36). maestro Abigail Moura, e os pintores Cleo e
Rubem Valentim, grosso modo, apresentava um Wilson de Azevedo Sérgio, condenaram pe-
los jornais a forma arbitrária das escolhas.
diálogo com o construtivismo. Suas peças, mais do
Esqueceram-se, aqueles negros reivindicado-
que representar, apresentam-se como constructos. res, que os juízes itamaratianos de arte negra
Entretanto rejeita um formalismo epistemologica- são infalíveis, onipotentes e irreversíveis em
mente branco para buscar um diálogo pensado a seu julgamento culturais. Negro não fala. Não
partir das referências simbólicas de uma religiosida- protesta. Aceita cabisbaixo o fato consuma-
do. Já não é uma felicidade para ele andar
de afro-brasileira.
solto por aí, com direito a fazer seu samba e
Heitor dos Prazeres busca uma represen- jogo de bola? (NASCIMENTO, 1966)
tação figurativa das classes populares que
aparece em total desacordo com os ditos
modernistas (Figura 1). Se em Di Cavalcanti, Pois bem. Quem viriam a ser os dois pintores
por exemplo, temos um processo de sexuali- mencionados por Abdias? Particularmente não
zação dos corpos negros femininos (Figura 2), os conhecia antes do início da pesquisa e logo
aqui é recorrente a ideia de ordem, limpeza descobri que não foi sem razão. Não há qual-
e dignidade, as personagens, embora sejam quer linha sobre os dois na historiografia nacio-
apresentadas simbolicamente como tipos, nal, contudo pude rastrear a vida de um deles
exercem sua individualidade, estão sempre nos jornais. A primeira notícia que tenho do
vestidas com as suas melhores roupas e fre- nome de Wilson de Azevedo sendo mencionado
quentemente calçadas. Diferentemente do numa publicação foi no dia de 1946. A notícia dá
que acontece em Portinari, Gustavo Dall’ara e conta de um desentendimento que aconteceu
tantos outros, aqui os corpos, na maior parte por conta de um balão e Wilson de Azevedo Sér-
das vezes, não são representados durante o gio, é mencionado como tendo levado uma fa-
trabalho, mas quando o são não se percebe cada na perna. Segundo a matéria contava com
a mesma melancolia tão comum em Antonio 22 anos e era desenhista.4
Ferrigno, Modesto Brocos e Armando Vianna. Em 1954 seu nome aparece como um dos que
Para além da cor da pele, aqueles artistas compareceram a uma versissage no Museu de
dialogavam de um determinado lugar, um lugar Arte Moderna do Rio de Janeiro a respeito de
que era permitido, ainda que de maneira nego- uma exposição cubista.5 Em 1956 vemos uma
ciada. A despeito de suas obras e trajetórias nota em que há um detalhamento de sua car-
estarem hoje sendo revistas e reposicionadas reira. Segundo esta, o artista é do estado do Rio
a partir da decolonização, àquela altura eram de Janeiro, mas mora na capital desde os 2 anos
classificados de outra maneira. Não foi o caso, de idade. Fez curso secundário e em seguida
por exemplo, de Wilson de Azevedo Sérgio, um
artista que se insurgiu contra esse sistema.
4 A noite. Rio, 24 de junho de 1946, p. 2.
5 Correio da Manhã, 17 de março de 1954, p.10.

33
farol

Figura 3. Correio da
Manhã, 20 de janeiro
de 1956, p.8

Figura 4. Correio da
Manhã, 12 de janeiro
de 1958, p.11

frequentou o curso Oberg. Trabalhou nos escri-


tórios das seguintes personalidades: Oscar Nie-
meryer, Henrique Mindlin e Sérgio Bernardes. É
desenhista desde os 11 anos. Na ocasião havia
criado uma máscara (Figura 3). Interessante ain- uma exposição internacional, além de trabalhar
da notar que a matéria comenta que ele têm o para o Estado como artista contratado. Mas do
interesse em participar da quarta bienal de São que tratariam suas obras? Nas duas fotos dessa
Paulo.6 época que pudemos encontrar possível notar
Nos dias 12 e 20 de janeiro de 1958 temos duas que uma mesma retórica se repete. O corpo
notas muito parecidas que dizem o seguinte. do artista colado às suas criações. Na segunda
WILSON DE AZEVEDO SÉRGIO — Que com su- fotografia, sobremaneira, nota-se que produzia
cesso expôs no IV Salão Paulista de Arte Moder- pinturas abstratas (Figura 4). Ao menos num
na, e que tem já a sua posição firmada na arte primeiro olhar, num espírito muito diferente da-
figurativa, está se preparando para o envio de
queles artistas que analisamos há pouco.
quadros à uma exposição que será dentro em
breve realizada no México. O conhecido pintor, Em 1966, quando da indicação dos já mencio-
patrício fará, no carnaval que se aproxima, as nados artistas para participar de Dakar, encon-
suas telas aproveitadas para a ornamentação tramos uma notícia de que Wilson de Azevedo
da cidade, pelo Departamento de Turismo, e Sérgio estava a organizar um protesto com ar-
também, o América F. C, fará decorar, os seus
tistas negros contra o diminuto número de ar-
salões por ocasião dos festejos do Momo.7
tistas. Durante a matéria ele detalha ainda algo
bastante interessante. Segundo o artista:
Como podemos notar Wilson de Azevedo Sér- — Não quero dizer que Heitor dos Prazeres
gio, ao que tudo indica, possuía uma carreira seja um mau pintor — explicou Wilson Sérgio —
promissora. Estava envolvido na realização de sua pintura até que é boa e possui grande pesqui-
sa. Mas é primitivista e não transmite uma men-
sagem atual, pois a pintura evoluiu bastante nos
6 Correio da Manhã, 20 de janeiro de 1956, p.8 últimos tempos. O Sr. Wilson Sérgio é de opinião
7 Imprensa Popular. Rio, 17 de janeiro de 1958, p.6. de que deveria ser dada uma oportunidade aos

34
artistas bons e desconhecidos internacionalmen-
te, ao contrário do critério adotado pelo Itamarati, de Azevedo Sérgio, devemos repensar a afirma-
“porque precisa ser mostrar do que o Brasil pro- ção de Aracy Amaral segundo a qual:
grediu nos últimos tempos também na pintura.8 Na realidade, a razão fundamental é sempre
a marginalização econômica. Ou seja, o ho-
A passagem é complexa e nos ensina algu- mem de origem humilde, com permanente
dificuldade de acesso a uma formação cultu-
mas coisas. Primeiramente, Wilson de Azevedo
ral de nível mais ou menos elevado, em país
Sérgio entendia que estava no meio de uma onde o sistema educacional já é, por si só, tão
disputa política pelo sentido da arte negra no elitista como carente em geral quanto à qua-
Brasil. Sabia da importância política da expo- lidade. A inexistência de um número maior de
sição, mas, mais do que isso, sabia que enviar artistas plásticos de origem negra é tão real
quanto sua ausência das universidades brasi-
artistas “primitivos” para a exposição significa-
leira (AMARAL, 2010).
va comprar um estereótipo, no seu entender
negativo. Interessante pensar que para o de-
senhista, existe uma arte de vanguarda e uma Me parece absolutamente sintomático que
arte menor, menos atual. Sua fala aposta numa um artista com carreira relativamente bem es-
disputa pela possibilidade da criação de uma re- tabelecida seja silenciado sumariamente por
presentação da arte negra que seja apartada da não acordar com um projeto epistemológico
simbologia relacionada à religiosidade afro-bra- imposto aos artistas negros. “Falar é existir ab-
sileira. Lutava pela possibilidade de falar sobre o solutamente para o outro”, conforme observa
que quisesse e isso ser considerado arte negra, Fanon. Precisamos repensar a gênese da narra-
para além do que teorizavam os hegemônicos tiva da História da Arte brasileira, seu silencioso
trabalhos de Nina Rodrigues, Arthur Ramos e e violento processo de normatização da bran-
Clarival do Prado Valladares. Ao propor isso, o quitude. Parece-me absolutamente sintomáti-
artista desafiou o paradigma racial brasileiro co que durante muito tempo os artistas negros
então vigente, a ordem colonial. Afinal nesse fossem considerados inexistentes; descortirnar
mundo pós-colonial, os únicos que são dotados essas narrativas é re-fazer a humanidade, avan-
de humanidade, portanto de escolhas, são os çar no processo de provincialização da Europa;
brancos. Quando o sentido da representação da estabelecer um marco civilizatório.
arte negra no Brasil está entre um teórico bran-
co e um grupo de artistas negros, é signo de a Referências
branquitude estava a ser enfrentada. Isso gerou AMANCIO, Kleber. Reflexões sobre a pintura
consequências pessoais terríveis para a vida de de Arthur Timotheo da Costa. 2016. Tese de
Wilson de Azevedo Sérgio. A próxima notícia é doutoramento em História Social. São Paulo,
dos anos 1970, longe das exposições passou a FFLCH-USP.
vender lâmpadas para sobreviver.9 AMARAL, Aracy. Artes plásticas na Semana
Se hoje a memória vitoriosa da construção de de 22. 5. ed. São Paulo: Editora 34, 1998.
uma História da Arte Afro-brasileira passa pelos AMARAL, Aracy. “Um inventário Necessário e
artistas naive e não por casos como o de Wilson Algumas Indagações: a Busca da Forma e da Ex-
pressão na Arte Comtemporânea.” In ARAÚJO,
8 Jornal do Brasil, 11 de janeiro de 1966, p. 10.
Emanuel (org.). A mão afro-brasileira. Signifi-
9 Correio da Manhã, 18 de janeiro de 1971, p. 9; Correio da
Manhã, 17 de março de 1971, p.4 cado da contribuição artística e histórica. 2. ed.

35
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Kleber Antonio de Oliveira Amancio


Possui graduação, bacharelado e licenciatu-
ra, em História pela Universidade Estadual de
Campinas (2006), mestrado em História Social
pela Universidade de São Paulo (2010) e dou-
torado em História Social pela Universidade de
São Paulo (2016). Foi pesquisador visitante na
Harvard University (2014-2015). A principal área
de pesquisa é História do Brasil nos séculos XIX
e XX, com publicações em temas tais como his-
tória de Campinas, do Rio de Janeiro, da escravi-
dão, da abolição, do pós-abolição, da literatura
e da arte. Atualmente é coordenador do Bacha-
relado Interdisciplinar em Cultura, Linguagem e
Tecnologias Aplicas da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia.

38
A LANÇA E O ARCO, OU POR UM DEVIR-QUILOMBISTA DA
ARTE1

THE LANCE AND THE ARC, OR FOR A QUILOMBIST-BECOMING OF ART

Jorge Vasconcellos
UFF

Resumo: Afirmamos que há em curso um giro minoritário da arte contemporânea, a partir do qual
defendemos que é possível pensar que, em certas práticas artísticas caracterizadas por nós como
contra-arte, articula-se um devir-quilombista realizado por artistas-ativistas negrxs-indígenas. Este
devir-quilombista é autodefesa e contra-ataque, por intermédio de ações de guerrilha artística, do
Povo Preto brasileiro.
Palavras-Chave: giro minoritário, devir-quilombista, arte e contra-arte, arte contemporânea.

Abstract: We affirm that there is an ongoing minority tour of contemporary art, from which we argue that
it is possible to think that, in certain artistic practices characterized by us as counter-art, a becoming-qui-
lombist articulated by black-indigenous artist-activists. This becoming-quilombista is self-defense and
counterattack, through artistic guerrilla actions, of the Brazilian Black People.

Keywords: minority tour, becoming-quilombista, art and counter-art, contemporary art.

1 Texto a partir de uma fala-intervenção realizada a convite da Coletiva de Arte Afro-indígena Ateliê Terreiro, por intermédio
da artista Luanda Francisco, no dia 20 de novembro de 2020, Dia da Consciência Negra, no Evento “21 Dias Contra o Racismo”.
Para assistir, Canal YouTube Ateliê Terreiro: https://youtu.be/NCnNJRgSJWE

39
farol

Boa Saúde à toda-o-es! do mercado capitalista neo-liberal das artes...


Neste dia há justos 325 anos, em um 20 de e não só! Isso porque esse devir-quilombista é
novembro de 1695, Zumbi era traído por um dos crítica e é clínica aos poderes instituídos, já que
seus, emboscado, assassinado e decapitado se apresenta duplamente: como forma de con-
por Domingos Jorge Velho... e Palmares caía. trapoder; e, como produção de acolhimento e
Entretanto, seu legado e de todxs xs quilombo- invenção de modos de outros de práticas artís-
las palmerinxs permanece conosco em ideia e ticas e existências a partir de procedimentos co-
força, articulando o que é aqui chamado de Qui- letivos, comunitários, colaborativos... àquelxs
lombismo. que se deixem atravessar por esses devires. “O
O Quilombismo não é apenas um momento devir-quilombista da arte é manual (aberto) de
histórico do Brasil ou mesmo uma ideia que se autodefesa do Povo Preto ao campo das artes”.
perdeu... Trata-se, antes disso, de uma força mo- Diante de tantas ações e práticas de extermí-
triz do Povo Preto (negrxs/indígenas) brasileiro. nio do Povo do Preto brasileiro, sejam pessoas
Foi e é contrapoder ao processo encarcerador negras e/ou indígenas precisamos urgir em nos-
dxs negrxs escravizadxs nas Américas, fruto da sa autodefesa e contra-ataque a lança de Zum-
diáspora atlântica forçada pelo colonialismo, bi e fazer vergar o arco, endereçando a flecha
especialmente dos séculos XVII e XVIII. E campo Xavante para, mais do que dizer um “basta!” a
de lutas ao extermínio necropolítico de negrxs tudo isso... precisamos, também, justamente,
e indígenas. O Quilombismo é pensamento ne- ir às ruas para se autodefender e contra-atacar
gro-brasileiro nas obras de Abdias Nascimento, ao ataque dos exterminadores de nosso futuro
de Beatriz Nascimento, de Lélia Gonzales, do -passado-presente que impetram um genocídio
Mestre Nêgo Bispo e, também, abertura possí- a céu aberto sobre nós. Contudo, esta autodefe-
vel ao pensamento de Ailton Krenak e de Davi sa e contra-ataque que endereça a lança negra
Kopenawa. Mas, também, é possível ser pensa- e a flecha indígena é uma espécie de arquivo-ar-
do e atualizado em processos e linhas de força ma (memória-ferramenta) das poderosidades do
que chamaremos de devires. Estes devires são Povo Preto brasileiro. Até porque essas armas
aquilombamentos e aldeamenteos em lugar/ que estamos clamando, não se trata de armas
sítio e espaço/tempo, em ações e práticas esculpidas da madeira da floresta ou forjadas
estético-políticas, sejam elas nos ativismos em quaisquer metais. Tratam-se, isto sim, de tá-
contemporâneos (o feminismo negro/as lutas ticas de luta políticas minoritárias, sob a forma
indígenas de nossa atualidade), ou, na arte con- de guerrilhas artísticas no campo de forças que
temporânea (nas artes visuais, nas ações per- compreende a arte contemporânea, e alhures.
formáticas, no cinema de guerrilha, nas litera- Dito isto, partamos para a conversa que aqui
turas insurgentes). O Quilombismo é, em nossa teremos. Parto de uma proposição, ou mais pre-
perspectiva, um devir-quilombista. Falaremos e cisamente de uma inflexão, para este “chama-
clamaremos nesta intervenção Por um devir-qui- do” por nós designado de um devir-quilombista
lombista da arte. Justamente, neste devir-qui- da arte. Esta inflexão e sentido a qual denomi-
lombista da arte, negrxs-indígenas/indígenas/ namos de “giro minoritário na arte contempo-
negrxs, tomam de assalto à casa grande da arte rânea”. Mostrar que hoje eclode no seio do sis-
contemporânea, produzindo aquilombamen- tema de arte, desde os recortes curatoriais, a
tos e aldeamentos das galerias/feiras/bienais construção de nova fortuna crítica, a presença

40
em feiras e galerias de negócios, na construção não propriamente o abandono às questões liga-
e aquisição de acervos, sejam eles públicos ou das ao campo da linguagem, mas subordiná-las
privados e, ainda, na presença dessa perspec- às referências do sujeito e da história e retomar
tiva e lutas minoritárias em bienais (Bienal de as questões de orientação onto-políticas. De
São Paulo, por exemplo) e quinquienais de arte nossa parte, nos apropriamos aqui do sentido
(Documenta de Kassel, por exemplo)... destaca- de giro/virada para designar um momento de
mos, fortemente, a presença de artista de recor- eclosão das lutas minoritárias no campo das
tes étnico-raciais negro-indígenas ou indígena- artes, privilegiadamente o campo expandido
negros que representam a partir de suas obras, das artes visuais. Então, o sentido de virada,
objetos, ações e práticas as questões de registro ou exatamente como chamamos de giro, é o de
minoritário, as lutas do movimento e/ou do fe- mudar o foco e o enfoque dos estudos de uma
minismo negro e as lutas dos povos indígenas. determinada área de pensamento e atuação,
E mais, esses processos de representatividade mas também, a construção de uma de campo
no sistema da arte contemporânea não estão de diagnóstico do presente que dê conta das re-
apenas relacionados às questões étnico-raciais, gularidades de certas práticas sociais, no caso a
mas também às questões de gênero, como, por Arte e seus novos atores, questões, abordagens
exemplo, dos feminismos (particularmente do e agenciamentos de enunciação que estão reo-
feminismo negro) e das lutas das travestis e das rientando seu próprio sistema.
pessoas transvestigenere. Nos perguntamos, Em segundo lugar, a posição que defendemos
então, o que é, de fato este giro minoritário da acerca do “giro” (minoritário da arte contempo-
arte contemporânea? rânea) é que se deu/está se dando, como disse-
Em primeiro lugar, a posição que defendemos mos, uma virada, uma mudança de rumo. Dito
acerca do “giro” (minoritário da arte contempo- outro modo: afirmamos, como hipótese, que há
rânea) diz respeito aos seus próprios termos. O em curso uma mudança de sentido na rota que
século XX, notadamente a partir de uma leitura leva ao Lugar da arte contemporânea de seu
que se paute por uma história dos sistemas de mercado e ao sistema na Atualidade, sistema
pensamento, se viu implicado pelo que foi cha- este que consideramos é dominado por dispo-
mado de uma dupla virada. A primeira dessas sitivos biopolíticos de racialização. Dispositivos
viradas ficou conhecida como “virada linguís- estes calcados no colonialismo e em suas várias
tica”, a qual defende que os saberes humanos, formas de racismo, orientados pelo que o cha-
em especial a filosofia, deferia ter como foco mado pelo ativismo preto denomina de “bran-
de investigação privilegiadamente os estudos quitude” e que nós, seguindo a filósofa Denise
sobre a linguagem. Pensadores da linguagem Ferreira da Silva, nomeamos de “branquidade”.
como Ludwig Wittgenstein e Bertrand Russel Defendemos que a arte contemporânea está
e seus legados filosóficos foram decisivos para (e muito precisa-estar) se empretecendo. Evi-
o que foi designado por uma certa filosofia an- dentemente, não estamos afirmando que arte
glo-saxão de “linguistic turn”, virada linguística, se tornou negra-indígena, ou mesmo, que hoje
ou mesmo giro linguístico. À esta virada/giro encontramos nas mostras, bienais, feiras, etc,
autoproclamado de “linguístico” ocorre, como uma maioria de artistas negrxs-indígenas. Ao
reação, o que acabou por ser denominado de contrário, o que temos o é justamente o opos-
“virada antropológica da filosofia”, que pregava to, isto é, uma maioria esmagadora de artistas

41
farol

não-Pretos (negrx-indígenas) nesses Lugares da ações e práticas no campo das artes, melhor
arte. Contudo, o que aqui defendemos como dizendo, no campo social que agem e militam.
análise e diagnóstico de um tempo que se faz O giro minoritário da arte contemporânea en-
cada vez mais presente é, justamente, esta mu- gendra, nessa perspectiva, um devir-quilombis-
dança incontornável de rumo e sentido: a força ta das artes:
que potencializa a arte da contemporânea hoje Abdias Nascimento e
é (deve ser: devir) negra-indígena. Dizemos com Arjan Martins,
veemência: a lança negra e a flecha indígena es- Ayrson Heráclito,
tão endereçadas a um futuro que já é, necessa- Castiel Vitorino,
riamente, nosso presente, relendo nosso passa- Daiara Tukano,
do e contracolonialmente transmutando-o em Dalton Paula,
um outro porvir. Por isso também afirmamos: Daniel Lima,
toda a ira antirracista que leva o Povo Preto às Denilson Baniwa,
armas da guerrilha artística é sagrada. Elian Almeida,
A arte preta contemporânea brasileira é o Elton Sara Panamby,
sopro de renovação dos estados das artes em Frente 3 de Fevereiro,
nossa Atualidade. Jaider Esbell Makuxi,
E por quê? Aqui temos o terceiro ponto de Jaime Lauriano,
nossa argumentação. Jota Mombaça,
Em terceiro lugar, a posição que defendemos Marcelo D’Salete,
acerca deste “giro” (minoritário da arte contem- Maré de Matos,
porânea) é que este pode ser pensado como Maxwell Alexandre,
uma forma de luta política, de luta de minorias, Mulambo,
de luta minoritária. Nessas lutas há como que Moara Brasil Pankararu,
uma indiscernibilidade entre ser um/uma/ume Musa Mattiuzzi,
artista e ser um/uma/ume ativista à qual seu Naine Terena,
estado de ser comporta. Ser negro/negra/negre Olinda Yawar Tupinanbá,
ou ser indígena, apenas para ficar no Povo Pre- Panmela Castro,
to, mas poderíamos falar das trans, das travas, Paulo Nazarath,
das transvestigeneres. Trata-se de tornar mais Renata Felinto,
que poroso esta relação entre artista e ativista. Rosana Paulino,
Trata-se de mostra e fazer ver que não há dis- Sidney Amaral,
tinção possível entre o/a ativista e o/a ativista. Sonia Gomes,
Não se trata mais de obra ou processo artístico, Tiago Sant’Ana,
mas de ações e práticas artísticas-ativistas que Xadalu Tupã Jekupé e
são, sempre, enfrentamentos aos poderes insti- Yhuri Cruz...
tuídos que podem, por vezes, inadvertidamente 1+30 nomes de artistas-ativistas às lutas mi-
produzir uma zona cinzenta entre a arte e o cri- noritárias de nosso tempo presente. De Abdias
me. Isto sem nunca deixar de ser, de fato, ações Nascimento... o “A” do Arco e da lançA que inau-
e práticas legítimas e justas à causa que estes gura, não como primeiro, mas como ponto de
e estas artistas-ativistas defendem com suas partida, ao que denominamos de devir-quilom-

42
bista da arte... à Yhuri Cruz, jovem e poderoso negras. Diáspora Africa: Editora Filhos da África,
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43
farol

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VASCONCELLOS, Jorge e CASTELO BRANCO, mento de Artes e Estudos Culturais/RAE e no
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VASCONCELLOS, Jorge. “A anarquitetura de Líder do Grupo de Pesquisas CNPq – práticas
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saico/PPGCA – Coletivo 28 de Maio: arte e lutas
minoritárias, com Mariana Pimentel/IART-UERJ.
Pai de Valentina/Théo, Joaquim e Zoé.

44
VOLTAR À ENCRUZILHADA: A POÉTICA DO RETORNO DE
GEOVANNI LIMA

GOING BACK TO THE CROSSROADS: THE POETICS OF THE RETURN OF GEOVANNI LIMA

Maíra Freitas de Souza


PPGAV-Unicamp
Geovanni Silva Lima
PPGAV-Unicamp

Resumo: A produção em arte da performance do artista capixaba Geovanni Lima é analisada a partir
de uma perspectiva decolonial, considerando inflexões teóricas das epistemologias afro-brasileiras e
da abordagem queer of color, ou cuír. Destacaremos a sua série de três performances Exercícios para
se lembrar (2018-2021), que forneceram elementos importantes sobre a articulação entre memória,
processos de subjetivação, pactos identitários e produção poética.

Palavras-Chave: Geovanni Lima, performance, comportamentos reiterados, arte afro-brasileira.

Abstract: The performance art production of the Capixaba artist Geovanni Lima is analyzed from a deco-
lonial perspective, considering theoretical inflections of Afro-Brazilian epistemologies and the queer of
color approach, or cuír. We will highlight the series of three performances called Exercises to remember
(2018-2021), that provide important elements about the articulation between memory, subjectification
processes, identity pacts and poetic production.

Keywords: Geovanni Lima, performance, repeated behavior, Afro-Brazilian art.

45
farol

pos distintos, tenho percebido o que é arte e o que


Geovanni Lima1 é um performer e artista visual é vida de maneira emparelhada. Ambos os cam-
de Vitória (ES), e sua produção artística investiga as pos se formam e se transformam a partir de minha
relações entre corpo, sociedade e subjetividades, condição enquanto sujeito preto, gordo e gay,
articulando questões sobre os marcadores que seu nascido e criado no Brasil, país estruturalmente
racista. [...] Desde muito cedo eu construí e exe-
corpo sofre enquanto homem negro, em íntimo di-
cutei diversas ações corporais em resposta a essa
álogo com seus acervos memoriais e dentro de uma conjuntura na qual eu estou inserido. Ações que se
concepção de performance que amalgama sua tra- deram no meu corpo, e que eram a forma como
jetória como artista com sua biografia. eu inventava possibilidades para viver, ou melhor,
Seu trabalho parte do corpo e se constrói, majo- a forma pela qual eu me produzia no mundo e em
ritariamente, a partir da materialidade do próprio resposta a ele. (FREITAS, 2020, s/p.)

corpo, mas se concretiza também em outros supor-


tes. Artista, produtor cultural e pesquisador, mestre As obras do artista, produzidas em diálogo com
em Artes Visuais pela Universidade Estadual de seus arquivos pessoais e as diversas partituras cor-
Campinas (Unicamp) e licenciado em Artes Visuais porais elaboradas e executadas em sua vida cotidia-
pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), na, como aponta Erly Vieira Jr. (2019, p. 187), “explo-
Lima tem construído uma sólida carreira enquanto ram as potencialidades de seu corpo gordo, gay e
performer, trabalho reconhecido com a indicação negro, que excede padrões estéticos normativos, em
ao Prêmio PIPA 2021 e a participação em diversos trabalhos que o ressignificam a partir de memórias e
eventos de arte, como o XI Encuentro Internacional sobreposições de alteridades”.
do Hemispheric Institute, da New York University Ao acessar lembranças e partituras corporais
(NYU) (2019); a p.ARTE nº 42, da Plataforma de Perfor- que desempenhou em momentos de sua infân-
mance Arte no Brasil (2019); e a Residência e Festival cia e adolescência, o artista se aproxima do que
Corpus Urbis – 4ª edição – Oiapoque/AP, realizado Richard Schechner (2003) chamou de comporta-
pelo Coletivo Tenso(A)tivo com recursos do Rumos mentos reiterados, ou seja, opera a inclusão – no
Itaú Cultural (2018). Como produtor cultural, é um campo formal da arte – de comportamentos cor-
dos propositores dos projetos Performe-se – Festival porais, ações físicas que já lhe são conhecidas,
de Performance (2015, 2017)2 e coordena o Festival que ele executou em respostas a diversas situa-
Lacração – Arte e Cultura LGBTQIA+ (2019, 2021),3 ções – o que inclui processos pautados em expe-
ambos realizados no Espírito Santo. riências de violência. Nessa prática metodológica
Em sua trajetória, o artista tem friccionado os encontra-se uma das principais questões da poé-
campos da arte e da vida, uma vez que entende que tica do artista: suas ações são mobilizadas pelo
o resultado dessa ação é extremamente nutritivo desejo político de denunciar processos racistas
para seu processo de criar. Neste sentido, Lima afir- que violentam cotidianamente corpos afro-brasi-
ma, em entrevista,4 que leiros como o seu.
Embora quando ditos ou escritos pareçam cam- A escolha de Lima de construir sua tra-
jetória artística majoritariamente a partir
1 Portfólio do artista disponível em: www.geovannilima.com.
2 Disponível em: https://performese.wixsite.com/performe- da arte da performance – observando seu
se. Acesso em: 24 abr. 2021. portfólio artístico, são encontrados dez
3 Disponível em: www.festivallacracao.com.br. Acesso em: 24 abr. 2021. trabalhos em performance e videoperfor-
4 FREITAS, Maíra. Geovanni Lima: a performance nas raízes da pele.
Hipocampo Art, Campinas, v. 8, out. 2020. Disponível em: https://hipo-
campo.art.br/entrevista-com-geovanni-lima/. Acesso em: 16 abr. 2021.

46
mance, além de uma série de objetos bidi- É pela utilização de seu corpo como material Figura 01. Geovanni
Lima. Epiderme so-
mensionais – ratifica o que aponta Richard incontornavelmente político que o artista opera cial. 2015. Documen-
Schechner ao afirmar que práticas de subversão das violências sofridas, to de performance.
[...] performances afirmam identidades, cur- ao incorporar termos opressivos e violentos res- Viradão Cultural de
vam o tempo, remodelam e adornam corpos, Vitória/ES. Fonte:
significando-os enquanto termos afirmativos. A
Tom Fonseca.
contam histórias. Performances artísticas, ri- partir, sobretudo, das violências que experien-
tuais ou cotidianas – são todas feitas de com-
ciou por sua condição de homem negro, gordo e
portamentos duplamente exercidos, com-
portamentos reiterados, ações performadas homossexual, o artista revisita seu processo de
que as pessoas treinam para desempenhar, formação identitária (HALL, 2016), subvertendo
que têm que repetir e ensaiar. Está claro que a animalização imposta ao seu corpo afro-bra-
fazer arte exige treino e esforço consciente. sileiro (NOGUEIRA, 1998) e reposicionando os
Mas a vida cotidiana também envolve anos de
traumas marcados em seu repertório de sujeito.
treinamento e aprendizado de parcelas espe-
cíficas de comportamento e requer a desco-
Essa prática se alinha às proposições teórico
berta de como ajustar e exercer as ações de -políticas queer (BUTLER, 2003) e soma-se aos
uma vida em relação às circunstâncias pesso- tensionamentos identitários implicados pela
ais e comunitárias. (SCHECHNER, 2003, p. 27) contextualização latino-americana, naquilo que
podemos perceber como práticas decoloniais

47
farol

Figura 02. Geovanni do queer of color ou teoria cuír (PELÚCIO, 2014; ra, em que o carimbo assume o lugar da matriz, e
Lima. Exercícios para
PEREIRA, 2015). Essa operação é complexa, uma seu corpo, o de matéria para a impressão, o artista
se lembrar, Quantos
passos valem vez que, em alguns de seus trabalhos em perfor- concede ao transeunte que passa e decide interagir
uma caminhada?. mance, o próprio artista se coloca em um esta- duas possibilidades: marcar seu corpo com pala-
2018. Documento do de tensão. vras pejorativas que são comumente atribuídas a
de performance.
Residência e Festival
Em Epiderme social,5 de 2015 (Figura 01), por pessoas que acumulam marcadores sociais, ou es-
Corpus Urbis – 4ª edi- exemplo, Lima ocupa o espaço público portando colher carimbar o nome próprio do sujeito.
ção – Oiapoque/AP. seis carimbos com letras maiúsculas com os xinga- Ao operar em uma chave queer, além de elaborar
Fonte: Ana Lages.
mentos “GORDO”, “PRETO”, “VIADO”, “SAPATÃO”, aspectos subjetivos próprios, Lima atua no sentido
“FEMINISTA” e “AFEMINADO”, e, no sétimo carim- de que outras subjetividades positivas se façam pos-
bo, seu nome, “GEOVANNI”. Definido o local onde síveis, em um processo de empoderamento (SAR-
executará a performance, ele se despe, deixando DENBERG, 2006) ou, nos termos da teórica Jaqueline
sobre seu corpo apenas uma bermuda térmica Gomes de Jesus, de construção de um corpo-posi-
preta, que comporta, além dos carimbos, uma tividade (JESUS, 2013). Essa tessitura da subjetivida-
almofada carimbeira e uma venda para os olhos. de – pessoal e daqueles que partilham dos mesmos
Após se vendar, o artista oferta em uma das mãos marcadores identitários – também se revela na pro-
os carimbos e, na outra, a carimbeira. Seu corpo é dução teórica do artista: em Exercícios para se lem-
o convite para que o outro o manipule, o marque. brar: a performance como método para elaboração
Por meio de um processo de produção de gravu- de subjetividade, dissertação de mestrado defendida
na linha de Poéticas Visuais e Processos de Criação,
do Programa de Artes Visuais do Instituto de Artes da
5 Disponível em: https://www.geovannilima.com/epiderme-
social. Acesso em: 1 mai. 2021. Unicamp, Lima se volta para os cadernos de memó-

48
rias que produziu ainda adolescente, especificamen- vava. Os dois territórios sofriam com descaso Figura 03. Geovanni
Lima. Exercícios para
te para três práticas corporais que descreveu neles, de autoridades públicas, no que diz respeito à
se lembrar, Quantos
utilizando-as para criar uma série de três trabalhos infraestrutura urbana, e apresentavam um alto passos valem
homônimos ao título da dissertação. número de templos neopentecostais, como os uma caminhada?.
A primeira performance, Exercícios para se lem- que Lima frequentava na adolescência e que 2018. Documento
de performance.
brar, Quantos passos valem uma caminhada? (Figu- subjugavam, violentavam e reprimiam seu cor- Residência e Festival
ras 02, 03 e 04) – realizada durante a Residência e po negro e gay. Ao retratar o memorial da per- Corpus Urbis – 4ª edi-
Festival Corpus Urbis – 4ª edição – Oiapoque/AP, em formance, o artista afirma que: ção – Oiapoque/AP.
Fonte: Ana Lages.
2018, e, posteriormente, no Festival MoV.Cidade em Para a performance me propus a caminhar
Vila Velha/ES, em 2019 – originou-se de um compor- pela cidade do Oiapoque, iniciando o trajeto
tamento corporal exaustivamente executado pelo na Ponte Binacional Franco-Brasileira, situ-
ada na divisa entre Brasil e Guiana Francesa
artista: as caminhadas pelas ruas de Sooretama,
(Saint-Georges City), e finalizando-o nas ime-
sua cidade natal, no interior do Espírito Santo, para diações centrais da cidade, tendo como ter-
participação em cultos neopentecostais. ritório definido para esse momento o porto
Durante os dias de residência em Oiapoque/ informal de barqueiros, instalado às margens
AP, o artista identificou pontos similares entre a do Rio Oiapoque, que atuava clandestina-
mente no tráfego de turistas sem documen-
cidade onde cresceu e a localidade que obser-

49
farol

Figura 04. Geovanni tação que desejavam visitar o departamento foi recebido pelos cortesãos vestidos de bran-
Lima. Exercícios para francês. Caminhando descalço pelo percurso co em sua homenagem (PRANDI, 2003). Lima se
se lembrar, Quantos descrito anteriormente, utilizando roupas
passos valem coloca no espaço como quem está pronto a re-
brancas e portando nas mãos uma bandeira
uma caminhada?. da mesma tonalidade com medidas de 2,30 ceber os aprisionados nas masmorras que lhes
2018. Documento são familiares, esperando-os com o estandarte
m x 2,25 m. A cada templo religioso que en-
de performance.
contrava em meu trajeto, em um movimento da justiça.
Residência e Festival
Corpus Urbis – 4ª edi-
contínuo, até que houvesse o esgotamento A segunda performance, Exercícios para se lem-
ção – Oiapoque/AP. de meu corpo, tremulava a bandeira em suas
brar, Branqueamento ou ação repetida de cuidar,
Fonte: Ana Lages. portas de entrada. (LIMA, 2018, s/p)
de 2019 – executada durante as festividades do
26º aniversário do Museu Capixaba do Negro
Vestindo branco em honra a Oxalufã, versão (MUCANE), em Vitória/ES; na III Mostra Movediça
mais velha do orixá Oxalá, o artista clama por de Performances, na Galeria Liberdade, em São
justiça para os seus. Ao tremular a bandeira Paulo/SP; e na p.ARTE – Plataforma de Perfor-
branca a cada templo religioso que encontrava mances, edição nº 42, em Curitiba/PR –, originou-
em seu caminho, resgata a narrativa de Oxalufã, se de uma ação corporal desempenhada pelo
que, tendo sido libertado após sete anos em que artista em resposta a um ataque racista sofrido
viveu como prisioneiro na corte do Rei Xangô, no ambiente escolar durante sua adolescência.

50
Figura 05. Geovanni
Lima. Exercícios para
se lembrar, Bran-
queamento ou ação
repetida de cuidar.
2019. Documento
de performance.
p.ARTE – Plataforma
de Performance.
Curitiba/PR. Fonte:
Flávio Ribeiro.
Figura 06. Geovanni
Lima. Exercícios para
se lembrar, Bran-
queamento ou ação
repetida de cuidar.
2019. Documento
de performance.
p.ARTE – Plataforma
de Performance.
Curitiba/PR. Fonte:
Flávio Ribeiro.

[...] no final dos anos noventa, […] na escola cos de desodorantes aerossol. Um áudio é dis-
onde estudava no interior do Espírito Santo, ponibilizado no ambiente com o relato da expe-
a classe toda passou a se referir a mim como riência vivida na adolescência e, à medida que
“Geovanni Fedorento”, atribuindo-me um mau
ela é narrada, o artista, já nu, utiliza os seis fras-
odor que impregnava o ambiente e que tinha
sua origem desconhecida. Após muitos me- cos de desodorante sobre o seu corpo, até que
ses vivenciando essa situação extremamente o conteúdo dos frascos se esgote. O processo de
constrangedora, decidi respondê-la: diante de aplicação não se limita às axilas, estendendo-se
toda a classe, inclusive com a presença da pro- para todas as partes de seu corpo.
fessora – branca – que nunca interferiu, me pus
Para o segundo ato (Figura 06), o artista ain-
a utilizar três frascos inteiros de desodorantes
aerossóis. Me lembro de todos em silêncio e
da nu se coloca diante de uma bacia vazia, um
do cheiro igualmente forte ao anterior que im- frasco de azeite extravirgem, essência de arruda
pregnou o ambiente. Depois dessa utilização, e discos de algodão. Após a preparação de uma
nunca mais me chamaram de “Geovanni Fedo- mistura da essência com o azeite, Lima aplica o
rento”. (LIMA, 2019, s/p) unguento, utilizando o algodão, sobre as irrita-
ções ocasionadas pela ação anterior.
A partir do acontecimento relatado, o artista Por fim, no terceiro ato (Figuras. 07 e 08), Lima
desenvolveu a performance em três atos sub- prepara um banho de sete ervas, com guiné, ar-
sequentes. No primeiro (Figura 05), vestido com ruda, alecrim, colônia, abre-caminho, manjericão
calça e camisa branca, o artista se posiciona e alfazema. Ainda nu e diante de dois recipientes
sentado diante de um recipiente com seis fras- – um maior, onde é possível acomodar seu corpo

51
farol

Figura 07. Geovanni em pé, e um menor com água quente e as ervas o de Lima; e a produção de um estado de cura
Lima. Exercícios para
a serem maceradas –, o artista realiza o preparo para os traumas causados por esses processos
se lembrar, Bran-
queamento ou ação de um banho. De joelhos diante do recipiente de violência, pelo acesso ao universo ancestral
repetida de cuidar. menor, macera as ervas e as mistura com a água afro-ameríndio que, no trabalho, se materializa
2019. Documento
quente. Assim que a água incorpora as essências através da utilização das ervas.
de performance.
p.ARTE – Plataforma das ervas, em pé, dentro do recipiente maior, o Ao performar o trabalho Exercícios para se lem-
de Performance. artista aplica o preparo sobre seu corpo, respei- brar, Branqueamento ou ação repetida de cuidar,
Curitiba/PR. Fonte: tando o limite do pescoço até os pés. o artista estabelece um diálogo direto tanto com
Flávio Ribeiro.
O trabalho articula dois aspectos importan- quem exerce a posição de violentador, ao expor
tes presentes na subjetividade do artista e, por- o trauma e nomear seus acusadores, permitindo
tanto, no universo poético que o mesmo opera- que estes se responsabilizem por seus papéis,
cionaliza partindo de sua condição de pessoa quanto com quem é violentado, indicando en-
afro-brasileira: a recorrência de processos ra- caminhamentos para a experiência racista sofri-
cistas, baseados na criação e manutenção de da: voltar-se à ancestralidade, aquilombando-se
estereótipos (HALL, 2016) e de imagens de con- (NASCIMENTO, B., 1985; NASCIMENTO, A., 2019).
trole (COLLINS, 2000, 2019; BUENO, 2020) que A terceira performance da série Exercícios para
cotidianamente são atribuídos a corpos como se lembrar, Rei da Primavera, de 2021 (Figuras 09 e

52
10), elaborada com recursos do Fundo Municipal to no candomblé, está coberto pelo que sugere Figura 08. Geovanni
Lima. Exercícios para
de Cultura de Vitória (Funcultura) e da Lei Federal ser um ofilá, comumente utilizado por yawôs ao
se lembrar, Bran-
Aldir Blanc, a exemplo das duas performances incorporarem seus orixás, impossibilitando que queamento ou ação
anteriores, originou-se de uma experiência cor- o identifiquem ao vestir o figurino. repetida de cuidar.
poral vivenciada pelo artista ao disputar no am- O roteiro performático define que, durante 2019. Documento
de performance.
biente escolar o título de Rei da Primavera. quarenta minutos, o artista se coloca a cami- p.ARTE – Plataforma
Para a realização da performance, o artista nhar pelo espaço público portando, em uma de Performance.
desenvolveu o que chama de pele-macacão das mãos, uma cesta com flores que foram con- Curitiba/PR. Fonte:
Flávio Ribeiro.
(LIMA, 2021), uma espécie de segunda pele que feccionadas por ele a partir de retalhos de te-
cobre todo o seu corpo, bordada com flores e cidos. Enquanto caminha, ao encontrar outros
folhas artificiais de diversos tipos. Para cobrir a corpos negros como o seu, Lima os presenteia
cabeça, o artista produz uma coroa imponen- com as flores.
te e, a exemplo das figuras reais que habitam O gesto do artista de entregar flores a pessoas
o imaginário popular, Lima acrescenta ainda à negras que cruzam seu caminho retira esses
pele-macacão uma espécie de capa, construída corpos do lugar duro da sobrevivência cotidia-
a partir do que parecem ser folhas de planta tre- namente experienciada e lhes oferece um terri-
padeira. Seu rosto, como em uma saída de san- tório fundamentado no cuidado e no amor entre

53
farol

Figura 09. Geovanni iguais (hooks, 2000). A performance Exercícios o gesto de presentear com flores sujeitos racia-
Lima. Exercícios
para se lembrar, Rei da Primavera cria uma con- lizados que vão à feira estabelecem a ética justa
para se lembrar, Rei
da Primavera. 2021. tramaré para o lugar violento que a sociedade de partilha do artista com o mundo: é na encru-
Documento de per- branca e hegemônica, ou os ideais sociopolíti- za dos afetos, nas relações postas entre sujeito
formance. Vitória/
cos da branquitude, reserva a corpos afro-brasi- e comunidade que se forja a possibilidade de
ES. Fonte: Paula
Barbosa. leiros. No encontro com pessoas que partilham voltar à encruzilhada e refazer o caminho ou,
de alguns de seus marcadores sociais, embora nos dizeres da colonialidade, ressignificar a vida.
elas não pudessem enxergar a cor de sua pele,
Lima estabelece uma potente rede de afetos ex- Referências
clusivamente negra. BUENO, Winnie. Imagens de controle: um con-
A série Exercícios para se lembrar articula me- ceito do pensamento de Patricia Hill Collins. Porto
mória e repertório subjetivo, levando esses con- Alegre: Zouk, 2020.
teúdos – transmutados em atos poéticos – para BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminis-
o entorno, em um generoso gesto para consigo mo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civili-
e para uma construção comunal antirracista. A zação Brasileira, 2003.
devolução simbólica das violências raciais vivi- COLLINS, Patricia Hill. Black feminist thought:
das, a entrega do corpo ao espaço e às gentes e knowledge, consciousness, and the politics of em-

54
powerment. London: Routledge, 2000. JESUS, Jaqueline Gomes de. Feminismo e identi- Figura 10. Geovanni
___. Pensamento feminista negro: conheci- dade de gênero: elementos para a construção da te- Lima. Exercícios
para se lembrar, Rei
mento, consciência e a política do empoderamento. oria transfeminista. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL da Primavera. 2021.
Tradução: Jamille Pinheiro Dias. 1. ed. São Paulo: Boi- FAZENDO GÊNERO – DESAFIOS ATUAIS DO FEMI- Documento de per-
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ES. Fonte: Paula
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55
farol

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Uberlândia (MG), Macapá (AP), região metropo-
litana de Vitória (ES), entre outros. Idealizador
e Coordenador do Festival Lacração – Arte e
Cultura LGBTI+ e do Performe-se – Festival de
Performance.

56
NÃO CAMINHO SOZINHO: PERCURSO PARA RECORDAR E
RESSIGNIFICAR NA OBRA DE PAULO NAZARETH

I DO NOT WALK ALONE: A PATH TO REMEMBER AND RE-SIGNIFY IN THE


WORK OF PAULO NAZARETH

Camila Calolinda da Silva


PPGEL-UFMS
Alex Fabiano Alonso
PPGEL-UFMS
Eluiza Bortolotto Ghizzi
PPGEL-UFMS

Resumo: O presente artigo interessa-se pela obra do artista contemporâneo mineiro Paulo Nazare-
th (1977). Em um primeiro momento, analisa o seu fazer artístico por meio de percursos de viagem
com base nos conceitos de “lugar” e “não lugar” antropológicos, cunhados por Marc Augé. Em seguida,
no intuito de aprofundar-se no estudo dos significados com os quais o artista trabalha, detém-se em
um registro videográfico da obra “Árvore do Esquecimento” (2013), a qual analisa recorrendo a uma
aplicação da semiótica peirciana à imagem, proposta pela semioticista Lúcia Santaella. Os resultados
mostram uma obra que valoriza o sentido de lugar na medida em que vai na contramão das figuras de
excesso que Augé associa aos não lugares e, ao mesmo tempo, reconstrói simbolicamente vivências
ancestrais dele próprio e de todos os outros com os quais se identifica.

Palavras-chave: Paulo Nazareth, não lugar, semiótica peirciana.

Abstract: This article is interested in the work of contemporary artist Paulo Nazareth (1977). At first, he
analyzes his artistic work through travel itineraries based on the concepts of anthropological “place” and
“non-place”, coined by Marc Augé. Then, in order to deepen the study of the meanings with which the artist
works, he dwells on a videographic record of the work “Árvore do Esquecimento” (2013), which he analyzes
using an application of Peircean semiotics to the image, proposed by semiotician Lúcia Santaella. The
results show a work that values the sense of place insofar as it goes against the figures of excess that Augé
associates with non-places and, at the same time, symbolically reconstructs ancestral experiences of him-
self and of all the others with whom he identifies.

Keywords: Paulo Nazareth, non-places, Peircian semiotics.

57
farol

Paulo Nazareth (1977) é um artista viajante1 razão, o observador, seja ele quem for, faz parte
contemporâneo, e performático, seu corpo é a daqueles que ele observa e torna-se desse fato
força de sua obra, mas não se limita a ele; explo- seu próprio indígena”. Essa clareza é importan-
ra em seus trabalhos questões ligadas à sua an- te para legitimar que analisemos o espaço que
cestralidade, à sua identidade, à miscigenação, ocupamos no mundo. Recortamos para este
às relações de trabalho, aos deslocamentos, às estudo os conceitos de “lugar” e “não lugar”
fronteiras, às migrações e até mesmo ao próprio antropológicos, tratados por Augé (1999; 2012;
conceito de arte. Trata também dos encontros 2014), para considerar a relação que os indiví-
e do cotidiano. Produz trabalhos que instigam duos mantêm com os locais, as quais não estão
os espectadores a ver além do que está pos- dissociadas das relações de significação desen-
to, a questionar, por exemplo, a exotização do volvidas ou não com esses.
indivíduo não-branco (e por isso muitas vezes Dedicamo-nos aqui a ver de que forma esses
considerado não-humano), a concepção de na- conceitos de lugar e não lugar podem nos ajudar
cionalidade, as fronteiras artificiais entre países a ler a obra L’arbre d’Oublier [Árvore do Esque-
e a noção de pertencimento, a de memória, o cimento] (2013), da série “Cadernos de África”
nosso lugar no mundo, os passados, o presente (2013-) do artista mineiro Paulo Nazareth. Traba-
(e por que não os futuros possíveis?). Seu foco lhamos com a hipótese de que, tal como as rela-
são as relações que mantemos com tudo isso. ções que mantemos com os espaços alteram a
O caráter mutável das relações humanas tam- nossa percepção e as significações que damos
bém foi considerado por Augé (2014, p.7) que, para eles, também o processo da obra de Paulo
diante das influências das tecnologias digitais e Nazareth produz uma mudança na relação com
dos excessos da “sobrermodernidade”,2 depa- os espaços, que talvez passem da condição de
ra-se com o desafio do antropólogo para pas- não lugar à de lugar. Para compreender se e
sar a estudar tais relações no presente e no seu como essas relações ocorrem, propomos con-
próprio ambiente, tomando a si mesmo como siderar, paralelamente aos conceitos de lugar
outro, escreve: “sob determinados aspectos, to- e não lugar de Augé, conceitos da semiótica do
dos pertencemos ao mesmo mundo e, por essa estadunidense Charles Sanders Peirce (1839-
1914), com base nos trabalhos da pesquisadora
1 Artistas viajantes são aqueles que estabelecem uma rela- brasileira Lúcia Santaella (2002; 2004; 2012).
ção estreita entre sua obra e suas trajetórias em viagens.
2 Ou “supermodernidade” - Termo utilizado por Augé para
discutir uma ideia de comunidade mediada pelos laços de Caminhar, habitar, pertencer
solidão (onde se convive mais com os meios eletrônicos do Andar é conhecer, mais do que colocar um pé
que com outros indivíduos), procurando assim realizar uma
à frente do outro e nos movimentar fisicamen-
nova reflexão sobre a Antropologia na atualidade e a com-
plexidade da análise das sociedades atuais e em constante te. O ato de caminhar pode produzir também
movimentação, e de escalas planetárias, que segundo o au- mudanças internas. Ao nos deslocarmos de
tor requer novos métodos. Augé (2014, p.38) altera o termo um local para outro vemos paisagens, pessoas,
“supermodernidade” para “sobremodernidade”, segundo
ele mais coerente, pois é um “termo calcado sobre aquele
arquiteturas e culturas diferentes, e essa movi-
de ‘sobredeterminação’, utilizado por Freud, e em seguida mentação ocorre externamente e internamente,
por Althusser, para designar a multiplicidade de causas desse modo, “a viagem só pode ser apreendi-
que engendram a complexidade das situações estudadas”,
da pelo corpo inteiro transformado em olhar”
faremos uso da expressão mais recente dada pelo autor, por
considerarmos que representa suas reflexões mais atuais. (MELO, 2012, s.p.). É com esse ponto de vista

58
que nós também artistas, e viajantes, além de o mesmo corpo, e não conseguimos separar um
pesquisadores, percorremos parte da obra de do outro, por isso sé faz pertinente apresentá-lo
Paulo Nazareth. desse modo. Sua ancestralidade complexa é um
Falar sobre Paulo Nazareth é evocar passa- elemento importante do seu trabalho. Ele se au-
dos, repensar presentes e questionar futuros. todenomina uma “afro-indígena” ou um “luso-
Paulo Sérgio da Silva é o nome de batismo desse ítalo-afro-krenak” (FOLHA DE S. PAULO, 2013),
mineiro, nascido em 1977 na cidade de Governa- descendente de indígenas por parte de mãe, ita-
dor Valadares, que, ele faz questão de lembrar, lianos e africanos por parte de pai. Partilha essa
era conhecida como Santo Antônio das Figuei- ancestralidade conosco, em suas falas, suas his-
ras na época de seus antepassados, indígenas tórias compartilhadas e em suas obras.
Botocudos. Estes têm seus representantes atu- O caminhar está ligado aos seus antepassa-
ais nos Krenak (autodenominados Borum), de dos indígenas e africanos em parte, bem como
quem o artista é descendente por parte de mãe. à sua infância, quando caminhava de sua casa
Ele reforça a ligação com a árvore genealógica para a casa de seu avô, isso bem cedo, quando
materna por meio do nome que escolheu para o dia estava nascendo, e à noite ao retornar. E
si: Paulo Nazareth, como é conhecido, é uma caminhava também em outra situação, quan-
homenagem à sua avó materna, Nazareth Cas- do sua mão matriculou os filhos em escolas no
siano de Jesus, de origem Borum, que foi inter- centro, longe de onde moravam, para que eles
nada na Colônia de Barbacena3 no final de 1944. aprendessem a se deslocar, do canto para o
Em sua obra e no seu discurso o artista evoca centro, ou da periferia para o centro. Segundo o
essa e outras memórias individuais e coletivas, artista sua mãe dizia: “para não ficar bobo, tem
histórias que muitos querem apagar. que aprender a andar, conhecer”, assim ele foi
Paulo Nazareth é, segundo o próprio artista, andando, e mapeando territórios cada vez mais
“objeto de arte”, e divide-se assim da pessoa extensos (NAZARETH, 2019).
Paulo Sérgio da Silva. Ainda relata que “ser Na- A partir daí, realiza suas obras sem um local
zareth é ser meu trabalho. Esse me tornar. Então fixo, no trecho, e ao seu modo abre caminhos.
quando eu passo a me nomear Paulo Nazareth No percurso sofre o rigor das intempéries, mas,
isso também é meu trabalho. Eu passo a carre- apesar delas, o caminhar acaba por se tornar
gar esse ancestral. Minha avó passa a ser essa mais importante do que o destino. Além dis-
espécie de carranca, né? Essa proteção” (VIANA, so, com esses processos ele acaba mudando
2019). Assim a pessoa e o artista-obra habitam também. Em entrevista concedida à Mariana
Zylberkan (2012) Paulo Nazareth trata seu fazer
3 A cidade de Barbacena em Minas Gerais ficou conhecida
artístico como “arte de conduta”, onde ao mes-
como Cidade dos Loucos, quando colônias manicomiais
foram instaladas ali, sendo o maior hospício do Brasil. mo tempo em que conduz a obra é conduzido
Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros do por ela, o artista alega que essa “é uma forma de
“Colônia”, como era conhecido o complexo, ao menos 70% estar presente na vida, questionar o cotidiano e,
dos internos não tinham diagnóstico de doenças mentais,
eram apenas os “cidadãos indesejados” como: epiléticos,
ao mesmo tempo apreciá-lo”. Tal mistura entre
homossexuais, prostitutas, alcoólatras, negros, indígenas, obra e artista nos permite também, do ponto de
pobres, mães solo, etc., quem incomodava gente poderosa vista de observadores, perceber e questionar a
era enviado para lá; suas instalações foram comparadas aos
partir dos fragmentos de sua história comparti-
campos de concentração nazistas, devido ao tratamento
desumano dado aos internos. (ARBEX, 2013). lhados conosco.

59
farol

No ato de caminhar reside parte importante de de pertencimento, ancestralidade e, até o nos-


seu fazer artístico. Na série “Cadernos de África”, so lugar no mundo. E quando não estamos em
por exemplo, começou a partir da cozinha da mãe, um lugar previamente conhecido, como Paulo
dona Ana. Segundo o artista, naquele lugar, ele pro- Nazareth em seus percursos pelo mundo, onde
cura o que tinha de África em sua casa. Conforme estamos? Do mesmo modo que o termo “lugar”
com Rocha (2020) “Cadernos de África” iniciada em neste texto remete a Augé, também o termo
2012,4 teve trabalhos expostos pela primeira vez já “não lugar” é usado para definir certos locais
em 2013, na 12ª Bienal de Lyon (França) e na 55ª Bie- com base na conceituação dada pelo autor. Tal
nal de Veneza (Itália), de ambas o artista participou como ele propõe, o uso desses conceitos, de
apenas com obras, mas não estando pessoalmen- lugar e não lugar antropológico, permite com-
te. Galvão (2020) escreve que o artista “só pretende preender melhor as relações que os indivíduos
pisar (na Europa) depois de percorrer toda a África”. mantêm com os espaços que ocupam e por
E do mesmo modo que na casa de sua mãe busca onde passam, e os significados dados a eles.
vínculos com a África, estando na África, procura as Descrito por Augé (2012, p.51), o lugar antro-
coisas que achou na cozinha de sua mãe. Segundo pológico refere-se “àquela construção concreta
Rocha (2020, p.104), chegando ao continente afri- e simbólica do espaço que não poderia dar con-
cano o artista viaja a partir da Cidade do Cabo, na ta, somente por ela, das vicissitudes e contradi-
África do Sul, em direção ao norte e passando por ções da vida social, mas à qual se referem todos
Joanesburgo, também na África do Sul, Lusaca no aqueles a quem ela designa um lugar, por mais
Zâmbia, Harare e Bulawayo no Zimbábue, Win- humilde e modesto que seja”. Para Augé (2014,
dhoek na Namíbia, Maun em Botswana, Maputo p.66), lugar é um espaço onde podemos ler fa-
em Moçambique, Lagos na Nigéria, Uidá, Abomei cilmente as relações sociais, “é o absoluto do
e Cotonou em Benim, e Nairóbi no Quênia, e nessa sentido (do sentido social), um espaço onde o
performance/caminhada não lavou os cabelos. O indivíduo é inteiramente definido por suas rela-
artista pretende dar continuidade ao percurso pela ções”. O lugar antropológico é o estar “em casa”
África no futuro, desta vez percorrendo o Norte do (AUGÉ, 1999, p.134).
continente (GALVÃO, 2020). Esses lugares antropológicos são descritos
pelo autor como identitários, relacionais e his-
O sentir-se em casa tóricos, podem estar ligados ou não a memória,
Ao realizar esses percursos e compartilhar ele ainda acrescenta que um local que não se
conosco parte desses trajetos o artista nos faz encaixa nessas especificações definirá um não
questionar a noção de fronteiras, as maneiras lugar. Os não lugares são locais construídos em
relação a certos fins como transporte, trânsito,
4 A série “Cadernos de África” teve início enquanto o artista comércio, lazer, etc. E as relações que mante-
desenvolvia outra série pelo qual é também bastante mos com esses espaços também são para cer-
conhecido, “Notícias de América” (2011-2012), em que tos fins, são relações de passagem, de trânsito,
caminhou de Minas Gerais (Brasil) até Nova Iorque (Estados
Unidos), não lavou os pés nessa caminhada, os lava somen-
de falso anonimato e de não pertencimento.
te no destino, no Rio Hudson em Nova Iorque, levando con- De acordo com Augé (2012), enquanto o lugar
sigo, durante todo o percurso, a poeira da América Latina. cria um “social orgânico”, o não lugar cria uma
Para mais informações sobre a série “Notícias de Ámerica”
“tensão solitária”, o autor defende ainda que a
acesse: https://mendeswooddm.com/pt/exhibition/notcias-
de-amrica sobremodernidade é produtora de não lugares.

60
E ao nos aprofundarmos mais nesse conceito de nea de imagens e mensagens parecem fornecer-
não lugar, somos apresentados às suas três figu- nos uma sensação cotidianamente sempre mais
ras de excesso: o tempo, o espaço e o ego. aguda de uma espécie de redução das distân-
O tempo ou, como o autor denomina “supera- cias planetárias”, intensificando as sensações
bundância factual”, diz respeito à nossa percep- de aceleração do tempo e de encurtamento pla-
ção da passagem do tempo, que muda se ace- netário5. Essa figura também é negada pelo ar-
lerando ou multiplicando acontecimentos; ele tista, quando ele vivência os espaços que ocupa
aponta que hoje o tempo não é algo facilmente fisicamente, e podemos ter acesso a partes des-
compreendido, desejamos fazer muitas coisas, sa experiência em suas falas, alguns registros
simultaneamente e rapidamente. Ansiamos e em suas obras6, onde prioriza os encontros
por não perder nada do que se passa, não só à pessoais com aqueles com tem contato pelo
nossa volta, mas também no mundo, e algumas caminho; seu corpo físico está naquele local, e
vezes isso não nos permite vivenciar os espaços não uma imagem dele, bem como os cartazes
físicos que ocupamos. Aqui cabe acrescentar que carrega, escritos à mão, cada um deles uma
que Paulo Nazareth nega essa figura de exces- peça única, são mensagens físicas algumas ve-
so em seus percursos, ele não tem um prazo de zes questionamentos previamente pensados
chegada, ele parte para a jornada e segue con- ou trazidos por aqueles momentos. Ainda que o
forme o caminho o leva. Ao vivenciar o trecho ao artista disponibilize suas obras em redes sociais
seu modo, ele não é o turista comum que Augé e blogs, se difere dos usuários comuns nessas
descreve: que embarca aqui e horas depois está redes quando não permanece conectado qua-
do outro lado do mundo, com roteiro e hora de se o tempo todo, fazendo lives ou postagens
chegada pré-determinados; a viagem dele tem com frequência, por exemplo, mas utiliza das
data de partida (aquele momento em que de-
cide iniciá-la), mas não uma data de chegada 5 Augé (2019) em entrevista ao jornal digital El País amplia
estipulada, desse modo pode levar dias, meses ainda mais o conceito que não lugar atrelado ao uso da
e até anos para realizar o trajeto, construindo tecnologia, dizendo que “hoje podemos dizer que o não
lugar é o contexto de todos os lugares possíveis. Estamos no
assim sua própria relação com o tempo, o que mundo com referências totalmente artificiais, mesmo em
nos leva à segunda figura de excesso: o espaço. nossa casa, o espaço mais pessoal possível: sentados diante
Chamada por Augé (2012) de “superabun- da TV, olhando ao mesmo tempo o celular, o tablet, e com
os fones de ouvido... estamos em um não lugar permanente.
dância espacial”, a figura de excesso que trata
Esses dispositivos estão permanentemente nos colocando
do espaço não está dissociada dessa transfor- em um não lugar.” Aentrevista completa está pode ser
mação acelerada, embora foque na mudança acessada em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/31/
tecnologia/1548961654_584973.html.
de escalas, do que antes eram locais e hoje são
6 Durante os percursos que realizou artista manteve blogs
globais. O espaço foi encurtado, e esse encur- nos quais compartilhava imagens de seus percursos e obras,
tamento faz com que nos relacionemos com os podemos citar os dois principais: “Noticias de América”:
outros mais por meio de imagens e aparelhos http://latinamericanotice.blogspot.com/; e “Cadernos de
África”: http://cadernosdeafrica.blogspot.com/. Melo (2012,
eletrônicos, substituindo o espaço real pelo es- s.p.) escreve sobre as conversas que mantinha com o artista
paço virtual, nas chamadas redes sociais (Face- através do Facebook enquanto ele estava em trânsito, prin-
book, Instagram, Twitter, Tik Tok, Kwai etc.). Augé cipalmente durante a série “Notícias de América”, inclusive
o artista relata a perda (ou esquecimento como ele aponta)
(2014, p.61) acrescenta ainda que “a aceleração
quando estava no México, de uma memória externa (HD)
dos transportes e a circulação quase instantâ- com 5 meses de registro de seu trabalho.

61
farol

ferramentas tecnológicas como meio de regis- mundo, a depender das relações triádicas que
tro e até mesmo como forma de armazenar tais se estabelecem a partir (1) da natureza dos sig-
imagens, evitando que fiquem em dispositivos nos com os quais nos deparamos, (2) da sua re-
físicos que podem ser perdidos. lação com o objeto da significação e, também.
Na terceira figura de excesso, Augé (2012) fala (3) com o chamado interpretante. Este, por sua
do ego, ou indivíduo, ou mais precisamente da vez, ainda sofre influência do intérprete, da sua
individualização das referências, já que é o pró- subjetividade ou daquilo da cultura que há nele.
prio indivíduo que interpreta as informações Ao estabelecer critérios, a semiótica nos forne-
que lhe são apresentadas, a seu modo, fazendo ce meios de análise desses processos de signifi-
uma produção particular de sentido, se vendo cação, que podem ser adotados de diversas for-
como centro do mundo. Aqui cabe dizer que mas, conforme sejam as questões para as quais
o artista chama atenção para si mesmo, por se busca respostas.
exemplo, ao falar de sua própria ancestralidade, De acordo com Santaella (2012, p.10), a semi-
mas esse não é um modo de fazer ver apenas ótica “é a ciência dos signos, a ciência de inves-
a si, antes é um modo de chamar atenção para tigação de todas as linguagens”; a autora tam-
uma realidade mais ampla. Ao observarmos os bém observa que os signos à nossa volta são
registros de seus trajetos e suas obras temos abundantes, sejam eles verbais ou não verbais.
acesso a uma parcela de suas vivências, seja A semiose verifica como o signo age, ou como
através de sua fala, dos registros do percurso, ele é interpretado, a ação do signo na mente. A
mas também quando ele olha para si e para tríade “signo, objeto e interpretante”, da semió-
aqueles que encontra pelo caminho sem indivi- tica peirciana, propõe uma análise em camadas,
dualizar-se, mas aproximando-se, buscando as que vão da percepção à cognição. Para estabe-
semelhanças (físicas, culturais, raciais etc.) com lecer as bases conceituais desse caminho de
aqueles com quem cruza pelo trajeto. análise, apresentamos aqui alguns conceitos
Talvez se possa dizer que nesse percurso, de antes de iniciarmos a análise propriamente dita.
encontros e desencontros com o outro, aproxi- Conforme Santaella (2012, p.90) “o signo é
ma-se do peregrino religioso; ambos buscam uma coisa que representa uma outra coisa: seu
uma aproximação com algo divino, que para objeto”, sendo um signo somente se carregar
Nazareth significa estar mais próximo de si e esse poder de representar, substituir seu objeto,
dos outros, dos que encontra e dos que evoca. mesmo que falsamente. Santaella (2004, p.90)
Ele busca parte de sua ancestralidade nas cami- escreve sobre a amplitude da noção de signo, a
nhadas, partes da história coletiva e individual; partis da qual podemos entender que “qualquer
e podemos ler partes dessa enorme colcha de coisa de qualquer espécie, imaginada, sonhada,
conexões que o artistas vai criando com seu ca- sentida, experimentada, pensada, desejada...
minhar em suas obras. pode ser um signo desde que esta ‘coisa’ seja
interpretada em função de um fundamento que
Em busca de significar lhe é próprio, como estando no lugar de qual-
Sob o olhar da semiótica peirciana, desenvol- quer outra coisa”. Ela também observa que o
vida pelo estadunidense Charles Sanders Peirce signo não é o objeto, mas o representa, e gera
(1839-1914), conhecida também como semió- em uma mente a terceira parte da tríade, o inter-
tica americana, fazemos múltiplas leituras do pretante. Aqui cabe apontar que o interpretante

62
é um novo signo, e a partir dele se faz um novo próprios, caracteres que ele igualmente possui Figura 1. Paulo
processo semiótico, que tende a continuar infi- quer um Objeto realmente exista ou não”. Exem- Nazareth, L’arbre
d’Oublier [Árvore
nitamente; assim se dá o processo de semiose plo comum de signo icônico é a pintura artística do Esquecimento],
infinita. Grosso modo, a palavra é um signo que, na sua polissemia. E se o signo for indicial, ele Ouidah, Benim,
quando falada evoca o objeto geral que está no tira seu poder significante de uma relação de 2013. Frame de
vídeo. Disponível
conceito da palavra; este gera o interpretante, existência que mantém com o seu objeto; se-
em: https://vimeo.
que é influenciado também por aquela situação gundo Santaella (2004,p. 121), “os índices são com/199736235.
específica de comunicação na qual a palavra é os tipos de signos que podem ser mais farta- Acesso em: 15 abr.
2021
usada; esta envolvendo o intérprete, sua cultura mente exemplificados”, são materiais, indicam
e seu contexto. o objeto, e perdem sua posição de signo se o
Quanto à relação do signo com o objeto, ela objeto não é existente. São indiciais os signos
pode se dar três modos: icônico, quando há do detetive, como as digitais que apontam para
uma semelhança, uma similaridade entre sig- um indivíduo em específico e, também, os ves-
no e objeto; indicial, quando há uma relação tígios de fatos históricos. Já no que diz respeito
factual entre um e outro e o signo faz referência à relação simbólica, Peirce (2017, p.53) escreve
causal; e simbólico, se a relação é uma conven- que “Um Símbolo é um signo que se refere ao
ção, uma lei. Cada modo de referência parte de Objeto que denota em virtude de uma lei, nor-
uma potencialidade do signo para significar. malmente uma associação de ideias gerais que
Assim, quando um signo é icônico se refere, de opera no sentido de fazer com que o Símbolo
acordo com Peirce (2017, p.52), “ao Objeto que seja interpretado como se referindo àquele Ob-
denota apenas em virtude de seus caracteres jeto”, estando ligado ao aspecto de lei, podendo

63
farol

ser também uma convenção social, algo reco- àquilo que mostra; percebemos ter sido regis-
nhecido assim por muitos. Assim são as normas trado em um ambiente externo, no que parece
acordadas entre os membros de uma sociedade ser uma praça, informação reforçada pelo que
e, também, os significados que vão se consoli- deduzimos ser um banco à direita da imagem da
dando entre os indivíduos de uma cultura pela Figura 1, ao fundo, e por uma estátua à esquer-
ação da história, como aqueles com os quais se da e no mesmo plano da árvore. Observamos
depara Paulo Nazareth na obra a que nos referi- também objetos como lixeira ao fundo e, no
mos a seguir. plano de fundo, fachadas de alguns imóveis. Ao
Selecionamos aqui a obra L’arbre d’Oublier [Ár- centro e no plano da árvore vemos o artista; o
vore do Esquecimento], uma vídeo-performance vídeo permite ver que ele caminha a revés e em
com 27 minutos e 31 segundos de duração, que círculo, em volta da grande árvore coberta por
faz parte da série “Cadernos de África” (2013-), tecidos dispostos como se vestissem o tronco
que analisamos por meio das capturas de ima- da árvore, quase como uma roupa. Por se tratar
gem mostradas nas Figuras 1 e 2, nas quais se de uma imagem em preto e branco não temos
podem ver aspectos parciais da obra que, mes- acesso às cores, apenas às formas presentes ali,
mo sendo parciais, nos possibilitam apontar os mas temos indícios de se tratar de tecido, e não
signos que nos conduziram em uma leitura do de uma pintura no tronco da árvore, pelas tex-
todo. Registrado em janeiro de 2013 em Ouidah, turas e pelas dobras; já as formas nos remetem
localidade próxima a Contou, no Benin, que se- a bandeiras; o artista aparenta estar descalço
diou um dos maiores portos de tráfico negreiro sobre um chão de areia, piso que difere do visu-
do continente Africano. A região era conhecida alizado no restante da cena, que é pavimentado.
como “costa dos escravos” e, de acordo com Ro- Em alguns momentos da vídeo-perfor-
cha (2020, p.93): mance vemos animais circulando pela praça,
A motivação do artista parte da história conta- como também se pode ver na Figura 1; pelo
da de que, durante os sequestros, os africanos som e pela forma, alguns aparentam ser ca-
vitimados pelas empreitadas escravagistas britos ou cabras; outro animal que vemos
eram forçados por seus captores a andar repe-
em um dado momento se assemelha a um
tidas vezes em volta de uma árvore – conheci-
da como Árvore do Esquecimento – para que, cachorro, nenhum deles se aproxima da figu-
dessa maneira, os africanos se esquecessem o ra central (o artista), apenas cruzam a praça.
caminho de casa e seus nomes – pois seriam Escutamos ao fundo os sons da cidade, o que
batizados com nomes cristãos –, destituindo- parecem ser buzinas, som de motores e até
se de suas memórias de origem.
sons que aparentam ser canto de pássaros;
o que supomos ser insetos passam pela lente
No vídeo há uma informação de que o artista da câmera, não os identificamos, pois se con-
dá 133 voltas na árvore que é mostrada na Figu- vertem apenas em borrões cinzas escuro na
ra 1; nessas voltas o artista caminha para trás, o tela, e caminham pela lente tão rapidamente
que por si é incomum, mas ele tem um motivo que nos questionamos se eles realmente esti-
para fazê-lo assim, e o apresentamos no decor- veram ali, confirmamos ao retroceder o vídeo.
rer dessa análise. Todo esse ambiente sinaliza uma dinâmica do
Em se tratando de uma imagem em movimen- local que se mantém inalterada pela presença
to, o vídeo tanto indica quanto se assemelha do artista.

64
Ouvimos também um ruído constante, seme- se senta, como vemos na Figura 2, observando a Figura 2. Paulo
lhante a um chiado, que supomos ser da pró- performance, e logo após esse momento ela se Nazareth, L’arbre
d’Oublier [Árvore
pria filmagem, do equipamento, como faziam levanta e sai de cena, para retornar após alguns do Esquecimento],
as câmeras antigas, som que, juntamente com minutos. Não podemos afirmar o sexo desse es- Ouidah, Benim,
o preto e branco da filmagem, nos remete a um pectador, logo não podemos afirmar tratar-se 2013. Frame de
vídeo. Disponível
passado em que a tecnologia ainda não nos per- de um homem ou uma mulher, contudo apa-
em: https://vimeo.
mitia ver o registro em cores. Não sabemos se renta ser um adulto, é negro e está vestido com com/199736235.
alguém está operando a câmera, ou se ela está roupas que parecem ser típicas da cultura local Acesso em: 15 abr.
2021
em um tripé ou superfície, mas vemos que não (um tecido que funciona como saia, uma camisa
há muitos espectadores na cena, não há uma estampada, um tecido sobre o ombro esquerdo
plateia, no quadro geral vemos diversas pesso- e pés descalços).
as de passagem, em carros, motos, bicicletas Algumas vezes temos a sensação de que o ar-
ou a pé; elas passam sem dar muita atenção tista tem o passo hesitante, como se fosse per-
ao que faz o artista, não parecem estranhar a der o equilíbrio e cair a qualquer momento, mas
cena, exceto por uma única pessoa que em de- ele resiste em sua caminhada. Quando começa-
terminado tempo do vídeo é vista deitada no mos a nos perguntar se e como os signos agem
canto inferior direito da cena. Em um primeiro por meio de convenções, nosso olhar retorna
momento vemos apenas os pés dessa pessoa, para os tecidos afixados ao tronco da árvore e
que está ao lado de objetos que não consegui- que nos remetem a bandeiras, vemos uma es-
mos identificar, após algum tempo ela muda de trela, além de listras de diferentes espessuras; o
posição e podemos ver suas costas, depois ela elemento que nos dá maior sensação de que se

65
farol

tratam de bandeiras é o tecido que está próxi- em que outras vozes unem-se à de Paulo Naza-
mo ao chão, de frente para nós que assistimos: reth para rever e reescrever a herança ligada a
a composição com uma estrela branca no can- acontecimentos similares. Ao caminhar para
to superior esquerdo rodeada por listras, ainda resgatar memórias e histórias, o artista parte
que não seja uma imagem colorida, nos permite das suas vivências pessoais e das memórias co-
uma leitura mais assertiva, no sentido de dizer letivas para ressignificar essa herança usando
que este e os outros tecidos compõem bandei- para isso o mesmo signo usado outrora, o ato
ras de estados ou países. de caminhar. Para isso tornou aquela mesma
Retornando à posição do artista na cena, sa- praça da história, que antes ele não conhecia,
bemos que ele está em um lugar que, embora bem como a árvore que vive naquele local his-
possa passar desapercebido por aqueles que tórico, tão longe do lugar onde nasceu e viveu
por ali transitam e não conhecem a história lo- a maior parte da sua vida, transformando-o em
cal e o que aquele lugar em especial significa, seu lugar. Ele esteve presente em cada passo
é um lugar com o qual ele tem ligações ances- que deu, mas ele não o faz sozinho, simbolica-
trais. Para ele e para o povo africano essa ár- mente seu andar reverso resgata a memória de
vore tem um significado simbólico profundo, e todos aqueles que deram voltas na árvore do
essa caminhada ao contrário propõe um outro esquecimento; e isso não só naquele local para
significado em relação à história desse símbolo, aquele único espectador que estava lá no mo-
não só para si, mas também para aqueles que mento da performance, mas em diversos outros
desde aquele momento tiveram e terão contato lugares do mundo onde o videoperformance foi
com seu trabalho. Nessa performance o artista (ou será) executado.
atua no tempo presente para simbolicamente
desfazer o ritual do passado, em que os negros Conclusão
escravizados foram obrigados a dar voltas na O sociólogo francês Maurice Halbawachs
“árvore do esquecimento” para esquecer seus (1990) trata do termo “memória coletiva”, e
nomes, sua memória, suas origens. Ao caminhar evidencia em sua teoria que olhamos as coisas
ao contrário o artista propõe lembrar e com isso com os nossos olhos e com os olhos dos ou-
desfazer o apagamento de identidade, reverter tros, segundo sua teoria as memórias individu-
o esquecimento. Oferece não apenas aos locais, ais são impressões particulares, recordações,
mas ao mundo a oportunidade de recordar as memórias que são ancoradas em nossos sen-
histórias daqueles que não tiveram voz, daque- tidos e experiências, nos aromas, nos sons, nos
las vozes que por muitas vezes se tentou apagar, sabores, nas imagens, e nos sentimentos que
uma história de sofrimento e de perda, que al- evocam; e as memórias coletivas são impres-
guns insistem não ter ocorrido, como se o geno- sões e registros para um conjunto de pessoas,
cídio do povo negro não perdurasse ainda nos e por esses sentidos individuais fazerem parte
tempos atuais. de suas histórias eles compõem sua identida-
A performance tem um discurso com um ob- de. Essa obra é uma materialização em vídeo
jeto próprio e a percepção que temos dela é vin- de ambas, uma história individual do artista,
culada a este momento histórico que vivemos, de sua família, e uma história coletiva, ambas
distante daquele onde os significados da árvore foram evocadas e ressiginficadas pelo artista,
do esquecimento foram construídos, um tempo que nos apresenta um registo dessa tentativa

66
de rememorar e res-gatar. Ao tornar essa praça HALBWACHS, Maurice. A memória co-
parte material de sua história, através do regis- letiva. 2ª ed. São Paulo: Edições Vér tice,
tro da obra, o artista a elevou a um status de 1990. 189 p.
lugar, ela deixa de ser um espaço desconheci- MELO, Janaina. NAZARETH. In: Revista
do e sem recordações pessoais para ele, para do BDMG. Minas Gerais: BDMG Cultural,
tornar-se um lugar de acolhida, de resistência, v. 2, jun. 2020. Trimestral. Disponível em:
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67
farol

labcult .e ci.ufmg .br/epis temologiacomu-


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ZYLBERK AN, Mariana. Paulo Nazareth, o
andarilho das ar tes. In: Veja.com. 26 mai.
2012. Disponível em: https://veja.abril.
com.br/cultura/paulo -nazareth- o -andari-
lho-das-ar tes/. Acesso em: 20 abr. 2021.

Camila Calolinda da Silva


Bacharel em Artes Visuais pela Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Mestran-
da do Programa de Pós-Graduação em Estudos
de Linguagens – PPGEL/ UFMS.

Alex Fabiano Alonso


Bacharel em Artes Visuais pela Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Mestran-
do do Programa de Pós-Graduação em Estudos
de Linguagens – PPGEL/ UFMS.

Eluiza Bortolotto Ghizzi


Doutora em Comunicação e Semiótica (PU-
CSP). Docente no Programa de Pós-graduação
em Estudos de Linguagens da FAALC/UFMS.

68
IMPULSO HISTORIOGRÁFICO NA PRÁTICA ARTÍSTICA DE
ROSANA PAULINO: O CASO DA EXPOSIÇÃO ATLÂNTICO
VERMELHO NO PADRÃO DOS DESCOBRIMENTOS (2017)1
HISTORICAL IMPULSE IN THE ARTISTIC PRACTICE OF ROSANA
PAULINO: THE CASE OF THE EXHIBITION ATLÂNTICO VERMELHO IN THE
PADRÃO DOS DESCOBRIMENTOS (2017)

Lucas Ferreira de Vasconcellos


EBA-UFMG
Rita Lages Rodrigues
EBA-UFMG

Resumo: O presente artigo visa analisar criticamente a exposição Atlântico Vermelho, da artista Rosa-
na Paulino, realizada entre outubro e dezembro de 2017, no Padrão dos Descobrimentos, monumento
situado em Lisboa, Portugal. Para tanto, toma-se o conceito de Impulso Historiográfico, apresentado
por Giselle Beiguelman (2019), como uma noção de prática artística que questiona e reedita as verda-
des absolutas instituídas nos circuitos institucionais e a monumentalização da história. Tal conceito
deve ser trabalhado em processos de (re)interpretação dos bens pertencentes à categoria do patri-
mônio cultural, em especial os monumentos históricos, sobre os quais atua a artista Rosana Paulino.
Como suporte crítico, a crítica feminista decolonial é acionada.

Palavras-chave: História, patrimônio cultural, arte contemporânea, feminismo decolonial.

Abstract: This paper critically analyzes the exhibition Atlântico Vermelho, by the artist Rosana Pauli-
no, held between october and december 2017, at Padrão dos Descobrimentos, a monument located in
Lisbon, Portugal. Therefore, the concept of Historiographical Impulse, presented by Giselle Beiguelman
(2019), is taken as a notion of artistic practice that questions and reissues as absolute truths in institu-
tional circuits and in the monumentalization of history. This concept must be worked on processes of
cultural heritage properties (re) interpretation, especially historical monuments, on which artist Rosana
Paulino works. Decolonial feminist criticism is used as a critical basis.

keywords: History, cultural heritage, contemporary art, decolonial feminism.

1 O presente trabalho conta com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

69
farol

Introdução serva-se no trabalho de Rosana Paulino, objeto


O mundo das artes, dos museus e do patrimô- principal de análise deste artigo, uma tendência
nio cultural apresenta-se interdisciplinarmente artística que também lida diretamente com o
enquanto um campo de fundamental impor- conceito de história a contrapelo, termo ampla-
tância para a análise dos processos de atribui- mente difundido a partir das contribuições do
ção de valores e ressignificação dos sentidos filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940).
do tempo histórico que operam nos diferentes Segundo apresenta Vitor Bemvindo, inspirado
contextos espaço-temporais de patrimonializa- por autores marxistas de sua época, como Ber-
ção e musealização. É na interseção do escopo tolt Brecht, em sua célebre produção de textos
de atuação dos campos disciplinares das Artes, em “Teses Sobre o Conceito de História”, publica-
da Museologia e da História que algumas destas dos na década de 1940, Benjamin advoga por
práticas se descortinam enquanto exercícios uma concepção da História fundamentalmente
oportunos para interpretar e avaliar os modos dialética, contra-hegemônica e que “valorize as
de extroversão do patrimônio cultural, em espe- lutas das classes historicamente postas em po-
cial o caso dos monumentos históricos. sição subalterna” (BEMVINDO, 2020, p.30).
Tomando os processos de construção das Essa ideia de dialética da história se apre-
narrativas históricas como um dos elementos senta, por exemplo, na exposição “Da Memória
centrais para o desenvolvimento de sua prática e das Sombras: As Amas”, cuja autoria também
artística, a artista visual Rosana Paulino tensio- é de Rosana Paulino. A mostra foi realizada em
na as diferentes faces do tempo histórico que as 2009, no subsolo do casarão da antiga Fazenda
imagens do passado comportam (FABRIS, 1999, do Mato Dentro, situada nas imediações do atu-
p.71), sejam elas oriundas de coleções pessoais, al Parque Ecológico Monsenhor Emílio José Sa-
arquivos institucionais ou de vestígios materiais lim, na Vila Brandina, em Campinas, no interior
encontrados nos processos de legitimação dos de São Paulo. No local, que serviu de senzala no
discursos hegemônicos1 das matrizes coloniais período colonial, a artista propõe uma instala-
de poder.2 ção sobre as frestas presentes nas paredes do
Ao valer-se de elementos estratégicos que espaço. Paulino intervém com mãos modeladas
evocam sentidos de uma contramemória, ob- em gesso que portam fitas brancas de cetim
que se interligam a imagens de mulheres ne-
1 O conceito de hegemonia tem sua aparição no campo dos
gras, reproduzidas dentro de pequenas esferas
estudos voltados para a análise das relações de poder ainda
na virada do século XIX para o século XX. Antonio Gramsci transparentes.
(1891-1937), um dos principais expoentes desse campo, O discurso empregado na narrativa visual de
fomenta substancialmente o debate ao formular este
“As Amas” se distingue, por exemplo, das recor-
conceito que trata da dominação ideológica de um deter-
minado grupo social sobre os demais, onde o seu interesse rentes experiências de extroversão patrimonial
particular é colocado como interesse de todos, ou quando a que, realizadas em locais que refletem vestígios
historiografia se concentra apenas em grupos ou indivíduos de memória da herança colonial do país, ma-
de elite. Sobre isso, ver SOUZA, Herbert G. de. Contra-hege-
monia: um conceito de Gramsci? Herbert Glauco de Souza.
joritariamente se utilizam de discursos crista-
Belo Horizonte, 2014. Dissertação - (Mestrado) - Universida- lizados para narrar as atrocidades da violência
de Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação. física e moral cometida à população negra es-
2 Sobre as “matrizes coloniais de poder”, ver MIGNOLO, W. D.
cravizada no Brasil. É nessa tentativa de elabo-
Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, jun. 2017. rar uma dialética histórica da arte que Paulino

70
também se utiliza de algumas estratégias de (HOLLANDA, 2020, p. 19) Há, também, uma es-
seleção e apresentação de imagens do passado treita relação do trabalho de Paulino com o
para presentificar as memórias afro-brasileiras questionamento feito por Lélia González à de-
que se “perderam” nos contextos de formação mocracia racial que “se alimenta do mito da
das grandes narrativas hegemônicas da histo- cordialidade erótica das relações sociossexuais
riografia nacional. entre o colonizador português e a negra escra-
Sua prática artística operacionaliza, desse vizada.” (HOLLANDA, 2020, p. 21) Recordamos
modo, imagens que contrastam entre si, seja aqui, a pensadora Lélia Gonzalez, precursora do
pelo viés estético, seja no emprego de distintas feminismo decolonial que buscava analisar em
temporalidades históricas. Para a historiadora, seus trabalhos o feminismo afro-latino-ameri-
antropóloga e curadora Lilia Schwarcz (CARNEI- cano, elaborando questões que relacionavam
RO; MESQUISTA, 2019, p.5), o feminismo e o racismo e a questão racial na
(...) as imagens não são produtoras de sen- América Latina. A memória retrabalhada por
tidos por si só, se não criamos uma nova es- Paulino é também feminista-afro-latina-ameri-
sencialização delas. As imagens produzem cana.
sentido em contexto, mas também em rela-
ção — essa é a trama do Aby Warburg3 no seu
Atlas (Mnemosyne). Ou seja, construir uma es- A História e o Impulso Historiográfico em Ro-
pécie de setting (“contexto” - tradução e grifo sana Paulino
nosso) mental em que essas imagens possam Rosana Paulino nasceu e vive em São Paulo
produzir outra realidade que não exatamente desde 1967, cidade onde deu início à carreira
aquela que deve demais ao contexto.
profissional e também realizou grande parte da
sua formação acadêmica no sistema das artes
É por meio desta estratégia de superposição visuais. Em 1995, graduou-se em Artes Plásticas
das imagens que Paulino coloca em curso pela Escola de Comunicação e Artes da Univer-
algumas práticas de subversão dos sentidos sidade de São Paulo e, em 1998, especializou-se
empregados nos processos de extroversão em Gravura pelo London Print Studio de Lon-
patrimonial. Com isso, identifica-se que a dres. Em 2011, defendeu o doutorado em Poéti-
sua produção artística recorre à seleção cas Visuais, também pela ECA/USP, contexto em
e reordenação das fontes de informação que apresentou a tese “Imagens de Sombras”,
levantadas em espaços de memória, como trabalho que, segundo Paulino (2011, p.4), teve
os arquivos e museus. Uma proposta que como objetivo
se aproxima da perspectiva do feminismo Construir, através de trabalhos realizados na
decolonial, pois a artista “vem investigando área de poéticas visuais, uma reflexão que
desde os anos 1990, questões de gênero, procure compreender como a mulher negra é
vista na sociedade brasileira atual e o modo
sobretudo a identidade e a representação
pelo qual as sombras lançadas pela escravidão
negra, quando essas questões ainda eram sobre esta população refletem nas negrodes-
pouco discutidas no cenário artístico brasileiro.” cendentes ainda hoje, criando e perpetuando
locais simbólicos e sociais para este grupo.
3 Sobre o conceito de Atlas Mnemosyne ver “SAMAIN,
Etienne. As “Mnemosyne(s)” de Aby Warburg: Entre antropo-
Assim como de tantas outras mulheres, sua
logia, imagens e arte. Revista Poiésis, n. 17, p. 29-51. Rio de
Janeiro. Jul. de 2011”. trajetória exige-nos uma reflexão crítica e po-

71
farol

lítica, sobretudo ao valermo-nos das palavras (...) o conceito tem como objetivo estabelecer
de Hanish (1969) na medida em que o pessoal é relações entre acontecimentos e sentimen-
político 4. Originária da periferia da Freguesia do tos, memória e presente a partir de um “lugar
mental particular” (grifo da autora). A story
Ó, situada na região noroeste da capital paulis-
art, permite o confronto entre uma história
tana, Paulino nunca escondeu que se utiliza dos particular e a História, pressupõe uma expe-
sentimentos interpelados por sua condição de riência temporal ampliada, para a qual con-
mulher negra que transita entre os diferentes fluem tanto vivências pessoais quanto vivên-
mundos bifurcados das desigualdades sociais cias familiares (FABRIS, 1999, p.73).
que assolam a realidade brasileira. Sua prática
artística se corrobora tanto através dos atraves- Práticas artísticas como as de Paulino, re-
samentos políticos que se observa em sua pró- velam-se como um importante vetor histo-
pria trajetória de sua vida como na narrativa de riográfico ou, mais detidamente, um impulso
outras experiências de mulheres negras, grupo historiográfico que ocorre no campo da arte
identificado por Paulino (2017) “como a base contemporânea. O conceito é apresentado
da pirâmide social no Brasil”. Conceitualmente, pela artista, curadora e pesquisadora Giselle
lida com o confrontamento de elementos auto- Beiguelman (2019) em seu ensaio artístico que
biográficos, conferindo-lhe o caráter de uma es- também dá nome ao termo, intitulado “Impulso
crevivência5 poética de si. Além disso, operacio- historiográfico”. Beiguelman (2019) que também
naliza imagens do passado que transitam entre possui formação em História, parafraseia o arti-
diferentes sentidos do tempo histórico diante go “An archival impulse” (“Um impulso arquivís-
dos contextos de legitimação das narrativas de tico” - tradução nossa), publicado em 2004 na
poder dos processos de formação da identida- revista October,6 em que o historiador e crítico
de nacional. de arte norte-americano Hal Foster apresenta
É, portanto, no tensionamento do limiar entre o conceito de impulso arquivístico. Segundo a
arte e vida que a sua prática artística contribui autora,
para o papel emancipador da arte, em especial na Foster defende em seu artigo a emergência
qualidade de exercício crítico para a reescrita das de uma arte arquivística, que contempla uma
histórias hegemônicas presentes, por exemplo, nos gama de artistas cuja produção se volta para in-
formações históricas, muitas delas perdidas ou
circuitos institucionais dos museus e do patrimônio
deslocadas, a fim de fazer com que estivessem
cultural. O perfil de sua produção enquadra-se, des- fisicamente presentes. Esses artistas, segundo
sa maneira, em uma tendência artística que, histo- o autor, “não apenas recorrem a arquivos infor-
ricamente, toma corpo no início dos anos de 1970, mais, mas os produzem” e, ao fazer isso, criam
denominada por Fabris (1999) como story art. Para mundos próprios. (BEIGUELMAN, 2019)
a autora, baseada em Boelti (1979),
Dessa forma, Beiguelman se apropria desse
4 Ver HANISCH, C (1969). The personal is political. In: conceito para discutir o caráter historiográfico
Introduction Carol Hanisch 2006. Disponível em http://www.
carolhanisch.org/ . Acesso em 14 mai. 2021.
que algumas práticas artísticas se valem na me-
5 Sobre o conceito de escrevivência ler “DUARTE, Constân- dida em que recorrem a determinados métodos
cia Lima; NUNES, Isabella Rosado (Org.). Escrevivência: a
escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo.
Ilustrações Goya Lopes. 1ª ed. Rio de Janeiro: Mina Comuni- 6 Ver Foster, H (2004). An Archival Impulse in OCTOBER 110,
cação e Arte, 2020”. Fall 2004, p.3-22. MIT Press.

72
científicos do campo da História, como a pes-
quisa a partir de diferentes fontes documentais O conceito de impulso historiográfico é aqui
para que ocorram processos de reelaboração acionado para a compreensão e análise crítica
das verdades absolutas instituídas nos circuitos da narrativa visual apresentada na exposição
institucionais e na “monumentalização da His- Atlântico Vermelho, de Rosana Paulino, ocorrida
tória” (BEIGUELMAN, 2019). entre outubro e dezembro de 2017, no Padrão
Para conceituar a noção de Impulso Histo- dos Descobrimentos, em Lisboa, Portugal.
riográfico Beiguelman (2019) menciona alguns
casos como o trabalho “Ensacamento”, desen- Redescobrir o Padrão dos Descobrimentos
volvido entre 1979 e 1982 pelo grupo 3Nós3 que Localizado às margens do Rio Tejo, na fregue-
era composto por Hudinilson Jr (1957-2013), sia de Belém, em Lisboa, o Padrão dos Desco-
Mario Ramiro (1957) e Rafael França (1957-1991), brimentos foi construído entre 1940 e 1960. O
onde monumentos públicos da cidade de São monumento, de concreto e pedra, de 56 metros
Paulo foram encapuzados ilegalmente com de altura, foi concebido pelo arquiteto José Ân-
sacos plásticos e, as galerias e demais espaços gelo Cottinelli Telmo, em parceria com o escul-
da arte “lacrados” com fita crepe. A autora tam- tor Leopoldo Neves de Almeida, para celebrar
bém menciona trabalhos de interpretação de os componentes “descobridores” das terras do
acervos que ocorreram nos anos 2000, como os “Novo Mundo”. Das trinta e três representações,
de Mabe Bethônico, artista pesquisadora que apenas uma é identificada como uma persona-
produz em diálogo com arquivos e outras ins- gem mulher, tratando-se de Filipa de Lencastre,
tituições de memória cujo interesse está volta- mãe do homenageado principal, o infante Dom
do para processos de ficcionalização de fontes Henrique. Sua imagem é representada como a
referenciais. A partir disso, a autora caracteriza penúltima escultura do lado oeste do monu-
tal perfil de profissionais como artistas-historia- mento, permanecendo atrás de toda uma repre-
dores. Para ela, sentação da pirâmide hierárquica do patriarca-
Os artistas historiadores procuram fazer com do português.
que memórias e documentos, muitas vezes Em Atlântico Vermelho, Paulino nos apresen-
perdidos ou apagados, tornem-se visíveis e ta obras feitas em tecido suturados, desenhos,
legíveis. Para esse fim, eles elaboram suas
gravuras, vídeo e instalação de objetos que, a
imagens, mapas, diagramas e textos. Frequen-
temente, usam legendas fartas ou textos de partir do material recolhido sobre a exposição,
apresentação como parte integrante de seus como conteúdos em audiovisual, textos, folder
trabalhos (o que é raro na arte contemporâ- e imagens de vista, observa-se que o conjunto
nea). (...) As fontes a que recorrem os artistas selecionado se utiliza da ideia de sobreposição
historiadores são conhecidas a partir de ar-
e junção de imagens extraídas de diferentes
quivos diversos: arquivos oficiais, bancos de
dados informais disponíveis na internet, sebos
contextos como a reprodução de fotos de pes-
e mercados de pulgas, entrevistas e viagens soas negras identificadas pela artista em car-
documentais. Essas fontes garantem uma legi- tões postais como o do anúncio do fotógrafo
bilidade que pode perturbar, provocar desvios, português Christiano Júnior, em 1866, no Alma-
mas podem, também, recuperar um conheci- naque Laemmert (Paulino, 2017). A maior parte
mento alternativo ou fomentar uma contrame-
das obras apresenta, também, a transposição
mória. (BEIGUELMAN, 2019, p.6).
de elementos decorativos extraídos dos deta-

73
farol

produzidas no Brasil e que retratavam a flora,


lhes dos azulejos portugueses, de exsicatas, a fauna e principalmente as gentes num mes-
gravuras de crânios e representações de povos mo plano, como objetos a serem explorados,
indígenas. A exposição foi dividida em quatro elementos pitorescos em uma paisagem exó-
partes, sendo elas: “¿História Natural?” que tica, ao invés de serem dotados de humanida-
de. Esta postura reforçou a ideia de um direito
trata-se de um livro de artista que contém doze
natural sobre outras terras e povos, justifi-
pranchas de gravuras, desenhos e impressões cando o colonialismo, não só o exercido nas
sobre tecidos espalhadas em vitrines ao longo Américas mas, posteriormente, na expansão
do percurso expositivo; a segunda parte trata- europeia em África.
se das obras sobre tecido que apresentam
diferentes reproduções de imagens que se
sobrepõem a partir de transparências, também Em seu conjunto, Atlântico Vermelho mais
unidas por suturas são exibidas nas paredes das se assemelha a uma instalação que, mantendo
salas de exposição; a terceira parte é composta o seu teor efêmero, se contrasta junto à per-
por uma série de dez gravuras em papel, manência estrutural do Padrão dos Descobri-
intitulada “Paraíso Tropical”, em que fotografias mentos. Trata-se de uma experiência estético-
de pessoas escravizadas são sobrepostos a sensorial e espaço-temporal que lida com os
imagens de exsicatas e crânios; a quarta e sentidos dos discursos históricos empregados
última parte da exposição é composta pela obra no local, seja pelos objetos e imagens que a
“Gabinetes de Curiosidades”, em que a artista obra de Paulino evoca em algumas composi-
expõe dentro de duas vitrines diferentes objetos ções, seja pela presença física do monumento
de coleção junto às imagens de pessoas negras em si, fatores que revelam na obra o seu caráter
escravizadas. de musealização do monumento. Rosana nos
É neste contexto que o conjunto investigativo mostra, dessa forma, que as ações de patrimo-
das obras de Paulino se depara com a nialização por si só não conferem a extroversão
monumentalidade, em princípio inquebrável, do bem preservado junto ao acesso do público.
das verdades ditas absolutas presentes na di- É preciso acionar os processos de musealização
cotomia entre colonizador e colonizado. As su- para que ocorra tanto a extroversão no campo
turas produzidas pela artista-historiadora evo- informacional, como também, a interpretação
cam um reencontro entre passado e presente subjetiva do público.
a partir da reprodução de imagens disruptivas Diante disso, constata-se que tal trabalho se
da memória. Sobre o conjunto da obra Paulino apresenta enquanto uma abordagem poética
(2017) apresenta no folder da exposição: feminista negra na medida em que a artista-his-
Inspirada no nome do livro do sociólogo Paul toriadora recorre a diferentes técnicas como im-
Gilroy, “Atlântico Negro”, penso neste mar que pressão em tecido, pintura, colagem, desenho,
liga dois pontos, África e Brasil, e que sofreram fotografia e tecelagem para combater os dis-
processos de aniquilamento e subjugação de
cursos hegemônicos de poder que se apresen-
suas populações, tendo as ideias de ciência,
religião e de progresso sido usadas para jus- tam em torno do Padrão dos Descobrimentos,
tificar os mais aterrorizadores abusos. Para caso em que Paulino apresenta junto ao público
realizar os trabalhos desta exposição me de- uma instalação artística em forma de exposição
brucei, com um misto de admiração, curiosi- conferindo-lhe uma leitura decolonial da arte
dade, e muitas vezes, revolta, sobre imagens
contemporânea em contextos de interpretação

74
patrimonial. Ao criticar o racismo científico do de objetos recolhidos pela artista durante sua
século XIX, “procura inverter a função da estru- passagem por Lisboa. A noção de Gabinetes de
tura classificatória colonial e dirige sua indaga- Curiosidades tem origem no contexto da cultura
ção à memória individual e coletiva como alter- ocidental, entre os séculos XIV e XVI, em práticas
nativa à racionalidade paradigmática colonial.” de colecionismo no continente europeu que,
(HOLLANDA, 2020, p. 19-20) posteriormente, ganharam força a partir da vi-
Outras obras de Paulino apontam de forma são humanista e científica do Renascimento e
explícita a sua relação com o feminismo deco- dos processos de expansão marítima no cenário
lonial e com a escrita de uma história a contra- do “novo mundo”. Segundo Julião (2006, p.20),
pelo. É o caso da linha negra na obra Bastidores Além das coleções principescas, símbolos
que atinge “pontos estratégicos como a boca e de poderio econômico e político, também
a garganta, que transmitem a impossibilidade proliferaram nesse período os Gabinetes de
Curiosidade e as coleções científicas, muitas
de gritar, e os olhos, denotando a incapacidade
chamadas de museus. Formadas por estu-
de se ver no mundo.” (HOLLANDA, 2020, p. 20) A diosos que buscavam simular a natureza em
artista trabalha com tecido, impressão, linha e gabinetes, reuniam grande quantidade de
agulha, deixa a marca da ação em seu trabalho, espécies variadas, objetos e seres exóticos
a boca, os olhos e sua incapacidade de cumpri- vindos de terras distantes, em arranjos quase
sempre caóticos. Com o tempo, tais coleções
mento de suas funções básicas, a fala e a visão,
se especializaram. Passaram a ser organiza-
explicita o poder e a crueldade da marca colo- das a partir de critérios que obedeciam a uma
nial. As imagens impressas são de mulheres de ordem atribuída à natureza, acompanhando
sua família, o silêncio imposto às mulheres ne- os progressos das concepções científicas nos
gras do Brasil. Já em sua obra Parede da Memó- séculos XVII e XVIII. Abandonavam, assim, a
ria, a linha contorna os objetos, emoldurando função exclusiva de saciar a mera curiosida-
de, voltando-se para a pesquisa e a ciência
-os e dando um valor afetivo, como as simples
pragmática e utilitária.
bainhas feitas em panos de prato, em toalhas de
mesa. Mais uma vez o fazer feminino, do âmbito
doméstico, aparece. Ao trabalhar com referên- A obra Gabinete de Curiosidades traça uma
cias pessoais, familiares, Paulino fala sobre o relação direta com o histórico das práticas de
mundo, sobre estruturas de opressão e de afeto. colecionismo e as concepções científicas euro-
A dimensão pessoal da poética feminis- peias relacionadas às “descobertas” das nave-
ta negra que Paulino evoca, entendo-a aqui gações transatlânticas. Nesse trabalho, a artista
como uma ação anti-monumento, se projeta apresenta vitrines que contém garrafas, tem-
enquanto uma voz coletiva na medida em que peros, pedras brasileiras, cerâmica, conchas,
a dimensão espaço-temporal de sua obra se souvenires, corais, dentre outros objetos que
adere às frestas e ausências historiográficas do se contrastam em relação à presença das foto-
discurso totalizante empregado no Padrão dos grafias reproduzidas em tecidos de Adão e Eva,
Descobrimentos. A própria feitura de algumas uma das derivações de Assentamento (2013). A
das obras de Paulino se apropria da junção de instalação é fruto da investigação da artista que
distintas imagens do passado com elementos se iniciou entre 2012 e 2013 a partir de sua par-
do presente, como o caso da obra Gabinete de ticipação no projeto “Afro: identidade negra nos
Curiosidades (2017) que apresenta uma seleção Estados Unidos e no Brasil”, uma parceria insti-

75
farol

tucional entre o Museu Afro Brasil e o Tamarind ção nossa), em Baltimore, nos Estados Unidos.
Institute (EUA). Em sua residência artística nos Adepto da ação curatorial como um fazer artísti-
ateliês de litogravura do Tamarind, co, Wilson também recorre à ideia de subversão
(...) a partir de fotografias pretensamente cien- dos sentidos das fontes históricas que, tradicio-
tíficas de uma mulher negra, feitas por Auguste nalmente, eram apresentadas sob o viés hege-
Stahl para a pesquisa em torno da teoria cria- mônico da história da arte. Nessa exposição, o
cionista elaborada por Louis Agassiz no século
artista reorganiza a disposição dos objetos das
XIX, Paulino desenvolveu a série de gravuras
Assentamento, de números 1 a 4, um dos pri- coleções do museu de modo que seus sentidos
mórdios do que posteriormente seria denomi- fossem reconsiderados pelo visitante (MIGNO-
nado de Projeto Assentamento. Os resultados LO, 2018, p.313).
da residência artística foram exibidos na Tama- Wilson propõe um reencenamento dos ob-
rind Institute Gallery, em 2012 e no ano seguin-
jetos, como na sala intitulada Cabinetmaking
te no Museu Afro Brasil. (PALMA, 2018, p. 192.)
(Marcenaria - tradução nossa), em que um con-
junto de cadeiras que pertenceram às famílias
Dessa forma, ao se valer dessas imagens, so- abastadas de Baltimore são colocadas junto
bretudo de fotografias de pessoas escravizadas à um tronco de açoite, doado ao museu pelo
cujos nomes e histórias de vida se perderam nas Conselho Prisional da Cidade de Baltimore;
narrativas hegemônicas da História, Paulino justapõe em uma mesma vitrine, intitulada Me-
aproxima passado e presente, “um reencontro talwork (Trabalhos com Metal - tradução nossa),
da população negra com os seus antepassados” elegantes copos e jarras repoussé de prata, pro-
(BEVILACQUA, 2018, p. 155). duzidos no século XIX, junto a grilhões de ferro
Outro elemento que também aparece em Ga- que foram utilizados em pessoas escravizadas;
binetes de Curiosidades são as mãos de gesso na sala intitulada Modes of Transport (Modos de
utilizadas em 2009 no projeto As Amas, realiza- Transporte - tradução nossa), um carrinho de
do no casarão da antiga Fazenda do Mato Den- bebê carrega em seu interior uma máscara em
tro (SP). Inseridas na composição de Atlântico tecido do Ku Klux Klan; bustos de importantes
Vermelho, estes objetos revelam o caráter hí- personagens masculinos da história norte-ame-
brido que a sua produção assume nos diferen- ricana são colocados em pedestais abaixo do
tes contextos espaciais em que é apresentada. nível dos olhos
Lopes (2018, p. 171) nos chama a atenção para A partir desse trabalho, Wilson também pode
o fato de que Paulino se alinha a uma rede de ser apresentado como um artista-historiador na
artistas cujos trabalhos também mobilizam a medida em que, ao se posicionar frente aos si-
memória ora em relação direta com a experiên- lenciamentos institucionais, sobretudo no cam-
cia da escravidão, ora como consequência des- po de atuação dos processos de musealização,
sa experiência, situação que também podemos operacionaliza distintas temporalidades históri-
observar em Mining the Museum (Minando o Mu- cas para colocar em evidência novos processos
seu - tradução nossa), de Fred Wilsom. de ressignificação de sentidos da memória cole-
Mining the Museum trata-se de uma exposi- tiva. Para Muñiz-Reed (2019, p.8) “essa forma de
ção-instalação que ocorreu entre abril de 1992 intervir em uma instituição de arte ofereceu um
e fevereiro de 1993, na Maryland Historical So- novo ponto de vista sobre a colonização, forçan-
ciety (Sociedade Histórica de Maryland - tradu- do os espectadores a confrontarem perspecti-

76
vas abafadas de seus passados coloniais”. Maria Lugones como sendo, “necessariamente,
Wilson se interroga sobre os sentidos histó- uma práxis, é decretar uma crítica da opressão
ricos empregados nos objetos musealizados. de gênero racializada, colonial e capitalista he-
Questão que, assim como Paulino, nos refuta terossexualizada visando uma transformação
sobre a permanência estrutural dos discursos vivida do social” (LUGONES, p.940) encontra eco
hegemônicos de poder empregados nos circui- nas formas artísticas de Paulino, em especial na
tos institucionais dos museus e do patrimônio crítica à opressão de gênero racializada e co-
cultural. As práticas artísticas promovidas por lonial. Neste sentido, o impulso historiográfico
Fred Wilson e Rosana Paulino propõem, portan- desta artista-historiadora mostra-se crítico e
to, novas insurgências sobre os modos de ler, in- decolonial.
terpretar e representar o mundo, apresentando Mais especificamente, o seu trabalho nos
como as narrativas historiográficas são produ- convida à uma performatividade visual sobre
zidas e propondo outras propostas de leituras distintos processos de refazimento de imagens
historiográficas. tanto do seu universo pessoal como, também,
de documentos e arquivos históricos que con-
Considerações finais correm para uma interpretação poética negra
Propomos aqui uma breve reflexão em torno feminista em estado bruto (SILVA, 2019), concei-
das narrativas estéticas da memória que podem to apresentado por Denise Ferreira da Silva, em
ser observadas na prática artística de Rosana seu ensaio “Em estado bruto”8, de 2019. O con-
Paulino, entendidas também como uma estraté- ceito em estado bruto se aproxima de termos
gia política da arte. Ao se tornar artista-historia- como a expressão inglesa unthinking (des-pen-
dora, ela também faz uma releitura da história sar – tradução da autora), para questionarmos
ou, ao menos, a história de um grupo por meio em que medida “a poética feminista negra po-
de imagens e percepções, retratando, assim, as derá oferecer à tarefa de des-pensar o mundo
ausências que se manifestam nos discursos das a libertação das garras das formas abstratas da
narrativas hegemônicas de poder - questão am- representação moderna e da violenta arquite-
plamente discutida em diferentes campos disci- tura jurídica e econômica que elas sustentam”
plinares do conhecimento contemporaneamen- (SILVA, 2019, p.46).
te, como o debate de gênero, o cientificismo e as No caso da exposição Atlântico Vermelho
heranças coloniais das experiências transatlân- (2017), não só a matéria em estado bruto do pró-
ticas na América Latina. prio Padrão dos Descobrimentos é questionada
O feminismo decolonial,7 oriundo de inte- em sua representação imagética, como tam-
lectuais latino-americanas em sua maioria, bém no processo de reelaboração de sentidos
apresenta contraepistemologias que atacam o a partir de imagens e objetos que concorre para
eurocentrismo e a perspectiva ocidental. A des- uma prática ensaística e poética de musealiza-
colonização do gênero, expressa nas palavras de ção. Paulino, por exemplo, em sua obra Gabine-
te de Curiosidades reúne diferentes objetos para
7 A distinção entre decolonial e descolonial vem da supres- metaforizar o sentido de acúmulo de sentidos,
são da letra s em virtude da proposta de rompimento com
a colonialidade em seus múltiplos aspectos, presente na
palavra decolonial, e a idéia do processo histórico de desco- 8 Originalmente publicado na revista e-flux, nº 93, em
lonização (HOLLANDA, 2020, p. 16-17). setembro de 2018.

77
farol

característica central das práticas de coleciona- CARVALHO, Noel dos Santos; TVARDOVSKAS,
mento ocorridas entre os séculos XV e XIX nos Luana Saturnino; FUREGATTI, Sylvia Helena. A
processos de colonialismo europeu. propósito da passagem de Rosana Paulino pela
Rosana Paulino é, portanto, uma artista, pes- Unicamp - entrevista com a artista. Resgate:
quisadora e educadora que apresenta em sua Rev. Interdiscip. Cult. v. 26, n. 2. p. 149-160. Cam-
prática artística aspectos metodológicos que pinas: Jul/dez. 2018.
se utilizam do impulso historiográfico como DUARTE, Constância Lima; NUNES, Isabella
elemento central para provocar a dialética dos Rosado (Org.). Escrevivência: a escrita de nós:
sentidos históricos, além de dialogar com o con- reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo.
ceito de story art, apresentado por Fabris, na Ilustrações Goya Lopes. 1ª ed. Rio de Janeiro:
medida em que confronta a história individual Mina Comunicação e Arte, 2020.
com a coletiva, concorrendo para uma visão FABRIS, Annateresa. Percorrendo veredas:
crítica sobre as diferentes versões de uma dada hipóteses sobre a arte brasileira atual. Revista
realidade. O seu trabalho consiste numa escrita USP, São Paulo, nº 40. Dez./fev. 1998-99. p. 68-
da história por meio de imagens que, ao valer-se 77.
de uma abordagem metodológica interdiscipli- FOSTER, Hal. An Archival Impulse. Revista
nar tanto dos campos das Artes, da História e da October, Vol. 110. 2004.
Museologia, constrói uma narrativa não hege- GIANOTTI, Marco. A imagem escrita. ARS. v.
mônica e reelabora sentidos para uma história a 01, n. 01. São Paulo: 2003.
contrapelo a partir da poética de suas imagens. GONÇALVES, Simone Neiva Loures; RIBEIRO,
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do). Escola de Comunicações e Artes / Universi- em História na área de concentração História,
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PAULINO, Rosana; BEVILCQUA, Juliana Ri- Trabalho, pela Universidade Federal de Minas
beiro da Silva; LOPES, Fabiana; PALMA, Adriana Gerais, na linha de pesquisa História Social da
Dolci. Rosana Paulino: a costura da memória. Cultura. [E autora do livro Entre Bruxelas e Belo
curadoria Valéria Piccoli, Pedro Nery. Catálogo. Horizonte: itinerários da escultora Jeanne Loui-
São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2018. se Milde. É Professor Adjunto IV do Departamen-
SAMAIN, Etienne. As “Mnemosyne(s)” de Aby to de Artes Plásticas da Escola de Belas Artes da
Warburg: Entre Antropologia, Imagens e Arte. UFMG. Atualmente lidera o Grupo de Pesquisa
Revista Poiésis, n. 17, p. 29-51. Rio de Janeiro. Estopim, Núcleo de estudos interdisciplinares
Julho de 2011. do Patrimônio Cultural, junto com o pesquisa-
SILVA, Denise Ferreira da. Em estado bruto. dor Luiz Henrique Assis Garcia, e participa dos
‘Tradução de Janaína Nagata Otoch’. ARS, ano grupos de pesquisa Centro de Convergência de
17, nº 36. São Paulo, 2019. p. 45 - 56. Novas Mídias e Arte Contemporânea Preserva-
SOUZA, Herbert G. de. Contra-hegemonia: ção e Exibição ARTECON. Tem experiência na
um conceito de Gramsci? Herbert Glauco de área de História, com ênfase em História da Arte,
Souza. Belo Horizonte, 2014. 82 f., enc, Disser- especificamente séculos XIX e XX. Atua princi-
tação - (Mestrado) - Universidade Federal de palmente nos seguintes temas: Belo Horizonte,
Minas Gerais, Faculdade de Educação. História da arquitetura e História da arte, His-
Vídeo promocional “Atlântico Vermelho/Ro- tória das cidades, Patrimônio Cultural, História
sana Paulino” - Exposição no Padrão dos Desco- das mulheres e Gênero.
brimentos - Filme Memória-Futura. Lisboa, 2017.
Acesso em: 11 de fevereiro de 2021. Disponível
em https://vimeo.com/252096733

79
farol

SOBRE POLÍTICAS DO CORPO NEGRO FEMININO E


TERRITORIALIDADES JONGUEIRAS NO ENFRENTAMENTO AO
RACISMO
ON POLITICS OF THE FEMALE BLACK BODY AND JONGO’S
TERRITORIALITIES IN THE FIGHT AGAINST RACISM

Patrícia Gomes Rufino Andrade


DEPS-UFES

Resumo: O presente texto destaca reflexões sobre políticas do corpo negro instituídas por mulheres
jongueiras a partir de aproximações nas práticas culturais do Sapê do Norte. Busca desconstruir a
representação estereotipada de subalternidade da mulher negra, enfatizando como as comunidades
percebiam historicamente os processos de opressão racial e em contraponto criavam estratégias para
fortalecer a liderança feminina. As questões de interseccionalidade de gênero são discutidas sob esse
prisma, constituindo territorialidades e contextos de autoafirmação. Nas rodas de jongos o corpo é
premissa da relação ancestral, da circularidade expressa nos ciclos geracionais interligando o passado
e o presente por meio dos cantos e danças. É neste contexto que traçamos alguns paralelos sobre
territorialidades femininas, ancestralidade, circularidade.

Palavras-chave: Jongos, territorialidades femininas, ancestralidade, circularidade.

Abstract: This text highlights reflections on black body policies instituted by Jongueira women based on
approximations in the cultural practices of Sapê do Norte. It seeks to deconstruct the stereotyped repre-
sentation of black women’s subordination, emphasizing how communities have historically perceived pro-
cesses of racial oppression and, in contrast, created strategies to strengthen female leadership. Issues of
gender intersectionality are discussed from this perspective, constituting territorialities and contexts of
self-assertion. In jongo circles, the body is the premise of the ancestral relationship, of the circularity ex-
pressed in the generational cycles that link the past and the present through songs and dances. It is in this
context that we draw some parallels about territorialities, ancestors, female circularities.

keywords: Jongos, female territorialities, ancestry, circularity.

80
Das muitas formas de se pensar o enfrenta- rialidades. Por territorialidades entendemos as
mento ao racismo de gênero, penso que discutir diversas estratégias de grupos sociais para criar,
como as práticas culturais cooperam para esse manter ou transformar o espaço vivido (HAES-
enfrentamento seja uma delas. Assim, resolvi BART,2007; SACK,1986). Para além das viviências
partilhar neste texto alguns aprendizados des- e curiosidades das ancestralidades jongueiras,
te caminho de estudos e pesquisas junto de identificamos experiências que nos remetem a
comunidades negras, dialogando sobre suas africanidades conservadas nas diáporas africa-
histórias. Um percurso nada fácil. Inicialmente nas no Brasil, perpassadas de geração em gera-
porque dentre as multiplicidades de perspec- ção como processos de vida, resistência.
tivas sobre as quais trabalhamos relações étni- Nos jongos, a construção política do corpo
co-raciais, quando chegamos às comunidades negro feminino advém dessas heranças ances-
percebemos o quanto temos a aprender, no en- trais que conjugam a materialidade do coman-
tanto, é necessário compreender como práticas do, da liderança às heranças ancestrais africa-
culturais se constituem em processos instituin- nas, recriadas nas senzalas, sobre o prisma das
tes e se traduzem em práticas antirracistas. Este diferentes etnias desterritorializadas (HAES-
aprendizado só é possível com proximidade, BART,2007). Esse processo compreende a resis-
junto das comunidades, porque são elas que tência territorial, corporal, sagrada – território
trazem a carga ancestral deste reconhecimento, físico; do corpo; religioso.
são elas que nos dizem como fazer. Os enfrentamentos à opressão pelas comu-
Neste texto buscarei agregar um pouco da nidades negras na contemporaneidade, consti-
relação mística ancestral na concepção do fe- tuem a ruptura do estereótipo objetificável do
minino, e por outro lado, apresentar estratégias corpo da mulher escravizada, que ao longo da
de enfrentamento a partir da forma como se história foi produzido pelo olhar do coloniza-
constituem histórica e socialmente nos grupos dor, idealizada como serviçal, subalternizada,
de jongos1. Penso ser este mais um ponto para para pensar um outro ciclo social constituído
pensarmos sobre os contextos de autoafirma- no seio das comunidades negras: a mulher ge-
ção das mulheres negras quilombolas, no exer- radora, protagonista, autorreferenciada. Tor-
cício das práticas culturais. nar-se negra entendendo este processo, passa
Jongos e caxambus interligam percepções da pela aprendizagem do reconhecimento desta
arte às geografias do corpo, produzindo territo- mulher com seu próprio corpo, com sua comu-
nidade e de religação com sua ancestralidade. O
1 Este texto faz parte de pesquisas realizadas durante o jongo preserva essa relação direta com a condi-
Programa “Jongos e Caxambus: memórias de mestres e patri-
ção ancestral, constituindo-se forma do prórpio
mônio cultural afro-brasileiro no ES” tem caráter interdiscipli-
nar envolvendo as áreas de Artes, Antropologia e Educação, corpo abrir-se, expandir-se, falar de si.
tanto no que se refere às ações de extensão, quanto ao No livro “Memórias da Plantação”, Grada Ki-
ensino e às pesquisas de graduação e de pós-graduação; lomba (2020) se refere aos processos de silen-
promovendo parcerias entre diferentes Departamentos
(DTAM/DCSO/DEPS), Centros (CAR/CCHN/CE) e PPGs como
ciamento por quais passavam os escravizados,
o Mestrado em Artes (PPGA), em Ciências Sociais (PGCS) e com uma máscara de ferro ateada em suas
em Educação Profissional (PPGMPE) da UFES. O Programa bocas e tantas outras formas de silenciamento
é coordenado pela professora Aissa Afonso Guimarães em
do corpo. A visão colonial do controle sobre o
parceria com os professores Osvaldo Martins de Oliveira e
Patrícia Gomes Rufino Andrade. corpo, a voz, o sexo foram aos poucos assimila-

81
farol

dos pelos escravizados, constituindo uma pers- Paralelamente a todo esse processo de for-
pectiva intrínseca aos processos de racialidade mação as mestras apresentam suas histórias,
e enfrentamento, mas também de subjulgação. trazem seus medos e anseios conjugando-os
Sob outro prisma, a compreensão destas or- entre um universo místico, mágico a visão multi-
pressões constituiram-se em estratégias de facetada das práticas afrocentradas, da circula-
oposição e fortalecimento de lideranças femi- ridade das rodas, das memórias dos mais velhos
ninas que, historicamente no enfrentamento e de como essas práticas vão constituindo-se
destas forças, evidenciaram aprendizagens in- em territorialidades femininas religando africa-
tergeracionais, passadas dos mais velhos aos nidades e sagrado. Parte do que descreveremos
mais novos como estratégias de sobrevivência. aqui foi extraído de perspectivas conflitivas em
As comunidades jongueiras sempre tem um rodas de conversa, observando as mestras em
santo padroeiro de consagração: São Benedito, seus ofícios em campo, e parte foram vivencia-
Santo Antônio, São Bartholomeu, Sant’Anna. É das nas apresentações de jongos, nas oficinas
comum as meninas acompanharem suas mães formativas, em entrevistas coletadas durante os
e avós nas devoções. Esse apecto pressupõe encontros.
a relação interseccional, atuando no contexto Remontando a estrutura filosófica de mundo,
da afirmação de gênero, geracional, racial e da pela cosmovisão africana, podemos entender a
construção da liderança. As devoções são o en- circularidade como princípio fundante de vida,
contro com o sagrado. Momento em que as co- ou seja, nossos contextos, convívios e possibi-
munidades se agregam para fazerem suas ora- lidades organizam- se em ciclos. O complexo
ções, lembrarem dos mais velhos, e de como as pensamento da circularidade contribui para
rezas, recriam memórias, fortalecem a fé. Tam- refletirmos sobre a ruptura das relações de dua-
bém são encontros de gerações, porque ressig- lidade- homem/mundo, homem/terra, homem/
nificam os contextos de mães, tias, avós, em que espiritualidade, feio/bonito, homem/mulher, sa-
as mais velhas se fazem presentes repassando grado/profano, bem/mal.
o que aprenderam, mesmo que, diante de tal Um dos percursos desse pensamento com-
feito, as moças das novas gerações, ainda não plexo, busca na circularidade entre a análise (a
compreendam a amplitude deste ato. disjunção) e a síntese (a religação), ultrapassar o
Neste sentido, a maestria das mulheres jonguei- reducionismo e o “holismo” e reconhece a circu-
ras está em instituir esse aprendizado da resistên- laridade entre as partes e o todo (Morin, 2002).
cia, das estratégias para denúncia das opressões Nesse sentido, a circularidade diz respeito,
e dos sentidos para empoderamento do corpo igualmente, ao caráter do pensamento cíclico,
feminino. O próprio ofício de mestras, compreen- mítico, muitas vezes relacionado à sociedades
de as narrativas geracionais de liderança a que me tradicionais em que os tempos passados, pre-
refiro, pois para chegarem a tal feito, é necessário, sentes e futuros se processam paralelamente.
empostar-se do histórico familiar, da guarda dos Assim observamos que os elementos do pas-
tambores sagrados, da responsabilidade de levar sado podem voltar ao presente especialmente
os jongos e caxambus como ofício e devoção, tam- através da memória.
bém sobrepõem o cuidado comunitário. Portanto, Outra relação importante é que o círculo nos
o “oficio” de mestra, vem carregado de história, de alerta em relação a fragmentação. Possibilita
poder, de ancestralidade. refletirmos a fragilidade profunda e grave da

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fragmentação dos saberes, dos organismos, mas brasileira de origem africana, europeia,
dos seres, das disciplinas, do outro, dos gêne- asiática. As africanidades brasileiras abrangem
ros, por outro lado, nos incita a repensar a mul- diferentes aspectos. Não precisam, por isso,
tiplicidade, transversalidades, globalidades. constituir-se numa única área, pois podem estar
Os conflitos existentes no trato das questões presentes em conteúdos e metodologias, nos
raciais na Educação Brasileira, devem-se a leta- diferentes campos de conhecimento constituti-
lidade na formação, e logicamente ao racismo vos do currículo escolar.
estrutural, que influencia diretamente as insti- Ainda sobre esse prisma, é necessário men-
tuições. É preciso levar em consideração que cionar que faz parte da educação brasileira a
o racismo é fruto de um projeto de nação, por- reconstrução histórica dessas africanidades.
tanto, necessário considerar que nossa forma- Muito embora a Lei nº. 10.639/03 altere a Lei de
ção é e continua sendo altamente racista. Essa Diretrizes e Base da Educação Nacional, estabe-
compreensão deve-se não só pelas performan- leça a obrigatoriedade do ensino de História e
ces adotadas pela escola, no processo de edu- Cultura Afro-Brasileira e Africana na educação
cação formal – evidenciamos principalmente básica pública e privada em todo o país há um
na ênfase sobre as datas comemorativas - mas processo incipiente de rejeição à proposta, mui-
sobretudo, na falta de compreensão processual tas vezes pelo desconhecimento do que essa
sobre a racionalidade estética das africanidades lei signifique. Essa rejeição atinge justamente a
brasileiras. Nessa perspectiva, a proposição é racionalidade estética de que falamos anterior-
trabalhar o antirracismo, compreendendo que mente. O aguçar histórico sobre o reconheci-
educar para relações étnico-raciais refere-se a mento dos povos africanos e suas cosmovisões,
africanidades também na escola. deveriam desde sempre fazer parte dos proces-
Conforme a professora Petronilha Beatriz sos educativos escolares, não fosse, a visão co-
Gonçalves e Silva (2007), o conceito de africa- lonizadora de hierarquia racial enfatizada pelas
nidades brasileiras, no que diz respeito ao pro- relações de poder. A lei tornou-se um instru-
cesso ensino-aprendizagem, conduz a uma mento crucial para as discussões no campo da
pedagogia antirracista, cujos princípios são: educação em comunidades quilombolas, sobre
respeito, entendido não como mera tolerância, a concepção do que seriam essas práticas cul-
mas como diálogo em que seres humanos dife- turais e de reconhecimento fundamental para
rentes se miram uns nos outros, sem sentimen- compreensão dos ajuntamentos comunitários.
tos de superioridade ou de inferioridade; levam De fato, a lei constituiu-se como fomento para
também à reconstrução do discurso pedagó- a formação de professores na temática, princi-
gico, no sentido de que a escola venha a parti- palmente para o enfrentamento ao racismo nas
cipar do processo de resistência dos grupos e instituições. Dessa maneira, juntamo-nos aos
classes postos à margem, bem como contribuir muitos jongueiros, educadores, pesquisadores,
para a afirmação da sua identidade e cidadania. militantes que, de alguma forma, contribuem/
Refere-se também ao estudo da recriação das contribuíram para a redução do racismo em
diferentes raízes da cultura brasileira que, nos nosso país, o projeto jongos também teve essa
encontros e desencontros de umas com as ou- perspectiva.
tras, se fizeram e hoje não são mais Gegê, nagô, Neste texto, as narrativas das mestras são fru-
bantu, portuguesa, japonesa, italiana, alemã, tos de um percurso de alguns anos em campo

83
farol

– (2005 -2018) pesquisa de mestrado, doutora- práticas culturais que integram canto, dança,
do e especificamente acompanhando o Projeto percussão de tambores, podem ainda adensar
de Extensão Jongos e Caxambus no Espírito outros instrumentos como reco-reco e no Espí-
Santo2. A Geografia dos corpos, dos ritmos e de rito Santo, a casaca. Sua procedência vem das
gênero, é trabalhada aqui na perspectiva da antigas senzalas nas fazendas produtoras de
construção dos espaços sociais e das trans- cana-de-açúcar, depois de café da Região Su-
formações culturais existentes nos territórios, deste, no século XVIII. Para Perez (2005), nessa
identificando relações entre aqueles que o mo- época, o jongo e o caxambu eram expressões
dificam e suas expectativas relativas ao reco- poéticas e, ao mesmo tempo, uma forma de co-
nhecimento político, já que, em se tratando de municação baseada em “pontos” enigmáticos
comunidades quilombolas rurais, permanecem criados por negros bantu-angoleses que, assim,
as questões da terra e seus desdobramentos re- alimentavam uma complexa rede de resistência,
lativos ao autorreconhecimento e aos direitos bem como um espaço para exercitarem a sua
conquistados. sociabilidade em meio à situação de cativeiro.
Segundo o historiador, Robert Slenes (2007),
Processos insurgentes das práticas jongueiras “jongo” significa “a palavra que se atira como
Chamado de jongo em alguns lugares e ca- uma seta”, arma poderosa que desafia os adver-
xambu3 em outros, a distinção entre ambos é sários, que codifica mensagens, como usavam
apresentada por mim na tese “Sobre olhares os escravizados, tornando essa uma linguagem
entre jongos e caxambus – projetos educativos particular incompreensível para os senhores.
nas prpáticas culturais afro-brasileiras 4”” são Nesse sentido, Slenes aposta em algumas escri-
tas conforme linguas africanas, encontradas em
2 Todas as entrevistas, narrativas e informações fazem
muitas etnias,
parte do Banco de Dados do Programa de Extensão Jongos
e Caxambus – Culturas afro-brasileiras no Espírito Santo Eu acho que, eu apostaria que vem de Kikon-
(PROEXT 2012/2013 - Cf. SigProj), coordenado pelo professor go, ‘nzongo’, quimbundo. Acho que é ‘songo’
Osvaldo Martins de Oliveira (PPGCS/DCSO/UFES), do qual e umbundu, também ‘songo’ que é flexa ou
sou membro da equipe, e coletadas durante os anos de bala. E, em kipongo, tem uma expressão
2012/2013 ‘nzongo myannua’ que quer dizer a ‘bala da
3 Da revista “Fontes da Vida” (julho de 1962): Caxambu boca’ é, ou seja, a palavra dirigida, com uma,
deveria grafar-se cachambu, porque vem de duas palavras quer dizer, agressivamente. Em umbundo
africanas: cacha (tambor) e mumbu (música). O vocabulário
também tem uma expressão semelhante ou
servia, ao tempo dos escravos, para designar não só o ins-
um provérbio que diz que a palavra é como
trumento que eles tocavam nas danças, mas ainda a própria
dança ou batuque. Dizem uns que, outrora, os negros vindos
uma bala (SLENES, 2007).
de Baependy e circunvizinhanças costumavam reunir-se
nas referidas Águas e aí celebravam batuques memoráveis,
ao som dos seus caxambus e, assim, do hábito do convite A definição de Slenes serve também ao Ca-
“Vamos ao caxambu”, ficou o termo aplicado ao próprio xambu. No registro de práticas culturais do
sítio da festa. Estado do Espírito Santo, publicado pelo Insti-
4 Tese de doutorado defendida em 2013 no Programa de
Pós-Graduação Em Educação da Universidade Federal do
tuto Nacional de Folclore, em 1982, o caxambu
Espírito Santo – neste trabalho proponho uma identificação é descrito como dança em roda acompanhada
de formas e ritmos diferenciados entre os jongos e caxam- de tambores, puíta e angoma – instrumentaliza-
bus do Espírito Santo. Esta questão é afirmada a partir das
ção. Os cânticos, também chamados “pontos”,
Oficinas de mobilização comunitárias do Projeto Jongos e
Caxambus no Espírito Santo”. cantados em verso, podem ser improvisados e

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cheios de simbolismo e enigmas. São classifi- clos da vida. Esses ciclos são geracionais, vão
cados de acordo com o momento em que são para além do mundo animado, pois se consti-
cantados: “licença (no início da roda), de louva- tuem, salvo melhor tradução, como dogmas de
ção, visaria, demanda, encantee despedida”. Au- fé, para além disso, como princípio fundante da
tores salientam que: vida, transcendentes. Sendo assim a questão
[...] no estado do Espírito Santo recebem ain- intrínseca neste conceito, e em outros valores
da os nomes de ‘Batuque’, ‘Jongo’, Tambor ou afro referenciados, remetem aos sagrados guar-
Catambá, refletindo a origem angolana. Para dados por gerações e ao conhecimento dos
eles, o Jongo expressa sua antiga função má-
detentores, portanto, remetem à um modo de
gica, fetichista, num estilo nativo, onde mes-
clam-se elementos afro religiosos, atualmente ser e viver conservados nas práticas tradicionais
amenizados por não existirem muitos jonguei- afro religiosas.
ros que conheciam os fundamentos e segre- Eduardo Oliveira, 5 profundo estudioso da fi-
dos da reunião (FUNARTE, 1982, p. 58-59). losofia e cosmovisão africana, traz importantes
reflexões sobre a questão da ancestralidade.
A função mágica dos jongos, presentes em Cita que uma das diferenças presentes no con-
sua estética, são reverências aos ancestrais, ceito comumente utilizado, está na forma como
aqueles que cantavam os jongos, que faziam se pensa a ancestralidade ocidental, referencia-
e batiam os tambores em tempos de festas ou da nos ancestrais familiares diretos, na descen-
outros acontecimentos, mas também à toda dência e uma outra perspectiva quando se trata
negritude, interligando “Àfrica” aos seus des- da ancestralidade pela cosmovisão africana.
cendentes. Mesmo que contrapondo uma África Em seu texto “Epistemologia da Ancestralida-
imaginada, a ancestralidade é algo que ultra- de”, Eduardo Oliveira (2011), concebe uma rela-
passa esse processo material, histórico, tempo- ção profunda para que possamos compreender
ral. os fundamentos da ancestralidade de maneira
As práticas culturais negras, produziram terri- “simples”, o que não é tão simples assim. Longe
torialidades cujo processos de identificação fo- da reprodução de termos “mal-ouvidos”, “mal
ram apropirados às tradições africanas ressigni- ditos”, “mal lidos” há que se ter cuidado sobre as
ficadas no Brasil. Portanto, quando dialogamos reproduções que estereotipam a fala e a escrita,
sobre jongos e caxambus, nos referimos à forma principalmente quando se trata do Sagrado Afri-
como foram produzidas as danças, os pontos cano. Isso porque, qualquer coisa que remeta à
cantados, os tambores, mas também as formas religiosidade ou, como no caso, à ancestralida-
como essas tradições circulam nas novas gera- de africana, no Brasil e no mundo, é lida e enten-
ções, neste ponto, penso que poderemos tomar dida por visões racistas carregada de marcas.
como ponto de reflexão a questão da ancestra- Sendo assim, a leveza dessa compreensão, faz-
lidade, os processos de construção ancestral se quando tentamos abrir um pouco mais nosso
a partir dos cíclos representados nas rodas e a campo de visão “ocidental”, para compreensão
presença geradora feminina. de outras formas de ser, viver, nesse sentido há
necessidade de desconstrução dos nossos ra-
Jongos, ancestralidades circularidades e a
produção do feminino
5 Professor Adjunto da FACED-UFBA e Presidente do Institu-
O conceito de ancestralidade remete aos ci- to de Pesquisa da Afro-descendência – IPAD.

85
farol

cismos cotidianos para que possamos compre- pais, avós, contextualizando que existência das
ender o princípio fundante da ancestralidade. festas em torno das fogueiras eram momentos
Ancestralidade é um princípio filosófico, con- mágicos dos caxambus.
sequentemente constitui-se em princípio social, Eduardo Oliveira (2011) nos explica que a
já que pela cosmovisão africana não existem du- maioria das culturas africanas encerra sua sabe-
alidades. Sobre este princípio, Eduardo Oliveira doria na forma narrativa dos mitos. “Talvez por-
(2001;2003;2007) nos adverte que autores clás- que os mitos não segreguem as esferas do viver.
sicos como Nina Rodrigues (1984,1900,1982) Não se separa religião de política, ética de traba-
Artur Ramos (1942;1943;1979) e Edison Carnei- lho, conhecimento de ação”. Argumenta que essa
ro (1967;1978;1964;1936) trouxeram o conceito relação talvez, se deva ao fato de que o mito
para seus escritos, sem de fato, tê-lo aprofun- conserve o mágico, e num “caso ou no outro,
dado, até porque, não era comum neste tem- ele encanta, seja pela beleza explícita, seja pela
po no Brasil, estudos sobre Filosofia Africana, beleza encoberta”. Em todo o caso, não há du-
portanto o termo se resumia aos estudos de alidades, tudo é sempre tudo e nada ao mesmo
candomblé, muito relacionado às linhagens de tempo, é ser e não ser, processo, transformação
africanos, aos seus descendentes, uma relação e formação, afirma – a ética vem travestida de
com o parentesco consanguíneo. estética, seja na palavra, no vestuário, na música,
A própria constituição do pensamento oci- na dança ou na arte. A vida é uma obra de arte e
dental, encarregou-se de cisão entre práticas seus segredos são transmitidos através dos mitos
cristãs e não cristãs, até porque, o domínio das que tem a função pedagógica da transmissão do
mesmas também instituía “poder” sobre terri- conhecimento ao mesmo tempo em que se forma.
tórios e os sujeitos que nele habitavam. Nesse Conjugada à cosmovisão africana, ances-
sentido, os territórios carregam as heranças do tralidade compreende os princípios da vida, a
colonialismo europeu, sob o paradoxo de em construção histórico-cultural negra no Brasil.
sua maioria terem produção fomentada pela di- Constitui-se como um novo projeto sócio polí-
zimação dos povos originários e pelas diásporas tico fundamentado nos princípios da inclusão
africanas. Esse foi o desenho dos arredores ur- social, no respeito às diversidades, na convivên-
banos e dos núcleos negros, pós-escravização. cia sustentável dos homens com o ambiente,
As práticas culturais, portanto, desde as sen- no respeito às diferenças geracionais, à convi-
zalas, produziram outros contextos extraterri- vência com os mais velhos, à complementação
toriais, fortaleceram laços familiares, religiosos dos gêneros, na resolução de conflitos, na vida
com o ambiente, em favor da vida, daqueles que comunitária. Nesse sentido, conjuga princípios
se organizavam nesses núcleos constituindo educativos do viver, manifestando-se nos coti-
novos laços familiares, para além dos laços con- dianos das comunidades e consequentemente
sanguíneos, multiversais6. Os Jongos e Caxam- dando sentido às práticas culturais.
bus, já existiam nas senzalas, foram, portanto, Sobre esse prisma, as práticas culturais jon-
cunhados nos princípios ancestrais. Ouvimos gueiras, compreendem essa relação ancestral,
das mestras jongueiras histórias antigas de seus sob a qual os princípios da vida, dos fazeres
cotidianos são valores transmitidos de geração
em geração nas rodas. Consequentemente são
6 O termo refere-se ao Multiverso, contraponto para unicida-
de de Universo. traduzidos em diferentes perspectivas de ser

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estar no mundo. Por isso a relação do “femini- como Aquatune, Dandara, Constância de Ango-
no” como geradora, que impulsiona a vida é por la, Zazimba Gaba, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro,
vezes acolhida e incentivada nas práticas de jon- Luiza Bairros, Mestre Nêga (Jongueira Sapê do
gos. Neste mesmo princípio a construção social Norte), Mestre Gessy (Jongueira Sapê do Norte),
da mulher, transcende o gênero, porque qualifica Mestre Maria Amélia (Jongueira Sapê do Norte),
sua composição sócio-política de enfrentamento são mulheres que incorporaram em seu “DNA”,
às adversidades raciais. É por meio da compre- essas lutas e de alguma forma se autorreferen-
ensão ancestral que os jongueiros territorializam ciam em suas estratégias de enfrentamento.
o feminino, porque cabe às Mestras direcionarem Nessas lutas, a resistência agregadora, transfor-
seus grupos, e exercerem liderança. São as Mes- ma o coletivo, principlamente por se constituir
tras Jongueiras que tomam as decisões sobre em um espaço a mais para companheirismo e
as organizações dos grupos. Muito embora o solidaridades estimuladas nos convívios e par-
viés masculino seja indistintamente forte, ainda tilhas cotidianas.
se conjuguem sobre o prisma do patriarcado De fato, as conquistas e historicamente as li-
(hooks, 2019) e domínio dos corpos, tem-se a deranças, foram feitos quase escondidos, pois o
autorreferencia feminina, sem a qual jongos e ca- patriarcado dominante (hooks,1989) as excluia
xambus não teriam a mesma força. dos espaços de decisão. Assim, quando falamos
de resistência e liderança nos jongos, trazemos
Interseccionalidades das mulheres jongueiras esse exercío de tomada de decisão nos coleti-
Dentre as muitas dimensões que possibili- vos.
tam discutirmos a corporeidade presente nas O conceito de intersseccionalidade discutido
práticas culturais estão as interseciconalidades por Kimberle Crenshaw (1989), Carla Akotire-
das mulheres negras. Importante justificar que ne (2019), Patrícia Collins (2019-2020) refere-se
a apropriação autorreferenciada, delimita as aos processos intercalados de compreender os
práticas culturais pelo processo de reconheci- ofícios assumidos por mulheres considerando
mento sobre as especificidades das mulheres seus múltiplos espaços de inserção e o enfrenta-
do jongo. mento às opressões cruzadas, raça, classe, gê-
Sobre estas especificidaes, destacamos as nero, sexualidade (acrescentaria religiosidades).
violências sofridas no período de escravização Sistemas semelhantes de poder são interde-
demarcando feridas nos corpos negros, em es- pendentes e mutuamente constituídos. Portan-
pecial nos corpos das mulheres, que de forma to quando se trata de pensarmos resistências
individual ou coletiva, expressavam em seus e enfrentamento de mulheres negras a esses
prórpios corpos o rejeito ao regime de opres- encadeados opressivos, estamos cruzando re-
são, construindo cotidianamente resistência ferenciais que interligam todo processo sobre
(SCOTT,1989). De certa forma, o trabalho da esta construção social do feminino, distintas
mulher escravizada e pós escravização, tanto entre os aquilombados.7
no campo, quanto na cidade foram constituídos
de práticas aquilombadoras, políticas, culturais, 7 Imprimimos um outro sentido para os aquilombamentos,
religiosas, que até hoje são reconhecidas nos que de acordo com o (ADCT 68 – CF/88) Designa rema-
nescentes de quilombo a partir do conceito reelaborado
terreiros das zeladoras de santo, “Mães” Matriar-
garantido no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucio-
cas, nas lutas políticas das ancestrais. Mulheres nais Transitórias (ADCT – CF/ 88), como locais de resistência,

87
farol

A região de Sapê do Norte8– compreende São processo familiar. As representações políticas


Mateus e Conceição da Barra, é relativamente também ficam a encargo dos mestres. São re-
um território de aquilombamentos. As comuni- presentantes em conselhos de culturas, assos-
dades negras que habitaram no passado, foram siações de bairro, colaboram na própria estru-
trazidas ainda escravizadas para região. Muitos tura comunitária. São zeladores das famílias
serviram às fazendas produtoras de farinha, jongueiras porque reúnem laços sociais que se
e outros reuniram-se nas comunidades inde- fortalecem nas convivências cotidianas. São es-
pendentes – aquilombados, sobrevivendo da sas responsabilidades, atreladas às realidades
agricultura de subsistência e do comércio local de enfrentamento ao patriarcado, às questões
interno, como ainda ouvimos nos dias de hoje políticas, religiosas, que alavancam as lideran-
da “fé em Deus”. ças femininas.
Quando o assunto é devoção, a fé transcen- As mestras jongueiras são levadas a “cuidar”
de e complementa o processo de organização dos interesses dos grupos nas representações
comunitária. As devoções à São Benedito (São onde se fizerem necessárias, inclusive porque
Mateus - comandado por Mestre Nêga), São Bar- a comunidade jongueira colabora nas tomadas
tholomeu (Quilombo Novo - comandado por D. de decisões em apoio a mestra. Logicamente
Carmen, Kelly Nay), Santa Bárbara (Linharinho- existem discensos e muitas dificuldades para
Mestra Gessy Cassiano), Sant’ Anna (Santana comporem esse processo, mas de certa forma,
- Comandado por Mestre Maria Amélia), são gestar o trabalho comunitário apresenta-se
santos cujas devoções guardadas pelas Mestras como um desafio aprendente das relações polí-
Jongueiras, perduram atravessando as adversi- ticas tão necessárias na consolidação dos espa-
dades temporais. ços de poder da mulher.
Comandar um jongo é muito mais que apenas Reflexões históricas publicadas por Aguiar
estar à frente nas “representações” como dizem (2005-2007) trazem registros de alguns “Mestres
os próprios jongueiros. Implica assumir respon- Brincantes” entre elas o de Mestre Nega, Dilzete
sabilidades dos ensaios, das reuniões para orga- Nascimento, que assumiu o grupo de Jongo de
nizarem as devoções, correspondências com os São Benedito, pós Mestre Geraldino dos Santos
festeiros, adornos das procissões, organização e Mestre Salvino9. O Jongo de São Benedito,
das roupas e instrumentos, e todas necessida- conduzido por Nêga, é um dos mais represen-
des advindas dos trabalhos com o grupo. Ainda tativos da região. Coube a ela dar continuidade
incluem zelar pelos participantes, com colabo- nos ensaios, organização das festas, devoção,
rações inclusive entendendo-os como parte do revisão dos cantos juntamente com D. Edézia,
irmã de seu Salvino. A voz de Nêga ecoa nos pro-
acolhimento, produção histórica e cultural. cessos de construção e afirmação dos jonguei-
8 O ‘Sapê do Norte’ era o longínquo, ao longo dos vales ros, por ela, o repeito à história e aos integrantes
dos rios Cricaré e Itaúnas, região há muito habitada por vem em primeiro lugar,
agrupamentos negros e camponeses que assim se organi-
zaram e se apropriaram desta natureza desde os tempos
Nêga – E aonde apresentar o grupo? Como
da escravização colonial até meados do século XX. Dona também, né? A roupa era comum, descalço,
Maria Caetano, 69, relembra que seus avós maternos eram dois reco-reco, dois tambores e... na porta da
do ‘tempo dos barões’ e viviam numa localidade próxima à igreja de São Benedito. Quem mais prejudi-
sede da antiga fazenda escravista da Cachoeira do Cravo, de
propriedade do Barão dos Aimorés. (Ferreira,2009) 9 ANDRADE, Tese de Doutorado, UFES.

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cava, quem mais proibia, as pessoa que mais
provocava, mais incomodava, que o grupo região. O grupo de Jongo de “São Benedito”, se
incomodava? O próprio pessoal da religião ca- constituiu em mais um aporte para empreender
tólica, tá? A própria igreja foi quem mais inco- lutas junto da comunidade. Nêga foi escolhida
modô, a igreja sempre bateu porta nas nossas por Mestre Salvino Rodrigues Pereira para a
caras. Os... corais iam cantá na igreja depois
direção do grupo de jongo, porque, segundo
da missa. Eles ficavam cantando horas mais
horas, pra que nóis num pudesse fazê nossa
Aguiar,
apresentação, e nóis ali esperando. De braço [...] Nêga é a personificação das valentes mulhe-
cruzado. Hoje ninguém faz mais isso, né? Nóis res quilombolas do Vale do Cricaré, que
ali, esperando de braço cruzado, quando bem enfrentaram não apenas os temidos capitães-
o coral quisesse terminá lá. Aí a gente ia can- do-mato, mas até hoje enfrentam todos os tipos
tá o nosso [expediente] ali, batê nosso tambô de discriminação e preconceito para manter
pra ir embora pra casa. Cansamos de fazê isso. viva uma tradição de relevante papel na difusão
Hoje igreja nenhuma bate porta na nossa cara. da cultura popular [...] (AGUIAR, 2007, p. 22).
Hoje, se batê, a gente manda abri. Com certe-
za, entendeu? A gente fez uma grande amizade
com os padres, com os leigos, né? Nas comu- Percorrendo o caminho das devoções e pro-
nidades. Então não tem mais isso! [...] (Mestre
cissões, São Benedito é louvado em todo o nor-
Nega – Oficina Santana, ago. 2012).
te pelos grupos de jongo, mas também não se
perdem as devoções à São Sebastião, Santas
O relato de Mestre Nêga, apresenta a impor- Almas, Santa Bárbara, Santo Antônio e aos Pre-
tãncia de sua liderança denunciativa frente o tos Velhos.
grupo, a superação das dificuldades e as con- O povoado de Santana localiza-se no muni-
quistas alcançadas durante sua gestão. A ênfa- cípio de Conceição da Barra. Foi nessa região
se desta narrativa está justamente no percurso onde se estabeleceu a fazenda de Dona Rita da
histórico de discriminação das práticas cultu- Conceição da Cunha, que segundo relato do es-
rais, da não valorização, do desrespeito e sobre- critor e jornalista Maciel de Aguiar, possuía uma
tudo na ressignificação das lutas empreeendi- sesmaria de terras que compreendia a grande
das em favor do reconhecimento das tradições área dos dois municípios, mais precisamente da
afro-brasileiras no Sapê do Norte. Esse desa- margem norte do Rio Cricaré até o córrego São
bafo foi muito comum entre os grupos durante Domingos.
as Oficinas de Mobilização Comunitária. Comu- Em visita à comunidade de Santana, ouvimos
mente ongueiros explicavam que em tempos que antigamente havia bailes em homenagem
passados muitos não tinham vestimentas ade- a São Bartho (São Bartholomeu). Esses bailes,
quadas, transporte para as apresentações, e que eram predominantemente marcados por
ainda tinham dificuldades em se comunicarem mulheres, foram crescendo e se transformando
em suas próprias comunidades. Muitas dessas no que hoje encontramos como procissão reali-
dificuldades ainda persistem em tempos atuais. zada na Igreja de São Bartholomeu. Dona Maria
Mestre Nêga é uma mulher negra quilombola. Amélia é uma fiel representante desses bailes,
Descende dos aquilombados organizados nas era ainda menina quando se deu conta da de-
matas do córrego do Aterro na Região do Sapê. voção a São Bartho, repassadas por sua mãe e
Sua liderança foi se construindo sobre muitos avós. Ele relembra que o jongo sempre acompa-
enfrentamentos e discriminações sofridas na nhou as devoções,

89
farol

Maria Amélia: É o povo do mato que trouxe São eram muitas as adversidades do campo, na
Bartho. Só não sei explicar, porque foi a minha época, não havia muitos médicos na região e
bisavó. Foi a minha bisa que conseguiu, aí no as mulheres aprendiam com as mais velhas os
dia em que eles foram libertados era meia-noi-
ofícios de parteiras. Somente muito mais tarde
te, aí da meia-noite até o meio-dia do outro dia
eles fizeram Jongo, aí deu continuidade. receberem treinamento especial de especialis-
tas da saúde para o ofício. Assim, os partos eram
realizados com a imagem do santo e de Nossa
O povo do mato a que se refere, são os aqui- Senhora. As mulheres grávidas faziam frequen-
lombados, provavelmente “parentes” mais dis- temente promessas ao santo para que o parto
tantes, no entanto, com o passar do tempo as desse certo,
traduções (BHABHA, 2010 a.) ressignificam as Mestre Maria Amélia [...] Porque São Berto
devoções. Os seja, ainda hoje10, as mulheres ele era dos escravos, ele era da minha bisa-
jongueiras acompanham a procissão com São vó. Então nós não podemos duvidar do que
eles fazem, porque naquela época em que
Bartho aos braços, mesmo com um quantita-
ele foi parteiro não existia médico pra fazer
tivo menor de senhoras, porque muitas já não parto das mulheres. E nunca’... Só a minha
aguentam mais fazer o cortejo pelas ruas do tia (parteira), ela pegou o parto de duzentos
bairro, mas buscam se fortalecer na crença e na e cinquenta crianças. Ainda tem, se tiver algu-
presteza divina de auxílio do santo na hora do ma lá hoje eu vou apontar pra vocês, que foi
ganhado em neném junto com ele [...]
parto ou de suas dificuldades,
Mª Amélia: É devoto das mulheres. É por isso
que quando era baile era só de mulher e Como guardiã e por estar com idade avança-
passô pro jongo só mulher. Tem homem, mais da, D. Roxa sentiu-se na obrigação de continuar
é no reco- reco, nos tambô. Tá entendendo? É
a devoção passando a guarda de São Bartholo-
assim. Mais é antigo, oh!
meu para Maria Amélia, sua sobrinha.
Maria Amélia: Eles vem sim. Eu sei que eles
Sobre antiguidade da devoção, D. Roxa ex- vem sim. Então, a gente fica naquela recor-
dação. Naquela lembrança do que a gente já
plica que recebeu de sua família (mãe e avós) a
foi. Do que a gente viveu. Porque é muito, só
guarda de São Bartholomeu. D. Roxa, senhora
quem já viveu umas tradições destas que...
oxagenária da comunidade de Santana tem sob Não tem como esquecer. Então, quando che-
sua guarda um baú de recordações. São roupi- ga essas datas assim... E no dia de Santa Rosa
nhas dadas em promessas pelos partos bem- de Lima me dá a sensação da minha mãe. Eles
sucedidos à São Bartholomeu. Ela nos contou festejavam o São Bartolomeu no dia vinte
quatro e no dia trinta a minha mãe festejava
que recebeu o santo como herança de família,
Santa Rosa de Lima. Era ladainha e o Jongo,
foi parteira e guardiã de São Bartholomeu por tudo junto.[18min.13seg.]
mais de 30 anos. Disse que há muitos anos atrás

10 Esperamos que pós pandemia de Covid 19, as procissões


possam novamente acontecer. Neste momento exatamente
O jongo de São Bartholomeu foi refundado
estamos em isolamento social, o que impede realização de por D. Tininha, que se tornou mestra, também
atividades de aglomeração de pessoas. No entanto, para em promessa. Ela reviveu o jongo após muito
escrita deste texto, tomamos como base os acontecimentos
tempo adormecido, na intenção de continuar
até 2019, quando ainda não se tinha noção de tamanho
perigo para humanidade. a brincadeira entre as mulheres da região. No

90
entanto, seu desejo era que a neta Kelly Nay Santa Bárbara e da Mesa de Santa Maria.11 D. Os-
pudesse quando crescida assumir a liderança. carina – no período do projeto ainda viva – con-
Para isso, seu filho Tatu deveria organizar-se e versou muito sobre suas memórias, e nos disse
guardar o jongo até a neta ter condições de as- que entre uma sessão e outra da mesa de Santa
sumi-lo. Por se tratar de um jongo de mulheres, Bárbara, havia rodas de jongo.
Tatu, filho de D. Tininha, assumiu por um tempo, Observamos que a condição das disputas
porém muitos motivos levaram-no a desistir da territoriais, políticas internas trouxeram sérios
liderança, entre eles o que comumente alegava danos às comunidades de Conceição da Barra,
– “Jongo de São Bartholomeu é um jongo de mu- ainda mais para a Comunidade de Linharinho.
lheres – Essa é a devoção do santo”, assim pas- Suas lideranças, forjadas na luta quilombola,
sou para sua prima Carmem, para que pudesse constituíram deste território do Sapê o sentido
asssumir a responsabilidade do comando do de resistência, da luta pela terra. Conservaram
jongo até Kelly Nay sentir-se preparada para tal. as lideranças femininas voltadas para o sagrado
Kelly Nay, encontra-se atualmente com 24 anos, religioso, por compreeenderem os fundamen-
oscilando em assumir a responsabilidades das tos da ancestralidade. Das formações e devo-
atividades de São Bartholomeu. ções a Santa Bárbara, emanaram possibilidades
Com o tempo, é possível perceber que as de- de reformulação dos jongos, porém, desvincula-
voções vão se ressignificando, ao mesmo tem- dos da questão religiosa, porém, guardados os
po que alguns grupos atravessam fases entre princípios de liderança, da circularidade e dos
sua organização e reorganização, outros grupos processos ancestrais. Diante das novas pers-
acentuam-se caminhando e fortalecendo-se. É pectivas de organização dos grupos, o jongo de
o caso do grupo de Jongo de Santa Bárbara, de Santa Bárbara, passou a contar com o comando
Linharinho, comandado, por Mestre Gessy. de Mestra Gessy, as meninas do entorno, sem,
Mestre Gessy se autoidentifica como, lavrado- contudo, participarem das mesas. Gessy ton-
ra da região, mulher negra quilombola, Alabê de rou-se mestra a partir da retomada dos jongos,
Santa Bárbara. Seu maior desejo era reafirmar o durante a realização do projeto jongos. Com
jongo de Santa Bárbara, que para ela tinha um uma roupagem exclusivamente feminina, a nova
caráter fundamental de devoção à santa. Esse mestra, retoma os passos que antes à conduzi-
jongo se reorganizou durante o Projetos Jongos ram a essa importante devoção à mesa de “San-
e Caxambus no Espírito Santo, e renasceu total- ta Bárbara”.
mente feminino. Em Linharinho, os encontros para ensaios do
O jongo de Santa Bárbara, tem seus funda- Jongo de “Santa Bárbara”, tambem são encon-
mentos relativos à D. Oscarina Cosme, respei- tros de conversas, brincadeiras e alegrias. Mes-
tada líder religiosa da região – “Mãe Oscarina” tra Gessy, aproveita para conversar, passar al-
– Mãe oscarina, além de mãe de muitos jon- guns ensinamentos dos antigos, trazer algumas
gueiros, também conduzia as mesas de Santa palestras, algo a mais que ela entende como
Bárbara e Santa Maria. Foi ela quem nos deu ini- necessidade para moças da região. Mestra
cialmente algumas pistas dos jongos que acon- Gessy continuou sua caminhada, levando soli-
teciam nos intervalos dos trabalhos da Mesa de
11 Religiões de Matriz Africana com práticas no norte do
Espírito Santo.

91
farol

dariedade, construindo outras possibilidades e Referências


atualmente aguarda finalização da pandemia de AGUIAR, Maciel de. A divindade de São Bene-
Covid para empreender novos projetos com as dito: o santo dos humildes e dosoprimidos. Re-
mulheres do Sapê. vista Vitória, ano 1, n. 9, p. 46-53, jun. 1982.
AGUIAR, Maciel de. O mestre de jongo de São
Concluindo... Benedito. In. AGUIAR, Maciel de.
Historicamente o corpo das mulheres negras Brincantes e quilombolas. São Mateus: Me-
foi desvalorizado, uma combinação de subalter- morial, 2005.
nidade, dor, silencio, muitas vezes usado como AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São
sinal de erotização ou de exclusão, perpetuan- Paulo: Pólen, 2019.
do-se no presente desde a casa grande e a sen- ANDRADE, Patrícia Gomes Rufino. A educa-
zala. ção do negro na comunidade de Monte Ale-
Desenvolver o protagonismo feminino como gre/ES em suas práticas de desinvibilização
lideranças, foi uma das formas encontradas pe- da cultura popular negra. 2007. Dissertação
las comunidades negras para ruptura desses (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-
racismos de marca histórica do corpo feminino. Graduação em Educação, Universidade Federal
As políticas do corpo são formas construídas do Espírito Santo, Vitória, 2007.
pelas comunidades negras para compreensão ANDRADE, Patrícia Gomes Rufino. Entre Jon-
de suas ancestralidades, mas também de faze- gos e Caxambus: Processos Educativos nas prá-
rem mulheres negras se autorrefereciarem, por ticas religiosas afro-brasileiras. Tese – Programa
meio das narrativas de empoderamento, de me- de Pós-Graduação em Educação, Universidade
mórias, construindo consciência positiva sobre Federal do Espírito Santo, 2013.
seus corpos e suas histórias. BASTIDE, Roger. As Américas Negras: as ci-
De uma outra perspectiva, nos ensinam a vilizações africanas no Novo Mundo. São Paulo:
identificarmos as funções políticas das esté- Difusão Européia do Livro; EDUSP, 1974.
ticas africanas contra os padrões ocidentais BHABHA, Homi. In the Case of Making: Thou-
dominantes e até mesmo de enfrentamento ao gths on Third Space. In (Org) IKAS, Karen; WAG-
patriarcado, que destituiu o corpo feminino dos NER, Gehrard. Communicating in the Third, Spa-
espaços de poder. Portanto as práticas jonguei- ce. New York: Routledge, 2009.
ras também são formas de pensarmos a desco- ___. Introdução. In BHABHA, Homi. O Local
lonização dos corpos, das mentes, desracializar da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2010 a.
no complexo sentido de religação ancestral. COLLINS, Patrícia Hill. Pensamento Feminis-
Ser uma Mestra Jongueira, institui percursos ta Negro. Tradução de Jamille Pinheiro Dias.
de empoderamento, liderança associados a in- Boitempo, São Paulo, 2019.
dependência, autorreferência, pertinentes aos COLLINS, Patrícia Hill. Learning from the ou-
processos de identificação das práticas cultu- tsider within: The sociological significance of
rais de comunidades negras brasileiras na diás- Black feminist thought. Social problems, v. 33, n.
pora. 6, p.14-32, 1986.
CRENSHAW, Kimberle. Demarginalizing the
intersection of race and sex: A black feminist
critique of antidiscrimination doctrine, feminist

92
theory and antiracist politics. The University of Patrícia Gomes Rufino Andrade
Chicago Legal Forum, p.139-167, 1989. Doutora em Educação - Diversidade e Prá-
GUIMARÃES. Aissa Afonso. Caxambu Alegria ticas Inclusivas (UFES). Professor Adjunto do
de Viver”: memória e patrimônio afro-brasileiro Departamento de Educação, Política e Socie-
em Vargem Alegre (Cachoeiro de Itapemirim - dade (DEPS). Graduado em Geografia (UFES),
ES). Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasi- Pedagoga. Pesquisadora do Núcleo de Estudos
leira de Antropologia. agosto de 2014, Natal/RN. Afro-Brasileiros da UFES. Pesquisa Geografias
KILOMBA, G. Memórias da plantação: episó- e territorialidades: Políticas Educacionais para
dios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobo- Populações Afro-Brasileiras: Quilombolas,
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HAESBAERT, Rogério. Território e Multiterri- Campo, Práticas Pedagógicas para Educação
torialidade: Um Debate. GEOgraphia, v. 9, n. 17, Étnico-racial, Territórios periféricos. PhD em
p.19- 45, 2007. Economia e Politicas Institucionais - Universida-
HOOKS, bell. E eu não sou uma mulher? Mu- de de Minnesota-USA. Professora do Mestrado
lheres Negras e o Feminismo. Rosa dos tempos. Profissional em Educação (PPGMPE/UFES) e co-
Rio de Janeiro. 2020. laboradora do Programa de Pós-Graduação em
HOOKS, bell. Choosing the margin as a spa- Comunicação/ Pós-Com/UFES.
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Ancestralidade: Corpo e Mito na Filosofia da
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tude, música e ancestralidade no jongo: som e
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SCOTT, J. C. Everyday forms of resistance. The
Copenhagen journal of Asian studies, v. 4, p.33-
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93
farol

QUILOMBO, TERRITÓRIO E PATRIMÔNIO CULTURAL: A VISÃO


DE DUAS LIDERANÇAS
QUILOMBO, TERRITORY AND CULTURAL HERITAGE: THE VISION OF
TWO LEADERS

Osvaldo Martins de Oliveira


PPGCS-UFES
Paula Aristeu Alves
UFES

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar as concepções de duas lideranças quilombolas da co-
munidade de Retiro, Santa Leopoldina (ES), sobre as lutas pelos direitos ao território e ao patrimônio
cultural. A proposta surgiu das pesquisas realizadas pelo projeto Africanidades Transatlânticas1 e para
a elaboração da dissertação de mestrado de uma das pesquisadoras, que atuou como colaboradora
no presente projeto. Para tanto, foram realizadas entrevistas de narrativas de vida sobre as trajetórias
de escolarização de quilombolas que concluíram o curso universitário e seus pontos de vista sobre os
direitos da comunidade.

Palavras-chave: Quilombos, Cultura, Patrimônio, Território, Lideranças.

Abstract: This article aims to analyze the conceptions of two quilombola leaders from the community of
Retiro, Santa Leopoldina (ES), about the struggles for the rights to the territory and cultural heritage. The
proposal arose from research carried out by the Transatlantic Africanities project and for the elaboration
of a master’s dissertation by one of the researchers, who worked as a collaborator in this project. To this
end, interviews of life narratives were carried out on the quilombola schooling trajectories that conclu-
ded the university course and their views on the rights of the community.

Keywords: Quilombos, Culture, Heritage, Territory, Leaders.

1 Projeto desenvolvido junto às comunidades quilombolas e agrupamentos culturais afro-brasileiros no Espírito Santo. A
pesquisa é uma parceria celebrada pelo Termo de Cooperação 002/2018 entre a Secretaria de Estado da Cultura (SECULT), a
Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES) e a Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). A
pesquisa foi regida pela Resolução nº 210/2018 e contou com financiamento da FAPES e SECULT.

94
Introdução coautor realiza pesquisa e acompanha a co-
Estudar os processos que envolvem as di- mum idade por mais de 20 anos. O problema
nâmicas das comunidades tradicionais de qui- que aqui analisado fornecem respostas para as
lombos requer a participação no seu universo seguintes questões: Qual a visão das lideranças
social, político, econômico e cultural que se quilombolas, sobre as lutas pelo direito ao ter-
expressa por meio da vivência cotidiana. Para ritório e ao patrimônio cultural? Os resultados
tanto, é preciso estar lá, se inserir no lugar que deste estudo, que traz como temática o debate
muitos destes quilombolas chamam de “meu”, do ponto de vista dos quilombolas sobre suas
“nosso” e outros tantos chamam de “casa” ou lutas por direitos ao território e ao patrimônio
mesmo de “grande família”. Por esta razão, o cultural proporciona benefícios tanto para a co-
estudo aqui proposto emprega a abordagem munidade quanto para a academia. Para a co-
etnossociológica na perspectiva de Bertaux munidade quilombola, tornar visível a trajetória
(2010), onde inseridos no campo, realizamos en- de escolarização de algumas lideranças pode
trevistas de narrativa de vida sobre as trajetórias estimular que outros jovens criem uma imagem
de escolarização de quilombolas que concluí- positiva da cultura herdada dos seus ances-
ram o ensino universitário. Utilizamos a técnica trais, despertem o interesse pelas questões que
de gravação em áudio e anotações em diário de envolvem a organização política do território
campo. Também acompanhamos as lideranças e se inspirem na construção de seus próprios
que aqui foram analisadas em eventos como projetos. Já para a academia, tal estudo pode
celebrações religiosas, reuniões da Associação propiciar a inserção de um debate ampliado no
dos Herdeiros de Benvindo Pereira dos Anjos,1 âmbito da universidade, dos processos sociais,
festividades de apresentação da Banda de culturais e históricos que envolvem a percepção
Congo e organização da festa junina do CEMEI dos discentes oriundos de comunidades dos
(Centro Municipal de Ensino Infantil) São Judas quilombos.
Tadeu, onde uma delas atua como professora. As lideranças aqui estudadas definem-se
As motivações para realização de parte des- como herdeiras e quilombolas descendentes
ta pesquisa partem da trajetória da coautora de Benvindo Pereira dos Anjos, o que nos levam
deste artigo, que é quilombola, filha e neta de a analisar a identidade de quilombo partir das
lideranças locais e, pertencente à comunidade abordagens antropológicas de grupos étnicos e
de quilombo de Retiro. Enquanto o primeiro identidades de Barth (2000) e Cuche (2002). Essas
abordagens possibilitam compreender quilombo
1 Celebração religiosa: encontro realizado em Retiro, entre como processo organizativo da comunidade em
as comunidades quilombolas de Retiro e São Mateus, do
que as lideranças demarcam sua identidade se-
município de Anchieta, sul do Estado, onde houve uma
confraternização que envolveu café da manha e almoço; lecionando símbolos, saberes e práticas que afir-
celebração de missa na igreja católica local; roda de jongo e mam ser a tradição de Retiro, como marcadores
congo; entrega da bandeira de São Benedito à Comunidade do pertencimento ao quilombo.
de Retiro (presente da comunidade visitante). Ambas as li-
deranças estiveram presentes, participaram da organização
Ao tratarmos dos temas de cultura e patrimô-
do evento e das atividades desenvolvidas. Acompanhamos nio cultural estamos nos referindo aqueles bens
também diversas reuniões da Associação de Herdeiros, de natureza material e imaterial que são trans-
onde os quilombolas foram convocados para discutir pau-
mitidos entre diferentes gerações da comuni-
tas voltadas para as melhorias da comunidade em especial
na área de saúde, locomoção e abastecimento de água. dade estudada e que localmente são definidos

95
farol

como tradição. Em termos dos direitos culturais quilombo. Nesta abordagem, todos os elemen-
tomamos como ponto de partida a Constitui- tos físicos e/ou históricos passam por um pro-
ção Federal de 1988, que em seus Art. 215 e 216, cesso de simbolização e a introdução de novos
define e dá providências sobre tais direitos. Ela elementos (materiais e imateriais) provocam re-
garante aos descendentes de africanos e aos qui- arranjos nas concepções de território.
lombolas o exercício dos seus direitos culturais e
o Estado deve, no âmbito de suas competências, A comunidade de Retiro e sua inserção na
proteger as manifestações e expressões de suas luta pelos direitos quilombolas
culturas. Deste modo, patrimônio cultural são A história da comunidade quilombola de Reti-
os bens materiais e imateriais que podem ser ro inicia com o caso ancestral Benvindo Pereira
tomados tanto individualmente como de forma dos Anjos (ex-escravizado) e Maria Pereira das
coletiva e fazem referências à identidade, à ação Neves (alforriada), que em 1875 e 1876 teve os
e à memória das comunidades quilombolas e de primeiros filhos e em 1892 comprou uma primei-
outros grupos que fazem parte do processo civili- ra terra na localidade de Conceição, em Santa
zatório nacional. Sendo assim, patrimônio cultu- Leopoldina. Ela foi invadida e expropriada com
ral neste artigo se relaciona a toda forma que os uso da força e atualmente é ocupada por um
agentes sociais de Retiro empregam para identi- fazendeiro local. Em 1912 o casal comprou uma
ficar e explicar o seu modo de vida. segunda terra, denominada pelos herdeiros
Do mesmo modo, empregamos o conceito de como “terra em comum”, na localidade de Re-
território com um sentido mais amplo do que o tiro, deixando-as de herança para seus descen-
conceito de terra, pois essa última diz respeito dentes. De acordo com Oliveira (2019) a compra
à base física e geográfica, enquanto o território de tais terras envolveu uma ação política que
possibilita entender as concepções que vincu- visava à construção do território quilombola de
lam os bens culturais à base física, como os va- Retiro. Localizada há 40 km da capital Vitória, a
lores, costumes, modos de vida e as formas de comunidade expressa à memória e à consciên-
usar a terra, com o escreveu Oliveira (2019). To- cia de identidade de seus integrantes, como um
mamos primeiramente esses conceitos a partir grupo de parentes e quilombolas herdeiros do
de Leite (1990), que os define como um campo Benvindo, definindo-se como os “Benvindos”.
de relações sociais e políticas, no qual se ela- Trata-se de uma comunidade etnicamente di-
bora a identidade étnica dos negros nos meios ferenciada, que para entender suas dinâmicas
rurais e urbanos. Nesta perspectiva a terra é é necessário considerar os bens culturais con-
considerada um lugar próprio e diferenciado, na siderados significativos para seus integrantes e
qual surge o território como uma realidade indi- que utilizam delimitar distinções etnoculturais.
visa marcada por uma forma de organização po- Como observamos em pesquisa de campo, os
lítica própria, investida de uma história (negra) e Benvindos constroem a memória sobre seus an-
de um universo simbólico particular. cestrais e a consciência de seu pertencimento
Em diálogo com Arruti (2002), Oliveira (2019) comunitário por intermédio das narrativas dos
escreve que o território diz respeito a um fenô- mais velhos, da mesma forma que a adoção dos
meno social de natureza simbólica relacional, costumes, hábitos e o modo de vida advém de
envolvendo agentes interno e externo, pois re- seus pais e avós. Trata-se de processos históri-
quer considerar a construção das memórias do cos e sociais que, de acordo com Candau (2011),

96
são transmitidas no intuito de gerar a consciên- ca das lutas pelos direitos à terra-território de
cia de pertencimento e continuidade das gera- quilombos em reuniões do movimento negro.
ções predecessoras. Como consequência, em 1998, passaram a plei-
As famílias que vivem em Retiro mantêm laços tear o reconhecimento como comunidade re-
de casamentos que possibilitam formar uma co- manescente de quilombo e a titulação de suas
munidade de parentes. Deste modo, é comum terras em nome da Associação dos Herdeiros.
que haja casamento entre primos de diferentes A interação com atores externos possibilitou
graus de parentesco. Embora atualmente haja o acesso às informações para fortalecer a luta
as uniões entre membros da comunidade com pela titulação das terras.
“pessoal de fora”, o que predomina é o casa- A partir de então, e da publicação do Decreto
mento de “primo com primo”. No entendimento 4887/2003, que regulamentou o procedimento
das famílias dos cônjuges, tais uniões favore- para a identificação, demarcação e titulação das
cem a manutenção dos costumes e “raízes”, já terras ocupadas pelas comunidades dos quilom-
que se entendem como uma única família. Afir- bos, ampliou-se a atuação política de os Benvin-
mam que as interferências externas provocam dos. Essa atuação tornou-se ainda mais efetiva
conflitos na comunidade e contribuem pouco quando, a partir de 30 de setembro de 2005, foi
para preservar os modos de vida comunais. publicada a certificação de reconhecimento
Os interesses principais da comunidade gi- de Retiro como Comunidade Remanescente de
ram em torno da manutenção da “terra em Quilombo.2 Passou, com isso, a ser identificada
comum”, que representa um valor econômico e a se identificar, como Quilombo de Retiro e/ou
e afetivo, pois além de prover o sustento traz Quilombo dos Benvindos. Considerando que a
consigo uma gama de significado que remete à identidade, que remete a normas de vinculação
memória dos seus antepassados. Neste sentido, consciente, se constrói e reconstrói na intera-
sua forma de organização social e política tem ção (Cuche, 2002), o grupo que anteriormente
como foco resguardar a propriedade herdada, se identificava como negro e descendente de ex
que se torna eixo central na organização da co- -escravizado, passa então, gradativamente, a se
munidade. Com este objetivo, a comunidade ini- identificar enquanto Quilombola, ressignificando
ciou um processo de mobilização que culminou sua identidade quilombola.
em 1991 na criação Associação dos Herdeiros Dentre as diversas práticas culturais empre-
do Benvindo Pereira dos Anjos. De acordo com gadas pelas lideranças para demarcarem a
Oliveira (2019), quando o estatuto da Associa- identidade quilombola local estão as ervas e
ção foi criado, não havia uma consciência qui- seus usos, que, segundo Oliveira (2019), são ex-
lombola por parte dos membros do grupo, que traídas da reserva de Mata Atlântica local, que
se auto identificavam como negros, parentes e são utilizadas em rituais de benzimento, banho
herdeiros. Então, o documento foi criado emba- e cura. Da mata é extraída também a matéria
sado nas experiências de vida comunitária dos -prima para a confecção de peças artesanais
moradores de Retiro e em suas atuações nas produzidas desde os tempos dos ancestrais. A
organizações sindicais, religiosas e partidária. mata em Retiro, entendida, segundo Oliveira
Embora não houvesse esta consciência no ano
da criação da Associação, a partir de 1993, as
2 Data da publicação da portaria N° 39/2005 no Diário Oficial
lideranças passaram a obter informações acer- da União.

97
farol

(2019), como uma combinação de patrimônio também diz ser tataraneta, pois seu avô José
natural e cultural, constitui-se uma das dimen- também era neto do Benvindo.
sões simbólicas da comunidade, pois pode ser A liderança B tem 25 anos, foi criado em Re-
vista como um espaço de transmissão e atuali- tiro, é o terceiro filho do casal Maria do Carmo
zação de saberes. Ferreira Benvindo e de João Batista Benvindo,
Outra tradição cultural de os Benvindos é a com os quais ainda reside. Seus avós maternos
Banda de Congo Unidos do Retiro, que desde os são Etelvina do Sacramento Ferreira e Moisés
seus ancestrais praticam uma dança em devoção Ferreira. Ambos de Retiro, sendo Etelvina bisne-
a são Benedito. O congo reúne crianças, jovens, ta do Benvindo Pereira dos Anjos e Moisés era
adultos e idosos e se constitui um dos símbolos filho de Emília (filha de Benvindo) e neto Benvin-
empregados pelas lideranças para demarcar a do. Os avós paternos são Edith Maria da Concei-
identidade quilombola desta comunidade. ção Benvindo e Jorge Benvindo (filho caçula do
Benvindo), uma das lideranças mais respeitadas
Trajetórias de lideranças quilombolas e seus na comunidade. Como se observa, a liderança
vínculos com os antepassados B também tem vínculos de parentesco com os
As lideranças que tiveram suas concepções fundadores da comunidade, pois é bisneto, pelo
analisadas nesse artigo concluíram os cursos de lado paterno, de Benvindo e Maria das Neves.
Pedagogia e Administração, sendo um em uni- As genealogias acima demonstram que existe
versidade pública e outro em faculdade da rede uma conexão entre os lideres do passado e as
privada de ensino. Ambos pertencem a famílias novas lideranças na atualidade, e constatamos
que têm exercido o papel de liderança na comu- que o estimulo ao estudo e ao exercício da li-
nidade católica local, na Associação dos Herdei- derança é um processo construído na relação
ros de Benvindo Pereira dos Anjos e na Banda de com pais, avós e tios. Verificamos ainda que a
Congo de Retiro. permanência e o retorno ao território estão re-
A liderança A tem 40 anos, é nascida e criada lacionados a este sentimento de pertencimento
em Retiro, onde residiu com os pais até o casa- essas famílias.
mento. Após separação passou a residir com os Os processos e trajetória de escolarização
dois filhos, uma adolescente 15 e um menino de das lideranças supracitadas iniciaram na pró-
03 anos. É filha de Maria da Penha Santos Pereira pria comunidade ou em localidades vizinhas. A
e Mário Raimundo Pereira, também criados no liderança A estudou da primeira à quarta série
quilombo. Os avós maternos são Nobelina dos na Escola Pluridocente Vargem Grande, uma lo-
Santos e Carolino Ferreira. Ele, neto do Benvin- calidade próxima à Retiro, situada na zona rural,
do Pareira dos Anjos e ela, pertencia a localida- à época que ainda existiam as escolas unido-
de de Morro de Pimenta, vizinha a Retiro. Já os centes (com apenas uma turma) e as plurido-
avós paternos, são Leopoldina Raimundo Perei- centes (com turmas divididas por idade, duas a
ra e José Pereira dos Anjos (neto do Benvindo). três por sala). Andava cerca de um quilômetro e
Ela da localidade de Morro da Pimenta e ele de meio para chegar até ao local.
Retiro. Desse modo, na genealogia familiar, pelo A partir da quinta série, estudou na Escola Es-
lado materno, a liderança A diz que é tatarane- tadual de Ensino Fundamental e Médio (EEEFM)
ta do Benvindo Pereira dos Anjos visto que sua Alice Holzmeister, onde também cursou o ma-
bisavó Vicência era filha dele. No lado paterno, gistério, concluído em 1999. A escolha pelo Ma-

98
gistério não foi por opção, pensou inicialmente residiam em Retiro. Atualmente, enquanto CEMEI
em cursar Administração ou Psicologia, porém, São Judas Tadeu, atende crianças de todo muni-
em virtude de ser o único curso ofertado no mu- cípio, em especial localidades vizinhas.
nicípio no período diurno foi o único possível a Aos oito anos de idade, B iniciou estudos
ser realizado. na escola municipal Barra de Mangaraí, atual
Em 2000/2001 a liderança A iniciou trabalho Escola Municipal de Ensino Fundamental Mil-
com a Educação Infantil, atuando de 2001 a ton Corteletti, situada em Barra, no distrito de
2009 no Centro Esportivo Municipal de Educa- Mangaraí onde cursou da primeira à quarta sé-
ção Infantil (CEMEI) São Judas Tadeu, situado na rie, níveis oferecidos pela escola. Na sequência,
Comunidade Quilombola de Retiro. Atende atu- estudou no EEEFM Alice Holzmeister, onde ficou
almente não só os alunos da comunidade como até concluir o ensino médio. Ao término, fez o
os de outras quatro localidades vizinhas. Tam- Exame Nacional do Ensino Médio e se inscreveu
bém neste período, de 2001 até 2005, cursou em programas para bolsas de estudos sendo
sua graduação na área de Pedagogia na UFES, aprovado pelo programa Nossa Bolsa que pos-
no polo localizado na cidade de Santa Tereza. sibilitou ingressar na faculdade FAESA, no curso
Se deslocava para tal município para realizar de Ciência da Computação, onde permaneceu
trabalhos e demais atividades de pesquisas. por um semestre. Por falta de identificação com
Sua graduação foi possível por intermédio de o curso, no semestre seguinte se inscreveu no
uma ação do Governo Federal em parceria com Programa Universidade para Todos (PROUNI) e
Estados e Municípios, com o objetivo de capaci- conseguiu bolsa para cursar administração na
tar os professores efetivos da Educação Infantil. Faculdade Salesiana de Vitória. Iniciou em 2012
Em virtude da baixa demanda de professores e concluiu em 2016.
efetivos na rede básica de ensino, também os A liderança B nos conta em entrevista que sua
professores de Designação Temporária (DT) fo- vivência na escola foi algo que considera muito
ram beneficiados podendo assim, realizarem boa, em especial na creche, que por estar locali-
suas graduações em Pedagogia. Desse modo, zada na comunidade, conhecia todos os alunos,
a liderança A teve formação em séries iniciais e professores, e demais funcionários. Considera
posteriormente cursou pós-graduação nas áre- que o ensino fundamental e médio foram tem-
as de Educação Infantil e Educação Inclusiva. pos tranquilos e que somente na faculdade as
Tal liderança prendeu a ler em casa com seu pai, coisas começaram a mudar, por dois motivos:
mestre da Banda de Congo Unidos do Retiro, 1º) sentiu a diferença de sair de uma escola do
que trabalhava em Vitória e levava para as filhas ensino médio e ingressar em uma faculdade,
revistas de leitura em gibi. Foi a única entre os onde o nível exigência é maior; 2º) o desloca-
sete irmãos que concluiu o ensino universitário. mento de Retiro para Vitória, local onde situa a
Quanto à liderança B, iniciou os estudos na instituição de ensino que esteve vinculado, foi
creche municipal localizada dentro do território um grande desafio, pois dependia de transpor-
quilombola, a mesma que atualmente a lideran- te que não chegava até a comunidade, exigindo
ça A exerce o magistério. A época, denominada às vezes, caminhar cerca de 4 km, tanto ao dia
Creche São Judas Tadeu em homenagem ao san- quanto a noite em seu retorno, após a aula.
to católico padroeiro da comunidade. Atendia A escolha do curso administração deu-se em
apenas as crianças de 06 meses a 07 anos que razão das possibilidades de trabalho que visua-

99
farol

lizava existir depois de formado. Embora tenha escola. Dentre suas maiores preocupações em
encontrado desafios durante o percurso no en- relação à escolarização dos jovens quilombolas,
sino universitário, aponta que a interação com está o receio de ficarem excluídos do mercado de
pessoas de realidades diferentes da sua foi enri- trabalho, que já apresenta restrições para quem
quecedora para sua formação acadêmica, pos- tem um curso universitário.
sibilitando o diálogo com outras culturas e co- Sobre medidas que garantam renda, a Lide-
nhecendo a realidade de diferentes trajetórias. rança A analisa que Retiro possui terras propí-
cias ao cultivo, apesar de insuficientes, porém,
O ponto de vista das lideranças sobre os di- a maioria dos moradores não dispõe de capi-
reitos territoriais e culturais tal e apresenta dificuldade para desenvolver
As lideranças apontam que no processo de um plantio e esperar a colheita. Então, precisa
construção política de Retiro há avanços e re- buscar formas de sobrevivência fora da comuni-
trocessos em relação aos direitos territoriais e dade, seja em fazendas vizinhas ou mesmo em
culturais e que suas atuações neste campo po- municípios da Grande Vitória. É o caso de mui-
lítico tem se pautado na luta por suas garantias. tas mulheres que realizam trabalhos domés-
Para a Liderança A, permanecer residindo no ticos na sede do município ou em municípios
quilombo é uma maneira de potencializar a “ba- vizinhos. Ela afirma ser um avanço já haver na
talha” pelos direitos dos quilombolas, uma luta comunidade meio de trabalho, como a colheita
que considera ser tanto de seus pais, dela pró- de café, que gera renda para alguns moradores,
pria e de seus filhos. Abaixo, segue alguns ele- em geral as mulheres que não conseguem tra-
mentos elencados pelas duas lideranças sobre balhar fora. A prefeitura municipal é também
os direitos territoriais e culturais e os seus pon- um meio de empregabilidade, mas que alcança
tos de vista considerando o contexto de Retiro. poucos quilombolas, que atuam como servido-
No que diz respeito à Educação, na avaliação res públicos.
da liderança B, existe um avanço nos níveis de A liderança acima aponta ainda suas preocu-
escolarização, se comparado os adolescentes e pações e receio de que a cultura local se perca da
jovens com os moradores mais velhos. Para ele, memória da comunidade, principalmente no que
no contexto atual, a maioria conclui o ensino diz respeito aos ritmos musicais, como segue:
fundamental e inicia o ensino médio, coisa que Essa questão dos costumes, da construção
antes não ocorria, a exemplo de seus pais que dos cestos, dos tecidos, né, com palha, a
só concluíram a quarta série. A questão começa questão da comida [...] a gente continua fa-
zendo, mas, tem muita coisa que a gente acha
a exigir maior atenção no nível médio, em que a
que tá se perdendo. A questão cultural do rit-
seu ver, há maior evasão escolar. Dentre as pos- mo da música, da dança, porque além de mui-
síveis causas apontadas por ele está certa “aco- tos de repente, não terem interesse, aí a gente
modação dos jovens” que não possuem maiores vê que parece que não vai caminhar mais [...].
“ambições” para continuarem com os estudos. Eu fico um pouco preocupada com isso, por-
que a gente visa o crescimento da comunida-
Diz que em sua trajetória no ensino médio havia
de. (Liderança A, comunicação pessoal, 2019).
o incentivo dos professores para que os alunos
realizassem a prova do ENEM e buscassem uma
bolsa de estudos ou mesmo estudar na UFES; Ela avalia que há um esvaziamento na Banda
hoje não sabe como isso tem se desenvolvido na de Congo, que hoje conta apenas com cerca de

100
12 participantes fixos, conseguindo apenas dar trabalhado diretamente com as crianças e jo-
continuidade às programações tradicionais, vens da comunidade:
como a festa da fincada do mastro, ou partici- E aberto edital e ai a Ananda né, que é mestre
pações pontuais em eventos. Além disso, não há de capoeira também, sempre atua nos proje-
apoio financeiro para confecção de uniformes, tos aqui. Eu não sei qual é o órgão não, mas, aí
já é os meninos daqui que monta o projeto. O
ou apoio logístico com transporte para que o
Aldair junto com Maristela, a Ananda também
grupo possa realizar apresentações nas festi- né, já ajuda. Dois anos que foram feitos, foram
vidades para os quais é convidado. Tal preocu- enviados os projetos e a gente conseguiu re-
pação pode estar relacionada ao fato de há 13 ceber a verba, pagar o combustível do profes-
anos ter se estabelecido na comunidade uma sor, a aula. Muitas vezes vem alguma oficina
de berimbau. Vem o mestre Chaminé do Rio,
igreja evangélica, que habitualmente em suas
tem o mestre Jamelão também sempre, que
doutrinas, demoniza os ritos ancestrais ligados vem. A finalidade do projeto é para custear, dá
às culturas africanas e afro-brasileiras, como a um apoio, para financiar essas situações. (Li-
capoeira e o congo, ambos, símbolos culturais derança A, comunicação pessoal, 2019).
demarcadores da identidade quilombola em
Retiro. Outra preocupação da mesma lideran- O relato acima demonstra, conforme verifica-
ça é que as tradições culturais da comunidade do em Coutinho (2016), a importância dos atores
possam entrar em declínio com o falecimento externos no desenvolvimento das potencialida-
de lideranças mais velhas: des da comunidade. A liderança A acredita no
Igual já foi a tia Etelvina, que rezava a Ladainha, potencial da comunidade, como exemplo o tu-
era a Rainha do Congo né, junto com a gente. O rismo, porém, pondera que falta “alguma coisa”
meu pai né, que era o Mestre do Congo, fale- para ajudar a dar “um engate” e demonstrar o
ceu, tinha outros saberes do benzimento e de
que o quilombo tem de melhor. Ela ressalta que
buscar as madeiras na mata. O tio Reginaldo,
que fazia a cestaria, os cestos, as vassouras. O a comunidade possui ideias, como exemplo o
Claudionor também faz. Tia Edith fazia os tapi- museu, a trilha na mata, passeio de charrete,
tins, que era a esposa do Jorge Benvindo. E aí o portal da entrada do quilombo, entretanto,
hoje em dia já não fazemos mais essas coisas, precisa ter apoio do poder público. Apesar dos
muita dessas coisas a gente não faz mais, tá se
desafios ela, relata continuar acreditando e tra-
perdendo. Então, eu me preocupo um pouco
com isso, penso no futuro, não sei se a gente
balhando para o desenvolvimento local e quali-
vai conseguir caminhar aí nesse estilo de vida dade de vida dos moradores. Como ela mesma
nosso aqui. Lógico que a gente vai se atuali- diz: “Eu penso que a gente ainda vai florescer.
zando, né, com a questão da atualização da Um dia a utopia vai mudar”.
sociedade né em si, mas eu fico preocupada da Corroborando com a fala da liderança A, pu-
gente se perder nisso aí. (Liderança A, comuni-
demos verificar em campo que falta apoio do
cação pessoal, 2019).
poder público municipal que não garante de
forma eficiente o acesso às políticas públicas de
Quanto à capoeira, por meio de recursos pro- saúde, educação e lazer. O potencial turístico da
venientes projetos financiados pela Secretaria cachoeira existente no quilombo, que pode ge-
Estadual da Cultura- ES, tem se mantido há dois rar recursos para as melhorias locais, também
anos. A mestra Ananda Coutinho, do Grupo de não recebe investimentos.
Capoeira Angola Volta ao Mundo, de Vitória, têm A liderança B, descrevendo os processos de

101
farol

organização interna, fundamenta o pertenci- divisão é incompreensiva, havendo a necessida-


mento ao quilombo na ancestralidade, que para de de as lideranças desenvolverem um trabalho
ele, torna todos uma só família, descendente de orientação para amenizar os conflitos inter-
do ancestral Benvindo. Nesta perspectiva, a nos. Como a seguir:
identidade quilombola reforça o sentimento de Aqui tem a questão, por exemplo, dos nú-
coletividade e por isso, um dos aspectos funda- cleos familiares, então né os filhos vão cons-
mentais está nas formas de organização e na truindo perto dos pais, aí ao longo do tempo
isso foi feito né, [...] só que muitas vezes os
manutenção cultural. Há uma preocupação por
herdeiros que casam com alguém daqui né,
parte das lideranças com o bem-estar coletivo: que são herdeiros indiretos, às vezes eles
Porque aqui a gente tem, pra quem assim vi- não entendem né, por que tem que construir
veu aqui por muito tempo, essa questão do naquele lugar não em outro, né. Porque eu
coletivo muito forte né, das pessoas se im- não posso ir pro outro lado do rio, aí tem que
portarem com o outro, né? De você não poder falar que porque lá já é de outra família, e
fazer, se você tem condição por exemplo, de sua família está desse lado do rio e às vezes,
fazer um arado mas, você não vai fazer né só mesmo você sendo do mesmo lado, quando
porque você tem dinheiro para pagar. Tem é perto do seu núcleo familiar você tem que
outras questões que, às vezes, as pessoas conversar com as pessoas que moram ali,
não entendem, mas pela nossa origem, o fato com os mais velhos e às vezes as pessoas
de ser uma terra de herança quilombola tem não entendem. E hoje em dia como a maioria
toda uma questão que pra quem vive aqui é casa com pessoas de fora né, esse conflito
simples né, de entender, mas pra outras pes- está cada vez mais presente. (LIDERANÇA B,
soas é complicado. Mas só quem vive aqui comunicação pessoal, 2019).
mesmo há mais tempo que consegue enten-
der estas questões. Tem questões familiares
também que só quem vive aqui consegue en-
tender, de o porquê de algumas coisas acon-
tecerem do jeito que acontecem. (Liderança
O casamento entre parentes é um fator
B, comunicação pessoal, 2019). cultural em Retiro, que pode ser compreendido
dentro do processo de educação ou transmis-
são de saberes, já que os filhos são incentivados
pelos pais e avós a manterem relacionamentos
No trecho acima é possível observar que no interior do grupo. A liderança B avalia que
a liderança B problematiza algumas questões atualmente este tipo de vínculo matrimonial
importantes que atravessam a organização do não acontece com tanta frequência e a comuni-
território e que em sua concepção, somente dade se viu obrigada a aprender a lidar com essa
quem pertence a comunidade tem condições situação da melhor maneira possível. O fato de
de melhor compreender. Há em Retiro diferen- os herdeiros manterem relação conjugal com
tes situações econômicas entre as famílias, mas “gente de fora” gera uma espécie de conflito
isso não é o suficiente para que quem possua para a comunidade, que a seu ver não existia an-
maior renda faça uso indiscriminado da terra, tigamente, quando o “normal” era a maior parte
já que existe uma divisão por núcleos familia- das pessoas da comunidade casar entre si. Os
res, socialmente estabelecida e aceita por seus casamentos entre parentes, de acordo com Oli-
membros. Para os herdeiros indiretos, aqueles veira (2019), além de evitar o conflito com mem-
que se casam com os quilombolas de Retiro, tal bros externo à comunidade é uma estratégia de

102
era? O que as pessoas faziam pra viver, né? En-
preservar a terra herdada, mantendo-a entre os tão são coisas assim, que a gente que é jovem,
Benvindos. mas não mais criança, a gente sabe por que
Como uma das estratégias de preservar o pa- já ouviu as pessoas conversarem [...] mas, a
trimônio cultural e a manutenção do território gente vê nas crianças que muitos não sabem
disso e acho as vezes que não veem valor nes-
quilombola, a liderança B salienta a importân-
sa história. Mas precisava mesmo dessa valo-
cia da transmissão dos saberes ancestrais para rização, de se identificar mesmo como sendo
as novas gerações de Retiro. Para ele a escola é quilombola, não ter vergonha da sua história.
um lugar onde esta transmissão deveria ocorrer, (Liderança B, comunicação pessoal, 2019).
em especial porque há no território um CEMEI,
que pode ser instrumento potencializador deste
processo. A liderança A acredita que o fato de os profes-
O município tem na questão da educação sores não pertencerem ao quilombo e viverem
algo que é grave. A gente tem uma creche realidades diferentes, dificulta o entendimento
que é dentro do quilombo, mas você não vê sobre a importância de incentivar a cultura local
características quilombolas nelas. Esses dias
na escola. Vê ainda falhas na Gestão Municipal
eu tava até reparando nas pinturas né, tem a
pintura ali do smilinguido, ai eu estava pen- de Educação que não possui um plano efeti-
sando porque não ter pintado alguma coisa vo sobre a temática para direcionar o trabalho
característica da cultura quilombola, tambo- dos professores, tornando ineficientes as ações
res, pessoas negras, alguma coisa assim, ca- pontuais realizadas apenas em datas especifi-
racterística? Ter pintado assim coisas que às
cas, como em 20 de novembro, dia Nacional da
vezes não tem nada a ver com a comunidade,
então são coisas assim simples, mas que aca-
Consciência Negra.
bam não ajudando tanto no fato da gente ser
quilombola. Que se fala muito em educação O papel da Associação nas demandas pelos
quilombola, mas na prática mesmo, a gente direitos dos herdeiros
não consegue vê essa educação na CEMEI. A liderança A iniciou sua atuação na comuni-
(Liderança B, comunicação pessoal, 2019).
dade desde cedo, seguindo os passos de seus
pais e de outras lideranças mais velhas de Reti-
Considerando o tempo que as crianças pas- ro. Como segue:
sam na escola (horário integral), para a lide- Papai já era líder comunitário, mamãe tam-
rança acima, a própria comunidade poderia bém às vezes ajudava ele, a Claudiva, tia Lena.
exigir mais dos professores e das pessoas que Aí, a gente criança já ia se envolvendo naque-
la situação. Eu me recordo que muito nova,
trabalham no Centro Educacional para que se-
acho que antes dos 18 anos, eu já ajudava a
jam eles também, instrumentos de transmissão comunidade, lá dava catequese, depois de
da cultura local. Ele se preocupa com a cultura um tempo assumi a coordenação da igreja ca-
aprendida por meio da tecnologia e as grandes tólica né, e por ai fui. Depois passei também a
mídias, que se distanciam dos saberes transmi- fazer parte das organizações da Associação.
(...) foi criada uma associação de moradores
tidos pelos mais velhos e aponta possíveis te-
que hoje a gente dá o nome de Associação
mas a serem trabalhados no CEMEI: Quilombola dos Herdeiros Benvindo Pereira
Como que era a vida aqui na comunidade dos Anjos, porque pela facilidade das nego-
antigamente antes da gente ter luz, ter água ciações com documentação pra gente buscar
encanada, de a gente ter estrada? Como que os nossos direitos, uma questão de coisas,

103
farol

então foi criada a associação. E aí, eu sempre


fazendo parte dos grupos: uma hora da As- por votação popular. Cita como exemplo duas
sociação, outra hora do Conselho da Igreja. pontes que precisam de reforma e as pessoas
E até hoje né, eu me envolvo. É por isso que cobram da Associação, mesmo que esta obriga-
eu falo que não dá pra sair daqui, tem que tá ção seja do poder público municipal. A “cultura
sempre presente na comunidade. (Liderança
de botar a mão na massa, de fazer” orienta os
A, comunicação pessoal, 2019).
moradores para que as cobranças sejam a nível
interno.
O relato demonstra o contexto que a lide- Outra demanda direcionada à Associação
rança acima iniciou sua participação na vida são os problemas frequentes em relação ao ter-
comunitária, bem como esclarece que a criação ritório, já que cada vez nascem mais pessoas,
da Associação de Herdeiros fez parte de uma tornando um desafio a divisão do território e
estratégia de mobilização política em torno da a alocação dos herdeiros em locais favorável a
luta por acesso aos direitos dos quilombolas. construção. Situação essa, agravada com o re-
Também a liderança B, iniciou cedo sua atuação torno a Retiro dos herdeiros que migraram para
na vida comunitária: os centros urbanos. Todos estes fatores, segun-
Desde pequeno minha mãe me levava na igre- do a liderança B, tornam desafiantes e necessá-
ja, então desde muito pequeno eu comecei a ria à busca por soluções.
participar. Então quando fiquei já adolescen- Na mesma lógica, a liderança A vê a Associa-
te né, já comecei a pegar mais responsabili-
ção de Herdeiros como o canal que deve mo-
dades; eles já começaram a me convidar para
participar do grupo do Conselho, né? Do gru- bilizar a luta pela manutenção da cultura, me-
po de Ciclo Bíblico e aí, eu fui me envolvendo mória e história do território quilombola. Deve
e já tem oito anos que eu participo do Conse- pautar sua atuação na busca pelo crescimento
lho da comunidade, que é da igreja católica. da comunidade e garantir medidas que deem
Depois disso também me convidaram pra
continuidade aos saberes ancestrais, transmi-
participar da Associação. Então já é o segun-
do mandato na Diretoria da Associação. (Lide-
tindo-os às gerações futuras de filhos, netos
rança B, comunicação pessoal, 2019). e sobrinhos do Benvindo. Do mesmo modo,
deve mobilizar e articular internamente e com
os poderes públicos ações que venham garan-
Ele ressalta que estar na vice-presidência da tir melhorias efetivas na qualidade de vida dos
Associação de Herdeiros, atuando diretamen- moradores nos aspectos relacionados à saúde,
te na gestão do território, permite com maior assistência, trabalho e geração de renda, pro-
propriedade conhecer as demandas dos mora- dução agrícola familiar, saneamento, esporte,
dores, que são em sua maioria direcionadas à mobilidade e lazer.
Associação. Salienta que muitas coisas já mu-
daram para melhor, mas que a comunidade ain- Considerações
da precisa de várias outras, que por vezes, são Diversas pesquisas sobre os temas dos direi-
omitidas pelo poder municipal. Enfatiza que a tos dos quilombos à titulação das terras-territó-
comunidade possui um histórico de não ficar es- rios, identidade, memória e culturas tradicionais
perando pelos outros e sim de fazer. Em virtude demonstram que tais temas estão intimamente
disso, as ações de melhorias são direcionadas à relacionados. Evidenciam que esses direitos
Associação e seus representantes, escolhidos constitucionais estão associados aos direitos

104
à assistência à saúde e o acesso à educação e ças, adolescentes e jovens. Avaliam que por
ao trabalho (no próprio território e fora dele). mais que existam as ideias, faltam ações para
Revelam que existem demandas por esses direi- alavancar o potencial da comunidade.
tos não atendidos de forma satisfatória nesses O CEMEI infantil existente no quilombo é
quilombos. apontado como potencial instrumento de
As lideranças expõem que há uma série de transmissão da memória e cultura quilombola,
limites que envolvem o acesso e permanência no entanto há necessidade de conscientização
dos jovens nas universidades, interferindo di- pedagógica para que isso ocorra. Essa situação
retamente na construção de seus projetos de dialoga com o debate existente na academia e
escolarização. Se por um lado o município não nos movimentos negros sobre as dificuldades
possui instituições para que estes deem sequ- encontradas nas escolas públicas para imple-
ência após o término do ensino médio, por ou- mentar a Lei 10.639/2003, que determina ensino
tro, se deslocar para a Região da Grande Vitória, da história afro-brasileira e africana em todos os
local onde se localiza os centros de ensino, tor- níveis de ensino.
na-se algo desafiador frente às dificuldades com Outra constatação da pesquisa foi que entre
transporte. Associado a essas questões, há con- os quilombolas que constroem projetos de as-
forme constatado em pesquisa de campo, uma censão aos níveis mais elevados de educação
evasão escolar dos jovens no nível médio, o que escolar, se comparados aos estudos de seus
está relacionado diretamente à necessidade de pais e tios, alcançaram os maiores níveis de es-
prover o próprio sustento ou de suas famílias, já colarização em suas famílias, sendo, muitas ve-
que muitos destes jovens encontram-se traba- zes, os únicos entre vários irmãos, a concluírem
lhando nos comércios de municípios vizinhos. o ensino universitário, como no caso da peda-
Verificou-se que embora a comunidade qui- goga, aqui analisada.
lombola possua atividades produtivas voltadas Os dados da pesquisa demonstram que os
para a agricultura familiar e produção para o jovens que se destacam como lideranças co-
comércio, capazes de em certa medida, gerar munitárias, além de terem passado por um pro-
trabalho para seus integrantes, ela não é autos- cesso de ascensão escolar, são filhos e netos de
suficiente, levando os quilombolas a buscarem lideranças e foram encorajados e preparados
forma de sobrevivência fora do território. As por seus pais, avós e tios/as, desde a infância, a
lideranças demonstraram insatisfação com os assumirem tais posições. Os laços de parentes-
poderes públicos pela falta de apoio no desen- co por filiação e afinidades é fator importante
volvimento do potencial econômico, seja por nesta construção.
meio do turismo rural ou da agricultura. Os projetos de escolarização dos quilombolas
As lideranças verificam ainda a ausência do estudados se inserem no contexto comunitário
poder público nas ações de infraestrutura da local, onde se almeja por meio do processo de
comunidade, sendo a Associação de Herdeiros escolarização alcançar melhores condições de
acionada para responder às demandas dos mo- vida para as famílias e a comunidade. A forma-
radores. No tocante ao fomento à cultura local ção universitária, na visão desses quilombolas,
também não há investimentos suficientes, sen- deve possibilitar um retorno ao Quilombo. A
do os agentes externos os que mais contribuem exemplo, o administrador assumiu o papel de
no desenvolvimento de projetos juntos as crian- gestor do território na vice-presidência da As-

105
farol

sociação; a pedagoga atua como professora da ___. Presidência da República. Decreto


educação infantil no CEMEI local. 4.887 de 20 de novembro de 2003. Regulamen-
No debate sobre o pertencimento ao quilom- ta o procedimento para identificação, reconhe-
bo, as lideranças acionam as seguintes práticas cimento, delimitação, demarcação e titulação
culturais para demarcar essa identidade: a) sa- das terras ocupadas por remanescentes das
beres sobre os benzimentos herdados dos seus comunidades dos quilombos de que trata o art.
antepassados; b) uso de ervas e raízes para gar- 68 do Ato das Disposições Constitucionais Tran-
rafadas; c) culinárias derivadas da mandioca, da sitórias. Brasilia, DF. Disponível em: http://www.
banana e do feijão guando; e d) celebrações fes- planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/D4887.
tivas de são Benedito (liderada pela Banda de htm. Acesso em 29/11/2019.
Congo) composta de preces (rezas de ladainha), ___. Presidência da República. Lei 10.639 de
musicalidade, cortejo, ritmo, dança e fincada e 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de
retirada de um tronco de madeira denominado 20 de dezembro de 1996, que estabelece as dire-
mastro. O mastro com a bandeira hasteada, e trizes e bases da educação nacional, para incluir
nela a pintura do santo negro, é interpretado, no currículo oficial da Rede de Ensino a obriga-
conforme Oliveira (2019), como símbolo do per- toriedade da temática “História e Cultura Afro
tencimento ao território quilombola de Retiro. -Brasileira”, e dá outras providências. Brasília,
Por fim, não se esgotam aqui as análises acer- DF. Disponível em: http://etnicoracial.mec.gov.
ca da relação entre território e patrimônio cul- br/images/pdf/lei_10639_09012003.pdf. Acesso
tural quilombola. Interpretamos o tema a partir em 29/11/2019.
das trajetórias de quilombolas que exercem a li- CANDAU, Jorge. Memória e identidade. São
derança na vida comunitária. Enfatizamos aqui, Paulo: Ed. Contexto. O jogo social da memória:
que os embates pelos direitos ao território e ao fundar e construir. P. 137-157. Disponível em:
patrimônio cultural estão associados. https://drive.google.com/drive/folders/0B_1O-
dA0uyUV_bmtUX2tVVXRPejA.
Referências COUTINHO, Ananda Bermudes. A produção
ARRUTI, Jose Mauricio P. Andion. “Etnias Fe- do território quilombola de Retiro e o papel
derais”: O processo de identificação de “rema- dos atores externos: uma análise em ques-
nescentes” indígenas e quilombolas no Baixo tão. Tese (Doutorado). UFF: Niterói-RJ, 2016.
São Francisco. Tese (Doutorado). Rio de Janeiro: CUCHE, Dennys. A noção de cultura nas Ci-
UFRJ/Museu Nacional- PPGAS, 2002. ências Sociais. São Paulo, EDUSC, 2002.
BARTH, Fredrik. O Guru, o iniciador e outras LEITE, Ilka Boaventura. Terra, território e ter-
variações antropológicas. R J: Contracapa, ritorialidade: três dimensões necessárias ao en-
2000. tendimento da cidadania do negro no Brasil. In:
BERTAUX, Daniel. Narrativas de vida: a pes- Seminário América, 500 anos de dominação.
quisa e seus métodos. Edufrn: Natal, 2010. Museu de antropologia da UFSC, 1990.
BRASIL. Constituição Federal. Constituição OLIVEIRA, Osvaldo Martins de. Projeto Políti-
da República Federativa do Brasil: promulgada co de um Território Negro: Memória, cultura e
em 05 de outubro de 1988. 19 ed. Brasília: Câ- identidade quilombola em Retiro, Santa Leopol-
mara dos Deputados, Coordenação de Publica- dina - ES. Ed. Milfontes, Vitória, 2019.
ções, 2002.

106
Osvaldo Martins de Oliveira
Mestre e Doutor em Antropologia Social, pro-
fessor no Departamento e no Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais, coorde-
nador do projeto de pesquisa “Africanidades
Transatlânticas: história, memórias e culturas
afro-brasileiras”, vice coordenador do grupo
de pesquisa “Educação para as Relações Ét-
nico-Raciais e Identidades Afro-Brasileiras”
(registrado no Diretório de Pesquisa do CNPq),
pesquisador filiado ao Núcleo de Estudos Afro
-Brasileiros (NEAB) da Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES), pesquisador associado
ao Comitê Quilombos da Associação Brasileira
de Antropologia (ABA) e ao grupo de pesquisa
do NUER (Núcleo de Estudos de Identidades e
Relações Interétnicas) da Universidade Federal
de Santa Catarina, registrado no Diretório de
Pesquisa do CNPq.

Paula Aristeu Alves


Graduação em Serviço Social e mestrado em
Ciências Sociais . Pesquisadora colaboradora
do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB)
da Universidade Federal do Espírito Santo(U-
FES); pesquisadora do projeto “ Africanidades
Transatlânticas: história, memória e culturas
afro-brasileiras”, credenciado no Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais da UFES.

107
farol

VIVA SÃO BENEDITO! RESISTÊNCIA E EXPERIÊNCIA NA BANDA


DE CONGO AMORES DA LUA DA CIDADE DE VITÓRIA, ES

VIVA SÃO BENEDITO! RESISTENCE AND EXPERIENCE IN THE BANDA DE


CONGO AMORES DA LUA FROM THE CITY OF VITÓRIA, ES

Elisa Ramalho Ortigão


UFES/FAPES

Resumo: A prática tradicional do congo, em especial a Banda de Congo Amores da Lua, do Mestre Ri-
cardo Sales, apresenta alguns elementos que vão ao encontro da filosofia da arte de Walter Benjamin.
A definição do campo do congo apresenta uma disputa de valores. A dialética benjaminiana é usada
para a aproximação pelo lado dos mais despossuídos. O ato performático e os objetos usados no con-
go se aproximam da experiência ancestral. O calendário cíclico congueiro cria uma imagem anacrônica
da contemporaneidade.

Palavras-chave: Walter Benjamin, Patrimônio Imaterial, Congo, Banda de Congo Amores da Lua

Abstract: The traditional practice of Congo, especially the Band of Congo Amores da Lua, by Mestre Ri-
cardo Sales, presents some elements that meet Walter Benjamin’s philosophy of art. The definition of the
field of congo presents a dispute of values. Benjamin’s dialectic is used to approach the side of the most
deprived. The performance act and the objects used in the Congo are close to the ancestral experience.
The cyclic congueiro calendar creates an anachronistic image of contemporaneity.

Keywords: Walter Benjamin, Intagible Heritage, Congo, Banda de Congo Amores da Lua

108
Olha o congo do morro, lá vai observação da arte), surgissem vivos na devo-
São Benedito é meu pai! ção na qual eu me iniciava paulatinamente. Des-
de então, tenho participado de todos os eventos
Introdução da Banda de Congo Amores da Lua, incluindo
Este artigo apresenta um diálogo entre os viagens e encontros de bandas, e construído
campos de saber acadêmicos e tradicionais, meu aprendizado no congo por uma participa-
aproximando o congo, uma prática devocional ção ativa na Banda Amores da Lua, e também
tradicional do Espírito Santo,1 em vias de se tor- pelo contato com outros mestres, além das pes-
nar patrimônio imaterial nacional, dos concei- quisas acadêmicas: o pós-doutoramento em
tos de Walter Benjamin sobre a arte.2 pauta e a pesquisa para a inscrição do congo
Meu contato com o congo começou em 2013, como patrimônio imaterial nacional.4
e, em 2014, ano em que obtive do grau de douto- O congo do Espírito Santo5 é um universo
ra em Literatura Comparada, tornei-me dançari- envolvendo conceitos, atores, objetos e práti-
na da Banda de Congo Amores da Lua, do Bair- cas de louvor a São Benedito, São Sebastião
ro de Santa Martha, em Vitória. Mestre Ricardo e outros santos, cuja expressão se dá por mo-
Sales e seu pai, Mestre Rui Barbosa Sales, foram vimentos, música, canto, dança, sensações e
meus primeiros interlocutores neste (para mim) sentimentos. Entre as margens do Rio Doce e a
novo saber3. Na medida em que meu envolvi- região rural de Guarapari foram identificadas 54
mento com o congo se intensificava, passei a bandas de congo em atividade, localizadas nas
constatar que aqueles conceitos que eram para periferias das sedes dos municípios, ou em seus
mim tão próximos (os conceitos de epifania pela distritos rurais. Na cidade de Vitória, a capital do
estado, existem duas bandas: a Banda de Congo
1 Este artigo apresenta os resultados da pesquisa de De-
Panela de Barro e a Banda de Congo Amores da
senvolvimento Científico e Regional (DCR) e de pós-douto-
ramento desenvolvida no Programa de Pós Graduação em Lua (ORTIGÃO; NAME, 2020).
Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) com A pesquisa foi desenvolvida no programa de
recursos da FAPES entre os anos de 2016 e 2019, intitulada Pós-graduação em Artes da UFES, ressaltan-
Saberes do Congo, Saberes da Universidade. Iluminações
profanas na comunidade populares capixabas.
do a concepção de produção artística como
2 Dedico-me à pesquisa dos conceitos de arte em Walter expressão da memória imaterial de grupos so-
Benjamin desde o Mestrado, na Universidade Federal do Rio
de Janeiro, quando debati O Conceito de Crítica de Arte no 4 Durante o desenvolvimento da pesquisa de pós douto-
Romantismo Alemão. No Doutorado, obtido na Universi- ramento, o professor José Otávio Lobo Name e eu fomos
dade Federal Fluminense, aprofundei-me nos aspectos convidados pela Superintendência do Iphan no Espírito San-
mais epifânicos da estética benjaminiana: o conceito de to a dar continuidade ao processo de patrimonialização do
iluminação profana dado pela apreciação de algumas obras bem, e produzimos, em uma parceria do Iphan-ES e a UFES,
de arte, que aparece em seus escritos Onirokitsch. Glosa o dossiê Congo do Espírito Santo: Celebrações e Formas de
sobre o surrealismo e Surrealismo: Último instantâneo da Expressão (2020), e vídeos de longa e curta metragem da
Inteligência Europeia. pesquisa para a patrimonialização do congo, que se encon-
3 Todas as interpretações dos rituais e saberes do congo eu tra agora em tramitação.
aprendi com Mestre Ricardo, em um aprendizado de inicia- 5 Esta nomenclatura, congo do Espírito Santo, não reflete
ção e de discussão conceitual. Minha experiência pessoal e como os congueiros denominam a sua cultura, chamada
as pesquisas para a FAPES e Iphan demonstram claramente somente “congo”, mas foi adotada a título de caracterização
que existem outras interpretações, dentro da diversidade de geográfica pela Pesquisa com Vistas a Inscrição do Congo
expressões das bandas de congo. demonstram claramente como Patrimônio Imaterial Nacional por recomendação
que existem outras interpretações, dentro da diversidade de pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional -
expressões das bandas de congo. IPHAN. (ORTIGÃO e NAME, 2020).

109
farol

ciais. Para Aparecido José Cirillo, são “(...) mais mônio cultural, recusando os termos redutores.
que saberes e fazeres humanos, a cultura, como A seguir, observaremos como o apagamento
memória dos sujeitos e da cidade, se manifesta do congo na sociedade está conectado com as
indicialmente em signos materiais e imateriais.” estruturas de poder e apresenta os aspectos da
(CELANTE e CIRILLO, 2013, p.133), perspectiva tradição benjaminiana, demonstrando que o
em que a cultura imaterial pode ser tomada ato performático do congo o aproxima da expe-
como monumento e patrimônio geográfico, seja riência ancestral, e alcança uma epifania religio-
o espaço de atuação urbano ou rural. sa. Por fim, na última parte, apresentarei a visão
O bem imaterial é definido por um conceito de Walter Benjamin do fazer artístico tradicio-
recente, cuja discussão remonta à década de nal, por meio do arquétipo do ancião, detentor
1970, e culmina na Convenção da UNESCO para do saber comunitário e coletivo, e o conceito
o Patrimônio Imaterial, firmada já no século XXI de suspensão do tempo linear pelo irromper do
Neste documento, o protagonismo das comu- tempo-de-agora (Jetztzeit), relacionando-os,
nidades indígenas e tradicionais na criação e respectivamente, à atuação do Mestre e ao tem-
manutenção dos bens imateriais é plenamente po cíclico do calendário congueiro.
reconhecido, assim como as ameaças que este
povos sofrem das hegemonias político-econô- O conceito de cultura: campo de batalha en-
micas. (UNESCO, 2003, p. 3). Para se entender tre vencedores e oprimidos
o lugar do congo na sociedade, partiremos do Quando o sentido da palavra cultura deixou
lugar que a sociedade reserva ao congo e de- de ser agrário, ela virou instrumento de opres-
monstraremos como a representação do congo são. Primeiramente, tomemos seu sentido eti-
nega o seu direito de existência, em um proces- mológico, que provém da agricultura: culter, la-
so de exceção no discurso. tim para “cultivar a terra”. Pode-se depreender
Walter Benjamin apresentou em sua obra, no deste sentido prático que cultura é produzida
início do século XX, uma distinção entre mundo pela ação humana sobre a natureza. Nessa li-
arcaico, pré-capitalista e pré-moderno, com nha, o conceito de cultura não está em oposi-
sua produção artística calcada na experiência ção ao conceito de natureza, mas, antes, cultura
ancestral e aurática, e o conceito de arte inse- e natureza se completam, pois a cultura modifi-
rido na lógica burguesa reificada, que viria mol- caria a natureza. É através da cultura que a na-
dando os gostos desde o século XVI. Ao logo da tureza poderia ser conhecida e transformada. O
pesquisa, eu pude observar outra concepção conceito de cultura como distinção dos grupos
da contemporaneidade costurada à sensibilida- humanos surge no início da era cristã, e se di-
de arcaica e anacrônica da expressão do congo. funde sob a perspectiva da dominação romana.
As expressões estéticas envolvidas na manifes- Posteriormente, com expansão marítima co-
tação do congo não se adéquam às definições lonial, o contato entre sociedades diferentes
do campo social da arte contemporânea, mas passa a ser mais intenso a partir o século XVI. O
podem ser entendidas se observadas lado a colonizador promovia a cristianização forçada
lado com os conceitos de Benjamin sobre a arte dos gentios, usando este discurso civilizatório
tradicional. para justificar a escravidão e a extração de ri-
O artigo se divide em três etapas: iniciamos quezas. A empresa bélico-comercial europeia
com o debate acerca da nomenclatura do patri- era assim mascarada como ação civilizatória,

110
justificando a toda a forma de violência contra a cultura popular, mas a classifica por uma esca-
hábitos e ritos autóctones, ao lado de toda a la de valores positivos, na qual o mais nobre e
escravidão e expropriação. Cultura, neste con- racional se encontra na cultura erudita, e o mais
texto, aparece em oposição à barbárie, da qual primitivo e irracional serão características do
os selvagens seriam resgatadas pela empresa folclore e do povo. O popular está em uma ca-
colonial cristã. tegoria inferior à cultura erudita. Este interesse
O questionamento do suposto caráter civi- pela “alma popular” (que já aparece classifican-
lizatório da empresa colonizadora se acirrou a do-a como inferior e fadada ao esquecimento)
partir do século XVIII, com o conceito rousseau- se concretiza na palavra folclore. Segundo o
niano de bom selvagem. Contemporâneo a Rou- The American Heritage Dictionary (1994), o ter-
sseau, na vizinha Alemanha, floresce o conceito mo inglês folklore refere-se às “crenças, lendas
de Kultur, a alta cultura europeia, marcada pela e práticas tradicionais de um povo, transmitidas
Bildung, o conceito de educação humanista oralmente”8 (p. 491).
clássica, que visava formar o homem culto. A No Brasil do início do século XX, o pensamen-
cultura passa a ser um elemento de distinção de to que forjou as ações relativas ao folclore partia
classe social. da necessidade integralista de criação de uma
Em meio a esta crença positivista na possi- identidade nacional, e visava proteger as cren-
bilidade de aprimoramento humano, surge um ças, lendas e práticas populares do iminente
novo conceito para sustentar as transforma- desaparecimento frente às forças civilizatórias9.
ções sociais da época Volk, tal como descreve o Este é o cerne do conceito de folclore: ele está
verbete no Deutsches Wörterbuch von Jacob und sempre em fase de desaparecimento frente à
Wilhelm Grimm (2019). O termo já existia em ale- modernização. É uma ideia totalizante que não
mão como definição de “exército” ou “tropa”6, enxerga o potencial renovador das culturas. Pa-
mas o conceito atual de Volk como povo surge ralelamente a isso, a ideia de culturas plurais e o
somente a partir do século XVIII. O dicionário as-
sinala o caráter filosófico e estético do “conceito 8 Tradução nossa
9 A visão do progresso inexorável que ameaçaria as culturas
de povo como a origem do bem poético mais tradicionais está ligada ao estabelecimento dos estudo do
valioso”7 (Grimm, 2019). O conceito de espírito folclore, mundialmente, também à história da antropologia:
do povo é definido pela mesma obra como a os museus etnológicos, a antropologia de gabinete, etc. Os
chamados antropólogos de gabinete partilhavam com os
reunião dos “modos de pensar e de sentir de um
folcloristas a convicção de que estas culturas iriam acabar,
povo”. o que não deixa de ser a perspectiva de Walter Benjamin
A partir do século XVIII, aumenta bastante o frente à modernidade. No prólogo dos Argonautas do
Pacífico Ocidental, Malinowski afirma que: “A etnologia
interesse sobre aquilo que pertence ao povo
encontra-se em situação tristemente cômica, para não dizer
(Volk) e a descoberta de uma alma popular na trágica: no exato momento em que começa a por em ordem
literatura, mas com um posicionamento que seus laboratórios, a forjar seus próprios instrumentos e a
opõe a cultura do povo (Volk) e a cultura erudi- preparar-se para a tarefa indicada, o objeto de seus estudos
desaparece rápida e irremediavelmente. Agora, numa época
ta. A visão eurocêntrica do conceito de cultura em que os métodos e objetivos da etnologia científica
como o ideal da formação humanista reconhece parecem ter se delineado; em que um pessoal adequada-
mente treinado para a pesquisa científica está começando
a empreender viagem às regiões selvagens e a estudar seus
6 Tradução nossa habitantes, estes estão desaparecendo ante nossos olhos.”
7 Tradução nossa (MALINOWSKI, 2018, p.47).

111
farol

seus direitos à existência se opõem ao conceito ou contemporâneo, o que não coloca o tradicio-
de unidade nacional. nal em uma escala de valores positivistas.
A UNESCO foi criada, em 1948, como iniciativa
de proteger o patrimônio intelectual da huma- Walter Benjamin e São Benedito: a tradição
nidade (europeizada), cuja existência foi seria- dos oprimidos
mente ameaçada na Segunda Guerra Mundial; A visão benjaminiana da cultura coloca o seu
e, dentro deste pensamento, a proteção aos olhar dialético ao lado dos vencidos. “Para in-
folclores nacionais foi grande prioridade, tendo tegrar a cultura na história da luta de classes,
estimulado a criação da Comissão Nacional do é preciso se colocar desde uma perspectiva re-
Folclore e das Comissões Estaduais, ainda no volucionaria/crítica, alimentada pelas imagens
mesmo ano.10 dos “ancestrais escravizados” e das “gerações
Reconhecer as diferenças entre as culturas faz derrotadas” (tese XII)”. (LOWY, 2011, p. 24/25).
ruir o conceito unificador de povo (“uma terra, Essa é a perspectiva do escovar a história a con-
um povo, uma nação”) e deixa evidente o prota- trapelo. De acordo com Siegrid Weigel (1997), é
gonismo das minorias, dos grupos étnicos e das necessário ver mentalmente as imagens descri-
expressões tradicionais. “Pluralizar o conceito tas por Benjamin para que o referente linguísti-
de cultura não é facilmente compatível com a co alcance seu significado. A imagem é bastan-
manutenção de seu caráter positivo.” (EAGLE- te rica: escovar a contrapelo é como se devem
TON, 2003, p. 28). escovar os cães, ao sol, tornando visível o que
O termo “cultura popular” que estava presen- acontece sob o pelo: a pele do animal, onde vi-
te no título da pesquisa também precisou ser vem pulgas e carrapatos. Nesta dialética, então,
analisado e suas ambiguidades reveladas. Po- é preciso revirar o edifício histórico burguês de
pular está em oposição ao erudito, numa rela- ponta cabeça, revelando os que foram esmaga-
ção de valor que lhe é desfavorável. Além disto, dos pelas suas fundações.
o termo se confunde com a cultura de massas Aquilo que Walter Benjamin chama de “bem
(cultura pop). Em retrospecto, gostaria agora de cultural”,11 na tradução de Michel Löwy, ou “pa-
ter substituído o termo popular por tradicional: trimônio cultural”, na tradução de João Barren-
“Saberes do congo, Saberes da Universidade. to, é a tradição dos vencedores. Benjamin diz
Um estudo sobre a iluminação profana em co- que “não há documento de cultura que não seja
munidades tradicionais capixabas”. Aquilo que ao mesmo tempo um documento de barbárie”
está em oposição ao tradicional é o moderno, (BENJAMIN, in LOWY, 2005, p. 70). Todo bem cul-
tural material é testemunho de um passado glo-
10 No Espírito Santo, o folclorista Guilherme Santos Neves
rioso que sobrevive ao tempo, e, como assinala
afirma que vê no folclore um “poderoso elo que (este sim!)
integra a nossa terra e a nossa gente à gente e à terra de Cecília Londres, inaugurando o debate sobre
toda a imensa vastidão nacional” (NEVES, 1977, p. 9). O que os dois tipos de patrimônios, os monumentos
interessa ao folclorista é a correspondência com a “alma de pedra e cal: “... são testemunhos materiais
nacional”. A forma de descrição dos aspectos do congo feita
pelo folclorista são em uma linguagem que, apesar de pare-
imponentes, tanto do ponto de vista da ocu-
cerem simpáticas às práticas, não disfarça a negação, aos pação e da permanência no espaço da cidade,
conguistas, do papel de produtores de cultura. No discurso
do folclorista, somente a exterioridade do rito é levada em
conta, e para ele, as Bandas de Congo “são grupos de ho- 11 No original: Kulturgüte, in Benjamin, Gesammelte Schrif-
mens rudes com rudes instrumentos” (NEVES, 1977, p. 58). ten, Frankfurt aM: Surkamp, 1991. Band I 3, p.697.

112
quanto dos padrões estéticos hegemônicos...” tórico poderá distinguir entre “aqueles que, até
(LONDRES, 2009, p. 59). Por sua vez, os bens hoje, sempre saíram vitoriosos, [e] integram o
imateriais raramente estão ligados a um passa- cortejo triunfal (...)”, do espólio que desfila como
do glorioso que impõe sua história no tempo; “patrimônio cultural” (BENJAMIN, 2012. p.12). O
ao contrário, o bem imaterial pertence àqueles procedimento dialético proposto por Löwy re-
que são alijados da narrativa social, sempre per- solve o problema d a acusação que Benjamin
dendo em seus momentos históricos (UNESCO, faz à empatia. Olhar a contrapelo é confrontar-
2002, p. 3). se com a barbárie do processo histórico.
As tradições imateriais que existem atualmen- Nesta ação, a cultura tradicional apresenta
te no Brasil trazem um testemunho dos ante- uma relação com a arte e com o fazer artístico
passados de seus agentes. Não é o testemunho que é alheio à arte institucionalizada. Para Mi-
de um passado glorioso, mas de um passado chel Löwy, este é o momento da consciência do
escravizado. Para Benjamin, este seria o saber caráter fetichista da arte aceita como tal. “Esta
necessário ao historiador marxista. O historia- postura implica igualmente a necessidade de se
dor da cultura, movido por uma perspectiva apreender o momento em que interferem vários
etnográfica, poderá perceber na produção cul- fenômenos, a criação dos produtos e seu feti-
tural dos grupos marginais os movimentos de chismo, a reificação que encontramos na cultu-
resistência à cultura hegemônica, de modo que ra oficial da sociedade burguesa” (LOWY, 2011,
a cultura tradicional se torna o repositório da re- p.25). A cultura tradicional do congo coloca em
sistência à reificação total da arte. evidência o fetiche cultural das elites ao escapar
No entanto, o que Benjamin propõe é que dos processos de reificação, impondo ao tempo
nesse voltar-se aos despossuídos deve ser evita- contemporâneo aspectos que relaciono a uma
do o método da empatia, que tem suas origens, concepção arcaica da arte na última seção des-
“na indolência do coração, a acédia, incapaz de de artigo.
se apoderar da autêntica imagem histórica que Se o congo é expressão estética tradicional,
subitamente se ilumina” (2012, p.12). Essa me- e, na perspectiva dialética de Walter Benjamin,
lancolia recusa a imagem histórica dos despo- é também a representação do espoliado, é, por
jos da barbárie, tratando com condescendência isso, o campo estético onde acontecem as dis-
aquilo que, no fundo, despreza; a empatia aos putas de poder. As instâncias reguladoras da
despossuídos serve aos poderosos. relação entre poderes que moldam a relação
O método da empatia se manifesta em uma dos sujeitos com o mundo, conforme os con-
melancolia regressiva, “é um procedimento ceitos de Foucault e Agamben, são dispositivos
de identificação afetiva” (BENJAMIN, in LÖWY, (AGAMBEN, 2014), que seria operada pelo des-
2005, p.70). A empatia é a instância que garan- possuído. É do confronto com essas forças que
te que a identificação se dê pela perspectiva da se dá a formação do sujeito: “É sempre na rela-
classe dominante. O pesquisador benjaminia- ção que se dá a criação do sujeito. Para Foucault
no Michel Löwy (2011) aponta para a dialética é “em face de um poder, que é lei, o sujeito que
do procedimento de aproximação a contrapelo é constituído como sujeito – que é ‘sujeitado’ – e
proposto por Benjamin para lidar com a cultura aquele que obedece.” (idem, p. 93).
da barbárie, tornando evidentes os processos O dispositivo é, portanto, a instância que sur-
de exploração. A contrapelo, o materialista his- ge “do cruzamento de relações de poder e de

113
farol

relações de poder” (AGAMBEN, 2014, p. 25), con- menosprezando seus aspectos devocionais. O
gregando as “práticas e mecanismos” (idem, p. discurso que é construído sobre o congo se en-
32) sociais e históricos, como a língua, as lingua- contra naquilo que foi denominado por Walter
gens, os estatutos jurídicos, políticos e militares Benjamin de estado de exceção: a regra de ex-
que dão forma a atuação do poder, seja pela clusão que nega ao congo sua visibilidade e sua
forma que o poder oprime e ordena os sujeitos, existência plena.
ou a forma que os sujeitos se organizam perante O estado de exceção é o conceito do discur-
os poderosos. A confrontação com o poder é re- so sem referente, o discurso onde não existe a
alizada pela subjetividade, pelas formas como o contextualização. Uma fala que se opõe àquilo
indivíduo se reconhece e se expressa. que nomeia, relegando-o ao estado de exceção
Nessa relação entre o sujeito e o poder, o dis- do sem nome: “o estado de exceção é um es-
positivo poderá tanto representar os interesses paço anômico onde o que está em jogo é uma
de um ou de outro, na medida em que é mais força-de-lei sem lei” (AGAMBEN, 2003, p. 61). A
ou menos consciente, ou, se usarmos a termino- força que opera sobre o anômico é chamada
logia de Agamben, ele pode ser mais teológico por Agamben de força “mística”, que o coloca
ou mais profano (idem, p. 45). O filósofo italia- como ficção, já que não se pode reconhecer a
no denomina como teológico as instâncias de realidade de sua existência: “uma fictio por meio
controle inacessíveis ao sujeito. E profano, ao da qual o direito busca se atribuir sua própria
contrário, seriam os dispositivos manipuláveis anomia” (idem, p. 61). O conceito de estado de
pelos sujeitos, aqueles que estão ao seu alcan- exceção está presente no universo do congo na
ce. O sujeito é quem tem controle sobre um dis- maneira como todas as instâncias externas re-
positivo. O congo e a fé em São Benedito, mes- ferem-se a ele. Mídia, poder público, academia
mo sendo práticas devocionais, são articulados e entidades sociais criam imagens do congo
pelos congueiros, constituindo um dispositivo como “festa”, “agente cultural”, “cultura popu-
profano de resistência. lar”, “música”, “dança dramática” etc., termos
Essa resistência dos congueiros se traduz nas distantes da expressão dos congueiros em suas
dificuldades vencidas para manter o congo. O devoções. Assim, a lei que rege o congo é a lei
Mestre Ricardo Sales mantém a sua banda sem suspensa, aquela que não existe, e que afirma
apoio do poder público e realiza os festejos da positivamente a não existência do objeto refe-
Banda Amores da Lua somente com o trabalho rente, ainda que seja sempre proferida dentro
e doação dos devotos. O preconceito contra o de um discurso amigável e protetor.
congo e os congueiros se manifesta na estru-
tura social capixaba. O conceito de estado de
de Roda D‘Água de 2017, realizado no dia de N. S. da Penha,
exceção confere um modelo do funcionamento padroeira do Estado, a repórter do programa Em Movimento,
do preconceito e da valoração negativa a que o da TV Gazeta, repetidora local da Rede Globo, após ouvir, de
congo é submetido. mestres e conguistas, depoimentos que relatavam os valores
da tradição e da devoção, dos laços comunitários e familiares
O congo tem uma relativa exposição na mí- que unem os presentes, insiste, em suas intervenções, na
dia, mas esta exposição é superficial e, muitas palavra „carnaval“, fazendo referências ao samba e à mera
vezes, o bem é mostrado como um carnaval,12 diversão. (Matéria disponível em http://gshow.globo.com/
TV-Gazeta-ES/Em-Movimento/videos/t/edicoes/v/em-movi-
mento-cultura-tradicao-e-folclore-no-carnaval-de-congo-e
12 Em uma matéria sobre o Carnaval de Máscaras de Congo -mascaras-em-cariacica/5834948/. Acesso em: 18/02/2019).

114
Tradição e suspensão do tempo quétipo do marujo que conhece o mundo e as
O congo realiza um cortejo performático, mas tradições longínquas; e do outro está o mestre
a relação com a religiosidade não está presente de corporações, conhecedor das tradições anti-
só neste momento. O sincretismo é uma prática gas e dos costumes da comunidade (BENJAMIN,
de vida, com tomadas de posições éticas e esté- 1994, p. 199).
ticas, que participa em todas as esferas de vida A experiência tradicional era feita por um tipo
dos sujeitos. Como prática de vida, também se de narrativa que desaparece no mundo moder-
aproxima do conceito de Weltanschaung. Nesta no; em seu lugar, Walter Benjamin vê o cresci-
visão de mundo peculiar, a vida não está somen- mento da vivência de choque. No texto benja-
te pautada pelas relações sociais que regem o miniano, o narrador é descrito pelo arquétipo
trabalho, a família e o indivíduo, mas também do mestre de oficio, conhecedor das tradições
pela relação com os antepassados e pela fé comunitárias e que confere sentido para todas
nos Santos. Mas esta fé no Santo não se filia à as práticas da vida. O mundo contemporâneo,
denominação católica, ou qualquer instituição a vida administrada e as relações reificadas não
religiosa; é, antes, a certeza de que o Santo permitiriam mais este tipo de experiência, mas
participa da vida. São as forças ancestrais que somente o seu similar, proporcionado pela vi-
interferem no mundo e guiam as decisões mo- vência de choque. Mas o narrador clássico pode
rais e éticas, e, neste aspecto, a fé nos Santos do ainda persistir contra o avanço da modernidade
congo é semelhante à fé nos Orixás. em alguns nichos onde a cultura tradicional está
Se a Banda de Congo Amores da Lua chama viva, a exemplo dos povos indígenas e, como
a atenção pela beleza das suas vestimentas e proponho, da cultura tradicional do congo. A
por sua performance organizada é porque, para cultura congueira mantém, em suas comunida-
o mestre, a devoção está em todo o conjunto des, relações nas quais reconhecemos a estru-
performático. A exuberância da banda está lon- tura ancestral necessária à permanência da ex-
ge de ser uma visada mundana carnavalesca ou periência antiga, as relações semelhantes com
mercantil da tradição; é antes uma necessida- a morte, a sabedoria ancestral, o saber comu-
de da fé e do compromisso de Ricardo com os nitário. Além das práticas cotidianas, a cultura
Santos e as tradições do congo. Este mergulho congueira é toda marcada por uma vasta gama
na tradição traz à tona o anacronismo da exis- de toadas que guardam as relações de trabalho,
tência de uma experiência autêntica da banda devoção, amor e despedida.
no tempo histórico em conflito com a contem- O Mestre do Congo é o guardião da tradição,
poraneidade. Benjamin apresenta a experiência o conhecedor da sabedoria ancestral, que não
tradicional por dois arquétipos narrativos na está limitada só aos costumes do tempo his-
imagem do narrador.13 De um lado está o ar- tórico da banda, mas também é embebido na
sabedoria de São Benedito. No sincretismo do
13 O texto benjaminiano “O narrador, considerações sobre a congo, o Santo participa da linhagem dos Pretos
obra de Nikolai Leskov”(1994) foi recentemente relançando
com tradução do professor João Barrento como “o contador de
Velhos, os espíritos mais antigos que habitam a
histórias” (2019) de modo a “ir ao encontro de toda a intenção terra e que transmitem sua sabedoria a homens
do ensaio de Benjamin” (2019, p.136, nota 142). Este “novo” valor e mulheres14. Os mestres de congo, guardiões da
do texto efetivamente esclarece sobre o desaparecimento de
um modo de acesso à memória coletiva que paulatinamente é
substituído pela primazia do indivíduo em todas as instâncias. 14 Este ensinamento me foi passado pelo Mestre Ricardo Sales.

115
farol

sabedoria ancestral dos Pretos Velhos, seriam ce ao longo do século XIX, a inserção da arte e da
uma atualização dos narradores, aqueles que cultura na lógica da mercadoria cria a figura do
transmitem a experiência coletiva. artista que Benjamin reconhece como flâneur.
A experiência ancestral surge quando a indi- Ricardo Sales rejeita a lógica mercantil e nega
vidualidade do mestre é esquecida, tal como o para a sua banda a inserção no mercado, em
oleiro benjaminiano que mergulha a sua mão no um ato de resistência política e à própria mo-
barro ao mesmo tempo em que a memória invo- dernidade. Na obra benjaminiana, Baudelaire
luntária traz o conhecimento coletivo (idem, p. é o flâneur daquela Paris que está em processo
205). Cada geração de mestre deixa a sua marca de modernização para o capitalismo avançado,
na banda, como o narrador sabe deixar a sua e incorpora, em suas traduções de Edgard Allan
marca na narrativa (idem, p. 205). A suspensão Poe, o método do romance policial. É a figura
do tempo instituído nas saídas de congo leva a urbana, conhecedora da cidade onde se move
banda a uma experiência mística. Não só o mes- com fluência, afinal, a cidade é o seu espaço
tre, mas todos, como um sujeito coletivo, pas- vital expandido (BENJAMIN, 2015, p. 28). Este
sam a conviver ali com os seus antepassados. contato intenso com a cidade não existe para
O rito de preparação para a performance, o nosso personagem principal, Ricardo Sales.
chamada de saída de congo, leva os sujeitos a Apesar de jovem, sua vida é de meditação, e as
uma outra ordem que permite o abandono de pessoas a sua volta são a família e os integran-
suas individualidades e o mergulho na expe- tes da banda de congo. Ao contrário do flâneur,
riência coletiva. Iniciando a preparação para que foge da solidão, ela é seu elemento natural.
as saídas, o mestre veste cada dançarina, colo- Este tédio vivido por Ricardo está em oposição à
ca seus colares, pulseiras e anéis, sua coroa, e vivência de choque do flâneur. Para Benjamin “o
aprova seu penteado. É um ritual que exige tem- tédio é o pássaro de sonhos que choca os ovos
po e concentração: uma a uma as dançarinas da experiência” (1994, p. 204): a solidão, a medi-
se transformam em peças da performance. O tação e o tédio oferecem ao jovem mestre a an-
abandonar-se ao tempo da experiência não é só tiga experiência, como uma experiência estética
uma metáfora literária, mas é um abandono do autêntica, que traz consigo a “substância viva
próprio corpo, o mergulho em um tempo ances- da existência [que] tem um nome: sabedoria”
tral é também o mergulho no incorpóreo como (idem, p. 200) e ele não precisa da cidade como
sujeito coletivo. Ao final da preparação, as rezas espaço vital.
chamam a proteção dos Santos que acompa- A cisão entre o congo, como expressão da ex-
nharão todo o percurso. Reza-se, sob o coman- periência tradicional estética, e o flâneur, ícone
do do mestre, um Pai Nosso, algumas Ave Maria, da modernidade, perpassa também a sua esfera
o Credo, a oração do Anjo da Guarda e a ladainha da falta de interiorização. O flâneur se mostra,
dos Santos Protetores. A partir deste momento, ele é só superfície. Entre os congueiros, aqueles
e até o regresso, os Santos protegem o grupo. que nasceram na tradição a conhecem, os no-
Este tempo anacrônico que funde o passado vos membros devem ter paciência, e aprender
e o presente na periferia urbana capitalista do pela observação ao longo dos anos. Retornamos
século XXI é a chave para a negação da mercan- à característica do narrador tradicional benja-
tilização da performance da Banda. Nos termos miniano que nada explica (1994, p. 204): o leitor
da produção cultural e artística que se estabele- entenderá a partir de suas próprias experiências.

116
O flâneur se exibe por ser mercadoria: “o flâ- riência estética coletiva da repetição do mito
neur que se dirige ao mercado dizendo a si mes- fundador17. Os congueiros têm a consciência do
mo que vai ver o que se passa: mas na verdade mito, a história não precisa ser verdadeira, pois
já anda a procura de comprador” (BENJAMIN, sabem que o verdadeiro valor é a crença no po-
2015, p. 39). Para Ricardo, o congo não é merca- der dos santos. A experiência estética da repre-
doria, não é espetáculo de entretenimento; ao sentação não é a repetição histórica - uma vez
contrário, é a tradição dos antepassados, a fé, a que muitos congueiros não acreditam na lenda
ética e estética na qual ele se criou. Esta certe- -, mas é a representação da fé.
za em não ser mercadoria o leva, por exemplo, Se o flâneur precisa da cidade para sobreviver
a se recusar a participar dos editais dos órgãos e dela tirar todo o seu material, o congo precisa,
oficiais de cultura específicos para a cultura mesmo em uma cidade, retornar às origens. Na
popular. Concorrer a um edital é, para ele, uma Banda de Congo Amores da Lua, a cada ano um
afronta à tradição, pois o congo não pode se novo mastro é cortado. Esta cerimônia, a Cor-
submeter à avaliação de uma comissão julgado- tada, rememora o mastro do mito inaugural e
ra. Ou seja, Ricardo prefere abrir mão das únicas se dá no dia de Nossa Senhora da Conceição.
fontes de recursos oficiais do poder público a No sincretismo, Nossa Senhora da Conceição
ferir a integridade do congo. é Oxum, divindade que rege as chuvas e ciclos
A multidão das cidades leva o flâneur ao transe, da natureza. A Banda vai até a mata, nesta fran-
“penetra-o como um narcótico que o compensa ja urbana, escolhe uma árvore que se tornará o
de muitas humilhações. O transe a que se entre- Mastro de São Benedito e a carrega em cortejo
ga o flâneur é o da mercadoria exposta e vibrando até a casa do Mestre para a preparação simbóli-
no meio da torrente de compradores” (BENJAMIN, ca. Nessas ocasiões não é só o grupo como um
2015, p.57). O transe que acomete o grupo durante sujeito coletivo que participa da performance,
a saída de congo é de ordem mística, dado pela mas também os antigos estão ali presentes: o
música, pela dança e pela fé. A toada Congo Velho sujeito coletivo é expandido no tempo, fazendo
demonstra a função do congo como o louvar dos com que a repetição da representação do rito
Santos, que acompanham a banda. chame para o grupo a presença dos espíritos
Congo velho aqui chegou, chegou para brincar dos antigos conguistas e mestres. Benjamin
Eu vim louvar São Benedito e o povo do lugar apresenta a imagem de Kairos em sua quinta
Amores da Lua chegou agora, chegou com- tese Sobre o conceito de história. (BENJAMIN,
Deus e Nossa Senhora 15/16 2012, p.11). Kairos é o instante oportuno, um
tempo capaz de inverter o percurso do progres-
A festa (brincar) não prescinde do sagrado so, interrompendo o tempo contínuo e vazio de
(louvar) e o grupo, como um corpo coletivo,
compartilha de uma experiência ancestral. Nas 17 Segundo a narrativa mítica, em meados do século XIX,
festas de congo, o transe é causado pela expe- um navio negreiro naufraga na costa do Espírito Santo, os
escravos, amontoados no convés, rezam a São Benedito,
pedindo por um milagre que os salve. O Santo faz então com
15 Toada composta pelo finado Carlos Azevedo da Banda de que o mastro central se descole de seu casco, tombando so-
Congo Amores das Lua bre a embarcação. Os negros se agarram a ele e, flutuando
16 As toadas me foram ensinadas pelo Mestre Ricardo Sales, sobre as ondas, conseguem chegar salvos a praia. A partir
da Banda de Congo Amores da Lua e obedecem à variação do ano seguinte ao naufrágio, os sobreviventes instituem a
cantada por esta banda. representação do feito milagroso em louvor ao Santo.

117
farol

Chronos que se repete em uma novidade super- O mito anula o devir da história e é atualizado
ficial. A Cortada institui o Kairos, o tempo fecun- no rito. São Benedito surge como um renovador,
do que sempre retorna. e a sua história como um eterno presente.
O último bastião da experiência é a morte, Senhor São Benedito, o seu rosário cheira,
que confere sentido à vida, trazendo consigo Cheira a cravo, cheira a rosa, cheira a flor de
uma lição moral: o compromisso com o congo laranjeira.
é também dado pela morte, de pai para filho. Ele foi cozinheiro, nos tempo do cativeiro.
Como na parábola de “Experiência e pobreza” Hoje em dia ele é santo, ele é santo verdadeiro.
(BENJAMIN, 2012, p. 85), é no leito de morte que
surge a obrigação da continuidade da sabedoria
congueira. Para muitos congueiros, a obrigação É a visão de que o santo se libertou de seu cati-
foi passada no leito de morte do pai, e como veiro entre os brancos e opera, hoje, milagres aos
vontade derradeira, não se pode deixar de se- seus devotos. Esta imagem de um santo padroei-
guir. A obrigação dos descendentes é não deixar ro dos necessitados e humildes, que os ajuda na
a tradição se perder. libertação da escravidão parece estar imbuída da
O mestre nasce já preparado para a sua mis- visão do messias. No “Fragmento teológico-políti-
são, que se concretizará com a morte do ancião. co” (2012), Benjamin define o messias como aque-
A herança espiritual é passada de pai para filho, le que interrompe a história levando a uma ação
avô para neto ou tio para sobrinho. As mulheres messiânica: “Só o próprio Messias consuma todo
também participam da linha sucessória. O novo o acontecer histórico, nomeadamente no sentido
mestre herda não só a banda, mas também as de que só ele próprio redime, consuma, concreti-
entidades espirituais dos antepassados, her- za a relação desse acontecer com o messiânico”
dando, com isso, as obrigações com os Santos. (BENJAMIN, 2012, p. 23). Os planos sagrado e pro-
A autoridade moral dos mortos sobre a vida fano, no sentido que Benjamin dá aos termos, não
marca as principais festas de congo. Durante se cruzam, de modo que o messias tomado como
as festas do calendário congueiro, o tempo pre- sagrado, não poderá levar à revolução marxista:
sente é suspenso, e a fé nos santos e no poder “nada de histórico pode, a partir de si mesmo,
invocador dos tambores, da dança e dos cân- pretender entrar em relação com o messiânico”
ticos traz para o rito, aqui e agora, os espíritos (idem, ibidem). O Messias não conduzirá ao fim da
dos antepassados. O instante é do Jetztzeit, o história, como se fosse uma meta (Ziel), mas a uma
tempo de agora revolucionário de Walter Ben- suspensão de seu fluxo. Somente pela felicidade,
jamin: quando o desejo do passado é realizado afirma Benjamin, a ordem profana poderá interfe-
no presente. “Um tempo no qual se incrustaram rir na esfera do sagrado. De um modo enigmático,
estilhaços do tempo messiânico” (idem, p.20). O ele diz que “a ordem profana do profano é capaz
rito traz o passado para o presente, e esta con- de suscitar a vinda do reino messiânico” (idem, p.
cepção anacrônica do tempo é característica 24). A consciência da transitoriedade, da crença
de seu sincretismo. São os estilhaços do tempo no progresso, deve levar o indivíduo a encontrar
messiânico que permanecem ativos durante o a interrupção da sucessão no tempo, de modo
ciclo do calendário congueiro, garantindo a per- a subverter aquilo que parece ser a “verdade” da
manência, um tempo fecundo da experiência esfera mundana: o devir histórico. Assim, a inter-
tradicional. rupção do tempo histórico pelos ciclos festivos

118
de São Benedito permite sempre o retorno ao congo. O pensamento de Walter Benjamin é am-
ato original, e não se prende a este instante, mas plamente conhecido para as questões da mo-
inicia e finda naquele ato original. Na medida em dernidade e da técnica na contemporaneidade,
que esta interrupção do tempo é marcada pela e amplio também essa instrumentação teórica
celebração, pela total felicidade da devoção que para o conhecimento de uma expressão reli-
existe entre os congueiros na comemoração da giosa contemporânea, porém em choque com
festa do santo, este retorno ao tempo mítico seria, a sua própria contemporaneidade. Em estudos
na visão benjaminiana, expressa no “Fragmento sobre as tradições e culturas tradicionais, recor-
teológico-político”, o momento no qual a ordem rer a filosofia benjaminiana ainda causa alguma
profana pode chamar para si a ordem messiânica: estranheza, mesmo já tendo sido feito anterior-
“...o ritmo dessa ordem do profano eternamente mente.18 Longe de esgotar o assunto, procurei
transitório, transitório na sua totalidade, na sua apontar caminhos possíveis de entendimento
totalidade espacial, mas também temporal, e o de aspectos do congo que, uma vez isolados,
ritmo da natureza messiânica, é a felicidade. Pois estabeleceram uma interlocução com o méto-
a natureza é messiânica devido à sua eterna e total do dialético benjaminiano.
transitoriedade” (idem, ibdem). As seções iniciais deste trabalho definem a
Mas, se Benjamin, após esta constatação, con- pertinência de uma investigação benjaminia-
clui que o messiânico e a consciência do retorno na sobre o congo. A tradição do congo de São
ao mito não poderiam ser alcançadas pela cele- Benedito nos ensina a história revolucionária
bração, só pelo niilismo, é porque para o filósofo dos descendentes dos escravizados, que se
judeu não há outra saída, e só esta consciência mantém como resistência à modernização da
poderia libertá-lo de qualquer apaziguamento mí- cultura como cortejo triunfal. A imagem de São
tico de sua situação extrema. As bandas de congo, Benedito traz consigo uma força utópica contra
por sua vez, como sujeito coletivo que recupera ci- a opressão das forças hegemônicas.
clicamente os momentos de felicidade e celebra- A construção do conceito de cultura deixa
ção. Não há nihilismo, e sim, fé na intervenção dos claro quais forças de poder estão em jogo. Apre-
santos, cenário em que talvez as bandas de congo sentei as formas como o conceito de cultura, de
possam ser vistas como o seu próprio Messias, em povo criador e de folclore estão ligadas a uma
uma pequena e fugaz salvação da vida sofrida de escala de valor, na qual o popular e tradicional
descendentes de escravos e das classes sócias têm valor negativo. Usei o procedimento da
despossuídas. dialética benjaminiana para guiar o questiona-
mento da terminologia que confere ao congo
Reflexões finais sua invisibilidade. O paradoxo desta invisibili-
Ao longo desta pesquisa, pude mesclar co- dade, - realizada através de uma exposição em-
nhecimentos de campos aparentemente distin- pática e condescendente - pode ser analisado
tos, nomeadamente a filosofia da arte de Walter pelo conceito de estado de exceção permanen-
Benjamin e o congo do Espírito Santo, em uma te. Com isso, o processo de silenciamento se
experimentação que encontrou aspectos con- dá especificamente através de um processo de
fluentes de ordem gnosiológica. Adotei, neste
18 Tenho em mente os escritos de Michel Löwy, de 2001,
trabalho, uma perspectiva que me permitiu
sobre processos revolucionários e resistências na América
construir uma ponte entre a filosofia da arte e o Latina, entre outros.

119
farol

produção e reprodução imagens redutoras do ___. “O contador de histórias: reflexões sobre


congo. As instâncias da sociedade constroem, a obra de Nicolai Leskov.” In Linguagem, tradu-
cada uma, um congo que se conforme aos seus ção, literatura (Filosofia teoria e crítica) Trad.
próprios interesses. João Barrento. Belo Horizonte: Autentica, 2019.
A cultura do congo, em especial a da Banda ___. “O narrador: Considerações sobre a obra
de Congo Amores da Lua, sob o comando do de Nikolai Leskov”. In: Obras escolhidas. Magia
Mestre Ricardo Sales, constitui-se como uma e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rou-
forte resistência à lógica da modernidade he- anet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
gemônica. Ao contrário do artista com sua flâ- ___. “Sobre o conceito de história”. In: O Anjo
neurie, que se joga heroicamente na moderni- da história. Trad. João Barrento. Belo Horizon-
dade, a vida do mestre é dedicada, citando suas te: Autentica, 2012.
próprias palavras: “primeiramente a Deus e a CELANTE; CIRILLO. “Função e fruição. Novas
São Benedito, e depois ao congo e à cultura de interfaces do Monumento Público contemporâ-
antepassados” (NAME, 2016). A Banda de Congo neo”. In: Artistas, Autoria e as Práticas Cola-
mantém viva uma experiência ancestral que borativas. Intermeios: São Paulo, 2013.
se torna o bastião da resistência à assimilação EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. Unesp:
da cultura congueira pela cultura hegemônica São Paulo, 2003.
da mercadoria. Em uma evidente paráfrase a GRIMM, Jacob und Wilhem. Deutsches Wör-
Walter Benjamin, podemos dizer que esta expe- terbuch von Jacob und Wilhelm Grimm. Uni-
riência compartilhada irá refletir em outros as- versidade de Tier, 2019. (dwb.uni-trier.de/de/)
pectos da vida, principalmente naqueles onde a LONDRES, Cecília. “Para além da pedra e cal:
experiência ainda tem algo a dizer. por uma concepção ampla de patrimônio cul-
tural”. In: ABREU e CHAGAS (Org.). Memória e
Referências patrimônio. Ensaios contemporâneos. Rio de
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Janeiro: Lamparina, 2009.
Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. 2ª Ed. LÖWY, Michel. “A contrapelo. A concepção
___. “O que é um dispositivo?”. In: O amigo e dialética da cultura nas teses de Walter Benja-
o que é um dispositivo. Trad. Vinicius Nikastro min”. In: Lutas Sociais. São Paulo, nº 25/26 p.
Honesko. Chapecó: Argos, 2014. 20-28, 2010/2011.
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era da ___. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São
sua reprodutibilidade técnica”. In Benjamin e Paulo: Boitempo, 2005.
a obra de arte. Técnica, imagem, percepção. FOUCAULT, Michael. História da sexualida-
Trad. Mariane Lisboa e Vera Ribeiro. Rio de Ja- de. A vontade de saber. Trad. Maria Thereza Al-
neiro: Contraponto, 2016 (a). buquerque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
___. “Charles Baudelaire: um poeta na época MALINOWISKI, Bronislaw. Argonautas do Pa-
do capitalismo avançado”. In: Baudelaire e a cífico Ocidental: um relato do empreendimen-
modernidade. Trad. João Barrento. Belo Hori- to e da aventura dos nativos nos arquipélagos
zonte: Autêntica, 2015. da Nova Guiné melanésia. Trad. Anton P. Carr e
___. “Fragmento teológico-político”. In: O Lígia Cardiere. São Paulo: Ubu, 2018.
Anjo da história. Trad. João Barrento. Belo Ho- MONTEIRO, Mariana. Dança Popular: Espetá-
rizonte: Autentica, 2012. culo e devoção. São Paulo: Terceiro Nome, 2011.

120
NAME, Jo. “O que é meu vem a mim”. Do- turas Portuguesa e Alemã- com foco em Ciência
cumentário em vídeo, 24 min, 2016. Acessível da Literatura, pela Universidade Nova de Lisboa
em: https://www.youtube.com/watch?v=vmDA- (UNL) (1995), em Lisboa, Portugal. Atualmente
XO-Kpa8&t=344s. Em 29/10/2019. desenvolve pesquisa sobre Educação Patrimo-
ORTIGÃO, Elisa Ramalho. Iluminações Profa- nial e conteúdos étnicos raciais.
nas: Transformações do Witz Romântico em
Iluminação Profana Surrealista por Walter
Benjamin. Tese. Niterói, 2014. Acessível em ht-
tps://app.uff.br/riuff/handle/1/8762.
___; NAME, José Otavio Lobo. Congo do Espí-
rito Santo: Celebrações e Formas de Expres-
são. Vitória: Iphan/UFES, 2020. Acessível em:
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sa/md_pesq_documento_consulta_externa.
php?9LibXMqGnN7gSpLFOOgUQFziRouBJ5Vn-
VL5b7-UrE5SPwEfYbaAGSR4YIxEZ7_oif4x7BV-
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patrimônio cultural imaterial. Paris: UNESCO,
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SALES, Ricardo. Conversas gravadas ao longo
do ano de 2016. (Fonte oral. Acervo particular.)
SANTOS NEVES, Guilherme. Folclore Brasileiro.
Espírito Santo. Funarte: Rio de Janeiro, 1977.
THE AMERICAN HERITAGE DICTIONARY. Laurel:
Nova Iorque, 1994.

Elisa Ramalho Ortigão


Pós-doutorado pelo Programa de Pós Gra-
duação em Artes do Centro de Artes, UFES com
pesquisa DCR financiada pela Fapes/CNPq no
Centro de Artes, UFES com pesquisa sobre o
congo do ES. Doutora em Literatura Compara-
da pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
com pesquisa sobre Walter Benjamin (2014), e
mestre em Ciência da Literatura, com área de
concentração em Teoria Literária, pela Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (2009).
Possui graduação em Letras - Línguas e Litera-

121
farol

BENJAMIN DE OLIVEIRA: PALHAÇO NEGRO NO SALÃO DO BRANCO


BENJAMIN DE OLIVEIRA: THE BLACK CLOWN AT THE WHITE HALL

José Luiz Ligiéro Coelho


PGGAC-UNIRIO / PPGAC-UFAC

Resumo: O artigo relata o processo de montagem de um espetáculo teatral sobre Benjamin de Oliveira,
o primeiro palhaço negro a ser reconhecido no mundo dos brancos no Brasil. Filho de uma escrava e
de um capataz, Benjamin fugiu com um circo ainda criança, e, após sucessivos trabalhos, se consagrou
como palhaço, dramaturgo, encenador, ator e dono de circo. Além do estudo dos contextos histórico e
político, o processo passou pela vivência de linguagens como o circo-teatro, a palhaçaria, o teatro de
revista, a sátira e o melodrama.

Palavras-chave: Benjamin de Oliveira, palhaço negro, circo-teatro.

Abstract: The article reports the process of setting up a play about Benjamin de Oliveira, the first black
clown to be recognized in the world of whites in Brazil. The son of a slave and a foreman, Benjamin ran
away with a circus as a child, and, after successive work, became a clown, playwright, director, actor and
circus owner. In addition to the study of the historical and political contexts, the process involved expe-
riencing languages such as circus-theater, clowning, magazine theater, satire and melodrama.

Keywords: Benjamin de Oliveira, black clown, circus-theater.

122
Tudo começou a partir da leitura de um texto Eu nunca havia trabalhado com algum mate-
sobre o palhaço negro Benjamin de Oliveira, de rial de João Siqueira. Começamos simultane-
João Siqueira1. Tratava-se de uma peça teatral amente uma pesquisa teórica envolvendo as
inacabada, resultado de uma bolsa de pesqui- questões propostas pelo texto e uma prática de
sa do programa cultural da Fundação Rio Arte2 montagem dentro das atividades acadêmicas
desenvolvida em 1998. Durante os anos de 1970, da UNIRIO no ano de 2007. Cerca de quinze ato-
dividi com João vários momentos na luta por res vieram trabalhar comigo, tendo ainda como
um espaço para o teatro experimental carioca convidada especial a preparadora corporal De-
em reuniões, debates, encontros com o antigo nise Zenícola e, mais tarde, se juntou a nós o
Serviço Nacional de Teatro, depois Inacen e compositor, músico e também especialista em
hoje Funarte. Participavam deste movimento práticas circenses Fernando Neder; e para tra-
outros grupos, entre os quais se destacavam o balhar o espaço, Alexandre Lambert, que era
Asdrúbal Trouxe o Trombone, o Ventoforte, de neste momento aluno regular do curso de ce-
Ilo Krugli, o Hombu de Silvia Aderne e o Tá Na nografia, e uma pessoa de teatro de longa data.
Rua, dirigido por Amir Haddad. Esse contexto Tratava-se de um texto extenso que oscilava
foi determinante para que o antigo Inacen dedi- entre uma obra dramatúrgica e apontamentos
casse exclusivamente para grupos de teatro ex- para uma futura monografia. Suas primeiras
perimental o Teatro Cacilda Becker, que estava quarenta páginas continham cenas completas;
sendo reformado e por nossa interferência foi após isso, o autor ia intercalando descrições
transformado em teatro de arena. 3 de fatos históricos com cenas e terminava com
longas narrações apresentando registros de
1 João Reinaldo de Siqueira (1941-1998) é dramaturgo, ator pesquisas realizadas em diversos arquivos. Pro-
e diretor e pesquisador teatral. Foi, ao lado de teatrólo-
punha-se a ser uma biografia do palhaço negro
gos como Amir Haddad, Augusto Boal e Luís Mendonça,
incentivador de um teatro de forte penetração popular, Benjamin de Oliveira (1870 -1954), desde a sua
promovendo encenações em espaços abertos e não- infância com a família escravizada em Patafu-
convencionais. Fundou o Grupo Dia-a-Dia e participou de fo, atual Pará de Minas, passando pelos seus
importantes companhias como: A Comunidade e o Grupo
Carreta. Recebeu inúmeros prêmios e escreveu peças de
anos de glória como um dos maiores palhaços
grande repercussão. Publicou livros com três das suas obras brasileiros de todos os tempos e avançando
e, ao falecer em 1998, deixou inédito um texto escrito com até os seus últimos dias quando, já cego e po-
apoio do Programa de Bolsas do Rio-Arte, sobre o palhaço
bre, vivia num subúrbio do Rio de Janeiro. Além
negro Benjamim de Oliveira.
2 Fundação RIOARTE, órgão da Secretaria Municipal de da irregularidade da linguagem, muitas vezes o
Cultura/Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. texto desviava da biografia adentrando a ficção,
3 Eram aqueles grupos a quem os jornais chamavam de “ex-
fazendo Benjamin contracenar com outros per-
tra” ou de “outro teatro”, referindo-se às nossas produções
que mais despojadas, preocupadas com um teatro de arte, sonagens de sua época, ou mesmo de época an-
ou um teatro político, ou ambos, e que não dispunham de teriores, sem que houvesse nenhuma referência
recursos federais ou estaduais para grandes montagens, desses encontros na vida real. Outra questão é
chamadas por nós na época de “teatrão”. A verdade é que
muitos colegas de profissão que declaradamente se opu-
que apontava para um engajamento político do
nham ao governo militar, recebiam polpudas subvenções personagem. Assim, o texto ia tecendo uma nar-
para realizarem seus espetáculos comerciais e condizentes
com o status quo. A ditadura realmente disponibilizava
bastante dinheiro para teatro, desde que as peças fossem ligeiras, francesas ou mesmos nacionais. Mas, não é o mo-
amenas e sem cunho político, preferencialmente comédias mento nem o local para levantar esta questão.

123
farol

rativa que colocava o personagem como prota- nos aproximando da vida e da obra de Benja-
gonista de uma resistência cultural voluntária, min, tais cenas, por mais interessantes que pa-
um tipo comprometido com a causa do negro, recessem à primeira vista, soavam como um
inclusive apoiando discursos libertários como teatro atrelado às agendas políticas da época
o feito pelo chamado “Almirante Negro” - João da ditadura, com as quais João Siqueira sempre
Cândido (1890-1969), líder da Revolta da Chiba- esteve comprometido. No nosso caso, se não
ta.4 colocássemos a perspectiva de pesquisa aca-
De qualquer forma, o texto nos fascinava por dêmica em primeiro lugar, talvez pudéssemos
trazer à vida este tão importante personagem montar o espetáculo em seus atraentes delírios
da história do entretenimento popular brasilei- poéticos e políticos. Mas, cada vez mais, que-
ro e tão desconhecido dos livros de teatro e de ríamos nos aproximar de quem realmente era
circo no Brasil. Entretanto, à medida que íamos aquele palhaço negro, filho de uma ex-escrava e
de um capataz, que foge com o circo na idade de
4 O uso da chibata como castigo na Marinha brasileira já 12 anos e só abandona a profissão já bem idoso
havia sido abolido em um dos primeiros atos do regime re- e praticamente cego. Interessava-nos o perso-
publicano, o decreto número 3, de 16 de Novembro de 1889, nagem e, claro, o contexto vivido por ele: como
assinado pelo então presidente marechal Deodoro da Fon-
seca. Todavia, o castigo cruel continuava de fato a ser apli-
conseguira impor-se, ainda durante o período
cado, a critério dos oficiais da Marinha de Guerra do Brasil. escravocrata, na indústria de entretimento no
Num contingente de 90% de negros e mulatos, centenas de circo sendo negro, filho de escravos, e, nos dois
marujos continuavam a ter seus corpos retalhados pela chi-
primeiros governos republicanos consagrar-se
bata, como no tempo da escravidão. Entre os marinheiros,
insatisfeitos com os baixos soldos, com a má alimentação como um dos palhaços mais famosos do Brasil.
e, principalmente, com os degradantes castigos corporais, João Siqueira morreu e deixou sua obra inaca-
crescia o clima de tensão. Há um motim em que são mortos
bada, o que ficou era realmente um grande roteiro
oficiais e marinheiros. No dia 22 de novembro de 1910, João
Cândido, ao assumir, por indicação dos demais líderes, para um espetáculo épico, ou um filme longa me-
o comando do navio Minas Gerais e de toda a esquadra tragem, com dezenas de cenários diferentes e um
revoltada, controla o motim, faz cessar as mortes, e envia elenco de superprodução: quase uma centena de
radiogramas pleiteando a abolição dos castigos corporais
na Marinha de Guerra brasileira. Foi designado à época, pela
personagens, preferencialmente para atores com
imprensa, como Almirante Negro. Por quatro dias, os navios habilidades específicas de circo, dança, acrobacia
de guerra Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Deodoro apon- e canto, e também circo-teatro. Portanto, se eu
taram os seus canhões para a Capital Federal. No ultimato
aceitara o desafio de montá-lo, teria que desen-
dirigido ao Presidente Hermes da Fonseca, os revoltosos
declararam: “Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e volver um treinamento com aqueles jovens estu-
republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na dantes sem nenhum conhecimento prévio deste
Marinha brasileira”. A rebelião terminou com o compromisso
tipo de preparação. A Escola de Teatro da UNIRIO
do governo federal em acabar com o emprego da chibata na
Marinha e de conceder anistia aos revoltosos. Entretanto, não tem, em sua grade curricular, nada relaciona-
no dia seguinte ao desarmamento dos navios rebelados, dia do ao circo nem ao teatro musical. Percebemos,
27, o governo promulgou em 28 de novembro um decreto entretanto, que o texto seria um pretexto para a
permitindo a expulsão de marinheiros que representassem
risco, o que era um nítida quebra de palavra, uma traição do
montagem, e que esse treinamento a curto prazo
texto da lei de anistia aprovada no dia 25 pelo Senado da Re- seria ineficiente; mesmo assim, intentamos nos
pública e sancionada pelo presidente Hermes da Fonseca, aproximar da linguagem do circo e do teatro mu-
conforme publicação no diário oficial de 26 de Novembro,
sical encenado dentro dos circos, planejando a
levado ao Minas Gerais pelo capitão Pereira Leite. http://
pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_C%C3%A2ndido montagem para dois semestres consecutivos.

124
Figura 1: Foto de
A primeira etapa, foi voltada para o estudo publicidade de
do texto e do contexto histórico do final do Benjamin de Oliveira,
século XIX e começo do XX, bem como sobre caracterizado como
o Índio Peri.
o movimento dos circos que transitavam pelo
país, liderados por empresários portugueses e
italianos. Dentro do trabalho prático, tínhamos
algumas oficinas de circo e musicalização com
Fernando Neder, e de dança e preparação cor-
poral com Denise Zenícola. À medida que apro-
fundávamos o estudo do texto, mais fascinados
ficávamos com o personagem e sua história. A
montagem era, portanto, um enorme desafio,
não só pelo tamanho do texto, o número de
personagens, como pela sua própria adaptação
para trazê-lo à cena. Queríamos fazer também
um trabalho épico, crítico, mas não pretendía-
mos adotar o tom de denúncia de algumas de
suas cenas.
A descoberta da tese de doutorado de Ermí-
nia Silva (2003) e depois a publicação da mesma
em um livro intitulado Circo-teatro: Benjamin de
Oliveira e a teatralidade circense no Brasil (SIL- partiram para pesquisas sobre a vida de Benja-
VA,2007), trouxe uma nova concretude para min de Oliveira e sua produção musical (músi-
muitas das dúvidas que tínhamos, não somente cas criadas e ou gravadas por ele) em arquivos
sobre o personagem, mas, sobretudo, em rela- no Rio de Janeiro. Ao final, conseguimos reunir
ção ao seu contexto histórico e cultural. Foi tam- um material diverso, que quando acionado
bém importante entrar em contato a produção criou uma tensão com a obra teatral que tínha-
dramatúrgica do palhaço para o circo-teatro, mos para montar o espetáculo, e este embate
gênero em que ele foi um dos pioneiros no Bra- teve que ser solucionado pela criação da cena.
sil, por meio do estudo da tese de doutorado de Qual o caminho a seguir? Adotaríamos a his-
Daniel Marques da Silva (2004) que encontrou, tória de Benjamin de Oliveira, mais ficcional e
em arquivos, as seguintes obras teatrais: O ne- de alguma maneira mais romântica, proposta
gro do frade, O punhal de ouro, A escrava Marta, A pelo autor, ou iríamos em busca de um persona-
Ilha das Maravilhas, Os bandidos da Rocha Negra, gem baseado em dados concretos, como suas
A mancha na Corte, O grito nacional ou A história entrevistas? Perguntávamos enquanto improvi-
de um voluntário, Sai Despacho! e Olho Grande! sámos. Fomos experimentando, entrando em
Tal constatação nos trouxe a certeza da forte li- contato com o material e vendo o que funciona-
gação de Benjamin com o ofício de dramaturgo, va e, desta maneira, fomos redefinindo um novo
de ator, encenador e produtor de circo-teatro. texto. Eu fui trabalhando “em cima” da drama-
Além disto, dois alunos de Iniciação Científica, turgia proposta por João Siqueira, pinçando o
Bárbara Mefano Vida e Carlos Roberto Santos que me parecia vital e descartando o que me

125
farol

parecia à parte do real legado de Benjamin. Apesar de discordar de muitas das associa-
Com os atores, líamos o material e fazíamos im- ções propostas pelo autor, colocando Benjamin
provisações sobre os temas das cenas. Então, como um militante das causas negras, sabia de
foi nascendo um texto híbrido, decorrente da antemão que a própria montagem era como
prática, que partiu do grande copião que era o uma espécie de provocação, diante de uma
texto de João, e as inserções de materiais de jor- escola dominada pelo pensamento eurocêntri-
nais da época, leituras das teses e as improvisa- co sobre a “nobre” arte teatral. Duplo desafio,
ções. Incluímos algumas narrativas do próprio pois nem eu nem o elenco de quinze estudan-
Benjamin, relatadas na obra de Brício de Abreu tes tínhamos formação nem em circo, nem em
(1963) e também um ato inteiro do musical “Sai teatro musical. E, de todos, apenas eu e Denise
despacho”, escrito e dirigido originalmente por éramos pesquisadores da cultura afro-brasilei-
Benjamin de Oliveira, o qual serviu como uma ra; de toda a equipe, que depois se ampliou com
espécie de entreato em nosso espetáculo. assistentes, figurinista, entre outros, apenas um
Segundo a investigação de Ermínia Silva, ator e uma atriz se assumiam como afrodescen-
Benjamin de Oliveira nasceu em 11 de junho dentes. Na proposta inicial outros atores fariam
de 1870, na fazenda dos Guardas, que perten- em alternância o personagem principal, até que
cia à Cidade do Pará. Era o quarto filho de Ma- finalmente Marcos Serra, o único ator negro e
laquias e Leandra, sendo que a mãe, por ter
com um grande carisma, mesmo sem nenhuma
sido uma “escrava de estimação”, segundo
seu relato, teve todos os seus filhos alforria- prática como palhaço e cantor, assumiu definiti-
dos ao nascer. Pelo que consta nos Livros de vamente o papel.
Batizados da Cúria Diocesana de Divinópolis
22 – nos quais foram registrados os nascimen- A primeira montagem
tos e batizados dos nove filhos do casal, de
Seguimos a sequência sugerida pelo texto
1864 a 1890 –, até a anotação de Benjamim,
os pais eram denominados “crioulos escra-
inicial. Os materiais encontrados no livro de Er-
vos” ou, simplesmente, escravos de Roberto mínia Silva e nas entrevistas dos jornais come-
Evangelista de Queiros e Maria Madalena de çaram a entrar nas improvisações, procurando
Jesus. (SILVA, 2007, p. 90.) dar um balanço entre as cenas dramáticas e a
informação sobre a trajetória de Benjamin de
Por que a escolha do texto de Benjamin de Oliveira. Projetamos um apresentador de circo e
Oliveira? Por que a história de um palhaço ne- um palhaço que se revezariam nos intermezzos,
gro, dentro de uma escola com pouquíssimos colocando os títulos das cenas, e introduzindo a
afrodescendentes? A resposta era simples: jus- sua cronologia, bem como o contexto de cada
tamente, por isso! A proposta era questionar época fazendo uma espécie de número de cor-
não somente a falta de atores negros na Escola tina, para dar tempo de trocar de cenário, o qual
da UNIRIO, como também a falta de uma forma- seria desenhado como um picadeiro de circo.
ção que abrangesse o circo e o teatro musical. Assumimos também o tom de teatro de revista
Além disto, oferecer ao jovem grupo de teatro antigo, o figurino foi baseado nas fotos de circos
do NEPAA a opção de trabalhar com a estética e do teatro de revista do começo do século XX.
do circo e da música representava uma imersão Na primeira cena do texto, originalmente a
do grupo na própria história do Brasil pelo viés avó de Benjamin trabalha enquanto ele brinca.
do artista popular negro. Ele pede para contar uma história e ela narra um

126
ficaram curiosos. Quem era aquele desco-
mito de Oxalá (o pai de todos os Orixás). Troquei nhecido? “Quem é o estrangeiro de barrete
por um mito de Exu (a criança grande capaz de branco?”, perguntou um. “Quem é o aquele de
desafiar a todos com suas brincadeiras), de for- barrete vermelho?”, duvidou o outro. Então,
ma a dar ao espetáculo a tônica da mudança e começaram a discutir sobre a cor do barrete.
Branco. Vermelho. Branco. Vermelho. Termi-
do inesperado, um personagem mais condizen-
naram brigando a golpes de enxada, e mor-
te com a própria história de Benjamin: reram ali mesmo, Exu cantava e dançava. Exu
estava vingado.
Cena 1
Benjamin criança. Patatufo. MG. [Transição]
Benjamin: Conta uma lenda dos Orixás, vó, conta... Benjamin: Eu estava na escola do mestre
Avó: Menino, a gente não vive só de história. João Pereira Coelho e nas horas vagas ven-
Daqui a pouco o capataz vem conferir quantas dia os bolos na porta do circo. Mas a vida do
arrobas eu já pilei. circo entrou tão profundamente em minha
imaginação que eu não pude resistir ao seu
Benjamin: Ah! Finge que trabalha. Faz de conta. Diz encanto. Uma noite resolvi fugir com o circo,
que tá com dor. Que já está velha. Não aguenta... eu tinha uns 12 anos. Lembro-me bem do cir-
Avó: Tu, menino. Deve ser filho de Exu. Futriquei- co. Chamava-se Circo Sotero. E nele aprendi
ro e brincalhão como o quê. Orixá que gosta de acrobacias e outros ofícios.
fingir, que gosta de brincar igual palhaço.

Benjamin: Polydoro? Procurei ajustar o espetáculo para que os


Avó: Hum? Quem é Polydoro? atores se aproximassem da história e a própria
Benjamin: Aquele palhaço que esteve aqui com plateia pudessem se projetar sobre uma tra-
o circo Françoise no mês passado. Gozado e dição oral africana muito presente no Brasil. A
cheio de graça... avó, uma africana griote, 5 tradicionalmente uma
Avó: Eu lá vou a circo, menino?! contadora de história, transmitia para o jovem
Benjamin: Mestre João Pereira diz que Exu é o diabo. neto a sua cultura ancestral. Isso já era aponta-
Avó: Mentira, não é disso, menino. Os brancos do no texto original, mas procurei africanizá-lo
fizeram essa injustiça com o pobre do Exu. Ele ainda mais, inserindo-o dentro do contexto do
é um grande Orixá, senhor do tempo, dono das Candomblé.
encruzilhadas, senhor da palavra entre os ho-
É claro que projetei a minha história pessoal
mens e os Orixás...
no texto, mesmo sendo muito diferente. Tive
Benjamin: Vó, conta mais uma história de Exu? também uma preta velha em minha vida,
Avó: Benja... conto, sim, vai. Tem uma histó- chamada Sá Antonina, e que me contava
ria muito bonita. Dois compadres foram bem histórias quando eu era muito pequeno, mas
cedo trabalhar em suas roças, mas tanto um ela não era minha parente, vinha de tempos
como o outro não tinha feito a saudação para
em tempos e se hospedava na grande casa da
Exu. Exu, que sempre tinha dado a eles chuva
e boas colheitas! Ficou furioso. Usando um 5 Feminino de griot, tradicional figura do contador de
boné pontudo, de um lado branco e do ou- histórias das regiões de Mali e Burkina Faso, popularizado
tro vermelho, caminhou na divisa das roças, principalmente a partir de Sotigui Kuiatê, que tornando-se
tendo um à sua direita e o outro a sua esquer- ator da companhia de Peter Brook, revelou para o Europa e
da passou entre os amigos e cumprimentou América a importância deste personagem como verdadeiro
os dois com muita animação. Os compadres museu vivo de sua cultura. O termo griot passou a ser usado
no Brasil às vezes como griô, com igual significado.

127
farol

minha família no interior de Laje do Muriaé. Benjamin pouco falava de sua família e de sua
Vim de uma família matriarcal, onde todos os origem, mas João Siqueira colocou a avó dele
homens eram muito importantes na cidade como princesa Keto e eu adotei, mesmo sem um
até o momento da aposentadoria. As mulheres conhecimento concreto desta parte da história,
iam assumindo gradativamente o comando da no sentido de passar a ideia de ligação com uma
casa, e neste momento assumiam o poder. Ao memória espiritual africana que muitas famílias
contrário das famílias negras da cidade, que vi- negras preservam. Como a maioria dos africanos
viam no morro, as famílias ditas brancas (nem que aqui aportaram foram separados de seus
tão brancas eram, mas assim se consideravam) parentes e suas línguas acabaram perdendo a
viviam em casas na rua principal e única. As ca- relação com suas localidades de origem, é muito
sas dos meus avós e pais se interligavam, meu difícil entender suas origens étnicas e seus per-
avô materno era filho de um imigrante italiano tencimentos. África, como continente, é um uni-
com uma descendente de guaranis, e a minha verso. A forte tradição ioruba foi a última grande
avó materna descendia dos antigos bandeiran- etnia a entrar no continente americano devido às
tes de Minas Gerais. Não conheci meus bisavôs, guerras internas no Reino Ioruba,6 e seus cativos
apenas suas histórias filtradas pelas óticas das chegaram em massa após a queda da cidade de
respectivas famílias, que sempre contavam Oyo a partir de 1835 (LIGIÉRO, 1993: 19)
apenas as suas glórias. Já as minhas bisavós, De qualquer forma, ao fugir com o circo Ben-
conheci todas. Muito pequeno, conheci a bisavó, jamin nunca mais a visitou aquela família ou,
mãe do meu avô, que havia casado com o velho
Ligiéro (que na Itália chamava-se Ruggiero), e que 6 Entre 1800 e 1870, os iorubás tornaram-se o maior número
havia chegado com um irmão e o pai. O velho de escravos a serem “exportados” das costas da África. Pois,
além do fato de muitos senhores da guerra iorubá venderem
Ruggiero, ao que informam os parentes mais
seus cativos (que também eram iorubás) como escravos, os
antigos, trazia um brinco de ouro em uma das Nupe e os Bariba (que eram vizinhos dos iorubás a Norte e a
orelhas. Em pesquisa recente no sul da Itália, uma Nordeste) também capturaram e venderam um incontável
surpresa: nesta região, naquela época, apenas número de iorubás como escravos. Jihadistas também pilha-
ram cidades iorubás em busca de escravos. Esses terríveis
os ciganos usavam brincos, mas o motivo pelo anos de incessante guerra civil são, de fato, duplamente signi-
qual o italiano Ruggiero se transformou um Li- ficativos. Embora a exportação de escravos africanos para as
giéro permanece uma incógnita. O fato é que um Américas terminasse por volta de 1870-1875, um incontável
número de iorubás foi vendido como escravo entre essas
de seus filhos se casou com uma brasileira, que
datas. Primeiro, muitos foram capturados como escravos
conheci como Cota. Só quarenta anos depois da durante os 50 anos das guerras civis iorubás (±1790-1840).
sua morte eu soube o seu verdadeiro sobrenome: Além disso, a queda final do império fez da terra dos iorubás
território livre para caçadores de escravos que vinham da
Mattos Guarani. Tudo indica que entre o índio e
Europa e dos Estados africanos vizinhos. E, na verdade, houve
o cigano italiano está minha descendência desta senhores da guerra iorubá e sumomí (sequestradores pro-
parte. Ou seja, as heranças ciganas e indígenas, fissionais) que pilharam as cidades e aldeias atrás de cativos
mesmo com indícios claros, são escondidas pe- que eram vendidos aos europeus como escravos. De fato, a
captura de iorubás como escravos continuou até bem depois
las famílias. Já minha bisavó materna, descendia da abolição oficial do comércio transatlântico de escravos.
claramente dos portugueses: Monteiro, Pinto, Trecho do livro Yoruba Culture: A Philosophical Account,
Teixeira casou-se com um Diniz. Era a grande ma- escrito por Kola Abimbola (Iroko Academic Publishers Ltd.).
Tradução de Leonardo Soares Quirino da Silva. Publicado em
triarca da família com quem convivi diariamente
2 de agosto de 2005. http://www.educacaopublica.rj.gov.br/
até os oito anos, quando ela morreu. biblioteca/historia/0023.html

128
se o fez, nunca mais falou dela. Mas ao longo lência já havia sido consumada. Entretanto, este
de sua vida vamos observar uma forte relação tipo de tratamento violento não se dava apenas
com as tradições das músicas e das danças afro pelo fato de ele ser negro, pois também era
-brasileiras, as quais são incorporadas em suas dado às crianças que eram iniciadas nas artes
performances, e uma vez quando se torna pro- do circo, na época. De acordo com a pesquisa
prietário do seu circo, inúmeros artistas negros realizada por Ermínia Silva, o treinamento nos
passam a integrar sua companhia, dentre os antigos circos era muito severo até mesmo o co-
quais Eduardo das Neves e o jovem Grande Ote- meço do século XX, e muitas vezes incluía cas-
lo que, vindo do interior, ali começou a carreira. tigos físicos e mesmo espancamentos, inclusive
A entrada no circo é o marco onde ele começa com casos de registros policiais após denúncias
a contar a sua história. E então os detalhes apa- de violência cometida contra crianças dos pró-
recem em inúmeras entrevistas. prios membros e/ou familiares da trupe.7
Para ser integrado como membro de qualquer Na terceira cena da peça, começa a aparecer a
circo, o aprendizado era uma das condições de vida afetiva de Benjamin. Ele convida a namorada,
permanência, pois todas as suas atividades – uma negra chamada Catita, que também sofria pre-
desde armar ou desarmar o circo, cuidar da cer-
conceitos e castigos como ele, para fugirem do circo
ca, pintar, cuidar da manutenção, confeccionar
a lona de cobertura e de roda, tratar e cuidar de uma vez. Apesar dos maus tratos sofridos, ela se
dos animais, ser ferreiro, pintor, ferramenteiro, nega a fugir. Era a cena da despedida; ele, decidido a
até ser artista – tinham como objetivo produzir partir com os ciganos, já tinha até combinado a fuga
o circo como espetáculo e reproduzi-lo como naquela noite mesmo. Sabíamos, pelas entrevistas
organização.(LIGIÉRO, 1993:91)
de Benjamin, que tal fato realmente tinha aconteci-
do. Na próxima cena, já vivendo entre os ciganos, era
Além disto, aprendiam saltos, a equilibrar-se avisado por uma jovem do grupo que o chefe deles
no arame, praticavam malabares bem como iria trocá-lo por um cavalo, como se escravo fosse. E
“entravam em esquetes, atuavam nas peças ele então mais uma vez fugia, desta vez para escapar
teatrais, participavam da organização do circo da sina da escravidão, pois não tinha em mãos nem
trabalhavam na armação e desarmação, ou na carta de alforria, nem atestado de nascimento para
bilheteria. Era muito comum para estas crianças provar que havia nascido já alforriado.
e jovens aprenderem a tocar instrumentos, can-
tar e dançar.” (Ligiéro, 1093: p.91).
7 Um dia, conversando com minha tia Edília, queixei-me
A segunda cena da peça retratava a nova vida de que na família dela e de meu pai era eu o único artista.
no circo, que não era muito diferente da opres- Ela riu e me disse em tom amável: “Ó Zé, pois saiba que
seu bisavô foi dono de um circo! Inclusive a sua bisavó,
são que vivia antes. Benjamin é espancado
que casou com ele, trabalhou alguns anos no circo! Mas
por Sotero, o dono do circo, após cometer um parece que as coisas não andavam bem, e o seu bisavô
erro em uma de suas participações no picadei- acabou arranjando um emprego na Loyd Brasileira, e ele
ro. Esta era uma cena difícil de fazer, pois não foi trabalhar na Marinha Mercante e vendeu o circo.” Então,
o passado circense fora enterrado. Possivelmente meu
queria reproduzir o espancamento, pois estaria bisavô conheceu Benjamin, no pequeno mundo do circo do
trazendo uma violência sobre o negro de uma final do século XIX e começo do século XX. Tentei encontrar
forma realista, reproduzindo uma situação de referências sobre este passado: dados, fotos, nada. Quando
propositadamente se quer enterrar a memória fica tudo
opressão que permanece no mundo contempo-
mais difícil de ser revelado.
râneo. Assim, a cena tinha início quando a vio-

129
farol

Na criação desta cena, preocupava-me para Menino: Tem uma senhora procurando pelo senhor.
não representar os ciganos de forma estereo- Benjamin: Mande entrar, o meu camarim está
tipada como uma primeira leitura do texto in- sempre aberto!
dicava: “cigano como ladrão de criança e de Menino: Mas ela parece uma mendiga...
cavalo” (não estava defendendo os ciganos Benjamin: Mendiga!
em causa própria, afinal a descoberta do sim- Menino: Isso, mendiga.
bolismo do brinco do meu bisavô foi bem re- Benjamin: Mande entrar logo!
cente). Logo, não concebemos um “bando de Benjamin volta-se para o camarim, refaz a
ciganos”, mas um grupo onde um dos irmãos maquiagem, cantarola uma música.
tinha a ideia e acabava recebendo o apoio do [Mudança]
pai para executá-la, mas com a discordância Catita: Dá licença.
do outro irmão. Benjamin: (de costa) Pode entrar...
Outro problema: se na primeira cena ro- Catita: Não está me reconhecendo?!... Benjamin.
mântica da peça havia o personagem de Ca- Benjamin: Essa voz não me é estranha...
tita, a primeira namorada de Benjamin, já na Catita: Estou velha, acabada, não é mesmo...
cena seguinte era também uma jovem cigana pode dizer...Sou eu... a sua Catita!
preocupada com a sorte do nosso herói e que Benjamin: Catita... quantos anos... Catita! (Ten-
não se importava de correr risco e, no meio ta abraçá-la para a consolar mas ela o evita.)
da noite, avisava Benjamin sobre o plano do Catita: Benjamin...me escuta. Eu devia ter
escambo por um cavalo a ser executado no fugido com você, teria sido mais feliz! Eu fugi
dia seguinte. Pensei que estas duas cenas com um homem que de mim se enamorou
e me pediu em casamento. Eu fui feliz num
apresentadas seguidamente poderiam dar
primeiro instante, mas eu nunca me esqueci
a impressão de que estávamos carregando de você. Até que um dia, ele me vendo triste
nas tintas ao contar a história de um jovem pelos cantos, me perguntou a razão e eu não
negro namorador e sedutor (outro estereóti- lhe ocultei: eu amo o Benjamin! Esse homem,
po). Fiquei propenso a cortar a cena da namo- Benjamin, se esfaqueou e morreu ali, na
minha frente! Novamente eu me vi sozinha. E
radinha de Benjamin por imaginar que fosse
desamparada, eu saí pelo mundo, sem rumo.
invenção do autor, um recurso dramatúrgico
tradicional, mas como estava funcionando
bem como cena, acabei deixando. Um pouco Uma outra questão que nos pareceu interes-
antes da estreia, um dos nossos pesquisa- sante foi o processo de como Benjamin se trans-
dores de Iniciação Científica encontrou uma formou em palhaço e logrou alcançar o sucesso
entrevista de Benjamin, na qual ele contava dentro de um quadro dominado por artistas es-
que seu grande amor tinha sido mesmo Cati- trangeiros (portugueses, espanhóis e italianos
ta. Embora verdadeira, a história contada em principalmente) ou filhos destes, já brasileiros,
entrevista em um jornal beirava o melodrama, que seguiam a tradição do circo desde crianças.
mas foi imediatamente transformada em cena Alguns meses depois de escapar dos ciganos,
e inserida no final do espetáculo quando, já provou que não era escravo fugido fazendo acro-
idoso, quase cego, após uma apresentação o bacias de circo. Tendo encontrando outra trupe,
antigo palhaço é procurado por uma senhora continuaria aperfeiçoando as suas habilidades,
mal vestida. até encontrar a sua verdadeira vocação: palhaço.

130
Figura 2: Gravura de
Existe uma correlação muito interessante Toulouse Lautreac
entre a história de Benjamin de Oliveira e o pri- retratando a dança
meiro palhaço negro a fazer sucesso na França, de Chocolat.

Chocolat, interpretado pelo artista cubano Ra-


fael Padilla, nascido em Havana em 1869, ape-
nas um ano mais jovem que Benjamin. Seus pais
morreram quando ele ainda era jovem, e aos 18
anos é vendido para um português com quem
que segue para Espanha, onde não havia mais
escravidão. Lá, ele trabalha em diversos subem-
pregos e em 1887 chega à Paris, e é descoberto
pelo clown britânico Footit que precisa de um
partner. “Eu encontrei ele na selva!” diz Footit
para seu produtor. A partir daí adota o nome
Chocolat, criando com Fototit o mais famoso
duo de clowns da Belle Epoque. Eles foram uns
dos principais criadores das entradas clownes-
cas centradas em dois personagens: o clown
branco e o augusto. Seus números encenavam
de maneira cômica as relações de dominação cravo da Cleópatra”. Em um de seus mais como-
entre o branco e o negro. Vivendo entre os ar- ventes relatos comenta: “Meu pai me disse para
tistas em Montmartre, os dois palhaços foram esconder o passado nas curvas da minha mão, e
imortalizados por Toulouse-Lautrec. Entretan- dançar... e então, transforme o seu passado em
to, o preconceito contra a sua cor é muito gran- sonho!”. Já Benjamin, embora tenha sido humi-
de, e o leva a mentir sobre si mesmo: algumas lhado em diversos momentos de sua vida, nun-
vezes diz que é “norte-americano”, outras vezes ca conheceu a escravidão, e nos anos de fama,
“índio norte-americano”, ou simplesmente “his- conseguiu adquirir o seu próprio circo, e teve
pânico”. Ele tem problemas com seus documen- uma vida longa. Rafael morreu pobre em Borde-
tos de legalização e a polícia da imigração fran- aux e foi enterrado como indigente; seu túmulo
cesa insinua: “Vamos mandar ele de volta para é desconhecido até hoje. Não temos nenhuma
África!”. imagem cinematográfica do palhaço Benjamin,
Como em Benjamin, seu trabalho de corpo apenas algumas fotos de sua interpretação de
e de canto marca o diferencial. Mas ao contrá- sua atuação como o herói indígena no filme O
rio de Benjamin, que conserva o próprio nome Guarani, mesmo tendo vivido e atuado até o co-
como palhaço, ninguém sabe o seu verdadeiro meço da década de 50. Por outro lado, Chocolat,
nome; torna-se nacionalmente conhecido como morto em 1917, possui alguns registros cinema-
Chocolat. Trabalha sempre com Footit, sendo tográficos ao lado do seu parceiro Footit como
de regra, o palhaço humilhado que se dá mal, atores pioneiros do cinema mudo francês.8
exacerbando o preconceito já existente contra
8 NOIRIEL, Gerard. Chocolat clown nègre: L’histoire oubliée
o negro. No circo, seus papéis frequentemente
du premier artiste noir de la scène française. Paris: Bayard,
são o de “rei dos macacos”, “rei das selvas”, “es- 2012.

131
farol

Nenhum dos dois palhaços negros entrou em guste Vaillant (1893),12 que culminou com o as-
livros sobre história do teatro e do circo em seus sassinato do presidente da república francesa
respectivos países até recentemente. Benjamin Sadi Carnot13 pelo anarquista Caserio (1894)14
obteve um salário mínimo de aposentadoria em — aumenta a sensação de insegurança. Cheio
seus últimos dias de vida, por iniciativa do então de dúvidas e humilhação, desejo de vingança e
deputado comunista Jorge Amado. O primeiro de ordem, o regime republicano francês vai se
livro dedicado a Benjamin foi publicado pela movendo para o nacionalismo agressivo que,
Erminia Silva em 2007. E o primeiro dedicado a naturalmente, se aproxima do antissemitismo
Chocolat, em 2012.9 Nem mesmo os respecti- que se espalhou a partir da de Drumont15 des-
vos movimentos negros de cada país os apon- de que publicou o ensaio França judaica (1886).
tam como pioneiros ou mesmo representantes A situação foi agravada com o chamado l’affaire
de estéticas negras: ambos trabalharam com a Dreyfus, um escândalo judiciário e político que
dança, a música e o canto de origem africana. dividiu a opinião pública francesa quando um
Uma questão que os distingue é que muito capitão judeu, acusado injustamente de espio-
cedo Chocolat desapareceu da cena, após os nagem a favor da Alemanha e condenado à pri-
números e gagues da dupla tornarem-se cada
12 Auguste Vaillant - Anarquista francês. Lançado em
vez mais clichés racistas para agradar a um plena sessão da Câmara dos Deputados, uma bomba que
público insuflado pelo racismo, refletindo as causou algumas lesões (Dezembro de 1893). Condenado à
sucessivas crises por que passava a chamada morte pelo Tribunal de Assizes, ele foi executado em 1894.
http://www.larousse.fr/encyclopedie/personnage/Augus-
República Moderada (1879-1899). No rescaldo
te_Vaillant/148015
dos desastres de 1870-1871, a crise econômi- 13 Sadi Carnot, apoiado por Clemenceau, foi eleito para
ca de 1880 e da quebra do Banco União Geral a Presidência da República (1887). É conhecida por seu
respeito pela Igreja, e sua presença como chefe de Estado
(1882) que não devolveu o dinheiro aos seus
favorece o rali. Ele enfrentou a crise Boulanger. Na política
proprietários (católicos, protestantes e judeus), externa, ele promove a política da aliança russo. Ele foi
o escândalo do Panamá (1889),10 uma onda de assassinado 24 de junho de 1894 pelo anarquista Caserio.
atentados anarquistas - Ravachol (1892),11 Au- http://www.larousse.fr/encyclopedie/personnage/Marie_
Fran%C3%A7ois_Sadi_Carnot/111813
14 Sante Caserio Jeronimo, italiano anarquista (Motta
Visconti, Lombardia, 1873-Lyon 1894). Trabalhador Bakery,
9 Um livreto para jovens é publicado sobre Chocolat e Footit viveu 18 anos de anarquismo, e depois de uma condenação,
por um jornalista em 1917, que reproduz alguns preconcei- emigrou para a Suíça e França. Ele vem especialmente para
tos da época. Lyon para assassinar o presidente Sadi Carnot, 24 de junho
10 A Companhia Universal é a responsável pela obra do de 1894. Condenado à morte, ele foi guilhotinado em 15 de
canal interoceânico do Panamá que havia pego dinheiro de agosto de 1894.
poupadores de pequeno porte na França é envolvida em http://www.larousse.fr/encyclopedie/personnage/San-
corrupções e decreta a falência. te_Jeronimo_Caserio/111965
11 François Claudius Kœnigstein, dit Ravachol Tintureiro 15 Édouard Drumont -. Escritor e político francês polemista
Trabalhador, autor de diversos ataques em Paris em 1892 jornalista, ele rapidamente se tornou o líder de um novo
para vingar anarquistas condenados (Leveille, Decamps, anti-semitismo, após a publicação de um panfleto violento
Dardare), ele foi condenado a trabalhos forçados para os intitulado França Judia, um ensaio em História Contempo-
ataques e condenado à morte por crimes lei anterior. Ele foi rânea (2 vols., 1886), que será um dos best-sellers do século.
guilhotinado 11 de julho de 1892. Inicialmente controversa Drumont neste livro que tem sido chamado de “Diretório de
no meio anarquista, ele se tornou uma figura de renome. difamação”, acusa as famílias judias de criarem um perigoso
http://www.larousse.fr/encyclopedie/personnage/ poder do dinheiro que corrompe as tradições nacionais
Fran%C3%A7ois_Claudius_K%C5%93nigstein_dit_Rava- francesas. http://www.larousse.fr/encyclopedie/personna-
chol/140404 ge/%C3%89douard_Drumont/117148

132
do-se através de alianças de maior valor com
são, teve a inocência provada após um grande as raças europeias, o movimento de destrui-
debate nacional recheado de antissemitismo e ção observado em suas fileiras se encerraria
nacionalismo. Por esta ocasião, artigos racistas dando lugar a uma ação contrária. A raça se
também começam a surgir na imprensa fran- restabeleceria, a saúde pública melhoraria, a
índole moral se retemperaria e as mais felizes
cesa, baseados em assunções pseudocientífi-
mudanças se introduziriam na situação social
cas lançadas pelo escritor e diplomata Joseph deste adorável país (READERS, 1988: p. 240).
Arthur de Gobineau, discutindo a inferioridade
da raça negra em seu livro intitulado: Ensaio so-
bre as desigualdades das raças humanas (1855), Ao que tudo indica, Dom Pedro II aceitou as
considerado um dos primeiros trabalhos sobre sugestões de Gorbineau e deu continuidade às
a eugenia e o racismo publicado no século XX. políticas de branqueamento do Brasil, abrindo
Por todas estas razões, a situação para imigran- facilidades exclusivamente para imigrantes do
tes tornava-se complicada na França, com o re- norte da Europa - política esta que teria continui-
crudescimento da direita racista em relação aos dade na República Velha, cuja classe dirigente
judeus e demais imigrantes negros, ciganos e de abriu as portas do país também para imigrantes
outras etnias, que chegavam com a expansão italianos. Só em São Paulo, entre os anos 1890 e
do império colonial francês. 1929, entraram 1.817.261 brancos. Nesta mesma
Entre 1869 e 1870, Gobineau serviu como di- cidade o número de negros e mulatos pelo cen-
plomata no Brasil e tornou-se amigo do monar- so de 1872 correspondia a 37, 2 % da população.
ca Dom Pedro II, o qual em 1973 lhe solicitou um Já em 1893, o percentual era de 11,1% e, pelas
artigo para a Exposição Universal de Viena: Emi- estimativas de 1934, esse percentual declinava
gration aux Brésil: L’Empire du Brésil à l’Exposition para 8,5%. “Portanto, o desaparecimento do
Universelle de Vienne em 1873 (READERS, 1988, p. negro, ou branqueamento da população, era
215). Este é elogioso em relação ao país, já que um dos fenômenos estatísticos mais evidentes
se trata de um documento escrito para o gover- do quadro racial de São Paulo” (Domingues,
no brasileiro, mas aproveita para traduzir para a 2002).
realidade local as suas ideias sobre as relações Torna-se importante verificar a relação de
raciais, ao justificar as novas imigrações inter- Benjamin com o poder branco constituído, pois
nacionais de populações brancas europeias, é durante o começo da República que ele alcan-
alertando que o Brasil teria sérios problemas de ça a sua maior popularidade. No texto de João
crescimento devido à situação dos mulatos, que Siqueira ele aparecia com um tom crítico em re-
não podiam se reproduzir além de um número lação ao poder, apontando a opressão sobre o
limitado de gerações.16 negro; entretanto, na vida real percebemos uma
Mas, se em vez de reproduzir entre si, a po- adaptação e mesmo uma acomodação à vida
pulação brasileira estivesse em condições de artística do circo comandada em sua maioria
subdividir mais ainda os elementos daninhos por empresários europeus. A pesquisa detalha-
de sua atual constituição étnica, fortalecen-
da de Ermínia Silva nos conduz aos personagens
16 Brito, Fausto. “A politização das migrações internacionais: dos donos de circo e suas principais atrações. O
direitos humanos e soberania nacional”. In Rev. bras. estud. ano de 1892 foi especialmente importante para
popul. vol.30no.1 SãoPaulo Jan./Jun 2013. http://www.
Benjamin, pois foi trabalhar no Circo do Comen-
scielo.br/scielo.php?pid=S010230982013000100005&scrip-
t=sci_arttext

133
farol

dador Caçamba17 e com ele veio pela primeira [Transição. Benjamin se prepara, passa perfu-
ao Rio de Janeiro. me, se apronta no espelho. Até que resoluto,
atravessa o picadeiro e encontra com Floriano.]
Benjamin: Nós estávamos em Cascadura,
quando numa noite, um espectador procu- Benjamin: Com licença...
rou por mim, aliás pelo palhaço e disse para o Floriano: Tenha bondade de entrar, meu caro
Caçamba: “Gostaria de falar com o palhaço”! Benjamin de Oliveira...
Comendador: O palhaço é um negro que te- Benjamin: Como tem passado, majestade,
nho, muito engraçadinho. (chamando) Benja- digo excelência...
min! Tem um cidadão que está lhe esperaire...
Floriano: Melhor agora... Que tal a féria daque-
Vê se num demora... le dia? Não tinha me reconhecido na ocasião,
Benjamin: O homem felicitou-me pelo meu não é? Mas a que devo a honra da visita?
ato. E me deu por intermédio de outro uma Benjamin: A sua ajuda foi muito boa, mas a
nota de 5.000 réis. E foi-se sem eu saber quem situação do circo em Cascadura é ruim. E gos-
era... Logo a seguir começou um zum-zum taria de lhe pedir um auxílio para o circo.
-zum no circo. E foi-se apurar, o homem da
nota de cinco mil reais era ele, Floriano Pei- Floriano: Então, o ponto não está bom?
xoto, o Marechal de Ferro. No dia seguinte, Benjamin: É. Mas mesmo assim o negócio vai mal.
Caçamba, ambicioso, logo imaginou tirar par- Floriano: E se vocês viessem para ali defronte.
tido da situação. Ai mesmo no largo da República.
Caçamba: Você tem que procurar o nosso Benjamin: Seria ótimo. Mas o transporte deve
Marechal de Ferro! Deve ir ao Itamarati e falar custar os olhos da cara!
diretamente com ele. Floriano: Bem, isso se resolve.
Benjamin: Mas eu nem conheço o home! [Transição]
Caçamba: Mas o home te conhece ora pois, Benjamin Velho: E no dia seguinte, quando
isto é o que interessa! Não vê que estamos a acordamos, paravam à porta carros de burros
precizaire... guiados por soldados do Exército. A mudança
foi feita. E esse negro Benjamin, já dançou a
“chula” ali na Praça da República, bem onde
17 Antes de ser empresário, Manuel Gomes era um artista está a estátua de Benjamin... Constant. O Zeca
que fazia um número chamado Hércules. Esse tipo de apre- [Floriano] tá aí vivo, pode confirmar o que eu
sentação, que figurava na programação dos circos desde estou contando. Ele sabe.” (SILVA, 2007:136)
Philip Ashley em 1793, como o nome sugere, era realizado
por atletas muito fortes, que carregavam canhões e balas
nas costas, disputavam força com vários animais (cavalos A autora esclarece que este fato nunca apare-
ou elefantes) e, quando os circos começaram a apresentar ceu nos jornais da época por ela pesquisados;
combates corporais, como as chamadas lutas romanas, os
entretanto, esse relato faz parte de diversas en-
“homens Hércules” eram os principais chamarizes nas pro-
pagandas. Foi assim que se apresentou, possivelmente pela trevistas concedidas por Benjamin. E uma visita
primeira vez no Brasil, vindo da Argentina com os Irmãos ao circo do Presidente da República “acompa-
Carlo, em 1884, mesma companhia em que estavam Frutuo- nhado de seus ‘generais’ em Cascadura pode ter
so Pereira, Casali, Frank Brown, Pedestal, entre outros. Com
o nome de Manuel Gomez, era anunciado como “Hércules
sido verdadeira, uma vez que apenas uma pe-
da alfombra”; três anos depois estava trabalhando no circo quena parcela da população lia jornais. Além do
de Albano Pereira e Candido Ferraz, que se apresentava no mais, o filho do presidente, apelidado de Zeca
Teatro de Variedades, em Porto Alegre, com o mesmo grupo
Floriano, era mencionado pelas suas fontes
que iria se associar a Frutuoso em 1889, em São Paulo.
(Silva, 2003:113) como “ginasta e atleta”, em uma propaganda da

134
inauguração de uma exposição de feras na qual tudo para entrar no quartel e falar com o mare-
duas eram as grandes atrações: um “leão ames- chal. Claro que todos os personagens eram re-
trado” e um brasileiro de coragem que iria lutar presentados na linguagem de farsa, os soldados
com o “portentoso leão, entrando na jaula”. O usavam chapéu de jornal e não entendiam o que
homem de coragem era o “Sr. José Floriano Pei- um palhaço fazia no quartel, mas de alguma ma-
xoto, filho do Marechal de Ferro” citado por Ben- neira eles se comportavam também dentro de
jamin mais à frente, como seu amigo pessoal. uma palhaçaria digna de Os três patetas.18
Era um momento político tenso e havia a Além das apresentações na UNIRIO participa-
ameaça de um levante maior; desta forma, Ben- mos de diversos festivais no interior do Estado
jamin tomava a iniciativa de criar um programa do Rio e de Minas Gerais. Ao final da temporada
exclusivo para o Exército Brasileiro: “tornava-se um grupo interessante de jovens atores segui-
mister divertir os soldados do governo”, pois ram seus próprios caminhos, assumindo suas
não havia “nenhum gênero de divertimento principais características. Acredito que o gér-
acessível as suas bolsas magras”. men de um outro teatro, baseado em tradições
Por isso, Floriano e Caçamba teriam feito um não eurocêntricas, de alguma forma permane-
acordo pelo qual os soldados e suas famílias ceu e frutificou nestes atores/pesquisadores
não pagariam ingresso no circo, cabendo a após a conclusão deste trabalho que durou
Benjamim “a missão” do divertimento. Pelo
aproximadamente dois anos, sendo uma pri-
acordo, eles teriam uma “espécie de sub-
venção oficial”, que em uma entrevista seria meira montagem em formato grande, e depois
no valor de 100$000 reais por mês e em ou- uma versão menor, como veremos a seguir.
tra de 150$000 reais por semana, sendo que
um “sargento tomava nota dos nomes” e aos El Payaso Negro: la historia de Benjamin de
salvados “o Comendador ia ao quartel e rece-
Oliveira
bia a bolada”. Entretanto, não há nos jornais
nenhuma menção sobre um circo armado na
Fui convidado a levar um espetáculo no FES-
Praça da República ou no Campo de Santana, TICARIBE, em Santa Marta, Colombia. Não pen-
atendendo aos soldados envolvidos na guer- sei duas vezes para refazer o espetáculo sobre
ra contra a Armada. (SILVA, 2007:137) Benjamin de Oliveira. Foi uma segunda adapta-
ção feita para dois atores, em que passaram a
atuar apenas Marcos Serra e Cátia Costa reve-
Não cabe aqui um julgamento da atitude de zando-se no papel de Benjamin, no espetáculo
Benjamin, que aqui se apresenta como porta-
voz do empresário Caçamba que, por sua vez, 18 The Three Stooges (no Brasil, Os Três Patetas; em Portugal,
Os Três Estarolas) foi um grupo cômico norte-americano do
aproveita-se da admiração que o Presidente nu-
século XX, em atividade desde 1922 até 1970, mais conhecido
tria pelo comediante, incitando-o a convencer o por seus numerosos curta-metragens. Sua comicidade era
Marechal de Ferro a favorecer o circo de diversas marcada pela extrema comédia pastelão e farsa física. A
maneiras. Pela maneira que Benjamin conta, ele primeira formação do grupo consistia em Moe Howard, Larry
Fine e Shemp Howard, que apareceram junto com Ted Healy
se orgulhava desta aproximação por poder ter no longa-metragem Soup to Nuts (1930), da Fox Film Corpora-
revelado uma espécie de reconhecimento de tion. Shemp retirou-se do grupo em 1932 para seguir carreira
seu talento. Esta cena não existia no texto ori- solo, e foi substituído por seu irmão mais novo Curly Howard.
Esta formação do grupo apareceu com Healy em vários filmes
ginal, mas, em nossa montagem, resultou em
da Metro-Goldwyn-Mayer, de 1933 a 1934. http://pt.wikipedia.
uma cena divertida em que o palhaço fazia de org/wiki/The_Three_Stooges

135
farol

Figura 5: Marcos
Serra e Cátia Costa
em Payaso Negro: la
historia de Benjamin
de Oliveira. Foto
Zeca Ligiéro, 2009,
Festicaribe, Santa
Marta, Colômbia.

que recebeu também um novo título: O palhaço Marta, no Caribe. Claro, era um grande desafio
negro: a história de Benjamin de Oliveira. A trans- para os dois atores e mesmo para mim, que os
formação de um espetáculo concebido com 10 coloquei no fogo. Denise, nossa coreógrafa, foi
atores em outro para um casal de atores repre- conosco e sempre mantinha os atores firmes no
sentou um grande desafio e a necessidade de trabalho corporal. Conseguimos uma sala para
um refinamento de nossa linguagem narrativa. ensaiar em uma escola. Percebi que alguns alu-
O trabalho de corpo passou a ser mais detalha- nos que terminavam suas aulas ficavam na por-
do e preciso. O espetáculo ganhou em intensi- ta entreaberta, espreitando os atores que não
dade, permitindo a cada um dos atores uma percebiam a presença de uns seis adolescentes.
superação de suas limitações técnicas visando Para surpresa deles e dos atores, num ensaio eu
a sua profissionalização uma vez que ambos os convidei a entrar. Os atores continuaram o
estavam concluindo a graduação na Escola trabalho, mas começaram a tentar a “espanho-
de Teatro. Pela primeira vez, criei um figurino lar” o diálogo. E os estudantes começaram a se
e acompanhei a sua confecção passo a passo. divertir com a história e os dois palhaços. Nos-
Cada ator tinha um figurino base e mudava de sa linguagem era demasiadamente corporal e,
personagem à medida que trocava o chapéu. portanto, universal. Os atores finalmente relaxa-
Estabelecemos um jogo assim, e Benjamin era ram e tivemos um ótimo ensaio. Ao final conver-
o único que não tinha chapéu. samos com aqueles jovens, e percebemos que o
Começamos a brincar com o espanhol, e pas- nosso espetáculo seria bem recebido.
samos direto por Bogotá, chegamos dois ou Sucesso estrondoso. Fizemos duas sessões
três dias antes de nos apresentarmos em Santa em Santa Marta. O público e a crítica, todos

136
festejavam nosso grupo. Três dias depois apre- admitem que estas são constituintes da iden-
sentamos na Universidad Nacional dentro de tidade nacional.
um grande evento, num enorme palco para 700 Durante o desenvolvimento desta inves-
pessoas. E por último apresentamos em uma tigação e criação, o trabalho de dois atores
pequena comunidade, num lindo teatrinho em criadores do Grupo Teatro do Anônimo, 20
Mosqueira. Sucesso inesperado. No ano se- João Carlos Artigos 21 e Márcio Libar, 22 nos cha-
guinte fomos convidados para outro festival na maram a atenção, porque os dois trabalham
Colômbia, em Boyacã e ainda em Tuña, Paypa e com a estética do clown, são negros, e mon-
Sogamosa, fizemos mais sucesso que no Brasil. taram um espetáculo solo no qual, cada um a
Ao final, todo o espetáculo era falado em espa- seu modo, fazia homenagem ao palhaço ne-
nhol. Um público de aproximadamente 2500 es- gro Benjamin de Oliveira.
pectadores colombianos riu e chorou com o es- A importância de Benjamin dentro da his-
petáculo. O nosso final ia ficando cada vez mais tória do circo e do circo-teatro ainda é pouco
forte, e o épico trazia um certo nó na garganta. conhecida no Brasil. Encontramos muitos ma-
teriais com os quais não tivemos a chance de
Considerações finais trabalhar. Nem sequer pudemos ter acesso a
O espetáculo foi pensado e desenvolvido muitas facetas de sua criação, tão profíqua foi
dentro de um momento que uma nova pers- a sua produção. De tudo o que produziu, de-
pectiva nascia no país com a implementação zenove peças ele assinou como autor, adap-
da Lei 10.639/2003 que alterou a Lei no 9.394, tador ou parodista, tanto dos textos quantos
de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as das músicas. Sua obra abarca diversos gêne-
Diretrizes e Bases da Educação Nacional para ros: farsas fantásticas e dramáticas, peças de
incluir no currículo oficial das instituições ofi- costumes, revistas, operetas, burletas (farsas
ciais de ensino a obrigatoriedade da temática musicadas, de origem italiana) e até um melo-
“História e Cultura Afro-Brasileira”.19 Era nossa drama policial.
intenção chamar a atenção para o fato de que
nem a história das culturas afro-brasileiras,
nem os seus desdobramentos artísticos, en- 20 Grupo de Teatro de Anônimo. Fundado em 1986, o Teatro
travam na universidade de uma forma geral. de Anônimo estrutura sua prática através da montagem e
apresentação de espetáculos, qualificação profissional de
Dei continuidade a esta discussão apresen-
outros atores sociais, além do aperfeiçoamento de técnicas
tando palestras sobre o processo de trabalho e modelos autênticos de gestão e administração coletiva,
em dois importantes eventos: Encontro dos baseada na solidariedade, criatividade e cooperação. http://
www.teatrodeanonimo.com.br/p/o-grupo.html
Diretores de Escolas de Teatro na Colômbia
21 João Artigas O homem bomba em 2006. Homem Bomba
em 2007, e Congresso Internacional na Coréia tem texto escrito por João Carlos Artigos e Shirley Britto em
em 2009, em que pudemos de alguma forma conjunto com o bufão italiano Leo Bassi, um dos mais áci-
discutir porque as escolas de teatro não per- dos cômicos da Europa na atualidade, que também assina o
roteiro. Disponível em <http://www.teatrodeanonimo.com.
mitem a entrada das culturas afro-brasileira e br/homembomba > Consultado em 14/08/2015.
ameríndia em seus currículos, mesmo quando 22 Márcio Libar Participou do Teatro de Anônimo, é coor-
denador do projeto Mundo ao Contrário e colaborador no
19 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Anjos do Picadeiro. Suas ações se estendem para o campo
Assuntos Jurídicos, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ pedagógico através de suas oficinas e para o campo da arte
leis/2003/l10.639.htm através da produção de conhecimento e produtos culturais.

137
farol

Referências historia/Daniel%20Marques%20da%20S%20
AZEVEDO, M. A . de (NIREZ) et al. Discografia %20Subver tendo%20hierarquias%20e%20
brasileira em 78 rpm. Rio de Janeiro: Funarte, retracando%20fronteiras%20genero%20dra-
1982. matico%20e%20escrita%20teatral%20no%20
ABREU, Brício de. Esses populares tão desco- circoteatro%20de%20Benjamim%20de%20Oli-
nhecidos. Rio de Janeiro: Raposo Carneiro edi- veira.pdf
tor, 1963.
DOMINGUES, Petrônio José “Negros de al-
mas brancas? A ideologia do branqueamento José Luiz Ligiéro Coelho
no interior da comunidade negra em São Paulo, Professor, autor, artista, pesquisador. diretor
1915-1930”, Estud. afro-asiát. vol.24 no.3 Rio de teatral. Mestrado e Doutorado no Departamen-
Janeiro 2002. to de Performance Studies, New York University.
LIGIÉRO, Zeca. Iniciação ao Candomblé. Rio de Pós Doc na Yale University (2001-2002) e na Paris
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dançou a chula para o Marechal de Ferro: Benja-
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no Brasil - mecanismos e estratégias artísticas
como forma de integração social na Belle Époque
carioca. Rio de Janeiro, 2004. Tese (Doutorado
em Teatro). Centro de Letras e Artes. Programa
de Pós-graduação em Teatro, UNIRIO, 2004
___. “Subvertendo hierarquias e retraçan-
do fronteiras: gênero dramático e escrita tea-
tral no circo - teatro de Benjamim de Oliveira”
Universidade Federal da Bahia – UFBA. http://
www.por talabrace.org/vcongresso/textos/

138
UMA ESCUTA DAS MIGRAÇÕES, MÚSICOS HAITIANOS E
PERFORMANCES EM DESLOCAMENTO
LISTENING BASED ON MIGRATION, HAITIAN MUSICIANS AND
PERFORMANCES WITH DISPLACEMENT

Daniel Stringini
PPGM-UNIRIO

Resumo: Em diálogo com o trabalho de músicos e coletivos haitianos no Sul do Brasil, proponho uma
escuta da cidade a partir da escuta destes fluxos migratórios. Acompanhando a trajetória e desloca-
mento de músicos e de suas músicas ao longo da cidade, reflito sobre os encontros e tensões entre
“mundos sonoros migrantes” e “mundos sonoros locais”. Sugiro que frentes musicais negras e migran-
tes em uma cidade majoritariamente branca têm produzido novas situações, apontado questiona-
mentos e rearranjado territórios urbanos.

Palavras-chave: músicos haitianos, migração haitiana, etnomusicologia, escuta.

Abstract: In dialogue with Haitian musicians and ensembles in southern Brazil, I propose to listen to the
city based on listening to these migrant flows. Following the paths and displacement of musicians and
their music throughout the city, I reflect on the encounter and tensions between “migrating sound worl-
ds” and “local sound worlds”. I suggest that black musical fronts in a mostly white city have produced
new situations, pointed out questions and rearranged urban territories.

Keywords: Haitian musicians, Haitian migration, ethnomusicology, listening.

139
farol

A temática música e migração já a algum tem- Perseguindo o que coloca Hemetek, sugiro
po vem ocupando pesquisadores e pesquisa- pensarmos em que medida, por meio de mo-
doras no campo da etnomusicologia. Trabalhos vimentações musicais, cenas artísticas e terri-
como os de Adelaida Reyes (1999) e Kay Shele- torializações sonoras, imaginários e estigmas
may (1998), respectivamente entre vietnamitas seriam desafiados nestes fluxos migratórios, e o
e entre comunidades judaicas nos Estados Uni- quanto nos apontariam aspectos que excedem
dos, o de John Baily (2005) com músicos afe- o próprio sonoro. Ao trazer, aqui, as performan-
gãos exilados, ou o de Susana Sardo (2010) com ces de músicos haitianos, pretendo colocar em
a diáspora goesa são algumas referências nos discussão aquilo que é mobilizado por elas e
estudos com migração no campo da etnomusi- os discursos que as envolvem. Tenho sugerido
cologia1 (LÜHNING, TUGNY, 2016). que as práticas sonoro musicais migrantes têm
Os trabalhos de Ursula Hemetek são também criado novas situações e reterritorializado esta
exemplos que entrecruzam música e migração. cidade do Sul.
Ao abordar as práticas de múltiplos grupos mi- Seguindo as pistas abertas por estas perfor-
noritários migrantes na cidade de Viena (HEME- mances, proponho aqui uma escuta que se dê
TEK, 2010), ela diz que, entre outras questões, as a partir da perspectiva da migração haitiana.
produções sonoras destes grupos desafiariam, Uma escuta da cidade que se dê a partir das so-
naquele contexto de deslocamento, as noções noridades de músicos e comunidades haitianas.
de “raízes”. Ela diz isto se referindo a produção Minha intenção é delinear produções sonoras
de estereótipos e estigmas atribuídos a um que são atravessadas por encontros e tensiona-
imaginário em torno de sociedades migrantes, mentos, xenofobias e racismos, e desestabilizar
refugiadas e diaspóricas. Ela aponta o quanto entendimentos fixos em torno de noções como
os músicos desenvolvem um repertório musical música, som e “diálogo/integração musical”.3
que desestabiliza determinado “horizonte de Por práticas musicais tenho considerado as
possibilidades” imposto a esses grupos sociais. performances musicais, suas gravações, assim
Como ponto de partida, aqui, tomo o trabalho como os espaços onde elas tem sido performa-
desta autora e o conecto com a etnografia en- tizadas tais como festas, shows, home estúdios,
tre músicos e comunidades haitianas no Sul do igrejas, universidades, praças, escolas de músi-
Brasil em que estou envolvido. Faço isto no sen- ca, parques, ruas e espaços virtuais. Sugerir uma
tido de, mais especificamente, pensar naquilo escuta migrante significa situar uma prática mu-
que estaria sendo desafiado através e a partir sical que desloca, que conecta. Josh Kun (2019)
de práticas musicais migrantes haitianas na ci- elabora um “ouvir os sonideros” (DJs mexicanos
dade de Chapecó, Santa Catarina. Quais ques- migrantes na fronteira dos Estados Unidos) em
tões estariam, então, sendo colocadas em jogo
pelas produções sonoras de músicos e grupos seja como reinvindicações de grupos sociais, como é o caso
haitianos em uma cidade média, “agroindus- da reivindicação por uma cidade migrante, seja pelos inte-
resses de elites econômicas em torno dos rótulos de “cidade
trial”, “universitária”, “migrante” e “indígena”?2 de emprego” e de “cidade agroindustrial”.
3 Ao desconsiderarem as possibilidades da música
1 Etnomusicologia é um campo interdisciplinar que se propõem enquanto também produtora de violências (ARAÚJO 2006,
a pensar a música e o som como algo inseparável de dimensões CUSICK, 2006), tais entendimentos têm contribuído para a
étnico-raciais, sociais, econômicas, políticas e outras. manutenção de exclusões e epistemicídios no campo da
2 Estes termos são alguns dos que tem marcado a cidade, música (EWELL, 2020; QUEIROZ, 2017, 2020).

140
termos de uma escuta da mobilidade cultural.4 sico, produtor e DJ Malko J., e posteriormente
A noção de escuta tem figurado no campo insights em torno de uma performance virtual
da etnomusicologia e, nas últimas décadas, nos do coletivo musical Valide Konpa. A partir da es-
Sound Studies, campo que tem colocado como cuta destas experiências e do que elas suscitam,
central a experiência sonora/auditiva nos es- localizarei a dimensão sonoro-musical migran-
tudos sociais. A recente publicação Remapping te-haitiana como produção de outras perspec-
Sound Studies (2019), no entanto, tem problema- tivas e de outros territórios existenciais em face
tizado a ausência de perspectivas produzidas de um contexto hostil e discriminatório.
no “Sul Global” e apontado que estes estudos Sandro Mezzadra (2012), ao tratar sobre mi-
têm ocorrido, sobretudo, em grandes centros gração, capitalismo e subjetividade, e entenden-
urbanos. Diante disso, pensar questões em tor- do os grupos migrantes enquanto comunidades
no de som e escuta em uma cidade média como políticas, referindo-se a suas potencialidades
Chapecó, e a partir de uma migração Sul-Sul, em desafiar os limites de nossa imaginação po-
nos coloca outros questionamentos. lítica, cita a autora Bonnie Honig:
Tocar, ouvir e conviver com músicos do Haiti Fazendo uma crítica bastante convincente da
tem me feito ficar atento a como os espaços da homologia entre a imagem “xenofílica” do es-
cidade têm se alterado diante de fluxo globais trangeiro como alguém que tem algo a ofere-
cer, e da imagem “xenofóbica” do estrangeiro
que estão ligados, por sua vez, aos modos como
interessado em “tomar” algo da sociedade
o capitalismo contemporâneo se reapresenta que ele ou ela escolhe para viver, Honig inver-
(SASSEN, 2016). As músicas que têm ocupados te os termos e propõe que pensemos este “to-
os espaços e que escapam das casas, dos car- mar” como aquilo mesmo que os imigrantes
ros, das igrejas, das festas, dos locais de ensaios têm a nos oferecer (HONIG, 2001, p. 99). Em
outras palavras, as práticas pelas quais, de
têm demarcado territórios sônicos e reconfi-
acordo com a autora, a cidadania dos migran-
gurado a paisagem sonora da cidade (INGOLD, tes se expressa (mesmo nas condições de
2008; LA BARRE, 2012). As festas organizadas exclusão radical da cidadania juridicamente
pelas comunidades haitianas, com seu volume codificada) são vistas como questionadoras
sonoro, por exemplo, amplificam e reafirmam das bases estruturantes da própria democra-
presenças ao longo destes territórios. cia. (MEZZADRA, 2012, p.95)

Para este artigo, irei focalizar a produção de


dois artistas/coletivos haitianos buscando si- Interessa, aqui, considerar o que este recen-
tuar como ambas as experiências evidenciam te fluxo haitiano no Brasil provoca e coloca em
questões étnico-raciais neste fluxo migratório, relevo. Nosso foco aqui é em torno do sonoro,
como apontam novas articulações entre sujei- contudo, mudanças ativadas por esse regime
tos, comunidades, sonoridades e territórios, migratório podem ser observadas em várias
e como lançam questões fundamentais para outras esferas. 5 Meus interlocutores (universitá-
pensarmos a própria cidade e a sociedade hos-
5 Menciono o sistema de ingresso especial para alunos
pedeira. No primeiro momento apresentarei haitianos (Pro-Haiti) iniciado em 2014 pela Universidade
aspectos em torno de uma composição do mú- Federal da Fronteira Sul, com campus na cidade de Cha-
pecó, que tem sido entendido como resultado de diálogos
4 Nesta direção, também Tom Western (2020) propõe uma entre comunidades haitianas e representantes políticos; e
“escuta com deslocamento” para repensar a condição atual menciono também, como um todo, as políticas de migração
de refugiados na cidade de Atenas. brasileira.

141
farol

rios, operários, empreendedores, músicos) cru- do de Santa Catarina. Sua centralidade se dá


zam múltiplos espaços urbanos e tem produzi- principalmente pela presença do expressivo
do questionamentos que colocam em relação, polo agroindustrial que na última década tem
por exemplo, universidades, igrejas, escolas de impulsionado a ida de inúmeras populações
música, indústrias, comércio, estúdios, bares, migrantes como a de senegaleses, venezuela-
casas de shows. Escutar os territórios urbanos nos, congoleses e principalmente de haitianos.
através de uma escuta das práticas sonoras O antropólogo haitiano Handerson Joseph tem
haitianas também tem criado, assim, espaços sido fundamental no que se refere a pensar os
para que outras narrativas sobre a cidade e so- deslocamentos haitianos históricos e contem-
bre migrações emerjam. Ouvir a cidade a partir porâneos. Do ponto de vista etnográfico, ele
destes músicos/grupos migrantes, implica em “mostra o termo diáspora associado à mobilida-
reconsiderar também um contexto de racismo de transnacional como constitutiva da trajetória
histórico e estrutural brasileiro. de vida das pessoas e dos horizontes de possi-
Tenho encontrado pontos de contato com o bilidades delas” (JOSEPH, 2015, p.54). Como um
que apresento aqui, em Chalcraft, Segarra e Hi- exemplo do uso cotidiano do termo, Joseph
kiji (2017, p.309) ao abordarem a performance menciona que “as músicas haitianas produzidas
de artistas e músicos congoleses na cidade de no exterior são chamadas músicas de diáspora”.
São Paulo: ao se referirem à performance pro- (ibidem., p.53)
posta pelo artista multidisciplinar Shambuyi e Meu deslocamento para esta cidade se deu
pelo músico Yannick, dizem que eles “continu- por motivos de trabalho: nela fui professor de
am a desafiar nossa compreensão da cidade e música em diferentes espaços e através dessa
de sua experiência imigrante”. atuação passei a conhecer músicos do Haiti, a
No atual contexto pandêmico, outras formas receber convites para integrar grupos, partici-
de ocupação, agora também virtuais, da cida- par de shows, gravações e acessar uma rede mi-
de tem ganhado espaço. Vídeos, vídeo clipes, grante na cidade. Menciono isto porque é partir
plataformas streamings, gravações caseiras, destas entradas como músico, neste campo,
criação de home estúdios, debates virtuais e que posteriormente passei a situar essas expe-
transmissões online de shows tornam-se práti- riências em termos de uma tese de etnomusico-
cas de convivências possíveis. É envolvido nesta logia, atualmente em andamento. Minha experi-
situação dramática que apresento estas experi- ência nesta cidade sempre foi atravessada por
ências com o sonoro. Ainda que o primeiro caso estranhamentos e estar ali também me coloca-
que será apresentado aqui tenha ocorrido antes va em uma condição de migrante, embora isto
da pandemia, a música em questão seguiu cir- tenha sempre implicações muito distintas das
culando nesse momento de enclausuramento e, de meus interlocutores.
junto com outros vídeos e produções do artista
amplificaram seu trabalho e possibilitaram ou- Um rap haitiano sobre a cidade
tros tipos de conexões. Malko J. é um jovem rapper e DJ natural da
cidade haitiana Porto Príncipe e vive em Santa
Sobre a cidade e deslocamentos Catarina há quase dez anos. Logo que cheguei
Chapecó, com cerca de 220 mil habitantes, em Chapecó ouvi falar de seu trabalho. Neste
é uma cidade central da região oeste do Esta- momento ele recentemente havia lançado o

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vídeo clipe de sua música “Meu Desabafo”,6 que É lamentável, o câncer não curou do passado
contém cenas gravadas dentro do estádio de fu- Olha o estrago que as mente do passado ain-
tebol local. A música e o vídeo repercutiam e cir- da causam
culavam pela cidade. Neste momento, Chapecó E trazem a lembrança da barbárie
ainda estava impactada pelo trágico acidente Os irmãos queimados vivos por um bando de
de avião sofrido pela equipe do clube de futebol covardes que levam os nomes de praças e ruas
Chapecoense em direção à Colômbia, ao final Difamando o povo e reprimindo a luta
de 2016. Malko J. inicia essa música mencionan- Sentimento verdadeiro é o amor pelo dinheiro
do a expressão “força Chape, força Chape” que O ódio e a ganância são os pilares do templo
a partir do acidente passou a denotar, além de Com milhões de fiéis adorando o demônio e
apoio ao clube de futebol, apoio à cidade e seus beijando seus pés
habitantes. SP, SC a história é a mesma
Posteriormente a este primeiro contato com Safado de barriga cheia roubando merenda
o trabalho do músico, conheci outra composi- Capital de agroindústria, turismo de negócio,
ção sua, a qual me deterei aqui, e que foi criada colono escravo no “migué” que era sócio
em parceria com um coletivo de rappers da ci- E patrocinam o time, financiam campanha,
dade. Intitulada “Terra de Coronéis”,7 a música trabalhador explorado já não tem esperança
refaz o histórico da cidade, reconta um famoso Inventam a crise mas tudo milionário, pro
assassinato na principal praça na metade do povo se humilhar, aceitar qualquer salário
século XX, ironiza o slogan de cidade agroindus- Artimanhas que vão da prefeitura ao senado,
trial e de cidade do trabalho, e aponta sua face montando o verdadeiro crime organizado
xenófoba e racista. Morador despejado, índios executados, sem
A primeira parte da letra é cantada pelo grupo terra ocupa onde impera o descaso
Sociedade Rap de Rua, grupo que também assi- Estudante espancado, professor humilhado
na a composição, e a segunda parte por Malko J.: pelo direito da escola e condição de trabalho
O Brasil é meu lugar mesmo com tudo bagunçado De que adianto o poder se o espírito é fraco?
Aqui já não é mais só futebol, carnaval De que adianta a luz e os olhos fechados?
Multi territorial, cultural, racial, multinacional, Se o povo não lutar vai viver sufocado, na ter-
o animal irracional ra dos coronéis que comandam o estado
Governo sangue suga até corrupção astral
E quem se salva nessa guerra na luta pelo poder É um rapaz caribenho, latino americano
E quem só quer poder trabalhar sem sofrer Eu sei que os povos sofrem e eram escravizados
E quem veio pra cá atrás de uma vida melhor Os negros indignados, indígenas, caboclos,
E sente a dor desse maldito algoz muitos foram matados, calados
Chegar numa entrevista e a humilhação de ser barra- haha vâmo seguindo, haitiano ainda é assas-
do porque quando te ligaram tu não disse que era afro sinado, discriminado

6 Link do videoclipe “Meu Desabafo” disponível na platafor-


Não somos coitados porque somos Toussaint,
ma youtube: https://www.youtube.com/watch?v=Cnv-lr- Dessalines, Pétion
MHxt8 Somos humilhados porque aqui não tem nin-
7 Link da música “Terra de Coronéis” disponível na guém que nos represente
plataforma youtube: https://www.youtube.com/watch?-
v=75nm2AiOOCw Imigração no Brasil a cada dia fere nosso orgulho

143
farol

Dão vinagre por água ao negro, e empresário evento musical”8 (CHERNOFF, 1989, p.2).
paga metade de um salário mínimo Malko, diferente de outros músicos haitianos
Um sorriso falso é o pagamento do trabalho que vivem em Chapecó e naquela região oeste
Achar serviço é fácil, mas na hora da entrevis- do estado, tem uma circulação mais ampla no
ta por causa da cor da nossa pele eles matam circuito de música local, especialmente na cena
nosso currículo rapper, participando da organização de ba-
Caraca, século 21 ainda tem o preconceito, talhas de MC’s e de festas como DJ em boates
até na procura do trampo tem um conceito centrais. Sobre o rap Terra de Coronéis, Malko me
A cidade é um campo, quem fica em pé tá no diz que com essa música passou a sofrer abor-
comando dagens policiais mais violentas, considerando o
Sou preto, sim! Abordagem fora da lei eu não teor de provocação que a música contém. Isso
aceito e nem me calo me remete a um episódio ocorrido alguns anos
E prefiro voltar do que trabalhar pela força na antes do lançamento dessa música, em torno de
escravidão moderna por mão de obra um livro que aborda esse histórico violento da
I’m to be haitian, valeu! cidade (HASS, 2013). Ataques endereçados à au-
tora por escrever a respeito de um linchamento
Malko J. e o coletivo Sociedade Rap de Rua em praça pública nos anos 1950,9 episódio que
(SSR) de Chapecó apontam, tanto diretamente também aparece no rap aqui em questão, foram
na música quanto nos seus discursos em torno justificados pelo fato do livro evidenciar uma eli-
dela, uma cidade migrante e, nela, a experiên- te local que conecta um passado e presente na
cia recente de sujeitos e comunidades migran- região. Creio que a existência de um rap que re-
tes e refugiadas. Apontam uma cidade com um coloca estas questões, enunciado por um artis-
histórico de migrações que remontam aquelas ta haitiano, complexifique a trama étnico-racial,
ocorridas no final do século XIX por italianos, política e econômica que compõe a cidade.
alemães e poloneses. Apontam uma cidade Procuro conectar estas experiências em torno
industrial que oferece empregos precarizados. do sonoro com o que apresentam Ana Hofman
Apontam o preconceito da cidade. Mencionam e Srdan Atanasovsky (2017) sobre contextos de
um assassinato em praça pública pelos “coro- conflito e sobre grupos minoritários. Ao falarem
néis daquela terra”, referência que aparece no de memórias sônicas enquanto intervenções
título da canção. Seguindo a noção nexo como nos territórios pós-Iugoslávia, especificamente
colocada pelo musicólogo ganês Kwabena Nke- Eslovenos e Sérvios, se referem a ações sonoras
tia, podemos dizer que esta canção está operan- como modos de participação política no enfren-
do como um nexo entre subjetividades coletivas tamento às políticas urbanas de silenciamento.
e individuais, e entre experiências do passado e
do presente. Como proposto por Nketia, nexo 8 Esta tradução, não publicada, foi feita em 2011 pelo
indica “um meio de conexão ou simultaneida- Grupo de Estudos Musicais (GEM) ligado ao Programa de
Pós-Graduação em Música da UFRGS. Foi traduzida coleti-
de entre domínios – que de outra forma seriam vamente por Paulo Muller, Ivan Paolo, Marília Stein, Luciana
distintos institucionalmente (e analiticamente) Prass, Paulo Murilo, Mario Maia, Leonardo Cardoso e Maria
– trazidos juntos para dentro da estrutura do Elizabeth Lucas.
9 Este episódio também é contado no documentário “A pri-
meira pedra” (2018) do diretor Vladimir Seixas e produzido
pelo canal Futura.

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Mencionando o caso de um coral na capital Liu- reto e engajado com as comunidades haitianas
bliana que se propõe a ocupar a cidade e que e com suas articulações, eventos e festas. As fes-
se baseia em repertórios atribuídos à determi- tas haitianas, para além das redes entre músi-
nados códigos militantes, dizem que este coral cos, são mobilizadoras das comunidades como
busca “reintroduzir histórias marginalizadas/ um todo. É frequente que as festas tenham uma
‘escondidas’ da cidade (de mulheres, migrantes, ampla programação com rappers, DJs, grupos
refugiados etc.) no seu mapa e revelar paisagens de dança, e ainda pessoas envolvidas em tor-
urbanas ‘inapropriadas’” (HOFMAN, ATANASO- no da culinária e bebidas típicas, com apoio de
VSKY, 2017, p.95). empreendedores haitianos que tem estabeleci-
No caso em torno da música de Malko J. e do mentos em Chapecó, e com apoiadores do Haiti.
coletivo SSR, ao mesmo tempo em que apre- Olson, ao falar da sua chegada na cidade, sobre
sentam e reafirmam as questões que se referem a criação da banda, sua busca por músicos e
às migrações do século XXI, sobre ser negro sua iniciativa nas produções de festas, aponta
migrante naquela cidade, trazem à tona um esses eventos como significativos para o acesso
panorama profundo desta cidade. Mais do que a lazer, a despeito de suas jornadas exaustivas e
recolocar estes episódios históricos em cena – precarizadas de trabalho, e do direito à cidade.
recolocar o “inapropriado” -- as articulações em [...] Eu tenho uma relação muito boa com as
torno dessa música atualizam questões ligadas pessoas [pessoas do Haiti em Chapecó] por-
ao racismo brasileiro e à experiência haitiana e que muitas delas gostam da minha banda,
porque esse é o ritmo deles, de haitianos...
migrante negra no Sul do Brasil no século XXI.
e que eles não têm aqui, só a banda haitiana
A canção explicita essa experiência migrante que vai trazer diversão...só a banda. Antes,
e diante disto estabelece pontos de contato e aqui, não se divertia nada. Depois do traba-
pontos de tensionamentos. Por pontos de con- lho era voltar para casa, dormir, amanhã tra-
tato me refiro a rede criada por Malko entre ra- balhar, chegar, dormir, amanhã trabalhar. Só
que agora que tem essa banda, a cada dia que
ppers e outros artistas no Brasil, e por pontos de
fazemos uma festa as pessoas gostam, vão se
tensionamentos me refiro aos efeitos violentos divertir, vão dançar, vão comer, vão conver-
amplificados pela performance dessa música. sar. (OLSON, entrevista online realizada em
set. de 2020)
Show virtual, reverberação e silenciamento
A Valide Konpa é um coletivo de músicos hai- Um dos efeitos do ativismo da banda entre as
tianos dedicado ao gênero musical Konpa Di- comunidades migrantes, tal como Olson coloca,
rek, expressivo da cultura haitiana. O grupo foi tem sido a entrada de grupos haitianos de mú-
iniciado em 2019 e conheci Olson, da cidade sica e de dança em eventos oficiais organizados
haitiana Petit Gôave e um dos fundadores do por setores culturais da cidade, e isto também
grupo, a partir de seu telefonema me convidan- tem imposto novas situações. Do ponto de vista
do para participar do coletivo como tecladista. de uma práxis sonora10 (ARAUJO, 2013), tomo os
Meu contato havia chegado até ele através do
rapper Pitit Guerline Nan (PGN), também um jo- 10 “[...] por meio da categoria práxis sonora enfatizo a
vem produtor musical haitiano com quem tenho articulação entre discursos, ações e políticas concernentes
ao sonoro, como esta se apresenta, muitas vezes de modo
trabalhado. O grupo Valide Konpa é uma frente
sutil ou imperceptível, no cotidiano de indivíduos (músicos
musical na cidade e região e tem um diálogo di- amadores ou profissionais, agentes culturais, empreende-

145
farol

discursos estigmatizantes e as práticas hege- agora também virtuais, e como seus limites são
mônicas (a música incluída) como um dos dis- mediados em um contexto migratório (MEZZA-
cursos colocados em jogo neste cenário urbano. DRA, NEILSEN, 2013). Além do público haitiano
Discursos oficiais, como são aqueles enuncia- presente virtualmente neste show (a partir dos
dos pelos setores culturais e artísticos institu- países mencionados anteriormente) há uma re-
cionais, e que, por vezes, fazem determinada corrente coparticipação na organização desses
leitura exotizante dos movimentos migrantes, shows e festas que atravessam esses espaços
são lidos aqui neste registro. transnacionais. Cartazes de divulgação, o dese-
Ao longo do ano de 2020, sob todos os efeitos nho de figurino para os shows, as gravações de
da pandemia que impactaram as atividades cul- beats e outras produções são com frequência
turais, shows, ensaios, gravações etc., participei resultado de colaborações com parceiros e ami-
junto com uma banda Valide Konpa da inscrição gos que estão no Haiti. Quero situar, com isto,
em um edital local que estava apoiando finan- o quanto a dimensão online atravessa as vidas
ceiramente artistas nas produções de shows diárias e musicais de meus interlocutores.
transmitidos virtualmente. Eles foram aprova- Ao término da transmissão online, as pessoas que
dos neste edital e auxiliei na organização deste estavam no local, músicos e equipe técnica de trans-
show. A pandemia impunha, então, outros mo- missão, sofreram uma abordagem policial sob falsa
dos de “estar em campo”, e do ponto de vista alegação de festa clandestina em meio a pandemia.
da pesquisa etnomusicológica foi interessante Mesmo sendo apoiado por uma instituição pública
estar ali naquele evento virtual, interagir e rever local (Secretaria de Cultura) o evento, ainda assim, foi
interlocutores e amigos, ouvir o setlist da banda alvo de violência policial. Um jornal sensacionalista
e acompanhar os comentários do público. Este local, que no dia seguinte noticiou o ocorrido na mes-
show virtual teve cerca de 20 mil visualizações ma linha do discurso policial, foi alvo de comentários
com público interagindo de países como Argen- xenófobos em sua publicação. Esse episódio da Live
tina, Chile, Peru, EUA, República Dominicana, pode ser situado em uma relação de continuidade
Canadá, França e Bélgica, além de Haiti e Brasil. com outros que ocorreram anteriormente em torno
O setlist desta noite, assim como tem sido de shows, ensaios e festas da comunidade, em que
nos outros shows, apresentou um repertório questões acionadas pelo sonoro apresentam posi-
baseado em grupos musicais de konpa reco- ções racistas e xenófobas. Apresento este episódio
nhecidos internacionalmente e radicados em na medida em que ele sugere o som como presença
países que compõem a diáspora haitiana. Aque- migrante-negra-haitiana no bairro, em uma cidade
la performance em Chapecó recolocava, assim, majoritariamente branca, ao mesmo tempo em que
agora por meio da música, a cidade em uma sugere o som como violência. O som que reverbera
rede transnacional. Isto também nos recolo- naquele território enquanto afirmação migrante, que
cava questões em torno da noção de fronteira, articula e conecta uma rede, é também o som que
provoca reações de moradores, vizinhança, polícia,
dores, legisladores), grupos (coletivos de músicos, públicos,
categorias profissionais), empresas e instituições (por exem-
que produz rupturas e dispersões. A etnomusicóloga
plo, sindicatos, agências governamentais e não-governa- Ana Maria Ochoa, a respeito de uma acustemologia
mentais e escolas), tomando como pano de fundo a política da violência,11 diz que:
e as lutas pela cidadania plena e pelo poder no Brasil hoje.
(ARAÚJO, 2013, p.9)
11 O termo acustemologia é de Steven Feld e foi criado

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Si la irrupción de la fuerza de las violencias en citam reações repressivas. O episódio mencio-
eventos concretos interrumpe nuestra vida nado anteriormente em torno da transmissão
cotidiana, y nos ubica en el límite entre lo virtual refere-se mais diretamente à reação do
humano y lo inhumano (Uribe Alarcón 2004),
Estado, por meio da polícia local. No entanto,
su memoria y elaboración las involucra en las
tramas temporales del miedo y la esperanza, ao longo destes últimos anos acompanhando
la memoria y el olvido, el silencio asumido y os trajetos desses músicos pude observar mo-
el silenciamiento obligado, la no escucha y lo dos violentos e estigmatizantes lançados a par-
audible. (OCHOA, 2006, n.p). tir de outras posições como por pessoas ligadas
a casas de show e bares, por técnicos de som
Ao reivindicar uma acustemologia da violên- e músicos locais e por determinado setor pro-
cia, Ochoa assinala que as sociedades recorren- gressista/alternativo. Ainda, as festas haitianas,
temente compreendem os processos violentos ao contratarem pessoas locais para serviços de
como algo exterior ao social. A noção de ruído segurança, equipes de som, iluminação e trans-
é, assim, usada como metáfora musical para porte, criam situações novas na cidade. Torna-
aquilo que não funciona na sociedade. Segundo se, por exemplo, recorrente que em uma festa
Ochoa, o “reconhecimento de que as violências em que participam trezentas pessoas negras, as
surgem ‘de dentro da esfera social’, portanto, pessoas encarregadas de prestarem os serviços
também implica o desmantelamento desta são brancas. Creio que estes exemplos comple-
metáfora sócio musical e da ontologia musical xifiquem ainda mais as noções fixas a respeito
em que se baseia, o ruído como externo à mú- das relações entre uma cidade majoritariamen-
sica e ao acusticamente agradável” (ibidem., te branca versus comunidades migrantes ne-
n.p). E isto implica, de acordo com ela, em re- gras. Creio que questões como estas coloquem
conhecer que são políticos os limites entre o camadas nos modos como as comunidades
que se considera som e música e a respeito do haitianas se articulam, como reorganizam seus
entendimento da música apenas como prazer e discursos diante de situações adversas, e como
sociabilidade. Compreender práticas musicais produzem outras cidades.
como ruídos, que poderiam ou deveriam ser eli-
minadas, são processos que partem, assim, do Conclusões
próprio sonoro. A partir do trabalho de dois músicos/grupos
Ana Maria Ochoa diz que o reconhecimento haitianos, propus uma possibilidade de escuta
disto nos permite “traçar a maneira como se da cidade de Chapecó. Em torno das experiên-
articulam os conhecimentos sobre a esfera pú- cias e questões suscitadas por Malko J. e pela
blica e sobre o musical em longas tramas his- banda Valide Konpa, sugeri uma escuta da cida-
tóricas de exclusão que podem ser acionadas, de sob a perspectiva dos fluxos e deslocamen-
consciente ou inconscientemente, em momen- tos migrantes haitianos.
tos de violência”. As festas haitianas que mobi- Tenho articulado o termo sonoro junto ao
lizam as comunidades haitianas e migrantes na musical a fim de pensarmos, para além da no-
cidade, produzem potências sonoras que sus- ção estabelecida de música,12 um campo de

para “sugerir uma união entre acústica e epistemologia e 12 “Por música, então, os etnomusicólogos se referem ao
investigar a primazia do som como uma modalidade de complexo total de interação social e padronização cultural
conhecimento e de estar no mundo” (OCHOA, 2006, n.p). relacionados à institucionalização do som estruturado.

147
farol

forças vibracionais (GOODMAN, 2010) que nos ciedade local, sejam com o Haiti, sejam com os
permita considerar noções como ruído, silêncio, múltiplos territórios da diáspora haitiana pelo
silenciamento, paisagem sonora, assim como os mundo). Sandro Mezzadra (2012, p.73), ao pro-
limites, demarcações e interdições que têm sido por uma perspectiva de análise das “políticas
acionadas em torno do som e de performances de mobilidade” que enfatize “a dimensão sub-
musicais. Acompanhar os trajetos de músicos jetiva no interior das lutas e enfrentamentos
e de suas músicas ao longo da cidade, nos tem que constituem materialmente o terreno dessas
feito pensar esse sonoro em termos de encon- políticas”, aponta as redes afetivas como algo
tros entre “mundos musicais locais” e “mundos fundamental na composição dos fluxos migra-
musicais migrantes”, sendo estes encontros efe- tórios. Diante disto, e em diálogo com o papel
tivados não sem tensões e violências. A “poética desempenhado pelas redes afetivas, busquei
da relação” do martinicano Édouard Glissant situar aqui o papel que as redes sonoras (com
(1990) nos fala sobre as possibilidades de con- seus nexos, territorializações, amplificações,
siderarmos a dimensão conflitiva em torno da presenças, afirmações e tensionamentos) têm
ideia de relação. Creio que com Glissant pode- desempenhado na composição desta migração
mos reconsiderar, também, uma noção recor- haitiana nesta cidade do Sul do Brasil.
rente nos estudos sobre migração que é a de “in-
tegração social”, e colocar em xeque outra que Referências
é a de “diálogo musical”. Nos recortes etnográ- ARAUJO, Samuel. Entre muros, grades e blin-
ficos trazidos aqui, nesse cenário sonoro-musi- dados; trabalho acústico e práxis sonora na so-
cal, isto se apresenta como algo mais complexo ciedade pós-industrial. El oído pensante 1 (1).
e contraditório. 2013. Disponível em: http://ppct.caicyt.gov.ar/
Por fim, música, neste contexto migratório index.php/oidopensante. Acessado em: 20 de
aqui apresentado, se refere também a modos mar. de 2021.
de presença na cidade, a modos de participa- ARAÚJO, Samuel et allí. A violência como con-
ção no debate público, de participação polí- ceito na pesquisa musical, reflexões sobre uma
tica, à produção de espaços transnacionais13 experiência dialógica na Maré. Transcultural
e à criação de conexões (sejam elas com a so- Music Review 10, 2006. Disponível em: www.
sibetrans.com/trans/trans10araujo.htm. Aces-
Para evitar pressuposições sobre o significado musical,
sado em: 20 de mar. de 2021.
os etnomusicólogos têm tentado abordar a música como
um complexo cultural de forma similar ao modo como os BAILY, John. So Near, So Far: Kabul’s Music
antropólogos têm abordado o estudo da religião, isto é, sem in Exile. Ethnomusicology Forum, vol.14, nº 2,
referência a uma noção filosófica ou universalista de um
2005, pp.213-33.
impulso religioso ou de uma realidade metafísica; em um
contexto musical, tal abordagem evita que se dê à música CHALCRAFT, Jasper; SEGARRA, Josep Juan;
o status de um a priori” (CHERNOFF, 1989, p.2). Sobre esta HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. Bagagem Desfeita:
tradução vide nota de rodapé 7. A Experiência Da imigração Por Artistas Congo-
13 “Enquanto a teoria dos ‘sistemas migratórios’ chama
atenção para a densidade histórica dos movimentos das
leses. GIS - Gesto, Imagem E Som - Revista De
populações, antropólogos se debruçam em suas análises Antropologia 2 (1). São Paulo, Brasil, 2017. Dis-
sobre os novos espaços sociais transnacionais que estão ponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2525-
sendo formados a partir dos comportamentos e práticas
3123.gis.2017.129448. Acessado em: 20 de mar.
sociais através dos quais a autonomia das migrações se
expressa em sua materialidade” (MEZZADRA, 2012, p.83) de 2021.

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150
ARTIGOS
151
farol

CURADORIA E TECNOLOGIA, HISTÓRIA E ARTE: PENSANDO A


MEDIAÇÃO

CURATORSHIP AND TECHNOLOGY, HISTORY AND ART: THINKING ABOUT MEDIATION

Ana Gláucia Oliveira Motta


SEDU/IPAE

Resumo: O presente artigo busca pensar a curadoria como uma “primeira mediação” em exposições
culturais de arte e história e o papel do curador para além do sentido stricto sensu da palavra, ou seja,
“aquele que cura”. Neste contexto, discutimos também o uso de tecnologias nessas exposições e a
necessidade de pensar novas formas para uma mediação subjetiva. As informações aqui apresenta-
das são parte de uma pesquisa exploratória e para tanto, utilizamos a revisão bibliográfica como me-
todologia principal. Por fim, analisamos como estudo de caso dois exemplos expográficos: “Mundos
Invisíveis – Mostra de Arte Científica Brasileira”, realizado no Rio de Janeiro (RJ) em 2018 e “Imanências”,
realizado em Vitória (ES), em 2017.

Palavras-chave: Curadoria, Tecnologia, História, Arte, Mediação.

Abstract: This article proposes that curation is a “first mediation” in cultural exhibitions of art and his-
tory. It also defines the role of the curator not only as the professional who preserves and organizes a
collection but also as the one who facilitates the public’s access to information and experience in an
exhibition. In this context, we also discussed the use of technologies in exhibitions and the need to think
about new ways of subjective mediation. The information presented is part of an exploratory research
and, for that, we used the literature review as the main methodology. Finally, we analyzed, as a case
study, two exhibitions: “Mundos Invisíveis – Mostra de Arte Científica Brasileira” that happened in the city
of Rio de Janeiro-RJ in 2018, and “Imanências”, that happened in the city of Vitória-ES, in 2017.

Keywords: Curatorship, Technology, History, Art, Mediation.

152
No século XXI, a globalização e o avanço O curador
tecnológico estão em todos os lugares. Das A etimologia da palavra “curador” nos remete
tarefas cotidianas mais comuns – como uma ao latim curator que por sua vez está associado
troca de mensagens via whatsapp – até ações à ideia “daquele que cura, que zela”. Tal conceito
mais complexas – como o uso de impressoras e sua aplicação foram se ampliando, se modifi-
3D na área da saúde. Nada escapa à tecnolo- cando e se ressignificando ao longo do tempo;
gia, nem mesmo a cultura. Esse novo cenário tanto que, por exemplo, atualmente, em dicio-
traz consigo mudanças na forma com que o ser nários mais simples como o Michaelis, o termo
humano interagir com sua arte e sua história, “curador de artes” possui uma definição própria.
novas sensibilidades, novas mediações, novas De acordo com Bruno (2008, p. 2-3), a origem
posturas profissionais. Para algumas pessoas deste conceito está relacionada aos antigos ga-
essas novas configurações representam um binetes de curiosidades e antiquários do século
problema; outras, no entanto, uma solução ou XVII, frutos do colecionismo, das grandes nave-
possibilidade. gações, da curiosidade pelo exótico e do saque
Diante desse cenário, buscamos nesse artigo realizado em civilizações recém-descobertas
pensar a curadoria como uma “primeira media- a época. Dessa forma, “[...] a origem das ações
ção” em exposições culturais de arte e histó- curatoriais carrega em sua essência as atitudes
ria e o papel do curador para além do sentido de observar, coletar, tratar e guardar que, ao
stricto sensu da palavra, ou seja, “aquele que mesmo tempo, implicam em procedimentos de
cura”. Durante muito tempo, principalmente em controlar, organizar e administrar”. Esse caráter
exposições e acervos não relacionados à arte, de observação, coleta e guarda é basicamente o
o curador desempenhou uma função majori- que definiu, durante muito tempo, alguns cura-
tariamente de “protetor”. Em outras palavras, dores em instituições históricas ou de ciências.
suas obrigações principais, com relação às cole- Contudo, quando o papel do curador ganhou o
ções, eram de organizar, classificar e conservar. campo das artes, sua função profissional pas-
Porém, esse seu papel vem se alterando com o sou por novos contornos e assim, ele se fez pre-
passar das décadas. sente em outros espaços institucionais como
Buscaremos discutir também o uso de tec- galerias de arte, centros culturais e de memória.
nologias aliado a processos de curadoria em Dessa forma:
exposições de arte e história, bem como a ne- A definição de curadoria ganhou atributos
cessidade de pensarmos novas formas para novos que trouxeram para este cenário a su-
uma mediação subjetiva. Para tanto, partiremos pervalorização das atividades expositivas das
coleções e dos acervos, a possibilidade de ar-
de uma pesquisa exploratória de revisão biblio-
ticulação com os próprios autores das obras
gráfica, a fim de analisarmos dois exemplos ex- e um protagonismo sem precedentes que se
pográficos: “Mundos Invisíveis – Mostra de Arte mistura com o mercado de artes, com os ca-
Científica Brasileira”, realizado no Rio de Janeiro nais de comunicação e com a projeção social.
(RJ) em 2018 e “Imanências”, realizado em Vitó- (BRUNO, 2008, p. 6)
ria (ES), em 2017, na tentativa de pensar a rela-
ção entre curadoria, tecnologia, história, arte e A partir desse protagonismo mencionado na
mediação. citação, o curador passou então a desenvolver
diversos perfis, como o do “curador indepen-

153
farol

dente”1, o do “curador intelectual”2 e o do “cura- vista Select, por Juliana Monachesi (2013), artis-
dor institucional”, 3 entre outros. Outra definição tas e curadores tentaram responder à pergunta
sobre esse profissional nos é apresentada por “Para que serve o curador?” no contexto da arte
Cauê Alves, que tomamos como referência nes- contemporânea. Segundo Tadeu Chiarelli “[...]
te artigo. Segundo este autor: o curador não passa de um logo que chance-
O curador institucional não é aquele que co- la qualquer outra mercadoria, conferindo-lhe,
loca em circulação o que apenas o agrada, quase sempre, um status não muito mais es-
mas é um sujeito que pensa, estuda e refle- pesso do que uma nota de 1 real. Mas o curador
te. Uma exposição não poderia ser somente
pode ser o filtro entre a arte e o tal mercadão”.
uma manifestação pública do gosto indivi-
dual de um curador, ainda mais quando feita Já Eduardo Srur percebe o “[...] curador como
com dinheiro público e em espaço público. um agente que intermedeia conceitos e negó-
A exposição é resultado de uma pesquisa e cios dentro do circuito da arte”. Felipe Chaimovi-
reflexão individual ou coletiva, ligada ao gos- ch aponta que “o curador de arte constrói ciclos
to sim, mas que leva em conta as relações e
visuais reunindo obras independentes entre
correlações com a vida pública, que diz res-
peito a juízos ponderados e fundados em
si, mas que passam a formar um conjunto por
critérios que nunca antecedem os próprios ocasião da curadoria”, enquanto para Fernando
trabalhos de arte, mas que são fornecidos Velazquez, o curador “articular conhecimentos
por eles. (ALVES, 2010 p. 45) específicos, fruto de uma pesquisa séria e apro-
fundada sobre um assunto qualquer”.
Essa dificuldade de se encontrar um consen-
Embora essas palavras tenham sido expres- so vem reforçar o quão complexo e importante
sas ao falar de instituições de artes, e salvas as é hoje o papel desse profissional no campo das
devidas proporções de suas especificidades, a exposições. Se ele é “articulador”, “intermedia-
definição da função do curador, apresentada dor”, “filtro”, “administrador”, “organizador” e
por Alves, poderia ser bem aplicada à prática “intelectual”, entendemos aqui que ele é tam-
curatorial de uma maneira geral. bém mediador.
O curador enquanto profissional é, na con-
temporaneidade, envolto por múltiplas inter- A mediação
pretações. As definições “do que ele é” ou “para O campo da mediação cultural é em si muito
que ele serve” são múltiplas até mesmo dentro vasto o que oferece uma gama diversificada de
de seu campo, como pudemos identificar du- visões sobre o tema. Na obra “Caderno de dire-
rante nossa pesquisa. Em entrevista para a re- trizes museológicas 2”, José Neves Bittencourt
nos apresenta uma perspectiva geral do que é
1 “[...] aquele que não tem vinculação institucional específi-
ca, mas que depende de financiamentos para realizar seus mediação e sua relação com o curador. Segun-
projetos.” (PEQUENO, 2012, p.18) do ele:
2 “[...] aquele para o qual cada trabalho da exposição é a “Mediação”, segundo o “Dicionário da Acade-
frase de um texto que ele deseja escrever, de forma que seus
mia das Ciências de Lisboa”, é o “ato ou efeito
diferentes projetos se completem em livros.” (PEQUENO,
de mediar”; ou, de forma mais aprofundada,
2012, p.29)
3 “[...] aquele que, como o próprio nome define, trabalha para
“ato de servir de intermediário entre pessoas,
instituições como museus e centros culturais, pensando no grupos, partidos, facções, países etc., a fim de
perfil cultural que deseja estabelecer, priorizando a aquisição dirimir divergências ou disputas; arbitragem,
de acervo ou sua circulação.” (PEQUENO, 2012, p.30) conciliação, intervenção, intermédio”. A me-

154
diação é, então, uma ação que se remete a sis- compreende-se, que a estética moderna se
temas de regulação instituídos para reduzir a depara mais uma vez com o conceito de gos-
dissonância, a incongruência, a distorção. [...] to, aqui entendido como correlato subjetivo
Por outro lado, uma definição mais específica da irracionalidade do objeto belo enquanto
de “mediação” a coloca como “mediação cul- objeto sensível. A subjetividade já não se re-
tural”, e a define como “processos de diferen- duz, portanto, às faculdades inteligíveis e a
te natureza cuja meta é promover a aproxima- humanidade deixa de se separar da animali-
ção entre indivíduos e coletividades e obras dade apenas pelas virtudes da razão. (FERRY,
de cultura e arte”. O autor dessa definição a 1994, 40-41 apud COSTA, 2000, p.12)
remete à “ação cultural” e “agente cultural”.
Podemos dizer que no cruzamento dessas
duas definições de “mediação”, encontramos Não é nossa intenção, neste artigo, classificar
o curador. [...] primeiro, ele a coloca entre o
como boas ou más essas formas de mediação,
museu e suas atividades, e os diversos públi-
cos que podem procurar o museu; segundo, ou então, hierarquizá-las. Defendemos que uma
com esse ato, ele aproxima os públicos da cul- não exclui a outra. Há ainda uma gama diversa
tura. (BITTENCOURT, 2008 p. 3) de meios possíveis para se pensar e fazer essas
pontes. O que gostaríamos de destacara aqui é
Ou seja, o mediador é aquele que constrói que diante do cenário atual de transformações
pontes, seja entre a informação e a obra, entre constantes, é necessário compreender que o
os profissionais técnicos envolvidos, ou ainda visitante está interessado tanto em obter co-
entre o público. A mediação acontece assim, em nhecimento, como em gozar um momento de
todos os momentos de uma exposição, desde a fruição e, assim, criar seus próprios sentidos e
sua concepção até o pós exposição e pode se críticas. Diante do exposto até o presente, acre-
fazer presente também nas ações educativas, ditamos que o uso de tecnologia nos espaços
no material de mídia e na curadoria. expográficos pode e deve ser utilizado como
É importante pensar em que tipo de media- instrumento facilitador desse processo.
ção se deseja realizar. Apresentamos aqui duas
concepções: a “mediação informacional” e a As exposições e novas tecnologias
“mediação subjetiva”. Enquanto a primeira foca Dos gabinetes de curiosidade do século XVII às
na transmissão da informação presente na ex- grandes bienais da atualidade muita coisa mu-
posição, expressa nas obras ou ainda adquirida dou. A tecnologia avança cada vez mais. A arte, os
por meio de pesquisa prévia da equipe, a segun- museus e as exposições mudaram, assim como
da preocupa-se de proporcionar ao visitante a seus visitantes. Algumas pessoas profetizaram
possibilidade de criação de sentidos. Na media- que com a pós-modernidade e o avanço das tec-
ção informacional o público é como um receptor nologias chegariam ao fim os museus, a arte e a
do processo expositivo. Na mediação subjetiva, própria história. Para fugir dessa visão um tanto
o público é entendido como sujeito para além fatalista, foi preciso renovar, se adaptar e inovar.
da razão, com noções estéticas e emocionais Como afirma Wilton Garcia, “no contemporâneo,
próprias. Sobre isso nos esclarece Luc Ferry: as coisas alteram-se sem necessariamente ope-
Já não é pela razão que o sujeito poderá apre- racionalizar uma síntese teórica. Não pode mais
ender a manifestação do belo, ou até mesmo haver só um ponto de vista exclusivo, fixo. Tudo
as regras que o definem [...] mas sim por uma é agenciável, negociável. Nada de esgotamento!”
faculdade de outra ordem. É neste ponto,
(GARCIA, 2007, p. 5 apud ISRAEL, 2011, p. 7).

155
farol

Hoje a tecnologia auxilia no desenvolvimento Muitos autores, como Söke Dinkla, argu-
de mediações de forma muito frutífera, principal- mentaram que a arte computadorizada in-
mente em exposições com temáticas históricas, terativa (década de 1980) desenvolve idéias
já contidas na nova arte da década de 1960
visto que elas sofrem, muitas vezes, ao trabalhar
(happenings, performances, instalações): a
com temáticas distantes espacialmente, tempo- participação ativa do público, a obra de arte
ralmente e culturalmente do público, fato este como processo temporal do que com obje-
que dificulta a assimilação da informação que se to fixo, a obra de arte como sistema aberto.
quer comunicar. Valéria Peixoto de Alencar, em (MANOVICH, 2005, p. 47)
seu estudo intitulado “Mediação cultural em mu-
seus e exposições de História”, aponta que: A citação acima, ao destacar o caráter “aber-
[...] a certos tipos de dispositivos de media- to” e “participativo” de obras elaboradas a par-
ção: alguns com forte apelo tecnológico tir da união entre arte e tecnologia, remete ao
hoje em dia, como aplicativos para tablets e nosso tópico anterior, principalmente ao caráter
celulares que possibilitam outro olhar para
subjetivo que a mediação pode e deve abordar.
a exposição, ou mesmo no próprio espaço
expositivo, materiais digitais que apresen- Afinal, como bem aponta Boelter:
tam contextos e problemas para refletir Nessas mostras, tecnologias de ponta como
sobre as obras, ou ainda materiais gráficos realidade aumentada, robótica, aplicativos,
simples que provocam uma leitura de obra. QR codes, mapping, processing, kinect, pro-
Normalmente tais dispositivos de mediação jeções 3D, entre outras são frequentemente
são utilizados para o público em geral, com utilizadas nas propostas dos artistas. Co-
o objetivo de fazer o espectador entender e/ nhecer as poéticas e funcionamento das tec-
ou refletir sobre uma determinada obra, ob- nologias utilizadas nas produções artísticas,
jeto ou imagem. (ALENCAR, 2015, p. 116-117) são importantes tanto para os curadores
quanto para os designer de exposições, que
juntamente com a equipe multidisciplinar,
Seguindo os debates atuais sobre diversi-
irão planejar o espaço da melhor maneira.
dade, interdisciplinaridade e novas lingua- (BOELTER, 2016, p.127)
gens, o curador e o processo de curadoria, ao
conceber uma exposição, devem considerar
que o uso da tecnologia (seja ela em softwa- Não podemos falar de subjetividade sem falar
re, hardware, inteligência artificial, estética também de poética. Compreender as tecnolo-
ciborgue ou qualquer outra) ocupa uma posi- gias e suas possibilidades é tão importante no
ção importante e se configura uma ferramen- processo de curadoria quanto conhecer a obra
ta muito útil. e seu autor.
Quando lançamos nosso olhar para expo-
sições de arte, a presença das tecnologias se Os olhares
torna ainda mais intensa, pois elas podem es- Neste ultimo tópico apresentaremos duas ex-
tar tanto na mediação, quanto na própria arte. posições que desde sua concepção contaram
Tal fato também dever ser levado em conside- com a presença de tecnologias como mecanis-
ração pelo curador. mos de mediar informações para o público de
Sobre essa arte tecnológica, como denomi- forma subjetiva e poética. São elas: “Mundos
namos aqui, nos fala Lev Manovich: Invisíveis – Mostra de Arte Científica Brasileira”
e “Imanências”.

156
A exposição “Imanências”, que aconteceu em o lugar de fala que ocupam na sociedade. Ela
Vitória-ES, em 2017, surgiu como continuação propôs também “sensibilizar os visitantes para
de um trabalho, que já vinha sendo realizado a temática étnico-racial” e promover uma “va-
pelo coletivo Raiz Forte, cujo objetivo era deba- lorização do fenótipo negro” por meio de uma
ter e questionar a cultura e a identidade afro por “multiplicação de olhares sobre a discussão”
meio dos cabelos e seus momentos na vida do (MONTEIRO, 2017).
indivíduo afrodescente, mesclando em seu es- Tanto as imersões quanto a exposição segui-
copo arte e história. Nas palavras apresentadas ram um roteiro baseado em “Sentir, Ver, Remon-
no site institucional: tar e Deixar” onde cada participante-visitante
O projeto Imanência é resultado da parceria podia interagir da forma que achasse melhor. As
entre o Raiz Forte e o Macunaímãs e conta possibilidades eram múltiplas e o acervo expos-
com recursos do Fundo Estadual de Cultura to estava sempre crescendo e se renovando.
do Espírito Santo, por meio de projeto con-
A exposição contou com muitos recursos tec-
templado pelo Edital nº 002/2016 – Valoriza-
ção da Diversidade Cultural, e apoio da Secre- nológicos como vídeos com depoimentos exibi-
taria de Estado de Direitos Humanos, Núcleo dos em tablets, áudios com relatos narrados em
de Estudos Afro-Brasileiros (Neab-Ufes) e do fones bluetooth e vídeo ilustrativo projetado da
Programa Afro-Diáspora, da Universitária FM montagem e remontagem dos Macunaímãs.
104.7. (MONTEIRO, 2017)
O uso dessas tecnologias não apenas atraiu
seu público-alvo (crianças e adolescentes em
Poderíamos dizer que a exposição surgiu idade escolar), como também possibilitou mo-
como um fechamento – ou um passo a mais – mentos de intimidade entre o visitante e as
do projeto “Imanência” que se iniciou com uma obras, gerando sensivelmente compreensão do
série de encontros, denominados de “Imersão”. tema exposto, empatia e sentimento de apro-
Nesses encontros, que foram voltados priori- priação, o que posteriormente foi constatado
tariamente para professores e educadores, os pela análise dos dados de visitação. O que nos
participantes puderam participar, por meio de interessa destacar aqui é que o uso dessas tec-
uma criação coletiva e a partir de suas vivências nologias seguiu uma intencionalidade curatorial
relatadas e sentidas, da elaboração do material e que alcançou de forma satisfatória os objeti-
que seria exposto. As histórias e as memórias de vos inicialmente propostos.
indivíduos, afrodescendentes ou não, em seus A segunda exposição que apresentaremos
processos de encontros e desencontros, fala e aqui se trata de uma união entre arte e ciência.
escuta, construção e desconstrução de iden- Denominada “Mundos Invisíveis – Mostra de
tidades culturais foram o ponto de partida do Arte Científica Brasileira”, a exposição aconte-
acervo expositivo. O cerne do projeto foi deba- ceu no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, em
ter o racismo praticado nas escolas e fora delas, parceria com o coletivo ArtBio, entre setembro
identificando, pensando e desconstruindo os de 2017 e janeiro de 2018. Essa exposição apre-
estereótipos historicamente construídos sobre sentou 24 obras que correspondem a documen-
o preto e sua cultura. Para isso, a exposição tos técnicos oriundos de trabalhos científicos
se propôs a ser um lugar de fala e escuta que no campo do universo microscópio, mas que
possibilitasse aos visitantes um “olhar para si”, possuíam grande apelo estético. Dessa forma,
para as identidades que trazem consigo e para o processo curatorial contou com uma equipe

157
farol

interdisciplinar de pesquisadores e profissionais servar e organizar um acervo, conhecer o artista


que buscou mostrar a ciência como cultura e e obra, pesquisar sobre o que será exposto, in-
meio de transformação, e seus resultados cien- tegrar o trabalho de equipe, mas também pro-
tíficos como obras de arte. mover uma primeira mediação: aquela que está
É importante destacar que essa exposição é junta a concepção da exposição, pensando em
apresentada dentro de um museu que, de acor- como o público pode acessar a informação e vi-
do com seu curador geral, Luiz Alberto Oliveira, venciar de forma subjetiva tal experiência.
se propõe não ser um museu de ciência preo- Diante disso, o uso das tecnologias pode ser-
cupado em tão somente em colecionar e exibir vir como meio e fim nesse processo, auxilian-
vestígios, mas sim, ser um museu de ciência que do o trabalho do curador enquanto mediador.
apresenta possibilidades e experiências. Dessa Algumas práticas vêm sendo desenvolvidas,
forma, ainda que a exposição “Mundos Invisíveis como o caso das exposições “Mundos Invisíveis
– Mostra de Arte Científica Brasileira” tenha sido – Mostra de Arte Científica Brasileira”, realizada
temporária e não faça parte do acervo fixo des- no Rio de Janeiro – RJ, em 2018, e “Imanências”,
se espaço, ela foi selecionada e pensada para realizada em Vitória - ES, em 2017. Outras tan-
seguir essa linha museológica/curatorial. tas exposições poderiam ser também citadas
Nesse sentido, o Museu do Amanhã é conhe- e o número cresce a cada ano. Contudo, é im-
cido pelo uso constante de tecnologias em suas portante pensar que conforme as tecnologias
curadorias como ferramenta de mediação e avançam e os públicos mudam, faz-se neces-
com essa exposição não foi diferente. Em “Mun- sário pensar e repensar o processo curatorial e
dos Invisíveis – Mostra de Arte Científica Brasilei- o papel do curador para que as ações advindas
ra”, o uso desses recursos esteve presente des- daí sejam conscientes, críticas e dinâmicas, fo-
de sua proposição inicial, tanto na criação das cadas não apenas na informação, mas também
obras que foram expostas (que contaram com na subjetividade envolvida.
microscópios e outros recursos digitais científi-
cos), quanto na exposição em si (que combinou Referências
suportes, iluminações e recursos visuais tecno- ALENCAR, Valéria Peixoto de. Mediação cul-
lógicos). Tal processo curatorial possibilitou ao tural em museus e exposições de história:
visitante aproximar-se do conhecimento cien- conversas sobre imagens/história e suas inter-
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2000. 128 f. Dissertação (Mestre em Comunica- grantes da Coleção Vitória em Monumentos II.
ção) - Programa de Pós-Graduação em Comu- Bacharel em História pela Universidade Federal
nicação, Universidade de Brasília, Brasília, 2000. do Espírito Santo - UFES. Especialista em Estu-
ISRAEL, Karina Pinheiro. Informação e tec- dos Culturais, História e Linguagens pelo Institu-
nologia nos museus interativos do Contem- to Superior de Educação Ateneu - ISEAT. Mestre
porâneo. 2011. 19 f. Trabalho de Conclusão em Museologia e Patrimônio da Universidade
(Programa Latu Sensu) - Centro de estudos La- Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO/
tino-Americanos sobre cultura e comunicação, Museu de Astronomia e Ciências Afins - MAST.
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Hoje é professora da Secretaria de Estado da
Disponível em: < https://paineira.usp.br/celacc/ Educação - SEDU e integrante do Instituto de
sites/default/files/media/tcc/285-968-1-PB. Pesquisa Arqueológica e Etnográfica Addam Or-
pdf>. Acesso em: 15 mai. 2020. ssich - IPAE.
MANOVICH, Lev. Novas mídias como tecnolo-
gia e idéia: dez definições. In: LEÃO, Lucia (Org).

159
farol

COMPUTADOR-ATELIER COMO AGENCIAMENTO MAQUÍNICO:


ANÁLISE SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA ARTISTA
MULTIMÍDIA LIANA TIMM
COMPUTER-ATELIER AS MACHINE AGENCY: ANALYSIS OF THE
CREATION PROCESS OF MULTIMEDIA ARTIST LIANA TIMM

Andresa Thomazoni
UNINI Porto Rico
Tania Fonseca
UFRGS
Margarete Axt
UFRGS

Resumo: Este artigo surge de uma pesquisa de doutorado que buscou analisar o processo de criação
da artista multimídia Liana Timm que utiliza o computador como atelier para sua produção artística.
Utilizou-se a cartografia como metodologia de pesquisa, por esta privilegiar o acompanhamento do
processo de criação. O objetivo deste artigo é refletir sobre a relação híbrida do agenciamento ho-
mem-máquina, entendendo a mesma como potência maquínica. Busca-se, portanto, demonstrar a
potência política de maquinar a máquina, na criação de novos devires.

Palavras-chave: Artista Liana Timm, processo de criação, computador-atelier, agenciamento maquínico.

Abstract: This article arises from a doctoral research that sought to analyze the creation process of mul-
timedia artist Liana Timm who uses the computer as a studio for her artistic production. Cartography
was used as a research methodology, as it privileges the monitoring of the creation process. The pur-
pose of this article is to reflect on the hybrid relationship of man-machine agency, understanding it as
machine power. Therefore, we seek to demonstrate the political power of machining the machine, in the
creation of new becoming.

Keywords: Artist Liana Timm, creation process, computer-atelier, machine agency.

160
Introdução outras paisagens possíveis, para a produção
Este artigo possui como contexto uma pes- de novos afectos, fabricados numa dimensão
quisa de doutorado que buscou analisar o pro- (inter)artística, no qual a potência da imagem
cesso de criação (poiesis1) da artista multimídia digital, forja-se num encontro estético da subje-
Liana Timm que utiliza o computador como tividade3 com o seu fora.4
atelier para sua produção artística. Foi desen- Não havia como em toda cartografia um
volvida no Programa de Pós-Graduação Infor- protocolo normalizado, tratou-se de um lança-
mática na Educação, inserindo-se na linha de mento a uma geografia de afetos, invenção de
pesquisa “Interfaces Digitais em Educação, Arte, pontes para fazer travessia sensível e aberta aos
Linguagem e Cognição”, da Universidade Fede- devires, de maneira que o perfil do cartógrafo
ral do Rio Grande do Sul. Liana Timm2 é artista constituísse assim, um tipo de sensibilidade
multimídia, arquiteta, poeta e designer, possui (ROLNIK, 2006). Frequentamos seu atelier en-
vários livros publicados, exposições realizadas tre o período de junho de 2011 a maio de 2012
e prêmios recebidos. Nossa investigação inter- em encontros semanais previamente marca-
disciplinar, centra-se nas fronteiras entre arte e dos. Desta forma, deixamos nos afetar pelas
tecnologia, mais precisamente no uso do com- forças em circulação na pesquisa e no campo.
putador como atelier, bem como o agenciamen- Conversamos com Liana sobre seu processo
to da relação homem-máquina na produção de criação, suas escolhas ao criar, seus proce-
artística, em direção a uma potência maquíni- dimentos, suas ideias. Pesquisamos no Atelier
ca. Assim, o uso da tecnologia na produção de seus arquivos e obras já catalogadas, entrevis-
imagens digitais, oferece-nos valiosas reflexões tas e comentários sobre seu percurso. Pelo fato
sobre o tensionamento existente na perspectiva de atualmente ter na sua produção artística o
do homem-técnica e seu ultrapassamento na atravessamento da tecnologia para compor sua
construção de devires. obras, nosso interesse neste artigo é colocar em
Liana Timm é uma artista híbrida, que desli- discussão o uso do computador como atelier de
za sobre diversos suportes para dar passagem criação artística.
ao seu processo de criação. Dentro do contexto
da filosofia da diferença, que tem como autores O computador-atelier de Liana Timm
principais Gilles Deleuze e Félix Guattari, esco- Liana nasceu em 1947, em Serafina Corrêa,
lhemos o método de pesquisa cartográfico, de Rio Grande do Sul. Quando pequena gostava
modo a privilegiar o próprio movimento cria- de desenhar e recortar, tornando-se conheci-
cionista da artista, que se encontra em cons-
3 Segundo Guattari (2008, p.19), a subjetividade pode ser
tante movimento. Considerando que “todas as
descrita como o “conjunto das condições que torna possível
entradas são boas, desde que as saídas sejam que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em
múltiplas” (ROLNIK, 2006, p.65), traçamos nossa posição de emergir como território existencial auto-referen-
investigação em meio a um contexto paradoxal cial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma
alteridade ela mesma subjetiva”.
do humano e tecnológico. Ao acompanhar sua 4 Para Rolnik (2012), podemos considerar o fora como uma
poiética, buscamos abrir o pensamento para nascente de linhas de tempo que se fazem ao sabor do
acaso, cujo, lançamento torna-se dobra que se concretiza
1 Poiesis, que do grego significa criação, ação, confecção, e se espacializa num território de existência, seu dentro.
fabricação. A concretização e espacialização fazem-se e refazem-se
2 Maiores informações no site da artista Liana Timm. continuamente, numa espécie de duração intrínseca.

161
farol

Figura 01 Liana da na escola por suas tendências artísticas. e de suas materialidades. Todas são vias ex-
Timm, Coleção É
Aos 12 anos, inicia o aprendizado em pintura, pressivas de seus devires, expande seu atelier
tempo de Nietzsche,
pintura digital sobre ocupando-se também da poesia e da música. de forma a vibrar sua fome de mundo.
tela1, 2012 Forma-se em arquitetura, mas elege como Atualmente utiliza o programa de trata-
atividade primordial seu trabalho dentro das mento de imagem Adobe Photoshop, com ele
artes visuais e da literatura. Transita pelos executa seu trabalho artístico em imagens
campos da produção de eventos artísticos, digitais, aplicando recortes, zooms, modifica-
culturais, cenografia e docência. Vive e traba- ções em camadas, filtros, etc., alterando e ex-
lha em Porto Alegre (RS – Brasil). plorando a superfície da imagem, em direção
Liana já usava, desde os anos 70 (início de à sua estilística digital.
sua carreira), o movimento operativo de mon- Os artistas que trocam o lápis e o papel
tagem, de sobreposição, de aproximação de pelos tubos de raios catódicos podem vi-
paisagens e elementos diversos. Distorcendo sualizar imediatamente cada imagem e
explorar as novas possibilidades, modifi-
uma imagem inicial, a operava num novo uni-
cando-as interativamente. (...) com esse
verso possível, tensionando suas cores, em instrumento, a gestualidade do artista ele-
novas possibilidades de perspetiva. trônico pode ser capturada, gestualidade
1 Pintura digital refe-
re-se ao fato de que a Liana transita pelo manual e tecnológico, esta que se converte no começo de uma
imagem foi produzi- desenha, escreve, pinta, fotografa, manipula, imagem (PLAZA, 2008, p. 77).
da digitalmente pelo
aplica camadas, distorce, costura, cola, recor-
computador e depois
é impressa em for- ta. Não há fronteiras possíveis para ela, esca- Liana e seu computador-atelier, sua paleta
mato de quadro. pa pelas linguagens, abusando dos suportes de cores digitais, sua potência tecnológica em

162
ação, extrai múltiplas possibilidades de combi- Liana arquiteta de imagens, escava a fundo Figura 02. Liana
Timm, Coleção
nação. Na produção de séries, traça uma linha sua técnica. Opera corte-montagem de mun-
Outro(s) de mim,
sempre em adjacência, como um novo corte dos e fragmentos, torna-se artista do interva- pintura digital sobre
naquilo que lhe está a atravessar em determi- lo, cuja aproximação de fragmentos denuncia tela, 2012
nado momento. Produz sentidos outros, que mundos paralelos, multiplicidade de sensa-
possam a lançar na diferença do que acaba de ções, simultaneidade de sentidos.
ser criado. Gesto digital que mescla tempos O táctil me diz muito. Preciso sentir as tex-
diversos, fragmentos aleatórios, elementos turas, os cheiros e vazios, as ondulações, as
transversais. “A montagem, colllage e bricolla- temperaturas, as profundidades de tudo. A
superfície de minhas obras é resultado des-
ge são os procedimentos privilegiados pelos
ta valoração. Toco em tudo que me é possí-
processos eletrônicos” (Plaza, 2008, p.83) Liana vel (...). Criar a ilusão de profundidade no bi-
em seu corte-montagem digital opera recortes dimensional através de camadas, retículas,
do mundo expressivo que a atravessa. texturas, efeitos, veladuras, sobreposições,
Liana e sua pintura maquinal, cujo gesto me- para mim significa trabalhar no interior da
imagem, no âmago da significação. Signi-
nor abre a imagem em dois sentidos: a lança
fica adentrar mistérios e me iludir, desca-
para conexões contínuas, em que determinada mando o visível para penetrar no inatingível
imagem se conecta com a próxima, relativa- (TIMM apud FLECK, 2009, p.48).
mente a algum elemento, potência de conti-
nuidade; e a potência de ruptura, em que uma
nova direção é forjada, materializando novas A técnica torna-se, em Liana, uma espécie de
distâncias. dinâmica que retroage sobre ela, sobre sua in-

163
farol

Figura 03. Liana


Timm, Footing I,
Coleção Paisagens
do interior, técnica
pintura digital. sobre
tela, 90cm x 90cm,
2009

teligência, afectos e valores. A partir disso, ela Ao investigar seu processo de criação, depara-
se põe a operar objetos técnicos para além de mo-nos a um ato maquínico, cujo engendramento
suas possibilidades, numa espécie de torção se dá de forma mais dilatada, assim, como Deleu-
inventiva, cujas forças combativas sejam capa- ze e Guattari (2007b) estendem a ideia de máquina
zes de produzir outros mundos possíveis. Como para uma noção mais ampla, que inclui máquinas
Lévy (2004) nos aponta, reafirma a possibilida- técnicas, sociais, econômicas e estéticas. Nessa
de técnica como uma micropolítica em atos. A perspectiva, há, então, agenciamentos maquínicos
técnica como ato, como fase de uma atividade de subjetivação que se instauram como relações
de relação entre o homem e seu meio, possibi- entre sujeito-mundo, possibilitando múltiplos efei-
litando que o objeto técnico progrida no meio, tos entre o agenciamento homem-máquina.
retorne sobre o homem e lhe permita se modi- Assim, ao referirmo-nos à subjetividade ar-
ficar e evoluir. tística de Liana, implica pensarmos em um ser

164
processual, singular, de texturas complexas, territórios de Liana, com essa maquinaria, seu Figura 04. Liana
ao sabor das velocidades infinitas que animam território existencial de artista multimídia é tra- Timm, Coleção
Outro(s) de mim,
suas composições virtuais. (GUATTARI, 2008) çado. Território este que excede ao mesmo tem-
pintura digital sobre
Computador-atelier em embate com esse po organismo e meio, e a relação entre ambos. tela, 2012
corpo-artista5 fomenta a constituição de um Que fluxos se tornam passíveis então, de passar
território existencial. O território, por sua vez, por estes corpos, de transpassar por Liana e
comporta a criação de um agenciamento, pois apagar o nome próprio dela, em direção a um
todo agenciamento é territorial. impessoal, tornando-a efeito de um agencia-
Produção maquínica da imagem digital que mento coletivo?
nasce de um agenciamento artista-computador Que forças são essas, que vibram rumores de
-atelier. Eis a criação de territórios existenciais tempos inauditos, daquilo que está sempre por
singulares, cruzamento sujeito-mundo, torção vir, rumo à invenção?
do maquinismo em favor da criação, potência Agenciamento é todo conjunto de singula-
de heterogênese6. ridades e de traços extraídos do fluxo – se-
Assim, computador-atelier é um dos tantos lecionados, organizados, estratificados – de
maneira a convergir (consistência) artificial-
5 Ideia do corpo tornando-se veículo para as forças que
passam (SANT’ANNA, 2005).
mente e naturalmente: um agenciamento,
6 O processo de heterogênese segundo Passos (2008), pode nesse sentido é uma verdadeira invenção
ser entendido em dois sentidos, por envolver componen- (DELEUZE E GUATTARI, 2007b, p.88).
tes heterogêneos, como também por se definir como um
Porém, faz-se necessário esclarecer de que
processo de produção de diferença. Abrindo espaço para
processo de criação de si. modo o agenciamento se compõe. Segundo De-

165
farol

Figura 05. Liana


Timm, Coleção
É tempo de Lou,
pintura digital sobre
tela, 2011.

leuze e Guattari (2007b), o agenciamento pode maquínico e também como agenciamento de


ser definido como contendo conteúdo e expres- enunciação. Que operações estariam em jogo
são. Dito de outro modo, as singularidades ou quando Liana manipula o computador, quando
hecceidades espaço-temporais de diferentes o escolhe como possibilidade de trabalho artís-
ordens e as operações que lhe estão associa- tico, ao produzir suas imagens digitais? Que rela-
das; e as qualidades afectivas ou traços de ex- ções singulares seriam essas de seu desejo com
pressão, que correspondem a essas singularida- este objeto técnico?
des e operações. Imagem digital, fabricada a partir da potên-
Dupla articulação, que exige pressuposição cia tecnológica do digital, mediada pelo com-
recíproca entre ambos. Liana e computador, putador-atelier, cujo programa de tratamento
computador e Liana, maquinar a máquina, en- de imagem lhe possibilita torcer a imagem em
contro potente que se dá como agenciamento possibilidades outras para além do analógico.

166
Potência in progress, cujas características per- Já não se trata de confrontar o homem e a
mitem sobreposição, aplicação de filtros, ma- máquina para avaliar as correspondências, os
nipulação, ampliação, recortes, colagens, etc. prolongamentos, as substituições possíveis ou
impossíveis entre ambos, mas de levá-los a co-
Trabalho rápido e limpo que a tecnologia do
municar entre si para mostrar como o homem
computador lhe possibilita. Singularidades es- compõe peça com a máquina, ou compõe peça
pecíficas e operações particulares, que a faz es- com outra coisa para constituir uma máquina. A
colher como método de trabalho, para criar suas outra coisa pode ser uma ferramenta, ou mes-
imagens digitais. Os afectos de Liana pelo com- mo um animal, ou outros homens. Portanto,
não é por metáfora que falamos da máquina: o
putador na produção de imagens são diferentes
homem compõe máquina desde que esse cará-
de quando escolhe outra matéria para operar ter seja comunicado por recorrência ao conjun-
seu trabalho artístico. Fio dinâmico cuja con- to de que ele faz parte em condições bem de-
sistência opera a imagem em corte-montagem, terminadas (DELEUZE E GUATTARI, 2010, p. 508).
aproximando elementos diversos, dando-lhes
outras ligações possíveis. Potência digital, de Liana compõe máquina, faz o computador vi-
sempre poder ser feita, refeita. Cujos traços de brar como um atelier, agência e extrai isso dele.
expressão, evocam características singulares, Trata-se do computador pessoal, que a maioria
lhe permitem um contato com outras formas das pessoas possui em casa, e nem por isso são
de exploração das imagens. Imagem-paisagem, artistas ou fazem produções artísticas. Linhas
que se mostra como terra a ser desbravada, a inventivas que a atravessam e fazem-na vibrar
ser construída, (re)conectada. Variação explosi- num ritmo criacionista. Liana torna-se peça, faz
va de cores, tal qual como uma pintora maquíni- peça, maquina a máquina, abre-lhe as conexões
ca, que transpassa a imagem para além de seu possíveis através da vibração imagética.
enquadramento.
Não se trata de discutir a oposição artista- Por uma política de maquinar a máquina
computador, numa lógica binária tentando re- Nossa discussão refere-se à exploração das
construir características de cada um. Mas sim, condições possíveis em que criação artística
entender o território existencial capaz de dar emerge quando em encontro com o sistema
liga a determinados agenciamentos, em direção homem-computador. A partir da ideia de com-
à potência de criação. Linhas vibráteis cujas li- putador-atelier traremos algumas reflexões que
gações transpassam artista-computador-atelier se alastram nas possibilidades de maquinar a
-imagem-digital, como peças heterogêneas que máquina, visibilizando os tensionamentos pos-
entram em composição maquínica. síveis da criação. Uma das perguntas que será
E a forma como Liana transita em suas posta ao longo do texto, é a possibilidade de se
obras, em suas produções, não deixa para nós esgotar o programa, entendido aqui, como ir
pesquisadores, uma normatização fechada em direção ao além da máquina (computador),
de seu procedimento. Em cada acoplamento ou seja, ir em direção ao devir e a possibilida-
seu com outras peças, afectos diferentes são de de criação. O entendimento do computador
produzidos, um maquinismo diferenciado se enquanto suporte em que a operação sobre as
cria, o desejo liga-se de outra maneira, o cam- imagens digitais pode ser realizada, e, portanto,
po perceptual e afectivo eclode em outras maquinada, leva também a pensar que outras
enunciações. formas possíveis existem, que envolveriam ou-

167
farol

tros aparatos técnicos, que em algum grau re- Maquinar associa-se à maquínico e não ao
metem a um sistema a ser maquinado, como, mecânico. Isso finda por dizermos de um modo
por exemplo, a máquina fotográfica. Seja ela maquínico de operar a máquina associado às
uma máquina digital ou analógica, pois aqui forças moleculares e não aquelas molares, pró-
estaríamos apontando sobre a possibilidade de prias dos sistemas mecânicos. Lida-se, nessa
maquinar. Entrar em maquinismo com outros operação maquínica, com singularidades, com
elementos para compor máquina. hecceidades, plano sem sujeito e sem objeto.
O termo computador-atelier refere-se a um siste- Maquínico nos remete às conexões elementa-
ma constituído por um agenciamento mais amplo, res de um rizoma7 em suas linhas de fuga, na
homem-artista-computador-atelier. Espécie de cur- direção da produção de multiplicidades. Nesse
to-circuito que se instaura e abre o processo para modo de operar a máquina, não poder-se-á pre-
produções de sentidos e sensibilidades. A partir da sumir uma unidade, tampouco uma totalidade,
simulação numérica do computador, a interativida- pois tudo se opera por parcialidades, por n-18.
de ganha força para sustentar esses encontros po- Maquínico, não se refere a mecânico que almeja
tentes. Trata-se, então, de conceber o computador compor um todo articulado, uma gestalt sintô-
como uma máquina capaz de evocar o devir virtual nica e sistêmica. Nesse momento de maquinar
do homem-artista. Virtual, aqui, como aquele cam- a máquina maquínicamente, tem-se os corpos
po problematizador, carregado de tensão, à espera perto de uma espécie de céu, arranhando céus,
de uma atualização. Nesta paisagem, referimo-nos a por deixar-se abrir para as potências de um fora,
um encontro do corpo-artista com a máquina com- no qual reside o silêncio e os restos a dizer do
putador, maquinar, portanto, refere-se à conexão outro dos mundos.
possível para que outros elementos e percepções Desta forma, perseguimos o encontro cria-
possam ser acionados. Afasta-se, por conseguinte, cionista cujo corpo-artista agencia ao traba-
um panorama em que o homem, seria apenas um lhar no computador. Não é qualquer encontro,
sujeito, que faria uso do computador como uma fer- não é qualquer uso. É acontecimento capaz de
ramenta, para atingir determinados resultados. operar na máquina-computador, criações de
O que interessa é o circuito da criação em em- sentidos e modos de existir diversos. Maquinar
bate constante nessa esfera homem-máquina. a máquina possibilita outras paisagens, fortes o
Dito de outro modo, como maquinar a máquina? suficiente para se alastrar em direção a outros
Toma-se o termo maquinar/maquínico a par- domínios e relações. Não se trata de maquinar
tir da filosofia da diferença, de forma a se referir exclusivamente o computador, mas também
ao ato de construção e invenção que se contra-
7 “Seguir sempre o rizoma por ruptura, alongar, prolongar,
põe ao termo mecânico. Silva traz uma impor-
revezar a linha de fuga, fazê-la variar, até produzir a linha
tante pista sobre essa diferença: mais abstrata e a mais tortuosa, com n dimensões, com
(...) o maquínico exprime os processos vivos direções rompidas (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p.20)”.
que são criadores, imprevisíveis, heterogê- 8 “Escrever a n, n-1, escrever por intermédio de slogans: faça
neos, em variação contínua, complexos e até rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja
mesmo paradoxais. (...) o mecânico representa nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e
nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha!
os processos mortos que são inertes, homogê-
Seja rápido, mesmo parado! Linha de chance, jogo de cintu-
neos, regulares e não ambíguos (2012, p.154).
ra, linha de fuga. Nunca suscite um General em você! Nunca
ideias justas, justo uma ideia (Godard). Tenha ideias curtas.
Faça mapas (...)” (DELEUZE E GUATTARI, 2007, p.36).

168
qualquer máquina, como por exemplo a câmera programa Paint do Windows e todos seus recur-
fotográfica, que também possui em si mesma sos), ou pode vir a ser criada no tensionamento
um sistema (programa ou aparato ótico/quími- destes mesmos critérios, como um uso inverti-
co) aberto a variações, desde que conduzidas a do ou na direção inversa do que estava dado.10
partir de um agenciamento maquínico. Caráter táctil, sensorial e inclusivo das formas
Para Lévy (2004), os computadores se afas- eletrônicas permite dialogar em ritmos inter-
tam de uma identidade estável justamente por visuais, intertextuais e interssensoriais com
os vários códigos da informação. É nesses
que se constituem como redes de interfaces
intervalos entre os vários códigos que se ins-
abertas a novas conexões, que transformam taura uma fronteira fluida entre informação e
seu uso e significado. É nesta capacidade de pictorialidade ideográficas, uma margem de
abertura e de conexão ao que vem do exterior, criação (PLAZA, 2008 p.78).
heterogêneo em relação ao que o computador
possui, que novos acoplamentos acontecem, O encontro da arte com recursos informacio-
permitindo novas criações. nais gera um panorama complexo. Discussões
O aspecto da informática mais determinante a respeito do que pode ser considerado arte
para a evolução cultural e as atividades cog- dependem dos critérios usados e do grau de
nitivas é sempre o mais recente, relaciona-se abertura para integrar novos conceitos e sensi-
com o último envoltório técnico, a última co-
bilidades. Machado (1997) traz estas questões
nexão possível, a camada de programa mais
exterior (LÉVY, 2004, p.102). em seu texto “Repensando Flusser e as imagens
técnicas”, e que continuam atuais até hoje. O
autor se pergunta em que nível de competência
O computador trabalha com informação, os tecnológica deve operar um artista que busque
bits, sinais codificados que podem ser conver- realizar uma intervenção fundante? Operar ape-
tidos em imagens, sons e textos. Via de mão du- nas como usuário dos produtos postos? Operar
pla que vem possibilitar a associação inédita de como programador ou engenheiro, construindo
diversas linguagens, a hipermédia.9 Possibilitar máquinas para materializar suas ideias esté-
a combinação de várias linguagens abre espaço ticas? Ou operar no plano da negatividade, na
para que novas propostas possam ser apresen- contramão do uso legitimador da tecnologia?
tadas, usando as alternativas que já existem, ou Busca-se aqui, portanto, tramar algumas pis-
tensionando-as de forma a criar novos ruídos tas, que possam conduzir, mesmo que precaria-
e combinações. Um dos pontos interessantes mente, a possibilidades de variações que sejam
aberto à discussão, é que a potência de criação, capazes de colocar a criação em movimento. A
ou pode ser construída em algo que já vem defi- criação se produz por agenciamentos comple-
nido de fábrica, a partir de certos critérios e pos- xos de elementos heterogêneos em conexão a-
sibilidades dadas (por exemplo, pintar usando o significante, por isso ela é chamada impessoal.

9 Hipermídia, “uma forma combinatória, permutacional 10 Machado em seu texto “Arte e Mídia” (2004) traz um
e interativa de multimídia, em que sons, textos e imagens exemplo muito interessante do compositor anglo-mexi-
(estáticas e em movimento) estão ligados entre si por elos cano Conlon Nancarrow, que em 1950 começou a compor
probabilísticos e móveis, que podem ser configurados pelos para pianolas. Mais tarde, Nancarrow consegue inverter e
receptores de diferentes maneiras, de modo a compor corromper a programação original da pianola, contribuin-
obras instáveis em quantidades infinitas” (MACHADO apud do para uma radical reinvenção dessa máquina até então
CAPISANI, 2000, p.33). restrita a aplicações comerciais banais.

169
farol

Dá-se num outro plano que não é o do indivíduo Flusser (2011) em seu livro Filosofia da Caixa
formado como, pessoa, como um eu. A criação Preta, diz que as imagens técnicas são produ-
dá-se por singularidades livres de tempo e espa- zidas através de aparelhos de codificação, de
ço, pré-individuais, sem pretensão a sentidos, forma programática. O usuário (denominado de
sendo filha do tempo do acontecimento onde funcionário) que utiliza estes aparelhos semióti-
não há controle de uma razão e tampouco de cos (chamados também de caixas pretas) ignora
uma vontade subjetivas. Não há criação indivi- o processo codificador interno, lidando apenas
dual. Todo ato criativo faz falar uma multidão com o canal produtivo. Por ignorar o mecanis-
de agentes humanos e inumanos que agem no mo gerador das imagens, ele fica restrito apenas
corpo-de-passagem daquele que cria. Por isso, ao input e output das caixas pretas, de forma
reitera-se a importância do homem enquanto que a liberdade estaria sempre restrita às cate-
corpo que se agencia às máquinas, capaz de gorias inscritas no aparelho.
maquinar, em direção à criação. O ponto de análise que interessa em Flusser,
Outro tensionamento existente surgido a é quando ele afirma que “o decisivo em relação
partir dos avanços tecnológicos, refere-se: à aos aparelhos não é quem os possui, mas quem
possibilidade de ser mantenedor de um sis- esgota o seu programa” (2011, p.40). É neste
tema de alienação, de interesses de mercado ponto que pretendemos, colocar a discussão
que levam a uma massificação e banalização; sobre a possibilidade de se maquinar a máqui-
ou refere-se à potência criativa que pode ser na. E o interessante é que quanto mais se des-
extraída desses processos coletivos de in- dobrar as diversas interrogações anteriormente
venção. Constataremos, que uma posição colocadas por Machado, se verá que em todas
dualista, em que se adota alguns dos posicio- elas existem graus para que a criação ocorra.
namentos como “maléficos”, torna-se equi- O que faz, portanto, um verdadeiro criador, em vez
vocada. Pois mesmo que se trabalhe no fluxo de simplesmente submeter-se às determinações do
de um sistema de alienação, o mesmo possui aparato técnico, é subverter continuamente a função
da máquina ou do programa de que ele se utiliza, é
brechas que possibilitam movimentos de re-
manejá-los no sentido contrário de sua produtivida-
sistência e criação. de programada. Talvez até se possa dizer que um dos
(...) porque as imensas potencialidades papéis mais importantes da arte numa sociedade
processuais trazidas por todas essas re- tecnocrática seja justamente a recusa sistemática
voluções informáticas, telemáticas, ro- de submeter-se à lógica dos instrumentos de traba-
bóticas, biotecnológicas (...) até agora só lho, ou de cumprir o projeto industrial das máquinas
fizeram levar a um reforço dos sistemas semióticas, reinventando, em contrapartida, as suas
anteriores de alienação, a uma mass-mi- funções e finalidades. Longe de deixar-se escravizar
diatização opressiva e a políticas consen- por uma norma, por um modo estandardizado de
suais infantilizantes. O que irá permitir comunicar, obras realmente fundantes na verdade
que estas potencialidades desemboquem reinventam a maneira de se apropriar de uma tecno-
enfim numa era pós-mídia, que as livre logia (MACHADO, 2004, p.5).
dos valores capitalísticos segregativos e
crie condições para o pleno desabrochar
dos esboços atuais de revolução da in- Neste posicionamento, os artistas devem
teligência, da sensibilidade e da criação? atravessar os limites das máquinas de forma a
(GUATTARI, 2008b, p.187). reinventar suas finalidades e programas, reapro-
priando-se das tecnologias audiovisuais, eletrô-

170
nicas, digitais numa perspectiva inovadora em alização, mesmo sendo de naturezas distintas
direção à suas ideias estéticas. (artesanais, fotográficas, digitais)”.
Considerar o contexto comercial e industrial Sempre existirão potencialidades ignoradas,
em que as máquinas são produzidas (conside- à espera de descobertas ou invenções pelos
rando modos padronizados de operar e se re- artistas, em direção ao alargamento dos limi-
lacionar), pode ser ou não um fator para abafar tes instituídos por determinado meio. Pois se a
qualquer criação artística. Pois que, nesses ca- liberdade fosse realmente abafada por se usar
sos, também pode-se encontrar brechas para aparelhos ou programas já existentes, a fotogra-
instalar procedimentos criacionistas. fia, já teria esgotado todas suas possibilidades
Os defensores da artemídia, entretanto, cos- artísticas. E sabe-se que isso ainda não acon-
tumam ser menos arrogantes e mais esper- teceu. Logo pode-se pensar que o processo de
tos. Eles defendem a ideia de que a demanda criação, está para além do suporte em que se
comercial e o contexto industrial não invia-
instaura, emerge dele e adquire características
bilizam necessariamente a criação artística,
a menos que identifiquemos a arte com o ar- próprias, mas não se restringe a ele. Porém essa
tesanato ou com a aura do objeto único. No potência se instaura quando o homem entra em
entender destes últimos, a arte de cada época cena e põe-se a maquinar, tensionando aquela
é feita não apenas com os meios, os recursos determinada matéria em direção às suas potên-
e as demandas dessa época, mas também no
cias inventivas.
interior dos modelos econômicos e institucio-
nais nela vigentes, mesmo quando essa arte é
Pode-se visualizar isto de forma clara no
francamente contestatória em relação a eles. movimento artístico do surrealismo. “Os surre-
Por mais severa que possa ser a nossa crítica alistas não consideravam estas imposições da
à indústria do entretenimento de massa, não técnica fotográfica como restrições aos seus
se pode esquecer que essa indústria não é um processos criativos: inventaram meios de sub-
monolito. Por ser complexa, ela está repleta de
verter as predeterminações do aparelho ótico”
contradições internas e é nessas suas brechas
que o artista pode penetrar para propor alter- (REY, 2005, p.40) No seu ato de colar fragmentos
nativas qualitativas (MACHADO, 2004, p.11). diversos, partes do mundo (recortes de tecidos,
papel, cacos de espelho, etc.) embaralharam a
supremacia de um determinado ponto de vista
Outra situação possível, é aquela em que o na imagem, quebraram com hierarquias, e visi-
artista, se propõe a trabalhar dentro das causas bilizaram um mundo sem ordenação precisa.
e condições dadas pelos programas e aparelhos Torção, cujos fragmentos, de qualquer ordem,
existentes. Há casos em que o artista, mesmo possuem, em si mesmos, potências.
não tendo conhecimentos técnicos para mo- Voltando à pergunta inicial, em como maqui-
dificar estes aparelhos, consegue de forma ha- nar a máquina, percebe-se que o fator funda-
bilidosa tramar estratégias que possibilitem a mental para se maquinar, não se restringe às
emergência de processos criacionistas. variáveis que estão em jogo, mas justamente
Couchot (apud MACHADO, 1997, p.5) traz nas relações que se pode estabelecer entre elas.
exemplos de artistas que realizaram estes pro- Que conexões e inclusões podem ser instaura-
cedimentos através do uso de estratégias híbri- das em direção a linhas de fuga, a linhas capazes
das, “em que imagens migram de um suporte a de criar rizomas? A que novos e estranhos usos
outro ou coabitam um mesmo espaço de visu- pode produzir o maquinar?

171
farol

Maquina-se procedendo por variação. Maqui- Desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas
na-se instituindo rizomas. Maquinismo sempre abrir o corpo a conexões que supõem todo um
produzido, construído, conectável, desmontá- agenciamento, circuitos, conjunções, superpo-
sições e limiares, passagens e distribuições de
vel, modificável, reversível, com múltiplas en-
intensidade, territórios e desterritorializações
tradas e saídas, com linhas de fuga (DELEUZE e medidas à maneira de um agrimensor (DELEU-
GUATTARI, 2007). ZE e GUATTARI, 2004, p.22).
Maquinar envolve agenciamentos maquínicos
de desejo e coletivos de enunciação. Liana ma-
quina suas obras quando em embate com seu Computador-atelier como um território sensí-
computador-atelier. Maquinar a máquina é pista vel para criar seus próprios corpos sem órgãos.
para pensar e desejar instaurar invenção em tudo Maquinar a máquina por uma política inventiva,
aquilo que se realiza. É brecha para em meio aos por um maquinismo incessante capaz de produ-
fluxos e forças que nos atravessam instaurarmos zir novos encontros nas relações em que é pro-
criações. Maquinar a máquina instaura um con- duzido. Permutação delirante de novos fluxos
vite para que o acoplamento ao mundo se dê a de relações, agenciamentos sensíveis, operado-
partir de agenciamentos. Duplo sentido, agencia- res intervalares. Maquinismo pulsante aberto a
mento maquínico de corpos, fluxos técnicos, po- ousadas conexões, a inusitadas explorações.
líticos, linguísticos, biológicos, etc; agenciamento
coletivo de enunciação, multiplicidade para além Referências
do indivíduo, fluxos heterogêneos e múltiplos CAPISANI, Dulcimira. As ações artísticas nos
que se cruzam incessantemente, possibilitando percursos hipermidiáticos da rede internet e do
infinitas montagens. cd-rom. In: CAPISANI, Dulcimira (org.). Educa-
Trata-se da potência de tornarmo-nos máqui- ção e arte no mundo digital. Campo Grande:
na, compor máquina com aquilo que nos atra- Editora AEAD/UFMS, 2000.
vessa o caminho. Máquina-pensamento para DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo: capi-
além de um sistema fechado, mas um devir em talismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 2010.
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com máquinas e/ou compor peça com outras São Paulo: Ed. 34, V. 1, 2007, 93p.
coisas para constituir máquina. Sistema inventi- ___. Mil Plâtos: capitalismo e esquizofrenia.
vo de cortes e fluxos. Maquinar a máquina é en- São Paulo: Ed. 34, V. 5, 2007b, 235p.
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173
farol

NAVEGANTE: OS CAMINHOS PARA A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA


NA ARTE/EDUCAÇÃO

NAVIGATOR: THE PATHS TO THE AESTHETIC EXPERIENCE IN ART/EDUCATION

Rafaela Pupin de Oliveira


FAAC, UNESP Bauru
Eliane Patrícia Grandini Serrano
FAAC, UNESP Bauru

Resumo: Este artigo apresenta uma discussão sobre as possibilidades poéticas e educativas da ex-
periência estética, uma forma particular de interação com objetos artísticos, tanto do ponto de vista
da fruição como do fazer poético. Ambos podem ser explorados pelo arte/educador, como mediador,
pesquisador e agente em processos criativos. Estes aspectos são explorados pela metáfora do nave-
gante, o qual é conceituado como sujeito que é desafiado a criar seu próprio caminho para vivenciar a
experiência. Os conceitos teóricos, o olhar poético e suas relações evidenciam a importância do “na-
vegar” em momentos desafiantes como o de pandemia. Identifica-se o processo orgânico e subjetivo
da experiência, o papel do professor-artista, a educação estética e o potencial da arte na formação do
ser humano.

Palavras-chave: experiência estética; arte/educação; mediação; processo criativo.

Abstract: This article presents a discussion on the poetic and educational possibilities of the aesthetic
experience, a particular form of interaction with artistic objects, both from the point of view of fruition
and poetic making. Both can be explored by the art / educator, as a mediator, researcher, and agent in
creative processes. These aspects are explored by the navigator’s metaphor, who is conceptualized as a
subject who is challenged to create his own way to live an experience. Theoretical concepts, the poetic
look and their relationships show the importance of “navigating” in challenging moments like the pande-
mic. The organic and subjective process of experience, the role of the teacher-artist, aesthetic education,
and the potential of art in the formation of human beings are identified.

Keywords: aesthetic experience; art/education; mediation; creative process.

174
Introdução sujeito que se relaciona de modo singular com
Os caminhos percorridos pelo arte/educador a Arte, da mesma forma que evidencia o poten-
na elaboração de propostas educativas direcio- cial transformador dos desafios que o mundo
nam-se, de modo geral, para a construção de experienciado oferece. Aqui exploramos este
conhecimentos específicos da Arte e da cultura conceito por meio da metáfora do Navegante,
por meio do estudo e criação de obras, imagens um personagem que se abre para um chamado,
e objetos estéticos, bem como suas relações explora o mundo enquanto investiga suas pró-
com questões históricas e sociais. Nestes pro- prias questões e realiza-se com um ato criador,
cessos de ensino-aprendizagem, aquele que re- o qual representa o sujeito da experiência esté-
aliza propostas depara-se com questões acerca tica que se envolve com a arte, em especial o
do pensar e perceber o mundo de forma signi- arte/educador.
ficativa, não apenas para os aprendizes, como Coloca-se, assim, em evidência as potenciali-
também para si mesmos. dades de lançar um novo olhar sobre as navega-
Uma das formas de se abordar as vivências ções dos mares da arte e da cultura, vistas como
educativas e artísticas é por meio da experiên- uma possibilidade válida e transformadora na
cia estética, um conceito que considera a rela- aquisição de conhecimentos, ainda que em
ção entre o sujeito e o objeto, permeados pelos tempos de pandemia e isolamento social.
sentidos, os contextos mediadores, e própria
vida. A experiência, conceituada a partir do pe- A jornada da experiência estética e por que é
dagogo John Dewey (2010) depende mais uma preciso navegar
postura a ser assumida pelo sujeito, uma atitu- O Navegante inicia sua jornada. Mapas aber-
de para colocar-se em condições internas para tos, os sentidos colocam-se atentos, de pron-
interagir com os objetos estéticos, em detrimen- tidão para dar o primeiro passo. Mas de que
to de deparar-se com um arranjo de condições jornada estamos falando? Para onde ela se en-
materiais propícias. caminha? Quais mapas o estariam guiando e
Em tempos em que novos desafios se apre- porquê utilizá-los?
sentam, o professor é chamado a repensar seus A primeira paisagem a se avistar é a da ex-
caminhos até então traçados, recriar-se, refazer periência estética, um conceito explorado na
rotas em busca de processos ainda não explo- filosofia desde os pensadores clássicos, que in-
rados. Frente às diferentes realidades, ele depa- vestigavam a natureza da arte e do belo, e que
ra-se com a necessidade de refletir sobre suas envolve pensar, de modo geral, em três aspec-
propostas, a qual aqui se discute à luz da experi- tos, segundo Greuel (1994): a) a obra; b) o artista
ência estética, ou seja, uma forma particular de e o ato de produção; c) o apreciador.
interação entre o sujeito e os objetos artísticos, John Dewey (1859-1952) foi um dos teóricos
em um fluxo que leva à unidade com o meio am- que se dedicou a pensar a experiência no sé-
biente, à construção do próprio saber inerente culo XX, de modo especial com relação ao seu
à vivência. potencial no processo educativo, bem como na
O conceito de experiência estética na arte/ relação orgânica entre arte e vida. A experiência
educação contribui para pensar sobre apren- estética segundo Dewey pressupõe uma inte-
dizagem significativa, considerando primeira- ração característica com o meio ambiente, no
mente as ações que fazem sentido para si, como qual a vida se realiza e que nos oferece meios de

175
farol

satisfazer nossas necessidades, mas também união realizada e, portanto, realizável, entre o
provoca desafios constantemente. material e o ideal” (DEWEY, 2010, p. 97), conside-
Por meio das tensões geradas, há a oportuni- rada como parte dos processos da vida.
dade de resolução. O indivíduo se engaja para a A arte em produção é vista como um proces-
mudança, e em direção a um desfecho pode ter so atrelado à experiência estética, à medida
uma experiência. Isto ocorre normalmente nas que o artista interage com um material físico,
situações da vida, como explica o autor, pois é seja seu próprio corpo ou algo externo a si, com
como se caracteriza o mundo real, ou seja, uma a intenção de criar algo para ser visto, tocado,
combinação de rupturas, reencontros, movi- ouvido, sentido. Aquele que produz arte está em
mento e culminação (DEWEY, 2010). constante observação e percepção do que rea-
Assim, entende-se que há uma qualidade es- liza, estando a qualidade estética envolvida no
tética possível em nossa interação com o meio ato criativo (DEWEY, 2010).
ambiente, mas Dewey (2010) explica que alguns Dewey (2010) explica a diferença e a simila-
fatores distinguem uma experiência singular e ridade da experiência daquele que aprecia um
estética. Esta ocorre quando é vivida de forma objeto realizado em uma experiência: “Para per-
integral e completa, para que, chegando ao seu ceber, o espectador ou observador tem de criar
fim, seja possível considerá-lo não uma conclu- sua experiência. E a criação deve incluir relações
são, mas a consumação de um movimento de comparáveis às vivenciadas pelo produtor origi-
acumulação. nal.” (DEWEY, 2010, p. 137) O objeto necessita
Este caráter consumatório significa que a ex- ser perpassado pela emoção, e é a partir da ma-
periência é um todo integrado (BARBOSA, 2008), téria, originada na natureza, que mergulhamos
pois o sujeito alcança uma harmonia interior, nesta forma de experiência.
significando que se unificou com o meio. John Nossos sentidos atuam como intermédio des-
Dewey (2010), então, afirma: ta relação com o meio. Assim, para entender-
Uma experiência estética só pode compac- mos a experiência, tem-se que levar em conta
tar-se em um momento no sentido de um os órgãos através dos quais os seres humanos
clímax de processos anteriores de longa participam da vida ao seu redor. Nas palavras do
duração se chegar em um movimento ex-
filósofo John Dewey (2010), os sentidos operam
cepcional que abarque em si todas as outras
coisas e o faça a ponto de todo o resto ser como “sentinelas”, que em uma experiência es-
esquecido. O que distingue uma experiência tética são mais do que receptores, pois é através
como estética é a conversão da resistência e deles que o sujeito participa ativamente, lem-
das tensões, de excitações que em si são ten- brando que o significado de “sentido” abrange
tações para a digressão, em um movimento
uma variedade de conteúdos: “o sensorial, o
em direção a um desfecho inclusivo e gratifi-
cante. (DEWEY, 2010, p. 139)
sensacional, o sensível, o sensato e o sentimen-
tal, junto com o sensual.” (DEWEY, 2010, p. 88)
Complementar ao pensamento de John
Isto quer dizer que, conforme o pensamento Dewey são as considerações de Jorge Larrosa
de Dewey (2010), a experiência estética é quan- (2002) sobre a experiência, o qual define esta
do se atinge o auge da integração do ser com palavra como “o que nos acontece”. O autor en-
o mundo, e a arte especificamente configura- fatiza o pronome “nos” para explicar que expe-
se como “a melhor prova da existência de uma riência não é simplesmente o que acontece, é o

176
que nos toca. Ou seja, é a possibilidade de que que por ser também superfície sensível, é onde
algo nos afete. ocorrem os acontecimentos. Para ser Navegan-
Larrosa (2002) retoma a origem da palavra, te, é necessária uma abertura essencial, um “ex
que vem do latim experiri, provar (experimen- -por” a um risco e a uma vulnerabilidade, para
tar). A etimologia da palavra nos oferece uma ser tocado, afetado, para que algo, de fato, lhe
relação interessante, a qual serviu de inspira- aconteça. Brincando com os prefixos, Larrosa
ção para criar o mundo imaginário e a narrati- traduz a questão: “Por isso é incapaz de expe-
va desenvolvida no livro ilustrado “Navegante”. riência aquele que se põe, ou se opõe, ou se
Experiência vem do latim experiri, que significa impõe, ou se propõe, mas não se ‘ex-põe’.” (LAR-
provar, experimentar. Do radical periri, também ROSA, 2002, p. 25)
se origina a palavra periculum, perigo, e ainda, É por isto que John Dewey afirma que a ex-
explica o autor: “A raiz indo-europeia é per, com periência não é feita apenas por uma dimensão
a qual se relaciona antes de tudo a ideia de tra- ativa (do acontecimento), pois tem uma dimen-
vessia, e secundariamente a ideia de prova. Em são passiva. Ser sujeito para experiências estéti-
grego há numerosos derivados dessa raiz que cas é estar receptivo diante do que se vivencia,
marcam a travessia, o percorrido, a passagem e ter consciência disto (CARLESSO; TOMAZETTI,
(...)” (LARROSA, 2002, p. 25). 2011). Esta passividade que tanto Dewey quan-
Mostrando como esta palavra tem uma rica to Larrosa ressaltam caracteriza a experiência
dimensão que carrega o sentido de uma passa- como constituidora do sujeito:
gem, mas também de perigo, a ideia de Larrosa O sujeito passional (não apenas ativo e nem
(2002) permite entender as travessias protago- simplesmente passivo) sofre ou sente as con-
nizadas pelos navegantes, educadores, artistas, sequências daquilo que se permitiu vivenciar.
Na experiência, o sujeito é receptivo àquilo
na experiência estética como uma viagem, na
que é “novo”, ao acontecimento da experiên-
qual o sujeito embarca e engaja ativamente sua cia, nos termos de Larrosa, ou à construção
percepção, rumo à consumação, ou à criação e reconstrução da mesma, segundo Dewey.
artística, como atividade que reúne todas as (CARLESSO; TOMAZETTI, 2011, p. 85)
qualidades do processo.
Existe até uma figura conhecida de todos nós,
Navegante: o sujeito da experiência na leitu- que habita nosso imaginário pelas aventuras
ra do mundo e intervenção sobre ele literárias e narrativas cinematográficas, e que
O Navegante é o ser que embarca em uma Larrosa (2002) evoca para definir o sujeito da
jornada em busca dos significados de estar no experiência: o pirata. Este personagem é lem-
mundo. Mas esta jornada não começa ao acaso. brado a partir da relação com a palavra experi-
Ele parte de um reconhecimento de si mesmo ência. Como já vimos, a palavra tem origem no
como um sujeito diante de um desafio particu- radical periri, que leva à raiz per (do grego), de
lar. Da dúvida, surge a vontade; do encontro, a onde derivam outros termos sobre travessia,
amplitude. “Quais as possibilidades tenho eu passagem e viagem. Pirata (peiratês) também
diante desta realidade? O que há além deste ho- tem essa raiz, e compartilha algo a mais com
rizonte contemplado?”, indaga-se. os significados expostos pelo autor: “O sujeito
Larrosa (2002) diz que o sujeito da experiên- da experiência tem algo desse ser fascinante
cia é como um território de passagem, um lugar, que se expõe atravessando um espaço inde-

177
farol

terminado e perigoso, pondo-se nele à prova e cador configuram uma experiência estética e
buscando nele sua oportunidade, sua ocasião.” qual o potencial de vivenciá-la?
(LARROSA, 2002, p. 25)
O Navegante é quase um pirata. Atravessa os O professor como Navegante
mares sozinho até alcançar o momento de vul- Assim como a experiência em arte é posta em
nerabilidade e transformação, a experiência es- vínculo com as experiências da vida, também
tética. Foi justamente esta a imagem que inspi- a educação se define, como na percepção, por
rou a metáfora, pensando mais na sua situação atividades de reconstrução edificantes. Pontes
de receptividade diante dos possíveis perigos (2015) explica que:
que enfrentaria do que nas intenções de domi- A educação, entendida como um fenômeno
nar (já que, nos dias atuais, há uma tendência de direto e particular da vida humana, é pro-
objetificação do mundo) que muitas vezes ima- cesso de reconstrução e de reorganização
do conhecimento que provoca o sujeito para
ginamos nas histórias em que este personagem
experiências futuras. A educação é a experi-
nada mais é do que um vilão. ência em curso, ao mesmo tempo em que é
Por isso a experiência tem algo do mundo e resultado da experiência.
tem algo do ser. A travessia ocorre naquele que,
em sua singularidade, está receptivo para que
ocorra a passagem. É neste sentido que a expe- Com base no autor, a tarefa do educador é
riência permite ao ser humano ver-se como um saber em que direção se move a experiência,
sujeito aberto, dialógico, relacional, como diz percebendo as nuances do contexto que a en-
Quintás (1993). volve, convivendo com o desafio de conciliar o
Configurando sua personalidade, o indivíduo controle externo com o propósito de crescimen-
encara-se como criatura viva. Este termo é utili- to a partir da situação vivenciada. Isto requer
zado por John Dewey (2010) para caracterizar as também a interação com outros sujeitos de ex-
condições propícias para o sujeito viver e cons- periências.
tituir-se pelas experiências. Assim, nas buscas de sua jornada, o Navegan-
De acordo com as energias da natureza, as te não está totalmente sozinho. Mesmo que as
intenções de ampliar sua própria vida e a estru- descobertas sejam pessoais, sem a existência
tura do organismo humano, fundam-se os cam- de outros seres nada seria possível. Um mentor
pos de existência da arte, segundo Dewey (2010, pode lhe ajudar a encontrar a embarcação que
p. 93): “A arte é a prova viva e concreta de que lhe serve e indicar os caminhos até as águas. Co-
o homem é capaz de restabelecer, conscien- nhecedor dos compassos, familiar das trilhas,
temente e, portanto, no plano do significado, investigador dos mares (des)conhecidos, um
a união entre sentido, necessidade, impulso e mediador pode auxiliar o navegante a lidar com
ação que é característica do ser vivo.” seus desafios e percalços.
Pelo fato da experiência existir e ser possível, Na Arte, pode-se pensar que mediação é apro-
tem-se a arte. A qualidade estética é encontrada ximar o(s) sujeito(s) do objeto estético, mas há
pela experiência de fazer e perceber, conforme uma amplitude de situações em que ela se rea-
ela proporciona uma realização satisfatória liza. Martins, em parceria com Picosque (2012),
(DEWEY, 2010). Mas como e quando as práticas afirma que a primeira mediação é aquela feita
inerentes às reflexões do trabalho do arte/edu- pela própria obra, entre o autor e o fruidor, fun-

178
damentalmente entre eles se estabelece o jogo A relação entre ensino e produção de arte
da experiência. Além disso, mediação não envol- ocorre, em primeiro lugar, nas trocas que
ve apenas o trabalho em espaços culturais, mas acontecem entre uma atividade e outra. Mui-
tas vezes, as questões, as pesquisas, a temá-
está relacionada a uma atitude do professor de
tica, os materiais e os procedimentos que os
Arte, que incorpora reflexões em suas ações edu- artistas-professores desenvolvem em seu tra-
cativas de maneira intencional e provocadora. balho pessoal são levados para a sala de aula.
Atuar como mediador é valorizar, de um lado, (ALMEIDA, 2009, p. 82)
objetos intrínsecos da teia cultural, social e his-
tórica da humanidade, e de outro, toda a diversi- Desta forma, o educador é capaz de promo-
dade de influências existentes em cada ser, pois ver situações significativas como pesquisador,
os viajantes sensíveis carregam suas bagagens, sendo o convidado fundamental para momen-
o que não deve ser ignorado. Por isso, Martins tos de contato com a arte antes que proponha
e Picosque (2012) entendem que mediar não é suas ações, como uma porta que abre para o
estar entre dois, mas estar entre muitos: caminho do estético:
Um “estar entre” que não é entre dois, como São os cinco sentidos que podem, passo a
uma ponte entre a obra e o leitor, entre aquele passo, abrir para nós o nosso caminho pelo
que produz e aquele que lê, entre o que sabe e estésico. É pela apreensão estética, pelo
o que não sabe, mas em meio a um complexo modo como nosso corpo é afetado e deixa
de pensamentos, sensações, histórias reatua- afetar que nossa sensibilidade é ativada.
lizadas. (MARTINS; PICOSQUE, 2012, p. 47) (MARTINS; PICOSQUE, 2012, p. 127).

Esta rede complexa leva ao que Kastrup et al. O professor de arte é o protagonista desta
(2007) compreende sobre o que é a obra: não sim- aventura, à medida que explora territórios des-
plesmente um objeto, mas um campo de forças, as conhecidos como experiências vivas e singula-
quais atravessam quem é capaz de aproximar-se res. Um dos modos de acessar esta identidade
delas. E assim, se define o encontro com produções é encarar-se como um escavador de sentidos,
artísticas: “Entrar em contato com a arte é se deixar como afirma Martins e Picosque (2012), que
atravessar por essas forças que nela circulam, que compreende o desvelar dos sentidos dos estu-
o objeto artístico porta, veicula ou contrai.” (KAS- dantes porque parte do que toca a si mesmo.
TRUP et al., 2007, p. 42) Viver com intensidade as experiências potencia-
A Arte em sua dimensão mediadora inclui deixar- liza que outros seres as vivencie:
se afetar e ser afetado em experiências, comparti- Como professores andarilhos na cultura, nutri-
lhá-las, ao mesmo tempo que se ampliam repertó- dos cotidianamente pela contemporaneidade,
rios e conhecimentos teóricos, e isto começa pelos em estados de invenção, atentos e sensíveis
aos outros que conosco vivem processos edu-
próprios propositores da arte/educação. Segundo
cativos, poderemos potencializar olhares ou-
Martins e Picosque (2012), professores são chama- tros sobre a cultura que está em nosso entor-
dos a incorporar o papel de quem convive com a no. (MARTINS; PICOSQUE, 2012, p. 57)
arte e sabe viver a experiência. Almeida (2009) tam-
bém defende esta ideia, enquanto afirma que entre
criar e ensinar muitas trocas podem ser estabeleci- Ao realizar esta caminhada, o professor é o
das em que um trabalho enriquece o outro: Navegante desperto, atento, vivo, que estuda e

179
farol

se questiona sobre as imagens e os conteúdos tos e para aprendizes com diferentes bagagens.
que fazem parte da sua prática. Explorando o Assim, há que se dar importância para a me-
seu próprio acervo e as obras que podem vir a diação do professor, que pode envolver-se com
fazer parte dele, os professores-pesquisadores processos semelhantes aos dos artistas: mani-
imergem em objetos estéticos, imagens da cul- pular materiais, trabalhar em ateliê, revisar pro-
tura, artistas, livros, museus, reproduções e si- postas de acordo com as necessidades, encarar
tes, de modo que tudo começa pela sua forma- o lado imprevisível da criação, envolver-se com
ção cultural. Isto requer estar atento ao redor, produções poéticas e experimentações, bem
como um bom coletor. Em vista deste processo, como conduzir experiências na jornada do en-
que também é criador, o professor potencializa- sinar e aprender, que naturalmente também
se como professor-artista, ou artista-professor. envolve trabalhos em coletivo e o diálogos refle-
O artista-professor é uma das possibilidades xivos, aspectos da ação docente que podem ser
do “artista-etc”, conceito definido pelo artista incorporadas pelo artista-professor (LOYOLA;
Ricardo Basbaum, atuante na cena artística bra- PIMENTEL, 2015). Trata-se de uma ação de ex-
sileira desde os anos 80. Basbaum imagina que pansão, conforme Martins e Picosque:
o papel do artista se amplifica ao questionar a A aposta é na liberdade de professoras/
natureza e a função de suas ações, e por isto não professores inventando a si mesmos e seus
é um artista-artista (CURI, 2012). Quando defini- fazeres em sala de aula, ao sabor da inocên-
cia de certo aprendizado, experimentando o
do desta forma, o artista dialoga com outras
traçado de seus próprios mapas de arte, de-
áreas e incorpora outras funções, ampliando o senhando lineamentos para percorrer lugares
pensamento e o fazer artístico nos campos da pouco explorados, sítios valorizados, buscan-
cultura (VASCONCELOS, 2007). do trilhas e clareiras junto com seus aprendi-
Este híbrido de professor com artista se re- zes. Ousando aprender a desaprender. (MAR-
TINS; PICOSQUE, 2012, p. 125-126)
aliza no desenvolvimento métodos didáticos
como um processo artístico, um entrelaçamen-
to de procedimentos cujo resultado não é uma Isto se faz cada vez mais pertinentes nos dias
obra, nem uma aula, mas algo além, que é fruto atuais, dadas as complexidades impostas pela
das duas ideias. Novos significados emergem pandemia. Adentrando na ambiência criado-
dali, tanto que as estratégias do artista-profes- ra da invenção somos estimulados a pensar, a
sor contemplam relações com indivíduos (para inventar problemas que desconcertam nossas
o artista, o espectador; para o professor, o alu- próprias percepções e sensações, o que nos
no) que intervém sobre o processo, de modo impõe a necessidade de descobrir em nós mes-
que o conhecimento se constrói como vivência. mos novos modos de olhar, pensar, sentir, agir.
Deste modo, Loyola e Pimentel (2015) afir- Como afirmam Martins e Picosque (2012, p. 129),
mam que o processo de criação em Arte (no “O vir-a-ser é sempre uma ação de criação.” Os
sentido de disciplina escolar) não é linear, con- caminhos do ensino-aprendizagem são um mo-
trário a um roteiro pré-estabelecido a ser segui- vimento processual, nunca de parada, sempre
do à risca. Os recursos para proposições educa- de navegar.
tivas têm então, um caráter criativo, como um O protagonista tem que remar por mares que
estímulo às possibilidades de reflexão sobre en- não conhece, indo em direção a algo que é novo
sinar e aprender Arte nos mais variados contex- para ele. A abertura para o desconhecido leva-o

180
a uma superação, à entrega que o transforma. riqueza da interação sensível e cognitiva com
Ao alcançar novos territórios, percebe a experi- o mundo, a qual guarda o potencial de aprendi-
ência, consuma seu gesto, alcança uma forma, zado e formação como ser humano frente a di-
o artístico, que não é algo isolado, mas faz parte ferentes desafios. Encarando a si mesmo como
de todo o mundo novo. Ele atinge a culminação, Navegante, o professor pode ser protagonista
fez-se por causa do processo. A partir dali o Na- de uma jornada significativa pelo universo da
vegante sabe que viveu uma experiência e pode Arte, a qual apresenta-se em uma realidade de-
viver mais, consciente de que não será mais o safiadora.
mesmo. Assim, segue em busca de novas des- A abertura é chave para navegar, uma atitude
cobertas. que se faz necessária para ser sensível quanto
às questões do mundo, como também para re-
Conclusão fletir sobre caminhos pessoais frente a diversas
Por meio desta exploração, o conceito de realidades. São muitas as vias pelas quais se
experiência estética, baseado no pensamento pode percorrer. Com trilhas já exploradas, ro-
de John Dewey (2010) e Jorge Larrosa (2002), tas projetadas e mapas com um “x” marcando
oferece os rumos para compreender que para o destino. A alteração das possibilidades leva
que ocorram experiências transformadoras, há naturalmente o ser humano a rever os caminhos
a necessidade de se criar condições favoráveis à a percorrer, seja por terra ou por mar. O Nave-
interação produtiva e formadora entre o sujeito gante tem diante de si uma missão que sempre
e o meio, o que ressalta a importância da atua- se renova: fazer sua travessia chamada experi-
ção dos educadores. ência estética no mundo rico da aprendizagem
A partir da experiência na educação é possí- e da criação artística.
vel transformar-se em criaturas vivas, abertas
para aprender e se relacionar de forma imagina- Referências
tiva e criativa com a realidade. Os sujeitos dos ALMEIDA, Célia Maria de Castro. Ser artista,
processos de ensino-aprendizagem, ou seja, os ser professor: Razões e paixões do ofício. São
navegantes da experiência, são representativos Paulo: Editora UNESP, 2009.
do potencial humano para adquirir conheci- BARBOSA, Ana Mae. John Dewey e o Ensino
mento de forma significativa e intencional. de arte no Brasil. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2008.
Por isso, a experiência passa pela compre- CARLESSO, Dariane; TOMAZETTI, Elisete Me-
ensão da presença do sujeito fruidor e criador, dianeira. as condições de (im)possibilidade da
definido por Larrosa (2002) como sujeito da experiência em John Dewey e Jorge Larrosa: al-
experiência, e por Dewey (2010) como criatura gumas aproximações. Revista Reflexão e Ação,
viva, que precisa estar passivo e também ativo, Santa Cruz do Sul, v. 19, n. 2, p. 75-97, jul./dez.
em doses equilibradas, para que ocorra uma 2011. Disponível em: https://online.unisc.br/
percepção elevada e um jogo de construção seer/index.php/reflex/article/view/2204. Acesso
de sentidos. Tal jogo se realiza também nos em: 20 de ago. 2020.
processos de mediação, como também do pro- CURI, Fernanda. “Ricardo Basbaum, um ar-
fessor-artista, que incorpora em suas práticas o tista-etc”. Bienal, 2012. Disponível em: http://
investigar, o pensar, o navegar. www.bienal.org.br/post/551. Acesso em: 22 de
Com a metáfora do Navegante, expõe-se a ago. 2020.

181
farol

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ção do Instituto de Artes/Unesp, 2007, p. 41-60. na área de arte-educação. Participou de 2016 a
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diação cultural: entre sujeitos/corpos/experiên- Arte na Escola como monitora voluntária. É pro-
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8. n. 17. julho, 2016. se nas áreas de arte-educação, mediação em
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fessor-artista-professor: Reflexões Estéticas
Sobre o Ensino-aprendizagem em Arte. In: Semi- Eliane Patrícia Grandini Serrano
nário da Pós-Graduação em Artes na UFMG: Pes- Possui graduação em Educação Artística Ha-
quisas em Andamento. 1. 2015, Belo Horizonte. bilitação em Artes Plásticas pela Universidade
Anais… Belo Horizonte: SEPOGA, 2015. Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1990),
MARTINS, Mirian Celeste; PICOSQUE, Gisa. mestrado em Projeto, Arte e Sociedade pela Uni-
Mediação cultural para professores andari- versidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
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PONTES, Gilvânia Maurício Dias de. Reflexões terários pela Universidade Estadual Paulista Jú-
sobre a experiência estética na educação. Re- lio de Mesquita Filho (2003). Atualmente é regime
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QUINTÁS, Alfonso López. Estética. EDIÇÃO atuando principalmente nos seguintes temas:
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cowiecky (Orgs). Encontro Nacional da ANPAP,

182
O EXPRESSIONISMO E A POÉTICA DO LIXO
THE EXPRESSIONISM AND THE POETICS OF WASTE

Olga Kempinska
GCL-UFF

Resumo: A mais violenta das vanguardas artísticas do início do século XX, o expressionismo desafia o
discurso totalitário por meio da atualização da ambivalência entre o puro e o impuro característica do
regime do sagrado. O presente trabalho busca compreender o sentido do expressionismo na literatura
em um diálogo frutífero com as artes visuais. A poética do lixo elaborada em diferentes âmbitos cultu-
rais pelos autores tais como Wassily Kandinsky, Czesław Miłosz, Witold Gombrowicz e Nuno Ramos tor-
na-se nesse contexto uma forma de se trazer para o âmbito da arte a preocupação pela vida subjetiva
do ser humano ameaçada pelo nivelamento totalitário.

Palavras-chave: expressionismo, totalitarismo, lixo, sagrado.

Abstract: The most violent among the artistic avant-gardes of the early twentieth century, the Expres-
sionism challenges the totalitarian discourse by using the ambivalence between the pure and the impure
characteristic of the regime of the sacred. The present article seeks to understand the meaning of expres-
sionism in literature in a fruitful dialogue with the visual arts. The poetics of waste elaborated in diverse
cultural domains, by the authors such as Wassily Kandinsky, Czesław Miłosz, Witold Gombrowicz and
Nuno Ramos becomes in this context a way of bringing to the scope of art the concern for the subjective
life of the human being threatened by totalitarian levelling.

Keywords: Expressionism, Totalitarianism, Waste, Sacred.

183
farol

braços.
Na ilusão da vida, eis o homem que encon-
tra suas verdades e que as perde, na terra da
morte, para voltar, através das guerras, dos O homem escreveu na areia os nomes.
gritos, da loucura de justiça e de amor, enfim,
A má cabeça sussurrou: Impuro,
da dor, para esta pátria tranquila, em que a
própria morte é um silêncio feliz. Eis, ainda... de coração seco, você ninguém ama.
Albert Camus Mas a boa voltou seu olhar:
– Ah, qual amor carrega mais puro pesar
O discurso totalitário “é concebido como uma do que a pena de não se ter bastante amado.
ordem” (GŁOWIŃSKI, 2014, p. 97), dispensando
por completo os elementos persuasivos. Seu Na skraju lasu zatrzymał się człowiek
sujeito é radicalmente não subjetivo e remete a a miał trzy głowy. Na ramionach obu
um “depositário do ‘correto’” (GŁOWIŃSKI, 2014, oparły szyje zła głowa i dobra.
p. 98), que abusa das dicotomias claramente Twarz ta pośrodku była zamącona
delimitadas, e que revela a seu ouvinte passivo i milczał, błyszcząc jak świecznik trójzębny.
uma visão do mundo como conspiração. Tendo
percebido muito cedo as ameaças do totalita- Człowiek wypisał na piasku imiona.
rismo, as vanguardas artísticas do início do sé- Zła głowa wtedy szepnęła: – Nieczysty,
culo XX reagiram com violência aos abusos dos serca oschłego, nie kochasz nikogo.
sistemas de opressão. Dentre essas respostas, A głowa dobra zwróciła wejrzenie:
destaca-se o expressionismo, que dialoga com – Ach, jakaż miłość czystsze nosi brzemię,
o discurso religioso em busca dos meios da niż rozpacz, że się nie dosyć kochało.
resistência subjetiva. Atualizando o regime do (MIŁOSZ, 2011, p. 111, tradução minha)
sagrado baseado na ambivalência do puro e do
impuro, o expressionismo encontra na poética Na obra de Czesław Miłosz, que assinala uma
do lixo um de seus desdobramentos mais signi- forte tendência ao catastrofismo, muito cedo
ficativos. surge a questão da intensa erosão do imaginá-
rio religioso, que diz respeito à percepção de
O expressionismo e o discurso religioso “sombras e rachaduras” (TEUSZ, 1999, p. 148)
O poema “Cabeças”, de 1937, encena a mul- no todo metafísico. Entretanto, são justamente
tiplicidade subjetiva valorizada no contexto da a complexidade e a historicidade desse imagi-
poética expressionista, a mais violenta de to- nário que se transformam no âmbito expres-
das as propostas vanguardistas e que possui sionista em contrapesos eficazes ao discurso
como uma de suas características importantes dicotômico da ciência. Destarte, no poema “Ca-
a exploração dos recursos subjetivos do ser hu- beças”, que lança mão da forma dialógica, entre
mano e a desconfiança em relação ao discurso “não amar ninguém” e “não ter amado bastan-
científico: te” aparece uma zona fértil de incerteza ética e
O homem de três cabeças parou emocional que se torna o espaço da resistência
na beira do mato. Nos dois ombros psíquica do ser humano.
pousaram seus pescoços a má e a boa. Fazendo parte da primeira fase da produção
O rosto do meio estava turvado e ele, do poeta polonês, fortemente marcada pela
calado, brilhava como um candelabro de três atuação em um grupo expressionista de Vilna

184
formado em 1931, o poema apresenta, de fato, pintados por Kandinsky na Alemanha, remetem à
algumas características da vanguarda. Inaugu- violência simbólica e às questões escatológicas,
rado no século XIX no contexto da discussão evocando “o tema do Juízo Final, um tema fre-
acerca das inovações na produção artística, o quente nas obras do período anterior à Guerra,
próprio termo “vanguarda” “conservará suas paralelamente com outros parecidos: apocalip-
ressonâncias de militância e combate” (RIOUT, se, ressureição, destruição e renascimento” (DÜ-
2014, p. 10) e, de fato, os movimentos vanguar- CHTING, 1992, p. 39).
distas insistem na dimensão autocrítica da arte. A composição do poema “Cabeças” em duas
Assim, a elaboração das unidades materiais da estrofes atualiza uma estrutura de oposição, evi-
estrutura da obra no próprio fazer artístico tor- tando, contudo, a simples dicotomia graças a sua
na-se a questão central da arte vanguardista. irregularidade. Oriundo da decepção existencial,
No bojo das diversas vanguardas do início do da impressão de uma catástrofe iminente, con-
século XX, no qual a prática artística costuma testador do realismo e da representação da rea-
coincidir também com a produção do discurso lidade “exterior”, o expressionismo buscou, com
teórico, o expressionismo distingue-se pela re- efeito, pela encenação do universo subjetivo in-
lação com a abstração e com a violência. Rejei- terior, acentuando “o princípio da expressão de
tando a figuração e subvertendo o sentido do si mesmo e da expressividade em geral” (VAJDA,
“realismo” – com o qual mantém, no entanto, 1973, p. 47).
uma relação de contraponto –, e afirmando a “A esmagadora opressão das doutrinas mate-
intensidade do medo como a principal emo- rialistas, que fizeram da vida do universo uma vã
ção da condição humana nos tempos da crise e detestável brincadeira, ainda não se dissipou”
da confiança no progresso e do conhecimento (KANDINSKY, 2000, p. 28), constatou Kandinsky
científico, o expressionismo atinge, de fato, os no texto considerado como o manifesto do ex-
limites da lucidez: pressionismo e do abstracionismo. Escrito em
A consequência do pessimismo de Miłosz, 1910 e publicado em 1912, Do espiritual na arte
sua expressão escatológica são os meios que apresenta o sentido da forma pura proveniente
pela completude do desespero, apagando o do Oriente e o legado do pensamento da estéti-
caráter provisório da fonte desse pessimismo
ca do século XVIII, coincidindo com a elaboração
investem-no com a dignidade de uma visão
geral da realidade, importante independente- da primeira aquarela abstrata e com a determi-
mente de suas origens. Nessa origem casual nação da relação entre a produção artística e a
e ao mesmo tempo na completude do pessi- necessidade interior. Ao descrever a arte como
mismo de Miłosz talvez resida a fonte das nu- expressiva, Kandinsky assinala a necessidade
merosas antíteses, nas quais se articula seu
de se buscar por “sentimentos mais matizados
lirismo. (WYKA, 1937, p. 169)
e ainda sem nome” (KANDINSKY, 2000, p. 28).
Dessa maneira, o artista participa do movimento
Um intenso conflito formal havia se tornado o da desconfiança perante o convencionalismo da
núcleo da composição pictórica de Wassily Kan- vida interior típica de todas as vanguardas artísti-
dinsky, dispensando a figuração e encontrando cas do início do século XX, assinalando também
sua forma na apresentação do contraste cromáti- a proximidade entre a criatividade e a angústia,
co. De fato, mobilizando um imaginário religioso comum a todos os artistas expressionistas.
em crise, os primeiros quadros abstracionistas, Considerado como um importante precursor

185
farol

do expressionismo, o estudo de Wilhelm Wor- desafio.


ringer Einfühlung und Abstraktion (1908), ao partir Significativa é nesse sentido a colocação sub-
da reflexão referente ao âmbito da arquitetura, jetiva no poema expressionista de Miłosz, que
formula a origem da obra de arte na vontade ar- abriu a presente discussão. Mais tarde, nos anos
tística (Kunstwollen), que remete ao conjunto de 70, enriquecida pela experiência da emigração
vivências, no qual pode prevalecer ora a emoção, e da tradução, mas também desgastada pelos
ora a abstração. A obra de arte constitui, assim, horrores totalitários do século XX, a situação
a descarga do impulso da vontade artística. É a intermediária encenada no poema de Miłosz
tendência à abstração, que, diferentemente da há de se afirmar como característica da dicção
emoção voltada para a afirmação vital e para a poética, como uma imoralidade específica ine-
ornamentação orgânica, surge da experiência rente à arte. O poeta sempre está dividido entre
da angústia, ou seja, do intenso pavor suscitado o envolvimento e a observação, usando uma
pelo mundo exterior e pelo temor do espaço: “ótica-do-entre” (GOLUBIEWSKI, 2018, p. 38).
No que tange ao impulso para a abstração, Décadas mais tarde das perseguições dos
este nasce, segundo Worringer, no solo de expressionistas, ao criticar o extremo cinismo
uma inquietude, um certo pavor interior do ser do ateísmo comunista, Julia Kristeva também
humano perante os fenômenos do mundo ex-
assinalará os paradoxos da atitude religiosa:
terior, material, espacial. Em seu fundamento
jaz um temor de perder-se na diversidade dos “Cresci na sombra dos ícones e durante mui-
fenômenos do mundo espacial, o medo do to tempo observei a fé de meu pai, um cristão
espaço enquanto tal, como algo alheio ao ser ortodoxo e seminarista; ele cultivou essa fé,
humano, Raumschau (Raum – espaço, Schau – parece-me, como uma revolta íntima contra o
medo) (sic) temor dele. E desse solo por assim
ateísmo comunista e como uma religião estéti-
dizer negativo nasce o impulso para se con-
quistar alguma tranquilidade, para apaziguar-
ca” (KRISTEVA, 2010, p. 209). Diferentemente do
se em uma forma espacial simples, transparen- impressionismo, com o qual não raramente é
te, cristalina (cristalizada), na qual se escolhe confundida, por causa da importância atribuída
obviamente as formas relativamente simples aos movimentos da subjetividade, a poética ex-
(INGARDEN, 1981, p. 150). pressionista oriunda da preocupação pela sal-
vação da humanidade em meio a uma profunda
Uma vez que a bibliografia existente sobre a crise do discurso científico remete à precisão
pintura expressionista é muito mais rica e mais semântica e ao rigor lógico, ou seja, ao “extre-
consistente do que aquela disponível sobre as mo intelectualismo” (WIEDEMAN, 1971, p. 102),
obras literárias, extremamente diversificada que chega por vezes a privilegiar justamente a
em seus argumentos e suas conclusões, que terminologia científica. Esse uso corresponde,
não raramente chegam a ser contraditórias, a por sua vez, à revolta subjetiva e à tentativa da
busca pelos elementos da poética especifica- subversão do discurso da ciência, que passa a
mente expressionistas do texto literário, que ser percebida cada vez mais em termos de um
parecem corresponder ao rigor da pesquisa da desastroso fracasso do conhecimento humano.
interioridade humana e das formas de sua exte- “Nunca conseguirei colocar em um retrato
riorização, afirmando-se como um “fusionismo toda a força que existe em uma cabeça” (GENET,
entre pensamento científico e espiritualidade” 1998, p. 290), afirmou Alberto Giacometti. A for-
(GONÇALVES, 2002, p. 694) torna-se um grande ça específica da representação de uma cabeça

186
humana diz respeito, de fato, a sua articulação montanhas muito importante na vida criativa de
inevitável no domínio da ética. Assim, o poema Witkacy. Surpreendentemente, o lixo revela-se
de Miłosz inscreve-se em negativo no contexto um elemento relevante da estruturação de um
das tentativas da invenção literária do drama estranho e nefasto sistema, elaborado pelo pro-
mental típico da criação da figura do alter-ego, tagonista narrador e seu companheiro a partir
tal como, por exemplo, o de Paul Valéry (1960). da percepção de um pardal enforcado em um
Trata-se da investigação da relação entre a ima- matagal e pendurado em um arame:
gem do pensamento e a imagem do corpo que Lá, atrás do jardinzinho, atrás da cerca, atrás
discute igualmente com o domínio do teste- da estrada, lá era o lugar onde pendia o pardal
munho, testis, e com o âmbito auto-referencial enforcado no meio de galhos entrelaçados,
sobre a terra escura na qual havia pedaços
da representação do “texto”. Figura liminar do
de cartolina, de chapa de aço, de madeira, lá
discurso filosófico, agente de uma “experiência onde as pontas dos pinheiros brilhavam sob
mental” (REY, 1972, p. 82), o Senhor Teste torna- o céu estrelado. (GOMBROWICZ, 2007, p. 16)
se também o dispositivo monstruoso da análise
da relação entre o “eu” e o outro. No poema de
Miłosz qualquer dimensão eventualmente cien- Ao chocante pardal juntam-se mais tarde
tífica de uma tal “experiência”, vê-se questiona- uma galinha pendurada e um graveto pendura-
da por meio do recurso ao imaginário religioso e do, assim como um gato enforcado, para espan-
da triangulação da relação subjetiva, que ultra- tosamente culminar em uma morte humana no
passa um simples diálogo. fim da narrativa.
“O retorno sistemático ao uso da palavra
O sistema, o lixo e o crime ‘caos’ e de seus derivados indica uma espécie
Mais novo que Witkacy (Stanisław Ignacy Wi- de obsessão. O caos domina no matagal em
tkiewicz, 1885-1939), Witold Gombrowicz (1904- volta do pardal enforcado e no quarto de Kata-
1969) reconhece ter participado junto com ele, e sia. Ele está igualmente presente nas ervas da-
com Bruno Schulz, do protagonismo no Moder- ninhas, nas migalhas, no lixo” (TOMASZEWSKI,
nismo polonês. Em seu intenso envolvimento 1991, p. 422). O sistema, ao mesmo tempo de-
com a acentuação da importância da forma, Wi- sordenado e compacto, faz, de fato, pensar em
tkacy foi, contudo, o mais desesperado dos três um amontoado de lixo. Ao ressaltar a historici-
(Cf. GOMBROWICZ, 1997, p. 17). De fato, exaspe- dade da sensibilidade humana que concebeu
rado com o vigor do desenvolvimento dos sis- o lixo, que não existia na Idade Média, José
temas totalitários, escolhendo o suicídio no dia Carlos Rodrigues assinala a coincidência entre
da invasão soviética da Polônia, o expressionis- a expulsão dos mortos e do lixo do espaço da
ta Witkacy tornou-se o profeta sombrio da “in- cidade. Assim, o lixo relaciona-se à experiência
vasão dos mercenários das classes baixas – da da sujeira que remete à mistura “de elementos
indústria cultural imitativa” (JARZĘBSKI, 2014, pertencentes a categorias que devem ser man-
p. 32). tidas separadas (orgânico e inorgânico, cru e
No último romance de Gombrowicz, intitula- cozido, útil e inútil, privado e público, interior e
do Cosmos e composto no fim do longo e solitá- exterior...)”, como também ao deslocamento, a
rio exílio argentino, aparece o cenário de Zako- saber, à “conjunção de coisas fora do lugar” (RO-
pane, a pitoresca cidade polonesa situada nas DRIGUES, 1995, p. 84).

187
farol

A interpretação do sentido da sujeira leva, por Nuno Ramos, cuja obra é marcada por um ex-
sua vez, a uma “reflexão sobre a relação entre a cesso de material. Em diversas realizações do
ordem e a desordem, ser e não ser, forma e não- artista brasileiro, que assinala um dos maiores
forma, vida e morte” (DOUGLAS, 1966, p. 16). O impasses das vanguardas, a saber, a relação do
lixo passa, assim, a entrar em uma relação com artista com o material em meio ao fazer artís-
a experiência do sagrado, sendo este caracteri- tico, estabelece-se uma conexão obscura en-
zado como aquilo que foi separado do profano tre diversos materiais, por vezes carecentes de
e como contagioso. De fato, as diversas religiões identificação. Assim, por exemplo, “a sensação
transformam no sagrado aquilo que é rejeitado de acúmulo, de fartura transbordando” (MAMMÌ,
como sujo: “O sagrado deve ser sempre tratado 1999, p. 5) torna-se o elemento estruturante da
como contagioso porque relações com ele res- retrospectiva de 1999. Trata-se aqui de um sis-
tringem-se a ser expressas por rituais de separa- tema que consiste em um “equilíbrio negativo”,
ção e demarcação e por crenças no perigo de se cujos elementos “lutam para destruírem-se uns
cruzar fronteiras proibidas.” (DOUGLAS, 1966, p. aos outros” (MAMMÌ, 1997, p. 189).
35). De certa forma, o lixo pressupõe a existência Vaselina, parafina, tecidos, folhas de ouro, de
do sistema, sendo produzido pela ordem como prata e de palmeira, plásticos, tinta, espelhos,
aquilo que foi rejeitado. metais, feltro, breu e “materiais diversos” com-
De fato, a visão fenomenológica do sagrado, põem as obras sem título, cuja instabilidade
ou seja, a descrição de como este aparece na construtiva desafia os hábitos perceptivos do
consciência, como se dá enquanto experiência, fruidor. O excesso de um material muito hetero-
remete à ambiguidade da pureza (Cf. CAILLOIS, gêneo, que combina os elementos valiosos com
1959). A esfera do sagrado é dificilmente des- os restos sem serventia, senão abjetos, reves-
critível, a não ser como aquilo que se opõe ao te-se destarte de um caráter assombrosamen-
profano, correspondendo às emoções do medo te nivelador. O uso do ouro em algumas obras
e da esperança, e remetendo a diversas proi- traz uma desconfiança quanto aos limites do
bições. Assim, o homem religioso vive em dois regime do profano, eventualmente, dos usos da
universos complementares, um superficial e o profanação. Quanto à forma, a inexplicável per-
outro profundo, que são rigorosamente defini- sistência do “todo” evoca um universo tão tenaz
dos em suas respectivas relações. A religião é a quanto desproposital, que desafia a construção
estruturação da relação entre as esferas contra- do ponto de vista e da distância estética.
ditórias do sagrado e do profano, mas o sagrado Ao destruir a fronteira entre a sociedade e o
enquanto tal é algo de que não se pode apro- estado, o sistema totalitário tende a “moldar
ximar sem morrer. O profano é uma espécie de o indivíduo” (LINZ, 2000, p. 66) no intuito de
um nada ativo que destrói o sagrado, ou seja, criar “o novo ser humano”, que encontra sua
aquilo em termos de que é definido. Uma ca- expressão nas narrativas de comportamentos
racterística importante do sagrado é sua conta- exemplares, marcadas pela superficialidade da
giosidade, uma vez que ela o torna expansivo e abordagem do problema da representação. Cos-
dificilmente controlável. A religião determina os mos de Gombrowicz, ao trazer em 1965 em suas
ritos que servem à contenção do sagrado. estruturas a subversão de uma história investi-
“O lixo é exatamente isso: uma forma extre- gativa, desafia a exemplaridade, pois revela que
ma do Mesmo” (RAMOS, 2018, p. 258), observou “não há enigma, mas tão somente a sua aparên-

188
cia” (AGAMBEN, 2012, p. 105). A motivação do trapassa os limites do suportável” (GOMBROWI-
crime é assim substituída por sua estruturação. CZ, 2007, p. 73).
Os protagonistas da narrativa de Gombrowi- O sistema dos sinais elaborado pelo prota-
cz, dentre os quais Leon que se expressa em um gonista narrador, que por momentos lembra o
impressionante e absurdo “neologês” e Lena, esplendor do caos e o luxo da desordem, não se
que é professora de línguas, descrevem a estra- deixa descrever facilmente, apenas como uma
nha ocorrência de se matar o pardal como uma quase-coincidência, uma certa tendência à si-
travessura, um vandalismo, um sadismo e um metria, um desejo de fazer sentido, tal como em
infantilismo. O protagonista narrador, que acu- um jogo de palavras cruzadas, ou, ainda, uma
mula incansavelmente os mais diversos “sinais”, obsessão pela completude: “A cada sinal deci-
tais como as manchas na parede interpretadas frado por acaso, quantos outros poderiam pas-
como “setas” ou “mapas”, ou as partes dos ob- sar despercebidos, escondidos na ordem natu-
jetos que “apontam” para direções, experimen- ral das coisas?” (GOMBROWICZ, 2007, p. 43). O
ta em um momento da narrativa a vertiginosa sistema, cuja metáfora é um amontoado de lixo,
impressão de atravessar um limiar, encontran- revela-se, assim, em seus aspectos perversos,
do-se “do outro lado”, a saber, no interior do sis- sendo ao mesmo tempo o instrumento da de-
tema perverso e absurdo: “Era como se o gato cifração e o mecanismo da produção do crime:
me tivesse transportado para o outro lado da Um turbilhão de objetos e situações indefinidas,
moeda, para outra esfera, onde acontecem mis- desconexas, uns e outros detalhes se relaciona-
térios, na esfera dos hieróglifos” (GOMBROWICZ, vam entre si, se completavam, mas em seguida
surgiam novas associações, outras direções,
2007, p. 80). Dentro desse sistema alucinante,
era disso que eu vivia, como se não vivesse, um
sendo não mais o investigador e sim o crimino- caos, um monte de lixo, uma massa disforme –
so, não mais observando e sim agindo, o prota- enfiava a mão num saco de lixo e retirava o que
gonista narrador não tardará em se livrar a um fosse, analisando para ver se poderia servir na
ato absurdo e cruel, que grotescamente combi- construção da minha casinha... que, coitadinha,
adquiria formas fantásticas... e isso não tinha
na com o todo, enforcando um gato: “Ele ficou
fim... (GOMBROWICZ, 2007, p. 133)
pendendo como o pardal e o graveto, comple-
tando o quadro” (GOMBROWICZ, 2007, p. 76).
O lixo e a escrita tornam-se nesse contexto Surge finalmente também a questão da mons-
metáforas da proliferação das conexões: “(...) truosa auto-referencialidade do sistema, que en-
senti o cheiro de algo podre, próximo, havia uma contra na linguagem dos personagens os deslizes
pilha de lixo, as chuvas haviam criado um escoa- semânticos solidários da formação de proposi-
douro perto do muro – troncos, galhos, entu- ções absurdas, assim como da auto-alimentação
lho, torrões, cascalho – objetos amarelados...” e auto-reprodução totalmente descontroladas:
(GOMBROWICZ, 2007, p. 38). A desnorteante “O mel crescia. Começara com a ‘lua-de-mel’.
multiplicidade das conexões, longe de enri- Mas agora o ‘mel’ (graças a Jadeczka) tornava-se
quecer a composição do sistema ou dotá-lo de cada vez mais ‘auto-referente’... cada vez mais as-
algum sentido, transforma o conjunto em uma queroso...” (GOMBROWICZ, 2007, p. 155).
estrutura grotesca e indecifrável, na qual pre- A eficácia da herança vanguardista depois do
domina a ação em detrimento da interpretação: fim histórico das vanguardas artísticas é incon-
“Existe uma dose de realidade, cujo excesso ul- testável. Ainda que seja difícil confirmar uma

189
farol

simples continuidade com o fazer dos artistas stone, 2015.


dos inícios do século, não é possível negar seu INGARDEN, Roman. Wykłady i dyskusje z este-
pioneirismo no desfio dos sistemas totalitários tyki. Varsóvia: PWN, 1981.
em seus aspectos mais nefastos. No caso do ex- JARZĘBSKI, Jerzy. “The Three Versions of Mo-
pressionismo, que rejeitou a visão científica da dernity: Witkacy, Schulz, Gombrowicz”. Trad. D.
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Disponível em: https://wolnelektury.pl/katalog/
lektura/wyka-rzecz-wyobrazni/ Último acesso
em 25 de abril de 2020.

Olga Kempinska
Possui graduação em Filologia Români-
ca - Uniwersytet Jagiellonski (Polônia, 1999),
mestrado em Filologia Românica pela mesma
universidade, com bolsa em Katholieke Univer-
siteit Leuven (Bélgica), e doutorado em História
Social da Cultura pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (2008). Desde 2010
é professora 40h DE de Teoria da Literatura da
Universidade Federal Fluminense (Departamen-
to de Ciências da Linguagem). Tem experiência
na área de Letras, com ênfase em Teoria da Li-
teratura, atuando principalmente nos seguintes
temas: estética da recepção, relação entre mí-
mesis e emoções, e poéticas do multilinguismo.

191
farol

O SUJEITO CRIADOR ATRAVÉS DA AUTOANÁLISE DA PRÓPRIA


PRODUÇÃO ARTÍSTICA. UMA ABORDAGEM TRANSVERSAL
DESDE AS ARTES VISUAIS, A PSICOLOGIA ANALÍTICA E A
ARTETERAPIA

THE CREATIVE SUBJECT THROUGH THE SELFANALYSIS OF HIS OWN


ARTISTIC PRODUCTION. A TRANSVERSAL APPROACH FROM THE VISUAL
ARTS, ANALYTICAL PSYCHOLOGY, AND ARTS THERAPY

Fernando Alvarez
CAR-DAV-UFES

Resumo: O presente artigo propõe-se analisar a posteriori, tanto uma série de imagens plásticas -
esboços, desenhos e pinturas -, quanto registros escritos desde uma óptica psicanalítica. Tomando
como ponto de partida o pensamento de Freud sobre arte e estética, e em especial, as inter-relações
entre o inconsciente e os processos criativos, a técnica da psicanálise possibilitaria às próprias pessoas
examinadas solucionarem os seus enigmas oníricos. O que poderia ser extensível às imagens visuais.
Pretende-se, portanto, analisar alguns recortes do próprio fazer artístico no intuito de obter uma visão
de conjunto -embora subjetiva- do concomitante processo de maduração psicológica do indivíduo
mediado pelos processos criativos.

Palavras-Chave: Autoanalise; Artes plásticas; Psicologia analítica; Arteterapia; Cultura híbrida.

Abstract: This article proposes to analyze a posteriori, both a series of plastic images - sketches, drawin-
gs, and paintings - and written records from a psychoanalytical perspective. Taking Freud’s thought
about art and aesthetics as a starting point, and in particular, the interrelationships between the un-
conscious and creative processes, the psychoanalysis technique enables the examined people themsel-
ves to solve their dream enigmas. What could be extended to visual images? It is intended, therefore, to
analyze some clippings of the artmaking itself to obtain an overview - albeit subjective - of the concomi-
tant process of psychological maturation of the individual mediated by creative processes.

Keywords: Self-analysis; Visual Arts; Analytical psychology; Art Therapy; Hybrid culture.

192
Introdução tropologia, psicologia). Entre entanto, o princí-
Nas décadas de 70 e 80, meus par- pio orientador psicanalítico parece não funcio-
cos conhecimentos sobre psicologia, nar no contexto das ciências exatas, nas quais
limitavam-se ao que poderia ser de- o pesquisador que se auto-estuda é conside-
nominado como psicologia indiana rado culpável de cometer um tabu intelectual
e à psicologia marxista que vigorava em . Este artigo resulta, pois, o espaço ideal para
Cuba à época - na qual inexistia o concei- desenvolver os pressupostos acima referidos,
to de inconsciente. Em 1990 tive acesso à em um intento de toma de consciência, com
obra póstuma de Jung, “O homem e seus atenção plena, nos processos que interagem na
símbolos”. A qual, além de um reviravolta, criatividade individual.
significou alicerçar conceitualmente a pos- Durante anos, de forma sistemática, dediquei
terior pesquisa plástica. Por sua vez, a leitu- sessões de trabalho à análise estética da minha
ra e análise aprofundada da obra de Freud produção plástica anterior no intuito de desco-
durante o mestrado significou uma apro- brir quais os valores formais que, caso houver,
ximação às fontes metodológicas da psi- deveriam ser preservados ou retomados em
canálise, em especial à interpretação oní- buscas futuras. Mesmo que, durante as referi-
rica e à possibilidade de desconstrução das sessões, sentimentos, memória e emoções
psicanalítica da obra de arte. Ao me permi- associadas aflorassem, almejava debruçar-me
tir contrastar seu método com o de Jung com exclusividade sobre os elementos formais
, e inclusive com algumas das ideias de Piaget, objetivos dos trabalhos. Talvez uma espécie de
visando os elos, as divergências e as com- jogo de gato e rato entre os conteúdos cons-
plementaridades possíveis, obtive uma ideia cientes e aqueles obliterados pelos processos
mais abrangente e definida do papel da psi- psíquicos do indivíduo. Hoje, balizo que as di-
cologia (ou mais especificamente de alguns ferentes etapas criativas se sucediam, por re-
dos seus conceitos) nos processos criativos gra geral, com certa periodicidade, coincidindo
do sujeito-pesquisador durante seu percurso com as referidas avaliações. Saliento também
formativo interdisciplinar. que os conteúdos psicofisiológicos intrínsecos
Nas artes contemporâneas, o híbri- àqueles fatos adquirem importância a posterio-
do não só é pertinente, mas desejável ri. As linhas de pesquisa costumavam ser várias
. O apelo por uma experiência estética total re- a um mesmo tempo e eram desenvolvidas em
sulta visível no surgimento crescente de novas paralelo, de forma tal que uma era a principal e a
mídias tecnológicas que visam unificar num outra secundária, numa espécie de revezamen-
corpus único, as anteriores manifestações ar- to alternado.
tísticas específicas. Premissa esta, que pautou Visando uma análise objetiva pretende-se
tanto a produção da dissertação quanto a mi- estabelecer um contraponto, sempre que pos-
nha tese durante os estudos de pós-gradua- sível, entre: A) Croquis e anotações dos traba-
ção. Objetos artísticos mistos, justaposição de lhos em andamento segundo registrado nos
gêneros e de estilos enquanto justificava seu cadernos de esboços. B) Imagens das pinturas
emprego desde conceitos transversais perten- e desenhos já terminados. C) Anotações de
centes a diversas áreas do conhecimento da fatos e vivências (quer empírico/profissionais
área de humanas (iconografia, etnografia, an- quer afetivo/psicológicos) nas minhas agendas.

193
farol

Figura 1. Caderno de
anotações de 1970-
81. Fonte própria.

D) Transcrição dos intentos de autoanálise de campo das artes, a maneira de um catalisador,


alguns sonhos acontecidos à época, os quais em uma espécie de arteterapia funcional.
propiciam uma melhor compreensão das in- Espera-se obter, com base no cruzamento
ter-relações entre as diferentes áreas. Neste desses elementos, uma visão de conjunto tanto
conjunto saliento a importância dos pontos A do processo de individuação ou amadurecimen-
e B, a documentação do imaginário objetivado to da personalidade do sujeito criador, como do
em cadernos de esboços, desenhos, gravuras sua representação nos registros imagéticos nas
e pinturas. Assim como seu posterior registro diferentes etapas ou ciclos pictóricos, nos seus
em imagens digitais, o que permitirá estruturar respectivos contextos espaço-temporais. Espe-
cronologicamente as diversas etapas criativas, ra-se, também, balizar de forma minimamente
e, ao mesmo tempo, visualizar sincronicamente objetiva o percurso de probabilidades e incerte-
quais os conteúdos que permanecem ao longo zas pelo mundo mental do sujeito que pretende
delas, à maneira de um eixo direcionador do observar-se a si próprio no meio do caos líquido
processo de autoanálise por parte do sujeito da correnteza pós-moderna.
-pesquisador, que as apreende desde dentro do

194
Etapa formativa do transcendental, do noúmeno -kantiano e Figura 2A. Caderno
Corresponde aos anos de estudo de artes junguiano-, que aparecerá e desaparecerá de de anotações de
1978-89. Fonte
plásticas nas escolas de San Alejandro, Escola forma ininterrupta até constituir-se, anos mais própria. Figura 2B.
Nacional de Arte/ENA e no Instituto Superior tarde, em um dos eixos da poética plástica. Caderno de ano-
de Arte/ISA, no período compreendido entre Por sua vez, os esboços da figura 2A e fi- tações de 1978-89.
Fonte própria.
1969 e 1982, em Havana, Cuba. A figura nº 1 gura 2B refletem o que se constituiu numa
corresponde aos croquis da primeira página do das minhas obsessões desde muito cedo:
caderno de esboços mais antigo que conservo. objetivar a memória, a partir de desenhos
Trata-se de estudos de composição do primeiro de registros fotográficos em geral, e do
quadro a óleo que pintei, o qual tinha esqueci- álbum familiar em particular. Uma presença
do totalmente. Uma recordação escondida ou continua de forma mais o menos consciente
criptomnésia que somente saiu à luz, décadas até o presente, assim como a representação
depois ao receber o caderno em uma das visitas da morte mediada pelos desenhos do na-
da minha mãe. tural dos múltiplos esqueletos de cavalos
A composição era uma Descida da cruz nunca disseminados no sítio, perto de casa. À épo-
finalizada com soldados em vestes gregas - na ca, eu acreditava ser um aplicado aprendiz
época estava a descobrir a cultura helênica. de Yoga e dedicava grande parte do tempo
No entanto, o que me impressiona hoje é a pre- às práticas do Hatha Yoga, da meditação e
sença desde cedo, do interesse pela temática

195
farol

Figura 3A. Fonte: Nel- do Aikido1 enquanto as disciplinas de artes mensagens anônimas. Ingenuidade e esponta-
son Villalobos. Figura passavam a um segundo plano. neidade eram as características fundamentais
3B. Caderno de ano-
As figuras 3B e 4A apresentam esboços e re- da aproximação e apropriação dos desenhos
tações de 1978-89.
Fonte própria. Figura flexões sobre o andamento dos quadros que infantis. Nas anotações à margem dos esboços
3C. Fonte: Nelson estava a realizar nas feiras de 1979. Já as figuras da Figura 4A pode ler-se: “Si es conveniente ver
Villalobos.
3A, 3C, 4A e 4C são as pinturas mencionadas nos el uso de la estrella o del solecito, pero debo mi-
esboços, já terminadas tanto com acrílica sobre rarlo cuatro veces antes de hacerlo, y hacerlo de
papel, quanto com óleo sobre Eucatex e sobre un tirón, sin miedo”.
tela. Uma etapa semi-abstrata a partir da esti- Esto es un plano de color de figura sentida, no
lização de grafites urbanos, das fotografias do un plano de diseño con logotipos de mierda
álbum familiar, da presença de determinados puestos por poner. Ningún color puro, grises
sucios dentro de los azules verdosos, o si no,
elementos da Pop Art e das cópias de desenhos
combinar un sepia sucio, pero de los buenos,
infantis. aunque sea rebuscado. Olvidar los símbolos y
Nesses trabalhos, a materialidade das textu- verlos como materia a ser pintada, que es lo
ras tinha um papel fundamental assim também que son y no lo que aparentan
como a quantidade de camadas de tinta sobre-
postas e raspadas múltiplas vezes sobre a para- Na época tentara retomar, de forma efêmera,
fina aplicada sobre a tinta. Tencionava recriar a a escrita automática que praticasse anos antes,
textura e o passo do tempo nos muros e paredes como no exemplo a seguir: “Ver, ser, crescer, ler,
da cidade, com a sua sinalização territorial e as tratar de ser, lutar por ser, vencer, vender, volver
a ser, cair”.
1 Estes croquis estão datados entre 1975-76. As leituras Ora, os anos de universidade significaram um
costumavam ser uma mistura de filosofia clássica, filosofia ponto de inflexão e foram a iniciação na boêmia
indiana, textos de Mircea Eliade e de autores de ficção
após um extenso período de quase ascetismo
japoneses como Akutagawa. Costumava também praticar a
escrita automática. e tentativas de autocontrole. Foi também uma

196
época de sucessivos fracassos no plano afetivo entanto, a inexperiência3, a tendência à boêmia Figura 4A, Caderno
de anotações de
dada minha excessiva timidez. Acredito que isto e à alienação do meio artístico no qual me mo- 1978-89. Fonte
seja visível na estrutura compositiva emprega- vimentava, assim como o éthos machista nacio- própria. Figura 4B.
da em boa parte das peças produzidas, um jogo nal levavam minha vida afetiva por água abaixo. Óleo sobre tela, sem
data. Fonte: Nelson
infantil de tentativa e erro: o jogo da velha, onde Paradoxalmente, nos quadros representava
Villalobos. Figura 4.C.
focalizados por círculos ou riscados por um x, somente estruturas e monumentos arquitetôni- Óleo e parafina sobre
aparecem corações, estrelas e nomes de moça. cos em ruínas relacionados à intemporalidade, tela, sem data. Fonte
própria.
ao aspecto místico do acrónico. A inexplicável
Pintura da contemplação necessidade de grandes superfícies pictóricas 4
Esse foi o título da minha sexta mostra indi- — a dimensão média das telas era 230 X 270 cm,
vidual realizada em 19912 após a descoberta do embora chegasse a pintar quadros de 430 X 270
pensamento junguiano anteriormente citado. cm — onde pudesse mergulhar, ser absorvido
Considero que tenha sido o início da uma ma- pelas áreas de cor para plasmar o triângulo, a
turidade artística enquanto pintor (para além magnitude da pirâmide, símbolo da montanha,
do domínio dos meios, tinha encontrado, final- a grandeza da torre de Babel, da ascensão. Qua-
mente, um estilo pessoal definido mesmo sem dros cuja grande maioria tinha fundos inspira-
o reconhecimento da crítica). Estava em união dos nos céus do Greco enquanto os elementos
estável fazia alguns anos e embora profissio- do primeiro plano consistiam em frotagens,
nalmente me considera-se em início da carreira impressões, de elementos naturais do entorno
docente (trabalhava como professor-instrutor citadino. Aqui, a textura encorpada das poste-
na universidade e como professor num centro
de nível nacional em educação artística). No 3 Iniciei um relacionamento sério aos 24 ou 25 anos, com
uma mulher alguns anos maior do que eu, que logo após
descobri ser a pessoa errada.
2 Pintura de la contemplación, Galería Centro de Arte Ala- 4 González de Armas, J. Labor de hormiga, palavras para o
mar, janeiro, 1991, Havana, Cuba. catálogo Pintura de la Contemplación, 1990.

197
farol

riores camadas de tinta realçavam a materiali- centistas ou mandalas e não necessariamente a


Figura 5A. Nome de dade da transferência anterior, visando revelar o totalidade da psique. Como nos mecanismos do
Deus, óleo sobre tela, mundo imaginário da composição. Às vezes há pensamento latente, a apreensão consciente de
430 X 270 cm, 1995.
uma fragmentação quase cubista quer com o certos significados permanecia inacessível, era
Fonte: Orlando Sílvio
Silvera. Figura 5B. O tratamento a espátula quer com uma pincelada relegada ao inconsciente, sob efeito de alguma
autor na galeria dian- herdada do expressionismo abstrato que reflete forma de censura. Durante esta etapa, tentei
te da obra Os rostos
não apenas a estrutura divergente do espaço negar, conscientemente, a abordagem espon-
de Deus, óleo sobre
tela, 230 X 270 cm, pictórico, mas a provável fragmentação do in- tânea da etapa prévia sob influência da crítica
1990. Fonte: Nelson divíduo, não no sentido do Jung psicanalista de arte, 5 das tendências de moda, e do suposto
Villalobos. que antepõe o médico ao esteta, mas naquilo papel do intelectual enquanto epidemiologista
que diz respeito ao criador inconsciente do social.
conteúdo da própria obra (FISCHER; KAU-
FMANN, 2019, pp. 21-33). Consequentemente a A necessidade de materializar uma estrutu-
dicotomia, o emprego dos contrários hegelia- ra triangular se manteve invariável por alguns
nos-marxistas, era a forma apropriada de apre- anos. Já na figura 6 as formas vão se estreitando
ender o mundo. na vertical para se assemelhar mais com uma
Ao tencionar embasar de forma consciente torre ou um falo (a árvore do centro do mundo).
os significados dos símbolos usados nas pin- Embora o valor simbólico da cor se mantivesse
turas a partir da escola junguiana focalizei uns quase invariável, as cores vermelhas ganham
aspectos em detrimento de outros. Assim, todas
as edificações representadas eram pétreas. Um 5 O conhecido crítico G. Mosquera etiquetara como pueris
meus trabalhos anteriores, num premiado ensaio de 1979
apelo à durabilidade do material ao invés que ao que resultou na exclusão de vários artistas jovens do
caráter simbólico de morada dos deuses e dos proto-grupo que originou a primeira vanguarda artística
espíritos, embora os títulos, às vezes, aludissem pós-revolucionária em Cuba: Volume I. A sua avaliação
permaneceu inalterada ao longo dos anos, criando em mim
a este aspecto. O formato de muitos dos traba-
um sentimento de culpa e a necessidade de buscar de um
lhos era circular representando tondos renas- “estilo amadurecido”.

198
áreas maiores ao mesmo tempo em que a pin- de energia psíquica, com a capacidade de poder Figura 6A. Dialética
celada e as formas se fazem mais organicamen- se deslocar a qualquer área da psique. (JUNG, C. do movimento,
óleo sobre tela,
te gestuais. O emprego de cores escuras, pesa- G., 1989, vol. V, pp. 116-124). Para ele, a libido
100 X 100 cm, 1999.
das, na base e da cor verde no topo do quadro tem conotações mais abrangentes, de energia Fonte própria. Figura
nos fala da visualização do problema e de uma psíquica, com a capacidade de poder se des- 6B. Caderno de
anotações de 1978-
possível solução, do qual, as figuras 7A e 7B locar a qualquer área da psique. O título alude
89. Fonte própria.
mostram outra imagem arquetípica que se re- à nossa reflexão. Numa torre bizantina, dentro Figura 6C. Sem título,
petirá durante anos em abordagens diferentes: de uma redoma de alquimista, é representada acrílica sobre tela,
o labirinto. uma figura humana (o eu) lutando contra uma 230 X 270 cm, 1988.
Fonte: Orlando Sílvio
No entanto, na figura 7B, vislumbra-se a luz no cobra (os instintos) numa água lamacenta (o in- Silvera.
final do túnel. Ora, nesses anos consegui tomar consciente). A ida aos extremos é segundo Or-
uma decisão muito tempo adiada, separei-me. tíz, a característica definidora da cubanidade.
O conflito entre fidelidade a uma situação fra- Após uma união quase monástica a liberdade
cassada, o temor ao ignoto, a começar de zero, conquistada tem de ser dominada, ou melhor,
tentar manter um status de aparente estabilida- direcionada. Fora, no céu, voluptuosas nuvens
de perante a sociedade e de autoengano parecem estar à espreita. Ora, as categorias de
consciente pareceu durar uma eternidade. incerteza e probabilidades que Freud parece
Consequência direta disto, o foi a redução da ter compartilhado com a Teoria da relatividade,
escala, as construções ciclópicas foram substi- ou melhor, herdado da mesma possibilitariam,
tuídas por figuras humanas e por monstros me- conjuntamente ao caráter polissêmico intrínse-
dievais e símbolos gnósticos e alquímicos. Era a co à obra de arte, a realização de várias outras
força do instintual entendida como não apenas leituras com igual grau de validade.6
como sexual ao reconhecer a existência de ou- Poderia argumentar-se que devido a um im-
tros impulsos. (FREUD, S. 2014, pp. 35-132) sain- perativo de ordem prática — econômica — se
do à superfície após anos de repressão, como produziu a redução, tanto dos formatos das
pode ser visto na figura 8. Segundo Jung, tanto
o “appetitus como a compulsio são propriedades 6 Por exemplo, torre=falo, esfera de vidro=glande, nu-
vens=emissão. Ou também, a metáfora de uma das etapas
de todos os instintos e automatismo”. Pois para
do lento processo de individuação onírica, por intermédio
ele, a libido tem conotações mais abrangentes, de imagens tomadas em empréstimo da alquimia.

199
farol

Figura 7A. Final pinturas quanto do material, e inclusive, a mu-


do caminho, óleo dança do gênero artístico: da tela para o papel,
sobre tela, 80 X 120
cm, 1994. Fonte
do óleo para a acrílica e o nanquim. No entanto, tina que faz acontecer a transformação. O fundo
própria. Figura 7B. as categorias de sincronicidade de Jung ou da do quadro está manchado ao acaso, sem con-
Aproximação ao ego, intencionalidade na técnica da livre associação trole, ou pelo menos foi feito com a intenção de
ponta-seca e buril
de Freud poderiam explicitá-la melhor. apenas limpar os pincéis.8
sobre zinco, 38 X
46cm, 1995. Fonte: A figura 9, Homem prudente é um trabalho Nessa época tive um sonho, cuja análise
Secretaria de Cultura já realizado no Brasil. É até certo ponto, uma transcrevo por considerar que encerra as con-
e Desportes/Funda-
mistura de desenho e pintura. Situações no- siderações esboçadas respeito à análise das
ção Cultural do DF.
vas implicam a reformulação do já conhecido figuras nº 9 e nº 10. (Sábado 21-Domingo 22 de
desde novos de vista. Vai ser precisamente a junho de 1997). “Um sonho em três partes bem
necessidade de enraizar-me7 o que me induziu diferençadas. Nelas a anima adquire formas di-
a desenhar o mandala com terra (o valor mági- versas. Em última análise as diferentes encar-
co da substância). No seu interior, pinceladas nações da anima respondem ao arquétipo da
e manchas feitas ao azar representam a minha mãe. Complexo de Édipo não conscientizado?
psique (inconsciente incluído) e a necessidade O fato de não ter saído antes do seio materno
de aceitá-la. (lar) implicou um aumento da dependência
O anterior resulta mais evidente na figura 10. A ao mesmo em diferentes níveis. O desejo
representação de um alambique dos utilizados (inconfesso) de não sair ou de demorar a
nos engenhos do século XVIII para a manufatura saída visava pospor o enfrentamento dos pe-
de açúcares em cachaça remete a um conceito rigos do mundo externo (ignoto). Eis o medo a
caro a Jung, a transformação ou sublimação crescer, a assumir as responsabilidades do adul-
alquímica da alma durante o processo de indi- to. O melhor, adiar a possibilidade de conhecer
viduação. O recipiente tem um tratamento de outra mulher (etapa necessária e desconhecida)
texturas notadamente diferente (diversidade da começando em zero. A equação mulher = sexo =
unidade) da lisura e brilho da tubulação serpen-
8 A intenção de justapor elementos dissimétricos já estava
7 A vinda ao Brasil me fez completar o ciclo de maturidade presente nas anotações do caderno de esboços de 1979,
psicológica. Foi à saída do lar paterno, a mudança de língua, onde pode ler-se: “Tratar de integrar dos elementos comple-
e um novo casamento, devidamente ritualizado, com o meu tamente distintos, ajenos, en todos sus componentes es una
complemento feminino. tarea grata y atractiva por lo arduo de la empresa”.

200
Figura 8. Os perigos
da alma, nanquim e
guache sobre papel,
70 X 50 cm, 1995.
Fonte: Júlio César P.
Oliveira.

Figura 9. Homem
prudente, acrílica e
terra sobre papelão
couro, 100 X 80 cm,
1996. Fonte: Júlio
César P. Oliveira.

Figura 10. Memórias


do açúcar II, óleo
sobre papelão couro,
86 X 100 cm, 1997.
Fonte: Fonte: Júlio
César P. Oliveira.

201
farol

tabu propiciou a autorregressão emocional ge- intelectualmente inventadas” e que ele supõe a
rando instabilidade e em consequência, a cria- origem da mitologia.
ção de couraças e dogmas absurdos para en- Em múltiplas oportunidades tentei visuali-
frentar o mundo. Medo a um próximo encontro zar todas as leituras possíveis dos significados
desde um degrau diferente? Um ícone familiar ativados num determinado trabalho, porém,
sofrera a defenestração. Ora, foi situado no seu o alto grau de envolvimento afetivo durante a
lugar e substituído por outro de distinta conota- gestação da obra o impossibilitava (só vemos
ção. Aceitação do câmbio, das mudanças. Aliás, aquilo que desejamos ver). Análises posterio-
esta é a lei básica do universo: o fluxo perpétuo”. res aportavam novos ângulos de leitura, porém
resultaram inoperantes no que diz respeito à
Conclusão apreensão da totalidade de significantes pos-
A técnica psicanalítica de interpretação dos síveis, pois a nossa consciência também está a
sonhos contém muitos elementos em comum mudar de forma constante. Por sua vez, os me-
com outras disciplinas. A ênfase conferida à fi- canismos de censura atuantes durante a vigília
lologia, às imagens ou à sua transcrição numa também direcionam a nossa apreensão (não ve-
espécie de pré-linguagem arcaica emparceirou mos aquilo que, no íntimo, não desejamos ver).
a psicanálise à teoria dos signos e, à antropo-
logia. Ao parecer, o zeitgeist da época, direcio- Referências
nava-se a perscrutar, desde os ângulos de uma AKHILANANDA, S. Hindu psychology: Its mean-
interdisciplinaridade incipiente (e inconsciente), ings for the West. NY: Harper & Brothers, 1946.
um mesmo problema, redefinir epistemologi- ANZIEU, D. A auto-analise de Freud. PA: Artes
camente o conhecimento desde seus próprios Médicas, 1989.
elementos constitutivos: a mente e a linguagem. BELLEMIN-NOËL, J. Psicanálise e literatura.
Freud estudou a psique a partir do material SP: Cultrix, 1983.
onírico de pacientes neuróticos e reuniu dados BAUMAN, Z. A cultura no mundo líquido mo-
suficientes que apontam para uma semelhança derno. RJ: Zahar, 2013.
entre os mecanismos inconscientes do sonho FREUD, S.. A interpretação dos sonhos.
e os de a vigília. Por outro lado, a técnica das Obras psicológicas completas, vol. IV e V. RJ:
associações e das analogias em subsequentes Imago, 1976.
correntes associativas me faz lembrar o meca- ___. A interpretação dos sonhos. Obras psi-
nismo das estruturas que ligam (o conceito de cológicas completas, vol. IV e V. RJ: Imago, 1976.
bricolagem) de Lévi-Strauss no que diz respeito ___. Conferências introdutórias sobre a
à arte, a mitologia e a antropologia. Todas par- psicanálise. SP: Cia das Letras, 2014.
tilham o mesmo modus operandi: são recriações GONZÁLEZ DE ARMAS, J. Labor de hormiga
de materiais existentes (quer no mundo men- palavras para o catálogo. Pintura de la Con-
tal quer no físico). O fato de considerar tanto o templación, Galeria de Arte Alamar, Havana,
simbolismo onírico quanto o simbolismo como Cuba, janeiro de 1991.
restos de “uma linguagem básica” ou de uma HOERNI, U.; Fischer, T.; Kaufmann, B. A arte de
hipotética “linguagem primitiva” remete, tam- C. G. Jung. Petrópolis: Vozes, 2019.
bém, ao conceito de arquétipo desenvolvido JEAN-CLAUDE, B. Conversando com J. Pia-
por Jung: “imagens instintuais que não foram get. RJ: DIFEL, 1978.

202
JUNG, C. G. Conferências introdutórias so-
bre psicanálise. volume XV da Edição Standard
Brasileira, RJ: Imago Editora, 1976.
___. Símbolos da transformação. Vol. V das
Obras completas. RJ: Editora Vozes, 1989. ___.
O homem e seus símbolos. RJ: Harper Collins
(3ra edição), 2016.
LÉPINE, C. O inconsciente na antropologia
de Lévi-Strauss. SP: Ática, 1979.
MEZAN, R. Freud, pensador da cultura. SP:
Cia das Letras, 1985.
PEREIRA, M. E. C. Notas da disciplina AT319
A: Fundamentos teóricos e clínicos da artete-
rapia. Pós-graduação, Instituto de Artes/UNI-
CAMP, 2000.

Fernando Alvarez
Doutor em Multimeios pela Universidade Es-
tadual de Campinas/SP (2007) e Mestre em Ar-
tes pela Universidade Estadual de Campinas/SP
(2002). Possui graduação em Licenciatura em
Artes Plásticas, especialização em Pintura pelo
Instituto Superior de Artes (1982). Atualmente é
professor associado I no Departamento de Ar-
tes Visuais do Centro de Artes da Universidade
Federal do Espírito Santo. Tem experiência na
área de Artes, com ênfase em Desenho, Gravu-
ra, Pintura e Vídeo, atuando principalmente nos
seguintes temas: objetos artísticos híbridos,
história da arte- artes plásticas, e arte cubana-
história.

203
farol

TRADUÇÃO
204
O CONCEITUALISMO LÚDICO DE BAS JAN ADER:
PERFORMANDO A IDENTIDADE TRANSICIONAL

REVISITING BLACK MOUNTAIN COLLEGE.


TEACHING TO TRANSGRESS

Janna Schoenberger
University of Amsterdam

Tradução
Angela Grando
PPGA-UFES
Léa Araújo
UFES

Profa. Dra. Janna Schoenberger atua como professora da University of Amsterdam. Concluiu seu PhD
no Graduate Center, na City University of New York com a tese Ludic Conceptualism: Art and Play na
Holanda de 1959 a 1975.” Recentemente, Dra. Schoenberger concluiu bolsas no Rijksmuseum e na Bi-
blioteca Beinecke da Universidade de Yale. Seu livro, Waiting for the Witch Doctor: Robert Jasper Groo-
tveld’s Scrapbook and the Dutch Counterculture, foi publicado pelo Rijksmuseum em 2020. Este artigo
foi publicado originalmente pela John Benjamins Publishing Company no ano de 2015.

Resumo: Seguindo as ideias de Huizinga em sua obra Homo Ludens (1938), proponho o termo Con-
ceitualismo Lúdico para descrever a arte que floresceu em solo holandês dentre os anos de 1959 a
1975. Diferentemente da vertente mais austera do conceitualismo desenvolvido em Nova York e Reino
Unido, o jogo era central para a vertente holandesa. Neste artigo discutirei como a consolidação de
uma identidade, performada através de piadas de cunho satírico baseadas em estereótipos nacionais,
se tornou a chave para a compreensão do processo artístico do artista conceitual holandês Bas Jan
Ader. Embora grande parte do humor presente em seu trabalho seja óbvio, não houve nenhuma in-
vestigação séria sobre sua prática da ironia. Posicionarei Ader dentro da estrutura da arte conceitual
humorística pós-guerra prevalecente na Holanda e Califórnia, localidades onde Ader viveu e estudou.
Utilizando teorias do humor e da identidade demonstrarei como as piadas de Ader estão intrinseca-
mente ligadas a contextos sociais presentes nos dois lados do Atlântico, ambientes relevantes para o
desenvolvimento artístico em todo curso de sua curta carreira. Uma investigação atenta sobre o traba-
lho de Ader revelará que a identidade densa desse artista, como vista em sua utilização do humor, é de
fato, a característica central de seu trabalho.

205
farol

Figura 1 Bas Jan


Ader, In Search of Em 1960, o adolescente holandês Bas Jan Seu precoce sucesso artístico foi celebrado
the Miraculous Bas Ader (1942-1975) chegou em Bethesda, Maryland em numerosos jornais holandeses. Por exem-
Jan Ader in his boat,
(EUA), com intuito de cursar o ensino médio por plo, o jornal liberal Het Vaderland (Terra Natal)
1975. © The Estate
of Bas Jan Ader meio de um programa de intercâmbio estudan- de Haia louvou a realização de Ader e apontou a
/ Mary Sue Ader til; no final daquele mesmo ano, ele realizou sua exposição individual como um “reconheci-
Andersen, 2016 / The
uma exposição individual na galeria Realité lo- mento especial, que muitos artistas nunca rece-
Artist Rights Society
(ARS)-New York, calizada em Washington, capital do país; circu- bem” (“Nederlander exposeert in Washington”
Courtesy Meliksetian| laram rumores que Jacqueline Kennedy teria 1961).2 Uma resistência, entretanto, foi o artigo
Briggs – Los Angeles adquirido um de seus desenhos (Timmerman, escrito por Bob Nahuizen no jornal nacional ho-
and Metro Pictures –
New York.
1999:74; Beenker, 2006:14).1 landês Het Vrije Volk (A Nação Livre), que optou

2 O título do artigo (“Holandês expõe em Washington”)


1 As referências bibliográficas seguem a digitação original aponta para o orgulho nacional, como se Ader estivesse
da autora. representando a Holanda.

206
pelo foco não em seu trabalho, mas em seu não ser inserido no contexto da arte conceitual de
usual modo de falar. Nahuizen observou que caráter humorístico evidenciada no pós-guer-
Ader usava muitas palavras em inglês, e falava ra, a qual prevaleceu tanto na Holanda quanto
seu dialeto natural de Groningen com sotaque na Califórnia, localidades onde o artista viveu e
norte americano. O repórter conclui que o tem- estudou. Assim, explorarei o uso do humor, de-
po passado pelo artista nos Estados Unidos o senvolvido na Costa Oeste norte- americana a
havia tornado arrogante, alegação conectada a partir de sua posição periférica na arte mundial
suposta dificuldade de Ader em falar holandês. e, ainda, o porquê de a Holanda ser particular-
Uma fala de Ader foi citada (talvez, influenciado mente receptiva à arte lúdica. Utilizando teorias
pelo entrevistador) “Eu não sou Groninger nem do humor e da identidade, mostrarei como a
holandês, mas também não sou um america- estética bem humorada e lúdica de Ader é forte-
no. Eu não quero ser nada além de Bas Jan – eu mente ligada à percepção crítica dos contextos
mesmo.” (Nahuizen, 1961).3 sociais presentes dos dois lados do Atlântico,
Quem era Bas Jan Ader? Sua identidade im- ambientes relevantes para o desenvolvimento
precisa e híbrida, refletida em seu uso do humor, da arte em todo curso de sua curta carreira.
é de fato a característica central de seu traba- O historiador cultural holandês Johan Huizin-
lho. Neste artigo, especificamente, mostrarei ga, em um de seus livros mais renomados, Homo
como compreender a fixação de Ader em sua Ludens: O jogo como elemento da cultura, publi-
identidade transcultural performada, através cado em 1938, 5 interpretou elementos presen-
de sátiras de estereótipos nacionais e tropos, é tes no instinto do jogo e argumentou que o jogo
vital para abranger sua produção artística. é um elemento formativo da cultura e está pre-
Até o presente momento não houve uma in- sente em quase todas as expressões culturais
vestigação séria sobre o aspecto cômico pre- (1971)6. Linguista de coração, Huizinga achou
sente na obra de Bas Jan Ader. Os escritos sobre que a melhor palavra para descrever a inquisi-
este artista são focados especificamente no tiva childlike, e inerentemente moral do jogo era
caráter trágico de sua vida, como a execução a palavra em Latim ludus, de onde advém a titu-
de seu pai durante a Segunda Guerra Mundial lação de seu livro.7 Concordando com Huizinga,
ou, ainda, sobre sua misteriosa morte no mar,
em 1975. Ader foi situado em uma tradição de 5 O livro foi publicado originalmente em 1938, entretanto a
autora utiliza como referência a versão publicada em 1976.
Romantismo melancólico, cotejando figuras
(nota da tradutora)
como o pintor alemão Caspar David Friedrich 6 A tradução em inglês amplamente disponível sintetiza as
(Verwoert 2006; Sefermann et al.2008) 4. De ou- traduções de Huizinga, em 1944, para o alemão e inglês.
No “Prefácio” Huizinga esclarece que o subtítulo deveria
tro modo, parto do princípio que Ader deveria
ser “The Play Element of Culture” mas o tradutor não iden-
tificado o adaptou para “The Play Element in Culture” e o
3 “Groninger”: Termo que se refere aos que nascem no con- justificou como “mais eufônico”.
dado de Groningen. Groningen foi uma terra independente 7 Em estudo mais recente sobre Huizinga e seu trabalho,
que se juntou à Holanda em 1594. Teve um destaque históri- veja Willem Otterspeer, Reading Huizinga, trans. Beverly
co, sendo uma cidade comercial cujo dialeto tornou-se uma Jackson (Amsterdam University Press, 2011). O título Homo
língua oficial na região. (nota da tradutora) Ludens, homem o jogador, é uma resposta direta ao mar-
4 Caspar David Friedrich (1774-1840) foi um dos mais xismo - homo farber, homem criador. Huizinga argumentou
eminentes representantes do Romantismo, movimento que o peso dado as forças econômicas no curso do mundo
cultural surgido ao final do século XVIII e que se estendeu pelos marxistas foi um “equívoco vergonhoso”. Huizinga,
aproximadamente até meados do século XIX. Homo Ludens, 192.

207
farol

uso o termo “lúdico” para descrever a tendência nia, incluindo John Baldessari e Allen Ruppers-
de uma arte playfull popular na Holanda e na berg, tenham sido bem recebidos na Holanda:
Costa Oeste dos Estados Unidos nas décadas de ambos tiveram exibições individuais em Amster-
1960 e início de 1970. Diferentemente das mais dam nos anos de 1972 e 1973, respectivamente.
rigorosas, burocráticas e tautológicas amarras O humor era um modo de expressão popular
do conceitualismo desenvolvido em Nova York em Los Angeles, tanto devido à presença da
(como o de Joseph Kosuth), o humor é central indústria do entretenimento como à relativa fal-
nesse cenário na Holanda e na Califórnia. As- ta da mídia crítica especializada, especialmente
sim, proponho o termo de conceitualismo lúdico se comparada ao cenário crítico de Nova York
como o mais apropriado para discutir a obra de (Baldessari, 2011) 8. De acordo com Ann Golds-
Bas Jan Ader e de outros nessa linha. tein, procedente de Los Angeles e antiga direto-
O humor permeou a arte produzida e expos- ra do Museu Stedelijk de Amsterdam, o foco de
ta na Holanda durante a década de 1960. Uma L.A seria o entretenimento, e de tal modo, que
afeição à ludicidade conecta uma variedade de esta cidade se configurou um ótimo local para
designs, fotografias, filmes e performances. Por alguém se tornar um artista porque “ninguém
exemplo, a Nova Babilônia de Constant Nieuwe- ligava para você” (Larry Bell e Ann Goldstein
nhuis, um plano para uma cidade utópica como 2013). Em Nova York artistas poderiam ter cer-
um playground infinito, foi exibido pela primeira teza de que cada trabalho de arte ou declaração
vez em Amsterdam, em 1959. Nessa cidade utó- seriam analisados e examinados atentamente,
pica proposta, cidadãos não seriam obrigados levando a uma ponderação de auto serieda-
a trabalhar, ao invés disso viveriam como seres de por parte da comunidade artística. Em Los
criativos; isto é, sua existência e significado se- Angeles, por contraste, a falta de mídia crítica
riam vivificados em suas contribuições sociais permitiu aos artistas a liberdade do jogo. (Bal-
antirracionais e antifuncionais. Dois anos de- dessari 2011). 9
pois, Win T. Schippers realizou uma performan- Por que museus e galerias holandeses fo-
ce televisionada, esvaziando uma garrafa de re- ram tão receptivos ao conceitualismo lúdico,
frigerante soda dentro do mar. Em uma série de especialmente aquele oriundo de Los Angeles,
trabalhos executados em 1961, o artista Stanley e por que a arte conceitual lúdica se espalhou
Brouwn propôs um novo método de construção tão facilmente pela Holanda? Assim como Los
de mapas que refletiriam melhor nos indivíduos Angeles estava em relação a Nova York, Ams-
a experiência subjetiva de navegar na cidade: terdam ocupava uma posição periférica no que
This Way Brouwn, No Way Brouwn, Brouwn This diz respeito à hegemonia artística parisiense. O
Wat Public e This Way Brouwn for the Soul, todas humor era peça central na estratégia crítica não
envolvendo pedestres e direções traçadas para apenas para artistas holandeses, mas também
localidades existentes ou não na cidade de Ams-
terdam. 8 John Baldessari em conversa com Ann Goldstein e Rudi
Fuchs, tentaram articular porque o humor era uma força
Os holandeses não foram os únicos a aderi- motriz.
rem ao humor: a Califórnia também produziu 9 Na mesma conversa Rudi Fuchs comenta sobre sua apre-
uma onda de arte lúdica nesse período, espe- ciação do humor presente no trabalho de Baldessari, Bruce
Nauman, e Sol LeWitt, que é bem representado no Museu
cialmente no conceitualismo. Portanto, não é
Stedelijk de Amsterdam. Fuchs se refere a LeWitt como
surpresa que os artistas conceituais da Califór- “mestre cômico”.

208
para ativistas políticos holandeses que recor- ou evento que viola padrões mentais e expec-
riam ao potencial satírico para provocar a or- tativas (Morreall 2009). O filósofo Simon Crit-
dem social vigente. Em meados dos anos 1960, chley ainda postula que existe uma espécie de
o movimento anarquista Provos tentou chamar contrato social implícito entre o humorista e a
atenção para o trânsito e o tráfego congestio- audiência, pois para a compreensão da incon-
nado na cidade, defendendo a distribuição gra- gruência deve haver primeiro a congruência. Se
tuita de bicicletas pintadas de branco por toda a congruência não está presente, o humor não
Amsterdam, o que se tornou conhecido como o se torna engraçado (Critchley 2004: 4). Isso expli-
“plano das bicicletas brancas” 10. O Provos recor- ca, por exemplo, porque é tão difícil contar uma
reu a uma série de táticas lúdicas provocativas piada em uma língua estrangeira: o humor ten-
para confrontar tanto o governo conservador de a ser local, especificamente contextualizado,
holandês, quanto a grande parcela da popula- e uma forma de conhecimento intrínseco (ibid.:
ção conformista de classe média – por exem- 67). De acordo com Critchley. “A doce melancolia
plo, a fim de chamar atenção para a maneira do exílio está frequentemente enraizada na nos-
que Amsterdam priorizava carros em oposição talgia da perda do senso de humor” (ibid.:68).
a ciclistas e pedestres, eles distribuíram grose- Ele adiciona que o humor que nos traz de volta
lhas no meio da rua para perturbar o trânsito. para casa, ou ao que nós sabemos frequente-
Seguindo a tradição do humor satírico o Provos mente, faz isso relacionando conjuntamente an-
zombou de convenções sociais, e nessa instân- siedade, dificuldade e vergonha (ibid.:74). A sáti-
cia se expressaram contra a cultura automobi- ra só funciona com uma base cultural comum,
lística crescente em Amsterdam. Finalmente, ou congruência, e o humor na sátira existe no
os artistas holandeses estavam se conectando ataque a crenças compartilhadas.
a longa tradição de humor e de sátira na arte e Como um imigrante holandês no sul da Cali-
na literatura, herdeira de uma prática cultural fórnia, Bas Jan Ader usou o humor para expres-
que recua ao final do século XV; para tal, basta sar as dificuldades de viver entre duas nações;
apenas lembrar do artista Hieronymus Bosch e sua terra natal e a sua morada escolhida nos
do estudioso humanista Erasmu’s em “Elogio da Estados Unidos. Ader, de uma maneira satírica,
Loucura”, juntamente a diversos outros exem- utilizou clichês e estereótipos das duas nações
plos. Ader era, portanto, parte de uma geração em seus desenhos, filmes e fotografias. No seu
holandesa e norte americana que adotou o hu- uso da sátira, Ader olha para sua própria ex-
mor e a sátira como prática artística. periência vivida e identidade como fonte para
É proveitoso examinar a natureza satírica do questionar as normas sociais. Seu livro de ar-
trabalho de Ader através das lentes da teoria tista – publicado quando de sua exposição
da incongruência. De acordo com essa teoria, de conclusão de Mestrado em Belas Artes na
atualmente dominante em estudos sobre o Claremont Graduate School, na Califórnia, em
humor, o humor é encontrado em uma coisa fevereiro de 1967- está repleto de trocadilhos
que, provavelmente, apenas seus colegas ho-
10 Provos - foi um conglomerado de jovens holandeses landeses conseguiriam entender. Por exemplo,
atuantes entre os anos de 1965 e 1967. Durante os anos ele escreveu e ilustrou um conto para o livro
que estavam em atividades manifestaram sua insatisfação
intitulado “What makes me so pure, almost holy?
social de maneira pacífica e lúdica, através de panfletos,
periódicos, planos e happenings. (nota da tradutora) And more.” sobre as aventuras de um holandês e

209
farol

sua amiga Béa – apelido da então princesa (e até vro, podemos notar Ader, escrevendo como um
recentemente rainha) Béatrix- que, entre outras expatriado na Califórnia, dissimulando sua sau-
coisas, tenta mover um pesado trono. Na ima- dade de casa com humor enraizado na Holanda.
gem em oposição, na primeira página, o nome Quatro anos após sua exibição no MFA, Ader
Béa Bloemkool está inscrito num mapa abstrato retornou a Holanda e seu processo criativo re-
da Holanda. Ademais, ao humor de aliteração, flete uma sensibilidade que não era apenas es-
o nome (bloemkool significa couve-flor) remete tadunidense, mas distintamente californiana13.
jocosamente à cidade natal de Ader, província O termo “California Slapstick” 14, formulado por
rural de Groningen, onde as couves-flores são Jay Leyda em 1985, define um modo particular
uma cultura típica e ingrediente em pratos tradi- de humor associado ao mundo imaginário do
cionais. Provavelmente, não coincidentemente, emergente estado do oeste, como visto, por
couve-flor também era uma gíria grosseira para exemplo, em filmes de Buster Keaton e Harold
seios. (Mais conhecida pelo seu uso na canção Lloyd (Federação Internacional de Arquivos Ci-
do comediante e compositor André van Duin, nematográficos 1988; Wolfe 2010; 169-190). Ader
no ano de 1979, denominada “Ok Heb Hele Grote evocou California Slapstick no trabalho de arte
Bloemkolen”).11 Embora Ader tenha escrito essa executado na Holanda no início da década de
curta história em inglês, ele escolheu uma pala- 1970. Críticos identificaram o seu uso de slaps-
vra holandesa para aliterar na nomenclatura de tick e suas alusões a Keaton (Schorr 1994: 37;
Béa; e não apenas qualquer palavra holandesa, Steenbergen 1993; Andriesse 1998), mas até o
mas a que remete ao humor sexista utilizado em presente momento ninguém tentou compreen-
sua terra natal. Ader também distinguiu visual- der como a vertente humorística se relaciona a
mente sua região natal com uma estrela sobre uma identificação simultânea com dois países.
Groningen em seu mapa da Holanda. Assim, Uma comédia ao estilo Keaton é facilmente
vale a pena questionar: quem entendeu a piada? reconhecida nos filmes Fall de Ader, o que reve-
Notavelmente, seu compatriota exilado e ami- la um senso de humor influenciado pelo humor
go, o holandês Ger van Elk deve ter sido parte da californiano e, possivelmente, uma correspon-
referida audiência (Daalder 2008). A escolha de dente mudança em seu senso de identidade.
Ader em utilizar um humor específico do norte Por exemplo, ao considerar o Fall II (Amsterdam)
da Holanda indica uma certa nostalgia e sauda- de 1970, filmado em uma rua de Amsterdam.
de de sua província natal. Nele o artista aparece em uma bicicleta, segu-
Em um poema no mesmo livro de artista, rando um punhado de flores, antes de peda-
“What does it mean? Cheep cheep?”, Ader articu- lar lentamente até adentrar o canal. É o puro
la ainda mais sua saudade de casa. No final da slapstick, referenciando o fatídico acidente de
primeira página, o artista explica que o poema é carro em uma vala, presente no filme de Bus-
sobre “hoje e ontem” significando sua vida entre ter Keaton, de 1923, “As Três Idades”. Aqui, Ader
a Califórnia e a Holanda. Ader era aparentemen-
te feliz em sua casa de madeira e notou que “a vizinho é sempre mais verde”. (nota da tradutora)
grama era mais verde do outro lado”.12 Neste li- 13 MFA (Master of Fine Arts) referente a exposição de
conclusão do mestrado citada anteriormente nesse texto.
11 “Ok Heb Hele Grote Bloemkolen ” - eu tenho grandes (nota da tradutora)
couves-flores. 14 Equivalente ao tipo de humor conhecido popularmente
12 Correspondente ao ditado em português “a grama do no Brasil como “Comédia Pastelão”. (nota da tradutora)

210
Figura 2 Bas Jan
abandonou as referências de Groningen pre- de Mondrian, enquanto que o cavalete e a ação Ader - Studies for Fall
sentes em seu livro de 1967, enquanto explora de queda representavam as diagonais incorpo- 2, Amsterdam, 1970.
clichês holandeses óbvios como: flores, canais radas por Mondrian (Van Garrel 1972: 48). Ader Set of three black
and white vintage
e bicicletas. Entre o final da década de 1960 os desta maneira recriou uma pintura sob a forma-
prints, 3 1/2 x 5
primeiros anos de 1970, o humor de Ader tran- lidade De Stijl e, em seguida, desvirtuou-a, ao inches; 8.9 x 12.7 cm
sita nas evocações nostálgicas de seu local de mesclar as diagonais de Mondrian, em uma dua- (each image) unique.
© The Estate of Bas
nascimento para englobar (zombar de) sua ter- lidade de homenagem e sabotagem. Tal como
Jan Ader / Mary Sue
ra natal recuperada. Enquanto em seu livro de acontece com Fall II (Amsterdam), Ader aqui in- Ader Andersen, 2016
artista vemos uma aspiração por sua terra natal corporou o humor California slapstick em um ce- / The Artist Rights
com observações satíricas baseadas em piadas nário típico holandês. O trabalho de Ader pode Society (ARS)-New
York, Courtesy Melik-
de Groningen, apenas alguns anos depois Ader ser visto como um autorretrato incorporando e setian| Briggs – Los
estava usando o slapstick para gracejar com es- performando sua identidade binacional. Angeles and Metro
tereótipos holandeses. Enquanto o filme Broken Fall (Geometric) indi- Pictures – New York.

Em diversos outros trabalhos, da mesma épo- ca uma aquiescência conceitual ao De Stijll, seu
ca, as alusões estereotipadas à Holanda apare- On the Road to a New Neo Plasticism, Westkappel
cem e abarcam novamente o uso do California Holland de 1971 pode ser visto como uma citação
slapstick; conquanto, o assunto transmude de formal do movimento De Stijll. Nessa série de qua-
bicicletas e canais para um tropo da arte ho- tro fotografias Ader fisicamente se constrói dentro
landesa: De Stijl. Um exemplo claro é Broken Fall de uma composição abstrata do De Stijll; para isto,
(Geometric), Westkapelle, Holland (1971). O filme se transforma em linhas pretas verticais e horizon-
mostra Ader em uma estrada de paralelepípe- tais sequencialmente adicionando objetos de co-
dos que leva a um farol e, no trajeto, tombando res primárias para formar uma versão de uma pin-
em um cavalete devido uma extrema ventania. tura de Piet Mondrian. Talvez possamos ler On the
Nesse contexto, a astuta alusão é ao artista ho- Road to a New Neo Plasticism, Westkappel Holland
landês por excelência Piet Mondrian. Mondrian como uma interpretação contemporânea de ta-
fez parte do movimento De Stijl no período de bleau vivant. Uma posterior exploração das cores
1917 a 1925, interrompendo sua participação no primárias referenciando a arte holandesa é o ví-
grupo em razão de sua desavença sobre o uso deo Primary Time (1974) no qual Ader gradualmen-
formal de diagonais. Ademais, Mondrian pintou te rearranja um vaso de flores até o agrupamento
esse farol diversas vezes, realizando experimen- mudar de inteiramente vermelho para amarelo
tações com a redução de cores, que o levou e finalmente para azul.15 Novamente, Ader está
eventualmente a sua paleta de cores primárias. combinando um tropo holandês – neste caso, flo-
Em uma entrevista no ano de 1971, Ader afirmou
15 Primary Time é um vídeo de 1974 e foi feito simultane-
que a terra e a torre de água eram os elementos
amente ao Untlited (Flower work), a série fotográfica do
horizontais e verticais presentes nas pinturas mesmo ano.

211
farol

Figura 3 Bas Jan


Ader, Broken Fall
(Geometric), West-
kapelle, Holland,
video, 1’49’’, 1971. ©
The Estate of Bas Jan
Ader / Mary Sue Ader
Andersen, 2016 / The
Artist Rights Society
(ARS)-New York,
Courtesy Melikse-
tian|Briggs – Los
Angeles and Metro
Pictures – New York.

212
Figura 4 Bas Jan
Ader , On The Road
to a New Neo Plas-
ticism, Westkapelle,
Holland, 1971, four
c-type prints, each
30 x 30 cm. © The
Estate of Bas Jan
Ader / Mary Sue Ader
Andersen, 2016 / The
Artist Rights Society
(ARS)-New York,
Courtesy Melikse-
tian|Briggs – Los
Angeles and Metro
Pictures – New York.

res- com uma sensibilidade humorística árida. mostram em close uma imagem recortada de
Nem todos os trabalhos de Ader são diver- Ader derramando lágrimas por nenhum moti-
tidos como os filmes Fall, mas o humor de sua vo aparente. Ader descreveu a versão gravada
arte foi em muito subestimado. I’m Too Sad to como um de seus filmes da série Falls, ainda que
Tell You foi o título de três trabalhos separados sejam as lágrimas que obedeçam a lei da gra-
com o mesmo tema e imagética; o primeiro, uma vidade ao invés do corpo do artista (Van Garrel
fotografia de 1970; o segundo, um cartão postal 1972: 48). Em 1972 Ader explicou que o trabalho
enviado aos amigos e aos que conheceu pos- foi sua reação à cultura “he-man” da Califórnia
teriormente no mesmo ano; o último, um filme (ibid.: 49). Poderia esse ser um choque de cultu-
de três minutos gravado no ano 1971. Tematica- ra de um holandês fora do país? Talvez I’m Too
mente, I’m Too Sad to Tell You é discutivelmente Sad to Tell You tenha mais humor que aparenta
seu trabalho menos engraçado. Todas as peças em um primeiro olhar. A sátira aqui pode ser en-

213
farol

Figura 5 Bas Jan Ader, I’m Too Sad to Tell You, video 16mm, 3’21’’, 1971. © The Estate of Bas Jan Ader / Mary Sue Ader Ander-
sen, 2017 / The Artists Rights Society (ARS), New York. Courtesy of Meliksetian | Briggs, Los Angeles.

214
contrada na inversão do extremo da masculini- uma exposição no Museu Groninger, com a in- Figura 6 Bas Jan
Ader, In Search of
dade que Ader encontrou na Califórnia. tenção de incluir fotografias de um passeio no-
the Miraculous (One
Certamente sua morte prematura, que ocor- turno em Amsterdam para espelhar as imagens Night in Los Angeles),
reu quando ele estava completando In Search de Los Angeles. Algumas semanas após Ader 1973. © The Estate of
of the Miraculous, ofuscou seus trabalhos ante- deixar Cap Cod, o seu contato de rádio foi per- Bas Jan Ader / Mary
Sue Ader Andersen,
riores e estudiosos falharam em levar o humor dido; os destroços de seu barco foram encon- 2017 / The Artists
de Ader a sério. In Search of the Miraculous dá trados na costa da Irlanda quatro meses depois Rights Society (ARS),
nome a uma série de 18 fotografias de 1973, que (Roberts 1994: 32-35). Críticos focaram na morte New York. Courtesy
of Meliksetian | Brig-
documentam uma caminhada noturna desde de Ader levantando a sugestão de um possível
gs, Los Angeles.
a autoestrada até o mar em Los Angeles.16 Ao suicídio (Verwoert 2006: 47). Em seu livro sobre
longo da parte inferior das fotos, Ader escreveu In Search of the Miraculous, Jan Verwoet escre-
a letra da canção “Searchin” dos Coasters’, de veu: “No final, através de seu desaparecimento
1957. A versão de 1975 de In Search foi composta e morte, Ader acabou por incorporar o papel do
em três partes, começando com uma exibição trágico herói romântico de uma maneira inespe-
na Claire Copley Gallery em Los Angeles. Na noi- rada e irrevogável. O trabalho é sobre a ideia do
te de abertura, seus alunos da Universidade da trágico e é em si uma tragédia” (2006:8) - a obra
Califórnia, Irvine, cantaram uma série de tropéis de arte tornou-se sua morte e deixou de ser uma
que foram gravados e posteriormente tocados obra de arte. Em vez disso, proponho distinguir
durante toda a exibição. Ader deveria continuar In Search of the Miraculous como sendo uma
a jornada com uma viagem através do Oceano continuação de sua prática artística: em seu uso
Atlântico, sozinho em um veleiro de aproxi- de humor seco, que é evidente nas fotografias
madamente quatro metros17 - um feito que, se de passeios noturnos; nas questões do humor
tivesse sido bem sucedido teria quebrado um transnacional satírico em todo o plano de três
recorde mundial. O elemento conclusivo seria partes; e no artista realizando pessoalmente a
obra, colocando-se como um marinheiro na tra-
16 Existe também um série composta por 14 fotografias.
dição náutica holandesa.
17 A medida original em inglês é twelve and a half foot. (Nota
da Tradutora) Conclusão

215
farol

Posicionei Ader dentro de uma moldura con- schuilt in een pure val.” Haagse Post. January 5.
ceitual do pós-guerra da arte conceitual humo- Huizinga, Johan.1971. Homo Ludens: A Study
rística que prevaleceu na Holanda e Califórnia, of the Play-Element in Culture. Boston: Beacon
locais em que ele viveu e estudou. Usando teo- Press.
rias do humor e da identidade, demonstrei como International Federation of Film Ar-
suas piadas estavam intrinsecamente ligadas à chives.1998. The Slapstick Symposium: May 2 and
contextos sociais em ambos os lados do Atlân- 3, 1985, the Museum of Modern Art, New York, 41st
tico e argumentei que a identidade imprecisa FIAF congress ed. By Eileen Bowser. Brussels.
do artista como vista em seu senso de humor Belgium: Federation International des Archives
é, de fato, um aspecto central de sua obra. Para du Film.
ler o humor satírico na obra de Ader, que ressoa Jan Ader, Bas.1961. “Nederlander Exposeert
devido a incongruência na qual se enraíza seus in Whashington” Het Vaderland, April 24.
site specific, os estudos sobre este artista devem Morreal, John.2009. Comic Relief: A Com-
olhar para a identidade binacional de Ader. Seu prehensive Philosophy of Humor. 1st ed. Chich-
trabalho final, In Search of the Miraculous, é uma ester Uk and Malden, MA: Wiley-Blackwell
continuação de sua prática artística: perdido no DOI:10.1002/9781444307795.
mar entre os Estados Unidos e a Holanda, ele Nahuizen, Bob.1961. “Amerika bracht basajan
fisicamente reivindicou a posição desempenha- (19) uit Groningen onverwacht success” Het Vrije
da na criação de sua arte. Volk, july 26.
Otterspeer, Willem.2011. Reading Huizinga.
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Van Garrel, Betty.1972. “Bas Jan Ader’s tragiek

216
217
farol

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tica, crítica e historiográfica destinada às Comitê Editorial. Sendo as avaliações feitos
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além das dimensões consensuais globaliza- vo.
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ticas e artigos. Como parte de sua política Área 2: Arte e Cultura
editorial, são apresentadas traduções de Linha 1: Interartes e Novas Mídias
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tuguesa e que, por sua vez, possam ter sido
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