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CONSELHO CIENTÍFICO COMISSÃO ORGANIZADORA


Aissa Afonso Guimaraes Prof.ª Dr.ª Angela Maria Grando Bezerra
Alexandre Emerick Neves Prof. Dr. Aparecido José Cirillo
Almerinda da Silva Lopes Prof. Dr. Ricardo da Costa
Angela Maria Grando Bezerra Rodrigo Hipólito dos Santos
Aparecido Jose Cirilo Fabiana Pedroni Favoreto
David Ruiz Torres Jessica da Silva Gasparini
Erly Milton Vieira Junior Katler Dettmann Wandekoken
Fabio Luiz Malini De Lima Natalie Supeleto Gomes
Gaspar Leal Paz Tatiana Campagnaro Martins
Gisele Barbosa Ribeiro Sandro de Souza Novaes
Ricardo Luiz Silveira da Costa Dimitrio Joviano Pinel
Ricardo Mauricio Gonzaga Bruna Wandekoken
Radael Rezende Rodrigues Junior
Elton Ribeiro Pinheiro
Maria Angélica Pedroni
Andreia Falqueto Lemos
Marcela Belo
Felipe Mattar
Fabiane Vasconcelos Salume Zimerer
Daniellen Welsing Nogueira
3

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


Grando, Angela et al (Org).
V Colóquio de Artes e Pesquisa dos Alunos do Programa de Pós-graduação em Artes –
O Trágico e o Dramático/Organização: Ângela Maria Grando Bezerra et al. – Vitória:
UFES, 2015. 1 V, 410p.

ISSN 2316-963X

1. Arte – Colóquio. 2. Programa de Pós-graduação em Artes – UFES


CDD - 730
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SUMÁRIO
Filmes roubados: estratégia e contribuição do found footage para a arte. 7
Sabrina Littig (PPGA-UFES)

Pré-continuidade e pós-continuidade: o espetáculo do cinema na 15


modernidade e na pós-modernidade.
Radael Rodrigues Junior (PPGA-UFES)

Estética Punk no Cinema. 27


Raphael Genuíno de Araújo (PPGA-UFES)

As descontinuidades do Pólo Cinematográfico de Paulínia (SP): um drama 40


recorrente na produção de cinema brasileiro.
Cleber Fernando Gomes (PPGHA-UNIFESP)

Palco ilusório de um delirante teatro mágico: espaço imaginário de 55


autorreflexão.
Ubiratan Machado Pinto (PPGCL-UFRJ)

Espacio y Espectáculo: El encuentro con Romeu e Julieta (Grupo Galpão). 66


Marina Simone Dias (PPGAU-UFES)

Orfeu da Conceição: tragédia ou melodrama? A dramaturgia rapsoda de 81


Vinícius de Moraes.
Glauco Cunha Cazé (PPGL-UFPE)

Nietzsche e o espírito trágico. 97


Lucyane de Moraes (PPGF-UFMG)

Sobre o “trágico” na previsão da própria morte de Ismael Nery. 110


Rosana de Morais (PPGA-UNESP)

Efemeridade e fabulação em penélope de Tatiana Blass. 122


Petruska Toniato Valladares (PPGA-UFES)
5
L.H.O.O.Q. e o valor estético: Como a obra de Duchamp criou um novo 137
conceito de readymade.
Pólen Pereira Sartório (PPGA-UFES)

A rainha do Frango Assado - o Kitsch na instalação de Alex Vallaur. 146


Katler Dettmann Wandekoken (PPGA-UFES)

Impresión de estados alterados. 160


Monica Elisa Contreras, Dario Ivan Ramirez (PPGA-UFES)

Entre Crescer e Cair - Processos iniciais. 173


Rodrigo Hipólito, Fabiana Pedroni, Maria Angélica Pedroni (PPGA-
UFES/CAR-UFES/PPGHIS-USP)

Formas Flutuantes. 180


Wanessa Cordeiro (PPGA-UFES)

A linguagem corporal como narrativa em Blow Job (1964). 184


Samir Torres Scardini (PPGA-UFES)

A mulher gorda na arte: Transgressões e possibilidade. 195


Júlia Almeida de Mello (PPGA-UFES)

O encontro entre Édipo e a esfinge em pinturas. 206


Antônio Leandro Barros (PPGH-UNICAMP)

A tragédia da Abstração Informal e o drama da Pintura nos anos 1980. 221


Claudia Botelho (PPGA-UFES)

“Instalação’ e/ou ‘instalação’”: A obra de Regina Rodrigues e sua relação 230


com o espaço na arte contemporânea.
Tatiana Campagnaro Martins (PPGA-UFES)

A arte como possibilidade de um novo habitar. 246


Vinicius Gonzalez (PPGA-UFES)

O tempo histórico como tempo contemporâneo: ponderações sobre a 256


história da arte.
Tainah Moreira Neves (PPGA-UFES)

Clara Sampaio Cunha (PPGA-UFES), Curadoria como prática artística: a


experiência da exposição Formas de voltar para casa.
6

Curadoria como prática artística: a experiência da exposição Formas de 266


voltar para casa.
Clara Sampaio Cunha (PPGA-UFES)

A web participativa não dialógica nos espaços da arte contemporânea no 276


Brasil.
David Ruiz Torres (PGHA-UGR)

O filósofo, o palhaço e o fim Artigo dramático. 290


José Ailton Arnaud, Wladelene Lima (PPGA-UFPA)

Paradoxos entre arte e política nos Provos: a reinvenção da estética no


305
cotidiano holandês.
Flavio Lima (PPGD-UFPE)

Aproximações entre livro-poema e site-specific. 314


Priscilla Guimarães Martins (PPGA-UFES)

Tragédia na arte: uma proposta de arte postal. 329


Adriana Tiago Lopes (PPGA-UFES)

Litografia com nanquim: novas possibilidades sobre a pedra calcária


340
litográfica.
Thiago Arruda (PPGA-UFES)

Tomie Ohtake: simplesmente pintura. 351


Ricardo José de Campos (PPGA-UFES)

Sintonia Concretista em O Vampiro da Cinemateca, de Jairo Ferreira. 365


Jonathan Estevam Marinho (PPGIS-UFSCar)

A realidade fotográfica ou a fotografia do real? 375


Sandro de Souza Novaes (PPGA-UFES)

As fotografias de Moyra Davey como objeto teórico e ato de reinvenção


388
do meio.
Marianna Pedrini Bernabé (PPGA-UFES)

Nossa paisagem sonora: Sons de todos os lados. 400


Hendy Anna Oliveira (DTAM-UFES)
7

Filmes roubados: estratégia e contribuição do found footage para a arte.


Sabrina Littig (PPGA-UFES)

Resumo: Este artigo discute algumas questões relativas aos filmes experimentais produzidos
a partir da apropriação de fragmentos de outros filmes. Utilizaremos como primeiro exemplo
A Sociedade do Espetáculo produzido em 1973 pelo escritor francês Guy Debord e baseado
no seu livro homônimo, lançado em 1967. Analisaremos também o filme Rose Hobart de
1936 do artista americano Joseph Cornell que se configura como uma contribuição
fundamental para a produção de filmes experimentais, e um dos primeiros realizados sem a
necessidade de uma câmera.

Palavras-chave: filmes experimentais, apropriação, détournement.

Abstract: This article discusses some issues relating to experimental films produced from
appropriating snippets of other films. First example we will use as The Society of the
Spectacle a film produced in 1973 by the Situationist and writer Guy Debord and based on
his book with the eponymous title released in 1967. We will also analyze the film "Rose
Hobart" 1936, made Joseph Cornell, another key contribution to the production of
experimental films, and one of the first made without a camera.

Keywords: experimental films, appropriation, détournement.

Em um texto1 de Guy Debord escrito em 1999 ele fala dos seus “filmes roubados”. Debord
refere-se a uma prática hoje bastante comum no meio áudio visual que é a apropriação de
trechos de vários tipos de mídias, músicas e filmes para compor trabalhos distintos. Esta
prática constitui-se através da busca a repositórios de novas metáforas para o resto da cultura
de hoje. Manovich2 identifica diferenças específicas entre as modernas práticas de
apropriação de imagem e o que ele chama de “mixagem” ou “remix”. Estas estratégias de
produção prevêem a utilização de partes de fontes audiovisuais na elaboração de outros
contextos.
Para Manovich as manifestações de apropriação retroagem até antes da década de 1980 e
nunca deixaram o seu contexto artístico original onde eram aplicadas por artistas pós-
modernos, exemplificadas nos trabalhos com base na refotografia de imagens fotográficas,
como em After Walker Evans de Sherrie Levine3.

1 DEBORD, Guy. “The use of Stolen Films”. In EVANS, Davis (Org.). Appropriation. London: Whitechapel Gallery, 2009.
p. 66.
2 MANOVICH, Lev. “Quem é o autor. Sampleamento/ mixagem / código aberto”. In: BRASIL, André et al (org).Cultura em

Fluxo: Novas mediações em rede. Belo Horizonte: Editora PUC-MG, 2004. Disponível em:
http://manovich.net/DOCS/models_of_authorship.doc. Acessado 12/12/2013.
3 Disponível em: http://www.aftersherrielevine.com/. Acesso em: 15/12/2013.
8

Levine em seu trabalho emblemático empreende uma crítica fotográfica à originalidade. Em


1979 se apropria das fotografias documentais que Walker Evans fez de uma família de
meeiros pobres do estado americano do Alabama, produzidas no ano de 1936.
Refotografando-as provocou outro trabalho cujo fundamento principal está no questionável
sistema de autoria e criação. Esta série e outras em que a artista executa projetos se
apropriando de trabalhos de Edward Weston, Andreas Feininger e Eliot Porter, são
características da atividade apropriativa pós modernista. Segundo Owens suas imagens
sentimentais roubadas, invariavelmente emblemáticas e alegóricas, não são focadas nestes
indivíduos em si, mas na sua representação cultural traduzindo-se em uma impessoalidade da
imagem4. O artifício da cópia na arte da apropriação, para Hal Foster, utiliza a
reprodutibilidade fotográfica com fito ao questionamento da “unicidade pictórica”, como nas
obras de Levine5. O conceito de apropriação como um ato de deslocamento motivado e
aquisição de sentido, passou a ser visto como fundamental para iluminar alguns dos processos
por trás da evolução do significado cultural e político da arte. Neste contexto, é uma
linguagem diversificada e abrangente que se insinua na arte engajada em um tomar
indevidamente com propósitos de reificação alegórico, de maneira tal, que a cultura
dominante passa a operar por meio da apropriação para estimular a produção de seus mitos
contemporâneos6. É um processo cognitivo poderoso que se engendra pelos diversos agentes
da cultura e do mercado e produz um público consumidor até certo ponto alienado, incapaz de
ver nestes “produtos” um sistema semiológico previamente estruturado.
Noutra perspectiva a cópia desse material gera um problema de autoria em áreas
culturais diversas, onde é vista como uma violação dos direitos de autor. Na prática, cineastas,
artistas plásticos, fotógrafos, arquitetos e designers da web rotineiramente “apropriam-se” de
obras já existentes, promovendo uma espécie de plágio residual, e não existem termos
próprios equivalentes aceitos como a mixagem da música para descrever estas práticas.
Manovich acredita que a maior aceitação do termo remixar é por ele sugerir um retrabalho
sistemático em cima de fontes pré-existentes gerando algo novo enquanto significado, o que a
apropriação não faz, já que a lógica apropriacionista é justamente questionar a autoria e deixar
claro de qual fonte este material foi apropriado. É fundamental que se deixe conhecer esta
origem. Apesar da proximidade prática entre os dois termos a diferença objetiva entre remix e
apropriação está no contexto de seu uso e significação.

4 OWENS, Craig. “Sherrie Levine at A&M artworks”. In: Beyond recognition: representation, Power, and culture. EUA:
University of California Press, 1992. p. 114-116.
5 FOSTER, Hal. O retorno do real: a vanguarda do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 140.
6 BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. p.222-223.
9

Bernini diz que a condição pós-autoral da apropriação de trechos de filmes, pode interferir na
leitura das imagens. Ao trabalhar com imagens feitas por outros, pressupõe-se a ideia
moderna de autor como criador daquilo que vemos, impondo sua marca, sua vontade ou seu
gesto, em imagens produzidas industrialmente. Por isso se pensa no found footage como
cinema de apropriação, conceito que responde a um procedimento inscrito em toda a imagem
cinematográfica pelo estatuto de reprodutibilidade técnica. Para Bernini, em todo o found
footage existe uma espécie de crítica e rebelião iconoclasta7. As imagens de consumo são
perseguidas, por seu caráter ambíguo, entre o denunciar e o distrair as massas.
Guy Debord fez seis filmes experimentais entre 1952 e 1978, inteiramente utilizando os
recursos de found footage apropriando-se de trechos de outros filmes. La Société du
Spectacle8 de 1973 é um filme que rechaça em sua configuração a produção de imagens
novas, admitindo através da manipulação das imagens um domínio da produção da alienação
humana. Sua finalidade mais urgente é demonstrar que toda a sociedade do espetáculo é
manipulável assim como suas imagens. Com um narrador que anuncia as teses do seu livro,
Debord consegue exemplificar os sentidos e assinalar os modos em que se situa a perspectiva
do observador, neutralizando o poder coisificante das imagens espetaculares, pois também
promove uma ruptura de toda possibilidade de unir de maneira lógica os planos. É um
exemplo da utilização da sua teoria do détournement.

Figura 01: Guy Debord - Cenas de A Sociedade do Espetáculo. 1973.


Disponível em: http://www.ubu.com/film/debord_spectacle.html. Acesso em 15/12/2013

Geralmente traduzido como “desvio” à teoria do detournement foi desenvolvida por Debord e
Gil J. Wolman, e explicada em publicação de 1965 chamada Directions for the use of

7 BERNINI,Emilio. “Found Footage: lo experimental y lo documental”. In: TRETOROLA, Diego.(org.) Cine encontrado.
Qué es y adónde va el found footage?. Buenos Aires: Editora Adriana Hildalgo, 2009. P.30-31
8 A Sociedade do Espetáculo. Filme disponível em: http://www.ubu.com/film/debord_spectacle.html. Acesso em 15/12/2013.
10

Détournement. O desvio é na verdade uma forma de apropriação, onde ocorre uma variação
em um trabalho já conhecido que produz um significado antagônico ao original.
O filme A Sociedade do Espetáculo baseado no livro de Debord de 1967 com o mesmo título
foi seu primeiro longa-metragem com 88 minutos de duração e cenas incorporadas de filmes
épicos, noticiários, anúncios, fotografias e filmes industriais. As sequências eram pontuadas
por legendas em abundancia, além da narração dele próprio recitando textos do livro e de
outros pensadores como Maquiavel, Sorbonne e Karl Marx, em uma narrativa problemática,
indecifrável, misturada às legendas e às próprias falas dos personagens dos filmes. Debord usa
o found footage na lógica da teoria do détournement numa crítica radical do marketing de
massa e seu papel na alienação da sociedade moderna, posição ideológica que ele assume e
mantêm junto ao movimento situacionista que defendeu e que se revelou na severa crítica
social, cultural e política, reunindo poetas, arquitetos, cineastas, artistas plásticos e outros
profissionais9.
Ele afirma que sua intenção não era utilizar os filmes de ficção como ilustração crítica de uma
arte da sociedade do espetáculo, mas que seus filmes roubados, pelo contrário, possuem uma
independência a despeito dos significados originais. São apropriados para serem
ressignificados, para representar a retificação da "inversão artística da vida". O espetáculo foi
deportado da vida real para a tela, numa tentativa de expropriar os expropriadores. Cada
trecho de filme evoca alguma reação, sensação ou ação, que não se relaciona com o enredo
original. O western Johnny Guitar evoca memórias reais de amor. Shanghai Gesture remete a
outros ambientes de aventura em atmosfera noir. Por Quem os Sinos Dobram simboliza a
revolução derrotada. Embora obras de ficção, Debord trata os trechos destes filmes como se
retirados da “vida real”, daí as relações com o gênero found footage, que no cinema
contemporâneo ganhou uma atitude de documentário realista ficcional com uma filmadora
doméstica.10
Debord elabora as duas leis fundamentais da prática do détournement: a perda de importância
de cada elemento detourned (desviado ou “detunado”, numa tradução literal), que pode ir tão
longe a ponto de perder completamente seu sentido original, e, ao mesmo tempo, “a
reorganização em outro conjunto de significados” que confere a cada elemento um novo
alcance e efeito. No guia para o détournement são apresentados dois tipos principais:
“os menores”, onde é feito um desvio de um elemento que não tem importância própria, e
9 Enciclopédia Itaú Cultural. Situacionismo. Disponível em:
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3654
10 Found Footage, ou filmes perdidos no Brasil, gênero de filmes surgido nos anos 1980, e que simula ser gravado como um

documentário, com uma filmadora doméstica. Foi popularizado pelo filme The Blair Witch Project (A Bruxa de Blair), filme
estadunidense de1999.
11

que, portanto, toma todo seu significado do novo contexto onde foi colocado; e os
“enganadores”, onde é feito o desvio de um elemento intrinsecamente significativo o qual
toma uma dimensão diferente a partir do novo contexto. O détournement então pode, com a
devida licença, ser traduzido como “desvio”, “apropriação” ou “citação”. Frases, recortes de
jornais, romances inteiros, fotografias sobre qualquer assunto e filmes, praticamente tudo
pode ser desviado, distorcido e ressignificado. Guy Debord em “Directions for the Use of
Détournement11 diz que um dos usos mais eficazes do desvio, é o cinema, que gera uma
ampla possibilidade de ressignificação.
Ao serem apropriadas, películas de qualidade discutível podem representar um potencial no
domínio secundário, que transcendem sua intenção inicial. Na fala de Debord, a maioria dos
filmes “merece” ser cortados para compor outros trabalhos. A reconversão de sequências pré-
existentes, adicionadas à outra trilha sonora, acompanhadas de trechos sem sentido, elementos
musicais ou pictóricos, assumem o caráter de uma experiência nova. Como afirma Debord
“Such dètournement – a very moderate one – is in the final analysis nothing more than the
moral equivalence of the restoration of old paintings in museums (...)” 12. Ele ilustra esta ideia
sugerindo que o filme “Nascimento de uma Nação” 13
de 1915 e dirigido por D. W. Griffith,
considerado um dos filmes mais importantes da história do cinema porém marginalizado
devido a sua forte carga racista, mereceria um tratamento através do desvio, onde poderia
ganhar um enredo diferente. Sugere-o que sequer seria preciso alterar a montagem,
adicionando uma trilha sonora que possibilitasse a denúncia aos horrores da guerra
imperialista ou as atividades atrozes da Ku klux klan.
Não é condicionante que este tipo de filme se configure por denunciar ou provocar um mal
estar cultural. Joseph Cornell se destaca como um dos primeiros a pensar uma forma de
aproveitamento e transformação de filmes perdidos. Este artista americano da assemblage
ficou conhecido quando apresentou intrigantes colagens a um galerista de Nova York,
chamado Julien Levy, ainda nos anos 1930. Trabalhando na vertente surrealista dessa época,
produziu apropriações e assemblagens envolvendo objetos resgatados de lojas e antiquários,
utilizados na montagem de conjuntos com pequenos objetos e afins dispostos em
caixas. Conforme diz Deborah Solomon14, essas pequenas coleções quase surreais de objetos
díspares justapostos possuem uma poesia silenciosa sobre eles. Embora nem todos os críticos

11 DEBORD, Guy. “Directions for the use of Détournement/1956”. In: EVANS, David (Org.). Appropriation. London:
Whitechapel Gallery, 2009: p.35.
12“Tal detournement – de uma forma muito moderada – é em ultima análise nada mais do que o equivalente moral da

restauração de pinturas antigas em museus. (...)” DEBORD, Guy. Idem. . p.37.


13The Birth of a Nation, filme mudo estadunidense feito em 1915.
14 SOLOMON, Deborah. Utopia Parkway. The Life and work of Joseph Cornell. Londres: Pimlico, 1997
12

descrevam seu trabalho como surrealista, ele estava familiarizado com vários artistas do
movimento, como Marx Ernst, Marcel Duchamp, Francis Picabia e Salvador Dali,
participando de exposições com eles. Em 1936 produziu um curta-metragem intitulado Rose
Hobart, sua primeira colagem fílmica. Michael Pigot15 diz que frequentemente este filme é
considerado o primeiro com técnica found footage, enganosamente, dando como exemplo
trabalho pregresso da cineasta Russa Ester Shub (ou Esfir Shub16), que inaugura a montagem ou
colagem recuperando frames de filmes históricos.
Mesmo assim Rose Hobart foi um marco no cinema experimental, totalmente feito sem uma
câmera. Era essencialmente uma versão drasticamente reeditada de um filme chamado East
of Borneo produzido em 1931 com 77 minutos de duração, dirigido por George Melford, e
estrelado por Rose Hobart uma atriz de teatro, cinema e televisão estadunidense que começou
a fazer filmes em 1930. Cornell é conhecido pela admiração quase idólatra às estrelas de
cinema, dançarinas e damas vitorianas, o que inspirava seus trabalhos de assemblagem e
colagem. Estas mulheres idealizadas eram suas personagens de sonho e constantemente
enaltecidas. Rose Hobart tinha as características apreciadas pelo artista, para merecer um
local de destaque no universo de suas composições.
Cornell combinou dois elementos díspares para criar algo novo, incomum, em seus filmes, um
processo não muito diferente daquele usado em suas caixas. Para conseguir isso, ele foi a um
armazém onde poderia comprar filmes que foram danificados ou vendidos por peso para a
sucata e adquiriu uma cópia do filme East of Borneo, e editou o filme até 20 minutos de cenas
selecionadas, a maioria deles com Hobart. Comprou um registro de samba barato e substituiu
a trilha sonora original por "Holiday in Brazil", com auxílio de um gramofone, criando uma
mistura quase surreal da música sul-americana com as configurações fílmicas de Hollywood.
Certamente ele sabia das discordâncias deste procedimento de apropriação de elementos
sincréticos.
No filme original, conforme diz Ingrid Schaffner17 a heroína, interpretada por Rose Hobart,
sai em uma missão para resgatar seu marido na Indonésia, que está preso no palácio do
príncipe Marudu. O príncipe exótico se apaixona por Rose, que o mantém à distância,
juntamente com um elenco de leões, cobras, macacos e crocodilos, até que um vulcão entra
em erupção no topo do palácio, o que lhe permite escapar com o marido. A versão destilada
de Cornell mostra a heroína respondendo às criaturas listadas em uma atmosfera carregada

15 PIGOTT, Michael. Found Footage. In.: Joseph Cornell Versus Cinema. Bloomsburry Academic. A&C Black. 2013. P.9-
15.
16 Biografia disponível em: http://www.imdb.com/name/nm0795528/, acessada em 15/12/2013.
17 SCHAFFNER, Ingrid. The Essential: Joseph Cornell. New York: The Wonderland Press. 2003. p.64-65
13

com conotações eróticas, perceptível em alguns detalhes das cenas escolhidas, como no
silêncio das locações, no peito arfante, olhares sedutores e sobrancelhas franzidas.

Figura 02: Joseph Cornell - Cena de Rose Hobart. 1936.

Cornell exibiu o filme através de um filtro colorido, projetando-o com uma luz azul, (Imagens
2) e diminuiu a velocidade do projetor. Sem o enredo reconhecidamente bobo do filme
original, não se sabe realmente se as aparições de Rose são tão exageradas como a versão
editada por Cornell. Este filme reflete algumas características do simbolismo implícitas nas
obras do artista. Cornell trata estes filmes como suas assemblagens e colagens, enfatizando o
sonho/ imaginário sobre narrativa/script.Típica da obra de Cornell, o filme é sobre abstrair e
prolongar um estado emocional intenso e inexplicável. Seu uso de filmes encontrados desafia
a autoria, assim como Debord o fez anos depois, em A Sociedade do Espetáculo, que inspirou
uma geração de filmes e cineastas, incluindo Stan Brakhage, Rudy Burkhardt, Ken Jacobs,
Larry Jordan, Jonas Mekas, e Jack Smith.
Leandro Listorti e Diego Trerotola articulam a ideia de que os filmes realizados através do
found footage se apresentam como uma revolução na representação tecnológica se baseando
nas experiências audiovisuais em toda a história. Há uma adoção de uma falsa teoria em torno
da autoria e da exclusividade que estes filmes comprometem com a profanação de sua
integridade aurática e que pode explicar sua marginalização. Desde o começo dos anos
noventa que os artistas interpretam, reproduzem e expõem trabalhos realizados por outros
estimulados por estratégias de reapropriação dos bens culturais de todas as gerações. É
perceptível que nos tempos atuais as estratégias apropriativas da videoarte popularizam este
14

gênero, estimulada pelos avanços na tecnologia da imagem. Para Bourrioud podemos dizer
que tais artistas que inserem em seus próprios trabalhos o de outros, não estão prejudicando a
sacralizada ideia de autoria e exclusividade, mas contribuem para abolir a distinção
tradicional entre produção e consumo, criação e copia18.

18BOURRIOUD, Nicolas. Pós Produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes,
2009. p 7-8.
15

Pré-continuidade e pós-continuidade: o espetáculo do cinema na


modernidade e na pós-modernidade.
Radael Rodrigues Junior (PPGA-UFES)

O cinema nem sempre foi pautado em sua habilidade de contar uma história. Apesar da
predominância de filmes narrativos, houve momentos em que os filmes se preocupavam muito mais
em impactar seu público de forma direta, quase física, gerando reações como espanto, riso, medo, etc.
Pretende-se traçar aqui um paralelo entre dois momentos distintos na história, mas que apresentam em
comum esse caráter espetacular: O Cinema de Atrações do final do século XIX e início do século XX
e o cinema de pós-continuidade dos anos 2000. A intenção é mostrar características comuns aos dois
períodos, analisando a relação dessas produções cinematográficas e o ambiente em que elas surgiram.
Esses filmes teriam relação direta com cada cenário em que se desenvolveram, se inserindo e, ao
mesmo tempo, exibindo elementos próprios da modernidade e da contemporaneidade.
Palavras chave: pós-continuidade, Cinema de Atrações.

The cinema has not always been about its ability to tell a story. Despite the predominance of
narrative films, there were moments when they used to largely focus on making a direct and almost
physical impact on its public, thus triggering astonishment, laughter, fear, etc. The aim of this paper is
to draw a parallel between two distinct moments in history, but that also have in common this
spectacular character: the late 19th century and early 20th century Cinema of Attractions, as well as
the cinema of post-continuity of the 2000s. Our intention is to show the common characteristics of the
mentioned periods, analyzing the relationship of these cinematographic productions with the
environment in which they have arisen. These films would have a direct relationship with each
scenario in which they were developed, simultaneously showing particular elements of each one.
Key words: post-continuity, Cinema of Attractions.

O cinema Hollywoodiano tornou-se predominantemente uma forma de se contar histórias


audiovisuais por meio da continuidade de fatos, da relação de contiguidade lógica do espaço e tempo
em um filme. O amplo alcance de suas produções, por sua vez, fez com que esse caráter narrativo se
tornasse quase que um modelo fundamental de cinema. André Gaudreault (2009) reforça esse caráter
narrativo ao afirmar que o cinema fez com que o indivíduo do século XX se tornasse ávido
consumidor de suas narrativas projetadas nas incontáveis salas de exibição pelo mundo. Contudo nos
últimos 15 anos tem surgido uma nova forma de cinema hollywoodiano ou, ao menos, uma dissidência
daquele que é considerado modelo clássico de narrativa cinematográfica. Nesse novo modelo a
preocupação com a continuidade narrativa não é nem de longe o foco de suas produções. Diretores
como Michael Bay, Tony Scott, Paul Greengrass, Mark Neveldine e Brian Taylor têm investido em
filmes que parecem ter um interesse quase obsessivo pelo choque sensorial e pela excitação constante
do público. E esse encanto pelo espetáculo acontece muitas vezes em detrimento da sua própria
continuidade narrativa.
16

Por outro lado filmes pautados na habilidade de provocar reações por meio do espetáculo
sensorial não são de forma alguma exclusividade do modelo de pós-continuidade surgido nos anos
2000. O próprio cinema na verdade nasceu como espetáculo. Ao contrário dos filmes essencialmente
narrativos que viriam a ser dominantes posteriormente, as produções cinematográficas do final do
século XIX e início do século XX aproximavam-se muito mais do universo circense do que da
literatura. Seus espectadores esperavam ser surpreendidos e maravilhados com as imagens que se
moviam à sua frente, sem esperar necessariamente por uma sucessão de fatos coerentes, por algum
tipo de drama ou personagens aprofundados.
Pretende-se então atrelar o conceito de Cinema de Atrações de Tom Gunnning (2000) ao
conceito de Regime de Mostração (2009) de André Gaudreault, ambos referentes às primeiras
produções cinematográficas da história. A partir dessa relação será traçado um paralelo entre essas
produções e o conceito de pós-continuidade desenvolvido por Steven Shaviro (2012) em referência a
determinados filmes de ação das últimas duas décadas. Para melhor entender o termo serão analisados
também outros dois conceitos que se relacionam diretamente com a chamada pós-continuidade: o
conceito de continuidade expandida de David Bordwell (2002) e o conceito de Chaos Cinema de
Mathias Stork (2012).
O objetivo em relacionar os dois modelos de cinema citados como foco desse trabalho é
definir elementos comuns a ambos, especialmente no que tange seu caráter espetacular e não narrativo.
Dessa forma podem ser traçados paralelos entre dois períodos tão distantes historicamente, mas que
aparentam ter várias características em comum. Se filmes de diretores como Michael Bay, por
exemplo, são definidos como sendo de pós-continuidade, não seria passível de interpretação que
diretores como George Méliès1 seriam de uma possível pré-continuidade? Por fim propõe-se também
um novo ponto de vista quanto ao cinema high concept de pós-continuidade. Por meio da comparação
com o Cinema de Atrações pretende-se propor um deslocamento na percepção que se tem da pós-
continuidade, passando a encará-la sob a ótica do espetáculo sensorial. Assim, como nos filmes de
Méliès, o objetivo desse cinema não seria contar uma história, mas causar uma reação no público,
impactá-lo fisicamente, gerando espanto, riso, medo, aflição, etc.

2. O Regime de Mostração e o Cinema de Atrações

Talvez devido ao caráter não narrativo das primeiras produções cinematográficas, os filmes
produzidos no período entre o fim do século XIX e início do século XX foram por muito tempo quase

11
Para mais sobre George Méliès: COSTA, Flavia Cesarino. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação. Rio de
Janeiro: Azougue, 2005. Ou ainda: MASCARELLO, Fernando (Org.). História do cinema mundial. São Paulo: Papirus,
2006.
17

que totalmente desconsiderados pelos pesquisadores. Relegados ao quase esquecimento histórico,


essas produções eram percebidas como uma aparente tentativa desajeitada para se chegar a uma
linguagem fundamental (e narrativa) do que viria a ser realmente o cinema.

Esse cenário de quase esquecimento só começou a mudar décadas depois, já nos anos de 1970. Nessa
época uma nova geração de estudiosos se incumbiu da tarefa de reexaminar do início ao fim o período
de nascimento do cinema. Destacam-se aqui dois deles: Tom Gunning e André Gaudreault. Segundo
eles esse cinema desenvolveu sua própria linguagem essencialmente não narrativa, espetacular e com
forte caráter de atração sensacionalista, bem diversa do cinema narrativo posterior. Esse primeiro
cinema, portanto, não poderia ser então considerado “primitivo”, como se acreditava até então, mas
original e diverso do que se estabeleceu historicamente como predominante.

2.1 A modernidade e o Cinema de Atrações

Ao se referir aos filmes produzidos na virada do século XIX e princípio do século XX, Tom Gunning
cunhou o termo Cinema de Atrações. Tomou emprestado do cineasta Sergey Einsenstein a expressão
atração, utilizada pelo russo em uma tentativa de se criar um novo modelo de teatro da época. Além
disso a expressão “atração” era algo que já acompanhava a sociedade como um todo por mais de trinta
anos. Essas atrações se constituíam de momentos em que espectador era submetido a impactos
sensoriais e psicológicos intensos.

Esse pensamento de atração era então perfeitamente alinhado com o cenário conturbado em que se
constituía a modernidade. As cidades nesse período tornavam-se grandes centros urbanos, onde as
pessoas eram submetidas a uma quantidade de informação até então impensável e a uma velocidade
vertiginosa. Nesse sentido, Ben Singer afirma que a modernidade “foi concebida como um
bombardeio de estímulos” (SINGER, 2004). Era portanto um ambiente em que o indivíduo se via sob
constante hiperestímulo2 sensorial. Dessa forma o início do século XX trouxe consigo uma crise de
atenção do indivíduo, onde sua percepção estaria em constante estado de crise ou em constante
transformação. Essa crise tem relação direta com o fortalecimento das atrações sensoriais na virada do
século, especialmente atrações de cunho sensacionalista. Essas, por sua vez, não produziam somente o
sentimento de medo, mas uma moderna forma de entretenimento: a excitação, a emoção eletrizante.
Tudo isso era alinhado com a cultura massificada que surgia e se desenvolvia rapidamente na época.

Foi nesse cenário conturbado que o denominado Cinema de Atrações surgiu. Os filmes da época
geralmente não ultrapassavam 5 minutos de duração, correspondendo dessa forma à necessidade por

2Expressão utilizada por Bryan Singer. Para mais ver: SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do
sensacionalismo popular. In: CHARNEY, L.; SCHWARTZ, V.R. (Org.). O cinema e a invenção da vida moderna. 2. ed. São
Paulo: Cosac & Naify, 2004. p. 115-148.
18

estímulos sensoriais curtos e intensos. Eram produzidos a partir de um ponto de vista único, similar ao
teatro ou às vaudevilles da época. Essa unipontualidade3 acabava por gerar um ponto de vista
soberano: o ponto de vista do espectador. Esse assumia um papel participativo nos filmes, estimulado
diretamente pelo que assistia. Segundo Flávia Cesarino Costa (2006) o cinema apresentava uma
“estratégia apresentativa, de interpelação direta com o espectador, com o objetivo de surpreender”. As
atrações correspondiam então ao momento de “pico do espetáculo”, ou seja, os momentos agressivos
que o pontuam. O simples movimento simulado nos primeiros filmes dos Irmãos Lumière, por
exemplo, já compunham uma atração pelo próprio ineditismo da cena. Por outro lado, nos filmes de
Méliès, as atrações correspondiam aos truques que ele executava, as maravilhosas impossibilidades
que o diretor produzia por meio de seus incríveis efeitos especiais.

Os filmes do Cinema de Atrações desenvolveram portanto uma linguagem muito diferente do cinema
narrativo posterior. Esse tipo de cinema, segundo Tom Gunning, se mostrou como “um cinema que se
baseia na (...) sua habilidade de mostrar algo. Contrastando com o aspecto voyeurístico do cinema
narrativo(...) esse cinema é exibicionista.” (GUNNING, 2000). Além disso, diversas projeções
cinematográficas eram exibidas sem que houvesse necessariamente alguma ordem ou ligação entre
elas, reforçando ainda mais o seu caráter fragmentário e não narrativo. Esse tipo de cinema não
pertencia portanto a técnicas de representação de ilusão dramática. Ele pertencia verdadeiramente a
formas mais agressivas de performance artística (circos, music hall, etc.). Sendo assim, antes de
qualquer envolvimento pela narrativa ou empatia por algum personagem, o Cinema de Atrações
solicitava a atenção do público direta e agressivamente através da sua própria curiosidade. E esse
público não se perdia em momento algum em um universo ficcional e nem em alguma trama, mas se
mantinha consciente do ato de olhar pela curiosidade e excitação constante. O ato de mostrar
diretamente a ação permitia uma ênfase à excitação em si, o que acabava provocando uma imediata
reação dos espectadores.

2.2 A narrativa cinematográfica e o regime de mostração de André Gaudreault

Diferente da narrativa psicológica que surgiria alguns anos depois com o cinema narrativo, o Cinema
de Atrações não permitia o desenvolvimento elaborado de histórias; somente um limitado conjunto de
atrasos, de esperas e posterior concretização. O cinema consistia então de uma série de atrações, um
encadeamento de pequenos filmes onde todos ofereciam ao público um momento de revelação. A

3Jargão comum ao cinema. A unipontualidade, nesse caso, representava a preferência do primeiro cinema pelo ponto de vista
único. Para saber mais: JULLIER, Lurent; MARRIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Editora SENAC,
2009.
19

sucessão de excitações é potencialmente limitada somente pela exaustão do espectador. Era portanto
um cinema de instantes antes de um cinema de situações desenvolvidas.

É justamente em relação à narrativa (ou a falta dela) nos primeiros filmes da história que André
Gaudreault focou seu trabalho. Desenvolveu então o termo “regime de mostração”, referindo-se ao
modo como esses filmes se apresentavam ao público. Por conta desse estudo, acabou por questionar
toda a pretensa linguagem “naturalmente narrativa” dos filmes.

Em qualquer narrativa há a necessidade de um narrador para que ela possa acontecer. E isso inclui o
caso do cinema, apesar de nesse caso o narrador não ser tão evidente quanto em uma narrativa textual,
por exemplo. No caso do cinema, para que haja uma narrativa, Gaudreault afirma ser fundamental a
existência do que ele chama de narrador subliminar4, responsável por ordenar os fatos de forma lógica
e sequencial para o público. Esse agente seria responsável por direcionar o olhar do espectador e
funcionando como um filtro do olhar do espectador, permitindo que esse só entre em contato com o
que é relevante para a história. Esse narrador subliminar controla então, de certa forma, toda a relação
do público com a projeção cinematográfica.

Por outro lado o cinema também é uma arte interpretativa. Nele a ação é, além de narrada, mostrada ao
público. Pensando nisso Gaudreault propõe um outro tipo de agente: o mostrador. Esse seria
equivalente ao narrador subliminar, sendo como ele responsável por modular a história para que ela
seja apreendida pelo público. Contudo, nesse caso, o que é modulado são as diversas manifestações da
linguagem encenada. Se configuraria então uma situação de “mostração”, onde os personagens atuam
simplesmente, ao invés de dizer as vicissitudes a que estão sujeitas. Com isso o cinema conseguiu criar
um modo de narrativa completamente exclusivo, combinando mostração e narração através de
recursos próprios do universo cinematográfico. E essa possibilidade só acontece através de um recurso
próprio do meio: a edição cinematográfica. Isso se explica por duas razões: em primeiro lugar, essa
edição permitiu a manipulação espaço-temporal do filme, fator primordial para a narratividade. Outro
fator importante é a questão da temporalidade em relação ao cinema, romance e teatro. A montagem
de um filme acaba construindo um momento diegético5 diferente da captação da cena. E isso não está
somente ligado a uma falta de simultaneidade entre o olhar do espectador e a cena acontecendo (como
acontece no caso do teatro). Tem a ver, na verdade, com a não coincidência exata entre o que acontece

4 Gaudreault cunhou originalmente o termo Narrateur Fondamental, traduzida posteriormente para underlyng narrator por
Danielle Cadelon. Optou-se então pela livre tradução Narrador Subliminar por ser a expressão utilizada pelo próprio
Gaudreault na bibliografia pesquisada. Para mais: GAUDREAULT, André. From Plato to Lumière: narration and mostration
in literature and cinema. Toronto: University of Toronto Press, 2009.

5 Diegese diz respeito ao ambiente autônomo que se estabelece em uma obra de ficção. Segundo Costa (2005) “diegese é o
processo pelo qual o trabalho de narração constrói um enredo que deslancha de forma aparentemente automática, como se
fosse real, mas numa dimensão especo-temporal que não inclui o espectador” (COSTA, 2005. p. 32). Gaudreault, por sua
vez, encara o termo a partir das obras de Platão e Aristóteles, e desenvolve uma relação entre diegese (narração) e mimese
(representação). Segundo o autor mimese pode ser uma forma de diegese, sendo a diegese portando mimética, onde o
narrador toma a voz dos personagens e a narrativa acontece por encenação, ou não-mimética , onde há apenas a diegese
simples, narrativa sem imitação ou personificação. Há ainda uma terceira forma de diegese, que combina as duas formas
anteriores e chamada por Gaudreault, a partir de termos platônicos, de diêgêsis di’amphoteróm.
20

na tela, dentro de um determinado espaço-tempo fragmentado e remontado pela edição, e a percepção


de espaço-tempo do espectador. Conclui-se que o narrador subliminar encontra-se na composição do
próprio filme, na montagem de planos6 e na manipulação da sua estrutura espaço-temporal.

Contudo, já existia cinema mesmo antes de haver essa montagem. Cineastas como o próprio George
Méliès não tinham conhecimento dessa técnica e nem muito menos sentiam necessidade de utilizá-la.
Os filmes produzidos nessa época pertenciam a uma estética onde um único momento ainda era
dominante. As cenas eram únicas, independentes e autossuficientes. A história era dessa forma
simplesmente mostrada. Não haviam portanto intervalos, nem temporais, nem espaciais, muito menos
corte e montagem: toda a ação era realizada ao mesmo tempo e no mesmo espaço nessa época. Na
maior parte das vezes o operador de câmera apenas posicionava o aparelho de forma fixa, exatamente
de frente para toda a ação. E essa câmera, por sua vez, funcionava ininterruptamente, enquanto ela
acontecia. A cena era um palco autônomo, como em um teatro. Não há dúvida de que outras mídias
populares da época (shows de lanternas mágicas, vaudevilles, etc.) tiveram forte influência nisso. Não
faz sentido então falar de narrativa no cinema nessa época, pelo menos não da forma que veio a se
tornar o cinema narrativo posterior. A história não era “narrada”, era simplesmente mostrada ao
público.

3. O cinema de pós-continuidade

3.1 Os conceitos de high concept, continuidade intensificada e o Chaos Cinema.

O termo high concept refere-se, segundo Justin Wyatt (2006), a determinados filmes
produzidos principalmente a partir do final da década de 1970 pela indústria hollywoodiana.
Mascarelo (2006) cita três produções como sendo marco inicial desse cinema: Star Wars (LUCAS,
1977), Jaws (SPIELBERG, 1975) e Saturday Night Fever (BADHAN, 1977). Segundo Whatt, esses
três filmes high concept, somados a Grease (KLEISER, 1978), teriam tido muito mais relevância
histórica para o cinema do que outras produções consideradas low concept da época, tais como All
That Jazz (FOSSE, 1979), por exemplo.

6 Montagem e planos, expressões próprias do meio cinematográfico e que estão diretamente interligadas. Nesse sentido o
plano apresenta-se como unidade fílmica básica. É a parte do filme que existe entre dois cortes, correspondendo à
continuidade espaço-temporal da tomada. Esse plano funciona como núcleo do filme, representando um bloco de tempo e
espaço, necessariamente unitário, homogêneo e indivisível. Esse plano se constitui de um fechamento (o quadro) e de uma
exterioridade (o espaço off). Possui uma profundidade (o campo) estruturada por uma medida antropomórfica e institui um
ponto de vista. A montagem corresponde ao agenciamento dos planos pelo qual o filme inteiro é estruturado. No cinema
narrativo clássico é a montagem desses planos que produz a continuidade do filme. Para mais: DUBOIS, Philippe. Cinema,
vídeo, Godard. 2ed. São Paulo: CosacNaify, 2011. Ou ainda: BONITZER, Pascal. Que és un plano? In: El campo ciego:
ensayos sobre el realismo en el cine. Buenos Aires: Santiago Arcos Editor, 2007.
21

Wyatt destaca como algumas das características próprias desse cinema o forte apelo comercial
de seus filmes e produções altamente vendáveis, ambos evidenciados por meio de diversos aspectos,
tais como: ideias já pré-vendidas (filme Grease realizado a partir de uma peça musical homônima ou
filmes de personagens de quadrinhos de sucesso, por exemplo), uso frequente de estrelas conhecidas
pelo público, personagens arquetipados, narrativas muito simples e de fácil acesso, diversos “ganchos”
para ações de marketing, publicidade massificada, etc.

Contudo, apesar do imenso impacto na indústria cinematográfica norte-americana e mundial


proporcionado pelo surgimento do modelo de cinema high concept, muitos autores afirmam não ter
havido uma mudança significativa na forma de se contar uma história em seus filmes quando
comparado aos filmes da era clássica hollywoodiana. Dentre eles destaca-se aqui David Bordwell
(2002), que considera que os filmes produzidos nesse modelo não trouxeram nenhum tipo de inovação
significativa consigo, especialmente no que diz respeito às suas narrativas. Esse estilo manteria
essencialmente, segundo ele, as mesmas técnicas para se contar uma história já utilizadas no cinema
clássico norte americano. O cinema high concept torna-se então apenas uma questão de intensificação
de procedimentos já estabelecidos. Bordwell concluiu que a continuidade já existente e estabelecida
como tradicional em Hollywood era apenas submetida a um novo ritmo e grau de intensidade, sem
contudo sofrer nenhum tipo de modificação significativa em sua estrutura. Cunhou então o termo
continuidade7 intensificada ao referir-se a esse tipo de cinema.

Por outro lado Mathias Stork (2011) afirma que o cinema high concept sofreu nas últimas duas
décadas, se não uma mudança radical, ao menos uma derivação dessa continuidade intensificada
proposta por Bordwell. Segundo ele as produções das últimas duas décadas, em especial os filmes de
ação, violariam princípios clássicos de encenação, trabalho de câmera e edição em favor de um
espetáculo sensorial sem sentido, que procura impressionar, dominar e hipnotizar seu público. Não
haveria portanto qualquer preocupação no desenvolvimento de uma lógica espaço-temporal ou
coerência narrativa. Esses filmes tornam-se então, segundo ele, cada vez mais rápidos, exagerados e
hiperativos. Stork afirma que esse tipo de cinema não seria apenas uma questão de intensidade das
técnicas clássicas do cinema hollywoodiano, como diria Bordwell, mas de perversão. O problema é
que o autor define esse estilo como algo irremediavelmente negativo, colocando esse modelo de
cinema como sendo essencialmente uma degradação do cinema hollywoodiano das décadas anteriores.
Stork chaga a criar o termo Chaos Cinema, referindo-se a esse cinema de forma um tanto pejorativa.

3.2 O conceito de pós-continuidade

7 Bordwell defende continuidade como sendo a relação entre espaço tempo que permite a compreensão da narrativa em um
filme. Nesse sentido o cinema high concept o mesmo tipo de relação entre esses dois elementos desde a era clássica
hollywoodiana, apresentando apenas uma intensificação de técnicas já estabelecidas.
22

Steven Shaviro (2011) também observou o que seria uma mudança ou pelo menos uma
ramificação do que Bordwell chamou de continuidade intensificada. Esses filmes surgidos nos anos
2000 por nomes como Michael Bay, Tony Scott e Christopher Nolan seriam para ele um modelo de
cinema ao qual denominou de pós-continuidade. Contudo, ao contrário de Stork, Shaviro procurou
considerar as virtudes desses filmes ao invés dos seus defeitos. O autor os observou como reflexos (ou
resultados, dependendo do ponto de vista) de mudanças profundas de ordem tecnológica (o surgimento
do universo digital e da Internet, por exemplo) e de condições socioeconômicas e políticas mais gerais
(globalização, capitalismo neoliberal, etc.). Essas produções cinematográficas são então inseridas em
um cenário extremamente conturbado. Assim como o indivíduo na modernidade, o indivíduo atual
encontra-se em crise. E essa crise, além de perceptiva como na época do nascimento do cinema, parece
se estender à sua própria identidade. Segundo Stuart Hall (2006) a identidade unificada, constante e
estável tornou-se apenas uma ilusão em uma pós-modernidade de instabilidade e constantes mudanças.
Essa instabilidade é reflexo de um capitalismo financeiro global, com seu implacável processo de
acumulação, sua fragmentação de antigas formas de subjetividade e sua multiplicação de tecnologia de
controle de percepção e sentimentos no nível mais íntimo do indivíduo contemporâneo. Por outro lado
a globalização levou a uma interpolação das identidades nacionais, desintegrando-as gradativamente.
A consequência disso, dentre outras coisas, é a hibridização dessas identidades. Tudo isso leva a um
cenário propício ao desenvolvimento de novas expressões culturais, pautadas muitas vezes em uma
linguagem fragmentada e, no caso do cinema, também ancorada no espetáculo sensorial de alguns
filmes.

A questão narrativa nesses nesse caso não seria então uma questão de quantidade, de
intensificação, como aponta Bordwell. Seria na verdade relativa à característica, à forma como se
formula essa narrativa. Nesse sentido Shaviro propõe então o termo pós-continuidade para designar
esse tipo de cinema. Nesse cenário regras de continuidade não são quebradas ou mesmo utilizadas
sistematicamente. Elas são, antes de mais nada, ignoradas em favor do estímulo sensorial constante e
intenso. Nessa pós-continuidade cenas de ação, por exemplo, são construídas então por meio de
câmeras trêmulas e em ângulos extremos ou mesmo impossíveis, tudo unido por cortes
vertiginosamente rápidos. Configura-se então uma situação onde a própria continuidade do filme é
quase quebrada e certamente desvalorizada, ou fragmentada e reduzida à incoerência. Existe uma
entrega de choques contínuos à plateia, o que acaba por superar qualquer preocupação com a narrativa.

É importante ressaltar que produções como Transformers (BAY, 2007) ou Gamer


(NEVELDINE; TAYLOR, 2009) não dispensariam a continuidade clássica completamente. Elas
apenas não a veriam como algo importante, como algo fundamental no decorrer do filme. Stork
procura ridicularizar essa despreocupação, esse abandono de regras que para ele são fundamentais ao
bom cinema. Shaviro, por sua vez, afirma que essa continuidade simplesmente não importa mais para
diretores como Michael Bay. Em seus filmes e em outros similares a história serve apenas como sutura
23

entre os vários e breves momentos de espetáculo sensorial intenso. As regras de continuidade


continuam existindo, mas perderam sua sistematização e sua importância.

Bordwell afirma que a estabilização de relações entre espaço e tempo é crucial para o
entendimento e articulação da narrativa de um filme. Shaviro, por sua vez, defende que em filmes de
pós-continuidade acontece uma situação reversa, onde essa relação deixa de ser fundamental para o
entendimento da narrativa. O espaço, segundo ele, é fixo e rígido em filmes de continuidade clássica,
permanecendo sempre o mesmo, não importa o que aconteça na narrativa. Da mesma forma o tempo
flui de forma contínua e linearmente, mesmo em momentos onde a cronologia é bagunçada por
flashbacks, por exemplo. Contudo, em filmes de pós-continuidade a situação é outra. Segundo ele, em
produções como essas o público é exposto ao “espaço-tempo da física moderna e ao tempo de
microintervalos e transformações que acontecem na velocidade da luz” (SHAVIRO, 2012). Essas
características refletem aspectos próprios de uma sociedade capitalista globalizada e high tech atual.

4. Conclusão

Retornando ao Cinema de Atrações e seu regime de mostração, como proposto por Tom
Gunning e André Gaudreault respectivamente, percebe-se um caráter não narrativo fundamental em
seus filmes, além de uma forte espetacularização. Flávia Cesarino Costa afirma que uma das
características mais marcantes do primeiro cinema era a “descontinuidade gritante entre planos e cenas
na montagem dos filmes” (2005). Não havia portanto preocupação alguma com essa montagem. Antes
de preocupar-se com uma história a ser contada, os diretores da época preocupavam-se muito mais em
causar espanto e outras reações extremas em seu público por meio de choques sensoriais intensos. É
nessa relação com a narrativa e nesse desejo de provocar reações no público por meio do espetáculo
sensorial que se percebe um forte paralelo entre esse modelo de cinema da virada do século XIX para
o século XX e o cinema high concept de pós-continuidade contemporâneo. Assim como no primeiro
cinema a continuidade e a narrativa não são o foco de diretores como Michael Bay, por exemplo.
Antes disso, o interesse dele é chocar as pessoas que assistem a seus filmes por meio de explosões
constantes e cada vez mais intensas, cores extremamente saturadas, efeitos especiais espalhafatosos,
uma sonorização exageradamente alta ou qualquer outro meio de estímulo que possa provocar seu
público. As histórias em seus filmes mostram-se quase sempre simples e previsíveis, servindo apenas
como pano de fundo para “atrações” pontuais. Essa simplicidade narrativa permite ao público
desfrutar da miríade de estímulos aos quais ele é submetido no decorrer da projeção cinematográfica.
Temos então um novo modelo de se fazer cinema classificado por Shaviro de pós-continuidade. Por
outro lado, antes mesmo da continuidade tornar-se dominante nas produções cinematográficas, o
cinema já produzia uma quantidade imensa de filmes. Esse cinema, classificado por Tom Gunning
24

como Cinema de Atrações, poderia então ser pensado como um cinema de pré-continuidade, paralelo
ao cinema de ação surgido após os anos 2000.

É interessante notar, por fim, a forma como ambos os períodos do cinema apresentados nesse texto, o
Cinema de Atrações e o cinema de pós-continuidade, parecem se inserir em uma cenário próprio de
cada um e que, ao mesmo tempo, apresentam características semelhantes. Mudanças sociais,
econômicas, políticas e tecnológicas marcantes, novas concepções de sujeito e um cenário de
estímulos sensoriais intensos parecem gerar, em ambos os casos, um cenário propício para um cinema
pautado muito mais no espetáculo sensorial do que na narrativa. O próprio ritmo na vida das pessoas
ao final do século XIX e início do século XX parece ter se acelerado vertiginosamente, causando uma
certa instabilidade na própria percepção do indivíduo moderno. Resumidamente, o capitalismo acaba
por gerar informações em excesso, que acabam exaurindo a atenção dos indivíduos, gerando então
uma necessidade de novos estímulos, e cada vez mais intensos8. Essa crise de atenção do indivíduo
moderno relaciona-se então diretamente com o crescimento, tanto na quantidade quanto na variedade,
de estímulos sensoriais na virada do século. O cinema, por sua vez, trouxe esse ritmo acelerado da
vida na sociedade capitalista em expansão aos filmes produzidos na época, que se inserem nesse
contexto e, ao mesmo tempo, refletem diversas de suas características. Paralelo a isso, tem-se
atualmente um cenário também conturbado e instável, de mudanças constantes e intensas no qual o
cinema de pós-continuidade tem se desenvolvido. Assim como o Cinema de Atrações na modernidade,
os filmes de pós-continuidade parecem hoje refletir e, ao mesmo tempo, se inserir em um contexto de
pós-modernidade. Seus filmes de caráter espetacular e minimamente narrativos funcionam como
atrações de cunho essencialmente sensoriais, parecendo transpor também para o cinema a
fragmentação e instabilidade próprios de sua época. Pode-se então traçar um paralelo entre esses dois
tipos de espetáculos, o Cinema de Atrações e o cinema de pós-continuidade, que se manifesta
especialmente na forma como os dois modelos de cinema se relacionam com cada ambiente que os
cerca. Esses ambientes de características análogas acabam, aparentemente, gerando tipos de cinema
essencialmente espetaculares. Filmes que se assemelham muito mais ao circo e outras atrações
sensacionalistas do que ao teatro tradicional ou a literatura, por exemplo, baseados em um caráter
fundamental de atração, que são de certa forma frutos de sua época e, ao mesmo, projetam seus
principais elementos e atributos.

3. REFERÊNCIAS

8A crise de atenção do indivíduo moderno foi tema de estudo de Johnatan Crary, que analisou o crescimento do
sensacionalismo em decorrência disso, incluindo o surgimento do cinema como um meio de entretenimento voltado para a
massa urbana que se avolumava. Para saber mais: CRARY, Jonathan. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e
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WYATT, Justin. High concept: movies and marketing in Hollywood. Texas: University of Texas Press, 2006.
27

Estética Punk no Cinema.


Raphael Genuíno de Araújo (PPGA-UFES)

Resumo: O punk foi um movimento social, musical e artístico surgido na década de 1970,
manifestando-se primeiramente nos Estados Unidos, em Nova Iorque e pouco tempo depois
se desenvolvendo na Inglaterra, mais fortemente em Londres onde ganhou amplitude mundial.
Partindo do punk e da investigação de suas principais demandas pretende-se uma analise das
principais características de um Cinema Punk, surgido análogo sua cena musical. Para isso
será analisado o filme The Foreigner (1978, Amoes Poe), considerado uma das primeiras
produções ficcionais do Cinema Punk.

Palavras chave: Punk, Cinema Punk, Cinema Underground


Abstract: The punk was a social, musical and artistic movement emerged in the 1970s,
manifesting itself primarily in the United States in New York and shortly after developing in
England, most strongly in London where he gained world-wide. Starting from the punk and
research of their main demands is intended to an analysis of the main features of a Punk
Cinema, emerged analog his musical scene. For it will be analyzed the film The Foreigner
(1978 Amoes Poe), considered one of the first fictional productions Punk Cinema.

Keywords: Punk, Punk Cinema, Underground Cinema


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1 EM BUSCA DE UMA “ESTÉTICA PUNK”

Antes de entrarmos em questões do que seria o Cinema Punk e de como o punk é transportado
para o cinema, é necessário e conveniente fazer algumas consideração acerca do movimento e
sua trajetória. Pois, muito além de aspectos estéticos é importante termos a compreensão de
que o punk é um conjunto de práticas construídas a partir de um desejo de mudar o mundo, e
por isso uma forte resistência ao capitalismo e a comodidade. No punk as questões estéticas e
econômicas são entrelaçadas e inseparáveis. Esta ideia é lançada por Stacy Thompson, em seu
livro Punk Productions (2004) “(...) interesses econômicos necessariamente irão levar a e
encontrar expressão nas formas estéticas, e as formas estéticas também irão refletir e ser
refletido na economia”1 (THOMPSON, 2004, p.3, tradução nossa). A ética do faça você
mesmo (Do it Yourself – DIY) figura como um dos elementos principais do punk e serve
como base desta dialética entre estética e a economia punk. Estas considerações são
importantes, pois fornece um “modo operante”, que vai além de um estilo punk consumível
destoante do seu sentido original.

Uma definição de uma “estética punk” e do que seria o movimento, de maneira definitiva e
unificada se mostra uma tarefa difícil, o punk mudou e têm mudado desde seu surgimento,
além disso, se manifestou através de diferentes formas que incluem música (selos e
apresentações), estilo (moda), impressos (principalmente fanzines) e cinema. A melhor
tentativa de descrever o punk em termos estéticos tem sido focado não no punk como inteiro,
mas em uma análise de cenas isoladas como: Londres e Nova York, cidades ligadas à origem
do movimento. O punk não se restringiu apenas a esses dois polos e se espalhou como um
fenômeno mundial encontrando adeptos em diversas partes do globo.

O punk não nasce como um movimento isolado, faz parte dos desdobramentos de outras
“cenas juvenis” 2, como os beatniks, os teddy boys e os hippies, que vão emergir a partir do
período do pós-segunda guerra (1950-1970). O aparecimento dessas manifestações está
diretamente ligado às novas condições da juventude, onde há uma ampliação ao tempo livre, e
ao lazer, um ciclo de desenvolvimento da indústria cultural e aos meios de comunicação.

1
No original: “(...) economic concerns will necessarily lead to and find expression in aesthetic forms, and
aesthetic forms will both reflect and inflect economics.”
2
Referência ao livro de mesmo nome. ABRAMO, Helena. Cenas Juvenis: punks e darks no espetáculo urbano.
São Paulo: Editora Página Aberta Ltda. 1994.
29

“É a época do desenvolvimento da televisão, que se moderniza e se


integra em circuito nacional e que multiplica, na década de 70, o
seu púbico espectador. As demais áreas da indústria cultural e de
diversão conheceram um notável crescimento no período; isso
ocorreu com a publicação de livros e revistas, com o cinema e com
a indústria fonográfica. [...] Os artigos da indústria cultural, como
discos, fitas, revistas de entretenimento, filmes, têm seu maior
público entre os jovens, para quem passam a ser preferencialmente
dirigidos.”3

Cada uma dessas manifestações juvenis, que aparecem a partir de 1950, apesar das diferenças
de motivação, caráter e amplitude, carregam contestações semelhantes de uma crítica ao
sistema capitalista e suas bases de sustentação, a começar pela recusa aos valores burgueses
da família, da disciplina do trabalho e da moral sexual, passando à reivindicação do direito à
liberdade e do direito a fazer as próprias escolhas. Cada um desses grupos tem a música como
elemento importante de representação de suas identidades individuais e coletivas, onde podem
aspirar e projetar outro modo de vida. Na década de 70, o rock progressivo, ganha o status de
música pop tornando-se um grande negócio para a indústria cultural.

O punk, ao invés de apresentar-se como continuidade com um suposto movimento de jovens


anterior, se reporta a ele essencialmente como ruptura, mesmo reconhecendo tributo a certas
matrizes consolidadas na geração anterior, em música, em literatura e comportamento. Os
punks são principalmente garotos da classe trabalhadora dos subúrbios, vivendo um momento
de desesperança: crise econômica, altos índices de desemprego e forte instabilidade social.

A música industrial corporativa, a música pop, para a maioria dos punks, deve ser combatida,
pois representa um conjunto de relações com a dinâmica e os interesses capitalistas. A música
punk, o punk rock, surge como reação àquilo que hoje chamamos de classic rock (e que
inclui, entre outros, o hard rock, o country rock e o rock progressivo), caracterizado por um
grande aparato empresarial e material; de técnica apurada (virtuosismo); dos shows em
grandes arenas; dos astros milionários; da seriedade; da representação da masculinidade4.
Todas essas características criavam um distanciamento entre os músicos e seu público, sendo
artificial, distante da realidade desses jovens, em geral de subúrbios, desempregados ou em
subempregos. Ao contrário, o punk rock amparado pelo Do it yourself era igualitário e
encorajador, buscando uma música simples, rudimentar, com poucos recursos onde qualquer

3 ABRAMO. 1994. P.61


4 Por exemplo, as bandas Led Zeppelin e The Eagles.
30

garoto com vontade de expressar-se e divertir-se poderia fazer. As bandas tocavam em


pequenos clubes e palcos onde o público tinha a oportunidade de participar ativamente das
apresentações. Uma música faz sentindo de novo para os jovens no cotidiano das ruas, em
suas experiências reais.

“O que permanece irredutível sobre esta música é o seu desejo de


mudar o mundo. O desejo é patente e simples, mas que inscreve uma
história que é infinitamente complexo - tão complexo como a
interação dos gestos cotidianos que descrevem a forma como o
mundo já funciona. O desejo começa com a procura de viver e não
como um objeto, mas como sujeito da história - a viver como se algo
realmente dependesse de suas ações - e que a demanda se abre para
uma rua livre.”5 (MARCUS, 1990, p.5. Tradução nossa)

2 CINEMA PUNK

O cinema punk surge análogo ao movimento musical, e as mesmas demandas que incidem
sobre a música punk, o punk rock, irão incidir sobre o cinema realizado pelo movimento. Se
alguém que nunca tivesse tocado nenhum tipo de instrumento poderia começar uma banda,
porque alguém que nunca tivesse usado uma câmera não poderia fazer um filme? “Havia
vários músicos que apenas pegavam suas guitarras e tocavam, e nós tínhamos a mesma
atitude.”6 (MASTERS, 2007, p. 139) Afirma Beth B, uma importante cineasta que fez parte
de um grupo de diretores punks, conhecidos como No Wave Cinema, sediados em Nova
Iorque, por volta dos 1975-1985. Dentre os principais cineastas da No Wave estão: Vivienne
Dick, Amoes Poe, Eric Mitchell, James Nares e Beth B e Scott B.

O No Wave se caracterizou por seu desenvolvimento simultâneo ao movimento musical (de


mesmo nome) criando-se uma relação simbiótica, muitas vezes não existindo separação entre
as duas comunidades. Figuras importantes como James Chance, Lydia Lunch, Debbie Harry,
Pat Place transitavam entre esses dois meios. O termo “No Wave” surgiu a partir de uma
coletânea musical organizada e produzida pelo músico inglês Brian Eno7, logo serviu para

5 No original: "What remains irreducible about this music is its desire to change the world. The desire is patent and simple,
but it inscribes a story that is infinitely complex – as complex as the interplay of the everyday gestures that describe the way
the world already works. The desire begins with the demand to live not as an object but as a subject of history – to live as if
something actually depend on one’s actions – and that demand opens onto a free street.”
6 No original: “There were a lot of musicians who were just picking up guitars and doing it, and we had same attitude.”
7 A compilação foi lançada em 1978 e tinha o nome de No New York e trazia quatro músicas, de quatro bandas de Nova

Iorque: The Contortions, Teenage Jesus and the Jerks, Mars e DNA
31

designar um grupo de cineastas, músicos e artistas, ambientados no punk. Isso ajudou na


afirmação de uma identidade perante Nouvelle Vague (movimento do cinema francês) e o
rock New Wave. Em termos gerais, os filmes da No Wave estão inseridos dentro de um
conjunto amplo e heterogêneo de produções audiovisuais, são os primeiros filmes do Cinema
Punk.

Seria lógico então supor que aspectos estéticos no cinema punk, usando esse paralelo com a
música seriam de “[...] uma cadencia rápida, elipticamente editado e calculado para ofender
noções burguesas de gosto e moralidade.” 8 (ROMBES, 2005, p.25, tradução nossa). Mas na
verdade, a estética do cinema punk é a antítese do que esperamos. Ao invés de narrativas
rápidas, numerosos cortes, inúmeras cenas e repentinas transições de uma cena para outra, os
cineastas punk fazem justamente o oposto. Seus filmes geralmente possuem ritmo narrativo
lento, onde a câmera praticamente não se move, fazem poucos cortes e geralmente renunciam
diversas técnicas que colocariam seus filmes dentro do padrão comercial. Isso se deve ao fato
de que os filmes punks resistem a fácil adesão do público em geral e a sua comercialização.

Stacy Thompson destaca o modo produtivo do punk, mais precisamente a “crítica


materialista” do qual ele se propõe, como uma característica do Cinema Punk. “Qualquer
música punk, zine ou produção de qualquer tipo que obtém apoio de empresas não é, por
definição, punk.“9 (ROMBES, 2005, p.22, tradução nossa) Para ele, há uma questão ética do
punk em jogo que se perde com o financiamento de uma grande gravadora ou como no caso
dos filmes de grandes estúdios cinematográficos. Outras características, levantadas por Chris
Barber em No Focus: Punk On Film (2006), aponta algumas características essenciais do
Cinema Punk.

“Efetivamente, a subcultura punk como um todo, e como expressão no cinema, são


vistos como catalisadores que inspiram cineastas em particular a determinado modo de
produção, incorporando temas relevantes em alguns dos seus filmes. [...] E a atitude
permanece silenciosa, mas beligerante; se não se opõe, ao menos expõe cada
expressão de hipocrisia, corrupção, injustiça e mentiras e propagandas por arrogantes
que ditam as regras.”10 (BARBER; SARGEANT, 2006, p. 13)

8 (Tradução nossa) No original: “[…] to be fast paced, elliptically edited and calculated to offend bourgeois notions of taste
and morality.”
9 No original: “Any music, zine or punk production of any kind that obtains corporate backing is no longer, by definition,

punk.”
10 No original: “Effectively, punk subculture as a whole and its expression in cinema are viewed as catalyst which inspire

particular filmmakers towards a related mode of production, or incorporate relevant themes in some of their movies. […] And
32

Em seu livro Subversion: The Definitive History of Underground Cinema (2007), Duncan
Reekie faz uma concisa genealogia do Cinema Underground focado na história e tradição
deste cinema na Inglaterra e nos EUA, colocando o Cinema Punk como seu descendente
direto. O punk seria uma ligação entre uma subcultura vinda do rock e o filme experimental.
“O advento do punk rock no final de 1970 abriu-se tanto uma alternativa fundamental para
estruturalistas da vanguarda estética e uma aliança renovada entre subcultura do rock e do
11
cinema experimental.” (REEKIE, 2007, p.188, tradução nossa). Dessa maneira podemos
supor que muitas das características referentes ao Cinema Underground que Reekie especifica
durante o livro despontam também como elementos do Cinema Punk. Dentre os principais
características que marcam os filmes punks e os filmes Underground são seu aspecto amador,
incompetência técnica e aparência pobre, que podem ser exaltados como sendo uma prática
espontânea, franca e democrática em contraposição ao cinema comercial e sua produção.
Distorções do tempo e espaço narrativos são percebidas nesses filmes como gestos
libertadores que vislumbram realidades alternativas. Nota-se também o uso recorrente de
imagens e temas tabu na sociedade como sexo, violência e morte. Outra característica dessas
produções é seu caráter heterogêneo que incluem trabalhos de cineastas solitários, produções
coletivas, curtas experimentais, filmes caseiros, documentários, todos característizados pelo
baixo orçamento.

O Cinema Underground pode ser dividido entre dois campos, segundo Marc Masters “[…] as
narrativas semi-improvisadas de Andy Warhol, Ken Jacobs e Jack Smith, e as imagens
abstratas de Stan Brakhage, Michael Snow, e Jonas Meka.”12 (MASTERS, 2007, p. 140,
tradução nossa). O Cinema Punk foi influenciado principalmente pelo primeiro grupo como
James Nares, um cineasta punk diz no documentário Blank City sobre a preferência em se
fazer filmes narrativos: “Nos alienamos do cinema de vanguarda de propósito. Queríamos
fazer filmes narrativos ao invés de filmes artísticos. Assim você alcança todo tipo de
pessoas.” 13
(Blank City, 2012, Cap.1). Podemos incluir outros diretores, além desses citados
por Masters, como antecedentes e influencia direta para o Cinema Punk como os irmãos
George e Mike Kuchar e John Waters.

attitude remains, silent but belligerent; if not opposing then at least exposing every expression of hypocrisy, corruption,
injustice and the lies and propaganda spewed out by arrogant, self-inflated rulers.”
11 No original: “The advent of punk rock in the late 1970s opened up both a critical alternative to structuralist avant-garde

aesthetic and a renewed allegiance between rock subculture and experimental film”
12 No original “[...] the semi-improvised narratives of Andy Warhol, Ken Jacobs and Jack Smith, and the abstract imagery of

Stan Brakhage, Michael Snow, and Jonas Mekas.”


13 No original: We had alienated ourselves from avant-garde cinema on purpose. We wanted to make narrative movies rather

than art movies. Thus you reach all kinds of people


33

Os filmes desses diretores que mais influenciaram os cineastas punks foram Blonde Cobra
(Ken Jacobs, 1959); Flaming Creatures (Jack Smith, 1963); os primeiro filmes de Andy
Warhol Kiss (1963), Sleep (1963), Blow Job (1963), Mario Banana (1964); os primeiros
filmes de George e Mike Kuchar The Thief And The Stripper (1959), I Was A Teenage
Rumpot (1960), A Tub Named Desire (1960) e depois em suas carreiras solos o mais
importante foi Hold me While I’m Naked (George Kuchar, 1964); e a triologia de filmes de
Jhon Waters Pink Flamingos (1972), Female Truble (1974) e Desperate Living (1977).

Outro ponto que nos ajuda a entender a preferencia por esses filmes narrativos é uma postura
anti-arte adotada pelo Punk. Na metade dos anos 1960, nos Estado Unidos, houve uma
consolidação de instituições culturais a partir do financiamento estatal. Centros e museus de
arte, juntamente com pesquisadores de cinema começam a assumir uma autoridade de gosto
sobre o cinema experimental e institucionalizar um cânone artistico sobre o movimento. Os
filmes que seguiam a tendência vanguardista de exploração visual rumo abstração dentro do
Cinema Underground começaram a se tornar uma parcela independente e a se
institucionalizar dentro da arte como um novo modernismo de estética formalista - os filmes
estruturais (Structural Film14). Esse processo foi legitimado por críticos de Cinema de
Vanguarda como P. Adams Sitney e Annette Michelson, juntamente com outros cineastas
chaves como Jonas Mekas, Stan Brakhage, Peter Kubelka e outros.

Assim como Reekie, Chris Barber em No Focus: Punk On Film afirma que o Cinema Punk
possui suas raízes muito antes do Punk que remetem aos filmes mudos. Barber faz uma breve
introdução das raízes do Cinema Punk que antecedem o punk rock e que atravessam os filmes
de vanguarda dos Dada e Surrealistas e nos remetem aos filmes mudos.

As temáticas usuais desses filmes punks representam parcialmente uma volta de temas
tratados pelo Cinema Underground americano dos anos 1960 como os filmes dos diretores
Jack Smith, Ron Rice, Ken Jacobs, os irmãos Kutchar e os primeiros filmes de Warhol.
Filmes punk lançados em 1978, como Kidnapped, de Eric Mitchell, Black Box, de Beth e
Scott B, Rome ‘78 de James Nares e She Had Her Gun All Ready de Vivienne Dick são
marcados por práticas eróticas, parodias de filmes de Hollywood, exaltação de um estilo de
vida marginal e exibem um grau de consciência social.

14Segundo P. Adam Sitney.“O filme estrutural insiste em sua forma, e qual o conteúdo que tem é mínima e subsidiária ao
resto. Quatro características do filme estrutural são a sua posição de câmera fixa (quadro fixo do ponto de vista do
espectador), o efeito de cintilação, impressão loop, e refotografia fora da tela. Raramente irá se encontrar todas as quatro
características em um único filme, e há filmes estruturais que modificam esses elementos usuais.” (2002, p.365, tradução
nossa)
34

3 THE FOREIGNER (1978)

Amoes Poe, em 1978, escreveu, produziu e dirigiu The Foreigner considerado um dos
primeiro filmes punks. Poe inclui, ao fim do longa-metragem, na parte dos créditos, que o
filme foi realizado com o orçamento de $ 5.000 dólares, dinheiro obtido por um empréstimo
junto ao banco Merchants Bank Of New York.15 Um orçamento bem abaixo para qualquer
produção feita por Hollywood, ainda mais se tratando de um longa-metragem de 95 minutos.
Essa informação lançada pelo diretor é uma prática bem incomum e destaca a maneira pela
qual o filme foi produzido. Jim Jarmusch, um dos mais conhecidos cineastas relacionados ao
cinema punk, viu The Foreigner antes de realizar seu primeiro filme Permanent Vacation
(1980) e comenta: “The Foreigner, para mim foi um filme muito importante porque quando o
vi pela primeira vez e vi que ele [Poe] fez um filme com seis mil, eu sabia que eu poderia
fazer um filme também.” 16
(ROMBES. 2005. P.26. Tradução nossa). Dessa maneira, Amoes
Poe explicita os meios que tornaram possível a produção do filme, sem a necessidade de um
grande orçamento ou apoio empresarial encorajando dessa maneira, o público e outros
possíveis cineastas a realizarem filmes. Outro aspecto, que aponta para as condições de
realização são os poucos nomes que aparecem, compondo a equipe, nos créditos finais, onde
muitos ocupam mais de uma função.

O filme inicia com Eric Mitchell17, que interpreta Max Menance, “o estrangeiro”, chegando
ao aeroporto internacional John F. Kennedy. O espectador primeiro o vê caminhando através
de corredores vazios, mas isto não é imediatamente claro, que ele está somente chegando ao
aeroporto. Não apenas no inicio do filme, mas durante toda a história, não somos informados
sobre quem seria Max Menance, nem mesmo sobre o porquê chegou a Manhattan e o que esta
tentando fazer. Ele embarca em um táxi, dirigido por um punk, que o deixa em um hotel
(Chelsea Hotel), onde assiste em seu quarto parte de um documentário sobre os punks na TV.

Durante o desenvolvimento da história Max encontra algumas pessoas de quem, sem sucesso,
tenta pedir ajuda, não sabemos especificamente que tipo de ajuda ele quer. Max é morto por
tiros em um parque (Battery Park), por dois homens vestidos com ternos que o esperavam.

15 Aparece ao fim do filme: “This film was made possible by a $5.000 personal loan from the Merchants Bank of New York.”
16 No original: “The Foreigner, which to me was really important film because when I first saw it and when I saw that he
[Poe] made a feature film for, like, six thousand, I knew that I could make a film too.”
17 Além de atuar foi diretor também dos filmes: Kidnapped (1978), Underground U.S.A (1980) e The Way It Is (1985)
35

Após ser alvejado e morrer ele é cercado por um grupo de punks que o acham morto, eles se
aglomeram em torno de seu corpo e depois se dispersam.

(Fig.1) Frame do filme The Foreigners (1978), Amoe Poe

A inclusão dos punks no filme é particularmente estranha, eles aparecem em algumas


passagens da história. O primeiro punk a aparecer dirigiu o táxi para Max do aeroporto até
Manhattan, ele faz uma misteriosa ligação, onde fala com um homem (outro punk)
mencionando-o como chefe, revelando a chegada de Max. Ocasionalmente, um punk passa
por Max na rua, encarando-o e o segue por um tempo. Um grupo de quatro punks, tocando em
uma banda no CBGBs ataca Max no bar, a briga chega ao banheiro onde Max é espancando e
tem seu tórax cortado por uma faca. Ao fim do filme, os punks aparecem novamente,
juntando-se para observar o corpo morto de Max. Não há informação sobre de onde vieram,
ou como sabiam que Max estava naquele local.

Um trecho que se destaca das demais é a de um grupo de punks, em uma sala, sentados um ao
lado do outro, num sofá, conversando sobre assuntos aleatórios, sem sentido evidente.
Próximo ao fim da cena, cortes diretos conectam duas sequencias: uma em que são mostrados
seis punks sentados no sofá e a outra de um close-up de uma boneca sendo eletrocutada em
uma cadeira elétrica de brinquedo. Outro corte direto, observamos dois dos punks sentados no
36

sofá atrás da boneca na cadeira elétrica. Novamente não é nos dado a informação de onde os
outros teriam ido ou de quanto tempo se passou. Existe ainda outro corte direto onde a câmera
mostra em close-up uma “bombinha” (fogos de artificio) no cinto de um punk. A “bombinha”
explode e a cena termina. É difícil conceber uma razão lógica para inclusão disso no enredo
do filme, partindo do fato que não existe uma justificativa. A recusa de um sentido na cena,
em termos corporativos, abre a possibilidade de que o filme pretende algo mais do que o
lucro. Se Amoes Poe “desperdiça” tempo de filme – todo segundo de gravação de um longa-
metragem significa também algum montante de dinheiro gasto – em cenas que não
desenvolvem personagens e não podem ser associadas dentro da narrativa do filme, isto indica
que o diretor não pretende fazer dinheiro com o filme. Em outras palavras, se a lógica do
filme comercial é um retorno financeiro lucrativo, as estranhas cenas dos punks sugerem uma
suplementar razão para fazer filmes, uma razão não governada pelo dinheiro. Mesmo que
essas cenas não tenham explicações, pelo enredo ou por parte do diretor, não é difícil
imaginar possibilidades para elas, do ponto de vista politico, artístico e do simples prazer em
fazê-las, os excessos do filme invocam possibilidades criativas que vão além do retorno
financeiro do filme.

De maneira consciente ou não Amoes Poe evoca estratégias cinematográficas já utilizadas


anteriormente por diretores de filmes de vanguarda como, por exemplo, filmes Surrealistas
que combinam imagens, que a principio são desconexos, sem lógica ou ligações racionais à
sequência seguinte. Talvez o mais icônico exemplo de obra cinematográfica surrealista tenha
sido o Un Chien Andalou (1928), de Luis Buñuel, com colaboração de Salvador Dali onde
podemos observar essa estratégia de compilação de diferentes perspectivas de filmagem e
cenários. Para os cineastas surrealistas a força da identificação do espectador, nos contextos
exibidos em repentinas deslocações e descontinuidades, proporciona uma viva metáfora da
experiência do sonho. Não podemos afirmar que Poe tenha tido essa intenção como Buñuel e
Dali, mas as descontinuidades do enredo sugeridas em momentos do filme proporcionam uma
liberdade sobre a demanda narrativa de causa e efeito.

Comparado o enredo de The Foreigners com de outros filmes de mesmo ano como: Star Wars
(1977, George Lucas), Annie Hall (1977, Woody Allen) , Saturday Night Fever (1977, John
Badham), Smokey and Bandit (1977,Hal Needham), Close Encounters of the Third Kind
(1977, Steven Spielberg); Poe recusa seguir a mesma estrutura de personagens e enredo
seguidos pelo cinema de Hollywood. Estas escolhas estéticas sozinhas situam The Foreigner
em oposição ao modelo corporativo-comercial de filmes. Outros elementos estéticos como a
37

falta de fechamento para história, garantem que o filme não seja confundido com um produto
comercial. Mesmo filmes produzidos corporativamente, que pretendem renunciar uma
conclusão fácil de ser percebida, tendem a anunciar suas lacunas e situá-las cuidadosamente.

As técnicas fílmicas de The Foreigner, ou a falta delas, colocam o filme definitivamente


dentro de uma cinematografia punk. Comentando sobre a cena entre uma dominatrix
personagem Doll (Anya Philips) e Fili Harlow (Patty Astor) onde a colocação da câmera
muda aleatoriamente entre as tomadas de cena, Poe observa “Nós não tínhamos ideia sobre a
regra de 180 graus ou qualquer regra neste momento.”18 (ROMBES. 2005. P.30, tradução
nossa). Esta afirmação de Poe sublinha a estética punk do seu filme. Sua desatenção, e
ignorância da continuidade completa de edição, assim como o baixo orçamento, servem para
demonstrar que para uma pessoa fazer um filme não é necessariamente preciso ser um
especialista na técnica cinematográfica.

Outro elemento que reforça esta ideia é o som do filme. Amoes Poe não usa múltiplas faixas,
na hora da edição do som, opta pelo jeito mais barato de gravação em uma faixa.
Consequentemente a música só aparece simultaneamente ao diálogo quando ela é tocada ao
vivo dentro da cena, por exemplo, as cenas rodadas durante um show de uma banda punk no
CBGBs. Em todo o filme, quando há uma música de trilha, não existem diálogos. A
simplicidade e disponibilidade desta técnica tornam-se evidente logo nas primeiras cenas,
quando Max encontra um homem, um “contato”, em um terreno de alguma construção. Nós
vemos o encontro de uma longa distancia, mas ouvimos o diálogo entre os dois claramente. É
evidente que Poe não tentou sincronizar a conversa com o áudio que ouvimos, temos a
impressão que a conversa foi gravada separadamente e simplesmente sobreposta às imagens,
o que de fato acontece.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise, aqui colocada, do filme de Amoes Poe, The Foreigner (1978) serve para reforçar
aspectos importantes sobre o punk e de como as demandas do movimento são transportadas
para o meio cinematográfico. O punk não é somente uma estética, sua essência parte de uma
atitude crítica perante o sistema capitalista, que pode ser sintetizada pela ética do faça você
mesmo. Desse modo, o punk rock e o Cinema Punk, possuem uma posição definida, que se

18
No original: “We had no idea about the 180 degree rule or any rule at this point.”
38

distancia da moda, da música e do cinema controlados por empresas corporativas. Eles


intencionam e encorajam seus espectadores, dentro de um conjunto particular de produção e
significado estético a realizarem seus próprios trabalhos, como música ou filme.

Diretores visionários e talentosos como: Vivienne Dick, Beth B, Scott B, Eric Mitchell,
Michael Oblowitz James Nares, Richard Kern, Nick Zedd, Don Letts, Derek Jarman,
Penelope Spheeris, David Mingay e Jack Hazan, para citar alguns, criaram obras desafiadoras.
Empregando uma infinidade de técnicas relativamente baratas para a produção de seus filmes:
utilização de locações simples, geralmente de seus repertórios cotidianos; utilização de atores
amadores, geralmente amigos próximos; e edição rudimentar. Seus trabalhos possuem uma
estrutura claramente contra a estrutura cinematográfica vigente no filme de Hollywood. Suas
narrativas e estilos visuais são marcados pelo desejo de uma liberdade politica, social e
cultural sem as restrições, que o cinema dominante e seus financiadores demandam.

The Foreigner, não deixa tão evidente em sua estrutura, os elos, e a dívida, com diretores e
filmes que o antecedem. Essa informação é dada pelo diretor Amoes Poe durante os
comentários do filme, em sua versão em DVD19. Ele assiste ao filme como um espectador e
reflete sobre suas influências: Alphaville (1965), de Jean Luc Godard, Shadows (1965), de
John Cassavetes e os filmes em geral produzidos por Andy Warhol. Os livros Deathtripping
(2008) e MidNight Movies (1991) evidenciam esta herança deixada pelos diretores do cinema
Underground Americano dos anos 1960, como: Ken Jacobs, Jack Smith, Andy Warhol, John
Waters, os irmãos George e Mike Kuchars e Ron Rice. Uma boa parte de filmes lançados por
cineastas punks vão atuar sobre temas tabus da sociedade, reconsiderando noções
conservadoras de “obscenidade” e “bom gosto”.

Como os filmes que o antecederam, o Cinema Punk de hoje engloba filmes independentes
produzidos que atacam os modelos econômicos e estéticos dominantes para a produção de
filmes, reivindicando a socialização dos meios de produção. Finalmente, punk nos oferece um
método para a crítica de cinema a partir de uma perspectiva materialista, porque, no final, os
punks preocupam-se com a forma em que seus filmes atuam.

19
ROMBES. 2005. P.30
39

5 REFERÊNCIAS

1. ABRAMO, Helena. Cenas Juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo:
Editora Página Aberta Ltda. 1994.
2. BARBER, Chris; SARGEANT, Jack. No Focus: Punk On Film. Londres: A Headpress Book.
2006.
3. ESSINGER, Silvio. Punk: Anarquia planetária e a cena brasileira. São Paulo: ED. 34, 1999.
4. GOFFMAN, Ken; JOY, Dan. Contra cultura através do tempos: do mito do Prometeu à
cultura digital. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.
5. HOBERMAN, J.; ROSENBAUM Jonhatan. 2. Ed. Midnight Movies. Nova York: Da Capo
Press. 1991.
6. KUENZLI, Rudolf E. (Edit.). Dada and Surrealism Film. Nova York: MIT Press, 1996.
7. MARCUS, Greil. Lipstick Traces: A Secret History of Twentieth Century. Massachusetts:
Harvard University Press. 1990
8. MASTERS, Marc. No Wave. Londres: Black Dog Publishing. 2007
9. REEKIE, Duncan. Subversion: The definitive history of underground cinema. Londre/Nova
York: Wallflower Press, 2007
10. RICHARDSON, Michael. Surrealism and cinema. Nova York: Oxford International
Publishers, 2006.
11. ROMBES, Nicholas (Org.). New Cinema Punk. Edinburgh: Edinburgh Univesity Press.
2005.
12. THE FOREIGNER. Direção: Amoes Poe. Produção: Visions. 1978. 1 DVD
13. THOMPSON, Stacy. Punk Productions. Albany: State University of New York Press, 2004.
40

As descontinuidades do Pólo Cinematográfico de Paulínia (SP): um drama


recorrente na produção de cinema brasileiro.
Cleber Fernando Gomes (PPGHA-UNIFESP)

Resumo

O Pólo Cinematográfico de Paulínia, está localizado no interior do Estado de São


Paulo. Nesse caso, constitui-se objeto de pesquisa interessante porque possui uma estrutura de
grande porte em produção de audiovisuais que poderá contribuir para fomentar os bens
culturais no Brasil através do cinema. Sabemos que o cinema tem o poder de romper
fronteiras locais, regionais, nacionais e internacionais, tornando-se um fenômeno de
comunicação entre os diversos setores da sociedade e, sobretudo, despertando a reflexão
crítica, sendo um objeto cultural importante para o país. O Pólo também é uma fonte
importante para pesquisar aspectos históricos, sociais, culturais, artísticos, econômicos e
políticos. Porém, as descontinuidades de suas produções fílmicas retomam os dramáticos
fenômenos observados na história do cinema brasileiro.

Palavras-chave: Cinema, Pólo Cinematográfico, História da Arte, Brasil, Paulínia


(SP).

Abstract

The Pole Film Paulinia, is located in the State of São Paulo. In this case, constitutes
interesting research object because it has a large structure in audiovisual production that
could help to foster cultural property in Brazil through film. We know that the film has the
power to break local boundaries, regional, national and international, becoming a
communication phenomenon among various sectors of society and, above all, awakening
critical reflection, and an important cultural object for the country. The Pole is also an
important source for researching historical, social, cultural, artistic, economic and political.
However, discontinuities of their filmic productions incorporating the dramatic phenomena
observed in the history of Brazilian cinema.

Keywords: Cinema, Film Pole, Art History, Brazil, Paulinia (SP).


41

Introdução

A cidade de Paulínia inaugurou o Pólo Cinematográfico no ano de 2008, se


consolidando como um dos principais espaços para produções audiovisuais no país. A
estrutura do Pólo Cinematográfico é composta por quatro estúdios, escritórios temporários,
motor home (casa motorizada), e uma escola para formação técnica na área de cinema. Essa
estrutura cinematográfica já serviu de base para produção de vários filmes com projeção
nacional e internacional.

Porém, o Pólo não se resume somente ao campo da estrutura física construída, mas o
que também se destaca e torna-se relevante são alguns dados estatísticos que mostram que já
foram investidos milhões de reais no complexo cinematográfico. Em um país, como o Brasil,
no qual os investimentos em cultura são poucos e intermitentes, trata-se de uma experiência
diferenciada cujos resultados precisam ser melhor compreendidos. De acordo com Magenta
(2012), observamos que o Pólo Cinematográfico de Paulínia/SP foi idealizado pela Secretaria
Municipal de Cultura com investimentos aproximados em mais de R$ 400 milhões de reais.

Dentro desse contexto, por meio de editais de fomento de produção audiovisual, já


foram disponibilizadas cifras milionárias para produção de diversos filmes nacionais no Pólo
Cinematográfico de Paulínia. No período de 2007 a 2010, foram distribuídos R$ 38,8 milhões
para realização de 42 filmes no Pólo de Paulínia, alguns destes com sucessos de bilheteria.

No Informe Anual da Agência Nacional de Cinema (ANCINE), apresentado no início


do ano de 2015, podemos observar que o público total que foi ao cinema em 2014 assistir a
filmes nacionais atingiu um total de 19 milhões de espectadores, um decréscimo em
referência ao ano anterior que atingiu um público de 27,8 milhões. (BRASIL, 2015). Nesse
caso, o Pólo produtor de cinema torna-se significativo pois, além de mostrar que os incentivos
ao cinema nacional precisam se intensificar para fazer face ao cinema estrangeiro, o produto
cultural brasileiro pode contribuir para a construção e o diálogo sobre muitas temáticas
históricas e contemporâneas, através de filmes de ficção e dos filmes documentários.

Essa realidade, de uma histórica recente, se defronta com algumas questões políticas
que trazem as atividades do Pólo, contratempos e descontinuidades muito prejudiciais a
produção de bens culturais para o Brasil. O duelo político existente na cidade de Paulínia
transformou a cena local em uma peça dramática de idas e vindas das atividades culturais
ligadas ao complexo cinematográfico.
42

A produção fílmica no Pólo de Paulínia (SP)

A partir desse contexto preliminar sobre o Pólo, observamos que também é importante
destacar que já foram produzidos um número considerável de filmes no Polo Cinematográfico
de Paulínia/SP (ver tabela 1). Do ano de 2009 a 2014, mesmo funcionando parcialmente,
houve uma produção variada de filmes no Polo, dos quais um conseguiu projeção
internacional1, oferecendo aos espectadores uma experiência cinematográfica no campo
cultural e histórico.

Ano Filme Diretor

2009 Cabeça a Prêmio Marco Ricca, M.Aquino,


F.Braga

2009 Jean Charles Henrique Goldman

2009 Salve Geral Sergio Rezende

2009 O Menino da Porteira Jeremias Moreira Filho

2009 Hotel Atlântico Suzana Amaral

2010 Chico Xavier Daniel Filho

2010 De Pernas Pro Ar Roberto Santucci

2010 Eu e Meu Guarda Chuva Toni Vanzolini

2010 Topografia de um Teresa Aguiar


Desnudo

2011 Corações Sujos Vicente Amorim

2011 Bruna Surfistinha Marcus Baldini

2011 Estamos Juntos Toni Venturi

2011 Meu País André Ristum

2011 O Palhaço Selton Mello

2011 Onde Está a Felicidade? Carlos Alberto Ricelli

2011 O Homem do Futuro Cláudio Torres

2011 Trabalhar Cansa Juliana Rojas e Marco Dutra

2012 Acorda Brasil Sergio Machado

2012 As Doze Estrelas Luiz Alberto Pereira

1Caso específico do filme “O Palhaço”, direção de Selton Mello (2013), que foi o escolhido entre os 15 longas-metragens
brasileiro para concorrer à indicação ao 85º prêmio Oscar (EUA) de melhor filme estrangeiro – acabou não sendo indicado.
43

2012 A Última Estação Márcio Curi Tabela 1: Relação


de filmes 2012 O Vendedor de Passados Lula Buarque de Hollanda produzidos em
Paulínia/SP.
2012 O Tempo e o Vento Jayme Monjardim

2012 Totalmente Inocentes Rodrigo Bittencourt

2012 Transeunte Eryk Rocha

2012 Trinta Paulo Machine

2013 Vai que dá Certo Maurício Farias

2013 Somos Tão Jovens Antonio Carlos da Fontoura

2013 Colegas Marcelo Galvão

2013 A Busca Luciano Moura

2014 Confia em Mim Michel Tikhomiroff

Fonte:cinemapaulinia.com.br

Esse breve levantamento de dados sobre os filmes produzidos no Polo


Cinematográfico de Paulínia/SP já sugere a importância desse complexo para a História da
Arte, porque temos um objeto que gerou e ainda pretende continuar gerando bens culturais
para o país. No entanto, por motivos políticos, o Pólo, na sua breve história no cenário
cultural brasileiro, acaba sendo afetado por disputas de poder que interferem no seu
desenvolvimento como uma importante área industrial de produção de bens culturais para o
Brasil. As descontinuidades acabam atrapalhando a construção de um sistema produtivo que
necessita de uma frequência, visionando uma industrialização desse produto audiovisual,
essencial para difusão e valorização dessa expressão artística, ainda marginalizada no Brasil.

De acordo com Genestreti (2015), e ilustrando a questão da interferência política no


Pólo, em 27 de fevereiro de 2015 foi anunciada, mais uma vez, a suspensão do Festival de
Cinema da cidade de Paulínia e, consequentemente a suspensão e revisão do edital que previa
a produção de oito obras cinematográficas, totalizando um valor de R$ 8 milhões de reais.
Mais uma vez observamos o drama da descontinuidade, que se faz presente.

A crise nas artes

Ao analisarmos o Pólo Cinematográfico, é importante registrar o debate


contemporâneo recorrente sobre a “crise da arte”. Para alguns estudiosos “fala-se de uma crise
da arte, ou seja, de uma separação das atividades artísticas do contexto das atividades que,
nesta condição da sociedade, produzem cultura” (ARGAN, 2005, p.85). Essa crise da arte
44

remete ao desenvolvimento cada vez mais rápido das novas tecnologias de industrialização,
informação e comunicação.

A problematização de Giulio C. Argan, talvez esteja centralizada nas artes plásticas –


mas as preocupações sobre uma possível crise nesse campo também são observadas no
contexto cinematográfico, como destacou o próprio Argan (2005), sobre os produtos das
artes: “Enfim, pode-se dizer que os produtos da arte, ou, mais precisamente, das artes, se
inserem no contexto cultural contemporâneo dominado pela ciência, na medida em que são
sustentados por uma ciência da arte (que, no fundo, é história da arte)” (p.86).

Nos estudos de Jacques Aumont (2008, p.71), notamos uma atenção especial em
analisar uma “crise do cinema”, forma de manifestação artística que corre o risco de
desaparecer ou modificar-se radicalmente, principalmente com o avanço da era digital. Esse
fenômeno acaba por contribuir para o surgimento dos ciclos de descontinuidades na área
cinematográfica, principalmente no caso de pequenos e novos complexos produtores de
cinema, no Brasil e no mundo.

O autor ainda destaca as pesquisas de Pierre Bourdieu sobre a fotografia e conclui que
os estudos mais prolíficos se deram no campo de uma “história social da arte”, que abandona
um caráter mais tradicional de análise, com bases nas formas, e concentram-se em estudos
históricos sobre a produção e a recepção das obras de artes (AUMONT, 1993, p.185-186). Já
em Teorias da Arte, Anne Cauquelin (2005, p.110-111) buscou enfatizar a importância de
uma história localista que legitima o método histórico como um recurso essencial para o
pesquisador das artes, disponibilizando diversos materiais (documentos, arquivos) para a
construção de argumentos dentro de uma regra estruturada.

Dessa forma, ao contextualizar o Pólo Cinematográfico de Paulínia/SP, observamos


que o objeto de estudo figura-se como um fenômeno artístico que está inserido dentro de uma
sociedade capitalista complexa e dinâmica, local e ao mesmo tempo global, porque seus
produtos fílmicos tem uma capacidade de difusão mundial. Além disso, o Pólo como produtor
de filmes, e a escola de cinema, tem em sua estrutura o poder de gerar bens culturais para o
Brasil, além de valorizar o fazer cinematográfico, podendo aderir ao conceito “soft power”
(MARTEL, 2012, p.12).
45

Arte, cultura e capitalismo

No livro Mainstrem – a guerra global das mídias e das culturas, de Frédéric Martel,
observamos que, com o fenômeno da globalização as influências não se materializam apenas
pela força militar, econômica e industrial. Segundo Joseph Nye, vice-ministro da Defesa no
Governo de Bill Clinton (EUA), a cultura passa a ser um recurso indispensável para se
sobressair em um mundo de “interdependência complexa” das interações sociais. Nesse caso,
Nye destaca que “o soft power é a atração, e não a coerção”, ou seja, o objetivo dos EUA
deve estar centrado também na obtenção e garantia do poder através da difusão dos bens
culturais produzidos em seu país, principalmente a produção vinda de Hollywood.
(MARTEL, 2012, p. 12).

No Brasil, o conceito de soft power já foi defendido politicamente por Marta Suplicy
quando estava no Ministério da Cultura (SUPLICY, 2013). A importância de criar estratégia
para fortalecer o país em diversos setores, seja econômico, político, cultural, é imprescindível
em um mundo cada vez mais globalizado. A produção cinematográfica brasileira poderá
exercer um papel fundamental, assim como podemos notar na história de Hollywood.
Interessante observar que no caso do cinema hollywoodiano as descontinuidades e os dramas
políticos não se fazem presente na realidade de produção dos grandes estúdios norte-
americano, o que facilita os elos produtivos e a difusão dos seus produtos fílmicos.

Contudo, o conceito de soft power defendido pelo cientista político de Harvard, ex-
funcionário do Governo dos EUA, pode levar a uma reflexão sobre o fenômeno da
reprodutibilidade técnica exposta por Walter Benjamin (1985), no seu ensaio “A obra de arte
na era da reprodutibilidade técnica”. Nesse caso, o cinema como arte política contribui para
um pensamento materialista da vida social, tornando uma esperança extraordinária de
mudanças e revoluções.

A natureza de reprodutibilidade técnica do cinema obriga a uma distribuição em massa


do filme, já que a sua produção técnica tem um custo tão elevado que restringir o acesso a
uma classe social mais abastada limitaria em grande medida os lucros. Sendo assim, com a
reprodutibilidade técnica do cinema, é essencial fazer uma difusão ampla e rápida para que os
custos desse produto cinematográfico compensem a sua produção. Nesse caso, a grande
massa passa a se beneficiar dessas obras de arte, sejam clássicas, cult, ou populares, tendo
acesso a conteúdos e temas, inclusive, ideológicos, políticos e culturais. O fenômeno da
46

continuidade produtiva passa ser fundamental para evitar os dramas das interrupções dos
projetos cinematográficos.

Ao mesmo tempo em que o cinema se expande positivamente na cultura de massa,


oferecendo acesso a arte cinematográfica a diversas pessoas, ele também pode ser objeto de
reflexão crítica por estar inserido na indústria cultural capitalista. E o cinema realizado no
Pólo Cinematográfico de Paulínia/SP é um produto da indústria cultural e “está sujeito à
formação da consciência de seus consumidores” (ADORNO, 1978, p. 291). Nesse caso,
observamos em Adorno uma ênfase em não subestimar as influências da indústria cultural
porque ela exerce um papel social e merece ser contestada em sua adesão à racionalidade
técnica e ao capitalismo. Para Theodor Adorno, a arte como fenômeno social tem
consequências sociais e merece ser objeto de reflexão na medida em que dentro do contexto
da indústria cultual ela desenvolve e influência a “economia psíquica das massas”
colaborando assim para um estado de alienação.

A crítica de Adorno à indústria cultural é um interessante objeto de discussão, porém,


não podemos condenar os produtos culturais com base somente no fenômeno técnico e
mercadológico. Existe nesses produtos uma memória histórica de uma sociedade complexa e
em constante transformação. Para Ismail Xavier (2001, p.14-15), mesmo o cinema sendo um
objeto da indústria cultural, incluindo o cinema moderno brasileiro, essa arte é composta por
uma “pluralidade de tendências”. Para o autor a prática do cinema cria “instância de reflexão
e crítica” em diversas partes do mundo vitalizando a cultura. Desse modo, entende-se que em
um Pólo Cinematográfico há produções diversificadas de filmes que vão se inserir no âmbito
social influenciando de maneiras diversas as consciências coletivas, dependendo diretamente
das continuidades produtivas, e distanciando-se dos dramas políticos.

Cinema como patrimônio cultural

Embora o cinema, enquanto mercadoria, deva ser objeto de reflexão crítica, considera-
se também que o cinema é um objeto importante do patrimônio cultural do Brasil. Para tanto,
Funari & Pelegrini (2006, p.29) vão salientar que a preservação do patrimônio cultural na
América Latina pode ser uma forma de desenvolvimento sustentável para as cidades que
possuem centros culturais. Dentro desse contexto, é possível entender que um Pólo
Cinematográfico é considerado um centro cultural porque produz bens culturais, materiais e
imateriais que podem abrir um diálogo sobre a vida de uma coletividade. De acordo com os
47

autores “a definição de patrimônio passou a ser pautada pelos referenciais culturais dos povos,
pela percepção dos bens culturais nas dimensões testemunhais do cotidiano e das realizações
intangíveis” (FUNARI & PELEGRINI, 2006, p.32).

Consequentemente esses bens culturais também estão ligados aos dados econômicos
dos países, uma vez que as atividades culturais geram direta e indiretamente diversos recursos
financeiros, além de postos de trabalho e mão de obra especializada. Esse fenômeno inerente
à cultura fílmica também traz reflexões sobre a indústria cinematográfica – um setor
econômico e cultural que tem gerado números extraordinários – principalmente quando
colocamos em questão os dados estatísticos da história dos grandes estúdios de Hollywood.

Nesse caso, o Brasil também faz parte dessa história, porque contribui diretamente
com as bilheterias dos filmes estrangeiros, principalmente os norte-americano. Segundo
relatório apresentado pela ANCINE (BRASIL, 2015) através da Superintendência de Análise
de Mercado (SAM), no ano de 2014 o cinema estrangeiro foi responsável por 87,8% do
público total das salas de cinema no Brasil, em contraposição aos 12,2% do próprio cinema
brasileiro.

É interessante observar que esse fenômeno da difusão e ocupação dos filmes


hollywoodianos em salas de cinema do Brasil já era notado desde a década de 1920, conforme
destaca Arthur Autran (2004, p.02) em sua tese de doutorado em Multimeios na Unicamp: “na
indústria do filme, o Brasil ainda dorme envolto em faixas sem saber balbuciar uma palavra, e
no comércio de exibições é um dos grandes importadores a enriquecer fábricas estrangeiras”.

Mesmo antes do decênio de 20, Autran (2004, p.01-10) destaca matérias jornalísticas
que salientavam o poder de Hollywood sobre a cultura cinematográfica brasileira. O autor
ressalta que de 1909 a 1920, houve publicações no jornal carioca Gazeta de Notícias, e no
jornal paulista O Estado de São Paulo que expressavam um pensamento industrial
cinematográfico e que condenavam a concorrência das produções estrangeiras (EUA) sobre as
produções brasileiras. Notamos que esse fenômeno poderia ser combatido com estratégias de
continuidades produtivas, uma vez que os ciclos de descontinuidades na produção
cinematográfica brasileira é um fenômeno recorrente na história.

Essa realidade nada confortável tanto em termos culturais quanto financeiros para o
Brasil nos sugere um cenário crítico para o cinema nacional, pois mostra que o povo brasileiro
está contribuindo muito mais para o cinema norte-americano do que para o brasileiro, e
consequentemente consumindo muito mais produtos daquela cultura. Embora essa seja a
48

realidade de muitos outros países na América e demais continentes, o cinema brasileiro tem
como melhorar essa situação, alavancando os índices estatísticos sobre o público de seus
próprios filmes, nas salas do país. Mais uma vez questões políticas estão envolvidas nesse
cenário cinematográfico, e o drama se estende ao mercado exibidor e aos processos de
difusão.

Industrialização, descontinuidades e fator histórico

No Brasil, os incentivos governamentais seriam essenciais para ajudar a desenvolver o


setor cinematográfico, assim como notamos na história dominante do cinema norte-
americano. Para tanto, podemos destacar as Parcerias Público-Privadas (PPP, Lei
nº11.079/04) no setor do audiovisual, que no caso do cinema, tem como finalidade a
construção e manutenção de salas de cinema, estúdios de gravação de filmes, escola de
cinema, museus da imagem, etc; além de outras estratégias, que podem contribuir
significativamente para produzir mais filmes no Brasil, consequentemente garantir o bom
desempenho dos filmes brasileiros nas salas de cinema.

Na história do cinema brasileiro podemos observar que houve períodos em que se


defendia um desenvolvimento autônomo nas diversas atividades, sejam elas culturais,
industriais, comerciais, etc. A socióloga Marina Soler Jorge em suas pesquisas sobre cinema
na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/SP), destacou que o cinema estrangeiro,
principalmente o norte-americano, “era considerado o pior inimigo ao lado de seu promotor, o
capital estrangeiro” (JORGE, 2002, p.19). Esses fenômenos encontrados na história do
cinema brasileiro se contradiziam principalmente em um período que o país estava se
industrializando com capital estrangeiro, porém os defensores do Cinema Novo, por motivos
ideológicos, não desejam fazer uso desses mesmos investimentos (JORGE, 2002, p.20). É
interessante observar que na década de 1970 o cinema no Brasil aprecia um notável
crescimento com o advento da Embrafilme que passa a ter uma maior participação nas
produções nacionais. Em Jorge (2003, p.168) notamos que o cineasta Roberto Farias
apresentou-se como um importante mediador entre o núcleo dos cineastas do movimento
Cinema Novo e Embrafilme, exclusivamente com a missão de fomentar as políticas e
estratégias de financiamento da empresa estatal.

Contudo, as estratégias de produção e participação do cinema nacional, nos moldes da


indústria hollywoodiana, já tinham sido testadas e colocadas em prática desde o final da
49

década de 1940, quando surge no cenário brasileiro a Companhia Cinematográfica Vera Cruz.
Em Galvão (1981, p.133) observamos que a Vera Cruz conseguiu atingir a técnica necessária:
“sob o ponto de vista técnico, a Vera Cruz começou a fazer exatamente o cinema que na
época se reclamava para o Brasil: o filme de boa qualidade, certinho. O salto que se deu em
relação ao cinema anterior foi realmente extraordinário”.

Dentro desse contexto, apontando o lado positivo da tentativa de industrialização do


cinema brasileiro pela Companhia Vera Cruz, Carlos Augusto Calil (1987, p.23) destacou
outro ponto importante: “ela provou que o cinema brasileiro poderia conquistar o público
interno, de alto a baixo, sem segmentações (...) seus filmes foram bem lançados e o mercado
correspondeu aos investimentos de publicidade”. Por um curto período de tempo o fantasma
da descontinuidade produtiva estava afastado do cinema brasileiro.

A partir da experiência cinematográfica da Vera Cruz, e anteriormente, de outras ações


realizadas por entusiastas do cinema brasileiro – como no caso da Atlântida Cinematográfica,
fundada em 1941, voltada para filmes mais populares – a produção de filmes no Brasil em
alguns casos e determinados períodos históricos (estúdios da Vera Cruz e da Atlântida) esteve
direcionada para tentar atingir um nível industrial. Os processos de continuidade produtiva
estavam gerando bons frutos, e o drama das paralisações parecia ter sido superado.

Diante desses fatos históricos, o Pólo Cinematográfico de Paulínia também surge com
objetivos parecidos, porém talvez ainda mais ambiciosos. Destacamos que o complexo de
entretenimento projetado para Paulínia/SP está localizado em uma área total de 2,5 milhões de
m², tendo um orçamento total de R$ 2 bilhões previstos para sua conclusão até o ano de 2023
(o prazo pode ser reduzido se houver investimentos privado); sua estrutura foi projetada para
concentrar 18 km de monotrilho (sendo três dentro do próprio complexo), 2 parques
temáticos, 1 parque aquático, além de 5 hotéis (com mil apartamentos no total).

Esses dados mostram a importância e relevância de um complexo como o Pólo


Cinematográfico de Paulínia/SP, uma vez que já possui uma produção de filmes considerável
(ver tabela 1) contribuindo para legitimar bens culturais para o Brasil, inclusive constando
obras cinematográficas reconhecida nacionalmente e internacionalmente. Além de tentar
quebrar as descontinuidades de produção, sofrido por diversos projetos que não conseguem
colocar em prática seus planos.

No Brasil não temos uma indústria cinematográfica consolidada. Segundo Autran


(2009, p.02) “o cinema brasileiro é algo descontínuo (...) nunca conseguiu se industrializar
50

efetivamente, limitando-se a alguns surtos de produção”. Essa tendência de relativos fracassos


à industrialização do setor cinematográfico no Brasil é resultado de fatores complexos que
não temos tempo de discutir. Se por um lado os surtos interrompidos de industrialização
sempre prejudicaram a expansão da produção fílmica, em contraponto pode ter criado espaço
fecundo para “o desenvolvimento das ideias sobre cinema independente” (GALVÃO, 1980,
p.13).

As pesquisas em cinema

Os estudos sobre o Polo Cinematográfico de Paulínia trazem em questão algumas


interrogações sobre a própria história do cinema nacional e mundial. E essa história pode estar
vinculada ao caso específico da indústria de Hollywood, uma vez que a mesma é dominante
nesse setor.

Em Mascarello (2006, p.335) observamos que “cabe à universidade manter-se em


sintonia com os avanços da pesquisa em padrões globais” – o autor defende um estudo longe
do viés ideológico priorizando análises mais pragmáticas para tentar compreender o processo
e a estrutura do sistema industrial norte-americano na produção de blockbuster – fato que
culminou em um imperialismo cultural difundido no mundo todo.

Esses estudos pragmáticos em padrões globais envolve uma discussão interessante


sobre a produção fílmica ao redor do mundo, uma vez que traz para o debate novas
perspectivas e aspectos comparativos importantes para entendermos o nosso próprio modo de
produção de filmes e difusão dos nossos bens culturais.

Para tanto, é preciso contextualizar a história de outros cinemas, além de colocar em


debate as diferenças de linguagem, poéticas e estéticas cinematográficas dentro do nosso
próprio país. No Brasil, temos uma diversidade cinematográfica que compõe um conjunto de
obras de arte que formam o nosso conteúdo cultural na área do cinema.

Em comparação ao estilo hollywoodiano, é possível sugerir que o Brasil está


procurando construir após a retomada do cinema nacional na década de 1990, um star system
e um studio system, mesmo que estes estejam vinculados ao monopólio de uma única empresa
de entretenimento e comunicação, no caso, a Rede Globo de televisão e sua extensão, a Globo
Filmes. Assim, nos acostumamos a ver nas telas figuras recorrentes que estrelam boa parte
das produções e também frequentam as novelas televisivas.
51

Segundo Bernardet (2004, p.134) “isolar o cinema brasileiro das outras


cinematografias tem consequências metodológicas não necessariamente benéficas”. Nesse
sentido, é válido comparar as produções realizadas pela Globo Filmes com o modelo
Hollywoodiano e entender sua capacidade de fazer frente ao produto estadunidense, uma vez
que a empresa possui um complexo de comunicação e difusão que consegue atingir milhões
de espectadores no Brasil e no mundo.

Porém, vale ressaltar que novas políticas de incentivos fazem-se necessárias para que
novas produções cinematográficas possam ter condições de entrar no circuito de distribuição e
exibição, contribuindo para a difusão cultural, além da diversidade de obras – “leis de
incentivo, quotas, estratégias de marketing, produção de gêneros populares nacionais, assim
como a promoção internacional de produtos culturais” (MELEIRO, 2007, p.15).

Toda essa diversidade de produções fílmica podemos encontrar no histórico do Pólo


Cinematográfico de Paulínia (ver tabela 1), que conseguiu atrair diferentes produções,
inclusive parte do star system da própria Globo Filmes. As estratégias de negócio da Globo
Filmes podem ser comparadas as estratégias da indústria hollywoodiana que conseguiu se
firmar como um complexo poderoso de produção e distribuição dos seus filmes.

Sabemos que a indústria de Hollywood domina o mercado de filmes no seu próprio


país e no restante do mundo. De acordo com Arthur Autran, se Hollywood conseguiu criar
uma estratégia de dominação no mercado cinematográfico, muito se deve ao apoio de
políticas governamentais, principalmente após a I Guerra Mundial, afastando os concorrentes
europeus, deixando evidente que existe uma diferença essencial nas estruturas industriais
existentes nos países com cinematografias desenvolvidas, realidade muito diferente do que
encontramos no Brasil (AUTRAN, 2004, p.04-05).

Considerações finais

O cinema no Brasil ainda tem muito para se desenvolver e tornar-se uma indústria
forte como um segmento cultural que movimente a economia, sendo reconhecido e valorizado
por seus produtos audiovisuais. No entanto, podemos destacar que paralelamente as
dificuldades encontradas nesse setor cultural, há um estímulo ao turismo cinematográfico,
conjunturado com o Ministério do Turismo, que lançou uma cartilha do “Turismo
Cinematográfico Brasileiro”. Essa realidade já existe em países como a Escócia, Nova
Zelândia, Romênia, e evidentemente, nos EUA.
52

O Brasil também possui potencial turístico na área do cinema em diversas cidades,


como podemos verificar no Rio de Janeiro/RJ, com o Pólo Cine&Rio, localizado na Barra da
Tijuca, instalado numa área de 55.000m², sendo composto por oito estúdios, e oferecendo
cursos de audiovisual, operação de câmera e direção de fotografia. No Distrito Federal, há o
Pólo de Cinema e Vídeo Grande Otelo, localizado na região de Sobradinho à 22km da cidade
de Brasília/DF. No município de Cabaceiras (PB), podemos encontrar uma região apelidada
de Roliúde Nordestina, pelo fato de já ter recebido filmagens de diversos filmes. Nessa
mesma direção, a cidade de Palmas no Estado do Tocantins criou um circuito turístico, “Nas
Trilhas do Cinema”, para levar turistas a conhecer locações de filmes realizados naquela
região. Assim sendo, as atividades cinematográficas do Pólo de Paulínia/SP, também podem
se tornar um meio de movimentar o setor turístico da cidade, promovendo o cinema nacional
produzido no local.

Em suma, os Pólos produtores de cinema no Brasil são importantes por serem


estruturas produtoras de bens culturais que contribuem com parte da história cinematográfica
do país, que produziu e continuará produzindo esses bens culturais. O Pólo Cinematográfico
de Paulínia (SP), também torna-se essencial na história do cinema brasileiro, porque, apesar
dos seus ciclos de descontinuidades, e dos dramas políticos existentes na cidade, conseguiu
contribuir com um número considerável de obras cinematográficas gravadas em seus estúdios,
além de fomentar o ensino da arte do cinema, através da escola de animação, e dos diversos
cursos e oficinas culturais.

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55

Palco ilusório de um delirante teatro mágico: espaço imaginário de


autorreflexão.
Ubiratan Machado Pinto (PPGCL-UFRJ)

Resumo: O artigo analisa o romance O lobo da estepe, de Hermann Hesse, segundo a relação
intertextual entre literatura e mitologia grega. Marcante para o texto é a autorreflexão do
narrador, a sua tentativa de lançar um olhar para dentro de si, cuja tensão entre lucidez e
devaneio é representada de maneira performática em um lugar imaginário de sua mente, como
quem busca ver além da própria imagem refletida diante do espelho. Com referência ao mito
de Narciso e à teoria psicanalítica de Freud, tal possibilidade expõe todo o seu dilema
existencial.

Palavras-chave: sonho – memória – autorreflexão

Abstract: The article analyzes the novel Steppenwolf, by Hermann Hesse, according to the
intertextual relation between literature and Greek mythology. Remarkable for the text is the
self-reflection of the narrator, his attempt to take a look inside, whose the tension between
lucidity and dreaminess is performatively represented in an imaginary place in his mind, as
anyone who want to see beyond his own reflected image before the mirror. Regarding the
myth of Narcissus and the Freud's Psychoanalytic Theory, this possibility exposes all his
existential dilemma.

Keywords: dream – memory – self-reflection

Em 1927, Hermann Hesse publica a perturbadora obra O lobo da estepe. Esse romance
foi lançado após a Primeira Guerra Mundial, fato histórico seguramente fomentador de uma
tendência literária que pudesse mostrar a representação do ser humano moral e socialmente
esfacelado perante atrocidades belicistas e crises econômicas. Livro que marcou a geração de
leitores dessa época, a referida prosa apresenta uma história que aguça a nossa imaginação de
tal maneira a tornar propensa a construção de imagens mentais que se replicam ao infinito
devido à densidade alegórica da significação desse texto literário, sendo essa espécie de
experiência fascinante um possível efeito resultante oriundo de uma leitura pormenorizada
dessa narrativa. Nesse romance, observam-se transposições imagéticas e personagens
relacionadas entre si através de simbólicos reflexos especulares, uma vez que se verifica no
texto um espelhamento onírico e dialógico que os mantêm sempre enleados. Harry Haller, a
personagem principal dessa história, carrega um dilema que é oniricamente retratado e reforça
a transposição imaginária para a dimensão dramática e extraordinária apresentada na
narrativa, a que o insere dentro de um teatro mágico, colocando-o em contato com seus
56

desejos e diante de suas referências, uma vez que, segundo o crítico literário Michael Sprinker
(1991, p. 126), “los sueños presentan un modelo de intertextualidad en el que la interpretación
depende de la habilidad de articular la estructura inscrita compuesta por la yuxtaposición de
textos que difieren entre sí”. Tais observações correspondem com as reflexões feitas pelo
protagonista, cuja identidade torna-se o alvo de sua crítica:

Com a destruição do que havia chamado antes “minha personalidade”, comecei a


compreender por que, apesar de todo desespero, eu temera tão horrivelmente a
morte, e comecei a notar que também esse temor atroz e ignominioso pela morte era
um resquício de minha antiga existência, burguesa e enganadora. O Sr. Haller de até
então, escritor de talento, conhecedor de Mozart e de Goethe, autor de observações
dignas de ler-se sobre a metafísica da arte, sobre o gênio e o trágico, sobre a
Humanidade — o solitário melancólico em sua clausura de livros, tinha de fazer sua
autocrítica ponto por ponto, sem nada omitir. (HESSE, 1995, p. 133)

Para Harry Haller, a autocrítica nada mais salienta a sua tentativa de lançar um olhar
para dentro de si para chegar ao esgotamento de todas as observações a seu respeito, como
quem se vê diante do espelho à procura de um eu que é, porém, sempre intangível, ideal que
se configura como algo não plenamente realizável, remetendo-se ao mito de Narciso, como
nos conta a mitologia grega:

Ficou olhando com admiração para os olhos brilhantes, para os cabelos anelados
como os de Baco ou de Apolo, o rosto oval, o pescoço de marfim, os lábios
entreabertos e o aspecto saudável e animado do conjunto. Apaixonou-se por si
mesmo. Baixou os lábios, para dar um beijo e mergulhou os braços na água para
abraçar a bela imagem. Esta fugiu com o contato, mas voltou um momento depois,
renovando a fascinação. Narciso não pôde mais conter-se. Esqueceu-se de todo da
idéia de alimento ou repouso, enquanto se debruçava sobre a fonte, para contemplar
a própria imagem. (BULFINCH, 2001, p. 124-125)

Para a mitologia greco-romana, Narciso permaneceu debruçado sobre as águas de um


rio até seu corpo tornar-se metamorfoseado em uma flor. Convertido em elemento da
natureza, ele passa a representar o mundo subterrâneo, simbolizando a instabilidade da
juventude, o sono e o renascimento, cuja alusão mítica à beleza conserva-se indelevelmente:
“Although open to dispute, the derivation of this word from Greek narkē (numbness) would
help to explain the connection of this flower with the cults of the Underworld and with the
initiation ceremonies associated with the worship of Demeter at Eleusis” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1996, p. 695). De acordo ainda com o corrente significado mitológico,
Narciso é simulacro da introspecção, da vaidade e do amor por si mesmo:
57

A flower of spring, but also a symbol of youthful death, sleep and rebirth. The range
of plants belonging to this genus (which include daffodils and jonquils) may account
for its wide variety of symbolism. The Narcissus of Greek mythology was a
beautiful youth who fell in love with his own reflection in a pool and pined away
gazing at it. The story is usually taken to be an allegory of vanity, self-love or,
psychological terms, morbid introspection, but its original symbolism may have
been more straightforward. (TRESIDDER, 1998, p. 143)

A imaginação pela qual a construção do romance engendra-se como algo fora do eixo
da realidade faz de O lobo da estepe uma história dominada pelo fascínio narcisístico de
reminiscências e desejos do protagonista Harry Haller, previamente revelados a nós por
intermédio do prefácio do editor, outra personagem, a que se responsabilizou de expor as
anotações de Haller à disposição da leitura de qualquer leitor. O que se lê vai ao encontro
daquilo que encontramos ao lermos uma história fictícia não muito breve, ou seja, dentre
inúmeras características de um texto literário, é notória sua façanha de comportar
ilimitadamente ou até mesmo de estreitar o tempo por intermédio de palavras arranjadas em
um plano ficcional extraordinário. Conforme a ambivalência que instaura a oscilação entre a
fronteira da lucidez e do devaneio nessa obra literária, cabe-nos observar o que diz Paul
Ricouer (2007, p. 64):

Enquanto a imaginação pode jogar com entidades fictícias, quando ela não
representa o real, mas se exila dele, a lembrança coloca as coisas do passado;
enquanto o representado tem ainda um pé na apresentação enquanto apresentação
indireta, a ficção e o fingido situam-se radicalmente fora de apresentação.

Através da memória, quaisquer pensamentos recordativos e/ou imaginativos de um


sujeito são extravasados pelo fio da linguagem que, mediante essa faculdade de interação
dialógica e inteligível, tece o sentido global de um relato intimista, tal como se esse fosse dito
ao pé de nosso ouvido. Walter Benjamin (1995, p. 213) destaca algo que pode servir aqui para
ampliar o argumento:

Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê


partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. Mais solitário que
qualquer outro leitor (pois mesmo quem lê um poema está disposto a declamá-lo em
voz alta para um ouvinte ocasional). Nessa solidão, o leitor do romance se apodera
ciosamente da matéria de sua leitura. Quer transformá-la em coisa sua, devorá-la, de
certo modo. Sim, ele destrói, devora a substância lida, como o fogo devora lenha na
lareira. A tensão que atravessa o romance se assemelha muito à corrente de ar que
alimenta e reanima a chama.

O lobo da estepe reúne divagações abstratas e comporta lembranças de diferentes


vivências do protagonista ao longo de sua existência, o que justamente nos é comunicado
58

conforme a impressão psicológica que podemos sustentar a partir da própria narrativa


colocada em ênfase por meio de nossas observações. Nesse sentido, a obra de Hesse obedece
a tais apreensões que se cumprem com o auxílio de nosso olhar crítico, deixando-se aflorar as
sensações acerca do protagonista segundo o ponto de vista do anônimo editor sobre um
sujeito que considerou ser “estranho, selvagem e, ao mesmo tempo, tímido, muito tímido
mesmo” (HESSE, 1995, p. 8), e que “vestia um sobretudo de inverno, de talhe moderno e
cômodo, e no demais estava decentemente vestido, embora com certo desalinho” (HESSE,
1995, p. 9). A cada observação, esse editor aproxima-se de Harry Haller, estreitando os olhos
observadores face ao olhar de quem é observado:

[...] o olhar do Lobo da Estepe penetrava todo o nosso tempo, toda a afetação, toda a
ambição, toda a vaidade, todo o jogo superficial de uma espiritualidade fabricada e
frívola. Ah! lamentavelmente o olhar ia mais fundo ainda, ia além das simples
imperfeições e desesperanças de nosso tempo, de nossa espiritualidade, de nossa
cultura. Chegava ao coração de toda a Humanidade; expressava, num único
segundo, toda a dúvida de um pensador, talvez a de um conhecedor da dignidade e
sobretudo do sentido da vida humana. (HESSE, 1995, p. 13-14)

O personagem, meramente denominado da maneira como já se sabe, também


designado logo de início como “Lobo da Estepe”, mostrando a dualidade na caracterização de
seu perfil que, ao ser representado através do contraste entre indivíduo e fera lupina, tanto é
capaz de fazer minuciosas digressões a respeito da vida quanto manter um posicionamento
alheio às convenções sociais como se fosse um animal arredio. O que se pode perceber a
respeito dessa duplicidade psicológica é a simbolização de um lado mais visceral da
consciência de Harry Haller, identificada por intermédio de seus registros memorialísticos,
que fornecem rastros acerca de sua personalidade caracterizada de maneira colidente,
oscilando de forma insurgente, entre o delírio e a razão, o seu posicionamento pessoal sobre o
mundo, e tornam essa ambivalência delineada conforme suas anotações, concedidas por fonte
editorial:

Não sei por que motivo, eu, o Lobo da Estepe, o sem pátria e solitário odiador do
mundo burguês, sempre morei em verdadeiras casas burguesas, talvez por um velho
sentimentalismo de minha parte. Não vivia nem em palácios nem em casas
proletárias [sic], mas precisamente naqueles ninhos da pequena-burguesia,
decentíssimos, cheios de tédio e cuidadosamente conservados, onde há sempre um
cheiro de terebentina e sabão e onde todos se sobressaltam quando alguém deixa a
porta bater com força ou entra com sapatos sujos de lama. O amor por essa
atmosfera vinda, sem dúvida, de minha infância, e meu secreto anseio por algo
assim como um lar sempre me leva [sic] desesperadamente por esses velhos e
estúpidos caminhos. (HESSE, 1995, p. 31)
59

Embora o personagem Harry Haller seja oriundo de um meio social em que o ideal de
burguesia e a vida decentemente regulada pelos costumes de uma sociedade tradicionalmente
moralista que, na Europa de meados do século XX, havia sido destroçada pela Primeira
Guerra Mundial tendem a servir como paradigmas de comportamento em espaço coletivo, ele
se mostra apartado dessa tendência correspondente ao hábito de um contingente comunitário
nessa determinada época. Suas lembranças permitem que ele revisite sua própria origem, a
partir da infância, reelaborada nostálgica e amorosamente através de sua memória.

As sensações advindas do que se passou em sua vida face às percepções provenientes


do que se passa em tempo presente mesclam-se no texto literário como se suas recordações
pudessem ser convertidas em múltiplas imagens, formando um mosaico sentimental de
colorações bastante variadas. Nesse caso, seria um mosaico emotivo de suas vivências, de
seus sentimentos, de seu processo de aprendizagem e amadurecimento ao longo da vida, o que
confere ao relato um traço bastante humanizado acerca de um sujeito que se vê de forma
animalizada, uma característica relacionada à sensibilidade de uma condição humana
desgarrada e à existência de um indivíduo tão avesso às convenções normativas de seu tempo.
O espaço urbano habitado por ele proporciona essa emotividade, despertando da consciência
do protagonista dados memoriais acerca de sua história pessoal, de um tempo heroico juvenil
que já passou e que justamente traduz uma espécie de saudosismo épico referente a sua
própria mocidade, período em que já se encontra toda a sua admiração por um estilo de vida
solitário, em que se percebe Harry Haller como alguém suficientemente capaz de conduzir a
sua existência como um incorrigível misantropo:

Com pretensa alegria, percorri as ruas cujo asfalto estava molhado pela chuva; as
luzes dos postes, chorosas e veladas, através da úmida e fria obscuridade,
projetavam no chão molhado luminosos reflexos de luz como num espelho. Nesse
momento desfilaram em minha memória os anos de minha juventude: como
admirava, então, aquelas enevoadas tardes de outono ou de inverno! como respirava,
ansioso e embevecido, a sensação de isolamento e de melancolia, quando, noite
adentro, enrolado em meu capote, atravessava as chuvas e tempestades de uma
natureza hostil e revoltada [...]. Lastimáveis eram o agora e o presente, todas essas
horas e dias incontáveis que eu perdia, que eu vivia em sofrimento, que não me
traziam nenhuma dádiva nem a menor comoção [sic]. (HESSE, 1995, p. 32)

Em contraponto, como se pode observar, estão colocadas no trecho acima as


recordações da juventude e as severas constatações de um homem já adulto e marcado pelo
avanço do tempo, sendo notória a relação entre essas reflexões acerca de dois estágios de sua
vida, imagens de si mesmo em contraste pela impossibilidade de (re)elaborar, enfim, o ideal
60

pueril e/ou juvenil de sua própria vida principalmente por estar vivendo em uma etapa mais à
frente, em que a maturidade e a consciência da morte a cada progressão temporal percebida
pelo protagonista norteiam pensamentos e dilemas do ser. Nesse romance de Hermann Hesse,
esse personagem tem a oportunidade de reencontrar-se mais jovem através da memória
atrelada ao seu tempo de juventude e quanto mais ele se aproxima dessas lembranças, mais se
acentua o desgosto vinculado ao seu momento atual de existência, já envelhecido e
amargurado pela aversão à humanidade. Recordar de um período vivido em que o regozijo da
jovialidade está à flor da pele serve consideravelmente de consolo ao fato de Harry Haller
estar vivendo uma etapa demarcada pelo estreitamento cíclico de seu tempo de vida. Ele se
depara com a perspectiva de um porvir desfavorável, com o desprazer de um instante presente
que não lhe parece trazer sentido algum de viver e com a nostalgia avassaladora de si mesmo
enquanto um homem jovem cheio de vontades e entusiasmo pelo seu futuro ainda não
percorrido. As recordações que se traduzem por imagens a respeito de sua juventude deixam-
no fascinado, mas a figura do indivíduo que relembra de sua mocidade já não corresponde
com aquela outra de sua fase existencial anterior. No entanto, ele se curva ao passado como se
estivesse sucumbindo a sua própria queda naturalmente fulminante e associada a uma
decrepitude vital iminente. Se for possível fazer uma releitura do mito de Narciso baseada
nessa interpretação alegórica, a lembrança de Harry Haller acerca de sua juventude
corresponderia à imagem de Narciso refletida no lago, que observa a beleza de sua juventude.
A diferença entre ambos os personagens é que o herói da mitologia grega morre jovem e o
protagonista do romance de Hesse apresenta-se como um sujeito demasiadamente maduro.
Assim, cabe citar o seguinte:

El sujeto que se toma a si mismo como objeto invierte el movimiento natural de la


atención; al hacer esto, parece estar violando ciertas prohibiciones secretas de la
naturaleza humana. La sociologia, la psicologia profunda, el psicoanálisis, han
revelado la significación compleja y angustiosa que reviste el encuentro del hombre
con su imagen. La imagen es un otro yo-mismo, un doble de mi ser, pero más frágil
y vulnerable, revestido de un carácter sagrado que lo hace a la vez fascinante y
terrible. Narciso, al contemplar su rostro en el seno del manantial, queda fascinado
por esta aparición, hasta el punto de morir al doblarse sobre sí mismo. En la mayor
parte de los folklores y las mitologías la aparición del doble es un signo fatal.
(GUSDORF, 1991, p. 11)

Harry Haller, “aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem
alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível [sic]” (HESSE, 1995, p. 34), vai
ao encontro da fatalidade como se tivesse firmado um pacto consigo mesmo, mas driblando
indomavelmente o evidente vigor físico em declínio. Esse propósito adquire razão de ser pelo
61

fato de o personagem ter encontrado um livreto intitulado “O tratado do lobo da estepe” e


utilizado as ideias dessa pequena obra, citadas em suas anotações, tal como se estivesse
absorvendo um modo de viver mais bruto e semelhante ao da vida selvagem e solitária de um
lobo, visto que, de certa forma, ele se vê refletido tragicamente na imagem desse animal, além
de estar sendo referido o seu primeiro nome no opúsculo:

Toda ação humana parecia, pois, aos olhos do lobo [sic] horrivelmente absurda e
despropositada, estúpida e vã. Mas sucedia exatamente o mesmo quando Harry
sentia e se comportava como lobo, quando arreganhava os dentes aos outros, quando
sentia ódio e inimizade a todos os seres humanos e a seus mentirosos e degenerados
hábitos e costumes. Precisamente aí era que a parte humana existente nele se punha
a espreitar o lobo, chamava-o de besta e de fera e o lançava a perder, amargurando-
lhe toda a satisfação de sua saudável e simples natureza lupina. (HESSE, 1995, p.
48)

É também através dos olhos do lobo que Harry reforça seu repúdio à sociedade:

O Lobo da Estepe vivia, segundo seu próprio entendimento, inteiramente à margem


do mundo convencional, pois não conhecera nem a vida de família nem as ambições
sociais. Sentia-se isolado ora como um esquisitão e doentio eremita, ora como um
indivíduo superiormente dotado, que por seu gênio se sobressaía do comum dos
mortais. Desprezava conscientemente a burguesia e vivia orgulhoso de não pertencer
a ela. (HESSE, 1995, p. 56)

Além de toda a ojeriza à burguesia que o Lobo da Estepe sente, o breve tratado que
Harry Haller lê acentua a representação do antagonismo entre ele e o lobo apresentada na obra
como um todo, ou seja,

A divisão em lobo e homem, em impulso e espírito, mediante a qual Harry procura


explicar seu destino, é uma grosseira simplificação, uma violentação do real em
favor de uma explicação plausível porém [sic] errônea da desarmonia que este
homem encontra em si e que lhe parece a fonte de seus não leves sofrimentos. Harry
encontra em si um “homem”, ou seja, um mundo de pensamentos, de sensações, de
cultura, de natureza domada e sublimada, e vê também, ao lado de tudo isto, um
“lobo”, ou seja, um obscuro mundo de instintos, de selvagerismo e crueldade, de
natureza bruta e insublimada. (HESSE, 1995, p. 62)

Assim, o protagonista depara-se consigo mesmo, retorna a escrever suas anotações,


engendrando reflexões que denotam conformação com o inútil confronto existencial vivido
por ele:

Agora tinha nas mãos dois retratos meus: um, o auto-retrato em versos burlescos,
triste e angustiado como eu mesmo; o outro, frio e traçado com aparência de alta
62

objetividade por um estranho, visto de fora para dentro e de cima para baixo, escrito
por alguém que sabia mais, e, no entanto, também menos do que eu. E esses dois
retratos, meu poema triste e balbuciante, e o inteligente estudo de mão
desconhecida, ambos me causaram dor, ambos tinham razão, retratavam ambos sem
rebuços minha desconsolada existência, ambos mostravam claramente o
insuportável e insustentável da minha condição. Este Lobo da Estepe devia morrer,
sua odiosa existência devia encontrar fim por suas próprias mãos ou havia de
consumir-se no fogo mortal de uma continuada exposição de si mesmo; deveria
transformar-se, tirar a máscara e defrontar-se com uma nova encarnação do seu eu.
(HESSE, 1995, p. 72)

O narrador procura desfazer-se de sua personalidade, passo a passo, de modo a querer


abdicar de todo e qualquer ideal ou filosofia de vida que o havia orientado:

E outra vez depois de alguns anos amargos e difíceis, depois de haver construído
uma nova vida ascética e espiritual, de haver criado um ideal, numa severa solidão e
penosa autodisciplina, depois de haver atingido certa tranqüilidade e altivez,
entregue à prática do pensamento abstrato e a uma meditação rigorosamente
metódica, essa transformação vital também acabou por desabar, essa forma de vida
perdeu num instante seu nobre e elevado sentido; arrastou-me de novo a viajar
fatigantemente pelo mundo, amontoaram-se novas dores e novas culpas. E cada vez
que arrancava uma máscara, que via ruir um ideal, cada um desses acontecimentos
era precedido por um silêncio e um vazio cruéis, por um mortal isolamento e
ausência de relações, um triste e sombrio inferno que agora de novo tinha de
enfrentar. (HESSE, 1995, p. 72-73)

Ao longo do relato da personagem, a narrativa torna-se adensada pelos seus anseios,


conformadamente abalado pelas inconstâncias pertinentes a todo homem ocidental. A
trajetória dramática que lhe permite desnudar performaticamente seu autoconhecimento, a
busca em vão pela isenção de todo sofrimento humano, aos rigores de seu asceticismo, a
inevitável imersão na vida mundana, todas as circunstâncias que moldam o comportamento
arredio de Harry Haller conduzem-no a dimensões temporal e espacial paralelas à realidade, a
ponto de alcançar seu estado de transe onírico:

Sonhei que estava sentado numa sala de espera já fora de moda. A princípio sabia
apenas que tinha uma entrevista marcada com alguma pessoa importante. Logo
percebi que era o Sr. von Goethe quem iria receber-me. Infelizmente eu não estava
ali em caráter pessoal, mas como correspondente jornalístico, o que muito me
desagradava e não podia compreender por que demônios me tinham metido naquela
enrascada. Além disso, estava preocupado com um escorpião que aparecia de vez
em quando e tentava subir-me pela perna. (HESSE, 1995, p. 98)

Através dos sonhos do narrador, Goethe destila seus conselhos, abrandando a


dramaticidade do ser, a tragicidade que se impõe pela retidão frente ao passar dos anos:
63

— Meu amigo, levas o velho Goethe muito a sério. Não se devem tomar as pessoas
idosas que já estão mortas demasiadamente a sério, pois seria cometer uma injustiça
contra elas. Nós, os imortais, não gostamos de coisas que devem ser levadas a sério,
preferimos gracejar. A seriedade, meu jovem é uma conseqüência do tempo;
consiste, permito-me confiar-lhe, numa superestimação do tempo. Eu também, em
minha época, dei valor demais ao tempo, por isso queria viver cem anos. Mas, na
eternidade, como vês, não há tempo; a eternidade não é mais que um momento, cuja
duração não vai além de um gracejo. (HESSE, 1995, p. 102)

O diálogo entre Narciso e Harry Haller talvez nos sirva para indicar, então, a tensão
acerca do tempo presente e o alívio proporcionado pela memória nostálgica do passado
vivenciada pelo narrador de O Lobo da Estepe:

Agora, libertada prodigiosamente por Eros, brotava a fonte das imagens, caudalosa e
profunda, e o coração me parava a cada momento, de entusiasmo e tristeza também,
ao pensar quão abundante fora a galeria de minha vida, quanto a alma do pobre
Lobo da Estepe estava cheia de altas estrelas e eternas constelações. Apareceu a
imagem da infância e a mãe, delicada e diáfana, como do alto de uma montanha
azul; ressonou bronze e claro o coro das minhas amizades, a começar pelo fabuloso
Hermann, o irmão espiritual de Hermínia; exalando aromas extraterrenos, como as
flores do lago que se abrem sobre as águas, flutuavam as imagens das mulheres que
amei, a quem desejei e exaltei em versos, das quais pouca coisa obtive e das que em
vão tentei conquistar. (HESSE, 1995, p. 144-145)

Sendo Eros, a simbolização do amor, a entidade mitológica que enaltece as lembranças


de Harry Haller, vale ressaltar que tal circunstância potencializa o seu narcisismo, o que,
segundo Freud (1974, p. 90), seria propriamente “o complemento libidinal do egoísmo do
instinto de autopreservação, que, em certa medida, pode justificavelmente ser atribuído a toda
criatura viva”. A recordação maternal, os amores perdidos, os prazeres experimentados na
juventude e as alegrias da vida apontam para a efemeridade de idealizações que se rompem
pela própria evolução do circuito existencial do ser humano. Ao envolver o ego na trama
sorrateira do pulso vital, instaura-se a fragmentação psicológica proporcionada pelas inúmeras
projeções do eu, amparadas por Eros no decorrer do tempo:

Esse ego ideal é agora alvo do amor de si mesmo (self-love) desfrutado na infância
pelo ego real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo
ego ideal, o qual, como o ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor.
Como acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se
mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação de que outrora desfrutou. Ele não
está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando, ao crescer,
se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio
julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela perfeição, procura
recuperá-la sob nova forma de um ego ideal. O que ele projeta diante de si como
sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o
seu próprio ideal. (FREUD, 1974, p. 111)
64

Harry Haller depara-se contra sua imagem, mas o foco sobre si mesmo acarreta
múltiplas configurações imagéticas, e todas dizem respeito tão somente a ele:

E vi, durante um brevíssimo instante, o Harry que eu conhecia, mas com uma
fisionomia inusitada, de bom humor, luminosa e sorridente. Mal o reconheci, porém,
desfez-se em pedaços, dele saltando uma segunda figura, uma terceira e logo dez ou
vinte, e todo o espelho gigantesco estava cheio de Harrys e de fragmentos de Harrys,
infinitos Harrys, cada um dos quais eu olhava e reconhecia em um momento
instantâneo como um relâmpago. Alguns daqueles Harrys eram tão velhos quanto
eu, outros muito mais, alguns velhíssimos, outros muito jovens, rapazes, meninos,
crianças de escola, garotos, molecotes. Harrys de cinqüenta e de vinte anos corriam
e saltavam uns atrás dos outros, de trinta e de cinco anos, sérios e divertidos, dignos
e cômicos, bem vestidos e esfarrapados e também completamente despidos, e todos
eram eu mesmo, e cada qual era visto e reconhecido por mim e logo desaparecia
com a velocidade do raio, corriam em todas as direções, para a direita, a esquerda,
para o fundo do espelho e até saíam dele. (HESSE, 1995, p. 181)

A resolução, apesar de todo o pesar da personagem, leva-o ao encontro da harmonia


consigo mesmo, reconhecer-se sem restrições ou reservas frente ao espelho do tempo vence a
resignação de ter caminhado seu percurso quase inteiramente, o confronto humano cede lugar
à fantasia, ao sabor das recordações. Tudo o que foi vivido o acompanha como se fosse sua
sombra, a perseguir-lhe a cada passo:

Mesmo aqueles medianamente dotados, com o passar de uma centena de anos,


atingiriam a maturidade. Examinei Harry demoradamente no espelho: reconhecia-o
ainda, continuava ainda a parecer-se um tanto com o Harry de há cinqüenta anos,
que num domingo de março havia encontrado Rosa nos penedos e havia tirado
diante dela o boné de escolar. E, no entanto, havia envelhecido uma centena de anos
após isso, havia cultivado a música e a filosofia, lutara até não poder mais, bebera
vinho no Elmo de Aço e discutira sobre Krishna com homens de honesto saber.
Amara Erika e Maria, fora amigo de Hermínia, disparara contra automóveis e
dormira com a suave chinesinha; encontrara Goethe e Mozart e fizera alguns
buracos na rede do tempo e da realidade ilusória, na qual caíra prisioneiro. (HESSE,
1995, p. 211-212)

A tônica de O Lobo da Estepe é a busca de um refúgio existencial no humor enquanto


filtro de compreensão do devir da vivência humana em constante (des)construção, a projeção
de um espaço imaginário em particular através do qual as divagações orientadas conforme a
percepção do tempo de vida da personagem ganham ritmo performático e expressividade
cênica no ilusório palco de um delirante teatro mágico, a revisitação onírica do passado pelo
qual Harry Haller concede vazão a experiências desafiadoras e frenéticas, ora cobrindo a face
de Narciso sob a máscara do lobo, ora descartando esse selvagem artefato de disfarce para que
a fisionomia de seu rosto esteja em evidência. Espetáculo para os que vivem e adormecem
para continuar a viver. Espetáculo de sonhos só para loucos.
65

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaio sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996. (Tradução de Sergio Paulo Rouanet)

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de David Jardim. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

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de John Buchanan-Brown. Londres, Penguin Books, 1996.

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Freud. Volume XIV. Tradução de Themira de Oliveira Brito, Paulo Henrique Britto e
Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1974.

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Loureiro. In.: LOUREIRO, Ángel G. Suplementos Anthropos. La Autobiografía y sus
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Record/Altaya, 1995.

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Dotras. In.: LOUREIRO, Ángel G. Suplementos Anthropos. La Autobiografía y sus
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TRESIDDER, Jack. Dictionary of Symbols. San Francisco: Chronicle Books, 1998.


66

Espacio y Espectáculo: El encuentro con Romeu e Julieta (Grupo Galpão).


Marina Simone Dias (PPGAU-UFES)

Este artículo investiga la arquitectura teatral y el espacio escénico contemporáneo brasileño, a


través del trabajo y del lenguaje propio creado por el Grupo Galpão, de Minas Gerais. Los
conceptos de espacio y lugar, propios de la arquitectura, así como la semiótica y la
hermenéutica, son la base para el análisis de la tragedia Romeu e Julieta (Shakespeare, Grupo
Galpão) como lugar de encuentro y como experiencia vivida y compartida entre actores y
espectadores. Se analiza la obra desde el cruce entre Literatura, Teatro, Arquitectura y
Escenografía, observando como la organización, adaptación y transformación del espacio ha
generado un espectáculo teatral competente y fluido, que se apropia de los más diversos
espacios y arquitecturas, y se acerca a su público.

Palabras-clave: Teatro, Arquitectura, Escenografía, Romeu e Julieta, Grupo Galpão.

Abstract: This article investigates the theater architecture and contemporary Brazilian stage
space, through the work and language created by the Grupo Galpão of Minas Gerais. The
concepts of space and place, typical of architecture, semiotics and hermeneutics, are the basis
for analyzing Romeu e Julieta (Shakespeare, Grupo Galpão) as a meeting place and as lived
and shared experience between actors and spectators. The work is analyzed from the cross
between literature, theater, architecture and scenography, which, with its organization,
adaptation and transformation of space, has generated a competent and fluid show, which
appropriates the most diverse spaces and architectures, and about its audience.
Keywords: Theater, Architecture, Scenography, Romeo and Juliet, Grupo Galpão.

Prólogo: El espacio del espectáculo

Las interrelaciones entre las diversas artes visuales y las humanidades en la


posmodernidad en que vivimos –la sociedad del espectáculo1– es un tema que suscita una
amplia gama de reflexiones por su relevancia y actualidad. Pese a todas las innovaciones
tecnológicas que han revolucionado nuestras vidas, el arte y el teatro siguen vigentes. Para el
público contemporáneo, Romeo and Juliet sigue vigente. No sólo porque habla de amor –y de
poder, no hay que olvidarlo– sino porque nos invita a cuestionarnos y plantearnos infinitas
preguntas: ¿Por qué vemos la obra una y otra vez y deseamos que ese final trágico cambie,
que esa carta llegue y que los jóvenes no mueran? ¿Acaso quién no ha sentido amor? ¿Quién
no se ha visto atraído por lo prohibido? ¿Quién no ha luchado, o ha querido luchar, hasta las
últimas consecuencias por un deseo profundo? ¿Qué enamorado no ha encontrado obstáculos

1 DEBORD, Guy. La sociedad del espectáculo. Barcelona: Anagrama, 1999.


67

que volvieron más fuerte ese amor? ¿Por qué el amor ocupa un lugar tan primordial en
nuestras vidas? ¿Por qué juramos amarnos hasta que la muerte nos separe?

Está claro que el motivo principal que despierta el interés del espectador es no conocer
el argumento, y sobre todo, desconocer su final. En el caso de Romeo and Juliet, una de las
obras más populares de la historia del teatro y de la literatura, con diversas versiones
escénicas y cinematográficas –cuyo final trágico no ha sido alterado nunca–, lo que se busca,
a través de la resemantización del texto original y del trabajo intercultural, es revivir la
historia de los amantes de Verona. En la pluralidad de códigos que sostiene las redes textuales
presentadas por el espectáculo, cada signo creado o explorado por la puesta en escena, con sus
múltiples sentidos, es una invitación a la interpretación. Inmerso en un conjunto de estímulos
visuales, sonoros y cenestésicos, el espectador recibe una serie de códigos informacionales
que influyen en su experiencia estética. Como consecuencia de los estímulos recibidos,
provocado a interpretar incluso lo que no fue literalmente expresado, el espectador construye
el sentido de la obra, llenando sus lagunas. Así, la percepción ya es una interpretación, una
creación –estética, ética, política, psicológica, lingüística– del sentido del texto espectacular.
Además, se espera que cada nueva puesta en escena sea atractiva y le reserve al público
alguna “sorpresa” ideológica o estética, como es el caso del montaje del Grupo Galpão2.

En la praxis teatral contemporánea, el espacio es un elemento que juega importante


papel en la recepción del público. Desde las neovanguardias teatrales, el espacio ya no es
consecuencia directa del drama y ha abandonado su pasividad de espacio “a priori” o
“neutral” a ser rellenado. Hoy es dimensión compositiva de la puesta en escena, que construye
relaciones tanto físicas como psicosociales entre espectáculo y espectadores. En este sentido,
ya no se trata de estudiar la “caja teatral” como simple objeto arquitectónico, sino de
investigar cómo estas dos realidades –sala y escena, espacio del espectador y espacio del
espectáculo– se interrelacionan generando un elemento nuevo, que evoluciona de modo
continuo en el tiempo y en las sociedades y culturas, en concreto, en el Brasil contemporáneo.
Desde la mirada transdisciplinar y posmoderna, se ha planteado un abordaje innovador, que
estudia el espacio teatral y la escena como frutos de complejas e intensas relaciones.

2
El Grupo Galpão es una compañía de teatro creada en 1982, con sede en Belo Horizonte, Minas Gerais. Trabajan con
directores invitados y desarrollan investigaciones con varios elementos escénicos, con destaque para los lenguajes del circo y
la música en vivo tocada por los propios actores, y la “traducción” de varios clásicos al lenguaje brasileño. Montando
espectáculos de gran comunicación con el público, tiene su origen relacionado con el teatro popular y callejero. El grupo hace
giras no sólo por Brasil, sino también en el extranjero.
68

Propuestas como la del Grupo Galpão se libertan de algunas ataduras, abandonan los
espacios canónicos y se establecen en nuevas escenas3. La fuerza de este tipo de espectáculo
inserta el público en una nueva relación con el texto, el lugar y el sentido de la obra. Así,
el Romeu e Julieta del Galpão reclama no sólo la reelaboración de su texto dramático, sino la
concepción de un espacio escénico específico. Como consecuencia, el espectáculo no sólo
transita, sino se apropia de los más diversos espacios y arquitecturas, y se acerca a su público.

Romeu e Julieta fue montado, en principio, exclusivamente para presentaciones de


calle4, debido a la formación del grupo, al acceso a un público más amplio, a la comunicación
más directa y a las potencialidades dramatúrgicas que los textos espectaculares adquieren en
esos espacios. La disposición en teatro de arena, usada en las presentaciones callejeras
de Romeu e Julieta –herencia del circo-teatro– multiplica los puntos de vista, acerca actores y
público e intenta usurpar, a través de la ficción, el espacio real del espectador, cuestionando la
seguridad de un lugar desde el que se observa sin implicarse directamente. En esos espacios y
en esa disposición espacial particular, los actores se hallan en una “pista mágica”, con el
público a su alrededor. Y éste tiene la posibilidad de desplazarse, cambiar su punto de vista,
acercarse y buscar un mayor contacto con los actores y con el espacio escénico, en una
relación activa con el espectáculo. No sólo asiste la representación teatral, sino que forma
parte de ella.

En esas presentaciones en espacios urbanos, a la proximidad física y psicológica se


alía la identificación entre área de acción y área de espectadores, reforzada por la
imprevisibilidad de algunas escenas y por los diversos juegos de ruptura de la “cuarta pared”:
el espectador mantiene durante todo el tiempo la conciencia de estar delante de una
representación teatral, una vez que es bastante difícil “olvidar” el sitio relativamente
incómodo donde se está sentado, la proximidad de la presencia de los demás a su alrededor y
de los cuerpos de los actores delante de sí, además de las miradas de que también es blanco.
En la escena de la boda de Romeu y Julieta, por ejemplo, fraile Lourenço los bendice y,
literalmente, tira “agua bendita” en la “multitud de pecadores”, que suele asustarse y gritar.
En escenas como ésta, la percepción del público no es solamente visual, sino también
cenestésica. Al final del espectáculo, los personajes vuelven a ser individuos actores:

3
Que pueden ser espacios no convencionales, alternativos y urbanos. En una nueva disposición espacial y una ambientación
muchas veces inusitada, o apropiándose de lo urbano, el espacio se teatraliza.
4
Aunque posteriormente fue llevada en giras a diversos espacios teatrales, incluidos espacios teatrales canónicos. Cabe
observar que tras Um Molière imaginário (1997), el Grupo Galpão redirecciona su trayectoria en los montajes siguientes:
aunque no perdieron el carácter popular y cómico, entre otras herencias de la calle, son a la vez montajes concebidos para
espacios cerrados, donde el diálogo con el público ha tenido que asumir un formalismo más evidente.
69

comulgando con los espectadores, delante de éstos, ellos tocan sus instrumentos, cantan,
bailan y pasan la gorra.

El Romeu e Julieta del Grupo Galpão


El espectáculo Romeu e Julieta del Grupo Galpão fue montado con la dirección de
Gabriel Villela y guión de Carlos Antonio (Cacá) Brandão. Creada a partir de
intertextualidades, esta lectura de la tragedia aúna lo universal de Shakespeare, con lo local
del lenguaje sertanejo5 de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa6. El espectáculo
utiliza elementos del barroco mineiro7, de lo popular en su lenguaje escénico, así como el
erotismo y el humor como contrapunto a lo trágico de la obra. Es un Romeu e Julieta sensible,
local y contemporáneo, concebido como un espectáculo de calle, para ser presentado en
diversos espacios, a partir de la propia trayectoria saltimbanqui del Grupo Galpão. Al mismo
tiempo que en 1595-1596, Romeo and Juliet creó una nueva consciencia estética e ideológica
y reveló a Shakespeare como un dramaturgo popular y universal, el montaje del Grupo
Galpão, de 1992, creó su “estilo” y proyectó la compañía a nivel nacional –y poco tiempo
después, también internacional.

En Romeo and Juliet abundan las oposiciones, los elementos dispares, de tal forma
que la tragedia consigue unir los conceptos –aparentemente inconciliables– de libertad y
fatalidad. Desde el principio hasta el fin de la obra una serie de oposiciones articulan la
tensión dramática de la tragedia: Capuleto/Montesco, amor/odio, vida/muerte, día/noche,
boda/funeral, impulsividad/conveniencia, entre otros, espacializados en la escena. Lo trágico
de la obra reside en que lo que podría haber sido una comedia con un final feliz y se convierte
en lo que realmente es: una tragedia lírica que ha cruzado los siglos y perdura en nuestras
vidas. Así, la obra parece sugerir que en la vida hay una compleja interacción entre
situaciones contradictorias, opuestas y yuxtapuestas y que todo puede estar dentro de una
doble moral. Nada más contemporáneo y posmoderno que Romeo and Juliet.

Llama la atención esa mezcla de géneros de la obra: posee elementos de épica,


comedia y drama romántico. Además, durante toda la tragedia persiste la ambigüedad y la

5 Sertanejo: típico del interior de las regiones norte y nordeste de Brasil.


6 João Guimarães Rosa (1908-1967) fue médico, escritor y diplomático brasileño, de Minas Gerais, autor de novelas y relatos
breves en que el “sertão” es el marco geográfico y cultural de la acción. Fue miembro de la Academia Brasileña de Letras, y
su obra más influyente es Grande Sertão: Veredas (1956).
7 Romeu e Julieta se estrenó en el atrio de la iglesia de São Francisco de Assis, en Ouro Preto (MG), en septiembre de 1992.
70

indeterminación, todo coexistiendo dentro de una estructura ágil, con un ritmo intenso y
vertiginoso, que va en un crescendo de tensión y nos mantiene “pegados a la butaca”, hasta
llegar agotados al final, con un “nudo en la garganta”. Como en un guión de cine de lo más
actual, tres tramas distintas –el enamoramiento de los jóvenes, la pelea callejera y el
casamiento concertado por Capuleto– avanzan por separado para rápidamente cruzarse y
determinar el destino de los protagonistas. Así, el uso de una elaboradísima retórica, al lado
del lenguaje obsceno popular y del tono profético-oracular, característico de la tragedia,
confieren a la obra una plasticidad estilística que dificulta encerrarla en conceptos
tradicionales.

En el montaje, se recupera el valor de la palabra, así como el rol de lo plástico y


visual. A partir de la creación conjunta y prácticamente simultánea del texto dramático
(guión) y de la escena, ocurre una lectura simétrica del espacio dramático en la
materialización de los espacios escénico y teatral. En Romeu e Julieta, la utilización del
espacio urbano –plazas y parques– como espacio teatral se origina y se legitima en las propias
referencias espaciales presentes en el texto dramático. En una tragedia en la que se cuestiona
el orden social, convirtiéndose en el leitmotiv de los conflictos que ocurren en las calles y
plazas de Verona –la riña inicial, los asesinatos de Mercucio y Teobaldo, y el destierro de
Romeu– el espacio público, con su amplitud y diversidad, es el propio espacio escénico-
teatral que, abarcando actores y público, establece nuevas interrelaciones entre ellos y
estructura el argumento de la obra.

Desde la concepción espacial, la furgoneta fucsia de la compañía fue explorada al


mismo tiempo como espacio y elemento escénico central, convirtiéndose en una versión
contemporánea de las antiguas carrozas de las troupes ambulantes y recuperando el carácter
de celebración de las representaciones en espacios públicos8. Además de colaborar para la
creación de su atmósfera específica –la inestabilidad del orden social y el conflicto público–
aun proporciona al espectáculo una lectura popular y contemporánea, apenas preocupada con
aspectos de verosimilitud, y más atenta a la estética y al sentido presentados al público. El
tiempo efímero y veloz de la acción –los cuatro días que deciden el destino de los amantes–,
se desenvuelve en un espacio reducido. La furgoneta, con el picadero que la circunda,
representa todos los espacios de Verona –calles, plaza, palazzo de los Capuleto, celda del
fraile Lourenço– y se resemantiza a cada escena. Sea en espacios públicos, sea en espacios
canónicos de representación teatral, la imprevisibilidad del uso y las inversiones espaciales

8 BRANDÃO, Carlos Antonio Leite. Grupo Galpão – 15 anos de risco e rito. Belo Horizonte: O grupo, 1999. p.27-30.
71

posibilitadas por la manipulación del espacio de la furgoneta enriquecen la experiencia


estética y la percepción espacial del público, como descrito a continuación.

Esa escena flexible se asemeja al espacio desnudo del teatro isabelino en la medida
que ambos presentan formas abiertas que moldean el espacio dramático a partir del
espectador. El montaje, concebido en torno a la utilización de la vieja furgoneta del grupo
como elemento escénico principal, elabora los múltiples significados del automóvil. La
construcción y modificación del espacio escénico del montaje lo desplaza de su sentido
original y produce extrañamiento en el público, pues la propuesta subvierte su propio valor
semántico, normalmente asociado a la calle y al movimiento. Subversión todavía mayor
ocurre en las presentaciones sobre escena italiana (o incluso isabelina9), pues es aún más
inusitada la visión de un coche dentro de un teatro y sobre la escena. Al mismo tiempo, en
esta configuración, contra el telón de fondo azulado, la furgoneta se teatraliza, pues su
volumen tridimensional cede lugar a su valor estético como imagen bidimensional.

Sin embargo, antes de buscar la representación mimética del espacio dramático, la


furgoneta ofrece un conjunto de planos, pasarelas y escaleras que sirven a la evolución de los
actores. Una plataforma colocada sobre la capota del vehículo representa el lugar de
encuentro de los protagonistas, o aun las calles de la ciudad, mientras que su interior
corresponde a la habitación de Julieta. En los laterales, escaleras conducen a la plataforma o a
una especie de torre en cuyo alto se instalan el enorme parasol colorido y el Narrador, y que
aun sirve de escondrijo al encuentro de los jóvenes que, entonces, permanecen alzados en el
aire, a la misma altura de los elementos cósmicos.

9 Utilizando los más diversos espacios teatrales, en julio de 2000, el Grupo Galpão presentó su Romeu e Julieta (en
portugués) en la escena isabelina del Globe Theatre, en Londres, Inglaterra.
72

Figura 1: Espacio y elemento escénico. Foto: Guto Muniz [Grupo Galpão], s/d.

Su paradójica neutralidad posibilita, aun, flexibilidad en la ambientación y velocidad


en el cambio de escenas, como por ejemplo en el paso de las calles de Verona (sobre el
vehículo o en el suelo) o de la habitación de Julieta (dentro o sobre la capota) a la celda del
fraile Lourenço (en el suelo). De este modo, las escenas se encadenan sin que sea necesario
nada más que una simple indicación textual o escénica. En contrapartida, la dramaturgia
propuesta permite también la utilización de la furgoneta en la representación simultánea de
dos escenas: cuando la nodriza va en búsqueda de Romeu, por ejemplo, Julieta espera su
regreso sentada en un taburete sobre el maletero abierto del vehículo; en la plaza de Verona,
Romeu y la Nodriza se encuentran. La proximidad espacial permitiría que Julieta viera tal
cita; sin embargo, se trata de la representación simultánea de diferentes espacios dramáticos
en un único espacio escénico.

Es interesante notar que el uso del vehículo contraría su valor semántico en escenas
como la en que la Nodriza lo “conduce”, pues la furgoneta permanece inmóvil. Su único
movimiento ocurre en la escena de la falsa muerte de Julieta: inesperadamente, sin ningún
conductor visible, el coche se desplaza y hace hueco para que el público pueda ver Julieta en
su sepulcro. Sobre un pórtico de madera formado por dos escaleras laterales, ella yace
sacralizada en su vestido blanco, que contrasta con el horizonte del paisaje urbano, o contra el
fondo azulado10 de la madrugada del jueves. En la unión con el horizonte y el infinito, se

10
Fondos escénicos de las presentaciones en espacios públicos y en espacios teatrales convencionales, respectivamente.
73

percibe la desolación de su historia de amor. En esta misma escena, ocurre una de las diversas
inversiones espaciales propuestas por la puesta en escena: Julieta, al fondo del área escénica,
yace sobre el pórtico, a dos metros de altura del suelo, mientras sus padres la velan,
sentados, debajo del mismo pórtico. Durante su funeral, cantando y llorando, con sus
paraguas abiertos, todos caminan en dirección al público, mirando la cruz de Julieta, clavada
en la lata de aceite decorada. La cruz asume, en este momento, el significado de la muerte y
adquiere mayor importancia que el
propio cuerpo de Julieta.

Figura 2: Funeral de Julieta. Foto: Guto Muniz [Grupo Galpão], 2002.

En los juegos de oposiciones de Romeo y Julieta, Shakespeare crea un juego


dialéctico, elevando los lectores/espectadores11 a lo sagrado y a lo metafísico y, enseguida,
tirándolos de vuelta a lo psicológico, a lo humano, al suelo. En la transposición
intersemiótica, Villela/Galpão integran elementos del cielo y de la tierra y crean el “circocéu
de Romeulua e Estrelajulia”. Estos elementos cósmicos capaces de influir en las acciones
humanas y conducir el destino de los protagonistas, al mismo tiempo que signos del torbellino
político y social, son leídos por el público a través de la materialización semiótica, que revela
el discurso ideológico de la obra. Mientras la pareja de amantes dialoga con el cosmos a
través de una “inconstante” luna de papel de plata, colgada de una caña de bambú, que se
acerca y se aleja con el llamado de los protagonistas, la dimensión de lo real está presente en

11Aunque “leemos” obras de Shakespeare, él nunca escribió una sola obra dramática como tal, sino que escribió guiones para
sus puestas en escena.
74

el círculo, trazado en el suelo con harina de trigo, que delimita el espacio escénico12. Las
flores de plástico –en latas de aceite decoradas y con hojas naturales de helecho– constituyen
el elemento escénico que integra visualmente la escena. En los ramos de flores dispuestos
sobre la furgoneta y en el contorno del área escénica, rosas artificiales blancas y rojas
simbolizan a la vez pureza y pasión. Juntas, como aparecen en escena, denotan la muerte13.
Así, el espectáculo materializa la relación dialéctica shakespeariana entre el cosmos y el
mundo físico, que alcanza su síntesis en el trágico destino de los héroes.

Figura 3: Luna de Romeu y Julieta. Foto: Guto Muniz [Grupo Galpão], 2002.

Esta relación entre lo sublime y lo terrenal se hace visible también a través del
movimiento de los actores en el espacio escénico. El contraste entre horizontalidad y
verticalidad se revela en la manera cómo se utiliza la furgoneta. Los actores suben, bajan y se
desplazan entre las tres escenas/tablados: el capó, la capota y el maletero abierto. Ellos actúan
sobre, dentro y delante del vehículo, y también a su alrededor. Las escaleras usadas en el
espacio escénico, además de proporcionar dinamicidad, dan la dimensión vertical, así como
los zancos, las cañas de bambúes con la luna que componen la intimidad de los protagonistas,
y aun el grande y viejo parasol colorido. Éste, además de referenciar el circo y lo ambulante,
corona el mundo narrado por Shakespeare14.

12
En presentaciones de calle, la escena, el lugar de la ficción, es el círculo que busca referencias en el lenguaje del circo-
teatro y conjuga circo y arena. BRANDÃO, Carlos Antonio Leite. Grupo Galpão: Diário de montagem. Romeu e Julieta.
v.1. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. p.30.
13 Cf. COOPER, J. C. Diccionario de símbolos. Barcelona: Gustavo Gilli, 2000. p.81.
14
BRANDÃO, Op. cit., 1999, p.98.
75

Figura 4: Escalera de la fiesta de los Capuleto. Figura 5: Escalera del encuentro de Romeu-Julieta.
Foto: Guto Muniz [Grupo Galpão], 2002. Foto: Guto Muniz [Grupo Galpão], 2002.

Figura 6: Escalera de Romeu y fraile Lourenço.


Foto: Guto Muniz [Grupo Galpão], 2002.
76

Respecto a la composición del espacio escénico, cabe observar que algunos signos
plásticos adquieren tal fuerza que llegan a prescindir de referente textual. En el texto original
de Shakespeare, en el prólogo al Acto I, el Coro aclara:

CORO – [...] Dessas duas familias que o odio afasta


Implacavel, nasceu um par de amantes
Cuja má sorte, tragica e nefasta,
Levou a paz ás casas litigantes.
Desse odio de familia e seus extremos,
E o infausto amor, que ainda ao morrer, mais forte
Do que o odio, sepultou o odio na morte [...]1

En cambio, en el montaje del Grupo Galpão, el omnipresente Narrador no revela de


entrada el desenlace de la tragedia. Tampoco es necesario: la propia escena y el
espacio muestran lo que no está dicho. Desde el inicio y a lo largo de toda la obra, el público
ve el destino de la pareja de amantes trazado a tiza en el suelo: la silueta de los protagonistas,
a moda de las películas policíacas estadounidenses. La necesidad de condensar la narrativa
shakespeariana en una nueva estructura temporal2 también lleva al prenuncio del fatal
desenlace: éste es acentuado por cruces de madera clavadas en latas de aceite decoradas,
delante de cada silueta. Los epitafios pintados en las cruces tampoco dejan dudas cuanto al
destino de los protagonistas: “Romeu Montecchio 1596-2002” y “Julieta Capuleto 1596-
2002”, cuyas fechas hacen referencia simultáneamente a la época de producción de la obra de
Shakespeare y a la presentación del Grupo Galpão3. Como en la concepción narrativa
de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, el fin ya está en el principio. Las
extremidades de la espiral propuesta por el guión de Brandão se funden en la conciliación del
conflicto. Romeu y Julieta, sobre los contornos de sus cuerpos y delante de sus cruces,
mueren cogidos de las manos.

1
SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Rio de Janeiro: Ed. Ministério da Educação e Saúde, 1940. Prólogo, p.19.
2 La obra dramática original tiene aproximadamente cuatro horas de representación, mientras que el montaje del Grupo
Galpão tiene poco más de una hora de duración.
3 Estos datos se refieren a las presentaciones de noviembre de 2002, en la Praça do Papa, en Belo Horizonte, Minas Gerais.
77

Figura 7: Muerte de Romeu y Julieta. Foto: Guto Muniz [Grupo Galpão], 2002.

En otros momentos de la representación, como en la “escena del balcón”, es posible


notar que lo efímero, la limitación del espacio y las dificultades impuestas por el ambiente
condicionan la lectura del espacio escénico y su consecuente espaciamiento. La ciudad, el
jardín y los muros son todos ellos hostiles a la unión de la pareja. Sin embargo, a pesar de las
adversidades, el amor prospera, se eleva a las estrellas, disipa el horror y desafía todo que
desdeña de su constancia. Romeu y Julieta están ciertos en desafiar el tiempo y las
circunstancias: el mundo está equivocado. En este primer encuentro de los jóvenes a solas, las
indicaciones escénicas del texto de Shakespeare definen el lugar de la acción dramática tan
sólo como: “el pomar de Capuleto”, en ningún momento se menciona la palabra “balcón”. Sin
embargo, la “escena del balcón” es hoy en día el principal icono escénico de los montajes
de Romeo and Julieta.
Verona. O pomar de Capuleto.
Romeu aparece.
ROMEO – Ri-se da cicatriz quem nunca foi ferido.
Julieta aparece á janella.
Mas, silencio! Que luz será aquella
Que brilla na moldura da janella?
Ó janella, ó janella! és o nascente
E Julieta o sol resplandescente!4

De hecho, en oposición a la ausencia de la palabra “balcón”, “ventana” es expresa


cuatro veces en Shakespeare. Por lo tanto, a partir de la “fidelidad” al propio texto dramático,
el montaje del Galpão explora la ventana de la furgoneta como signo semiótico. Jugando con
4 SHAKESPEARE, Op. Cit., II, ii, p.72.
78

los signos textuales, surgen inversiones espaciales: Romeu es quien está físicamente en un
plano superior. Desde la capota, él se declara a Julieta, que está abajo, en la ventana del
vehículo. Ésta, sin embargo, al verse sorprendida en su secreto, se asusta:

ROMEO – [...] Não me chames Romeu... mas sim o Amor!


JULIETA – Uuuiii!!!5 (cierra rápidamente su ventana)
Romeu pica el cristal, llamándola: “Abre!”. Julieta abre pocos centímetros de su ventana:
JULIETA - Como pudeste vir até aqui?
Os muros do pomar são altos e difíceis de escalar!6

Figura 8: Escena del "balcón". Foto de la autora, 2002.

En este momento, a través de los signos verbales, el público se sitúa en el pomar de los
Capuleto. La imagen de “muros altos y difíciles de escalar” se traduce en términos de
verticalización del espacio escénico. En lo alto de la escalera, sobre el capó del coche, los
jóvenes se encuentran e intercambian sus promesas de amor: equilibrándose sobre zancos,
Romeu le toca a Julieta –le “pide el pie” a Julieta– y los jóvenes se besan por primera vez.

5
BRANDÃO, Op. Cit., 1992, X, A cena do balcão.
6 Ibid. X, A cena do balcão (grifo nuestro)
79

Figura 9: Romeu le pide el pie a Julieta. Foto: Guto Muniz [Grupo Galpão], 2002.

Rehusando lecturas clásicas de la “escena del balcón”, la puesta en escena del Galpão
saca el máximo partido de la furgoneta como elemento estructurante, sin imponer al
espectador una imagen estereotipada de la escena. Al ofrecer una nueva comprensión de la
concepción espacial –de hecho, poco definida por Shakespeare– la puesta en escena subvierte
sensiblemente las representaciones canónicas de la obra y rescata para el público una visión
renovada y, paradójicamente, fiel del texto original.

Figura 10: Boda de Romeu y Julieta. Foto de la autora, 2002.

Epílogo
80

Disertar acerca de la obra más representada y versionada de Shakespeare puede ser un


ejercicio interminable. Romeo and Juliet lleva siglos enseñando a generaciones el amor más
puro: que sobrevive a las muertes de los amantes y donde la vida se reconcilia en la muerte.
Como si la vida imitara el arte, el Grupo Galpão quiso crear y cautivar a un público propio,
acercando la historia a su realidad local, superando tragedias personales7 y revelando su amor
a la vida y al teatro. Su originalidad consiste en montar la obra desde otro lugar de
enunciación e inserción cultural, a partir de nuevas referencias, nueva estética e ideología, y
para otro público. Cuatro siglos después de Shakespeare, el Galpão presenta una lectura
estética propia que reelabora el contexto isabelino, así como la cultura de Minas Gerais, con
sus complejidades e idiosincrasias, y que logra reaproximar la obra original de los
espectadores contemporáneos.

Se observa aún que el espacio puede ser hoy un elemento escénico de gran potencial:
mediador entre los diversos sistemas semióticos, entre las escenas del espectáculo y entre
espectáculo y espectadores. El espacio escénico ya no es una mera tarima o decorado, sino
una entidad que cuestiona modelos canónicos y estereotipados, una propuesta en la que se
puede leer una poética, una estética y una crítica de la representación. Finalizada la
representación, el público deja el espacio tras haber vivido un momento único e irrepetible,
que lo instiga a una nueva comprensión de su propio lugar sociocultural y de su relación con
el mundo. También el texto indaga del espectador su propia vida, a partir de su experiencia
individual, personal. Después de Romeo and Juliet, el amor ya no puede ser el mismo. Merece
la pena haber vivido y sufrido: el amor nos hace inmortales. Es la catarsis shakespeariana y
posmoderna.

Figura 11: Actores pasan el sombrero. Foto de la autora, 2002.

7La actriz que representaba el papel de Julieta, Wanda Fernandes, esposa del actor que hacía Romeu, Eduardo Moreira,
murió en un accidente automovilístico con la furgoneta, en abril de 1994.
81

Orfeu da Conceição: tragédia ou melodrama? A dramaturgia rapsoda de


Vinícius de Moraes.
Glauco Cunha Cazé (PPGL-UFPE)

Resumo: Este artigo apresenta um estudo sobre o texto teatral Orfeu da Conceição (1956), de
Vinícius de Moraes; analisando as relações entre os gêneros tragédia e melodrama, bem
como as representações do mito na modernidade e a ideia de um teatro rapsodo
intuitivamente praticado pelo dramaturgo carioca do século XX.
Palavras-chave: Vinícius de Moraes, Orfeu da Conceição, Dramaturgia, Trágico e Tragédia.

Abstract: This article presents a study on Vinicius de Moraes theatrical text Orfeu da
Conceição (1956), and analyzes the gender relations beetween tragedy and melodrama, as
well as the representations of the myth in the modernity and the idea of a rhapsode theater
intuitively practiced by this 20th century carioca playwright.
Keywords: Vinicius de Moraes, Orfeu da Conceição, Drama, Tragedy and Tragic.

1. Orfeu da Conceição: contatos com o outrora.

Poderia um homem escrever a


palavra “tragédia” sobre uma página em
branco sem escutar, atrás de si, a imensa
presença da Oréstia, de Édipo, de Hamlet e
de Rei Lear?"
George Steiner

De uma fortuna crítica ainda aquém de suas potencialidades, a dramaturgia de Marcus


Vinícius da Cruz de Melo Moraes (1913-1980) reclama, por gravidade, por excelência, a
presença imperiosa deste poeta do amor maior quando na feitura majoritária de um teatro em
versos; não obstante o contato com o gênero dramático ter se dado antes mesmo da publicação
de seu primeiro livro de poesias, O Caminho para a Distância, de 1933, quando o autor
escreve, ainda em 1927, o texto Os Três Amores, uma imitação de A Ceia dos Cardeais
(1902), de Júlio Dantas.
O alargamento de sua pulsão teatral se faz, em seguida, com os textos, Cordélia e o
Peregrino (1936), Orfeu da Conceição (1956), As Feras: chacina em Barros Filho (1961),
Procura-se uma Rosa (1962), Pobre Menina Rica (1963/65)1, Ópera do Nordeste (adaptação

1 Comédia musical incompleta feita em parceria com Carlos Lyra.


82

musical de Dom Quixote) tragédia musical em dois atos2, com canções do próprio Vinícius e
de Baden Powell, além de outros projetos em dramaturgia que por motivos diversos foram
interrompidos, a exemplo de Gilda e Ela, Uma Rosa nas Trevas (tragédia), Três Mulheres,
História de Maggy, O Gigante sentado no penico (tragicomédia), Blim ou as aventuras de um
playboy marciano na terra, A Perna Ortopédica, As Moreninhas (adaptação no plural do
célebre romance de Joaquim Manuel de Macedo), Ganga-Zumba (tragédia lírica) e uma
adaptação de O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry. Seu exercício teatral de maior sucesso é,
notadamente, Orfeu da Conceição (1956), premiado no Concurso de Teatro do IV centenário
da cidade de São Paulo.
Uma das marcas mais contundentes de Vinícius de Moraes, seja como dramaturgo,
poeta ou músico, é a construção equânime de uma justaposição tradição/modernidade que o
caracteriza como um autor filiado a conquistas modernas, ainda que de gestos largos para com
o passado. Entretanto, este consórcio temporal intencionalmente equilibrado, percebido no
cerne de grande parte da produção cultural de Vinícius, perde, em alguns textos, o
nivelamento característico e passa a dialogar com mais entusiasmo, ora com a tradição, ora
com a modernidade. Esta desarmonia é notada, de forma particular, em sua dramaturgia, de
maneira especial nos textos classificados como tragédia, a exemplo de Orfeu da Conceição,
onde o autor realiza uma imersão quase que absoluta na tragédia grega; ou como no texto As
Feras: chacina em Barros Filho, de 1961, em que há um diálogo mais afinco com a
modernidade que é, de fato, contemporânea ao dramaturgo. Vinícius de Moraes escreveu
ainda, adjetivando como tragédia, os textos Uma Rosa nas Trevas, História de Maggy e
Ganga-Zumba, além das já citadas As Feras: chacina em Barros Filho (tragédia pau-de-arara)
e Orfeu da Conceição (tragédia carioca), corpus deste estudo.
Considerando a impossibilidade de reprodução dos signos de uma tragédia ática em
pleno século XX, qual o entendimento de tragédia ou mesmo de trágico, para um escritor
inserido na modernidade como Vinícius de Moraes que insiste, como no caso de Orfeu de
Conceição, em plasmar a aura da tragédia grega a despeito de todo um desconchave
contextual?
A bem da verdade, não há por parte do dramaturgo Vinícius de Moraes a obrigação de
enquadrar seu texto teatral nos moldes da tragédia grega, tão somente por ter atribuído a sua
peça o subtítulo de tragédia. Nem há por parte desta análise ao texto teatral Orfeu da
Conceição um forçoso policiamento no sentido de tornar esta filiação trágica obrigatória, à

2 Original datilografado e incompleto.


83

revelia do dramaturgo. Outros autores do teatro moderno brasileiro usaram a expressão


tragédia para alcunhar suas iniciativas teatrais, a exemplo de Nelson Rodrigues, que trabalhou
em demasia a expressão tragédias cariocas sem que, com isso, tenha intentado
correspondência com Eurípedes, ou aguçado questionamentos que tenham a pretensão de
validar, por aproximação ou distanciamento ao modelo clássico de tragédia, sua dramaturgia3.
Entretanto, o que se apresenta como um dos pontos mais significativos nesta análise ao
texto de Vinícius de Moraes, é o fato de, diferente de seus pares que, as mais das vezes,
lançaram mão do termo tragédias cariocas no sentido de mau fado, desgraça, infortúnio, não
reavivando necessariamente laços temporais entre o texto contemporâneo e o modelo grego
do passado; o poeta da paixão, em esforço inverso, constrói seu Orfeu da Conceição se
servindo de um protagonista negro de modelo grego, de um coro de viés clássico, de nomes
mitológicos que caracterizam suas personagens, de um enredo lendário, de um modelo
estrutural clássico no uso majoritário da poesia, além de fazer usufruto da aura heroica e
mítica de uma personagem historicamente cultuada: o próprio Orfeu. Ou seja, escreve seu
texto convocando o modelo trágico do passado ao proscênio de suas intenções dramatúrgicas;
o que faz com que Orfeu da Conceição seja visto, a princípio, como uma tentativa de reedição
do modelo grego de tragédia, ainda que esta tentativa não seja, efetivamente, corroborada pelo
autor.
O passado, por certo, é uma junção de discursos que não podem ser vistos como
acabados. O passado contamina o presente e ajuda a projetar o futuro. Mas o passado não
pode ser, segundo George Steiner, “uma luva na qual o modernismo pode deslizar quando
quer” (2006, p.187). De acordo com Steiner:

O drama literário moderno voltou-se para a mitologia antiga


em uma escala massiva. Cada registro do teatro trágico
contemporâneo se lê como uma cartilha de mitos gregos: Antígona,
Medeia, Electra, Édipo, Orfeu... [...] A tentativa de deslizar em
máscaras antigas, implica na consciência de que nenhuma mitologia
criada à época do empirismo racional se equipara ao antigo poder
trágico ou em forma teatral (2006, p.184).

Por ser, a tragédia grega, uma referência de mobilização, de concentração da


consciência coletiva, o retorno a essa modalidade teatral como uma possível tentativa de
sensibilizar a turba de uma modernidade inquieta e fracionada, pode justificar, em parte, esse

3É bem verdade que em algumas obras do dramaturgo Nelson Rodrigues, a exemplo de Senhora dos Afogados, as marcas de
contato com o modelo de tragédia grega se fazem mais evidentes e intencionais.
84

interesse por sucessivas reedições desse modelo de tragédia. A iniciativa de plasmar a


essência trágica de um passado de inquestionável força dramática em Orfeu da Conceição
reforça o que Steiner aponta como entendimento, no caso, por parte do dramaturgo brasileiro
(e de outros que assim o fizeram), da funcionalidade dessa força dramática do ontem. O
reaproveitamento do antigo exemplo trágico, também consoante Steiner, não deve ser
soerguido de qualquer maneira, sob pena de configurar-se tão somente patética a iniciativa. O
próprio gênero literário não deve ser visto como algo terminantemente atemporal, como algo
disponível à adaptação a todo e qualquer tempo. A tragédia sinaliza um momento espiritual do
homem grego e responde, tanto temática quanto formalmente, ao horizonte de expectativas de
uma dada época e de uma dada cultura que devem ser consideradas.
O desejo pela representação de uma tragédia, em Vinícius, não é suficiente para fazer
valer a intenção de reeditar com sucesso um modelo de gênero datado e marcado por
inúmeras particularidades. Esta impossibilidade de representação ipsis litteris da tragédia
grega se dá, entre outras coisas, pela presença do patético (como adverte Steiner) na
ressignificação de um mito que, em Orfeu da Conceição, apresenta-se transfigurado e
incompleto.

1.1. Da incompletude do ser... Mito!

“No novo quadro do jogo


trágico, portanto, o herói deixou de
ser um modelo; tornou-se para si
mesmo e para os outros, um
problema.”
Jean-Pierre Vernant

Mito, alma da tragédia. Construto dramático. Princípio e finalidade. Epigênese de um


todo destinado a proporcionar, no seio da tragédia, os princípios catárticos do terror e da
piedade, segundo reflexões de Aristóteles4. Os temas trágicos provêm dos mitos. As
considerações sobre Orfeu da Conceição e sua eventual ineficiência ou incapacidade de se
fazer tragédia stricto sensu começam pela incompletude de um herói, de revestimento mítico,
incapaz de reivindicar-se como alma de uma proposta trágica de verniz grego, com a qual
Vinícius de Moraes busca contato inicial para a construção de seu texto.
A amistosidade que caracteriza a personalidade do Orfeu carioca ao longo do texto
(culminando numa demência comportamental), não contribui para uma atitude mais
4 Em A Poética, provavelmente registrada entre os anos 335 a.C. e 323 a.C.
85

imperiosa, latitudinal, responsável como necessário gatilho, para o despertar trágico defendido
por Aristóteles.
Se o amparo mítico foi de todo fundamental para reconstruir a história de amor
malfadada entre o músico da Trácia e sua bela ninfa Eurídice, é de se esperar, pelo
encaminhamento temático costurado pelo dramaturgo a partir da escolha do título de sua peça,
que o Orfeu brasileiro, revestido de tragicidade como o convém, fosse, em suas peripécias no
ambiente da favela, seguir uma combinação de protocolos que tivesse início com uma -
indispensável ao todo - falha trágica5. O que acaba não acontecendo, ou acontecendo de
maneira diminutíssima, parcial, distante da força preponderante que uma consubstancial falha
trágica, precursora de um sinistro, propõe estabelecer.

(Riem gostosamente. Depois novamente se abraçam, mas desta vez


com infinita ternura.)
ORFEU (beijando a namorada)
O meu amor tão bom... Meu bem... Meu bem...
EURÍDICE
Diz que mulher tem alma de gato. Tem.
(Riem mais, abraçados. Depois Eurídice desenlaça-se.)
ORFEU
Já, neguinha?
EURíDICE
É preciso, meu amor...
Preciso dar uma chegada em casa
Ver mamãe.
ORFEU
Vê se volta, por favor...
Tenho um sambinha novo pra mostrar
E quem sabe se até você voltar
Não sai outro...
(MORAES, 1995, p.67)

Durante todo o primeiro ato da peça, as cenas de encontro e despedida entre o casal da
história, a exemplo do que é visto no excerto acima, sugerem soluções frágeis de antecipação
ao desastre, na narrativa. As idas e vindas da personagem Eurídice (preciso dar uma chegada
em casa) é que estabelecem os momentos imbricados de amor e morte, presentes ao longo do
texto. Tirante os momentos de comunhão entre o par, percebidos nas rubricas em destaque
(sorrisos e abraços), um Orfeu estático (Vê se volta, por favor...), apesar do ato contínuo de
compor e tocar seu violão, é o que se vê, em mais de uma cena, na relação do mítico casal de

5Hamartía: erro cometido pelo personagem de uma tragédia que resulta na peripécia. O termo aparece na Poética de
Aristóteles, por isso também é conhecida pelos nomes de falha aristotélica, erro trágico ou falha trágica.
86

Orfeu da Conceição. Preocupação consistente, por parte dos autores trágicos do passado, era
com o encadeamento dos acontecimentos, das personagens e das suas motivações. Além do
deslocamento do herói que precipitava a nevrálgica ação trágica. Preocupação, aparentemente
menos presente no texto do escritor brasileiro.
Em outro excerto, semelhante em muito ao acima mencionado, tem-se o momento
fatal entre a despedida dos amantes, depois da primeira e única noite de amor, e a investida da
personagem Aristeu contra a então desprotegida Eurídice. Trata-se do momento primordial à
separação amorosa do casal protagonista. A partir de então tem-se o sofrimento de Orfeu a
clamar por sua amada morta. George Steiner faz lembrar que “o herói trágico é responsável.
Sua queda está relacionada à presença da enfermidade moral ou do vício ativo dentro de si”
(2006, p.127). Entretanto, esse desvio de conduta que na tragédia responsabiliza o herói pela
precipitação dos acontecimentos catastróficos, não se faz presente na personalidade do Orfeu
da Conceição.
A hybris (desequilíbrio interno do caráter do herói), definição grega para tudo o que
passa da medida, descomedimento, confiança excessiva, orgulho exagerado, presunção,
arrogância ou insolência, que com frequência termina sendo punida, acaba não sendo
localizada nas atitudes do protagonista de Orfeu da Conceição. O homem constantemente
tentado a manifestar sua hybris, que por sua vez engendra a hamartia6, tem nas suas próprias
mãos e ações a mola para a efetivação do destino. Todavia, a única “falha” de colaboração
trágica duvidosa cometida pela personagem Orfeu, como se percebe no texto, resume-se ao
fato de o herói não ter acompanhado sua amada até em casa, deixando-a à mercê de uma noite
obscura e cheia de mistérios, como acentuam as didascálias, que enfatizam sobremaneira a
presença da morte, personagem da Dama Negra. Albin Lesky, em A Tragédia Grega, defende
que

a autêntica tragédia está sempre ligada a um decurso de


acontecimentos de intenso dinamismo. A simples descrição de um
estado de miséria, necessidade e abjeção pode comover-nos
profundamente e atingir nossa consciência com muito apelo, mas o
trágico, ainda assim, não tem lugar aqui. (2006, p. 36)

O dramaturgo brasileiro acaba por apequenar a importância de uma hamartia no


comportamento de seu protagonista (fundamental para a estrutura trágica de concepção

6Entenda-se a hybris como pré-disposição inicial ao erro: postura patológica que favorece a interferência divina, como se
verá mais adiante, na ação destrutiva realizada pelo homem. Enquanto que a hamartia caracteriza-se pela própria ação
efetiva. O erro sendo executado.
87

grega), quando disponibiliza por meio de um texto econômico, uma atitude menos nobre por
parte de um herói enamorado.
A morte de Eurídice, no rastro do tema original como quer o dramaturgo brasileiro, é
fundamental para o desenvolvimento da história. A companhia de Orfeu, levando-a em casa,
por certo não significaria a garantia de um crime abortado, porque necessário ao enredo. Mas
contribuiria desta feita (num eventual confronto com o algoz) para uma movimentação cênica
que diminuísse o comportamento opaco, pouco atencioso desse protagonista que, agindo
como agiu (ou não agiu), torna-se o único responsável pelo surgimento de uma tristeza que o
dominará a partir de então, sem que esse mesmo protagonista tenha contribuído de maneira
direta, grandiosa, verdadeiramente trágica, em sentido grego, para o martírio estabelecido 7.
Segundo Albin Lesky, “o sujeito do ato trágico [...] deve ter alçado à sua consciência
tudo isso e sofrer tudo conscientemente. Onde uma vítima sem vontade é conduzida surda e
muda ao matadouro não há impacto trágico.” (2006 p.32) O Orfeu da Conceição,
inadvertidamente, é transportado da alegria à dor sem que uma ação suscite terror e piedade,
não obstante as cenas de dores, ferimentos e mortes admitirem filiação aos temas da tragédia.
Ainda em sua Poética, amparo fundamental a esta análise, Aristóteles adverte:

Como a estrutura da tragédia mais bela tem de ser complexa e


não simples e a ela deve consistir na imitação de fatos inspiradores de
temor e pena – característica própria de tal imitação – em primeiro
lugar é claro que não cabe mostrar homens honestos passando de
felizes a infortunados (isso não inspira temor nem pena, senão
indignação), [...] assim o resultado não será nem pena, nem terror.
(2005, p. 31 e 32)

O Orfeu de Vinícius de Moraes é submetido ao sofrimento por omissão, não por


atitudes. Sua “falha” é bem mais por uma postura passiva que por desvio de caráter. A
personagem trágica está em erro, mesmo que não tenha consciência. O erro então seria a falta
de consciência em deixar a mulher amada sozinha, na madrugada? Na despedida do casal,
logo após a experiência amorosa, instaura-se, em verdade, o patético, não o trágico. Segundo
Aristóteles, “o patético consiste numa ação que produz destruição ou sofrimento, como
mortes em cena, dores cruciantes, ferimentos e ocorrências desse gênero.” (2005, p.31) O
patético serve para suscitar e manter o pathos8 da vítima que ora se lamenta. Mas é preciso

7 Se bem que um confronto direto com o algoz de Eurídice somente afastaria, ainda mais, a ideia de ação tragédia em sentido
grego, uma vez que os embates realizados sob o signo da tragédia grega são realizados no interior da própria personagem:
uma lutada da personagem com ela mesma.
8 Pathos: Palavra grega que significa paixão, excesso, catástrofe, passagem, passividade, sofrimento e assujeitamento.
88

que, ainda de acordo com as reflexões de Aristóteles, para o funcional desempenho da


tragédia, a queda do herói trágico seja exemplar para que se viabilize a peripécia9, que não
deve ser casual, e sim, fruto de alguma desmedida do herói. Albin Lesky reforça a hipótese de
uma necessária queda exemplar quando diz, “assim, o homem que não naufraga em uma falha
moral vai a pique porque, dentro dos limites de sua natureza humana, não está à altura de
determinadas tarefas e situações.” (2006, p.30) Essas lacunas do herói mítico carioca em
relação ao conscrito modelo do passado e as prescrições da tragédia clássica deixam evidentes
fissuras na proposta dramatúrgica do escritor, considerando seu desejo de realocar a tradição
(com quem insiste em manter um diálogo mais profícuo) em plena modernidade.
Portanto, um hiato separa os mitos que o dramaturgo quer, então, próximos na
essência de seu texto. O que para Jean-Claude Carrière, em seu ensaio sobre os mitos
fundadores e as criações literárias, é extremamente natural, uma vez que essa
incompatibilidade se dá porque “a maioria desses mitos novos é de origem literária, isto é, são
personagens que têm um autor. Isso não é frequente no mundo antigo, onde os mitos ‘se
manifestam’ na maioria das vezes antes dos homens.” (CARRIÈRE apud BRICOUT, 2003,
p.27) Fica claro que a observação de Carrière diz respeito, de forma mais específica, aos
novos mitos, e não necessariamente aos mitos reeditados, ligados por uma mesma placenta ao
passado, como no caso do Orfeu carioca. Mas a carência de independência existencial destes
mitos de criações literárias, observada por Carrière, parece caracterizar bem a principal
personagem do texto teatral em estudo.

1.2 Tragédia ou Melodrama? Vinícius Rapsodo


O propósito deste estudo, além de revelar o contato mais inclinado de um Vinícius
dramaturgo com a tradição e de negritar a impossibilidade de uma reedição do modelo de
tragédia grega no século XX; é de revelar associações possíveis com gêneros distintos para
deixar ver a malha cheia de retalhos em que está exposto o texto Orfeu da Conceição.
Tragédia ou Melodrama?
A palavra melodrama, com efeito, traz ao pensamento a noção de um drama exagerado
e lacrimejante. Segundo Jean-Marie Thomasseau, “a palavra nasceu na Itália, no século XVII:
melodrama designava então um drama inteiramente cantado.” (2012, p.16) O que já se
apresenta como um ponto inicial e particular de contato com o texto Orfeu da Conceição: a
presença da música. Nos melodramas clássicos, segundo Thomasseau,

9 Peripécia ou mudança súbita. É um termo da poética clássica que significa uma reversão das circunstâncias dadas.
89

a peça era às vezes precedida de uma abertura musical, curto prólogo


que dava o tom geral do conjunto do drama. [...] A música de
melodrama é ao mesmo tempo expressiva e descritiva. Sua função é
inicialmente emocional: ela substitui o diálogo na pantomima, prepara
e sustenta os efeitos dramáticos e patéticos, acompanha a entrada e a
saída dos personagens. (2012, p.131)

Essa definição, em alguma medida, aproxima-se da função dada à música por Vinícius
de Moraes em seu texto. Uma música que emociona e que, em vários momentos, substitui
diálogos inteiros, como se pode perceber na rubrica abaixo transcrita.

(Enquanto sua mãe fala, Orfeu não para um só instante de tocar,


como se discutisse com ela em sua música, às vezes com a maior
doçura, às vezes irritado ao extremo.10 Ao ver, no entanto, a face
dolorosa com que Clio termina a sua exortação, corre a ela e abraça-
a.)
(MORAES, 1995, p.62 e 63)

Além da música, os melodramas históricos, em sua maioria, traziam em seu título o


nome do herói11. Assim é o texto de Vinícius de Moraes, que traz além da associação nome da
peça/protagonista, uma representação de herói que em muito se aproxima do tipo heroico
melodramático identificado por Thomasseau, quando na afirmação de que “a característica de
todo herói de melodrama é a de ser puro e sem manchas, e de opor às obscuras intenções do
vilão uma virtude sem defeitos.” (2012, p.43) Por meio de aproximações como esta, também
o comportamento do Orfeu carioca pode ser, sem prejuízo para o texto, associado às
características melodramáticas apresentadas por Thomasseau.

(A cena clareia de modo fantástico, como se a intensidade do luar


tivesse aumentado sobrenaturalmente.)
ORFEU
Querida!
Não vai não!
EURÍDICE
Meu neguinho, que bobagem!
É um instantinho só. Volto com a aragem...
ORFEU
Por que você está assim, filhinha?
O que é que você tem?
EURÍDICE

10 Grifo nosso.
11 Exemplos apresentados por Thomasseau: Hariadan Barbaruiva, Marguerite d’Anjou, O Marechal de Luxemburgo.
90

É a Lua, coração.
É a luz da Lua, não é nada não.
ORFEU
Ai, que agonia que você me deu
Meu amor! Que impressão, que pesadelo!
Como se eu te estivesse vendo morta
Longe como uma morta...
EURíDICE (chegando-se a ele)
Morta eu estou.
Morta de amor, eu estou; morta e enterrada
Com cruz por cima e tudo!
ORFEU (sorrindo)
Namorada
Vai bem depressa. Deus te leve. Aqui
Ficam os meus restos a esperar por ti
Que dás vida!

(Eurídice atira-lhe um beijo e sai.)


(MORAES, 1995, p.68)

O excerto selecionado retrata um dos (frágeis de solução) momentos de separação


entre o casal protagonista. Na cena, por conta de uma sobreposição de Eurídice em relação à
lua, Orfeu tem a intuição da ruína, do destino fatal de sua amada, e por consequência, de seu
sofrimento. O herói prevê o calamitoso. É o que Thomasseau vai chamar de a voz do sangue
presente no herói. “É ainda uma das formas da fatalidade: ninguém pode escapar-lhe. Ela cria
um jogo de preparação patética e dramática frequentemente utilizada no melodrama: o
pressentimento.” (2012, p.37) Ou mesmo a “consciência trágica” de uma existência.
Em mais uma possível aproximação texto/gênero melodramático, Vinícius de Moraes
consegue, por meio da concepção da personagem Clio, mãe de Orfeu, o que Thomasseau vai
chamar de característica típica dos pais nobres nos textos melodramáticos clássicos (1800-
1823). De acordo com o pesquisador, “os pais nobres dos melodramas são bastante
convencionais. Seu papel é essencialmente o de proferir sentenças morais. Alguns deles, pais
indignados, estão sempre prontos a lançar rapidamente sua maldição.” (2012, p.46) Atributos
visivelmente imantados na personalidade da personagem Clio, e percebidos em textos como
no bife abaixo apresentado.

CLIO
Por caridade!
Não me levem daqui! Ah, não me levem
De junto de meu filho. Eu quero ele
Doido mesmo, é meu filho, é meu Orfeu
Por caridade, vão buscar meu filho
91

Vocês sabem, Orfeu da Conceição


Sujeito grande, violão no peito
Tá sempre por aí... Vocês conhecem
É o meu Orfeu... Dizem que endoideceu
[...]
Por causa de uma suja descarada
Uma negrinha que nem graça tinha
Uma mulher que não valia nada! (subitamente possessa)
Descarada! Ah, nasce de novo, nasce
Pra eu te plantar as unhas nessa cara
Pra eu te arrancar os olhos com esses dedos
Pra eu te cobrir o corpo de facada! (muda de repente de tom)
Não, ela não morreu! Meu Deus não deixa!
Eu quero ela pra mim, eu quero Eurídice
Só um instantinho eu quero ela pra mim!
Eu juro que depois fico boazinha
Prometo, Deus do céu! Não quero nada
Só quero que me levem à cova dela
Que é pra eu cavar dentro daquela terra
Desenterrar o corpo da rameira
Ver ela podre, toda desmanchada
Cheia de bicho...
APOLO (corre para ela)
Chega, Cliol Chega!
(MORAES, 1995, p.101 e 102)

A referência aos pais nobres do melodrama em seus sermões e explosões


verborrágicas cabe de maneira justa no comportamento de Clio, não só no excerto disposto,
em que sentenças de desespero são proferidas em tom de maldição a uma Eurídice morta, mas
em textos anteriores em que a personagem aconselha o filho a evitar o ciúme alheio e a paixão
desmedida. Uma mãe de vestimenta melodramática, portanto.
A divisão do texto em três atos, embora não se distancie da estrutura da tragédia
clássica, também não dista do modelo de melodrama. Entretanto, a forma estabelecida por
este modelo, em detrimento daquele, prevê uma distribuição, segundo Thomasseau, assim
organizada: “o primeiro ato consagrado ao amor, o segundo à infelicidade, o terceiro ao
triunfo da virtude, atribuindo a maior parte à pintura da infelicidade.” (2012, p.35) Por essa
tripartição dos atos e de suas peculiaridades, o texto de Vinícius de Moraes em sua totalização
parece se adequar mais ao modelo de tragédia, que ao de melodrama, uma vez que, no
melodrama, ainda de acordo com Thomasseau, “no último ato, a justiça imanente acaba
sempre por ter a última palavra, no sentido estrito e no figurado, já que a maior parte dos
melodramas termina com uma máxima moral.” (2012, p.36) O que não se realiza em Orfeu da
Conceição. Além do mais “o melodrama tem por base o triunfo da inocência oprimida, a
92

punição do crime e da tirania...” (THOMASSEAU, 2012, p.34) o que, mais uma vez, desloca
o texto, isso porque, nos modelos melodramáticos, geralmente após o remorso do vilão e seu
castigo, a calma e a harmonia voltam a se estabelecer no ambiente. Nem há calma, nem há
harmonia no final de Orfeu da Conceição. O que se estabelece é o caos, um dado forte do
sofrimento contemporâneo. “O mundo é partido [...]. O mundo não é organizado, a obra tão
pouco, pois exprime a desordem, o caos, o fracasso, a impossibilidade de toda construção.”
(LESCOT; RYNGAERT apud SARRAZAR, 2012, p.92) O sofrimento do herói inocente é o
sofrimento de toda uma comunidade que chora a desestabilização de seu herói. O vilão não é
punido e a justiça poética, comprometida.
Na rubrica que determina o momento exato do ataque de Aristeu contra Eurídice
(Entra. Ao voltar-se Eurídice, Aristeu, surgindo do escuro, um punhal na mão, mata-a
espetacularmente. Eurídice cai.), tem-se, em verdade, o que George Steiner vai caracterizar
como horror, típico de uma cena romântica que se distancia da concepção de tragédia grega.
A cena é descrita sob o amparo de penumbras misteriosas e guiada por um sentimento de
amor patológico. Segundo Steiner, esses momentos

nos provocam o choque momentâneo, o calafrio na espinha – aquilo


que os românticos chamavam de frisson – não o terror permanente da
tragédia. E essa distinção entre horror e terror trágico é fundamental
em qualquer teoria do drama. “Terror”, como nos lembra Joyce, “é o
sentimento que aprisiona a mente na presença de tudo quanto é grave
e constante no sofrimento humano”. Não existem gravidade nem
constância no sofrimento retratado na cena romântica, somente um
frenesi de capa e espada. É essa a diferença entre melodrama e
tragédia12. (2006, p.94)

Por outro lado, ainda na mistura de gêneros associados ao texto, além de iniciar a
história com um Corifeu, figura básica numa tragédia de arremate grego, o dramaturgo
brasileiro faz uso do coro, elemento igualmente caracterizador das grandes tragédias gregas e
que, ainda nas tragédias elisabetanas, ganha uma representação na figura do bobo. Segundo
Rubem Rocha Filho, em seu A Personagem Dramática,

o coro enfeixava as funções de um narrador e comentarista; é de


grande relevância o seu caráter de expressão lírica, a curtição da dor,
do pathos, do sentimento do mundo. Diante das peripécias do destino,
as reflexões e conclusões do autor e do bom senso comum ecoavam

12 Grifo nosso.
93

através do coro, apto a ampliar a visão dos fatos particulares vividos


pelos personagens (2010, p.33).

O coro em Orfeu da Conceição segue pelas mesmas letras o comportamento modal de


sua encarnação primeira, quer seja representando o entendimento de uma coletividade, quer
seja amparando, aconselhando o herói em seus momentos de maior ou menor aflição.
O coro de uma tragédia grega participava da ação expressando compaixão ou outros
sentimentos pelos personagens. Algumas vezes também destacava o sentido religioso da ação
e a intercalava com preces. Por outro lado, simbolizava sempre o grupo cuja sorte está ligada
aos personagens. É exatamente o que se percebe, em outras passagens do texto de Vinícius de
Moraes: um coro sintonizado às frequências mítico/religiosas do passado. Primeiro, na
intertextualidade bíblica (Creio em Deus Pai), o que rememora o tom de religiosidade
presente nas grandes tragédias. Segundo, no tom de cobrança, de denúncia social proferido
por uma voz de representação coletiva (É? Tem cada uma... Médico aqui no morro...) que
acaba por aproximar o texto de outra particularidade da tragédia clássica, porque, segundo
George Steiner, “a tragédia brota do ultraje, protesta contra as condições de vida. Carrega
dentro de si as possibilidades da desordem, pois todos os poetas trágicos possuem algo da
rebeldia de Antígona.” (2006, p.95).
A utilização do coro em sentido religioso propõe um sincretismo que afasta o texto do
modelo de tragédia, ao mesmo tempo em que começa a sugerir uma nova representação
textual ao Orfeu da Conceição. A tragédia grega tem no politeísmo sua referência religiosa,
enquanto que o escritor brasileiro opta, na intertextualidade com o Creio em Deus Pai, pelo
cristianismo monoteísta. Consoante Steiner,

o cristianismo é uma visão antitrágica do mundo. [...] O cristianismo


oferece ao homem uma segurança da certeza final e repouso em
Deus. Ele conduz a alma na direção da justiça e ressurreição. [...]
Sendo um limiar do eterno, a morte do herói cristão pode ser
ocasião de tristeza, mas não de tragédia. [...] A verdadeira tragédia
pode ocorrer somente aonde a alma atormentada crê que não resta
tempo para o perdão de Deus. E agora é tarde demais. [...] E o
melodrama romântico é pura teologia quando representa a alma
sendo recuperada no extremo limite da danação.13 (2006, p.188)

O coro foi, na verdade, o núcleo inicial do teatro grego, embora se perceba que sua
função se enfraquece aos poucos durante todo o séc. V a.C. e seguinte, na exata medida em

13 Grifo nosso.
94

que os atores no palco tornam-se cada vez mais o centro da ação e a interferência do autor,
ainda menor. Para Rubem Rocha Filho, ampliando sua citação anterior, “explica-se daí a
tendência para a eliminação do coro no teatro moderno e a sua incompatibilidade com o estilo
realista, onde não se admite a interferência visível do dramaturgo na ação cênica.” (2010,
p.34) Na evolução do teatro ocidental o coro se transformará posteriormente em mero
interlúdio musical entre os atos e, finalmente, desaparecerá, sendo ressuscitado modernamente
pela ópera e sua descendente, a comédia musical.
Tragédia, melodrama, drama romântico. Com quantos gêneros se deseje aproximar o
texto de Vinícius de Moraes mais afeito a acomodações ele se fará, uma vez que plural.
Decerto que em sua constituição, e por numerosos exemplos acima trabalhados, Orfeu da
Conceição pode, de fato, a depender do ângulo de sua recepção, ser entendido como um
gênero completo ou particular, ainda que um enquadramento o torne limitado. Mas a própria
personalidade de seu autor, que em vida conjugou opostos, e sua inerente condição de homem
moderno, faz com que esse texto acabe refletindo de maneira inevitável o pensamento
múltiplo de um dramaturgo e da própria dramaturgia do século XX.
Este pensamento múltiplo pode, de maneira bem mais convincente, ser aproximado da
ideia de rapsódia, conceito criado e desenvolvido por Jean-Pierre Sarrazac (1946-) em O
futuro do Drama, no início dos anos de 1980, com o objetivo de analisar a contribuição de
Peter Szondi na obra Teoria do Drama Moderno, de 1954. De acordo com Céline Hersant e
Catherine Naugrette, em verbete do Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo (uma obra
que protesta conta a ideia de que o drama estava largado e morreria):

As características da rapsódia, tais como Jean-Pierre Sarrazac


as formula, são ao mesmo tempo [...] caleidoscópio dos modos
dramático, épico, lírico, inversão constante do alto e do baixo, do
trágico e do cômico, colagem de formas teatrais e extrateatrais,
formando o mosaico de uma escrita em montagem dinâmica, investida
em voz narradora, desdobramento de uma subjetividade
alternadamente dramática e épica (ou visionária). (HERSANT;
NAUGRETTE apud SARRAZAC, 2012, p.152 e 153)

Juntar e confrontar. A percepção de Sarrazac sobre o hibridismo como comportamento


típico da dramaturgia moderna ocidental acaba colaborando diretamente para uma acepção do
texto de Vinícius de Moraes (dramaturgo-rapsodo) e sua principal característica de
caleidoscópio de modos dramáticos.
95

Ao final, parece não importar se o texto se enquadra ou não em um gênero pré-


estabelecido. O que vai importar, de fato, é a percepção da elaboração fragmentada dada por
Vinícius (com a indubitável presença grega no foco) e de que maneira essa construção tão
partida representa verdadeiramente o teatro brasileiro feito nos novecentos.

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97

Nietzsche e o espírito trágico.


Lucyane de Moraes (PPGF-UFMG)

Resumo:

Esse estudo tem por base o primeiro livro publicado por Friedrich Nietzsche, O Nascimento
da Tragédia no Espírito da Música (Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik), de
1872. Propõe, dessa maneira, expor três movimentos ou três formas de manifestações
artísticas da Grécia Antiga, apresentando esse “primeiro Nietzsche”. Para tal, cabe abordar
questões referentes a uma genealogia do espírito trágico, compreendida através da
dramaturgia dos três tragediógrafos da Grécia Ática, bem como dos elementos teóricos e
históricos em que o autor se baseou para a elaboração do seu estudo, ou seja, aqueles
referentes à literatura, a mitologia da Grécia Antiga e a música do período, sendo esta
interpretada por Nietzsche como aquela que melhor exprime o impulso Apolíneo-Dionisíaco
(afirmação da vida que responde ao sentido da existência).

Palavras-chave: Música, Teatro, Tragédia, Drama.

Nietzsche and the tragic spirit

Abstract:

This paper is based on the first book published in 1872 by Friedrich Nietzsche, The Birth of
Tragedy: out of Spirit of Music (Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik). It
proposes to expose three forms of artistic expression from Ancient Greek, introducing the
"first Nietzsche". For such purpose, it is necessary to approach questions of a genealogy of the
tragic spirit, concerning to dramaturgy of the three tragedians of Greece Attica, as well as the
theoretical and historical elements which the author relied in preparing his study, in other
words, those related to literature, mythology of ancient Greece and the music of the age,
which is understood by Nietzsche as the one that best expresses the Apollonian-Dionysian
impulse (statement of life that responds to the meaning of life).

Keywords: Music, Theatre, Tragedy, Drama.


98

“Pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente”.

[Friedrich Nietzsche]

A partir da primeira obra filosófica de Friedrich Nietzsche, propõe-se expor três


movimentos ou três formas de manifestações artísticas da Grécia Antiga, apresentando a tese
do filósofo sobre a origem do espírito trágico na cultura grega:

1 - Forma Apolínea (ou poesia épica): Épica, ou poesia heroica, entendida desde a
antiguidade como palavra, discurso, voz; palavra proferida; palavra inaugural, criadora, tem
sua raiz no vocábulo épea. Padre Raphael Bluteau, em seu Vocabulário Portuguez e Latino1
(1712-1728), registra em verbete próprio:

“poesîa. Deriva-se do verbo Grego Poieein, que tem dous sentidos, & val o mesmo
que Fazer, & Fingir, que saõ duas propriedades da Poesia, porque a sua perfeyção
está em descrever, pintar, & representar as cousas ao vivo, como se as acabára de
fazer, & juntamente tem liberdade para excogitar, & fingir o que quer. A Poesia he
huma certa cadencia, medida harmonica, & metrica consonancia de palavras
segundo as leys, & uso de cada lingua, com que se declara o que quer dizer com
expressoens vivas, energicas, & mais livres, que as que se usaõ na Prosa. Com
diversos generos de versos se fazem differentes Poesias Latinas, com versos
Hexametros a Poesia Epica, ou Heroyca, (...) com versos Jambos a Poesia
Dramatica, cujas tres partes saõ a Tragedia, a Comedia, & Tragicomedia; & com
versos de todas as castas a Poesia Satyrica, como tambem a Poesia Profeptica, ou
Didascalica, que val o mesmo que Exornativa, ou instructiva. (...) he certo que
Museo, & Orpheo compuzeraõ hymnos em louvor de suas fabulosas Deidades, &
alguns setecentos annos primeyro que houvesse Filosofos na Gentilidade, todas as
materias concernentes à Religiaõ, & Filosofia moral, andavaõ em estylo poetico, &
se communicavaõ com tradições de pays a filhos em versos, ou, para melhor dizer,
em trovas, que se cantavaõ familiarmente nas casas, ou publicamente nas praças.
(...) as Trovas foraõ inventadas para ajudar a memoria, & facilitar a lembrança das
doutrinas, que os pays inculcavaõ aos filhos, & na opiniaõ de Santo Isidoro destas
Trovas teve a Poesia o seu principio, & segundo o dito Santo, a Poesia he mais
antiga que a Prosa. Pherecides, Filosofo Grego, discipulo de Pittaco, & Mestre de
Pythagoras, foy o primeyro que desterrou das Escolas a Poesia, & introduzio a
Prosa. E Plataõ, que seguio o mesmo methodo, assentou que a Poesia era impropria
a hum homem Filosofo, que havia de fallar com propriedade em materias divinas, &
sciencias naturaes; pela qual razaõ, tanto que começou a gostar da Filosofia de
Socrates, lançou no fogo muitas Poesias, infructuosas verduras da sua mocidade.
Pouco a pouco foy a Poesia perdendo o credito, Cicero a despreza, Socrates a
condena, Democrito lhe chama loucura, & chegáraõ os Romanos a dizer que o
estudo da Poesia era indigno de homem honrado. Porèm he certo que Plataõ, &
outros assim antigos, como modernos Escritores, naõ condenaõ senaõ a Poesia
profana, meramente fabulosa, ou escandalosamente lasciva, da qual summamente
deve fugir o Christaõ: porque, se aquelle Rey Minos, do qual falla Hesiodo, moveo
guerra a Athenas, porque algüs Poetas da dita Cidade o haviaõ collocado no Inferno.
(...) Para a estimaçaõ da Poesia, naõ só ha de ser boa a materia dos versos, mas
tambem a fórma, & esta para ser boa, ha de ser excellente; os versos saõ como os

1Vocabulario Portuguez e Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico, Bellico, Botanico, Brasilico, Comico, Critico,
Dogmatico, etc. autorizado com exemplos dos melhores escritores portugueses e latinos, e oferecido a El-Rey de Portugal D.
João V. (1712-1728).
99

meloens, huns saõ frutos da terra, & outros saõ frutos do engenho; nestes dous
generos de frutos, a mediania he vicio, & só na sua excellencia está a sua bondade.
Poesia. Arte Poetica. Poetica, ae. Fem. sobentende-se Ars, tis. Fem. Cic. Poesis, is.
ou eos. Horat. Quintil. No I. livro de Cicero De Inventione, em boas edições se acha
Philosophiae, Poetriae, Geometriae; mas o antigo Rhetorico Fabio Victorino naõ lé
neste lugar Poetriae, mas Poeticae.§ Poesia. Qualquer obra Poetica. Poesis, is. Fem.
Carmen, inis. Neut. Poema, tis. Neut. Cic.§ A Poesia. O modo de compor, opposto à
Prosa. Poesis, is. Fem. No livro 3. De Oratore, Cicero diz, Vel Poesis, vel oratio. Os
que com mais particularidade querem distinguir a Poesia da Prosa, chamaõ em
Latim à Prosa Oratio soluta, & à Poesia Oratio adstricta pedibus; mas naõ fallaõ taõ
propriamente, como parece: porque (como discretamente advertio hum Critico
moderno) tambem a Prosa tem seus pés, numeros, & medidas, como se póde ver no
livro da Rhetorica, que Cicero, Quintiliano, & outros Oradores escrevèraõ.

Sabe-se, então, que as origens da poesia épica remontam a declamações e cantos


ancestrais, proferidos em rituais religiosos e festas do povo, representando o ciclo de chegada
de longínquas tradições fundadas na oralidade poética. Seus representantes são Homero (c. -
750) e Hesíodo (c. -700) que irão eternizar lendas seculares da tradição oral, glorificando
grandes feitos heróicos. A esse propósito, segundo teorias de Aristóteles, entende-se que na
épica grega as epopeias advinham dos Aedos (poetas-cantadores) e dos Rapsodos,
(costuradores de cantos), aqueles que “costuram” canções2, fixando o texto pela escrita. É um
momento da literatura antiga que traduz os acontecimentos relatados em atos exemplares,
funcionando como modelos de comportamento, mantenedores das tradições. Na Ilíada, de
Homero, por exemplo, temos Aquiles, partícipe da Guerra de Tróia, personagem glorificado
por atos heróicos, portador da Areté3, sendo este um exemplo de cidadão virtuoso capaz de
desempenhar qualquer função dentro da sociedade. Representante da forma apolínea, a
epopéia pertence ao gênero épico que vai caracterizar-se pela arte da beleza, da harmonia, da
medida. Sendo assim, o poema épico terá uma tendência ética e artística, representado por
Apolo, Ἀπόλλων (Apóllōn), deus da poesia épica, da aparência, da ilusão, das fantasias, da
prudência, da experiência onírica e do poder divinatório4. Sobre Apolo, escreve Nietzsche:

“Os Gregos representaram na figura do seu Apolo um tão ardente desejo de sonho:
Apolo, como é o deus de todas as faculdades criadoras de formas, é também o deus
da adivinhação. Ele que, desde a origem, é a «aparição» radiosa, a divindade da luz,
reina também sobre a aparência, plena de beleza, do mundo interior da imaginação.

2 Cantadores que entoavam rapsódias. Padre Raphael Bluteau, em seu citado Vocabulário Portuguez e Latino, registra:
“rapsodia. He palavra Grega, composta de Raptein, cozer, & odi, canto, porque Rapsodia, segundo a mais commua
significaçaõ, val o mesmo, que hum ajuntamento de varios pedaços de Poesia, ou Prosa, etc. ou (como advertio Eustachio no
primeyro livro da Iliada, citado em Cesar Bulengero, lib. 2. cap. 9.) Rapsodia se deriva de Rabdos, vara, & odi, canto, como
quem dissera, Rabdodia, porque antigamente se cantavão as Poesias com hüa vara na mão, as de Eschylo com hüa varinha
de murta, & as de Homero com hüa vara de loureyro. Mas a primeyra etymologia parece mais propria, tanto mais, que a
Iliada de Homero foy chamada Rapsodia, por ser composta de varias poesias, unidas em hum só Poema. As Politicas de
Lipsio saõ hüa Rapsodia, porque não tem deste Author mais que as conjunções, & particulas, com que liou as materias”.
3 Conceito primordial que exprime o ideal da educação na Grécia do século V a.C., juntamente com o conceito de Paidéia.
4 O poder divinatório é uma das maiores características do deus Apolo, deus dos advinhos e dos poetas, a quem os gregos

erigiram um santuário na cidade de Delfos, templo elaborado pelos arquitetos Trofônio e Agamedes.
100

A mais alta verdade, a perfeição deste mundo, opostas à realidade imperfeitamente


intelígível de todos os dias, enfim, a consciência profunda da natureza reparadora e
salutar do sono e do sonho, são simbolicamente o análogo, ao mesmo tempo, da
aptidão para a adivinhação, e da arte em geral, pelas quais a vida se tornou possível
e digna de ser vivida. Mas à imagem de Apolo não deve faltar essa linha delicada,
aquela que a visão apercebida no sonho não poderá transpor sem que seu efeito se
torne patológico, porque então a aparência nos dará a ilusão de uma realidade
grosseira: quero dizer, essa ponderação, essa livre serenidade nas emoções mais
violentas, essa serena sabedoria do deus da forma” 5.
Em outras palavras, foi diante aos temores da existência que os gregos antigos criaram
a cultura apolínea, valorizando a beleza, o louvor à vida harmoniosa, prudente e medida.
Paralelamente à necessidade estética da beleza, foram inscritas em Delfos, no templo de
Apolo, as seguintes frases: “conhece-te a ti próprio” (ΓνωθιΣεαυτον) e “nada em excesso”
(μηδεν αγαν). Para Nietzsche, Hesíodo e Homero, sob a influência unicamente apolínea,
mostraram, através da glória e dos grandes feitos que imortalizaram os heróis, a primazia da
natureza de tornar as formas belas, considerando que somente a medida, a prudência, a bela
aparência e o aspecto ilusório da bela forma impediam que o homem convivesse com a
dinvidade da dor.

2 - Forma Trágica (ou nascimento do espírito da tragédia6): Se Apolo se afigura como


o deus da harmonia, da medida, da prudência, Dioniso, ao contrário, é caracterizado pelo
êxtase, configurando-se como o deus da metamoforse, da desmedida, do transe, das paixões,
da vibração e da autenticidade, expressando a vida sem aparência, sem máscaras, sem
artifícios, isenta, portanto, de caráter comedido. Segundo Nietzsche, Dioniso é um
personagem estrangeiro, absorvido e agregado pela cultura grega, tornado “símbolo do poder
inebriante da natureza”, relacionado com o “florescer da terra”, “da seiva que enche os bagos
de uva”. De acordo com a mitologia Dioniso era filho de Zeus e da princesa Sémele, sua
amante, nascido de uma “situação estranha”. Hera, esposa de Zeus, filha de Crono e Reia,
criada por Oceano e Tétis, era conhecida pelo rancor que nutria contra as amantes do
poderoso deus. Com ciúmes das contínuas infidelidades de Zeus, Hera persuade sua rival
Sémele, então grávida de Dioniso, a covencer o amante Zeus de se mostrar a ela em sua
primitiva forma, sendo Sémele atendida pelo deus que se perfigura sob a forma originária de

5 [GT] Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia). Guimarães editores. Seção 1, p, 42.
6“Ao comparar a tragédia com a epopéia, o Estagirista considera que a primeira lhe acrecenta a µɛʎοποιΐα e o espetáculo
cênico. Mas tais elementos são perceptíveis mesmo na leitura dos próprios textos. Quer isto dizer que é na linguagem da
tragédia (no ἔπος) que estão implícitos potencialmente a melodia e o espetáculo cénico com os seus componentes: gesto
dança e som. A concepção de Aristóteles acerca do ἔπος na tragédia exprime assim um novo conceito de µέʎος, ao atribuir-
lhe uma tão grande força expressiva. De facto, a relação µέʎος-ἔπος estabelece-se de modo específico, pois tem como ponto
de partida o ἔπος, que é o suporte da representação teatral, e ao mesmo tempo é através dele que se revela e se instila o som,
a dança e o gesto. É também a partir dele que os tragediógrafos desenvolvem em recitativos e cantos um trabalho de
modelação da linguagem com o intuito de pôr em destaque a voz nas suas possibilidades tímbricas, tessitura e
interpretação”. In Mousiké: das origens ao drama de Eurípedes. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 23-24.
101

raios e trovões, levando a mesma a ser consumida instantâneamente pelo fogo divino,
restando ao deus somente o tempo de retirar os restos do pequeno Dioniso de suas entranhas.
Escondido de Hera, Zeus costura os fragmentos do filho em sua coxa a fim de completar a sua
gestação, possibilitando-lhe assim um renascimento. Entregue em segredo a Ino, sua tia,
Dioniso é criado com a ajuda das ninfas que cuidam de sua educação, e após atingir a
maioridade anda errante pelo mundo introduzindo em cada país a cultura da vinha e a técnica
de fazer vinhos, aprendida com seu tutor, o sábio Sileno (Seilēnós). Daí, o culto a Dioniso,
ligado ao vinho e à ebriedade, juntamente com a cultura da vinha, estende-se por toda a
Grécia antiga. Morto e revivido, Dioniso é o “deus despedaçado”, símbolo da ambiguidade e
duplicidade, o deus da transformação, o “deus que intensifica a vida e dissolve a forma” (a
individualidade) através da embriaguez, representando a potência eterna da natureza, sempre
acompanhado pelo cortejo dos tocadores de aulos (antigo instrumento de sopro, espécie de
flauta dupla), das Ménades (Bacantes) e das Dríades (divindades dos arvoredos), representado
mesmo por sua integração com a natureza. Em contraposição a Dioniso, Apolo, apresentado
pela forma (que é aparência), está mais distanciado da natureza, pois aparece sempre
individualizado.

Nietzsche entende que será a partir do séc. VI A.C. que a tragédia 7 nasce oriunda do
culto a Dioniso que, incorporado à Grécia antiga, é anexado à cultura grega, possibilitando
uma aliança entre Apolo e Dioniso. A partir daí Apolo sofre mudanças estruturais pela
dissolução da forma, e também Dioniso, antes apresentado como “o outro”, o estrangeiro (o
primitivo), quando incorporado à cultura grega apresenta a forma de um Dioniso-Apolíneo (o
agregador). Será então a partir de Ésquilo, que introduz o coro em suas peças, que a tragédia
irá exprimir essa aliança paradoxal, resultante do encontro entre Apolo e Dioniso. A
propósito, entende-se que a tragédia se desenvolve a partir do canto e do coro, do ditirambo
dionisíaco, pelos quais, segundo Nietzsche, os participantes são excitados “à máxima
intensificação de todos as suas capacidades simbólicas”. Será a partir da intervenção
introdutória do coro que Ésquilo, visando dar sentido à história ao invés de simplesmente
expor o evento mais concreto da trama, onde o héroi é também sacrificado, mostra
cenicamente o quase obrigatório destino infeliz do herói trágico. Através da personagem de
Édipo Rei, vitimado por seu próprio destino, Sofócles também apresenta o herói trágico,
representado através do coro, demostrando em cena o sofrimento e as mazelas daquele herói,

7
Do grego: Tragoedia significa canto do bode - sacrifício aos deuses pelos gregos. As palavras gregas τράγος,
tragos, (bode) e ᾠδή, odé, (canto) aliadas, derivaram na palavra tragédia.
102

sem qualquer exaltação de suas glórias, intensificando o mito. Consequentemente, se Apolo


confere medida à emoção e torna a cena uma experiência tolerável e apaziguadora, Dioniso,
por sua vez, concede vigor e energia ao drama, principalmente por meio da música. Não
coincidentemente, Nietzsche entende que a mais perfeita união entre mito e música se dá na
tragédia, sendo a música a essência da tragédia, “essência que cabe interpretar unicamente
como manifestação e configuração de estados dionisíacos (...) como mundo onírico de uma
embriaguez dionisíaca”. Portanto, para Nietzsche a tragédia nasce da aliança entre mito e
música. Sobre os aspectos apolíneo e dionisíaco da música, o compositor vienense Arnold
Schoenberg em seu último livro teórico Funções Estruturais da Harmonia8, no capítulo XII,
“Evolução apolínea em uma época dionisíaca”, explica:

“A música clássica foi feita em um dos períodos apolíneos quando o uso de


dissonâncias e seu tratamento, bem como o tipo de modulação, eram governados por
regras que se tornaram a segunda natureza do músico. Sua musicalidade se punha
em questão, se fosse incapaz de permanecer instintivamente dentro dos limites da
convenção aceita. Nessa época a harmonia era inerente à melodía. Mas os novos
acordes da época seguinte, uma época dionisíaca (iniciada com os compositores
românticos), apenas começavam a ser digeridos e organizados, e as regras para sua
utilização ainda não haviam sido formuladas, quando um novo movimento
progressivo começa, antes mesmo que aquele último tivesse se estabelecido”.
E em nota de rodapé, Schoenberg acrescenta: “Nietzsche estabelece uma distinção
entre o pensamento apolíneo, que caracteriza a proporção, moderação, ordem e harmonia, e
seu oposto o dionisíaco, que é apaixonado, ébrio, dinâmico, expansivo, criativo e até
destrutivo”.

Para Nietzsche a tragédia não é só um gênero dramatúrgico, caracteriza-se como a


potência da dor e do sofrimento, que intensificados de forma afirmativa responde ativamente,
exaltando a afirmação da vida. Existir e sofrer entende Nietzsche, são condições humanas as
quais a existência está vinculada, sendo necessário encontrar um sentido para o sofrimento.
Dar sentido ao sofrimento significa, então, encontrar uma razão para a existência. É então em
contato com sua potência afirmativa que a expressão dos impulsos apolíneo e dionisíaco se
apresentam como princípios de natureza estética:

“A tragédia, surgida, segundo Nietzsche, do confronto das forças apolíneas e


dionisíacas, juntava vários seguimentos artísticos, tais como a música, a dança, o
teatro, a poesia, a pintura, a escultura, a arquitetura, o que Wagner chamaria de
Gesamtkunstwerk, ou melhor, a obra de arte total ou integral, ao tentar recriá-la por
meio de seus dramas musicais. Mostrava, segundo Eric Bentley, ‘a estatura heróica
do homem e a justiça dos deuses’. Tinha, portanto, como cerne o mito” 9.

8 Escrito entre os anos de 1947 e 1948, Funções Estruturais da Harmonia foi publicado pela primeira vez em 1954, resumindo
suas últimas teorias sobre a harmonia clássica e romântica.
9 In: Op. Cit., p. 32.
103

A tragédia será então o veículo da unidade entre estas duas forças, dominada por
Dioniso e apoiada por Apolo, sem exclusão de nenhuma delas, ambas expressas em um todo
harmônico. Apolo prefigura a sophrosyne, a moderação, a ordem, a medida, a proporção, a
harmonia, a disposição sadia do espírito, dando beleza à forma e, por sua vez, Dionísio a
hybris, significando a desmesura, o excesso, o arrebatamento, a impetuosidade, aquilo que
ultrapassa a medida humana, uma força trágica incomum. Nietzsche acolhe o impulso
dionisíaco, como expressão das formas apolíneas, sendo a presença da medida apolínea aquilo
que faz com que a tragédia não se torne apenas um ritual dionisíaco de liberação das emoções
e dos instintos. É a personagem conceitual de Apolo que explicita o caráter de ilusão da
tragédia através de seus elementos cênicos, sendo os versos, cantados, narrativas míticas
desenvolvidas na forma trágica, transformados em representação da vida, fenômeno este que
durou apenas um século.

Se para Nietzsche a tragédia nasce da aliança entre mito e música, vale abordar alguns
aspectos referentes à música na Grécia antiga, considerando possíveis fontes utilizadas pelo
filósofo para a formulação de suas idéias. Primeiramente, no que diz respeito à música, sua
origem etimológica advém da palavra mousiké (Μουσική), união dos vocábulos mous + iké,
significando a arte das Musas. De acordo com a mitologia grega, a história da música começa
com a morte dos seis filhos de Urano, conhecidos como os titãs, vencidos pelos deuses do
Olimpo10. Objetivando cantar então as vitórias do Olimpo, Zeus toma para si a tarefa de criar
nove divindades, partilhando por nove noites consecutivas o leito com Mnemosyne, deusa da
memória, resultando o nascimento das nove musas, Calíope, Clio, Erato, Euterpe,
Melpomene, Polyhymnia, Terpsícore, Thalia, e Urânia, deusas das artes e das ciências, todas

10 Dos vários poemas clássicos gregos sobre a guerra entre os deuses e os Titãs, apenas um sobreviveu. Trata-se da
“Teogonia” atribuída a Hesíodo. Segundo este, os titãs eram os 12 filhos dos primitivos senhores do universo, Gaia, a Terra,
e Urano, o Céu. Dos doze, seis eram do sexo masculino: Oceano, o rio que circundava o mundo; Ceos, titã da inteligência;
Créos, deus dos rebanhos e das manadas; Hipérion, o fogo astral; Jápeto, ancestral da raça humana e Cronos, que destronou
Urano e foi rei dos deuses. Os outros seis eram do sexo feminino, conhecidos como Titanides: Febe, a da coroa de ouro;
Mnemosyne, personificação da memória e mãe das musas com Zeus; Reia, rainha dos deuses com Cronos; Témis,
encarnação da ordem divina, das leis e costumes; Tétis, deusa do mar e Téia, deusa da vista. Tinham por irmãos os três
hecatonquiros, monstros de cem mãos que presidiam os terremotos, e os três Ciclopes, que controlavam os relâmpagos.
Urano iniciou um conflito com os titãs ao encarcerar os hecatonquiros e os ciclopes no Tártaro. Gaia e os filhos se revoltaram
e Cronos cortou os órgãos genitais do pai com uma foice, atirando-os ao mar. O sangue de Urano, ao cair na terra, gerou os
gigantes e da espuma que se formou no mar, nasceu Afrodite. Com a destituição de Urano, os titãs libertaram os outros
irmãos e aclamaram rei a Cronos, que desposou Réia e voltou a prender os hecatonquiros e os ciclopes no Tártaro. Com
excessão de Jápeto e Créos, que se casaram com mulheres de fora da sua própria linhagem, os titãs uniram-se entre si, dando
origem a divindades menores. Dentre todos estes, Cronos e Réia produziram descendência mais numerosa: Héstia, Deméter,
Hera, Hades, Posêidon e Zeus, sendo estes os primeiros deuses do Olimpo. Avisado de que seu filho o destituiria, Cronos
engoliu todos eles, exceto Zeus, salvo por um ardil da mãe. Ao tornar-se adulto, Zeus fez Cronos beber uma poção que o
forçou a vomitar os filhos, e uniu-se aos irmãos, os deuses do Olimpo, na luta contra os titãs pela posse do Monte Olimpo.
Derrotando os Titãs, Zeus manda confinar Cronos e os titãs no Tártaro, estabelecendo seu domínio como o maior e mais
poderoso dos deuses. Depois, os três filhos de Cronos dividiram a herança em três partes, ficando Zeus com o céu e o ar
superior, Posêidon com o mar e Hades com o mundo subterrâneo.
104

presenças permanentes no monte Parnaso, participantes do cortejo de Apolo, realizando


rituais apolíneos. Freqüentadoras do Olimpo, as musas alegravam as festas dos deuses.
Calíope, também chamada “a da bela voz”, era a musa da epopéia, da poesia épica, da ciência
e da eloqüência, sendo a mais velha e sábia das musas, geralmente representada coroada de
louros, sentada em posição de meditação, com a cabeça apoiada numa das mãos e um livro na
outra; Clio era a musa da história e da criatividade, aquela que divulgava e celebrava
realizações, geralmente representada como uma jovem, usando uma coroa de louros na
cabeça, trazendo na mão direita uma trombeta e na esquerda um livro, intitulado Thucydide.
Em algumas de suas representações traz a kithara11 em uma das mãos e, na outra, um
plectro12; Erato, também chamada “a amável”, era a musa da poesia lírica e dos hinos, sempre
representada com uma lira na mão e, por vezes, com uma coroa de rosas; Euterpe, a musa da
música e da poesia lírica, é também considerada como a inventora do aulos, um tipo de flauta
dupla, instrumento este com que geralmente aparece representada; Melpomene era a musa da
tragédia, geralmente representada com uma máscara trágica. Em algumas representações ela
aparece segurando uma faca ou bastão em uma mão, e a máscara na outra; Polyhymnia era a
musa do hino sagrado, da eloqüência e da dança, geralmente representada numa posição
meditativa, vestindo um longo manto; Terpsícore era a musa da Música e Dança, sendo
geralmente representada segurando uma lira. Era também a deusa da alegria e do prazer;
Thalia era a musa da comédia e da poesia leve, geralmente representada usando uma máscara
cômica e portando um cajado de pastor; Urânia era a musa da astronomia e astrologia,
representada com o globo celeste e o compasso nas mãos, vestindo um manto bordado com
estrelas. Sabe-se ainda que também há na mitologia grega, outros deuses ligados à história da
música, especialmente Orfeu, filho da musa Calíope, cantor, músico e poeta, além de Museo,
filho de Eumolpo, grande musicista que, tocando, curava inúmeras doenças, e Anfião, filho de
Zeus, que após ganhar uma lira de Hermes, passa a dedicar-se inteiramente à música.
Instrumento considerado como o mais significativo no universo organológico grego, a lira,
como é sabido, representa ainda hoje em termos comuns o instrumento mais conhecido da
Grécia antiga, citada, como tal, nas diversas fontes literárias clássicas que chegaram até os
dias de hoje, fontes essas fundamentais para o estudo das categorias organológicas e da
música do período. Tanto é que o etnomusicólogo alemão Curt Sachs, em seu livro “A
História dos Instrumentos Musicais”13, registra:

11 Antigo instrumento de cordas grego da família da lira.


12 Espécie de palheta, feita à época com pena de pássaros.
13 Publicado em Nova York no ano de 1940.
105

“As Liras foram, sem dúvida, o instrumento principal, o divino. (...)


Como atributo de Apolo, a lira expressava o aspecto apolíneo da alma
e da vida grega, a prudente moderação, o controle armonioso e o
equilíbrio mental, ao contrário os instrumentos de sopro
representavam o lado dionisíaco, de embriaguês e êxtase”.

E é como atributo de Apolo que sob o aspecto das fontes literárias gregas se pode
identificar inúmeras citações feitas por diversos autores a esse instrumento. Em Alceste, por
exemplo, Eurípedes se refere a Apolo tocando a lira, denominando-o a seguir pelo seu nome
equivalente romano, Febo, tocando a cítara:

“Ó casa hospitaleira
de um homem liberal,
também Apolo Pítio,
de lira melodiosa,
se dignou habitar-te (...)
e dançava ao som da tua cítara, ó Febo,
a corça de pêlo mosqueado,
correndo com o seu tornozelo leve
para além dos pinheiros de altas copas,
inebriante pelo teu canto feliz”.:

Em Ilíada, Homero escreve: “Durante todo o dia, até ao pôr do sol, estiveram em
festa, e ao seu ânimo nada faltou no festim equitativo, nem a formosa lira que Apolo
empunhava, e as Musas, que cantavam alternadamente com a sua bela voz”. E em seu Hino a
Hermes14, Homero se refere a construção da lira de forma detalhada, descrevendo-a como um
instrumento de sete cordas e composto de uma caixa de ressonância feita com o casco de uma
tartaruga, atribuindo a Apolo a sua ampla utilização. De acordo com a lenda, Hermes rouba
parte dos rebanhos guardados por Apolo, que, ao descobrir o feito, o conduz a Júpiter que o
obriga a devolver os animais. Apolo, no entanto, encantado com o som do instrumento
inventado por Hermes, dá-lhe o gado em troca da lira. Sobre a importância da lira, Platão, em
sua República, considerando a música não como um fim em si, mas como um meio de
condução às idéias, menciona diversas vezes o instrumento, inclusive como um meio para se

14 O hino grego é uma forma literária na qual se cantam deuses e heróis. Hermes é o nome grego de Mercúrio, uma das doze
divindades do Olimpo, filho de Júpiter e Maia, nascido no monte Cilene, na Arcádia. O hino a Hermes é o 4 o de uma série de
vinte e dois poemas dedicados a várias divindades, atribuído ao poeta Homero, contando 580 versos que relatam a vida e os
feitos do deus e de seu irmão Apolo.
106

atingir a virtude. E Aristóteles, em sua Política, também se refere à questão dizendo que um
instrumento deve ser um meio para a formação do caráter; uma forma de desenvolver a
racionalidade e o espírito crítico permitindo ao músico discernir entre o simples prazer
auditivo, que é insuficiente, e o verdadeiro propósito da música, ou seja, conduzir à virtude. À
propósito, num sentido mais amplo, vale dizer que para os gregos antigos a música, por
possuir qualidades morais, afetava o caráter e o comportamento dos homens, influindo em seu
comportamento por imitação ou representação das paixões e dos estados da alma, ou seja, por
influência de certa música evocativa de certo estado da alma, ficavam os homens tomados por
certa paixão, fosse ela boa ou má.

3 - Forma do Otimismo Teórico Socrático (ou morte do espírito trágico): Sabe-se que
em suas peças teatrais Eurípedes dava um sentido novo ao prólogo, diminuía a função do
papel do coro e, sobretudo, se utilizava de um mecanismo chamado deus ex-machina,
expressão latina traduzida do grego, “ἀπὸ μηχανῆς θεός” (apò mēchanḗs theós), significando
literalmente “deus da máquina” ou “deus de dentro da máquina”: “Alude a um instrumento
mecânico utilizado por Eurípedes que permitia a uma divindade ou ser sobrenatural descer
sobre o palco, oferecendo dessa forma uma saída para uma situação aparentemente
irresolúvel15”. Este artefato, introduzido repentinamente na cena, atuava como instrumento de
resolução da trama, tornando-a mais inteligível para o espectador, conduzindo melhor a
história, conectada a um determinado conceito moral. Nietzsche afirma que Eurípedes, ao
utilizar esse dispositivo, intervém na trama de forma racional introduzindo o Socratismo na
tragédia grega, ou seja, que Eurípedes, sobretudo, “mata o espírito trágico” quando
pressupõe o inteligível como condição do belo. Entende Nietzsche que a tragédia morre,
através de Sócrates, sob um golpe de Eurípedes, denominando de otimismo teórico socrático
aquilo que leva ao seu aniquilamento.

“Não devemos continuar a dissimular o que está escondido no fundo desta cultura
socrática: a ilimitada ilusão do otimismo! Não nos devemos espantar mais de que
amadureçam os frutos de tal otimismo, de que a sociedade, corroída até as camadas
mais baixas pelo ácido dessa cultura, vá pouco a pouco tremendo com a febre do
orgulho e dos apetites; de que a crença na possibilidade de semelhante civilização
científica se transforme a pouco e pouco em vontade ameaçadora, vontade que exige
a felicidade terrestre alexandrina e invoca a intervenção de um deus ex machina «à
Eurípedes»! Temos que observar o seguinte: para poder durar, a civilização
alexandrina necessita de um estado de escravatura, de uma classe servil, mas,
obrigada pela sua concepção otimista da existência, nega a necessidade desse
estado: assim, quando se gasta o efeito das suas tão belas como enganadoras e

15 In: Poética. Ed. Eudoro de Sousa, Imprensa-Nacional Casa da Moeda, 1998.


107

lenitivas palavras acerca da dignidade humana e da dignidade do trabalho, a


civilização caminha a pouco e pouco para um desastroso aniquilamento” 16.
O otimismo teórico, para Nietzsche, irá, ao subordinar a arte ao julgamento da
verdade, resultar na depreciação da própria vida sob a tentativa de corrigir suas mazelas,
amenizando a dor e o sofrimento e minimizando a sua potência criadora em nome de uma
transcendência. Para Nietzsche é mal aquilo que não tem poder de construção. E sendo vil
uma ideia de resignação da vida através da transcendência divina, afirma que a astúcia, sob a
forma de uma fragilidade humana, permite que os débeis contaminem e imponham a todos
uma mentalidade de senso comum (não-afirmativa).

“Temos de assumir perante nós mesmos a responsabilidade de nossa existência; é


por isso que decidimos realmente ser os pilotos dessa existência e não permitir que
ela se assemelhe a um absurdo acaso. Devemos abordá-la com um mínimo de
audácia e de temeridade, pois podemos perdê-la por qualquer coisa que venha a
acontecer.”17
Sob a ótica peculiar nietzschiana, Sócrates é visto como uma personagem teórico-
racional representante de uma verdade absoluta que subjuga o espírito trágico da existência
humana, explicando assim a repulsa do autor frente à hegemonia do pensamento platônico,
via Sócrates, na cultura ocidental. No entanto, Nietzsche reconhece que o otimismo socrático
irá proteger o homem do terror do sofrimento e da dor ao postergar a felicidade para uma vida
futura, imputando a morte do espírito trágico a uma razão socrática. Platão, em sua Apologia
de Sócrates, demonstrava que os artistas trágicos tinham menos conhecimento do que os
filósofos, ratificando a ideia socrática de que os artistas, criando ilusões, desconheciam a
verdade e dispersavam a vida, dando à arte um sentido de simulacro da verdade, o que faz
Nietzsche afirmar que a filosofia platônica propõe uma correção da tragédia, alegando que em
Platão existe uma tentativa de separar instinto, emoção e razão. Mais tarde, Nietzsche irá
afirmar a existência de afinidades entre o cristianismo e o platonismo através da criação de
dois mundos - inteligível e sensível - da qual o cristianismo irá se apropriar como fundamento
de suas teorias. Por isso, afirma que “a tarefa da filosofia do futuro é a subversão do
platonismo”:

“É nessa oscilação entre cristianismo e a antiguidade, entre um cristianismo


medroso ou mentiroso e um pensamento antigo igualmente sem coragem e sem
iniciativa que se passa a vida do homem moderno, sofrendo com isso; o temor
hereditário das realidades naturais e, por outro lado o atrativo renovado desse
naturalismo, a necessidade de se agarrar a alguma coisa, a impotência do
conhecimento que oscila entre o bem e o mal, tudo isso gera inquietude e confusão
na alma humana e a condena a ficar estéril e sem alegria 18”.

16 Ibid., pp. 145-146.


17 Ibid., p. 17.
18 Ibidem., p, 25.
108

Entende Nietzsche que os gregos, a partir de Ésquilo e Sófocles, tiveram a capacidade


de criar uma sensibilidade para lidar com a dor e o sofrimento, condições da própria
existência humana, sendo a partir da arte que o povo grego introjetou o gosto pela tragédia,
transfigurada em potência humana essencial que fez com que a vida fosse possível de ser
vivida. Por isto, tendo a arte trágica o poder de realizar essa transformação e sendo por meio
desta que os gregos conseguiram viver em um mundo sofrido e angustiante, constituídos
como aspectos da própria natureza humana, conclui o filósofo: “Os gregos não se furtaram
de conviver com o aspecto trágico da vida”, porque “a arte não julga, a arte cria”.

Considerações finais

Retomando a questão, se a evolução da arte resulta do duplo caráter dos impulsos


apolíneo e dionisíaco, para Nietzsche faz-se necessário reconstruir uma nova aliança entre
mito e música, em contraposição ao pensamento legado pela dialética socrática. Assim é que
em O Nascimento da Tragédia Nietzsche irá postular a importância do coro trágico e da
pulsão dionisíaca contra o aspecto paralisante do otimismo socrático, em nome de uma
filosofia nova que proponha salvar o conhecimento dos dados que a consciência acessa,
entendendo que o silêncio inicial do ruminar necessariamente passa por uma reflexão do
trágico, condição fundamental para a criação de um novo estado de embriaguez “em que se
encarnasse o mito da humanidade de amanhã”. E resumindo, afirma Nietzsche: “Sou um
discípulo do filósofo Dioniso, prefiro ser um sátiro a ser um santo”.

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109

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110

Sobre o “trágico” na previsão da própria morte de Ismael Nery.


Rosana de Morais (PPGA-UNESP)

Resumo
Esse artigo investiga a ocorrência do “trágico” na obra pictórica e poética de Ismael Nery, que
relacionado ao drama pessoal nos últimos anos de sua vida, entre 1930 e 1934, pode ser
entendido como uma tragédia encarnada, onde vida e obra ao se confluírem, constituíram um
jogo no qual a necessidade e o acaso forjaram Previsão da Própria Morte, uma obra
inquietante do modernismo brasileiro. Ao transpor os limites de espaço-tempo, veremos o
diálogo com a antiguidade clássica e a arte contemporânea, e como esse artista vivenciou seu
pathos e não apenas o representou.

PALAVRAS-CHAVE: Ismael Nery; Modernismo Brasileiro; Morte; Trágico;

Abstract
This article aims at investigating how the “tragic” occurs at Ismael Nery’s pictorial and
poetic masterpiece, relating it to the personal drama in the last days of his life, between 1930
and 1934, which can be understood as the tragedy embodied. When life and work converge, it
can constitute a game, in which the necessity and the random act forged “Previsão da
Própria Morte”, a provocative masterpiece in the Brazilian Modernism. When breaking the
boundaries of space and time, we can see the dialogue between classic ancient and
contemporary art, and how this artist not only represented his pathos, but above all
experienced it.

Key words: Ismael Nery; Brazilian Modernism; Death; Tragic.

Introdução

Ismael Nery, em algumas pinturas, poesias e escritos de sua última fase artística,
representou elementos que podemos entender como “trágicos”, tal mudança em seu lirismo
talvez seja devida ao drama particular originado pelo diagnóstico de tuberculose, a doença
que o levou à morte em 1934. No entanto, a ocorrência desses elementos aparenta ter relação
também com sua vida pregressa à doença, culminando numa espécie de tragédia encarnada na
obra “Previsão da Própria Morte”, desenho no qual Nery prevê a idade com que morreria,
111

profecia alardeada desde sua juventude, e que se cumpriu como destino, aos trinta e três anos
de idade.
Os elementos trágicos a serem analisados são aqueles que inspiram horror e pena,
ocasionados pelo acaso e fortuna, e que, transformaram-se em destino. Contidos nesse
desenho e nos fenômenos em torno dele, sendo o ponto de partida para um breve estudo sobre
o trágico em Nery. Nessa obra, vemos representado alegoricamente um presságio, e, através
desse registro que se tornou real, temos o desfecho trágico. E dessa forma singular, podemos
considerar que numa abstração de espaço-tempo, o artista dialogou com a antiguidade clássica
e também com manifestações contemporâneas na arte, ao romper com o limite da
representação artística ao vivenciar seu pathos.
Ao descortinarmos as particularidades e acontecimentos em torno de Previsão da
Própria Morte, que precedem o desenho em mais de quinze anos e o desfecho ocorrido cerca
de dois anos depois de sua feitura, vemos uma obra emblemática do modernismo brasileiro, e
quiçá, das artes visuais. Nessa análise, foram utilizadas algumas noções sobre o trágico
oriundas da filosofia e do teatro, relacionando aos próprios escritos de Ismael Nery e à crítica
de autores brasileiros.

PREVISÃO DA PRÓPRIA MORTE: A TRAGÉDIA ENCARNADA


Os poetas serão os últimos homens a existir, porque neles é que se manifestará a vocação
transcendente do homem.

Ismael Nery

Tão precoce quanto sua morte foi sua vida, teve contato com as vanguardas europeias
e com o modernismo brasileiro, no panorama nacional da primeira metade do século XX foi
tido como um artista controverso e por vezes maldito, o que acarretou um atraso de quase
vinte anos para o reconhecimento de seu legado.
Ismael Nery nasceu em 1900 no Belém do Pará e morreu em 1934 no Rio de Janeiro.
Foi um artista polivalente, e se expressou através da pintura, poesia e filosofia, é considerado
que teve três fases artísticas: expressionista, cubista e surrealista. Além de seu legado de
pinturas e poesias também elaborou o sistema filosófico nomeado “Essencialismo”, o qual
nunca fora escrito e chegou a nós através dos relatos e depoimentos de seus amigos.
De sua produção pictórica restam cerca de duzentas pinturas, e mil desenhos e
aquarelas, e pode-se dizer que, na contra corrente da história do modernismo brasileiro, sua
112

obra é majoritariamente marcada pelo estudo da figura humana e com poucas alusões ao
contexto nacional. Sendo que, sua produção ou que restou dela, fora conservada pelo esforço
e dedicação de amigos e conhecidos salvando-a dos cestos de lixo ou da simples destruição,
sem menosprezar tantos outros que não foram citados nesse estudo destacam-se o zelo da
esposa Adalgisa Nery e do amigo Murilo Mendes.
A fim de encerrar essa sucinta apresentação de Ismael Nery vejamos o retrato descrito
por Mendes no prefácio que escreveu em 1972 a pedido de Antônio Bento:

O menino nasceu com o século em Belém do Pará, cresceu sob a


tutela propícia dos Deuses, filho de um médico que, já com grande
fama, morreu muito jovem (Dr. Ismael Nery) e de uma senhora
singularíssima, enigmática (D. Marieta Macieira, mais tarde a “Irmã
Verônica”), armada de poderes mediúnicos, familiar dos Karamazof1,
inteligência notável mas descontrolada, que infernizou a vida do filho
(“Ela me construiu e me destruiu”, dizia este); encarnação, em modo
superlativo, da “Genitrix” de Mauriac. (BENTO, 1973, p. 7)

Ainda muito jovem, e por volta de seus quinze anos, Ismael afirmava que morreria aos
33 anos, a idade de Cristo, a idade que seu pai morreu. Essa certeza, quase profética, foi
atestada por Murilo Mendes, por Antônio Bento, entre outros amigos2.
E assim ocorreu seu falecimento com 33 anos de idade, no dia 6 de Abril de 1934,
cujos acontecimentos são narrados vividamente nas memórias de Pedro Nava, que fora seu
último médico, a seguir, o relato na voz do personagem Egon3 (NAVA, 1983, p. 313 – 315):

A doença foi se mantendo mais ou menos no mesmo quadro até fins


de março de 1934 quando aumentaram os sinais de fraqueza e, pior,
sonolência que logo passou a uma situação de torpor grave do qual ele
mal emergia. (...)
Era católico e como tal acabaria. (...)
Se insistentemente chamado, sua mímica era de esforço, como foi de
sofrimento e protesto quando sua mãe abriu um armário do seu quarto,
dele tirando o hábito de irmão-menor dos franciscanos, dizendo alto
que ia amortalhá-lo com o dito. Egon sempre guardou a impressão de

1
Mendes faz alusão à obra de Dostoievsky, que na grafia das traduções atuais é Os Irmãos Karamázov, na grafia
original para a edição de 1973 lê-se: “Karamazof” (BENTO, 1973, p.7).
2
Algumas das fontes que atestam essa previsão são: Murilo Mendes (1996, p. 58), Antônio Bento (1973, p. 28) e
Affonso Romano de Sant’Anna (MATTAR, 2000, p. 60).
3
Em suas memórias Pedro Nava cria o heterônimo Egon, que é seu porta voz..
113

que ele esteve consciente até que sobreviesse sua morte. Esta veio às
oito horas e quarenta minutos da noite de 6 de abril de 1934. (...)
Do velório de Ismael o Egon guardou três impressões indeléveis. Do
desespero grandioso de sua mãe que lembrava o das heroínas do teatro
antigo e que estava envultada pelas figuras femininas de Sófocles com
suas lágrimas bagas de fogo. Da atitude exemplar de Adalgisa cuja dor
era mostrada apenas pelo silêncio, pela imobilidade, pelo decorum da
atitude, pelo espanto e pela palidez que a cobria. (...)
O terceiro fato ocorrido no velório de Ismael Neri e que ficou para
sempre gravado na memória de Egon foi a conversão instantânea de
Murilo Mendes.

A descrição vívida de Pedro Nava recria o desfecho dramático da vida de Ismael, e


também o acontecimento marcante para Murilo Mendes, sua conversão instantânea ao
catolicismo, que se deu através de uma espécie de catarse e que alterou profundamente sua
poesia nos anos posteriores.
Então, como se rebobinássemos uma película, voltemos ao desenho objeto desse
estudo, o qual antecipa esse desfecho, dialeticamente transformando-a em tragédia, pois fecha
o paradoxo, entre uma previsão de juventude e uma obra inquietante, validado pela morte
derradeira.
114

FIGURA 1. Ismael Nery. Previsão da Própria Morte, nanquim sobre papel, 15,6 x 22,3
cm, c.1932, col. Chaim José Hamer, S.P.4

Previsão da própria morte (fig. 1) é um nanquim sobre papel, tal composição não é
datada e supõe-se que tenha sido feita no ano de 1932. Na qual, temos uma espécie de lápide
com destroços de um corpo humano e ao redor e em perspectiva vemos três cruzes, na lápide
vemos inscrito o nome de Ismael Nery, logo abaixo se lê a indicação 1900-1933, que dão a
entender o ano de seu nascimento e a referência de sua morte aos trinta e três anos.
Essa previsão atestada em relatos e testemunhos de diversos amigos alcança na pessoa
mística que foi Nery, um tom de profecia, desvairo religioso e obsessão pela figura de Cristo.
Que fora retratado em pinturas, em alguns de seus poemas e exacerbado em sua própria fala,
como atesta esse trecho colhido em Mendes (1996, p. 57) “Eu sou o sucessor do poeta Jesus
Cristo encarregado dos sentidos do Universo.”.
E justamente esse misticismo que atraiu a alguns, afastou tantos outros, teremos,
através de Bento (1973, p. 13-14), a crítica mordaz de Oswald de Andrade com que fulminava
poetas e escritores de seu desagrado, adaptada ao pintor: “Não vi e não gostei!” e ainda mais

4
Ismael Nery. Previsão da Própria Morte, reprodução fotográfica em Aracy do Amaral, Ismael Nery: 50 anos depois. (São
Paulo: MAC Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1984, p. 240).
115

tarde, diria não acreditar na existência de Ismael Nery, afirmando ser pura criação de Murilo
Mendes e de Antônio Bento.
Ainda analisando sua obsessão religiosa, vemos na crítica de Aníbal Machado a
revelação de transtornos decorrentes e crescentes, ao comentar que, “as taras ancestrais, misto
de doçura, religiosidade e certo sadismo psíquico, repontam nele, criando e destruindo a sua
personalidade.” (AMARAL, 1984, p. 257). E também na crítica de Sant’Anna:

O ego inflado de Ismael Nery, na confluência entre a mitomania e o


misticismo o levaria a coincidir sua figura ainda mais com a do
cristão. Não apenas foi enterrado com o hábito de São Francisco, mas
tentou coincidir sua morte com a sexta-feira da paixão, quando tinha
também, como Cristo, 33 anos. Atrasou-se um pouco, morreu uma
semana depois, na sexta-feira de Páscoa. Morria miticamente cercado
pelo número três. Morria reinscrevendo simbolicamente a idade da
morte do seu pai, também de nome Ismael, morto aos 33 anos. Ismael-
pai e Ismael-filho, o Ismael-pai era médico, o Ismael-filho o enfermo.
O Ismael-Cristo e o Ismael-homem. O EU e o OUTRO. Dois em um.
Três em um: a circularidade mítica e psicanalítica do 33. (MATTAR,
2000, p. 60 - 61)

Seu pathos, tanto a obsessão quanto a doença, na medida em que foi se intensificando
fora representado em suas últimas produções, como vemos nesse texto de Ribeiro:

À medida que a doença avançava, suas imagens também apontam a


marcha da destruição. Retratou corpos esquartejados com maior
crueza, à maneira dos cortes dos açougues e em alguns casos ordenava
as letras de seu sobrenome à semelhança do INRI sobre a cruz de
Cristo. Seus desenhos do último ano registram as vísceras se voltando
contra o organismo, provocando sua destruição e o corpo, não apenas
em partes, mas em pedaços decompostos, justificando seu clamor de
1933 na “Oração de I.N.”. (MATTAR, 2000, p. 65)

Os comentários críticos e os testemunhos, aqui concatenados, enfatizam o que


podemos ver em outras obras desse período, nas quais percebemos que Nery ao comunicar
suas emoções, pensamentos e filosofia, também deflagrou o drama da fragilidade da vida.
Essa intensidade dramática de mostrar a fragilidade da vida através da representação
intensa da doença e da morte, talvez como tentativa de superação do próprio sofrimento, surge
116

também nas obras de outros pintores, por exemplo, o brasileiro Flávio de Carvalho5 e a
mexicana Frida Kahlo6. Na série Minha mãe morrendo de Flávio de Carvalho, executada em
19 de Abril de 1947, retrata em nove desenhos, os instantes finais da agonia de sua mãe Dona
Ofélia. De indubitável intensidade esses desenhos traduzem a solução encontrada por Flávio
para superar o momento de tragédia.
E também Frida registrou em suas pinturas seu sofrimento, ao pintar com cores
intensas as dores de suas inúmeras cirurgias na coluna no quadro Coluna Quebrada de 1944,
e o dilaceramento físico e psíquico decorrente de três abortos, representados na pintura
Hospital Henry Ford de 1932; afirmando certa vez, que não pintava sonhos ou pesadelos,
pintava sua própria realidade.
Os temas que envolvem dor, flagelação e morte se tornaram recorrentes na arte
contemporânea, entre tantos outros artistas citamos apenas Carvalho e Kahlo devido ao
período artístico próximo e assaz similar ao de Nery.
No entanto, esses temas que envolvem sentimentos dramáticos, nos parecem
paradoxais em Nery, pois em seu catolicismo a salvação era justamente a morte, vemos no
comentário de Enock, a percepção do agravamento através de seu lirismo:

Após ser acometido pela tuberculose que o vitimaria, o lirismo de sua


obra surrealista foi cedendo lugar a um exercício de flagelação, de
abertura de suas próprias entranhas, e ao afloramento do pesadelo. Foi
quando ele criou algumas das obras mais lancinantes da modernidade
brasileira. (SACRAMENTO, 1996, p.10)

O lirismo a que se refere o crítico, não parece corresponder à previsão e espera que
possuía Ismael da própria morte, e talvez, possamos entender seu “exercício de flagelação”,
como consciência e superação, ou simplesmente, ajuste desses conflitos mediante a
implacável tragédia.
A obra de Ismael em sua totalidade, plástica e poética, e não tão somente as últimas
fases, reverberam a frase que Denise Mattar (2000, p.13) tão apropriadamente comentou,
“Nery abre tanto a sua alma que rasga o seu corpo.”. Que a nosso ver, enfatiza a tragicidade

5
Flávio de Carvalho: polêmico artista brasileiro e um dos grandes nomes do modernismo, atuou em inúmeras
frentes, tendo sido: escritor, pintor, arquiteto, teatrólogo e etc. Nasceu 10 de Agosto de 1899 em Barra Mansa, Rio de
Janeiro e faleceu em 4 de Junho de 1973, em Valinhos, São Paulo.
6
Frida Kahlo: pintora mexicana próxima da estética surrealista, nasceu em 6 de Julho de 1907 e faleceu em 13 de
Julho de 1954, em Coyoacán, México.
117

da suas últimas produções executadas no período entre 1930 – 1933, e foram percebidas por
críticos que analisaram sua obra, vejamos a observação de Ribeiro:

Seu “Testamento Espiritual”, escrito em novembro de 1933, fornece


pistas para o entendimento de sua relação com a doença também
manifesta em sua produção plástica dos últimos anos. Nele se coloca
como um predestinado a explicar, seguindo os passos de São
Francisco, a consolar e a amar. Prega que “a humanidade, como as
plantas, precisa de estrume” e que de “nossos corpos renascerão
aqueles corpos gloriosos que encerram as almas dos poetas, aqueles de
que nós já trazemos o germe”. Dessa forma acolhe a doença
responsável pela glorificação de seu corpo e espírito. (MATTAR,
2000, p. 65)

Esses excessos, paixões e sofrimentos que compõe seu pathos, surgem não apenas em
detrimento de doença, dor ou perdas, mas também no conjunto de sua obra, como vemos na
interpretação do psicanalista Harmer, sobre outros aspectos constantes na produção de Nery:

Como psicanalista amante de arte, significou muito ver desfilar diante


de mim: filogênese, ontogênese, figura combinada, desenvolvimento
fetal, trauma de nascimento, narcisismo, depressão, complexo de
Édipo, psicossomática, instinto de vida, instinto de morte etc.
(MATTAR, 2000, p. 67)

O olhar psicanalítico de Harmer parece endossar a percepção do mergulho intenso e


visceral de Ismael, mergulho esse, que talvez seja o divisor de águas entre o dramático e o
trágico, criando espanto não apenas pelo horror, e sim, “Mesmo dentre os eventos fortuitos,
mais surpreendentes são os que parecem acontecer de propósito.” (ARISTÓTELES, 1999, p.
48-49).
Ao pensarmos na obra de Ismael como um diário e entendermos que toda obra de arte
tem necessariamente um cunho biográfico, refletindo a época e o individuo que a gerou,
podemos situar os eventos que afluem de sua obra junto à psicanálise, como Harmer observou
nesse trecho:

À medida que as obras eram apresentadas, fui me deparando com uma


qualidade artística jamais vista por mim na pintura moderna brasileira.
118

Excelente no desenho, na aquarela e no óleo, transmitindo sempre


uma emoção e um sentimento que me tocavam profundamente. Porém
o que mais me impressionou e surpreendeu é que vi, numa parte da
obra de Nery, Freud, artista plástico, e isto eu ainda não tinha visto na
pintura brasileira e nem na internacional. (MATTAR, 2000, p. 67)

A observação que traça um paralelo entre a obra de Ismael e a psicanálise,


possibilitada também pela aproximação do artista ao surrealismo, podem embasar boa parte
das interpretações sobre os fenômenos conscientes e inconscientes que afluem em suas
pinturas, desenhos e escritos. No entanto, a obra de Nery também parece estar em
consonância com seu sistema filosófico, o Essencialismo; que pleiteava uma abstração do
tempo e espaço, na busca do aperfeiçoamento físico e espiritual do homem, ou seja, ao fazer
tal abstração sobre o mais simples ato, poderíamos identificar aquilo que é verdadeiramente
bom na ação humana, pois teria o mesmo significado em qualquer época que fosse feito.
E assim, as particularidades e acontecimentos ou fenômenos em torno de Previsão da
Própria Morte e das últimas produções de Ismael, parecem estar relacionados tanto ao acaso
de forças externas, quanto à liberdade de suas escolhas, que acabaram por forjar uma tragédia
encarnada, misto de seus pensamentos e ações, aproximando-o quase a um mito7.

CONSIDERAÇÕES FINAIS – RESSURREIÇÃO DE ISMAEL NERY


“Um conselho vos dou, com a autoridade que me conferem as rugas de minha resta, o meu
olhar febril, as minhas mãos mutiladas: não façais o que vos causa nojo, mesmo que tal nojo
seja mínimo. Orientai vossa ciência para conseguirdes um aumento micrométrico das vossas
sensibilidades.”

Ismael Nery

Talvez, para essas considerações finais seria mais apropriado ao invés de ressurreição
considerar a salvação e aniquilamento de Ismael. Mas, ressurreição aqui nesse breve estudo,
pretende aludir a uma nomenclatura que, talvez, Ismael preferisse para que fosse entendido o
aniquilamento que o salvou. Pois justamente seu declínio físico apenas confirmou cada um de
seus passos e pathos, e mesmo alegoricamente, é da ressurreição de Ismael que se buscou
tratar, ao pesquisar sua vida e sua obra nesse estudo.

7
Referência alusiva à exposição Ismael Nery: 100 anos a poética de um mito, a cargo da curadoria de Denise
Mattar (MATTAR, 2000) e ao artigo de Mário Pedrosa datado de 4 de dezembro de 1966 publicado no jornal Correio da
Manhã, Rio de Janeiro, no qual o autor correlaciona a genialidade de Leonardo Da Vinci ao homem universal e artista total
que também foi Ismael Nery (AMARAL, 1984, p. 194-197).
119

De forma, por vezes anacrônica e um pouco desordenada, pretendeu-se explicitar os


elementos trágicos na obra de Nery, alguns em decorrência e correlação direta a tuberculose
que o levou à morte, outros com relação ao seu misticismo e o “Essencialismo”, seu sistema
filosófico. Com esse estudo, não fora pretendido adentrar e esmiuçar o conceito de trágico
filosófico ou teatral, e sim apenas, apontar algumas aproximações possíveis nas artes visuais.
No caso da Previsão Da Própria Morte de Ismael Nery, o intuito fora o de organizar
os antecedentes e precedentes da feitura desse desenho, por acreditar, que é uma obra
inquietante na arte brasileira, e quiçá, na história da arte.
E assim, convido o leitor, esse implacável júri das permanências no tempo, a
reconsiderar mais uma vez a “tragédia encarnada” na vida e obra de Ismael Nery.
Vimos que, os elementos “trágicos”, como os descritos por Aristóteles, que causam
terror, piedade e emoções não esperadas, passaram a ocorrer com freqüência na obra de Nery
a partir do diagnóstico da tuberculose, transitando entre o dramático e o trágico.
No entanto, o desenho Previsão da Própria Morte, é um registro pictórico feito em
torno de 1932, e com artista já enfermo, no qual ele inscreve a idade com que morreria.
Presságio ou previsão, atestada em documentos e relatos desde a juventude do artista.
Através dos textos elencados, sabemos também, da crescente obsessão mística pela
figura de Cristo e por todos os fenômenos que rondaram a vida de Ismael em torno do número
três e do trinta e três, por exemplo, a santíssima trindade e a morte do pai; e o quanto, seu
próprio sistema filosófico facilitou essas projeções reais e imaginárias. Não cabe aqui, julgar a
religiosidade de Nery, e sim, apenas contextualizá-la.
Então, acredito que podemos auferir que os fatos pregressos de uma vida e
pensamento místico-religioso, mediante a ferocidade da tuberculose que o impeliu à morte
criaram uma obra onde o drama se fez trágico. justamente por justificá-lo. Ou seja, ao
entendermos a previsão sinistra desde a juventude a cerca da idade com que morreria como
acaso; e correlacionarmos a sua liberdade de escolhas, representada pela fatalidade da doença,
porém essa insondável no momento da feitura do desenho; vemos o desfecho inquietante e
espantoso, uma tragédia encarnada: onde vida e obra ao se confluírem, constituíram um jogo
no qual a necessidade e o acaso forjaram Previsão da Própria Morte.
Que só pode ser compreendida com esse potencial de significados trágicos, na medida
em que, conseguimos conhecer e identificar esses elementos, que numa abstração de espaço-
tempo, tão cara a Nery, foram justificados apenas no desfecho final, onde temos a salvação e a
redenção do artista.
120

E assim, quando analisamos uma das obras onde Ismael Nery retrata sua própria morte,
sua potencialidade da expressão artística, a revelação de significados profundos conscientes e
inconscientes, que fora forjada entre o modernismo brasileiro e as vanguardas artísticas europeias;
podemos sentir, apesar de mais de oitenta anos decorridos de sua morte, seu vigor: maldito,
moderno e surrealista.
Quiçá, ao novamente narrar os passos trilhados por Ismael Nery, esse homem tão
singular e que tinha certeza que seu legado continuaria em qualquer outro e em todos os
outros, reverbere em nós e assim sejamos tocados por essa chama, essa paixão, e que nos
tornemos poetas, que cumpramos seu vaticínio, e que também nós, manifestemos a vocação
transcendente do homem.
121

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Aracy do. Ismael Nery 50 anos Depois. São Paulo: MAC Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1984.

_____. Artes Plásticas na Semana de 22. São Paulo: Editora 34, 2001.

ARISTÓTELES. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

BARBOSA, L. M. F.; RODRIGUES, M. T. P.. Ismael Nery e Murilo Mendes: Reflexos.


Juiz de Fora: UFJF MAMM, 2009.

BENTO, Antônio. Ismael Nery. São Paulo: Gráficos Brunner, 1973.

CATTANI, Icléia. Ismael Nery. Porto Alegre: Kraft Escritório de Arte, 1984.

CHIARELLI, Tadeu. Um Modernismo Que Veio Depois. São Paulo: Alameda, 2012.

MASP. Ismael Nery (1900-1934). São Paulo: MASP, 1974.

MATTAR, Denise. Ismael Nery: 100 anos depois a poética de um mito. Rio de Janeiro:
Centro Cultural Banco do Brasil, 2000.

MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São Paulo: Edusp, 1996.

NAVA, Pedro. O Círio Perfeito. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

SACRAMENTO, Enock. Ismael Nery. São Paulo: Casa das Artes, 1996.

SZONDI, Peter. Ensaio Sobre O Trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

TELLES, Gilberto Mendonça. Vanguardas Europeias e Modernismo Brasileiro.


Petrópolis: Vozes, 1985.

TOLEDO, J.. Flávio de Carvalho: O comedor de emoções. São Paulo: Brasiliense, 1994.
122

Efemeridade e fabulação em penélope de Tatiana Blass.


Petruska Toniato Valladares (PPGA-UFES)

RESUMO:
O presente artigo propõe uma análise da instalação Penélope, de Tatiana Blass,
exposta do dia 24 de setembro de 2012 até o dia 01 de abril de 2012, na Capela do
Morumbi; problematizando a questão da desmaterialização do objeto artístico
mediante a efemeridade da obra, sua relação com o espaço em que foi apresentada,
estabelecendo possíveis relações entre o título e a representação pictórica sob a forma
de tear, que nos remete a fabulações imagéticas acerca do mito grego de Penélope e
Ulisses.

Palavras- chave: Instalação. Efemeridade. Espaço. Mito.

ABSTRACT:
This article proposes an analysis of Penelope installation, Tatiana Blass, exposed the
24 September 2012 until 01 April 2012, in the Chapel of Morumbi; questioning the
issue of dematerialization of the art object by the ephemerality of the work, its
relationship with the space that was presented, establishing possible relations between
the title and the pictorial representation in the form of tear, which leads us to imagery
fables about the Greek myth Penelope and Ulysses.

Keywords: Installation. Ephemerality. Space. Myth.


123

Introdução

A Instalação enquanto poética artística permite uma gama variada de possibilidade e


suportes, se tornando uma prática recorrente na produção artística contemporânea.

Tais práticas levam criadores e espectadores a refletirem com afinco sobre as obras,
levando a interpretações diversificadas e pessoais.

Conforme Guattari:

“É evidente que a arte não detém o monopólio da criação, mas ela leva ao ponto
extremo uma capacidade de invenção de coordenadas mutantes, de engendramento
de qualidades de ser inéditas, jamais vistas, jamais pensadas”. (GUATTARI, 1992,
p. 135).

A Instalação intitulada Penélope, da artista plástica brasileira Tatiana Blass, rompe


com a tradição escultórica, compondo uma narrativa visual através da relação com o
tempo e o espaço que se dá de forma essencial a sua concepção.

A obra consiste em um grande tear manual, de pedal, posicionado no altar da Capela


do Morumbi, através do qual se estende um longo tapete vermelho de 14 metros, que
se apresenta tecido de um lado e do outro se transforma em um emaranhado de fios
(200.000 metros de lã e chenille), que desordenadamente atravessam as paredes pelos
buracos existentes na construção – resultado da técnica construtiva em taipa de pilão –
e se estendem pelo jardim, onde se misturam, invadindo a paisagem no entorno da
capela, cobrindo o gramado, tomando conta dos arbustos e das árvores, ocupando a
vegetação (ver figuras 1 e 2).
124

Figura 1 – Tatiana Blass: Penélope. Capela do Morumbi. 2011.


Foto Everton Ballardin. Fonte: <www.tatianablass.com.br>

Figura 2 – Tatiana Blass: Penélope. Capela do Morumbi. 2011.


Foto Everton Ballardin. Fonte: <www.tatianablass.com.br>

Penélope permitiu uma apreciação única com relação ao tempo e ao espaço em que foi
exposta, trazendo em si questionamentos acerca da efemeridade das Instalações, e a
relação do espectador através da vivência de uma experiência temporal e espacial
proporcionada pela obra, além de compor uma narrativa visual capaz de nos remeter
ao mito grego de Penélope.
125

1 A obra e o mito

Ulisses e Penélope não haviam gozado sua união por mais de um ano, quando
tiveram de interrompê-la, em virtude dos acontecimentos que levaram Ulisses à
Guerra de Tróia. Durante sua longa ausência, e quando era duvidoso que ele ainda
vivesse, e muito improvável que regressasse, Penélope foi importunada por
inúmeros pretendentes, dos quais parecia não poder livrar-se senão escolhendo um
deles para esposo. Penélope, contudo, lançou mão de todos os artifícios para ganhar
tempo, ainda esperançosa no regresso de Ulisses. Um desses artifícios foi o de
alegar que estava empenhada em tecer uma tela para o dossel funerário de Laertes,
pai de seu marido, comprometendo-se em fazer sua escolha entre os pretendentes
quando a obra estivesse pronta. Durante o dia, trabalhava nela, mas, à noite, desfazia
o trabalho feito. E a famosa tela de Penélope, que passou a ser uma expressão
proverbial, para designar qualquer coisa que está sempre sendo feita, mas não se
acaba de fazer (BULFINCH, 2002, p.222).

Conceito e ideia sempre foram inerentes ao processo criativo da arte. No livro Arte
Contemporânea, Archer transcreve uma citação do artista minimalista Sol LeWitt que
diz: “na arte conceitual”, escreveu LeWitt, “a ideia ou conceito é o aspecto mais
importante da obra. Quando um artista utiliza uma forma conceitual de arte, isto
significa que todo o planejamento a as decisões são feitas de antemão, e a execução é
uma questão de procedimento rotineiro. A ideia se torna uma máquina que faz a arte”.1

Em entrevista para a Revista Valise, do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais


da UFRGS, a artista declarou que o título e o conceito da instalação, vieram após a
obra consumada:

E no Penélope foi muito diferente porque foi o título. Eu havia feito o trabalho e não
sabia que título dar e então a produtora da exposição contou o mito da Penélope,
pois pensava que havia relação. Então resolvi dar o título, mas na verdade, às vezes
acho que até atrapalha um pouco, pode parecer que é uma ilustração do mito, pois a
referência é muito forte. O trabalho veio de outro lugar, era para adicionar mais um
sentido e não pra ilustrar uma história. (BASCHIROTTO, 2014, p. 57).

Mas, é quase que imediata à composição de uma narrativa visual sobre o mito grego
através da instalação Penélope, afinal, cor, forma e disposição proposta, representam,
mesmo que metaforicamente, conceitos e valores que nos remetem imediatamente a
história de Penélope e Ulisses.

O conceitualismo, parte significativa da arte contemporânea, fica evidente na


instalação em questão, que proporciona um envolvimento do espectador, levando cada
um a lembrar do mito a partir do momento em que se conhece o título da obra, que em

1 ARCHER, 2012, p. 56.


126

conjunto com a imagem reforça ainda mais a experiência sensível e de encantamento


que, embora metaforicamente, a obra proporciona.

2 A obra enquanto criação imagética

A arte conceitual é uma prática que privilegia o conceito e o pensamento reflexivo. O


objeto artístico na contemporaneidade invoca uma relação ampla no empreendimento
de significações, e a instalação Penélope é alicerçada na criação conceitual, com
grande empreendimento de significações.

Sobre a relação estética e percepção das obras contemporâneas, Johanson escreve:

O artista, pela transposição tão exata quanto possível de sua “visão”, mais ou menos
rica e profunda, poderá conduzir as pessoas a um universo inteiramente novo,
igualmente rico e penetrante, pois a beleza estética admite graus, e quanto maior a
originalidade e riqueza dos sentimentos e ideias experimentados pelo artista, e
quanto mais direta for a relação com eles, mais intensa e reveladora será a emoção
daqueles que os contemplam por meio da obra de arte (JOHANSON, 2005, p. 51).

O homem antigo dava sentido ao mundo através dos mitos. Com a modernidade o
homem perdeu sua capacidade de produção simbólica, passando esta a ter uma
importância psíquica, uma vez que o inconsciente conserva essa capacidade.

Muitas interpretações sobre o mito de Penélope remetem ao campo da psicologia,


sendo frequentemente comparadas a relações pessoais.

As significações na obra de Tatiana Blass são ao mesmo tempo objetivas e subjetivas.


A compreensão da instalação decorre da forma como serão desvelados os signos e
significados presentes.

Essa capacidade semiótica, inerente ao ser humano, que é capaz de construir relações
metafóricas, enxergado algo como outro algo, exatamente como aconteceu com a
própria artista, nos proporciona uma gama de possibilidades dentro da instalação em
questão. Forma, cor e disposição dos elementos são capazes de evocar os mais
diversos sentimentos.

Em um primeiro momento o tear e a predominância da cor vermelha nos leva a pensar


no amor e na práxis da tecelagem, atividade que durante muito tempo foi considerada
como prática exclusivamente feminina.
127

Se pensarmos na história da Grécia antiga, essa referencia relacionada ao papel da


mulher é ainda mais forte, pois a imagem da esposa perfeita estava diretamente ligada
à figura da tecelã, especialmente as mais abastadas, que deveriam ficar no recato do
lar, se ocupando com a fiação e tecelagem, como era o caso de Penélope, retratada em
vasos gregos, trabalhando em seu tear, a espera do marido (ver figuras 3 e 4).

Figura 3 – Vaso grego. British Museum, Londres – Reino Unido.


Fonte: <www.penn.museum>

Figura 4 – Vaso grego. Museo Archeologico Nazionale, Chiusi – Itália.


Fonte: <www.logosphera.com>

Além do mito de Penélope, na esfera mítica, no que concerne à relação entre a mulher
e a tessitura, há vários mitos que se destacam pela evidência que o fiar, o bordar, o
tecer e o costurar são utilizados pelas figuras femininas como um meio de determinar
destinos de outras figuras e da humanidade, do seu próprio futuro, e de toda uma vida.
128

“Tecer é também uma imagem arquetípica da própria vida, uma trama feita de
muitos fios, experiências, sentimentos e acontecimentos diferentes. Cada um de nós
tem uma história singular, que começamos a tecer no nascimento e concluímos na
morte”. (GREENE; SHARMAN-BURKE, 2001, p. 126).

O tapete vermelho de grande dimensão, que aparece sendo tecido e desmanchado a


partir do elemento chave, que é o tear, também é passível de muitas interpretações.

Para a artista, a concepção do tapete vermelho surge vinculada metaforicamente ao


local da exposição, a Capela do Morumbi: “queria usar algum elemento próprio de
uma capela, por isso escolhi o tapete vermelho, e a partir disso a ideia foi se
desenvolvendo”. 2

Para o curador da exposição, Douglas de Freitas, a simbologia do tapete vermelho não


está particularmente ligada à religião, mas sim ao poder. A cor púrpura, muito
valorizada na Antiguidade e Idade Média, é um vermelho escuro que tende ao roxo,
obtida através de algumas espécies de moluscos. Eram necessárias grandes
quantidades desses moluscos e grande mão de obra para realizar a extração da
substância utilizada para o tingimento, o que tornava o tecido extremamente caro.
Devido ao alto custo, o vermelho era tipicamente usado pela realeza e membros da
Igreja, e com o tempo tornou-se símbolo do poder real e eclesiástico. 3

Para o espectador a dimensão da obra remete ao tempo de espera de Penélope por


Ulisses, ao tamanho do seu sentimento, e a cor ao sangue derramado nas batalhas de
Ulisses.

Outra observação com relação ao tapete é a sua representação enquanto tecelagem,


onde se apresenta tecido em um lado e desfeito no outro, vinculando à ideia de que
Penélope tecia pela manhã e à noite secretamente ela desmanchava. Assim, era como
se anulasse o tempo, até a volta de seu amado (ver figuras 5 e 6).

2 Tatiana Blass em entrevista concedida a Viviane Baschirotto, em março de 2014.


3 www.tatianablass.com.br
129

Figura 5 – Tatiana Blass: Penélope. Capela do Morumbi. 2011.


Foto Everton Ballardini. Fonte: <www.tatianablass.com.br>

Figura 6 – Tatiana Blass: Penélope. Capela do Morumbi. 2011.


Foto Everton Ballardini. Fonte: <design-milk.com>

TAMBÉM NA VISÃO DO CURADOR DA EXPOSIÇÃO, DOUGLAS DE FREITAS, O TAPETE NOS RECEBE NA PORTA
DA CAPELA COMO SÍMBOLO DE PODER E O SEGUIMOS “ATÉ O TEAR, E VEMOS SUA CONSTRUÇÃO DISSECADA;

HÁ UM MOVIMENTO DÚBIO, NÃO SABEMOS SE A PEÇA SE DESMANCHA OU SE ELA ESTÁ SENDO CONSTRUÍDA.

PARADO, O TEAR ACABA POR DESVENDAR O CONSTRUIR DESSA FORMA, UM ATO QUE NORMALMENTE NÃO
SE FAZ VISÍVEL. TATIANA NOS DÁ ALGUNS ELEMENTOS PARA INSINUAR UMA EXISTÊNCIA, UM MOVIMENTO,

OU UMA CONSTRUÇÃO, E CABE A NÓS IMAGINARMOS O RESTANTE.” 4

Em uma interpretação da escritora, e colaboradora do jornal online Folha de São


Paulo, Noemi Jaffe, “fazendo e desfazendo o tecido, ela transforma a demora em

4 www.tatianablass.com.br
130

malícia e, assim, o caos que se vê do lado de trás da capela é como um elogio


vermelho à astúcia feminina.” 5

A obra se estende pela parte externa da capela. Os fios que saem emaranhados do
outro lado do tear e ultrapassam as paredes de taipa, passando pelo buraco, “invadem o
verde do jardim, forrando toda a grama, arbustos e árvores, criando um movimento
dúbio de construção e desconstrução, citação ao mito de Penélope.” 6, além de nos
remeter a questão da passagem do tempo e ao tempo de espera, pois as intempéries
(chuva, crescimento da vegetação) agem diretamente sobre a obra, tomando conta dos
fios que acabam incorporados pela natureza.

As práticas artísticas contemporâneas levam criadores e espectadores a refletirem com


afinco sobre as obras, levando a interpretações diversificadas e pessoais.

Conforme Guattari:

“É evidente que a arte não detém o monopólio da criação, mas ela leva ao ponto
extremo uma capacidade de invenção de coordenadas mutantes, de engendramento
de qualidades de ser inéditas, jamais vistas, jamais pensadas”. (GUATTARI, 1992,
p. 135).

É possível perceber que, sobre a relação obra e mito, a propensão a fabular é


inevitável, afinal a imagem nos defronta com sentimentos e significados diversos.

São fabulações puramente imagéticas, que se concretizam pela apreensão do conteúdo


factual, e levam a um discorrer acerca dos elementos que compõem a obra.

3 A obra no tempo e no espaço

A instalação site-specific Penélope é alicerçada na criação conceitual, com grande


empreendimento de significações, absorvendo e construindo o espaço a sua volta ao
mesmo tempo em que o desconstrói.

Para Miwon Kwon:

“Fosse dentro do cubo branco ou no deserto de Nevada, orientada para a arquitetura


ou para a paisagem, a arte site-specific inicialmente tomou o “site” como localidade

5 www1.folha.uol.com.br.
6 www.tatianablass.com.br.
131

real, realidade tangível, com identidade composta por singular combinação de


elementos físicos constitutivos: comprimento, profundidade, altura, textura e
formato das paredes e salas; escala e proporção de praças, edifícios ou parques;
condições existentes de iluminação, ventilação, padrões de trânsito; características
topográficas particulares (KWON, 2008, p. 167).

A experiência sensível proposta pela artista consiste em estender a obra para o jardim,
provocando uma intervenção na paisagem, fazendo com que a espacialidade do local
faça parte da obra.

Sobre essa intervenção o curador da exposição discorre,

“do outro lado do tear, os fios escorrem desordenadamente, correm o chão ou sobem
as paredes vencendo-as pelos buracos existentes na arquitetura – resultado da técnica
construtiva da taipa-de-pilão – e ganham o jardim, se arrastando ao modo de um
cipó-chumbo, planta parasita que serviu de referência para a obra. Por não ter
clorofila, o cipó-chumbo não pode produzir seu alimento, precisando de uma planta
hospedeira para se manter viva. Por cobrir a planta aos poucos, a sufoca; a única
maneira de matar a praga é matando também o hospedeiro”. 7

O contexto do museu é parte fundamental na poética da obra em questão, funcionando


não só como elemento ativo, mas atuando também como suporte propositivo e
catalisador de interatividade.

“Parece inevitável termos de deixar para trás as noções nostálgicas do local [site]
como sendo essencialmente amarradas às realidades físicas e empíricas do lugar
[place]. Tal concepção, se não ideologicamente suspeita, com freqüência parece
estar fora de sintonia com as descrições predominantes da vida contemporânea como
rede de fluxos sem âncora” (KWON, 2008, p. 182).

A experiência gerada pela obra de Tatiana Blass se dá em um recorte de espaço e


tempo promovendo relações e interações essenciais à existência da obra. A partir do
momento em que a natureza interage com a obra, percebe-se claramente as
articulações visíveis e reais provocadas pela artista.

A artista deixa claro sua intenção quando utiliza os buracos da construção para
estender a obra para o jardim, mais ainda, quando dispõe os fios de forma que toda
ação do tempo interfira na obra, tornando-a visivelmente inacabada, algo em constante
construção.

7 Douglas de Freitas, curador da exposição. Fonte:<www.tatianablass.com.br>.


132

A obra se estende pela parte externa da capela. Os fios que saem emaranhados do
outro lado do tear e ultrapassam as paredes de taipa, passam pelo buraco, “invadem o
verde do jardim, forrando toda a grama, arbustos e árvores, criando um movimento
dúbio de construção e desconstrução, citação ao mito de Penélope.” 8, nos remetendo,
assim, a questão da passagem do tempo e ao tempo de espera (relacionando ao mito
grego de Penélope e Ulisses), pois as intempéries (chuva, crescimento da vegetação)
agem diretamente sobre a obra, tomando conta dos fios que acabam incorporados pela
natureza (ver figuras 7 e 8).

Figura 7 – Tatiana Blass: Penélope. Capela do Morumbi. 2011.

Fotos Everton Ballardini. Antes e depois de seis meses. Fonte: <www.tatianablass.com.br>

8 Fonte: <www.tatianablass.com.br>.
133

Figura 8 – Tatiana Blass: Penélope. Capela do Morumbi. 2011.


Fotos Everton Ballardini. Antes e depois de seis meses. Fonte: <www.tatianablass.com.br>

Como afirma Rosalind Krauss,

“Um dos aspectos mais notáveis da escultura moderna é o modo como manifesta a
consciência cada vez maior de seus praticantes de que a escultura é um meio de
expressão peculiarmente situado na junção entre repouso e movimento, entre o
tempo capturado e a passagem do tempo” (KRAUSS, 2007, p. 7).

As relações intrínsecas com o espaço e o tempo promovem a poética proposta por


Tatiana Blass: ao mesmo tempo em que a obra absorve e constrói o espaço a sua volta
ela o desconstrói. De acordo com Cristina Freire (2006, p. 46) “se o contexto da
galeria ou do museu é parte fundamental da instalação, a primeira observação a ser
feita é que ela não ocupa o espaço, mas o reconstrói criticamente”.

Na instalação site-specific Penélope, o espaço da exposição foi pensado como obra,


pela artista, que estabelece uma relação direta com esse espaço por meio da criação de
uma obra que dialoga com todo o seu contexto de instalação.

4 A obra e a sua efemeridade

Penélope é uma Instalação site-especific de caráter temporário, transitório, efêmero


por excelência. A artista, através da inserção da obra no ambiente, ultrapassa os limites
do espaço interno do sítio e passa a desvelar as características do entorno,
redimensionando e reestruturando a paisagem. A construção poética em Penélope se
134

inicia a partir do momento em que a obra em conjunto com a natureza é remodelada, e


na forma como os espectadores acompanham e percebem essa interação.

Trata-se de uma produção para existir por um período de tempo determinado, em um


local específico e que, mesmo que seja refeita, fora do contexto inicial não será mais a
mesma obra, pois não terá mais o mesmo sentido, nem a mesma configuração.

Segundo Miwon Kwon,

“Nesse contexto, a garantia de uma relação específica entre um trabalho de arte e o


seu “site” não está baseada na permanência física dessa relação [...], mas antes no
reconhecimento da sua impermanência móvel, para ser experimentada como uma
situação irrepetível e evanescente” (KWON, 1997, p. 170).

Conservações de instalações temporárias tem sua importância em tudo de intangível


relacionado a elas, para que não se percam os modos de produção e a prática artística
empregada. As instalações se apresentam como “um conceito prometido, cuja
promessa se desenvolve, cresce, murcha, acerta, fracassa, mas deixa sempre resíduos.
Seu conceito não se dissolve [...]” (HUCHET, 2006, p. 37), mas é preciso cuidado,
afinal a memória do espectador e do artista, sem registro, pode ser tão efêmera quanto
a própria obra de arte.

Documentações e registros acerca das instalações temporárias são imprescindíveis,


sendo fundamental a sobrevivências das mesmas, mas cria-se uma situação onde
temos, de acordo com Cristina Freire (1999), dependendo da forma como o artista
conduz sua ideia, uma linha tênue para definição se o que existe é uma obra de arte ou
um documento.9

São as imagens e outras formas de registro que possibilitam que estas obras de
constituição efêmera sejam analisadas, descritas e de certa forma apreciadas por quem
não teve a oportunidade de vê-las no período em que estiveram expostas, além, claro,
da questão mercadológica, conforme observou Miwon Kwon (2008, p. 174) “A
documentação fotográfica e outros materiais associados com a arte site-specific [...] já
há muito têm sido moeda corrente nas exposições de museus e um selo do mercado de
arte”.

9 FREIRE, Cristina. Poéticas do processo: Arte conceitual no museu, p. 128.


135

Registros documentais são de suma importância, pois se apresentam como extensão e


testemunho de obras efêmeras, garantindo uma perpetuidade que seria impossível sem
tais recursos. A documentação é essencial para que a memória da arte efêmera não
fique limitada apenas as lembranças do artista, do público e dos críticos.

Considerações finais

Em meio a tantas rupturas e reformulações conceituais nas artes, observa-se uma


liberdade em relação às convenções artísticas contemporâneas que faz surgir criações
como Penélope; com poética e linguagem plástica singular, incluindo também a
concepção dos espaços, que funcionam, muitas vezes, como parte relevante para a
compreensão das obras.

O campo ampliado na arte é um campo complexo, um sistema dinâmico sempre aberto


a novas conexões. A questão do lugar, a ocupação do espaço, a instalação da obra no
próprio espaço, são questões cruciais quando se faz uma reflexão acerca da arte
contemporânea e mais especificamente da Instalação.

Obras vinculadas a um lugar previamente determinado, como foi o caso de Penélope


não se apresenta como um suporte estático a ser contemplado, promove vivências com
experiências temporais e espaciais únicas, que vão muito além do fator estético, e que
puderam ser aqui descritas e analisadas com base em registros documentais
(fotografias, entrevistas publicadas, vídeos), sem os quais a obra se perderia no tempo
e no espaço, ficando registrada apenas na memória do artista e dos espectadores
presente durante o tempo de exposição.

A artista, através da inserção da obra no ambiente, que ultrapassando os limites do


espaço interno do sítio e passa a desvelar as características do entorno,
redimensionando e reestruturando a paisagem.

Com isso proporciona uma simbiose entre arte, espaço e espectador, que através da
imagem do tear, comenta, incorpora ou de algum modo implica conotações
simbólicas, culturais e sociais, possibilitando um diálogo com quem a contempla, e os
leva a fabular sobre o mito grego de Penélope e Ulisses.
136

Referências

ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: Uma história concisa. 2. ed. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2012.
BASCHIROTTO, Viviane. Entre meios e matérias. Revista Valise. Rio Grande do Sul:
UFRGS, v. 4, n. 7, p. 49-58. jul. 2014.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: a idade da fábula – história de deuses e
heróis. 26. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
FREIRE, Cristina. Arte conceitual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
GREENE, Liz; SHERMAN-BURKE, Juliet. Uma viagem através dos mitos: o significado
dos mitos como um guia para a vida. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. 1. ed. São Paulo: Editora 34,
1992.
HUCHET, Stéphane. A instalação em situação. In: NAZARIO, Luiz; FRANCA, Patricia
(orgs). “Concepções contemporâneas da arte”. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
JOHANSON, Izilda. Arte e intuição: a questão estética em Bergson. I. ed. São Paulo:
Associação Humanitas/FFLCH/USP, FAPESP, 2005.
KRAUS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins fontes,
2007.
KWON, Miwon. Um lugar após o outro: anotações sobre o site-specificity. Arte & Ensaios
17. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, EBA, UFRJ. Tradução de Jorge Menna
Barreto. Rio de Janeiro, 2008.
137

L.H.O.O.Q. e o valor estético: Como a obra de Duchamp criou um novo


conceito de readymade.
Pólen Pereira Sartório (PPGA-UFES)
138

Em 22 de agosto de 1911, o segurança de plantão do Museu do Louvre, ao chegar no salão


das obras renascentistas, se depara com um espaço vazio antes ocupado por um retrato de
pequenas dimensões de uma mulher, posicionado entre um Ticiano e um Correggio: La
Gioconda (a Mona Lisa), de Leonardo da Vinci. Até o final da tarde do mesmo dia, nada
havia sido divulgado pois não se sabia ao certo se era o caso de um roubo ou de alguma
catalogação do museu. Na noite anterior, o italiano Vincenzo Peruggia, ex-funcionário do
Louvre, passou a noite escondido esperando o dia amanhecer para realizar o que viria a ser o
roubo mais conhecido da história da arte1 e transformar, assim, a pintura renascentista Mona
Lisa em a “celebridade” Mona Lisa.
Até 1911, a Mona Lisa estava longe de ser uma das pinturas mais famosas do mundo. A fama
veio após ter sido estampada em vários jornais e revistas internacionais que noticiaram o
roubo e a obra ter sido finalmente encontrada e devolvida ao museu, no ano de 1913. Hoje
fala-se sobre o sorriso enigmático, a identidade da modelo, a linha do horizonte mais baixa de
um lado, a composição em pirâmide e outros infinitos motivos que seriam justificáveis para
Mona Lisa ter a fama que lhe é atribuída.
Mas a verdade é que o roubo da Mona Lisa criou um mito na arte. Antes de ser encontrada,
multidões passaram a ir ao Louvre só para ver o espaço vazio onde o retrato costumava ficar.
Pela primeira vez, houve fila na entrada do museu. Grande parte dos visitantes do Louvre se
amontoam para dizer que viram e estiveram no lugar onde fica a pequena obra, de 53 por 77
centímetros.
Até o final do século XX, era fácil reconhecer e diferenciar um objeto de arte de um objeto
cotidiano. De uma maneira geral, escultura e pintura simbolizavam a arte e eram concebidos
sem maiores dificuldades sobre ser ou não ser arte. Investigar aonde estava a Mona Lisa
original e apreciar o espaço vazio deixado por uma “obra de arte” não parecia descabido.
No mesmo ano em que a Mona Lisa volta ao Louvre, Marcel Duchamp cria Roda de
Bicicleta.
Duchamp, assim como Da Vinci, começa como pintor de óleos sobre tela, mas cedo abandona
a pintura propriamente dita e, junto ao grupo Dadaísta, começa a contestar os valores
atribuídos às artes em geral. Marcel Duchamp e os demais Dadaístas rejeitam todas as
técnicas e experiências já construídas nas artes. Os artistas fazem uso absurdo de objetos e
linguagens (os quais eram atribuídos valor estético) e não se intimidavam ao usar materiais
industriais, desde que fossem empregados de modo não convencional.2
O Dadaísmo, o mais radical dentre os movimentos da
vanguarda europeia, não exerce mais uma crítica às tendências
artísticas precedentes, mas à instituição arte e aos rumos tomados
pelo seu desenvolvimento na sociedade burguesa3.

Roda de Bicicleta é uma das primeiras obras criada por Duchamp e consiste em uma roda de
metal presa a um banco de madeira de maneira a criar um novo objeto. Apresentada a
princípio com o propósito de negar o objeto artístico como algo intocável e precioso, Roda de
Bicicleta é o primeiro readymade de Duchamp e, mesmo que re-elaborado pelo artista, nem
por isso escapou da crítica sobre ser ou não arte; ter ou não valor. Roda de Bicicleta, assim
como os outros readymades, são capazes de se livrarem de sua utilidade real no cotidiano para

1 WITTMAN, Robert K. Infiltrado: A história real de um agente do FBI à caça de obras de arte roubadas. Tradução
Alexandre Martins. Rio de Janeiro. Zahar, 2011.
2 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 356
3 BURGER, P. Teoria da vanguarda. São Paulo: CosacNaify, 2008, p. 57
139

serem inseridos na esfera da arte.


Em 1913 eu tive a feliz ideia de fixar uma roda de
bicicleta a um banco de cozinha e ficar a vê-la rodar… Em Nova
York, em 1915, comprei numa loja de ferragens uma pá para a neve
na qual eu escrevi “em antecipação ao braço partido”. Foi por essa
altura que a palavra readymade me veio ao espírito para designar
esta forma de manifestação. Um ponto que eu desejo frisar é que a
escolha destes readymades nunca foi ditada por deleite estético. A
escolha baseou-se numa reação de indiferença visual e, em
simultâneo, com uma total ausência de bom ou mau gosto.4

MARCEL DUCHAMP

Roda de Bicicleta, 1913

[original destruído, foto da terceira versão - 1951]

The Museum of Modern Art – Nova York

Inicialmente, pode-se acreditar que Duchamp escolheria aleatoriamente qualquer objeto do


cotidiano e o “transformaria” em arte ao deslocá-lo do lugar original para dentro do
museu/galeria. Essa escolha seria, em partes, de maneira arbitrária, uma vez que o próprio
Duchamp dizia tentar encontrar objetos esteticamente não interessantes.
Claro que, apesar da escolha dos objetos ser feita aleatoriamente, segundo Duchamp, e sem
pensar em algum valor estético, não deve-se confundir a escolha do objeto feita ao acaso com
a atitude de escolher um objeto ao acaso. A ação dos readymades é o lugar no qual Duchamp
demonstra que a arte é muito além da visão, do gostar ou não gostar. Essa atitude eleva
objetos banais a condição de obra de arte quando ganham uma assinatura e são transferidos

4 DUCHAMP, Marcel. À Propos des readymades IN: Arte do séc. XX. Taschen, 2005, p. 457.
140

para os museus e galerias.5


É muito difícil escolher um objeto porque, no final de
quinze dias, você começa a amá-lo ou odiá-lo. Você deve se
aproximar de algo com indiferença, como se você não tivesse
estética emocional. A escolha dos readymades é sempre baseada na
indiferença visual e, ao mesmo tempo, na total abstinência de bom
ou mau gosto.6

Roda de Bicicleta inaugura uma fase, que, segundo Argan, “repudia qualquer lógica, é
nonsense, faz-se (e quando se faz) segundo as leis do acaso7”. A questão relativa a indiferença
na escolha de um objeto, ou a escolha de um objeto passivo, é um dos pontos iniciais para o
pensamento de Duchamp. Roda de Bicicleta configura um readymade assistido, definição que
o próprio Duchamp posteriormente utiliza para designar obras que possuem dois ou mais
objetos extraídos do cotidiano, retirando, assim, a utilização funcional dos mesmos.

Marcel Duchamp instaura uma nova linguagem no campo das artes. Até o começo dos anos
10, o objeto era inábil de ser desligado da subjetividade: primeiramente, a do criador, de quem
originou-se, e logo em seguida, à subjetividade do espectador, de quem é solicitada a
apreciação, de onde parte o juízo de valor8. O juízo de valor é uma atenção específica dada a
algo, e, portanto, se faz de maneira puramente subjetiva e temporária. Não se trata de
compreender um processo, mas sim de estabelecer um julgamento. Este conceito de gosto e
experiência estética é parcialmente anulado por Duchamp, pois a comunicação entre o juízo
de valor e o objeto não são mais o ponto inicial para a prática do artista.

A estética para Duchamp nada tinha a ver com a capacidade, bem ao contrário disso, ele
propõe uma visão relativa do gosto ser como um hábito: ser uma repetição de algo já
instaurado. O gosto como hábito, para Duchamp, se mostra como uma forma de limitação que
bloqueia uma generalizada apreciação da vida9.
Se você começa a repetir alguma coisa várias vezes, isso
se torna gosto. Bom ou ruim, é sempre a mesma coisa, ainda é
gosto.10

E como disse a Cabanne posteriormente:


As pessoas armazenam nelas mesmas uma linguagem de
gostos, boa ou ruim, de modo que quando se deparam quando algo,
se esse algo não é um reflexo de elas mesmas, elas nem ao menos

5 ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL DE ARTE E CULTURA BRASILEIRA. Apropriação. Disponível em:


http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfmfuseaction=termos_texto&cd_verbete=3182 Acesso
em: agosto de 2014.
6 CABANNE, Pierre. Dialogues with Marcel Duchamp. New York: Da Capo Press, 1987, p. 48
7 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 353
8 DUFRÈNNE, Mikel. Esthétique et philosophie. Paris: Éditions Kliencksieck, 1967, p.57
9 MCEVILLEY, Thomas. Empyrrhical Thinking (and why Kant can’t). Artforum, 1988.
10 CABANNE, Pierre. Dialogues with Marcel Duchamp. New York: Da Capo Press, 1987, p. 48
141

olham para isso. Mas eu tento de qualquer forma11.

A Fonte, de 1917, se transforma no exemplo principal da escolha aleatória e negação da


estética do gosto, além de ser o readymade mais notório de Duchamp. O urinol de porcelana
branca, com pouco mais de 50 centímetros de altura, colocado de forma invertida e assinado
por R. Mutt, inegavelmente, na época em que foi enviado ao Salão dos Independentes, causou
estranheza. Houve um grande desconforto por parte do júri ao se deparar com um objeto
industrial produzido em série (além de ser um objeto exclusivamente para uso no banheiro)
sendo promovido à obra de arte. Ainda que o Salão propusesse a aceitação de todas as obras
enviadas, A Fonte foi excluída da exposição.

Assim como Roda de Bicicleta, segundo Duchamp, A Fonte nada mais é que um simples
objeto passivo deslocado de seu lugar comum e denominado “objeto artístico”. O que se vê é
um mictório, mas não é essa a questão de interesse. Não por suas características físicas ou a
forma que foi exposta, assinada e sobre um pedestal, mas sim a hipótese de que algo pode se
tornar arte, sem necessariamente ter sido criado para apreciação estética (e sem a necessidade
também da criação, podendo ser uma simples apropriação, como foi o caso dos readymades).

Se o Sr. Mutt fez ou não com as próprias mãos A Fonte,


isso não tem importância. Ele a escolheu. Ele pegou um objeto
comum do dia a dia, situou-o de modo a que seu significado
utilitário desaparecesse sob um título e um ponto de vista novos –
criou um novo pensamento
para o objeto.12

MARCEL DUCHAMP assinada R. MUTT

A Fonte, 1917

[fotografada para The Blindeman n°2 por Alfred Stieglitz]

Nova York

11 Ibid., p. 94
12 DUCHAMP, Marcel. Em defesa de Richard Mutt. Nova York: The Blind Man, 1917 apud TOMKINS, Calvin.
Duchamp. São Paulo: Cosacnaify, 2005, p. 208-209.
142

Apesar de, por inúmeras vezes, Duchamp afirmar que escolhe os objetos ao acaso, segundo
Thierry de Duve é impossível crer fielmente na fala do artista quando se diz indiferente na
escolha do objeto.
A indiferença visual absoluta é impraticável, e Duchamp
alinha em seus escritos muitas pistas que indicam sua consciência a
respeito. (…) Desde que a disciplina da estética existe, o sentimento
da beleza tem sido a verdadeira substância do gosto, que, por sua
vez, tem participado dos domínios em que a estética legisla.13

E mesmo quando Duchamp diz ir contra a estética do gosto, quando é questionado sobre Roda
de Bicicleta, ele apenas disse que "gostava de olhar para ela, assim como gostava de olhar
para chamas a dançar na fogueira14”.

Um exemplo claro de readymade impossibilitado de ser considerado uma seleção ao acaso é


L.H.O.O.Q., de 1919. Duchamp comprou uma reprodução qualquer da Mona Lisa e
acrescentou um bigode, um cavanhaque e uma legenda abaixo da imagem com as letras
L.H.O.O.Q., que a priori parece uma abreviação, mas lida em Francês soa como elle a chaud
au cul, em Português, algo parecido com ela tem o rabo quente. Além da obra ter sido criada
no mesmo ano do aniversário de 400 anos da a morte de Leonardo da Vinci, é inegável que a
escolha do quadro da Mona Lisa não tenha sido rigorosamente previsto. A esta obra em
particular foi cunhado o termo readymade retificado, fórmula inventada pelo próprio
Duchamp ao descrever objetos que deveriam sofrer acréscimo.

MARCEL DUCHAMP

L.H.O.O.Q., 1919

Philadelphia Museum of Art

13 DE DUVE, Thierry. Kant depois de Duchamp. In: Revista do Mestrado em História da Arte. nº 5. EBA/UFRJ,
1998. p. 131
14 MINK, Janis. Marcel Duchamp: a arte como contra-ataque. Trad. Zita Morais. Singapore: Taschen. 2006, p. 48.
143

Ainda que Duchamp buscasse envolver ironia e utilizar jogos de palavras em seus
readymades, a escolha da Mona Lisa para L.H.O.O.Q. ser de maneira aleatória é irreal. O
mito da arte, o roubo mais famoso da história, o quadro com maior fama pintado por um
gênio, a obra mais valiosa do mundo; todas essas definições evidentemente pesam para a
escolha desse readymade. Se o princípio das obras era ser desprovidas de valor estético,
Duchamp gera uma incompatibilidade de idéias ao criar L.H.O.O.Q.. A partir de L.H.O.O.Q.,
tendo a Mona Lisa como base para esta obra, Duchamp pode ter cometido um deslize que só
se conseguiria perceber quase um século depois.

É impossível não fazer juízo de valor sobre a mulher renascentista, ainda mais depois de todo
o mito criado em torno da obra. Ao eleger a obra de Leonardo da Vinci como um readymade,
Duchamp se apropria de uma pintura com valor estético inestimável, e por L.H.O.O.Q. estar
estritamente vinculada a Mona Lisa, torna-se utópico não lhe atribuir valor estético.

A partir de L.H.O.O.Q., Duchamp abre um precedente para que hoje exista um incessante
número de obras chamadas readymade mas criadas para exclusiva contemplação, se
apropriando de objetos já carregados de juízo de valor. Muitos dos trabalho ditos readymade
atual, apesar de serem atraentes, inteligentes e até mesmo manterem seu foco readymade, não
devem ser considerados como foram os de Duchamp. Podem até parecer Duchampianos, mas
concentrar-se no parecer é perder o sentido. Os readymades de Duchamp funcionaram como
uma rejeição ao estilo, agora o readymade tornou‐se um estilo.15 Duchamp não quis criar um
novo estilo de arte, mas sim “sugerir que os seres humanos podem exibir qualquer coisa uns
aos outros, com intervalos incontáveis de significado e todos os tipos de apreciação que esta
realização se abre”.16

O readymade como hábito e como prática artística vai contra todo e qualquer questionamento
que Duchamp propôs com suas obras. De maneira inusitada e controversa, o principal website
dedicado a vida e obra de Marcel Duchamp, o Understanting Duchamp, comenta
especialmente sobre Roda de Bicicleta em cinco aspectos estéticos: prazer visual ocioso;
efeito cômico; justaposição de movimento e estático; evocação de prazeres domésticos
(sugere uma roda de fiar); e semelhança de uma forma humana (cabeça e pescoço).17 Todos
os propósitos iniciais do readymade são colocados de lado nessa análise altamente
comparativa e cheia de julgamentos estéticos.

A Fonte, quando contemplada hoje em dia, perde drasticamente o sentido ao ser a ela
atribuída explicações como “uma semelhança com as formas femininas”, ou ser reconhecida
como boa ou ruim pelos materiais de sua composição. Ainda que o urinol original tenha se
perdido, a exposição de réplicas (as quais os museus e galerias fazem questão de dizer que são
réplicas) não deveria sofrer nenhuma objeção, já que o importante para Duchamp era a idéia,

15 MCEVILLEY, Thomas. Empyrrhical Thinking (and why Kant can’t). Artforum, 1988, p 126
16 Ibid. p. 126
17 http://www.understandingduchamp.com/ Acesso em: agosto 2014.
144

e não o objeto em si. Procurar algum sinal de virtuosismo, como se faz, é estar completamente
fora do contexto.

Pegaram meus readymades e acharam beleza estética neles. Eu


joguei o suporte para garrafas e o urinol na cara deles como um
desafio e agora eles admiram eles pela beleza estética
deles.18

Réplicas de A Fonte expostas em diversos


museus/galerias

A Fonte, Roda de Bicicleta, L.H.O.O.Q. e outros readymades de Duchamp são hoje,


ironicamente, cabíveis de comparação com a Mona Lisa de Leonardo. Não por aspectos
técnicos, mas pelo simples desejo de contemplação por parte do espectador; da vontade de
entender o porque a obra é boa ou ruim a partir de uma avaliação estética. As filas no Louvre
e as parede de proteção da Mona Lisa são confortavelmente comparáveis aos aquários de
vidro em que se encontram as réplicas das obras de Duchamp.

Milhões de artistas criam; somente alguns poucos milhares são


discutidos ou aceitos pelo público e muito menos ainda são os
consagrados pela posteridade. Em última análise, o artista pode
proclamar de todos os telhados que é um gênio; terá de esperar pelo
veredicto do público para que a sua declaração assuma um valor
social e para que, finalmente, a posteridade o inclua entre as figuras
primordiais da História da Arte. (...), o papel do público é o de
determinar qual o peso da obra de arte na balança estética19.

18 KENCAS, Alexander. The grand Dada. Nova York: The New York Times, 03 de Outubro 1968, p. 51
19 DUCHAMP, Marcel. O Ato Criador. In: BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. São Paulo: Perspectiva, 2004. p.
72
145

BIBLIOGRAFIA:

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: Engenheiro do tempo perdido. São Paulo:


Perspectiva, 1987.

DE DUVE, Thierry. Kant depois de Duchamp. In Revista do Mestrado em História da Arte.


nº 5. EBA/UFRJ, 1998. p. 125 – 149.

DUCHAMP, Marcel. O ato criador. Apresentado à Federação Americana de Artes, em


Houston, abril de 1957 In: BATTCOCK, Gregory (org.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva,
2004.

GUERSON, Milena. Olhares sobre a obra de marcel duchamp - a máquina de idéias, o


antígeno artístico, o artífice intertexto – um pensador na arte. Revista Cogitationes, Vol. II,
Nº 5. Juiz de Fora, ago - nov/2011

MCEVILLEY, Thomas. Empyrrhical Thinking (and why Kant can’t). Artforum, outubro 1988

PAZ, Octávio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 2002.
146

A rainha do Frango Assado - o Kitsch na instalação de Alex Vallaur.


Katler Dettmann Wandekoken (PPGA-UFES)

Resumo: O artigo apresenta uma análise da instalação “Festa na casa da Rainha do Frango
Assado”, de Alex Vallauri, realizada para a XVIII Bienal Internacional de São Paulo, em
1987, a partir da ótica da Estética Relacional e discute como o Kitsch se atualiza na obra.
Palavras-chave: Estética Relacional, Alex Vallauri, Instalação, Graffiti Kitsch.

Title: The queen of Roast Chicken - Kitsch in installation of the Alex Vallauri

Abstract: This paper presents an analysis of the installation "Party in the House of Roast
Chicken Queen," by Alex Vallauri, made for the XVIII International Biennial in 1987, from
the perspective of Relational Aesthetics and discusses how to Kitsch updates on the work.
Keywords: Relational Aesthetics, Alex Vallauri, Installation, Graffiti Kitsch.

Introdução

Reconhecido como o precursor do graffiti no Brasil, Alex Vallauri (1949-1987)


espalhou seus graffitis icônicos carregados de humor e referências da cultura de massa pela
cidade de São Paulo, transpostos em estêncil em inspiração a partir da sua prática com a
xilogravura. Uma singularidade da pop-art com o tropicalismo sintetizada em imagens de
bota preta, acrobatas, cupidos, diabos, tigre, pantera, frango assado e telefone, por exemplo,
brincavam alegoricamente com a imaginação dos transeuntes. As figuras eram mensageiras
do seu despojamento, alegria, humor irônico; um mundo mágico de fantasia que remetiam à
infância, mas também ao desejo, em choque à esterilidade do caos urbano.

Situada entre a pintura e gravura, podemos dizer, a técnica do estêncil é recuperada


por Vallauri nessa década de 1970 para projetos de arte urbana, quando criou matrizes em
escala grande para estampar os espaços públicos com desenhos de fácil leitura e
reconhecimento. Isso teve ressonância também ao se multiplicar também entre outros artistas
de performance e intervenção urbana da época, que tiraram o estêncil do limbo das artes
decorativas e recuperou para a Arte Contemporânea dando uma nova dimensão, aliada às
pretensões da Pop e saudando o uso que havia na década de 1930 pelos artistas da Ècole de
Paris.
147

A preferência pelo estêncil se dá por conta da sua estrutura compositiva bastante


simples, feita à mão, com rapidez e baixíssimo custo - muitas vezes utilizando papelão para
recortar os moldes. Como na qualidade de suporte também facilita uma ação de intervenção
em um muro, por exemplo, era uma escolha certa para não correr grandes riscos com a
ofensiva policial, principalmente em se tratando de um contexto de final da ditadura militar no
Brasil. Por essas qualidades, o estêncil foi uma escolha essencial para o seu projeto de
conduzir uma arte que propicie a experiência estética acessível a todos os públicos.

O historiador de arte e estudioso da obra de Vallauri, João Spinelli, destaca que a


escolha do estêncil vem da preocupação do artista em acompanhar as potencialidades da
gravura, que o faz perseguir um desejo de levar às ruas:

O artista percebeu que, além de estar em livros, pôsteres e cartazes impressos, a


gravura poderia também, de uma forma mais imediata, ser estampada nas paredes e
muros das grandes cidades - como fizeram os artistas do século XIX da belle
époque, que mudaram a maneira de ver a arte por intermédio dos cartazes- as
affiches, por vezes assinadas por importantes pintores como Toulouse-Lautrec
(SPINELLI, 2010, p.30).

O projeto democrático de Vallauri de arte urbana parte do intuito de integrar a arte à


vida social com um toque lúdico, salienta Spinelli (2010, p. 30) “não somente como
instrumento de ação ou de intervenção sobre a realidade, e sim, bem mais que isso, de
invenção”.

Seus graffitis eram arquitetados numa relação com a cidade como se fora uma
narrativa de história em quadrinhos. A Bota Preta (Figura 1) – uma bota fetichista de cano
longo e salto agulha - foi a primeira a criar um percurso à deriva pela cidade. Apareceu em
bancos de praça, rodoviárias, fachadas abandonadas, entrou nos mictórios públicos e saunas
gay. Depois, se juntou a um soutien de bolinhas, um acrobata, luvas que apontavam para uma
direção aleatória, telefone, taça de bebida, até figurar a silhueta de uma sensual mulher, tal
como as misses dos anos 1950... enquanto que num muro próximo, surgia também um mágico
com sua cartola. Assim criavam-se situações relacionais e afetividade entre os graffitis, o
público e a cidade. Em algumas circunstâncias, ganhavam interferência de outros artistas
(FIGURA 2) ou do público, que acrescentava frases ou desenhos em reforço à mensagem
visual proposta pelo artista. A exemplo, Spinelli conta sobre a interferência que a socióloga
Guta Marques fez ao lado do grafitti Mandrake em uma oportunidade: “escreveu: Abra-me
cadabra-me” (SPINELLI, 2010, p. 131).
148

Figura 1 - Graffiti “Bota Preta” de Alex Vallauri em muro de São Paulo. Final da
década de 1970.

Fonte:<https://catracalivre.com.br/geral/promocao-catraca/indicacao/a-arte-o-grafite-
e-o-protesto-de-alex-vallauri>.

Figura 2 - Graffiti de Alex Vallauri (mulher e telefone) com graffiti de Carlos Matuck
(homem com buquê de flores). Rua Inácio Pereira da Rocha. São Paulo. 1983.

Fonte: <http://intervencaourbanaribeirao.blogspot.com.br/2012/05/alex-vallauri.html>.

A jornalista Leonor Amarante destacou em reportagem para O Estado de S. Paulo sua


percepção sobre a sensorialidade disseminada pelo graffiti da Bota Preta:

A bota, um dos desenhos mais populares de Alex Vallauri, perambulou calçadas,


chutou, acariciou, protegeu do frio, dançou em gafieiras e discotecas. Transformou-
se. O couro virou piche, e a perna, parede. Agora ela sai do universo estático do
149

muro e estampa camiseta. Vira personagem de audiovisual. Perpetua-se em xerox e


livro de artista (AMARANTE apud Spinelli, 2010).

Já pelo depoimento de Vallauri, percebemos a intencionalidade de converter os


símbolos da cultura de massa em ícone de fácil assimilação em convergência às
potencialidades que eram exploradas na Arte Contemporânea naquela década pela abertura
alcançada pela Pop art: “ao chegar em Nova York, percebi que o telefone é muito importante
para os norte-americanos. Eles o utilizam para melhor controlar suas vidas. A partir daí, saí
pelas ruas imprimindo telefones por toda a cidade” (NOVA YORK, 1983).

Como um enigma, as intervenções deixavam questionamentos, assim sintetizados por


Beatriz Rota-Rossi (2013, p.11): “a intervenção é política por excelência e a bota nasce como
ícone, que encerra em si a lúcida percepção do autor sobre as questões sociais de seu tempo.
Mas também é um enigma, um fetiche. A quem pertence?”.

Essa inegável potência subversiva dos graffitis de Vallauri no espaço público, de


transgredir a própria maneira de fazer e circular a arte, foi experimentada em nova estrutura
quando convidado em 1985 para integrar o Núcleo 1 – contemporâneos 2 da XVIII Bienal
Internacional de São Paulo, com o tema “O homem e a vida”, de curadoria de Sheila Leirner.

A instalação intitulada “Festa na casa da Rainha do Frango Assado” (Figura 3)


possibilitou uma nova dimensão para a proposta do artista. Ocupou os três andares do prédio
da Bienal, um total de 88m², onde foi construída uma casa-graffiti com sala, cozinha,
banheiro, garagem, jardim e um bar. Nessa instalação, Vallauri trabalhou com os seus já
conhecidos graffitis, boa parte criados em recortes de PVC, que se tornaram personagens da
festa aliados a objetos que habitaram a casa-graffiti. Repleta de ícones da sociedade de
consumo, desde os personagens-moradores, até os móveis reais, como geladeira, cadeira,
sanitário e até papel higiênico eram demarcados com graffiti. Os personagens-graffitis
participavam de uma festa onde a “Rainha” era a anfitriã e o público da Bienal, junto a outros
personagens, era o convidado.
150

Figura 3 - Ambiente de banheiro da instalação “Festa na casa da Rainha do Frango


Assado”, de Alex Vallauri. 1985.

Fonte: Reprodução catálogo “Alex Vallauri: São Paulo e Nova York como suporte”,
Museu de Arte Moderna de são Paulo. 2013.

Criada em um muro para os vizinhos no bairro East Village, em Nova Iorque – onde
Vallauri desenvolveu diversos projetos junto com outros artistas que vivenciavam essa cena
Pop -, a personagem Rainha do Frango Assado (Figura 4) foi personificada pela atriz Claudia
Raia em performance apresentada na abertura da Bienal. Seu gestual, assim como a
caracterização, reforçava a cultura Kitsch que sobressaía como tema da instalação.

Spinelli nos conta as referências assimiladas por Alex na construção da Rainha, que,
como vemos, já trazia uma afetividade nostálgica e idealização de um universo feminino,
além da sua relação com os objetos de espaços de intimidade – para retomar um termo de
Bachelard1 (1993). “A rainha resume uma busca que se inicia intuitivamente nos primeiros

1
Ver: BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. Tratando a casa como
potência de imagens de um “espaço feliz”, ela se torna uma questão fenomenológica. Temos o espaço vivido
como espaço afetivo (BACHELARD, 1993, p. 206). Ao afirmar que “as imagens da casa caminham nos dois
sentidos: estão em nós tanto quanto estamos nelas” (BACHELARD, 1993, p. 20) depreendemos que somos
atraídos a formar vínculos, moramos nessas imagens de intimidade, de cabana, concha e ninho como nos
mostra Bachelard.
151

desenhos de infância, nos mergulhos nas caixas de bijuteria da Casa Lear, nas histórias
infantis, nos filmes dos anos 60, na observação fascinada do mundo feminino e de seus
fetiches” (SPINELLI, 2010, p. 200).

Figura 4 – Ambiente de cozinha da instalação “Festa na casa da Rainha do Frango


Asssado”, de Alex Vallauri. 1985.

Fonte: <www.circuitoa.com.br>.

1. Estética Relacional e antagonismos no espaço da instalação

Ao debruçar-se sobre as práticas artísticas do início dos anos 1990, o crítico e curador
Francês Nicolas Bourriaud identifica lacunas impossíveis de responder criticamente a essas
novas práticas pela teoria e reflexões das propostas vanguardistas ou pelas pós dos anos 1960.
Dada essa inadequação crítico/teórica para apreender as novas práticas artísticas (como as de
Rirkrit Tiravanija e Maurizio Cattelan), Bourriaud cunha o conceito de Arte Relacional para
refletir sobre a produção na sua própria época e tempo atual. Isso porque essa estratégia
relacional explicitada por Bourriaud dos novos artistas se distanciava tanto de um retorno a
qualquer formalismo do legado da modernidade, como tampouco intencionava um sentido de
ineditismo ou de ruptura como exemplo das vanguardas e também não podia ser respondida
152

pela utopia política das décadas anteriores. A conjunção entre arte e vida que está no cerne
das propostas do início de década de 1990, que, contudo, devemos relembrar que já era
referencial para a década de 1960, se personaliza e marca essa conceituação de Arte
Relacional.

O foco desses trabalhos, para entendermos o que está em jogo agora nessa conjunção
entre arte e vida, está na preocupação com as relações humanas e seu contexto social dentro
da arte, na experiência do público como fator construtivo da obra. A participação do público é
requisitada para efetivar a obra. Sendo assim, as problematizações são marcadas por questões
ao mesmo tempo sociais e estéticas.

Em tempos em que o vínculo social se tornou um produto padronizado, a prática


artística se efetiva como uma via de experimentações sociais, sendo o espaço de arte poupado
à uniformização dos comportamentos (BOURRIAUD, 2009, p. 13). Para tanto, multiplicam-
se na contemporaneidade os projetos artísticos das instalações como campo fértil de
experimentações relacionais. Mais do que considerar o espaço, as instalações relacionais se
pautam numa duração de temporalidade não-monumental baseada muitas vezes na
disponibilidade; na percepção sensorial e, como já dissemos, na participação interativa efetiva
do público como (re)criador da obra. Essa cultura interativa apresenta a transitividade do
objeto cultural como fato consumado (BOURRIAUD, 2009, p. 36). Para além de enfatizar
como um campo ampliado, a cultura interativa corrobora com a ultrapassagem do domínio
exclusivo da arte. Como equação, está em jogo o fator sociabilidade.

Seguindo essa perspectiva, identificamos em Alex Vallauri uma preocupação estética


relacional central em sua proposta democrática de arte. Com o desejo poético de que a cidade
fosse pensada como uma história em quadrinhos pelas suas intervenções e vivida
afetuosamente pelos transeuntes no sentido de ser afectado2 – para retomar um termo de
Spinoza (2013) – foi nessa metaformose de seus graffitis transpostos para o espaço expositivo
da instalação na galeria que ele alcançou uma resposta mais direta do público.

A partir da instalação, seus graffitis se relacionavam com o público, o qual vivenciava


todos os ambientes da casa, e se multiplicava para outros espaços indefinidamente, já que o
público podia adquirir seus recortes-graffitis e reproduzi-los em outros ambientes, ou mesmo
adquirir os móveis e objetos da Casa. Assim, se recriavam e renovavam situações ambientais.
Para cada molde que saía, ganhava-se uma nova Casa. Além disso, enumeramos mais

2 Sobre afetos ver: SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
153

processos relacionais nesta obra, como a da obra-obra. Isso porque, meses após a realização
para a Bienal, Vallauri foi convidado a realizar uma instalação semelhante em uma galeria de
Fortaleza, no Ceará, a “Arte Galeria”, a qual ele chamou de “A Rainha do Frango Assado
visita a Rainha do Ceará”. Aqui, fica evidente o elemento propositivo de obra aberta, que não
é fixa, é mutante e depende de seu público e origem/lugar.

Villaça parece entender de forma semelhante tal proposta geral dos projetos de Vallari
quando escreve na apresentação para a exposição individual de Vallauri na Galeria Cesar
Aché, no Rio de Janeiro, em 1985, que “com a participação lúcida do espectador, estes
graffitis-recortes podem criar inúmeras situações, dando a cada associação um renovado
sentido de humor” (VILLAÇA, 2010 apud SPINELLI, 2010, p. 128).

É claro que, em diferentes graus, podemos considerar que a arte sempre foi relacional,
como nos atenta Bourriaud. Mas, para ele, a obra de arte na contemporaneidade sugere um
interstício social – espaço de relações humanas com possibilidade de troca para além das
vigentes no sistema global. A natureza da exposição de arte contemporânea “cria espaços
livres, gera durações com um ritmo contrário ao das durações que ordenam a vida cotidiana,
favorece um intercâmbio diferente das ‘zonas de comunicação’ que nos são impostas”
(BOURRIAUD, 2009, p. 23). Bourrriaud reconhece um caráter inato político na arte
contemporânea, ainda que não se aproxime de uma transgressão: “a arte contemporânea
realmente desenvolve um projeto político quando se empenha em investir e problematizar a
esfera das relações” (2009, p. 23). Mesmo porque, para ele, esse interstício social permanece
mais ou menos harmonioso com o sistema global. A exemplo, cumpre, todavia, uma
contrapartida à mecanização das funções sociais característica da sociedade atual. “No interior
desse interstício social, o artista deve assumir os modelos simbólicos que expõe: toda
representação remete a valores transferíveis para a sociedade”, defende Bourriaud (2009, p.
24). “Toda obra é modelo de um mundo viável” (BOURRIAUD, 2009, p. 27), complementa.
Para ele, a obra de arte pode ser criadora de relações sociais, de microutopias do cotidiano e
não deve ser pensada apenas como reflexo da sociedade. Artista e público agem no aqui
agora, ativando modelos de resposta aos problemas para a sociedade em contraponto à utopia
política que rondou as décadas anteriores.

Assim, refletindo sobre a crítica feita pelo historiador de Arte Edward Lucie-Smith,
em seu livro Art Today, sobre a instalação de Vallauri, em que diz:

Era uma recriação satírica de uma casa de classe média, como o espelho do burguês
com pretensões de ascensão, iniciando a afirmar-se na terra de ninguém, entre os
154

ricos e os pobres. A ascensão da classe média era um fenômeno marcante no Brasil


da década de 1980, especialmente na cidade de São Paulo. A pintura brasileira
reinterpreta com frequência a pop art, adaptando-a ao contexto e optando pelos
suportes não convencionais (LUCIE-SMITH, 2007 apud SPINELLI, 2010, p. 10).

Reconhecemos nesta obra de Vallauri uma leitura sobre os reflexos da nova situação
política do país, como a de um país perdido em sua identidade e guiado por uma classe média
burguesa em ascensão. Contudo, Vallauri se esquiva de uma abordagem panfletária de uma
visão política e se ancora nos aspectos do cotidiano para um efeito de identificação e
autocrítica no público que se permite vivenciar a instalação. Com o enfoque no Kitsch, cujas
disposições analisaremos a seguir, ele cria símbolos e um imaginário artístico que, para nossa
interpretação, sugere esse interstício social: ativa no público uma reação e imersão no
cotidiano, além das esferas sociais e políticas, pelo humor e ironia.

Em resposta direta e crítica à conceituação da “Estética Relacional” formulada por


Bourriaud, Claire Bishop alerta, entretanto, que a defesa por práticas relacionais esconde e
tenta anular o antagonismo nas esferas política, social e cultural dos trabalhos de arte
contemporânea. Em nome da formação de vínculos sociais e microutopias cotidianas, essas
formas estetizadas de arte como pretendeu Bourriaud, a obra é sempre aberta, não em seus
significados, mas em sua própria forma e estrutura. De tal forma também descrevemos a
instalação de Vallauri, que é aberta pela participação do espectador, pela continuidade de seus
graffitis serem multiplicados em outros espaços pelos moldes de estêncil e pela articulação
entre uma instalação e outra, como a “A Rainha do frango Assado visita a Rainha do Ceará”.

Mas, por essa questão, Bishop critica que as interações humanas tornem-se o próprio
tema da obra e diluem-se os parâmetros de avaliação do trabalho de arte. É como se bastasse
para Bourriaud que uma obra aborde a estratégia relacional. Assim, em tom provocativo, ela
declara: “para Bourriaud, a estrutura é o tema - e nisso ele é muito mais formalista do que
percebe” (BISHOP, 2011, p.118). Isso porque ele deixa de fora problematizações no que
tange à própria recepção da obra, já que basta a interação do público como for, e também
questões internas próprias da obra. Nisso, estamos de acordo e Bourriaud se esquiva de
fomentar uma reflexão para além da forma da obra. Ainda que afirme que toda arte contém
algo de político, ele se isenta de análises e deixa as obras sem uma articulação com o contexto
social, político e cultural. Não que elas não contenham, por vezes há bastante potencial, mas
escapam se seu foco analítico, como o caso de Tiravanija, cuja análise feita por Bourriaud é
criticada por Bishop da seguinte forma: “o que cozinha, como e para quem é menos
155

importante para Bourriad que o fato de que ele distribui os resultados do que ele cozinha”
(BISHOP, 2011, p.116).

Citando o exemplo de Gillick, Bishop declara que a estratégia usada “busca uma
abertura perpétua em que sua arte seja um pano de fundo para outras atividades” (BISHOP,
2011, p.116). Aqui, de fato, Gillick se limita em produzir arte como desvio para qualquer ação
do participante.

Por esses exemplos e considerando também a proposta de Vallauri, entramos na


questão do pressuposto democrático inerente à estética relacional. Bishop (2011, p. 117)
desconfia que “todas as relações que permitem diálogo são automaticamente presumidas
democráticas e, portanto, benéficas”. Ora, de fato, a democracia é um conceito e um projeto
político que está no centro dos antagonismos discutidos por Bishop e mereceria uma análise
profunda à parte.

2. Sociabilidades como forma da obra

A instalação “Festa na casa da Rainha do Frango Assado” reconstruiu não somente um


ambiente Kitsch, como uma vida Kitsch dentro do prédio da Bienal. Paredes decoradas com
motivos florais, móveis e eletrodomésticos pintados com motivos de onça, frutas ou frango
assado. Carro e bicicleta mais caros da época na garagem – um Monza cedido pela General
Motors e uma bike da Caloi-, uma fonte com luz de neón no jardim, cores tropicais em tons
fortes e brilhantes que disputavam com todos os bibelôs imagináveis....assim foi montada a
casa da Rainha para receber o público. Os visitantes eram recebidos ao som de boleros,
rumbas e salsas. Desejo, nostalgia e signos de ostentação, aliados à precariedade dos painéis
cenográficos, remetiam ao caráter descartável da modernidade. Ao entrar no ambiente, a
imagem mental remete diretamente à obra pop de Richard Hamilton “O que exatamente torna
os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?” (Figura 5).
156

Figura 5 - Colagem “O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão
atraentes?”, de Richard Hamilton. 1956. Concebido como pôster e ilustração para o catálogo
da exposição This is tomorrow [Este é o amanhã] do Independent Group de Londres.

Fonte: <http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/pioneiro-da-pop-art-richard-
hamilton-morre-aos-89-anos>.

O quadro, composto por colagens de anúncios e publicidade de revistas da época,


compõe uma cena doméstica em que um atraente casal e praticamente nus se exibe em meio a
um amontoado de objetos de desejo da vida moderna, como eletrodomésticos, móveis,
tecnologia, decoração, enlatados, pôsteres, jogos e outros objetos de consumo e prazer da
classe média da década de 1950. Na colagem de Richard Hamilton operam signos da cultura
de massa ordenados pelo consumo e desejo da classe média, tal como os utilizados
posteriormente por Vallauri, que inclusive se inspirou nas referências da década de 1950. A
diferença de um ser apresentado como um quadro e o outro incorporar a tridimensionalidade
da instalação coloca o primeiro como um próprio anúncio dessa crítica às aspirações da classe
média, e aí também está a ironia; enquanto que a instalação nos remete a essa manipulação do
cotidiano pelo próprio público, que teria se emancipado, mas por outra ótica, está preso nessa
nostalgia e no falso desvinculamento com a Modernidade.
157

Os objetos, como dizemos, são portadores desses valores. Conforme define Moles
(1998), o Kitsch é um estado de espírito que, eventualmente, se cristaliza nos objetos. Isso
porque os objetos são portadores de signos e valores da vida cotidiana. O Kitsch é uma
atitude. Traz como problematização a relação cotidiana com o ambiente (MOLES, 1998, p.
15).

Para Moles (1998, p. 26), “o Kitsch é uma arte pois adorna a vida cotidiana com uma
série de ritos ornamentais que lhe servem de decoração, dando-lhe o ar de uma complicação
estranha, de um jogo elaborado, prova de civilizações avançadas”.

Entre os valores do Kitsch destacamos o ritual de um estilo de vida e o Gemütlickeit.


Por ritual exemplificamos a hora do chá, as regras de recepção, ritos, enfim, constitutivos da
burguesia e transmitidos até a nossa época variando de cada sociedade. É a sedução de um
estilo de vida. E pelo termo germânico Gemütlickeit temos o valor Kitsch que é “ligado à alma
e ao coração, intimidade agradável e afetuosa, virtude de sentir-se à vontade” (MOLES, 1998,
p. 15). Isso corrobora com a aproximação do Kitsch com a utopia de ser uma felicidade para
todos – ideal subjacente à sociedade contemporânea. Há algo de universal nele.

Conforme a própria descrição de Villaça sobre a instalação de Vallauri, “A Festa na


casa da Rainha do Frango Assado” recompõe ambientes em que estão implícitos e encenados
esses rituais. Como o banho da mulher sensual, o cozinhar e lavar louça, a comemoração com
o bolo de aniversário, e a própria recepção das visitas na Festa, são situações em que o Kitsch
se liga ao cotidiano pela transmissão de um estilo de vida que toca a intimidade, aliado a esses
objetos de desejo do consumo da burguesia.

Alheio à ideia do belo ou do feio transcendente, o Kitsch cumpre uma função


pedagógica: “o Kitsch dá prazer aos membros da sociedade de massa e, por esta via, lhes
permite o acesso a exigências suplementares e a passar da sentimentalidade à sensação”
(MOLES, 1998, p.77).

Quando passa para o campo da sensação, percebemos que o Kitsch pode se assumir
como Camp, conforme definição de Sontag. O Camp é totalmente estético, é uma forma de
olhar o mundo como fenômeno estético. Contudo, a estética não se dá nos termos de
julgamento do belo, mas no seu grau de artifício e estilização. “Encarna una victoria del estilo
sobre el contenido, de la estética sobre la moralidad, de la ironia sobre la tragédia”
(SONTAG, 2011, p. 370).
158

Outra característica própria é a teatralidade, o que enriquece com nova dimensão a


atitude Kitsch e nos parece cúmplice dos rituais, conforme citamos. Por propor uma visão
cômica do mundo e, portanto, artificial, afastada da Natureza, o Camp se embute dessa
sensibilidade como um papel que o indivíduo exerce para lidar com o cotidiano. Assim
explica Sontag (2011, p. 360): “Percibir lo camp en los objetos e las personas es comprender
el Ser como Representación de un Papel. Es la más alta expresión, en la sensibilidad, de la
metáfora de la vida como teatro”.

Uma questão mais com que o Camp lida é o tempo. E compreendendo essa relação,
também entendemos sua dimensão fantasiosa e mesmo fantástica. Como muito bem coloca
Sontag, não é uma relação de novo versus antigo: “El tiempo libera a la obra de arte del
contexto moral, entregándola a la sensibilidad camp. Otro efecto; el tiempo reduce el ámbito
de la banalidad. Lo que fue banal puede, con el paso del tiempo, llegar a ser fantástico”
(SONTAG, 2011, p. 367). Ou seja, para que o indivíduo acesse o Camp, deve liberar-se de
um moralismo para com o fracasso, é uma capacidade de fantasiar em vez de frustrar-se.

Na instalação de Vallauri nota-se que a atmosfera Kitsch ambiental é dotada de


dimensão lúdica, irônica e antisséria, característicos do Camp. No Camp, “a seriedade
fracassa. Contém uma mescla adequada do exagerado, fantástico, apaixonado e ingênuo”
(SONTAG, 2011, p. 365).

Da mesma forma, quando Moles (1998, p. 22) declara: “objetos inanimados, tendes
pois uma alma”, tomamos os objetos como carregadores de sentido do cotidiano. Pelo
exposto, podemos depreender que os objetos artísticos de Vallauri (Figura 6) articulados no
ambiente de instalação, demarcados como arte pelo graffiti, levam à produção de relações
pela via da atitude Kitsch e Camp.

Bourriaud destaca a importância funcional de formas como a reunião, a festa, a visita


que teria “‘função de ponto e encontro’ que constitui o campo artístico e funda sua dimensão
relacional” (2009, p. 42). Assim, as relações humanas se tornam formas integralmente
artísticas, e os artistas cada vez mais se concentram na invenção de modelos de sociabilidade.
159

Figura 6 - Montagem com fotos de ambientes e objetos da instalação “Festa na casa


da Rainha do Frango Assado”, de Alex Vallauri.

Fonte: <http://sussurrandoemversosetrovoes.blogspot.com.br>.

REFERÊNCIAS

BISHOP, Claire. Antagonismo e estética relacional. Revista Tatuí, n. 12, 2011.


Disponível em: <http://issuu.com/tatui/docs/tatui12>.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

MOLES, Abraham A. O Kitsch: a arte da felicidade. São Paulo: Perspectiva, 1998.

ROTA-ROSSI, Beatriz. Alex Vallauri: da Gravura ao Grafite. São Paulo: Editora


Olhares, 2013.

SPINELLI, João J. Alex Vallauri: Graffiti. São Paulo: BEI Comunicação, 2010.

SONTAG, Susan. Notas sobre el camp. In: SONTAG, S. Contra la interpretación.


Barcelona: Alfaguara, 2011.
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Impresión de estados alterados.


Monica Elisa Contreras, Dario Ivan Ramirez (PPGA-UFES)

Ficha técnica

Autor: CoRa

Título: Impresión de estados alterados

Técnica: Impresión directa de rostro

Medidas: 12 impresiones de 28 x 28 cm c/u

Año: 2015
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Entre Crescer e Cair - Processos iniciais.


Rodrigo Hipólito, Fabiana Pedroni, Maria Angélica Pedroni (PPGA-UFES/CAR-
UFES/PPGHIS-USP)

O presente ensaio visual apresenta parte do processo de criação do trabalho “Entre Crescer e
Cair”. A proposta, em desenvolvimento, joga com dúvidas sobre a dicotomia
Natural/Artificial através de pareamentos como Inserção/Sobreposição, Desgaste/Memória,
Deslocamento/Decet.
Na fase inicial dos diálogos para a concepção de “Entre Crescer e Cair” encontram-se
esquemas, desenhos, palavras soltas e registros fotográficos. Através dessas anotações visuais
é possível perceber o valor da matéria-madeira para o desenvolvimento do jogo poético em
construção. Do mesmo modo, a ordenação realizada através de uma mirada para os utensílios
improvisados para a vida no campo e a evidência das presenças orgânicas e sintéticas marcam
os caminhos visuais indicados por este ensaio.
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Formas Flutuantes.
Wanessa Cordeiro (PPGA-UFES)

A história de Fayga começou em Lodz, Polônia no ano de 1920. Estabeleceu-se no Brasil em


1934, país onde iniciou sua trajetória artística a partir da gravura figurativa nos anos de 1940
até a abstração total perfazendo um caminho de mais de 60 anos de produção intelectual.

Para este ensaio foram selecionadas algumas aquarelas que compuseram a exposição “A
Música da Aquarela” apresentada no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro em
1999. Constituída por uma série de 31 aquarelas em que a cor se manifesta na forma abstrata.
Fayga Ostrower trata a cor como um elemento libertador ilimitado, à medida que a obra se
desenvolve as cores ganham uma variação de maior ou menor intensidade, além de
encontrarem-se umas com as outras em uma expressividade que mantém certa relação com o
real.

Estas aquarelas foram à renovação de uma artista que se encontrava em sua fase madura, pois
remetem à redescoberta de sua subjetividade criadora e de seus objetivos poéticos e estéticos.
Estes trabalhos nascem, em parte, da beleza temporal da música que a artista transporta para a
espacialidade. “Orquestra uma transferência de ritmos, movimentos, fluidez, numa interação
quase completa entre a lógica de criar com autonomia criativa e um mundo poético totalmente
pessoal, o que a leva a criar uma interação entre o material e o acaso criado por seus gestos”.
(COUTINHO, 1999, p. 10)

Fayga acreditava que, com poucas cores básicas, era possível criar relações distintas e
formular ordenações colorísticas que correspondiam a expressivas e naturais estruturações
espaciais. Não é possível falar de cores isoladas, pois o valor exato de cada cor depende do
conjunto onde ela é vista: seu “contexto colorístico”. (OSTROWER, 1986, p. 236)

Na exposição “A Música da Aquarela”, a artista tomou como base criadora três cores básicas,
o azul, o magenta e o amarelo. Neste ensaio, levantaremos considerações em relação às
manifestações do elemento visual cor em algumas das obras expostas. Como por exemplo, no
tríptico Oceano (Figura 1), onde as variações de azul se manifestam em uma textura que
evoca uma vaga.

A imensidão oceânica não permanece estática, pois há simulações de movimentos provocados


pelo vento. Os traços são diretos e se impregnam com os acasos que ocorrem durante a
181

elaboração da obra. Camada após camada, a aquarela gera nuances que se enriquecem com
seus traços anteriores. Formas e cores se transpõem, como se compostas como música, nota
após nota, além de ritmos, repetições e intervalos.

A artista explora as formas através de múltiplas variações, e aprofunda suas descobertas


cromáticas para formar uma atmosfera penetrante e suave. A técnica da aquarela é uma
transmissão ideal entre os títulos que remetem a uma figuração e a abstração, passagem
secreta entre o imaginário e a memória, materializada na transparência adquirida pela tinta
diluída.

O azul possui um movimento concêntrico o que evoca a uma maior sensação de profundidade
e torna-se cada vez mais intenso de acordo com a amplitude de sua tonalidade. “Quanto mais
escuro for o azul maior é a capacidade de atrair os seres humanos para o infinito, despertando
desejos e forças sobrenaturais”. O azul claro fica cada vez mais longínquo e à medida que vai
clareando perde sua sonoridade até encontrar o silencio absoluto e transformar-se em branco
(KANDINSKY, 2000, p.93).

Na obra Transições (Figura 2), ocorre literalmente uma transição entre o branco existente no
suporte passando por um magenta translúcido que vai se transmutando em um azul escuro
traçando uma diagonal no centro da folha criando uma ideia profundidade. Fayga cria um
jogo de equilíbrio e não perde o ponto de apoio, os traços não são diretos e se impregnam com
os acasos que ocorrem durante a elaboração da obra. A aquarela gera nuances que se
enriquecem com traços anteriores, a composição torna-se ritmada e com aspectos fluidos.

Com um olhar sobre a natureza a artista não pretende reproduzi-la, mas reproduzir sua
essência transpondo elementos da natureza para suas obras. Fayga explora as formas através
de múltiplas variações aprofundando suas descobertas cromáticas. O primeiro desafio é se
inscrever na referência original que é o branco do papel arché e depois como dispor a
luminosidade e intensidade de cada cor e ao mesmo tempo conectar as cores entre elas. Essas
obras não são estruturadas por um esboço, existe somente a cor que deve se instalar e
determinar seu lugar adequado criando um intenso jogo entre o imaginário e os segredos de
seus gestos.

Portanto, a artista escreve sobre o pensamento imaginativo propondo como exemplo o pintor
que de fato, não imagina em termos de imagens concluídas, ele pode partir de emoções que
nem sempre são conhecidas conscientemente.
182
183

Referências:

GAGE, John. A Cor na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

LUSTOSA, Heloisa Aleixo; COUTINHO, Wilson; SAMPAIO, Lilia. A Música Da


Aquarela. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, 1999.

BARROS, Lilian Ried Miller. A Cor no Processo, Um estudo sobre a Bauhaus e a Teoria
de Goethe. São Paulo: Senac São Paulo, 2011.

COUTINHO, Wilson; SAMPAIO, Lilia. Fayga Ostrower. Rio de Janeiro: GMT Editores
Ltda, 2001.

GOETHE, J. W. Doutrina das Cores. Tradução GIANNOTTI, Marcos. São Paulo: Nova
Alexandria, 4° Ed, 2013.

OSTROWER, Fayga. Universos da Arte. Rio de Janeiro: Campus Ltda, 3° Ed, 1986.

KANDINSKY, Wassily. Do Espiritual na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2° Ed, 1996.
184

A linguagem corporal como narrativa em Blow Job (1964).


Samir Torres Scardini (PPGA-UFES)

Resumo

O corpo tem potencial imenso para construir narrativas por meio das reações físicas e
fisiológicas que o acompanham. Andy Warhol, na direção do filme Blow Job (1964), ao
longo de 35 minutos expõe em close e com câmera fixa um conjunto de reações de uma
pessoa em uma simulação ou real felação. Em nenhum momento é exibido um parceiro ou
órgão genital, o único direcionamento apresentado é o título. O restante fica por conta da
imaginação dos expectadores com base nas experiências pessoais a visualizarem as reações do
rosto do ator. Uma forma de mostrar o invisível com base apenas nas consequências de uma
provável ação sugerida. A seguir será proposta uma análise da obra com base em Steven
Shaviro, no livro The Cinematic Body.

Palavras chave: Warhol, Blow Job, Shaviro, corpo.

Abstract

The body has immense potential to build narratives through physical and physiological
reactions that accompany it. Andy Warhol toward Blow Job film (1964) over 35 min in close
exposes fixed camera and a series of reactions of a person in a simulation or actual fellatio.
In no time you see a partner or genital organ, the only direction is presented the title. The rest
is up to the imagination of viewers based on personal experiences viewers the actor's face
reactions. One way to show the invisible based only on consequences of a probable suggested
action. The following will be proposed analysis of the work based on Steven Shaviro, in The
Cinematic Body.

Keywords: Warhol, Blow Job, Shaviro, body.

Introdução

Sugerir. É isso que Andy Warhol aparenta fazer no filme Blow Job (1964). Um filme mudo,
em preto e branco, com uma câmera fixa que mostra apenas as expressões de uma pessoa.
Sim, chamo aqui pessoa e não simplesmente ator. Não é possível dividir onde ela atua e onde
ela apenas reage ao estímulo.
185

Se alguém assistir a Blow Job sem ler o título, o filme se trataria apenas de um conjunto de
cenas sugerindo inúmeras situações podendo ser descritas pelos observadores como dor,
tensão, alívio e prazer, tão reais e diferentes tais como a própria realidade.

O real é a inspiração típica de Warhol que apresenta em várias de suas produções a ânsia por
mostrar o cotidiano destacando a arte que existe nele. Mais uma vez, Warhol conseguiu
mostrar as minúcias do real nos surpreendo neste filme mudo que sugere apresentar como
seria o rosto de uma pessoa durante o sexo oral desde o início, orgasmo e satisfação
(INDIANA, 2006).

O Filme

Gravado em 1964, Blow Job compõe a filmografia de Andy Warhol, um desenhista


publicitário que se voltou para o campo da arte experimental realizando obras que retratavam
o cotidiano, sejam os pequenos atos como o sono, comer uma maçã, o sexo, o acender e
apagar das luzes de um prédio à noite, extraindo o potencial sensível de cada uma dessas
ações.

O filme original em preto e branco tem cerca 35 minutos de duração, entretanto, para esta
pesquisa foi possível somente o acesso a uma versão editada de 9 min11. Gravado na
“Factory” uma das poucas coisas de concreto que podemos afirmar sobre a sua realização é
que conta com a participação DeVeren Bookwalter, 25 anos, um dos inúmeros artistas em
início de carreira que frequentavam o estúdio de Warhol (INDIANA, 2006).

A questão se ocorreu ou não uma felação ou se foi uma simulação não será objeto deste
artigo. Bookwalter, ator deste “monólogo” estava no início de sua carreira e, mais tarde, se
consolidou tendo destaque, principalmente, em produções para a televisão, ganhando
prêmios1 como o Los Angeles Drama Critic Award em 1978.

As histórias em torno de Blow Job são várias, como o ator escolhido primeiramente não ter
acreditado que o convite fosse real e não ter aparecido para as filmagens; o sexo oral ser

1
DeVeren Bookwalter – Obituary. NYTimes.com. The New York Times 31/07/1987.
186

realizado por uma mulher; o sexto oral ser realizado por cinco rapazes e até mesmo não ter
ocorrido nenhuma forma de felação, apenas uma simulação.

Warhol não se preocupava com a natureza interior do cinema, mas apenas com seus efeitos
mais flagrantes e superficiais. Destacando uma lógica de estímulo e resposta do corpo
(SHAVIRO, 1993). Com isso, deixa toda a questão de narrativa para o expectador, ficando a
cargo da criatividade pessoal de cada um imaginar como cada personagem chegou àquele
ponto na trama.

As sensações vivenciadas pelos personagens são potentes. Warhol foca em cada sensação
vivida, seja através do uso intenso da câmera fixa ou do close sem tempo pré-determinado,
tendo como resultado a fragmentação das reações físicas (SHAVIRO, 1993). Esse fato pode
ser identificado em um Bookwalter, no início do filme desinteressado e pensativo, e sua
evolução para uma perda de controle das expressões do rosto e finaliza com o
restabelecimento da tranqüilidade após o orgasmo ou pseudo orgasmo.

Blow Job é um tipo de filme onde “nada” acontece, afinal temos apenas um rosto com várias
expressões e um título, nada mais, além disso. Até mesmo o som e as cores são retirados. Esse
minimalismo nos força naturalmente a prestar mais atenção aos detalhes, uma resposta
habitual, no intuito de entender o que ocorre ali. Seria a mesma reação de uma pessoa cega
que tem audição e tato potencializados se comparada a uma pessoa com todos os sentidos
normais (SHAVIRO, 1993).

Possivelmente, Warhol quis aumentar nossa atenção aos gestos de dor, prazer, tédio ou
satisfação, que ganham um peso imenso. O cenário se apresenta neutro: uma parede
descascada sem nenhum detalhe que chame a atenção como forma de acentuar ainda mais o
rosto do personagem.

A fragmentação das reações

Um rosto e com ele se narra todo um acontecimento, sem som, sem texto e apenas um título.
Warhol possibilita a divisão quase que fisiológica da ação sugerida no título. Olhos, boca,
músculos da face, movimento conjunto do pescoço e cabeça, são as únicas formas utilizadas
187

para retratar todo o acontecimento. A importância elemento corpo é tamanha que é possível
fazer uma análise separada de cada elemento com o ato sexual sugerido.
Ao se concentrar no elemento boca, é possível observar que o modelo se mostra comprimindo
os lábios, cerrando os dentes e posteriormente a apresentando de forma convencional até por
final e limpa pelo próprio modelo, demonstrando as fases do ato que vão desde o prazer
intenso até o momento que deixa de se tornar prazer para a dor, e posterior a satisfação
aparente e desligamento. O cigarro no final é como um sinal que tudo voltou a sua
normalidade e o tédio toma conta novamente daquela pessoa, o orgasmo é apenas um
momento do dia.

É possível ressaltar, ainda, a ausência de sorrisos por parte do modelo, como se o personagem
estivesse arrependido ou não tivesse gostado de ter praticado o ato, ou ainda que não
recebesse o prazer que esperava. Os momentos em que os dentes são expostos demonstram
mais dor do que prazer.

As mãos e braços têm participação discreta no filme, pelo menos na forma visível. Aos
3min21 se apresentam levantadas e com os punhos cerrados em uma possível demonstração
de gozo no qual o modelo sugere se render a uma sensação, em um movimento de tentar
segurar a própria cabeça. Em posterior elas surgem em tela postando um cigarro na boca e o
acendendo.

É claro que elas estavam participando da ação o tempo todo, entretanto, pelo corte do close,
não é possível visualizar sinais de sua ação. Aos 5min28 é sugerido que as mãos foram
utilizadas para fechar a calça após o sexo (ação evidenciada pelo movimento dos ombros),
entretanto de forma muito rápida, não coerente com o tempo que se levaria. Seria necessário
se levantar (caso estivesse sentado) ou se abaixar (caso estivesse em pé), esta incoerência no
movimento pode ser um sinal de simulação de todo o ato, sendo esta a falha que demonstra
isso de forma mais clara.

Através dos movimentos realizados pela cabeça e pescoço é possível perceber que ela se
mantém em sua maior parte voltada para o horizonte ou para a vertical, em momentos de
elevação súbita. Ela por várias vezes é encostada na parede, que utiliza como apoio,
188

principalmente após os 2min30 de filme, talvez seja após o orgasmo momento no qual a
felação deixa de promover prazer e passa a causar desconforto.

Após os 5min se observa a estabilização e retorno a normalidade, com movimentos de cabeça,


corpo simulando o fechamento do zíper e em seguida é aceso um cigarro e todo o movimento
da cabeça passa a demonstrar um momento de introspecção, no qual o modelo se preocupar
em se ajeitar e posicionar-se de forma mais confortável no suporte, possivelmente uma
cadeira.

Os olhos não mentem. Quem nunca ouviu esta frase? Realmente, o olhar é um dos elementos
mais utilizados para se verificar a veracidade de um determinado sentimento ou emoção. Nos
primeiros minutos do filme Bookwalter chega a olhar para a câmera, como se estivesse se
ambientando à situação. Warhol tem como característica não gravar dois takes da mesma
cena. Então, provavelmente entre a conversa sobre o filme e o filme propriamente dito não
houve muito tempo para o ator pensar no que ali estaria ocorrendo.

Olhos se fecham em alguns momentos, em seguida voltam-se para baixo, possivelmente para
visualizar um provável parceiro (a), e voltam a contemplar o horizonte. Chama atenção a
indiferença do olhar, pois para o homem que se prende mais aos estímulos visuais, é
fundamental a visualização do ato como elemento a mais do prazer, e no caso representado, o
olhar do personagem se mostra disperso.

A direção

A inovação mais surpreendente de Warhol foi não diferenciar o personagem assumido pelo
ator da realidade da pessoa que a interpreta:

Todo mundo seguiu em frente fazendo o que sempre tinha feito, sendo eles
mesmos (realizando suas rotinas da mesma forma que faziam no dia-a-dia),
entretanto na frente das câmeras. Suas vidas se tornaram parte dos meus
filmes e, claro, os filmes passaram a fazer parte de suas vidas; e assim, muito
em breve não seria possível separar os dois. (BERG, 1989)

A busca por retratar o cotidiano se revela também nos elemento de direção, a ausência de
cortes, roteiros improvisados e sem ensaios e na iluminação simulando o natural.
189

Em Blow Job toda a ação é filmada com uma câmera fixa, com o ator em uma posição central
da imagem, não dá para saber se ele está em pé ou sentado, apenas que se encontra próximo à
parede, pois chega a encostar nela por algumas vezes.

A iluminação é na sua maior parte lateral (esquerda para direita), o que causa uma sombra no
lado direito do modelo, bem como na parte inferior do rosto do personagem nos momentos
em que olha para baixo. Tal luz provavelmente seja proveniente de uma janela, na tentativa
mais clara de retratar com seria o ato ali descrito em sua realidade dentro de uma casa
qualquer.

Quanto ao figurino, o pouco que podemos observar é que é composto por uma jaqueta de
material parecido com couro, com as golas levantadas, aspecto típico do estilo rebelde da
década de 1960, apresentado no filme The Wild One, estrelado por Marlon Brando em 1953.
190

Figura 01: sequência de print screen “Andy Warhol – Blow Job (1964)”. Disponível em:
https://www.youtube.com/wacht?v=1MKfUxIij04. Acesso em: 15/04/2015.

Em termo de efeitos podemos destacar a ausência proposital do som, gerando, por


conseqüência, maior atenção ao conteúdo imagético. Quanto à edição de imagens nota-se
momentos nos quais são acrescentados elementos circulares, possivelmente furos na própria
película, bem como o clareamento intencional da imagem até a sua saturação (vide figura 01).
191

Estes elementos que marcam os primeiros 7 segundos de exibição, e ocorrem novamente por
volta dos 2min50, se repetindo aos 5min55 e aparecem por último aos 8min40. Podemos
interpretar estes sinais como “vinhetas” para os momentos chave do filme, tais como o
primeiro contato da boca com o órgão sexual do ator, a ejaculação, o encerramento da felação
e por último o retorno do personagem para outras atividades.

Conclusão

Blow Job é um filme que não passa despercebido. Gera sentimentos sempre. Um filme que
retrata um ato sexual apenas com a sugestão de reações do rosto de um personagem.

A estratégia, por mais que não tenha sido criada por Warhol, foi executada com maestria,
encaixando-se perfeitamente na proposta de causar o choque do real, isolando o ato do
contexto e apresentando cada reação do corpo com destaque.
192

Figura 02: sequência de print screen “Hysterical Literature: Session One: Stoya (Official)” disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=PQuT-Xfyk3o> Acesso em: 15/04/2015.

Um paralelo do que foi apresentado por Warhol foi feito em 2008 e 2009 pelo fotógrafo
Clayton Cubitt na série de vídeos intitulados “Hysterical Literature”. Nesta versão são
apresentadas mulheres estimuladas por meio de vibradores tentando realizar a leitura de um
livro. Os vídeos tiveram como plataforma de exibição o Youtube, sendo que o primeiro
“Hysterical Literature: Session One: Stoya (Official)” contabilizou mais de 15 milhões de
193

exibições. Comparando o projeto de Warhol e Cubitt, percebemos que os aspectos de direção


da câmera fixa são mantidos, bem como o tom preto e branco, entretanto os vídeos
apresentam som, o que chama a atenção do expectador para outros elementos.

Clayton James Cubitt é conhecido por criar obras ousadas que interagem erotismo e moda.
Seus trabalhos são uma tentativa de ultrapassar os limites do óbvio e, assim com Warhol,
descobrem que é muito mais impactante insinuar do que simplesmente exibir um ato.

Hysterical Literature e Blow Job são propostas de Cubitt e Warhol para uma análise mais
profunda dos atos por elas tematizados. A masturbação feminina e o sexo oral são temas que
movimentam com intensidade o imaginário das pessoas. Entretanto, a maioria das produções
acerca desse assunto se foca, basicamente, na estimulação dos genitais. Estes criadores
visualizaram nas reações corporais aos estímulos, algo muito mais arrebatador e capaz de
produzir significado.

Por isso, alteram o foco de suas objetivas para as mudanças no rosto, corpo e fala,
desprezando o elemento fálico ou vaginal. Como resultado, alcança manifestações muito mais
reais, a reação dos rostos e os espasmos corporais ocupam a totalidade da tela, e não
concorrem com a visualização dos órgão sexuais, que provavelmente chamariam mais a
atenção dos expectadores. Soma-se a tudo isso, a estética simples dos cenários, figurinos,
juntamente com a utilização do P&B nas imagens.

Em Blow Job e em Hysterical Literature a atividade invisível é radicalmente presente a partir


das respostas visíveis que provoca (SHAVIRO, 1993). Podemos destacar como a principal
característica das duas produções o seu poder de sugestão, hoje tão evidenciado nas
propagandas, nos quais se mostra um produto e posterior uma reação. Sem essa estratégia
seria impossível relacionar causa e efeito dos produtos anunciados, dentro do curto tempo de
30 segundos dos comerciais de televisão. O filme ainda mostra o quão avançado se
encontrava Warhol em relação ao seu tempo. Suas estratégias de direção ainda são
consideradas inovadoras e inspiradoras mesmo 50 anos após serem utilizadas.
194

Referências:

BERG, Gretchen. “Nothing to lose: an interview with Andy Warhol”, IN Andy Warhol:
film Factory, London: British Film Institute, 1989.

INDIANA, Gary. Andy Wahol: Mr. América. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2006.

SHAVIRO, Stevie. The cinematic body: teory out of boudns. Minneapolis: University of
Minnesota, 1993.
195

A mulher gorda na arte: Transgressões e possibilidade.


Júlia Almeida de Mello (PPGA-UFES)

Resumo

Este artigo tem por objetivo apresentar uma discussão sobre a produção artística de mulheres
corpulentas que trazem uma carga política direcionada a busca pelo distanciamento dos
preconceitos através da arte. Questões concernentes a gênero, identidade e poder são
entrelaçadas através da leitura de obras de artistas como Laura Aguilar, Rebecca Harris,
Brenda Oeulbaum, Elisa Queiroz e Fernanda Magalhães. A metodologia da pesquisa se baseia
em um levantamento próprio que iniciamos em 2011, com o propósito de (re)conhecimento
do projeto poético dos artistas que utilizavam o corpo gordo como imagem geradora em suas
criações. Os resultados comprovam a potência artística na reavaliação de valores culturais
engessados e homogeneizados.

Palavras-chave: Arte. Gordura. Gênero. Política.

Abstract

This article aims to present a discussion of the artistic production of corpulent women that
brings a political load directed to the search of prejudice detachment. Issues related to
gender, identity and power are intertwined by reading works by artists like Laura Aguilar,
Rebecca Harris, Brenda Oeulbaum, Queiroz Elisa and Fernanda Magalhães. The research
methodology is based on an survey we started in 2011 with the purpose of (re)knowledge of
the poetic project of the artists who used the fat body as generating image in their creations.
The result shows the artistic potency in the revaluation of cultural values stiffed and
homogenized.

Keywords: Art. Fat. Gender. Policy.

A arte é capaz de refletir momentos, histórias, memórias, culturas e sociedades. Tendo


essa potência, ela também é capaz de mostrar e reamostrar os corpos de seu tempo.
Várias figuras foram tidas como ideais ao longo dos séculos. Apesar disso, os padrões
clássicos de beleza pareceram perdurar. Ainda assim, com a popularização da
obesidade, o aumento de peso da sociedade e as especulações médicas em torno dos
níveis de gordura, diversos artistas encontraram maneiras de demonstrar seu
196

posicionamento em relação a esses assuntos. Como dizem Haslam & Haslam (2009, p.
197), “obesity is opening up new areas of artistic exploration and expression”1.

Em 2011, iniciamos um levantamento para conhecer melhor quais artistas trabalhavam


ou já haviam trabalhado com o corpo gordo na contemporaneidade e encontramos, à
época, mais de 50 representantes. Grande parte deste número corresponde a artistas
corpulentas que parecem se relacionar com a arte como forma de rediscutir o lugar
desse corpo na sociedade. Essas artistas parecem apresentar uma arte de enfrentamento
às questões concernentes ao gênero e aos padrões estéticos, através de trabalhos que
comportam uma forte carga política. Embora as artistas não se assumam em algum
tipo de movimento, indicam buscar resultados semelhantes: o distanciamento do(s)
preconceito(s).

As artistas que veremos no decorrer deste artigo possuem histórias e corpos em


comum. Começaram a idealizar a sua arte a partir da sua imagem, da exploração da
sua corpulência em busca de um confronto com o preconceito. Depois de usarem a
arte para extravasarem suas angústias e reivindicarem seus direitos, muitas indicaram
perceberem na arte uma possibilidade de traduzir vozes daqueles que, por algum
motivo, foram silenciados. Assim, o que parte do próprio corpo, transcende para o
reflexo alheio, uma proposta que condiz com as abordagens da teoria Queer, que para
a filósofa Beatriz Preciado (2010), acabou tomando o sentido de denúncia de
exclusões e de falhas das políticas de identidade.

Muitas das artistas que trabalham a partir de suas formas corpóreas fazem uso do
autorretrato. Como sugere a historiadora de arte e feminista Amelia Jones (2002), o
autorretrato, à primeira vista, pode representar uma espécie de autobiografia, um texto
narrado em primeira pessoa. Além disso, para artistas mulheres, ele pode ser usado
como uma potente estratégia que as coloca no lugar de “autoras”, ao invés de
“objetos” como foi (e tem sido) a maneira tradicional de representação do corpo
feminino na história da arte.

In picturing themselves photographically, they speak themselves as subjects


(creating their own visual narrative or autobiography of sorts) and thus

1“A obesidade está abrindo novos caminhos para a arte e a expressão” (HASLAM & HASLAM, 2009, p. 197, tradução
nossa).
197

unhinge the age-old tendency to collapse any image of a woman’s body into
the status of speechless and dominated object2 (JONES, 2002, p. 69-70).
Jones sugere que para muitas artistas feministas, usar o próprio corpo na fotografia
pode ser uma maneira de minar a concepção cartesiana convencional onde o tema está
unificado ao autor (implicitamente masculino). Elas podem, com o próprio corpo, criar
interconexões entre sujeitos e objetos, autor e observador, ressignificando o contexto
do autorretratamento.

A primeira artista que trazemos para a discussão faz uso dos autorretratos e teve a sua
produção artística destacada nos anos 1980. As fotografias de Laura Aguilar (1959-)
se apresentam como uma tentativa de discutir preconceitos de raça, cor, tamanho,
origem e sexualidade. Além de se considerar latina (possui descendência mexicana,
embora tenha nascido na Califórnia), é lésbica e possuidora de um corpo considerado
excessivo para os padrões contemporâneos. Muitas de suas obras parecem reluzir uma
espécie de fusão entre corpo (na maioria das vezes gordo) e paisagem.

O autorretrato de Aguilar reflete a mesma ideia de afirmação do corpo que outras


artistas que serão citadas. Constatamos que é bastante comum o projeto poético se
originar do conflito das artistas com o próprio corpo e, com o desenvolvimento das
ideias, se transformar em algo mais coletivo. Como se fosse necessário entender as
suas particularidades para tentar compreender outros silenciados pelas barreiras
sociais. Aguilar começa discutindo, expondo, revelando sua corpulência e aos poucos
começa a dialogar com o “ser latina”, “ser homossexual” e em seguida, com o “somos
todos diferentes”, justamente distanciando a sua arte do padrão
“masculino/hetero/branco”. Talvez haja um empenho em quebrar as barreiras e buscar
desconsiderar essas categorias engessadas e homogeneizadas que provocam a
exclusão.

Para Jones, artistas como Aguilar propiciam uma experiência de quebra com o “isso
pertence a mim” e encorajam o espectador a se reconhecer no outro. São obras que
podem provocar uma aproximação com a cena, uma compreensão da situação, ou que
no mínimo fazem com que os privilégios da hegemonia sejam questionados.

Na Figura 1, temos um autorretrato de Aguilar que, liberta de amarras sociais, se


dispõe nua no quarto de outra mulher, como sugere o título.
2 “Ao se fotografarem, elas falam como sujeitos (criando a sua própria narrativa visual ou autobiográfica) e, assim, pertubam
a tendência tradicional de dispor qualquer imagem do corpo de uma mulher para o status de objeto, sem voz, dominado”
(Jones, 2002, p.69-70, tradução nossa).
198

Figura 1 – In Sandy’s room, Laura Aguilar, 1989. Fotografia, 47 x 52 polegadas. Fonte:


www.leslielohman.org/exhibitions/2014/images-2014/bodies/23_Aguilar_Sandy's.jpg. Acesso em: 23
nov. 2014.

Entendemos a imagem como uma forma de provocação, onde a artista parece não se
importar de estar sendo observada nua, se refrescando, no quarto de Sandy. Para Jones
ela, como uma “odalisque”, obviamente perturba a imagem posta tradicionalmente na
cultura ocidental da disponibilidade da sexualidade feminina e da musa (feminine
ideal) como sendo magra, branca e heterossexual. Ela parece ironizar a posição de
mulheres como Olympia, cujo corpo longilíneo e a pose sedutora, são trocados pela
corpulência e uma pose de autorreflexão.

Segundo Jones, Aguilar desconstrói os retratos de musas de artistas como Édouard


Manet (1832-1883) e Ingres por colocar a rotundidade no lugar da carne sólida, a
libertação no lugar do confronto (no caso de Olympia) e, afinal, um corpo muito
menos disponível ao espectador. A predileção pelas escalas de cinza no autorretrato de
Aguilar também retiram todo o luxo dado nos retratos de Manet e Ingres.

Ainda de acordo com Jones, o espectador, ao entrar em contato com a cena criada por
Aguilar, tenta tatear, procurar algo reconhecível nela, mas por não conseguir, acaba
percebendo a alteridade, sente-se incentivado a ver o outro nele mesmo (ou a se ver no
outro).
199

Brenda Oeulbaum (1961-) tem uma postura política bastante aproximada à de Aguilar,
embora a sua produção não enfoque tanto o autorretrato. A artista também abraça
causas de gênero para discutir os seus trabalhos e todos parecem partir de algo
subjetivo rumo ao coletivo. Ela desenvolve o “Venus of Willendorf Project”, que
resulta em esculturas feitas a partir de livros de dietas e que carrega o seguinte slogan:
“They’re not making your @$$ any smaller, so let me make some kick @$$ art with
them!”3

Figura 2 – The Venus of Fonda, Brenda Oeulbaum, 2013. Escultura com páginas de publicações de
dieta e exercícios da atriz Jane Fonda. Fotografia: Patricia Izzo. Fonte:
http://brendaoelbaum.me/page/2/. Acesso em: 23 nov. 2014.

Na Figura 2 temos um dos trabalhos do projeto. A Vênus surge a partir de páginas de


publicações de dietas e exercícios da atriz Jane Fonda (1937-), considerada símbolo da

3 “Eles não vão tornar a sua bunda (@$$, ou ass) menor, então deixe-me fazer uma arte “maneira” (kik@$$, ou kickass) com
eles” (NO DIET, 2013).
200

saúde e boa forma e que nos anos de 1980 promovia atividades e redução de medidas
através de artigos e videoaulas. Segundo Oeulbaum (2013), foi descoberto que Fonda
possuiu distúrbios alimentares como anorexia e bulimia, desencadeados por baixa
autoestima e dificuldade de aceitação da própria imagem, o que a faz concluir que “a
thin body does not a healthy person make neither in mind nor body”4 (s.p).

Um curta disponibilizado pela artista permite uma melhor compreensão do seu


posicionamento frente às dietas. “Results may vary (trigger warning)” (2012), dirigido
por Brett Scott, possui uma estética que remete ao film noir com um senso de humor
apurado. Oeulbaum aparece com um livro de dietas na mão e decide se pesar. Ela se
mostra tão interessada no livro que começa a digeri-lo (literalmente). Página, por
página, a artista envolta em uma roupa bordada com palavras sinônimas de gordura
passa cerca de 8 minutos deglutindo o livro. A cada minuto sua feição vai mudando,
sugerindo um desconforto em relação ao sabor das escritas. No final, quando resta
somente a capa, ela se direciona a balança e, com o mesmo peso inicial, comprova que
o livro “não valeu de nada”.

A artista recebe doações de livros para a produção de novas Vênus através do seu blog
e possui outros projetos e participações com outras artistas engajadas nas questões
concernentes a corpo e gênero.

Outra artista que também merece ser citada e que possui discursos interligados a
Aguilar, Oelbaum, Queiroz, Magalhães e tantas outras, é a Rebecca Harris (1977-). O
corpo é a chave para a sua produção artística e a sua relação com ele frente aos
discursos sociais e médicos também parece resultar em tensões. Formas de extravasar
o preconceito, o não aceite da gordura.

Ela atua com práticas artísticas variadas e se considera uma fat activist. Há dois anos,
conta que deixou de fazer uma cirurgia bariátrica para explorar os limites do seu corpo
“grande” e a arte tem sido o meio para isso (HARRIS, acesso em: 23 mar. 2014).

4“Um corpo magro não torna uma pessoa saudável, nem em mente, nem em corpo” (OEULBAUM, 2013, s.p, tradução
nossa).
201

Figura 3 – Untitled (red MRI), Rebecca Harris, 2013. Tecido bordado em ponto cruz. Fonte:
www.rebecca-harris.com/#!2013/c23sg. Acesso em: 23 mar. 2014.

Na Figura 3, Harris manipulou digitalmente o resultado de uma ressonância magnética


e o reproduziu em bordado com pontos cruz sobre uma espécie de manto vermelho. A
postura do corpo nos traz uma ideia de passividade. A cor vermelha, inclusive, se
analisada com a incidência da luz dourada que banha a parte superior do trabalho,
pode remeter a algo divino, sagrado. Ao mesmo tempo, a forma com que a espécie de
manto fica suspensa na parede, através de ganchos, nos traz a memória de aventais
médicos/hospitalares, que por fim são bastante semelhantes aos usados em açougue.
Como Saville, Harris parece ter feito uma brincadeira entre corpo + carne + sangue.
Esta obra fez parte da exposição “Body Modification & the Female Body” (2013), cuja
proposta era justamente mostrar ao espectador a interpretação da artista frente às
modificações corporais, principalmente relacionadas à redução de peso, promovidas
pela medicina.

Elisa Queiroz (1970-2011), também fazia uso de autorretratos e uma das marcas do
seu processo criativo era a ironia, que encontra-se presente em obras como
“Intempérie de espaço” (Figura 4), instalação com doses de humor e ludicidade.
202

Figura 4 - Intempérie de espaço, Elisa Queiroz, 2002. Instalação. Ploter, papelão, tecido e plástico.
Fonte: QUEIROZ, [200-].

Trata-se de dois cabides, cada um sustentando algo: o da esquerda um vestido e o da


direita um corpo gordo com a cabeça de Queiroz. O vestido parece não caber nesse
corpo caricaturizado plotado sob uma folha de papelão. O trabalho lembra as
brincadeiras de vestir bonecas e recortar e colar roupinhas em desenhos de papel, mas
o título indica que o jogo da artista não é assim tão ingênuo. “Intempérie” significa, no
sentido figurado, catástrofe, infortúnio. A instalação apresenta um contraste de
tamanhos: vestido estreito e corpo gordo. O vestido combina com o corpo, mas não
cabe nele. O espectador fica instigado a vestir esse corpo, mas se intriga ao notar as
diferenças de tamanho entre um e outro. Cada um no seu espaço, interagindo sem se
unir, pode ser uma das mensagens da obra, que também nos lembra que

[...] os regimes de verdade contemporâneos permanecem imersos em uma


cultura somática, em vista da qual os corpos ganham visibilidade e
203

inteligibilidade em função de sua materialidade física mais primária, como o


volume, a forma e a superfície (RAGO, M.; VEIGA-NETO, A.; 2009, p. 269).
A última artista que veremos é Fernanda Magalhães (1962-) que também possui uma
poética autorreferencial. Seus projetos também podem ser tidos como questionamentos
frente aos padrões estéticos aparentemente impostos pela mídia, cultura e sociedade de
uma maneira geral. No documentário “Rotundus” (2005) sobre a artista, produzido
durante a Oficina de Documentários promovida pela Kinoarte de Londrina, mostra-se
inconformada com a frequente associação da corpulência com algo que incomoda, que
é deslocado. Seu corpo parece ser utilizado como protesto, posicionamento político
contra, dentre outras coisas, a hegemonia da magreza.

“Gorda 9” (Figura 5) é um dos trabalhos da série “A representação da mulher gorda


nua na fotografia”, iniciada em 1995.

Figura 5 – Gorda 9, da série “A representação da mulher gorda nua na fotografia”, Fernanda


Magalhães, 1995. Fonte: www.flickr.com/photos/fernandamagalhaes. Acesso em: 14 mar. 2014.
204

Magalhães dispõe no centro do trabalho sua fotografia e em ambos os lados, o corpo


de uma mulher magra, cada lado com uma metade do corpo. Sua cabeça foi substituída
pela cabeça da Vênus de Willendorf e em torno de seu corpo lemos: “A cabeça da
Vênus de Willendorf da fertilidade e deusa do colo”. Magalhães, tal qual Brenda
Oeulbaum, se apropria da deusa corpulenta para salientar que a gordura deve ser
entendida em um campo mais amplo, distante da frequente associação negativa e com
doenças. Segundo Tvardovskas e Rago (2007, p. 66), a imagem “acéfala” de
Magalhães pode indicar que qualquer cabeça pode se encaixar ali, pois esconder o
próprio rosto pode denotar que “[…] seu problema não é individual, mas coletivo”.
Ela encontra-se em uma altura maior que as metades da mulher magra e sob uma
espécie de pódio feita por um recorte de um texto que diz: “Uma outra página enumera
uma lista de pedidos aos aliados não gordos. O primeiro: ser vista como um ser
humano sexual”. Identificamos um desejo em reafirmar a volúpia e de protestar contra
as associações do gordo com algo distante do prazer sexual. O “tapa sexo”
representado pela colagem em papel rosa reforça a ideia.

A conclusão a que pudemos chegar pinçando essas artistas é que existe um campo de
luta que visa, dentre outros valores articulados, distanciar o corpo gordo da negação.
Uma forma de autoaceitação e relação com práticas políticas feministas e/ou Queer,
onde ser gorda pode significar desconfigurar o mito feminino. Nesse sentido, a
imagem produzida por essas artistas enfrenta as imagens midiáticas estudadas por
Bordo (2003), que insistem em serem propagadas em filmes, na televisão e na mídia
de uma maneira geral, impondo regras para a feminilidade. Os resultados são
repensamentos da situação desses “sujeitos corpos” na contemporaneidade.

Em últimas palavras, podemos dizer que a gordura na arte contemporânea vem aparecendo
como uma espécie de porta voz daqueles que se tornam, de alguma maneira, silenciados pelos
discursos hegemônicos.
205

Referências bibliográficas

AGUILAR, Laura. In Sandy’s room. 1989. Disponível em: < http://www.leslielohman.


org/exhibitions/2014/images-2014/bodies/23_Aguilar_Sandy's.jpg >. Acesso em: 23
nov. 2014.

BORDO, Susan. Unbearable weight: feminism, western culture and the body. 10 ed.
Berkley e Los Angeles: University of California Press, 2003.

HARRIS, Rebecca. Untitled (red MRI). 2013. Disponível em: <http://www.rebecca-


harris.com/#!2013/c23sg>. Acesso em: 23 mar. 2014.

_______________. Artist’s statement. Disponível em: <http://www.rebecca-


harris.com/#!artists-statement/c1k4w>. Acesso em: 23 mar. 2014.

HASLAM & HASLAM. Fat, glutonny and sloth: obesity in literature, art and
medicine. 1 ed. Liverpool: Liverpool University Press, 2009.

JONES, Amelia. Performing the other as self. In: SMITH, Sidonie; WATSON, Julia.
Interfaces: women, autobiography, image, performance. Michigan: University of
Michigan Press, 2002.

MAGALHÃES, Fernanda. Fernanda Magalhães. Disponível em:


<http://www.flickr.com/photos/fernandamagalhaes>. Acesso em: 14 mar. 2014.

OEULBAUM, Brenda. The venus of Fonda. 2013. Disponível em:


<http://brendaoelbaum.me/page/2/>. Acesso em: 23 nov. 2014.

PRECIADO, Beatriz. “Entrevista com Beatriz Preciado, por Jesús Carrillo. Poiésis,
Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte da UFF, Niterói, nº 15,
agosto de 2010. Disponível em:
<http://www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis15/Poiesis_15_EntrevistaBeatriz.pdf>. Acesso
em: 24 jul. 2013.

RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (Orgs.). Para uma vida não-fascista. 1


ed. São Paulo: Autêntica, 2009.

QUEIROZ, Elisa. Elisa Queiroz. [200-]. Catálogo de obras da artista não publicado.
Arquivos do Processo de Criação de Elisa Queiroz disponível no Laboratório de
Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA) na Universidade Federal do Espírito Santo.
36 p.

TVARDOVSKAS, Luana; RAGO, Margareth. Fernanda Magalhães: arte, corpo e


obesidade. In: Caderno Espaço Feminino, Revista do Núcleo de Estudos de Gênero da
Universidade Federal de Uberlândia, v. 17, nº1, jan./jul. 2007. Disponível em:
<http://www.seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/378>. Acesso em: 24 jul.
2013.
206

O encontro entre Édipo e a esfinge em pinturas.


Antônio Leandro Barros (PPGH-UNICAMP)

Resumo
Considerando a temática desse V Colóquio, essa comunicação se propõe através de uma
recolecção de pinturas explorar a poética de um dos temas mitológicos mais importantes e
influentes da história da arte: o mítico encontro entre Édipo e a Esfinge quando o herói trágico
caminhava de volta a Tebas rumo a concretude de seu destino. Assim, essa comunicação
trata-se de um estudo de caso visando apresentar pinturas importantes sobre o tema e que de
certa forma moldaram nossa imaginação da cena. São cinco as obras selecionadas compondo
um painel interessante da força histórica do próprio tema: dois vasos gregos do século V a.C.;
um dos três grandes quadros pintados por Ingres; a pintura de Gustave Moreau; e finalmente o
quadro pintado já em fim de carreira por de Chirico.

Palavras-chave: Édipo, esfinge, encontro, pintura.

Abstract
Considering the theme of this Colloquium, this communication proposes, through a
recollection of paintings, explor the poetics of one of the most important and influential
mythological themes in art history: the encounter between Oedipus and the Sphinx, when the
tragic hero walked back to Thebes towards the concreteness of his fate. Thus, this
communication it is study in order to present important paintings on the theme and that
somehow shaped our imagination of the scene. There are five works selected composing an
interesting panel of the theme own historical strength: two greek vases of the fifth century
BC; one of three great paintings by Ingres; Gustave Moreau painting; and finally the painting
already in late career by de Chirico.

Key-words: Oedipus, sphinx, encounter, painting.


207

É preciso lembrar que embora a trilogia tebana de Sófocles seja ainda hoje o
texto fundamental dos estudos sobre Édipo ela não representava em palco a vida
pregressa de Édipo, isto é, antes de ser Rei. Considerando-se que, até onde se sabe,
nenhum dos grandes tragediógrafos atenienses fez uso do episódio no teatro, poder-se-
ia argumentar das dificuldades cênicas para uma tal representação. Longe dessas
dificuldades, são diversas as fontes antigas textuais e vasculares a respeito do tema.

Na cultura mitológica, a cena representada é o momento decisivo para a


confirmação de todo o destino da personagem trágica em questão. Dentre as fontes
literárias antigas, o texto considerado mais completo é que se encontra na Biblioteca,
escrita aproximadamente no século II e atribuída a Pseudo-Apolodoro (3.5.8). A
esfinge teria os pés, o peito e o rabo de leão, cabeça de mulher, e asas de pássaro (à
diferença dos monumentos egípcios, os quais foram chamados por Heródoto de
androesfinge – sem asas e com cabeça masculina). O monstro teria sido enviado por
Hera e, de acordo com essa versão literária, seu enigma seria: “O que é que tem uma
voz e ainda se torna quadrúpede, bípede, e trípode?” (trad. livre) Édipo encontra a
solução como sendo o homem: quando bebê engatinha, quando adulto anda sobre duas
pernas, e quando velho usa o apoio de uma terceira perna, por exemplo, um cajado ou
bengala.

Porém, desde a antiguidade coube à pintura as representações mais decisivas


desse ponto particular da mitologia edipiana, que desde sempre teve papel
significativo no imaginário ocidental. Ainda que sigamos o Livro 35 de Plínio, o
Velho (História Natural), e concordemos que as ditas pinturas mais excelentes da
antiguidade tenham todas se perdido, a pintura vascular antiga que sobreviveu dá farto
testemunho do quanto o tema era apreciado. Das cinco obras que abordaremos nessa
comunicação, duas são vasos do século V a.C. – e haveriam inúmeros outros exemplos
do mesmo período. Na verdade, parece possível afirmar que nunca se representou
tanto este tema quanto na pintura de vasos antiga.

A primeira obra a comentar é uma das representações mais antigas que se tem
do tema e é possivelmente a imagem mais famosa desse encontro (inclusive já tendo
sido utilizada em selos postais do Vaticano). Trata-se de um cálice
contemporaneamente atribuído ao chamado Pintor de Édipo (figura 1).
208

Por vezes considerado o primeiro espaço pintado em vasos, o lado interno


central do cálice era um espaço pictórico em alta estima por ser o tondo, o círculo
interno, um espaço quase plano, ao contrário das outras superfícies externas e dos
outros tipos de vaso. Ademais, propícia a realização de imagens que são descobertas
pouco a pouco pelo seu espectador, pois reveladas à medida que é consumido o
líquido contido no cálice.

Figura 1: Édipo e a esfinge de Tebas. Pintor de Édipo; cálice de cerca de 470 a.C.
Museu Gregoriano Etrusco, Vaticano.

Sendo os cálices principalmente utensílios para o consumo do vinho, eram


utilizados preferencialmente em um banquete festivo – symposium. Assim, os pintores
cientes dos efeitos envolvidos, em geral decoravam o interior dos cálices com cenas
bem humoradas, animadas, ou mesmo de natureza sexual. No entanto, apesar do lado
externo apresentar uma série de sátiros em zombarias manejando diversos tipos de
vasos, especificamente no interior desse cálice não há nada desse gênero festivo. No
tondo é representado esse que é um dos episódios mais críticos da mitologia grega: o
encontro entre Édipo e a esfinge de Tebas.
209

Conforme as atribuições de John Beazley – o criador do maior índice de


cerâmicas gregas antigas –, Pintor de Édipo é uma titulação em função da obra em
questão. Em estilo de figuras vermelhas, a imagem apresenta Édipo, em trajes de
viajante, serenamente sentado diante da coroada esfinge. Aqui não se busca o apuro
naturalista dos corpos, e o uso da linha, embora simplesmente energética, não busca a
agitação dos mesmos. Mas, ao contrário, estabelece algo como um movimento
estático, isto é, movimento apenas na medida em que segue o ritmo determinante;
como se não tivesse movimento anterior, nem pudesse haver posterior.

Paralelamente, em considerações literárias, também Auerbach (p. 24-25) havia


percebido que as narrativas trágicas, e mesmo cômicas, da Grécia antiga conduzem a
um ponto fixo determinante ao destino das personagens, e não ao evolutivo, à
mudança ou transição a partir de si. Similarmente, nessa pintura tudo acontece dentre
essas linhas, não entre os corpos das personagens, mas no ritmo das linhas que as
formam – cujo detalhe decorativo floral é exemplar. Seu vigor linguístico caracteriza-
se pelo uso delicado e preciso das linhas sinuosas; observe-se o diálogo entre o detalhe
floral que compõe o espaço vazio e a curva do rabo da esfinge, ou simplesmente as
ligeiras curvas dos pontos de apoio (solo, rocha, coluna e base). O jogo de
cruzamentos de braços e pernas da personagem trágica é belíssimo. Bem como a
expressividade e tensão dos rostos que se confrontam – tanto na ausência ocular da
esfinge, quanto nos olhos fixos e na boca ligeiramente aberta de Édipo. Sendo um
tondo fechado, a proximidade das figuras é realçada, criando enorme tensão apesar do
repouso energético das personagens. Essa síntese do impulso corporal e sua expressão
articulada por meio de linhas de contorno dialoga com o estilo definido pelo jovem
Roberto Longhi (2005, p. 8) como “linha funcional”: certa exaltação da energia
vibrante do corpo sem comprometimento material. Tendo por suporte o espaço
circular fechado, essas linhas ganham em tensão e tornam o efeito do sereno confronto
de olhares ainda mais surpreendente.

De tudo o já dito, ainda mais importante é seu poder de invenção. Era comum a
representação do episódio com a esfinge por sobre uma coluna, mas totalmente
peculiar a representação de Édipo sentado em perfeito estado contemplativo, braços e
pernas cruzados tranquilamente como se diante de uma escultura sobre um pedestal
em exibição. O Pintor de Édipo faz do episódio uma cena de contemplação artística. E
a considerar que a própria pintura seria vista em meio a um symposium, a peça parece
210

comentar avant la lettre a afirmação de O. Wilde (p. 100) de que os gregos


constituíram uma nação de críticos de arte.

A segunda obra (figura 2) é uma ânfora que encontra-se atualmente no


importante museu estatal de antiguidades de Munique, e foi atribuída novamente por
John Beazley ao dito Pintor de Aquiles. Tal designação se deve à outra importante
ânfora atribuída ao mesmo pintor com a representação do herói antigo (atualmente no
Museu Vaticano). Beazley definiu o período de atividade do Pintor de Aquiles entre
470 a.C. e 425a.C., portanto, contemporâneo ao período de Péricles e à Idade de Ouro
de Atenas. Embora seja mais estimado pelos seus belíssimos desenhos em lekythoi
sobre fundo branco, nessa obra o pintor trabalha no suporte vascular favorito daquele
que é considerado seu mestre: o Pintor de Berlim.

Figura 2: Édipo e a esfinge. Pintor de Aquiles; ânfora de cerca de 425 a.C. Staatliche
Antikensammlungen, Munique.

Segundo Oakley, é na sua fase mais madura que o Pintor de Aquiles


desenvolve novos temas com os quais continuaria até sua fase final, e dentre eles um
de seus favoritos se tornou o confronto de Édipo com a esfinge – há pelo menos três
vasos com o mesmo tema atribuídos ao pintor. O vaso em questão segue o estilo das
211

figuras vermelhas sobre o fundo negro e revela uma vez mais o acurado domínio linear
do pintor, especialmente no drapeado da capa de viajante de Édipo, nas asas da
esfinge, e na expressão dos rostos. No entanto, novamente deve-se observar que esse
estilo linear para além da funcionalidade energética da ação, busca uma visualização
decisiva do encontro com as personagens também em repouso temporário.

Aqui, por exemplo, a esfinge está mais baixa e recuada no seu apoio do que no
outro vaso do mesmo pintor que se encontra no Museu de Belas Artes de Boston.
Além disso, ao invés da coluna, a esfinge está sobre um mero pedestal, o que diminui
a efetividade metafórica do desfecho do confronto com o seu salto no vazio. Nesse
vaso, Édipo não apresenta o gestual de uma resposta, mas enfrenta o monstro com o
bastão. Essa composição básica de duas figuras separadas por um bastão já havia sido
empregada pelo Pintor de Berlim, mas aqui ela ganha ainda mais dramaticidade.

A linha vertical do bastão faz recordar Heráclito: “O caminho dos pintores,


reto e curvo, é um e o mesmo.” (p. 80) Esse “reto e curvo” se acentua nos ombros do
vaso dando resultados fenomenológicos formidáveis. Ao posicionar o olhar mais ao
lado da figura de Édipo, o bastão se curva em direção a ele praticamente desenhando
um escudo ou proteção. Ao posicionar o olhar do outro lado, o bastão se curva por
sobre a esfinge como se o gesto de Édipo a pudesse conter. Dessa forma, esse jogo de
“um e o mesmo” da linha reta e curva determina mais do que o espaço entre figuras.
Aponta para o reconhecimento de uma intimidade: a fixação de um destino. Em uma
só imagem se apresentam o quadrúpede, o bípede, e também o trípode. E o
reconhecimento de que Édipo não acha a resposta, mas ele é o destinado a responder;
ele é propriamente a resposta.

Tendo visto esses dois vasos como representantes de uma série maior de
imagens do mesmo tema que circulavam na antiguidade é preciso saltar muitos séculos
para que se encontre novamente o tema entre nomes consagrados da moderna história
da arte. Em fins do século XVIII e ao longo do século seguinte, intensificou-se um
tipo de revival dos temas e motivos trágicos antigos. Nas artes plásticas,
particularmente na França, o movimento neoclássico foi partícipe ativo dessa
intensificação, muitas vezes com veiculações temáticas indiretas (o exemplo mais
forte talvez seja o Marat Assassinado, de David, e sua relação com a tragédia de
Agamêmnon).
212

Nesse sentido, Ingres (formado na oficina de David) parece ter sido atraído ao
longo de sua vida artística ao episódio do confronto entre Édipo e a esfinge. Ele pintou
a cena ao menos três vezes, e com largas diferenças temporais, atestando um interesse
recorrente. A primeira dessas pinturas data de 1808 (atualmente no Louvre, Paris),
quando o pintor estava em Roma graças a bolsa do Prêmio de Viagem. A segunda é de
quase vinte anos depois, 1826, pintada durante seu período florentino (atualmente na
Nacional Gallery, Londres). Por fim, a obra que melhor abordaremos nessa
comunicação: pintada apenas três anos antes da morte do pintor octogenário, isto é, em
1864 (figura 3).

Figura 3: Édipo explicando o enigma a esfinge. Jean-Auguste Dominique Ingres;


1864. Walter Art Museum, Baltimore.

A terceira pintura está iconograficamente mais próxima da primeira. Pois, a


segunda pintura apresenta maior abertura ao céu, uma esfinge mais repousada em seu
sítio, e remove um detalhe profundamente significativo ao herói trágico: o pé de um
cadáver no escuro da caverna sob a esfinge. O fato é que o pé é um elemento decisivo
213

nesse confronto por dois motivos complementares: o significado do nome Édipo (“pés
inchados”) e o enunciado do enigma. A propósito, em todas as três telas Ingres
acrescenta à figura da esfinge um elemento diverso da sua descrição tradicional
(conforme o já citado Pseudo-Apolodoro): os seios de mulher, posicionados
exatamente à altura do olhar de Édipo. Esse particular erótico-dramático poderia
justificar os comentários contemporâneos ao pintor de que também ele teria absorvido
um traço romântico (crítica que o próprio Ingres sempre discordou).

A primeira vista, a grande diferença da tela de 1864 é a inversão da


composição, como em espelho. De resto, ela parece muito próxima da tela de 1808:
Édipo nu e em pose clássica, porém portando os elementos clássicos do viajante; uma
personagem ao fundo que corre em desespero; ao longe a vista de Tebas através da
fenda montanhosa. Além é claro, do seu vigor estilístico neoclássico de requintado
apuro de acabamento, claro-escuro a destacar o herói centralizado e certa idealização
do corpo nu (em pose muito próxima da escultura Hermes com a Sandália, do
Louvre).

Nas três telas, o momento escolhido para a representação é o decisivo instante


em que Édipo serenamente responde o enigma através do bonito jogo gestual de suas
mãos. Tal resposta silenciosa cria uma ambiguidade em que não é possível saber com
precisão a solução que ele encontra. Se é a resposta clássica “o homem”; ou se já há
uma interpretação paralela à de Thomas de Quincey (BORGES, p. 71), sugeriu que o
sujeito do enigma seria menos o homem genérico que o próprio indivíduo Édipo:
desvalido e órfão na sua manhã, solitário na idade viril, e apoiado em Antígona na
cegueira e velhice.

E é exatamente nesse gestual ambíguo que reside a diferença crucial entre a


primeira e a última tela de Ingres. Pois, na tela de 1864 uma das mãos deixa de apontar
para a própria esfinge e aponta para baixo em direção as ossadas e cadáveres na
caverna escura. Nos últimos anos de vida o pintor cria outra ambiguidade entre a
resposta correta e sua relação com a morte. Édipo praticamente indica o terceiro pé, o
da velhice, como o do cadáver. Eis o pavor da esfinge com o seu próprio desfecho ao
reconhecer a resposta correta. Eis a transformação psicológica do tema clássico na
velhice do próprio pintor, que retirou a inscrição de sua assinatura da pedra de apoio
de Édipo, e pôs na poeira à altura da caveira.
214

No mesmo ano que Ingres pintou seu “último Édipo”, outro grande pintor
francês investiu no mesmo tema: Gustave Moreau. Sua tela “Édipo e esfinge” (figura
4) é considerada o marco inicial da maturidade artística de Gustave Moreau - até então
um pintor pouco conhecido e apreciado. Foi justamente com ela que o pintor
conquistou sucesso de crítica estrondoso no Salão parisiense em 1864, com o qual a
carreira do artista deslancharia e ele se tornaria uma das principais personalidades do
meio artístico francês. Em cena, o confronto entre Édipo com a esfinge no caminho
para Tebas, onde ele se tornaria rei e casaria com a própria mãe.

Figura 4: Édipo e a esfinge. Gustave Moreau; 1864. Metropolitan Museum of Art,


Nova York.
215

Conservam-se ainda um número considerável de esboços do artista para a obra


em questão. Moreau estudou atenciosamente a obra de mesmo tema de Ingres, de
1808. Além dessa, que se encontra no Louvre, Ingres pintou ao longo da vida outras
duas telas de mesmo tema, a última no mesmo ano de 1864; porém Moreau
dificilmente conhecia outra obra senão a primeira. Contudo, as diferenças de estilo e
composição são evidentes entre os dois mestres franceses. A obra de Ingres concentra-
se no momento decisivo da resposta de Édipo, e é o herói, em uma postura inclinada a
frente e com o gestual em direção ao monstro, quem propriamente confronta a esfinge
com sua resposta, quase a encurralando. Já na obra de Moreau se dá o inverso. Aqui é
a esfinge a figura que propriamente concretiza o confronto, lembrando a figura da
femme fatale tão em moda no século XIX, avançando sobre o corpo nu do herói, com
postura solene e firme. Moreau concentra a pintura no confronto em si, e não no
enigma ou na resposta.

Em relação ao contexto histórico e artístico é preciso recordar, por exemplo,


que apenas um ano antes Manet e outros haviam conseguido organizar o Salão dos
Recusados, onde entre outras obras se expôs o famoso e polêmico Almoço na Relva.
Dessa maneira, concomitante a beleza da execução pictórica, Scott C. Allan argumenta
que parte do sucesso de crítica alcançado por Moreau parece provindo de uma quase
declaração panfletária em favor dos grandes mestres clássicos contra o que se entendia
como o mal gosto pictórico da época – a excessiva naturalização devida ao realismo, a
escancarada sexualidade dos nus, principalmente femininos, e a vulgarização dos
temas históricos e clássicos. A pintura de Moreau parece confrontar todas essas ditas
desqualificações de uma só vez, tal qual o herói trágico. E representa metaforicamente
na figura da esfinge todas as suas críticas.

Por outro lado, na figura do herói trágico sustentam-se as qualidades clássicas


da pintura, por exemplo em sua postura quase escultórica; qualidade também
observada na recorrência que a obra faz estilo particular de Andrea Mantegna,
reconhecido especialmente nas formas montanhosas, no corpo e cabelos de Édipo, e
no detalhe do pé morto, ossudo e veiado, na parte inferior da pintura. Assim,
combinados o estilo e a pose da figura, Moreau conferiu ao seu Édipo a solidez
corporal e moral que pretendia, transformando-o quase em uma peça escultórica.
Nesse sentido, seria interessante pensar na inversão que se realiza quando comparada
216

esta pintura com algumas das antigas representações do tema em peças vasculares
gregas nas quais a esfinge foi representada sobre um pedestal.

Henri Dorra defendeu a pose de esfinge como uma interpretação precisa da


etimologia da palavra em grego (algo como “apertar”). Entretanto, apesar do ataque da
femme fatale monstruosa, nessa pintura a personagem acossada pelo enigma parece ser
ela mesma, como se fosse ela a desesperada em ouvir a resposta: o homem. É ainda
curioso tendo em perspectiva que após essa pintura Moreau fez outras tantas
representando sempre a “esfinge vencedora”.

Na sequência de intensificação da retomada de valores e temas mitológicos, o


tema edípico foi largamente reavivado no século XIX juntamente com muitos dos
motivos gregos. Porém, foi na virada do século que as releituras críticas da parte de
Sigmund Freud transformaram inteiramente a recepção de sua narrativa, permitindo
que Édipo voltasse a ser uma das personagens chave da psique humana. Assim, após
novo salto temporal, enfim chegamos a última obra que consideraremos nessa
comunicação (figura 5). É curioso lembrar que de Chirico pintou esse quadro apenas
um ano após o rebuliço da adaptação cinematográfica de Pasolini para a peça de
Sófocles. Na tela do cinema o jovem Édipo confronta a esfinge violentamente; é ele
quem vai atrás dela e, ao encontrá-la, simplesmente a ataca ignorando completamente
o lançamento do enigma.
217

Figura 5: Édipo e a esfinge. Giorgio de Chirico; 1968. Fundação Giorgio e Isa de


Chirico, Roma.

Por outro lado, esse Édipo pictórico de fim de carreira de de Chirico aparece
totalmente absorvido pelo enigma. O herói trágico dá as costas à esfinge como quem
necessita de reflexão antes de sua resposta, e praticamente volta-se para o espectador à
espera da solução. A obra parece inspirada na versão moderna popular de que Édipo,
não sabendo a solução, responderia corretamente por acaso: enquanto o herói trágico
levava a mão à cabeça em gesto reflexivo dada a situação, a esfinge teria reconhecido
no próprio gesto o indicativo para a famosa resolução da charada, como se Édipo
apontando para si respondesse “o homem”.

O gesto da figura pintada poderia também ter outra conotação, baseando-se na


interpretação moderna. Borges (p. 71) recorda que foi no século XIX, com De
Quincey, que surgiu uma segunda interpretação e complementar a tradicional: o
sujeito do enigma seria menos o homem genérico que o indivíduo Édipo desvalido e
órfão na sua manhã, solitário na idade viril, e apoiado em Antígona na cegueira e
velhice. No entanto, como em geral, a obra de de Chirico é significativamente mais
irônica.
218

A começar pelo estilo característico da proposição metafísica do pintor. Suas


linhas de contorno dos personagens os tornam menos reais do que o ambiente de
montanhas altas – que pode recordar as composições de mesmo tema de Ingres, ao
longo do século XIX. Há cor, mas não há carne, nem sequer musculatura, isto é, não
há propriamente anatomia, mas sim um esboço ou esquema humano básico. Os pés
diminutos de dedos delicados do herói o deslocam do apoio do solo em uma leveza
metafísica característica das personagens do pintor. Ademais, há ainda outros detalhes
característicos como as molduras curvadas no interior do espaço, e as representações
arquitetônicas no tronco da personagem; como se Édipo trouxesse Tebas nas vísceras.
Por fim, o detalhe mais decisivo: a cabeça de manequim ao invés da cabeça humana,
fazendo do herói um modelo sustentado pelas travas de madeira.

Assim, de Chirico parece invalidar ironicamente o encerramento do discurso


do poeta grego Giorgio Seféris quando da premiação do Nobel: “Quando, no caminho
de Tebas, Édipo se encontrou com a esfinge que lhe propôs seu enigma, a resposta
que deu foi: o homem. Essa simples palavra destruiu o monstro. Temos muito
monstros por destruir. Pensemos na resposta de Édipo.” (p. 174)

A pintura em questão não tem o homem nem Édipo como interlocutores, mas
apenas a ideia, metafísica por excelência, do homem e de Édipo, isto é, suas figurações
de humanidade – dominados pelo enigma. Foi o próprio de Chirico quem afirmou
como questão artística: “O que devo amar senão o enigma?” E atente-se, isso também
é um enigma.
219

BIBLIOGRAFIA

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metaphor in the 1864 salon. In.: Nineteenth-Century Art Worldwide 7, 2008, pp. 1-21.

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WILDE, Oscar. A crítica e a arte. In.: A Decadência da Mentira & outros


ensaios. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
221

A tragédia da Abstração Informal e o drama da Pintura nos anos 1980.


Claudia Botelho (PPGA-UFES)

Resumo: A Pintura dos anos 1980 manifestou valores e características de outros


momentos passados. Ela esteve em conexão com a Abstração Informal e com o
Expressionismo Abstrato. O texto trágico de Ferreira Gullar “Teoria do não- objeto” de
1960 decretava a falência da pintura, porém o incentivo da pintura nos anos 1980 revogou os
diagnósticos terminais. Assim, o trágico conceitualismo dos anos 60 foi encenado na arena
dos anos 80 como um espetáculo dramático.
Palavras chave: Fim da Pintura, Abstração Informal, Pintura dos anos 80.

Abstract: Painting 1980s expressed values and characteristics of other past times. It
was in connection with the Informal Abstraction and Abstract Expressionism. The tragic text
Gullar "Theory of non-object" 1960 decreed the bankruptcy of painting, but the incentive of
painting in the 1980s overturned the terminal diagnosis. Thus the tragic conceptualism of the
60s was staged in the arena 80 as a dramatic spectacle.
Keywords: Painting End, Abstraction Informal, 80s Painting.

O retorno da pintura nos anos 1980 prova que a tragédia anunciada como o “Fim da
Pintura” pelo Pós- Modernismo não existiu. Tudo não passou de um drama provocado pelo
antigo desejo de se criar algo novo, de romper definitivamente com a tradição que consistia
em classificar a arte em categorias e gêneros.
Os artistas de abstração subjetiva existiram em número expressivo Brasil. A Arte
Abstrata Informal/Lírica foi produzida no âmbito artístico brasileiro entre a metade dos anos
1940 e os anos 1960, entretanto, apenas nos anos finais da década de 1950 alcançou seu
devido reconhecimento.
A Arte Abstrata Informal ou Lírica desenvolvida no Brasil nas décadas de 1950 e de
1960 esteve alinhada com a abstração produzida em outras partes do mundo na segunda
metade dos anos 1940, especificamente, a partir de 1945.
A Abstração do Pós- Guerra Mundial simbolizou o culminar das transformações
artísticas do final do século XIX a meados do século XX. As pesquisas na arte que visavam
romper com o passado acadêmico traziam em si o desejo de libertar a arte da representação do
mundo exterior, vigora então, a compulsão artística pela expressividade. A historiadora Dora
Vallier realizou estudos aprofundados sobre a abstração na arte do século XX e afirma que, na
222

construção da Arte Abstrata, “[...] surgem formas que já não contêm a imagem do mundo
exterior. O artista já não nomeia, exprime. Cabe ao espectador reagir e aprender a significação
do que é expresso” 1.
Na Arte Abstrata a realidade foi captada e traduzida pelo artista de diferentes
maneiras. Em um primeiro momento, os artistas abstratos buscaram na racionalidade
científica a expressão de sua pintura, pois, almejavam dar à arte um sentido lógico,
aproximando assim, arte e ciência. Tal objetivo se compreende pela época que esses artistas
produziram. Desde o Iluminismo a razão se tornou o centro das discussões do mundo
moderno. No entanto, a abstração da arte, nos anos pós- guerra tomou novo rumo, foi em
busca da individualidade do sujeito, sem abandonar visualidade plástica apreendida de
diferentes experiências anteriores.
As tristezas e angústias geradas pelos bombardeios das guerras fizeram os artistas
repensarem suas praticas, desde momento em diante, começaram a voltar-se para si mesmo,
procurando os valores que a ciências modernas haviam deixado escapar, dessa forma, a
produção artística desse período não retrocede nas pesquisas estéticas, mas abrem espaço da
expressão livre e individual do sujeito. Em sua evolução, a arte não recua sob à passagem da
figuração para a abstração. A partir da crise da imagem como representação surgiram às novas
descobertas que deram origem à criação da obra abstrata. A ideia de que a arte podia revelar a
realidade do mundo por meio da imitação (mímese), ou da reprodução ilusionista de
fenômenos naturais foi posta em dúvida.
A Arte Abstrata que se desenvolveu no Brasil teve influências das manifestações
europeias e norte-americana. Os artistas brasileiros estiveram em contato, por meio de
exposições de obras internacionais dentro do país, ou através de viagens de estudos ao
exterior, com as diferentes manifestações da Arte Abstrata, ocorridas no Pós-Guerra.
Contudo, afirma Lopes, “Mesmo que alguns de nossos artistas tivessem tido contato com o
Expressionismo Abstrato americano [...] a fonte de maior interesse e afinidade continuava a
ser a produção dos abstracionistas líricos franceses” 2.
A Escola de Paris continuou sendo o destino de vários artistas brasileiros. Estes em
contato com o que se produzia fora do país iam atualizando a gramática abstrata da arte
brasileira. Estiveram em intercâmbio com a arte francesa os artistas: Antônio Bandeira, Iberê
Camargo, Clovis Graciano, Geraldo de Barros, Noêmia Guerra, Inimá de Paula, Flávio Shiró,
Arthur Luiz Piza, Alberto Teixeira, Yolanda Mohalyi, Manabu Mabe e Frans Krajcberg.

1 VALLIER, Dora. Arte Abstrata. Tradução de João Marcos Lima. São Paulo: Martins Fontes, 1980.
2 LOPES, Almerinda da Silva. Arte Abstrata no Brasil. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2010, p. 89.
223

Figura: 01. Yolanda Mohalyi. Composição à Margem do Rio. Técnica mista , 75,5 x 83 cm, 1959. Fonte:
http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_IC/index.cfm?fuseaction=artistas_obras&
acao=mais&inicio=17&cont_acao=3&cd_verbete=365. Acesso em 23 de abril de 2015.

O fim do Estado Novo, no contexto político brasileiro, favorecia redemocratização a


aceleração do desenvolvimento industrial. Com o término da Segunda Guerra Mundial se
restabelecia o intercâmbio do país com a Europa, A expectativa da abertura do país e seu
crescimento econômico inspirava a produção artística construtiva. Na arquitetura, se via desde
os anos 1930, a encomenda de edifícios modernos, de formas sintéticas e despojadas, centrada
na valorização das linhas e dos planos geométricos abriam perspectiva para a introdução da
Arte Abstrata de matriz geométrica3. Todavia, nas artes plásticas as formas construtivas
chegaram apenas, na virada da segunda metade do século XX.
Os grupos da Arte Concreta, desde o seu princípio se organizaram e lançaram seus
manifestos a favor da abstração que produziam. Com as organizações dos grupos e com a
defesa propagada por alguns críticos e artistas da abstração geométrica, essas vertentes foram
ganhando cada vez mais espaço dentro das instituições artísticas do país. Enquanto os artistas
da Arte Abstrata Informal e Lírica mantinham-se em seus ideais de liberdade e
individualidade. Assim, ainda estando presentes nas mostras e participando de alguns debates
críticos, mantiveram-se sem muito se importarem em se destacarem no contexto da época.
Essas atitudes fizeram com que a Abstração Informal/ Lírica só viesse à cena brasileira
quando as diferenças entre os dois grupos concretos foram se acentuando, o que levaria a
ruptura entre eles. Foi com o enfraquecimento desses grupos, que os artistas da abstração
informal/líricos conseguiram a ascensão no cenário artístico brasileiro. Apenas, a partir das IV
(1957) e V (1959) edição da Bienal Internacional de São Paulo, que a Arte Abstrata
Informal/Lírica alcançaria devido reconhecimento.

3 LOPES, 2010.
224

[...] Se o Concretismo marcou presença e soberania nas primeiras bienais de


São Paulo, desde a IV edição (1957), começava a dar sinais de
enfraquecimento, prestes a completar seu ciclo, a partir da dissidência do grupo
Neoconcreta. Em contrapartida, era a vez da Abstração Informal ou Lírica sair
do ostracismo e ganhar adesão de uma plêiade de competentes artistas,
momento em que até alguns dos antigos concretistas renitentes passariam a
fazer algumas incursões por essa linguagem 4.
Os artistas que produziam uma abstração livre e subjetiva não aderiam a programas
filosóficos, ideológicos ou político, e ativeram-se a uma postura mais isolada, sem se
agruparem e/ou produzirem manifestos. Esta postura livre acabou lhes inferindo a falta de
reconhecimento e prestígio. Aqueles que defendiam a abstração da arte brasileira pelo viés da
racionalização não mediram seus esforços na tentativa de colocar a abstração informal/lírica
em lugar de inferioridade na produção brasileira.
Um exemplar texto dramático que inspirava terror e terminava anunciando um
acontecimento catastrófico com a Abstração Informal/ Lírica foi o manifesto produzido por
Ferreira Gullar intitulado “Teoria do não- objeto”, lançado em 1960 pelo Jornal do Brasil, Rio
de Janeiro. Em seu escrito, Gullar anunciava a “Morte da Pintura”, no roteiro de seu texto o
autor explicava que ao longo dos anos, a Arte Moderna havia conduzido o fim da pintura.
Conclui que no ápice de seu desenvolvimento a arte abstrata germinou o “não- objeto”. “[...]
Com a eliminação do objeto representado, a tela- como presença material- torna-se o novo
objeto da pintura. Ao pintor cabe organizá-la mas também dar-lhe uma transcendência que
subtraia à obscuridade do objeto material [...]”5 .
Contudo, para Ferreira Gullar a pesquisa abstrata que proporcionaria a concepção da
arte no “não- objeto” foi realizada pelos artistas que realizavam suas abstrações na arte pela
vertente da racionalidade, da depuração das formas, e não poderia ser engendrada por outro
caminho que se afastasse desses conceitos, ou seja, a experiência subjetiva e individual dos
pintores informais não contribuíram para a renovação da arte ensejada anos depois. Para
Ferreira Gullar, “O caminho seguido pela vanguarda russa mostrou-se bem mais profundo. Os
contra-relevos e Tatlin e Rodchencko, como as arquiteturas de Malevitch, indicam uma
evolução coerente do espaço representado para o espaço real, das formas representadas para
as formas criadas”6.
Nesse percurso Ferreira Gullar vai intencionando demonstrar que a problemática que
haviam chegado os pintores abstratos modernistas não encontrou sua solução na própria Arte
Moderna. Segundo o autor, a arte abstrata da primeira metade do século XX havia registrado
o fenômeno da libertação da pintura de sua moldura e da escultura de sua base, todavia, os
críticos daquele período não perceberam que a própria obra colocava problemas novos, que
iam além da representação, e que para sobreviver a arte precisava definitivamente escapar do
círculo fechado da estética tradicional7.

4 LOPES, 2010, p.42.


5GULLAR, apud COCCHIARALE, F., & GEIGER, A. B.. Abstracionismo geométrico e informal: a vanguarda brasileira
nos anos cinqüenta. Rio de Janeiro: Funarte, 1987, p. 237 (grifo do autor).
6Ibid., p. 240 (grifo do autor).
7 Ibid.
225

Dessa forma, a Arte Moderna ia concluindo o seu ciclo, entretanto, depois de romper
com as questões técnicas era preciso dar um novo passo, o caminho agora era em direção à
resignificação da própria arte. Essa resignificação precisava incluir novos conceitos na obra
de arte, que a libertasse dos limites convencionais da matéria, do suporte, dos meios e das
técnicas.
Essa desmaterialização da arte, na visão de Ferreira Gullar era a criação do “não-
objeto”, ou do objeto especial, que segundo o autor, “[...] um objeto especial em que se
pretende realizar a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao
conhecimento fenomenológico, integralmente perceptível, que se dá sem deixar rastro [...]” 8.
Todavia, o ensaio teórico do autor não perdia de vista a ênfase na insignificância da
Abstração Informal no desenvolvimento da arte. Concluindo, que o alcance do novo objeto
determinava o fim, sem recomeço, para aquela pintura não havia executado renovações em
relação à tradição pictórica. No penúltimo parágrafo de seu texto deixa claro que,
[...] as experiências tachistas e informais, na
pintura e na escultura, mostram-nos a sua face
conservadora e reacionária. Os artistas dessa tendência
continuam- embora desesperadamente- a se valer dos
apoios convencionais daqueles gêneros artísticos. Neles o
processo é contraditório: em lugar de romper a moldura
para que a obra se verta no mundo, conservam a moldura,
o quadro, o espaço convencional, e põem o mundo (os
materiais brutos) lá dentro. Partem da suposição de que o
que está dentro de uma moldura é um quadro, uma obra de
arte. É certo que, com isso, também denunciam o fim
dessa convenção, mas sem anunciar o caminho futuro 9.
Dessa forma, Ferreira Gullar anunciava a tragédia da Arte Abstrata Informal, pois
definindo- a como incapaz de ultrapassar a barreira da arte convencional, pela forma que se
apresentava, não conseguiria avançar para a construção de objetos especiais. Sem deixar a
Modernidade, não haveria mais lugar para a pintura subjetiva, e no advir da Pós-modernidade,
as faces da pintura abstrata informal/ lírica não seriam apreciadas.
Nos anos 1960 a arte tomaria novos caminhos. Na tentativa de romper com o passado
virá à negação da tradição. A eliminação das técnicas artísticas convencionais e o
deslocamento da função do artista ocasionaram inúmeros novos fenômenos na arte que se
chamou de Pós-moderna10.

8 GULLAR, apud COCCHIARELE, 1987, p. 241 (grifo do autor).


9 Ibid., p. 237 (grifo do autor).
10Sabemos que esses termos Pós- moderna, Pós- modernismo, e outros pós-, instauraram inúmeros
questionamentos e debates nos últimos anos, todavia para compreensão do nosso texto utilizamos o
entendimento da autora Leirner que assim apresenta: ‘O pós-moderno como manifesto é sempre uma reação
ao corpo coeso de trabalho realizado na primeira metade deste século- a própria palavra “pós-modernismo”
faz pressupor mesmo que há um novo modernismo erigido sobre o cadáver de seu antepassado- porém define-
se diferentemente em cada caso específico [...]’ (LEINER, Sheila. Arte e seu tempo. São Paulo: Ed. Perspectiva,
1990, p. 105).
226

No embalar do Pós- modernismo, nos anos 1960 e 1970, viu-se a pintura, enquanto
objeto tradicional apresentada no suporte da tela, sendo afastada das discussões críticas e da
instituição artística. O conceitualismo e a experimentalismo imperam por essas décadas
empurrando a pintura para uma posição de inferioridade. Ao longo desse período, a pintura
foi obrigada a se repensar como linguagem que ampliasse suas experiências tanto no campo
do que apresentava, ao alcance do conceitual, quanto na renovação de seus meios ou suportes.
As margens das instituições críticas da arte a pintura se manteve renegada e indesejada, no
entanto, não tardaria o seu retorno. No entanto, na virada dos anos 1980, de acordo com Paul
Wood,
[...] havia o ressurgimento do interesse por uma
nova investigação das possibilidades da pintura após um
período de inquestionável eclipse. Na história da arte
moderna, o próprio fato da ausência de cultivo de uma
área pode torna-la interessante para uma geração: os
tempos mudaram e com eles a necessidades. Por outro
lado, havia o mercado, que nunca deve ser subestimado
[...]11
Assim, os artistas voltavam a manifestar o interesse pela pintura, entre o final da
década de 1970 e os anos 80. Em 1982 o crítico italiano Bonito Oliva criou o termo
Transvanguarda para denominar o ressurgimento da pintura na Europa. Esse retorno trazia
de volta e o prazer de manipular materiais e suportes convencionais, e o fazer artesanal.
No Brasil o retorno da pintura foi marcado pelas mostras de jovens artistas que foram
ocorrendo em diferentes locais, todavia, a mais famosa delas ficou conhecida como: Como vai
você geração 80? . Assim, Geração 80 nomeou a pintura que retomava a cena no Brasil, nos
anos 1980.
Nessa década a produção artística brasileira foi identificada pelas mostras coletivas
que foram se espalhando no país, como por exemplo, as mostras: A Pintura como Meio,
realizada no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, em 1983; Como vai você geração
80? ocorrida na Escola de Artes Visuais do Parque Laje, na cidade do Rio de Janeiro, em
1984; a Grande Tela, instalada na XVIII Bienal de São Paulo e o evento BR-80, promovido
pelo Itaú Cultural.
A pintura que aparecia nos anos 1980 era uma reação à arte produzida na década
anterior. A ação dos artistas que naquele momento retomavam o fazer artístico pela pintura se
definia como uma contraposição à intelectualidade e o conceitualismo dos anos 1970. Os
artistas da Geração 80 reavivaram a pintura por meio da subjetividade e da individualidade
manifestados pela cor e pelos gestos.
O contexto político do Brasil era marcado por movimentos políticos de lutas, com o
fim da ditadura, a abertura para partidos políticos e a almejada conquista das Diretas Já. Era
um momento de euforia no país, e a pintura dos anos 1980 vinha para dizer isso, estavam
contentes, alegres, se sentiam livres.

11WOOD, Paul. et al. Modernismo em disputa: A arte desde os anos quarenta. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo:
Cosac & Naify Edições, 1998, p. 232.
227

Diante dessa volta efervescente da pintura na década de 1980 trouxe a resposta de que
a pintura não havia morrido, e que os valores da arte subjetiva e livre tinham sobrevivido.
Assim foi preciso rever o destino trágico que nos anos 1960 a crítica de arte lhe havia escrito.
A tragédia do Fim da Pintura parecia agora apenas um drama, onde acometido da ironia a
pintura zombava daqueles que a condenará no passado.
O retorno da pintura nos anos 80 apresentava acontecimentos de intensa emoção. As
grandes telas de pinturas vigorosas incitam um reencontro com o prazer e com o sentimento,
mas não eram sentimentos apenas introspectivos, suas referências estavam na realidade
cotidiana da sociedade brasileira. Através de figuras ou de manchas, os mais variados
materiais e suportes, a nova pintura objeto encontrava suas inspirações nas cidades, nas
paisagens, na arquitetura, ou em qualquer outro lugar, que a liberdade deste novo momento
lhe proporcionava.

Figura: 02. Jorge Guinle. Bella Ciao! Óleo sobre tela, 190 x 120 cm, 1985. Fonte: Coleção Augusto Lívio
Malzoni. Reprodução fotográfica Eduardo Ortega. Disponível em
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9273/jorge-guinle> Acesso em 23 de abril de 2015.

O texto do crítico Frederico Morais intitulado, Gute Nacht Herr Baselitz ou Hélio
Oiticica onde está você? publicado em Revista Modulo Especial- Catálogo oficial da
exposição “Como vai você, Geração 80?12, no Rio de Janeiro em 1984, trazia um novo roteiro

12MORAIS, Frederico. Gute Nacht Herr Baselitz ou Helio Oiticica onde está você? Edição especial catálogo da
mostra "Como vai você, Geração 80?", jul. 1984. In: ONDE ESTÁ VOCÊ GERAÇÃO 80? Rio de Janeiro: Centro
Cultural do Banco do Brasil, 2014, p. 101.
228

para Abstração Informal, não mais arguida a desaparecer, mas sim revigorada por algumas de
suas heranças deixada à pintura desta Geração 80.
Em seu escrito Frederico Morais apresenta a pintura que voltou a ter lugar na cena
brasileira nos anos 1980 com uma citação de outro texto seu, onde diz: ‘[...] “Dizem que é bad
painting, eu a vejo linda. Dizem que é feia, ultrajante- eu a sinto sensualíssima, tem seis
dedos, um olho só e manca de uma perna. I love her” ’13. Logo, Frederico Morais explica o
que era essa pintura mal vista pela crítica daquele momento, senão bela, é a pintura dos anos
80, aquilo que nunca deixou de ser, a expressão, o olhar, a ideia do artista que lhe transforma
em arte.
Para o autor, “[...] pintura é emoção, ela tem de nascer dentro das pessoas, no estômago,
no coração, só na cabeça não dá. A arte vira ilusão de ideias [sic] e o erro está aí. A pintura é
fruto de uma experiência, não nasce como teoria, mas ela pode gerar uma teoria [...]” 14.
Os jovens pintores das mostras dos anos 1980 não se preocupavam mais com o
dogmatismo do novo. Eles buscavam na História da Arte alguns elementos que
reapresentavam, revisaram e recodificaram por meio de metáforas ou diretamente, fossem da
arte figurativa ou da arte abstrata. Entretanto, não se prendiam a um panorama evolutivo ou a
determinados estilos e movimentos. As referências da arte do passado eram inúmeras e sem
culpa, os artistas não negavam esse retorno, pois a pintura dos anos 80 não pode ser vista
como um retorno de meras técnicas, estilos, temas ou tendências, ao contrario disso, ela se
mostrava livre para experimentar.
A Geração 80 se pode ser vista como um legado da produção das vanguardas
brasileiras. No entanto, houve uma reversão de valores da década de 1970, a produção
artística que retoma a pintura nos anos 1980 foge dos referenciais teóricos e quebra a história
da arte que se prolongava pelas vanguardas.
Contudo, não tão distante no tempo, a Arte Abstrata Informal foi resgatada pelas obras
de vários pintores da nova geração. Quanto a isso afirma Frederico Morais, “[...] Um retorno
do artista a si mesmo, à sua subjetividade, mediante a liberação de uma fantasia não planejada
ou controlada, e que se manifesta por uma intensificação do gestual e da cor, quase um neo-
informalismo ou neofigurativismo [...]” 15. Acrescenta Morais, que restabelecendo à
subjetividade e à individualidade os artistas se reaproximam do público, pois quanto mais
próxima do indivíduo estivesse o conteúdo da obra, maiores seriam as experiências vividas
que ela poderia comunicar.
Dessa forma, a produção artística dos anos 1980 mostra que a arte atual não retoma
preceitos antigos, acadêmicos ou modernos. Ela não manifesta um retrocesso de técnicas,
meios e suportes para legitimar a eternizarão da pintura ou de qualquer outro meio expressivo

13 MORAIS, apud, Onde Está Você Geração 80, 2014, 101.


14Ibid. , p. 101
15Ibid. , p. 101.
229

Nos servem as atitudes dos jovens artistas da Geração 80 para mostrar que arte
contemporânea não exclui linguagens, pelo contrário, ela inclui novos e tradicionais meios.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GULLAR, apud COCCHIARALE, F., & GEIGER, A. B.. Abstracionismo geométrico e


informal: a vanguarda brasileira nos anos cinqüenta. Rio de Janeiro: Funarte, 1987.
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LOPES, Almerinda da Silva. Arte Abstrata no Brasil. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2010.
MORAIS, Frederico. Gute Nacht Herr Baselitz ou Helio Oiticica onde está você? Edição
especial catálogo da mostra "Como vai você, Geração 80?", jul. 1984. In: Onde Está Você
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exposição.
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1980.
WOOD, Paul. et al. Modernismo em disputa: A arte desde os anos quarenta. Tradução de
Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1998.
230

“Instalação’ e/ou ‘instalação’”: A obra de Regina Rodrigues e sua relação com


o espaço na arte contemporânea.
Tatiana Campagnaro Martins (PPGA-UFES)

Resumo

O presente texto tem como objetivo fazer uma reflexão sobre a relação dos trabalhos de
Regina Rodrigues1(1959-) com o espaço de exposição. Nossa discussão aborda o campo
tridimensional na arte contemporânea, pensando a escultura não só como objeto autônomo
voltado para a contemplação, mas também como manifestação das transformações da noção
de espaço na arte contemporânea.

Palavras chave: cerâmica, escultura, objeto, instalação, galeria/museu.

Abstract

This paper aims to reflect on the relationship of the work of Regina Rodrigues (1959-) with
the exhibition space. Our discussion focuses on the three-dimensional field in contemporary
art, thinking the sculpture not only as a standalone object oriented contemplation, but also as a
manifestation of the transformation of the concept of space in contemporary art.

Keywords: ceramics, sculpture, object, installation, gallery / museum.

Introdução

Nosso ponto de partida para a reflexão sobre a relação das obras de Regina Rodrigues
com o espaço de exposição foi a observação das legendas de algumas fotografias de
propriedade da artista, onde suas obras recebiam a denominação de ‘instalação’. Neste artigo

1
Regina Rodrigues é natural de Araguari, em Minas Gerais. Graduou-se em Decoração e em Artes Plásticas pela
Universidade Federal de Uberlândia (UFU. Cursou especialização em arte educação na Universidade de São Paulo (USP).
Possui mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Católica de São Paulo (PUC).
231

não pretendemos julgar e enquadrar os trabalhos aqui apresentados dentro de uma ou outra
categoria, pelo contrário, buscamos analisá-los no seu contexto de exibição, investigando sua
relação com esse espaço, atentos aos problemas teóricos que dele emergem buscando
compreender o que levou a artista a defini-los como instalação. Nesse contexto analisaremos
as obras Gravetos (1993), Prospecção (1991/2008) e Corais (2002), descritas pela artista
como instalações.

Em uma abordagem histórica, trataremos das questões conceituais da passagem das


obras tridimensionais, da escultura à instalação, focando nas transformações da noção de
espaço e nas relações do observador com a obra. Para isso utilizaremos como suporte teórico,
os pensamentos de Rosalin Kraus em Caminhos da escultura moderna e as questões
levantadas por ela no texto A escultura no campo ampliado; as definições de Claire Bishop
sobre instalação em Installation Art, assim como os apontamentos sobre site-specific de
Miwon Kwon no texto Um lugar após o outro: anotações sobre site-specificity.

Obras tridimensionais e as transformações da noção de espaço.

Quando nos referimos ao campo tridimensional na Arte, englobamos não só a


escultura plena em seu conceito tradicional, mas também os relevos, os objetos e as
instalações (RIBENBOIN, 1999, p.226). O século XX presenciou o convívio entre esculturas
bastante distintas. Uma vertente estava voltada para a modelagem e o entalhe, interessada na
forma em profundidade, na tradição humanista e nos critérios orgânicos. Outras obras
tridimensionais se aproximavam de construções, em termos arquitetônicos e mecânicos,
voltadas para a forma pura e a materialidade (RIBENBOIN, 1999, p.8).

[...] a medida em que a escultura do século XX rejeitou a representação realista


como sua principal ambição e voltou-se para jogos bem mais genéricos e abstratos
da forma, surgiu a possibilidade – o que não se deu com a escultura naturalista – de
que o objeto esculpido fosse visto como nada senão matéria inerte.[...]
(KRAUS,1998, p.301)

Foram varias as influências para os novos rumos que tomaram a tridimensionalidade


na arte moderna; o cubismo com as colagens e seus desdobramentos no espaço; a força das
experiências construtivistas na Rússia e na Alemanha com a Bauhaus; as manobras críticas ao
sistema da arte realizadas por Duchamp (DUARTE, 2005, p.11), os happenings dadaístas, a
exposição internacional surrealista (1938) e a Merzbau (1923) de Kurt Schwitter.
232

Ao se desvencilhar da lógica do monumento e absorver o pedestal, a escultura


moderna através de seus próprios materiais, ou do processo de sua construção, se tornou mais
autônoma e autorreferencial, revelando o caráter mutável de seu significado e função, sem um
lugar fixo, transportável e nômade (KRAUSS, 2008) conquistando a possibilidade de explorar
o espaço.

Na década de 1960 a escultura minimalista propôs uma “nova relação da obra de arte
com o espaço, e sobretudo, do espectador com a obra” (DUARTE, 2005, p.11). O
Minimalismo questionou o objeto de arte autônomo ao deslocar seu significado para o espaço
de apresentação, devolvendo ao espectador um corpo físico (KWON, 2008). Donald Judd
(1928-1991), no texto Objetos específicos (1965), considerado um manifesto teórico do
minimalismo, diz que o uso das três dimensões abre espaço para qualquer coisa e que

“[...] o trabalho tridimensional não sucederá de maneira clara a pintura e a escultura.


Não é como um movimento; de qualquer modo, movimentos já não funcionam mais;
além disso, a história linear de alguma forma se desfez. [...]” (FERREIRA, 2006,
p.97).

Ao fazer essa afirmação Judd se refere aos trabalhos dos artistas de sua geração que
não são nem pintura nem escultura. Trabalhos que utilizavam cor, forma e superfície de
maneira integrada, inscritos no espaço. Em sua maioria envolviam novos materiais ou coisas
que antes não eram usados, como fórmica, alumínio, lâminas de aço e acrílico, materiais que
não se identificavam de maneira óbvia com a arte (FERREIRA, 2006).

“(...) os escultores minimalistas, tanto em sua escolha dos materiais como em seu
método de os compor, tinha por objetivo negar a interioridade da forma esculpida –
ou ao menos repudiar o interior das formas como fonte de significado. (...)”
(KRAUS, 1998, p.303)

Os minimalistas buscavam uma arte anti-representacional e utilizavam a simples


repetição, “uma coisa após a outra” (JUDD apud KRAUSS, 1998, p.292) como método para
evitar as interferências da composição relacional (BISHOP, 2010).

A escultura minimalista teve forte influência dos pensamentos do filósofo Frances


Merleau-Ponty, e suas teorias sobre a percepção2. Alguns dos pressupostos de Merleau-Ponty
são que o sujeito que percebe e o objeto que é percebido estão entrelaçados e são
interdependentes; que nossa percepção não depende apenas da visão, pois percebemos com o
corpo todo; que o sujeito precisa estar fisicamente presente naquele momento e que o mundo

2 Ver: MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994


233

está ao nosso redor e não a nossa frente. Essas ideias foram fundamentais para os artistas e
críticos teorizarem sobre a nova estética da escultura minimalista que marcou a passagem da
escultura tradicional para a Arte Instalação (BISHOP, 2010).

Segundo Rosalind Krauss (1941 - ), no final dessa mesma década, a escultura como
categoria precisaria ser infinitamente maleável para abarcar as “[...] coisas realmente
surpreendentes [...]” e heterogêneas que vinham acontecendo, como:

[...] corredores estreitos com monitores de TV ao fundo; grandes fotografias


documentando caminhadas campestres; espelhos dispostos em ângulos inusitados
em quartos comuns; linhas provisórias traçadas no deserto. [...] (KRAUS, 2008,
p.129).

Ainda na década de 1960 a palavra instalação começou a ser usada por revistas de arte
para descrever a forma como uma exposição era organizada. A expressão Installation Shot,
que designava a fotografia documental de trabalhos que ocupavam todo o espaço, deu origem
ao termo Installation Art (BISHOP, 2010), geralmente traduzido para o português como
‘Instalação’. Utilizaremos o termo com a letra maiúscula para diferenciá-lo de ‘instalação’, o
ato de instalar algo em algum lugar, também utilizado na montagem de exposições de arte.
Clair Bishop (1971 - ), chama a atenção para a linha tênue que separa ‘Instalação’ e
‘instalação’. Segundo ela, ambos desejam aumentar a consciência do espectador em relação
ao modo como os objetos são posicionados no espaço, no entanto, na ‘Instalação’ o espaço e
os elementos dispostos dentro dele são considerados na sua totalidade, enquanto que a
‘instalação’ é secundária em relação ao trabalho individual (BISHOP, 2010).

Na ‘Instalação’ o espectador entra fisicamente na obra, como uma presença literal no


espaço, onde seus sentidos como tato, olfato e audição são tão importantes quanto à visão.
Bishop considera essa presença literal do observador no espaço como a característica chave da
‘Instalação’(BISHOP, 2010). Se na arte moderna a escultura propunha ao observador um
movimento ao seu redor e um olhar contemplativo, na ‘Instalação’ é reivindicada a
participação do receptor, a imersão de seu corpo e de seu movimento no interior da obra.

Alguns desses trabalhos de ‘Instalação’ passaram a ter uma relação inseparável com
sua localização, de forma que os elementos físicos do lugar passaram a fazer parte da
identidade da obra. Essa nova modalidade de arte, chamada de site-specific, segundo Miwon
Kwon (1931 - ) estava voltada para a arquitetura ou para a paisagem,

[...] inicialmente tomou o “site” como localidade real, realidade tangível como
identidade composta por singular combinação de elementos físicos constitutivos:
comprimento, profundidade, altura, textura e formato das paredes e salas; escala e
234

proporção de praças, edifícios ou parques; condições existentes de iluminação,


ventilação, padrões de trânsito; características topográficas particulares.[...](KWON,
2008, p.167)

Os trabalhos site-specific focados na relação entre a obra e sua localização, desejavam


extrapolar os limites da pintura e da escultura como linguagem, repensando o objeto artístico
em seu contexto, onde o observador estaria envolvido em uma experiência corporal. Outro
ponto levantado pelos trabalhos site-specific aborda a questão mercadológica onde, a
inseparabilidade física entre obra e lugar, provocavam uma resistência às forças capitalistas de
mercado (KWON, 2008).

Essas experiências se intensificaram e diversificaram nas últimas décadas, de forma


que Miwon Kwon classifica três estágios distintos para a arte site-specific, um
fenomenológico, outro social/institucional e outro discursivo. Não cabe aqui, nos
aprofundarmos nessas questões, devido ao breve espaço do texto, mas sabermos que tais
manifestações não só dialogam com o espaço e interagem com aspectos multissensoriais,
como também envolvem questões sociais e políticas provocadas pelas novas exigências do
mundo contemporâneo.

O espaço na obra de Rodrigues

Daniel Buren (1938 - ) afirma que a arte existe inserida em limites, muitas vezes
despercebidos mas precisos e definidos, e que o ateliê é a primeira moldura da arte (2009). A
partir de seu pressuposto, observamos como as obras de Regina Rodrigues escolhidas para
análise nesse texto se relacionam com o local de exibição pública, sem descartaremos a
importância do ateliê como espaço de produção, pois segundo Buren fazem parte de um
mesmo sistema (2009).

“[...] como podemos ver, o museu e a galeria em uma das mãos e o ateliê na outra
estão unidos para formar a fundação de um mesmo edifício e um mesmo sistema.
Questionar um e deixar o outro intacto não leva a nada. [...]”3 (BUREN, 2009,
p.111, tradução nossa)

3“[...]
as we shall see, the museum and gallery on one hand and the studio on the other are linked to form the foundation of
the same edifice and the same system. To question one while leaving the other intact accomplishes nothing. [...]”
235

Acreditamos ser de fundamental importância para compreendermos a relação do


trabalho de Rodrigues com o espaço da galeria, conhecer algumas questões que envolvem seu
processo de criação e o espaço de produção.

Regina Rodrigues ao longo de sua trajetória artística utilizou como principal meio em
suas criações a linguagem cerâmica, explorando seu potencial não funcional e voltando seu
interesse para as características próprias dos materiais pertinentes a esse meio. A cerâmica
como técnica comporta um modo de fazer bastante peculiar, que depende de matérias primas,
ferramentas, equipamentos, procedimentos e um espaço de trabalho adequado. As variações
nesse conjunto de elementos, apontaram limitações e caminhos, colaborando com a
diversidade na produção cerâmica em diferentes culturas ao longo da história da humanidade
e ao redor de todo o globo terrestre. É como parte integrante desse universo milenar do fazer
cerâmico que o processo de criação de Regina Rodrigues se desenvolve.

Ao fixar residência em Vitória no ano de 1992, Rodrigues assumiu a cadeira de


cerâmica da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Durante os dias úteis da semana,
lecionava as disciplinas dessa área e desenvolvia projetos de pesquisa voltados para questões
relacionadas com a cerâmica. Nos fins de semana, retornava ao laboratório onde realizava
seus trabalhos de cunho pessoal, suas experiências estéticas e poéticas.

A oficina de cerâmica da universidade funcionou então como ateliê para Rodrigues.


Um espaço adaptado fisicamente para a produção cerâmica, mas também um espaço
acadêmico, onde sua produção se misturava às de seus alunos durante o processo de
confecção. Um local propício para as aulas práticas e sobre tudo um espaço de diálogo e
reflexão sobre a cerâmica como linguagem.

Ao descrever sua experiência visitando os ateliês parisienses, Buren conta que


descobriu o senso de realidade ao ver os trabalhos inseridos no contexto do atelier, o que
chamou de “verdade”. Ele acrescenta ainda que essa verdade não se restringe apenas ao
artista, à obra e ao espaço, mas também ao ambiente onde estavam inseridos (2009). Em
Rodrigues, essa realidade/verdade, a qual Buren se refere, envolve todo o ambiente
acadêmico, os trabalhos dos alunos, suas descobertas como pesquisadora, além de toda a rica
diversidade de um espaço com múltiplas produções.

A relação de Rodrigues com a oficina de cerâmica extrapolava a funcionalidade de


uma sala de aula ou de um simples espaço de produção. Ela interagia com o espaço e usava as
paredes da pequena sala anexa (reservada, para pesquisas) como suporte para ensaios de seus
236

projetos em andamento. Esse anexo funcionava como um depositório de ideias, onde as


experiências nas paredes ou sobre as bancadas se mantinham em contínuo diálogo com a
artista. É dessa relação, não só com o espaço físico interno e externo da oficina, mas também
com os acontecimentos e a rotina desse espaço, que surgem os módulos que compõem os
trabalhos da década1990.

Gravetos (1993) (ver figura 1) foi o primeiro trabalho realizado por Regina na cidade
de Vitória no Espírito Santo e traz indícios de que o impacto da mudança de ambiente,
cidade/estado/instituição, foi uma das molas propulsoras da obra em questão4.

O módulo que compõe a obra surgiu a partir da relação da artista com a paisagem ao
redor da oficina de cerâmica. Foi caminhando no trajeto, repetido diariamente, de sua
residência até o espaço de trabalho que Rodrigues coletou os galhos secos caídos das árvores.
A artista se apropriou de tais objetos, reproduziu-os em cerâmica, replicando-os em série, para
posteriormente serem utilizados na montagem da obra.

Figura 1: Regina Rodrigues. Detalhe de Gravetos, 1993. Galeria Espaço


Universitário
Fonte: foto cedida pela artista

4Para mais informações sobre o processo de criação de Rodrigues em Gravetos consulte MARTINS, Tatiana C.. Gravetos no
caminho: Marcas do rastro criador em gravetos (1993) de Regina Rodrigues. In :Farol: revista do programa de Pós-
graduação em Artes PPGA/UFES,Vitória, ano 10/número 12, p.90-95, 2014.
237

Na Galeria Espaço Universitário, a artista montou os módulos sobre o piso, um após o


outro, formando dois caminhos. Um com os gravetos mais escuros, trabalhados com engobe5
e o outro com os gravetos mais claros, queimados na fumaça6. Fixados por trás com arame,
deslocou verticalmente alguns gravetos e lateralmente outros criando a sensação de
movimento. Esses caminhos irregulares, ora estavam dispostos lado a lado ora se cruzavam,
passando um por cima do outro, como se acompanhassem a topografia de um solo imaginário,
como os atalhos e bifurcações criados pelos transeuntes sobre a grama do campus
universitário, onde coletou os galhos secos que originaram os módulos.

Ao utilizar o chão e criar um trajeto, Rodrigues tira o observador de sua zona de


conforto, ao propor um ângulo de visão de cima para baixo e um deslocamento pelo espaço
ocupado obra. A materialidade do objeto e mimesis da forma, provocam os sentidos do
espectador, remetendo às sensações provocadas pelos galhos naturais e a paisagem de onde
foram retirados. No entanto, o observador mantém uma postura muito mais contemplativa do
que de imersão no contexto da obra, realçando sua entidade autônoma. O trabalho pode ser
refeito em outros locais sem que haja uma perda de sentido. Em Gravetos, a forma do
trabalho é o elemento gerador de sentido e o espaço onde este se encontra inserido, a galeria
“com suas impecáveis paredes brancas, luz artificial (sem janelas), clima controlado e
arquitetura pura” (KWON, 2004, p.169), exerce a função de neutralidade. Portanto, a nosso
ver, o termo ‘instalação’ em Gravetos tem uma proximidade maior com a montagem da obra
do que com a ‘Instalação’ seguindo os parâmetros propostos por Bishop e descritos
anteriormente nesse texto.

A serialidade e a repetição de módulos também são o ponto de partida da obra


Prospecção. Na construção desses módulos, Rodrigues parte de uma técnica básica de
modelagem muito utilizada na construção de objetos, a técnica do rolinho7. Distanciados de
sua função de origem, os rolinhos foram produzidos desafiando as possibilidades de espessura
que a argila suporta, 0,3 cm. São módulos idênticos em sua forma, porém feitos em argilas
diferentes, modelados a mão e utilizados ainda crus (quando a argila está seca e não possui
nenhuma liga entre seus grãos, seu momento de maior fragilidade) ressaltando suas
características físicas como texturas e cores in natura. É do contato direto com a matéria, dos
5 Engobe: argila líquida, de cor natural ou pigmentada com minerais, que é utilizada para pintar a superfície de outra argila
antes da queima.
6 Queima feita em latão com pó de serra para alterar a cor da cerâmica.
7Técnica do rolinho: Consiste na construção de formas a partir da sobreposição de rolinhos de argila colados com barbotina

e/ou costurados com a espátulas. Para mais informações colsulte RODRIGUES, Maria Regina. Cerâmica. Vitória: UFES,
Núcleo de ensino a distância, 2011.
238

movimentos precisos que se repetem no rolar das mãos sobre a argila, que surge a forma fina,
alongada e simétrica.

Em busca de uma solução de montagem para esses delicados módulos, Rodrigues


escavou um pequeno nicho (0,5X6,5 X40cm) na parede da sala anexa à oficina de cerâmica,
onde realizou as primeiras experiências de inserção dos finos rolinhos de argila crua nesse vão
(ver figuras 2 e 3).

Figura 2: Fotografia tirada em 2014 do ensaio realizado por Figura 3: Detalhe do ensaio
Regina Rodrigues em 1998 na parede da sala de cerâmica da em 1998
UFES. Rolinhos de argila crua incrustados na parede, Fonte: Foto cedida pela artista
aproximadamente 6,5 x 40 x 0,5
Fonte: Foto Tatiana Campagnaro.

O local de execução do ensaio foi um cantinho escondido atrás da porta, que ao


mesmo tempo mostrava e escondia o trabalho (ver figura 4 e 5). Quando a porta estava aberta
e as pessoas circulavam de um cômodo para o outro, o ensaio ficava coberto pela porta. Ao
entrar no cômodo e fechar a porta, a experiência se mostrava para quem entrou no ambiente,
mas só realmente quem fechava a porta é que via essa experiência, ou seja, a artista e uns
poucos autorizados por ela.
239

Figura 4 e 5: Experiências sobre as paredes da sala anexa na oficina de cerâmica


Fonte: fotos Tatiana Campagnaro

Esse ensaio se configura como um documento do processo de criação dessa artista,


que não tem como hábito registrar suas ideias em forma de desenhos, nem de projetar
bidimensionalmente suas obras. Cumpre o papel de protótipo, de maquete de uma obra à vir a
ser. A parede, que funciona como um caderno para seus experimentos, nos revela o caráter
intimista desse ensaio escondido atrás da porta e sugere uma relação com a passagem de um
ambiente para o outro, do espaço privado (da sala anexa) para o público (a sala de aula).

Prospecção como obra, foi apresentada pela primeira vez em uma coletiva no ano de
1999, na exposição de abertura da Casa Porto das Artes Plásticas (ver figura 6). Rodrigues
levou sua experiência da parede atrás da porta da sala anexa para as paredes de um prédio
histórico, uma edificação tombada a nível estadual, datada de 1903.
240

Figura 6: Prospecção, 1999. Rolinhos de argila incrustados na parede, aproximadamente 6,5 x


400 x 0,5 cm. Casa Porto das Artes Plásticas.
Fonte: foto cedida pela artista

O espaço escolhido para a montagem, lida novamente com a passagem entre dois
ambientes, um corredor e uma sala de exposição. Ao escavar as paredes Rodrigues faz uma
prospecção no verdadeiro sentido do termo, derivado da mineralogia, mas muito utilizado por
restauradores, um método ou técnica de localizar e avaliar jazidas, uma forma de sondagem,
de investigação (FERREIRA, 2004).

A artista descortina as camadas de tinta sobrepostas deixando-as aparentes em uma das


extremidades da montagem, revelando através da sucessão de cores, anos da história do
edifício (ver figura 7). No restante da parede a escavação é mais profunda, chegando ao
reboco onde são incrustados os rolinhos de argila. A sequência estrutural simples dos módulos
perfilados lado a lado ou um após o outro, remetem a serialidade dos minimalistas. Inseridos
na superfície literal da parede acompanhavam o espectador no seu trajeto de um ambiente ao
outro da exposição como se pertencessem à própria estrutura do edifício e tivessem sido
revelados na mesma escavação. Prospecção reverbera a questão: o que há por trás das paredes
da galeria? Seriam os delicados rolinhos, uma forma simbólica de representar o fazer artístico
como base de sustentação da instituição? Uma forma de questionamento à maneira como as
instituições moldam a arte?
241

Figura 7: Detalhe de prospecção,1999, Casa porto das Artes Plásticas.


Fonte: Foto cedida pela artista

Em 2008 Rodrigues apresenta uma nova versão de Prospecção em outra exposição


coletiva. Nomadismo e Territorialização trouxe como proposta o trabalho de artistas, que
segundo Lincoln Guimarães Dias, curador da mostra,

“[...] respondem ao estado de negatividade que se constituiu na arte das últimas


décadas a partir da dissolução da especificidade formal das obras, da crise da própria
noção de obra e do vácuo deixado pela falência do projeto ético e político que
caracterizou a modernidade. [...]”. (Dias, 2008, p.4)

Ainda segundo ele, os trabalhos operavam a partir dessa perda de lugar, seja
ressituando-se provisoriamente, seja aprofundando os sintomas dessa perda.

A exposição aconteceu simultaneamente em dois espaços, na Galeria Matias Brotas


Arte Contemporânea e na Galeria de Arte Espaço Universitário. Duas galerias distantes
apenas 550 metros uma da outra que promoveram uma exposição única. Nessa mostra o
trabalho de Rodrigues voltava a discutir os limites espaciais. Na Matias Brotas, os finos e
delicados módulos de argila foram incrustados na parede próxima a entrada da galeria. O
recorte na parede ultrapassava a porta de vidro que dava acesso ao ambiente onde Prospecção
se projetava do interior da galeria para o espaço externo (ver figura 8), sugerindo uma
continuidade virtual até a Galeria Espaço Universitário.
242

Figura 8: Planta da Galeria Matias Brotas Arte Contemporânea


com a localização da obra prospecção em vermelho
Fonte:disponível em: <http://www.matiasbrotas.com.br/pt/galeria.php>
Acesso em 14 nov.2014

Prospecção, nas duas exposições, traça uma forte relação com o espaço onde foi
instalada e o deslocar-se do espectador, assim como ocorreu no ensaio de ateliê. Essa relação
com o espaço, com a passagem entre dois ambientes, entre o que é visto e o que esta
escondido, são os fatores geradores de sentido na obra. Em cada instalação a obra proporciona
uma nova reflexão sobre essa relação espaço/obra/instituição. Em Prospecção, o espaço onde
o trabalho foi instalado (o cubo branco teoricamente neutro) está vinculado ao sentido da
obra. Removido do local, perderia a totalidade ou parte de seu significado. Poderíamos usar
aqui as palavras de Richard Serra “remover a obra é destruir a obra” (apud CRIMP, 2005,
p.136)

A obra Corais (ver figura 9) foi produzida para o 4° Salão do Mar, realizado na Casa
Porto das Artes Plásticas, uma exposição com temática marinha onde o trabalho obteve o
premio Menção Honrosa. Nesse caso a obra tinha um encargo a cumprir para que fosse aceita
no Salão. O tema da exposição foi o ponto inicial para sua criação e o universo cerâmico as
243

diretrizes para sua construção. Foi a partir da técnica do torno8 que foram produzidos os
módulos cilíndricos, que juntos compõem a obra. Com essa ferramenta de produção em série
e a colaboração de um torneiro de ofício, Rodrigues produziu centenas de cilindros com
diâmetros aproximados de 4 a 5 cm e alturas entre 5 a 20cm. Os módulos semelhantes, mas
não idênticos, enquanto ainda estavam úmidos, foram sendo colados uns aos outros com
ângulos de inclinação variados formando grupos com 8, 10, 12 elementos. Levados ao forno,
os pequenos grupos adquiriram uma coloração clara, quase branca, dessa argila após a
queima.

Figura 9: Detalhe da obra Corais, 2002. Casa porto das Artes Plásticas
Fonte: Foto cedida pela artista

Na galeria, Rodrigues dispôs os grupos de cilindros sobre uma base de MDF na cor
natural, com aproximadamente 200 x 200 x 30 cm. Encostados uns aos outros, formando um
único objeto, remetiam à forma de um recife de corais. O material, a escala e a forma
sugeriam que o trabalho seria dotado de uma força animada, como se fossem seres orgânicos.
Isolados do chão pela base e distante da parede, a obra recebia a luz natural que entrava pela
janela. Contrastando com o restante da iluminação uniforme da galeria, criava um jogo de luz
e sombra e uma atmosfera mística. O observador ao se aproximar e circular a obra, mantinha

8
O torno é um equipamento que possui um disco horizontal acoplado a um eixo que gira, movido mecanicamente ou à
eletricidade. A argila é colada a esse disco que gira, possibilitando através da pressão das mãos do ceramista a conformação
de peças circulares.
244

uma postura contemplativa, voltando-se para o objeto e dando as costas para o restante do
espaço. Como em Gravetos, o termo ‘instalação’ parece-nos ter mais relação com a
montagem dos módulos na composição da obra do que com as questões relacionadas ao
espaço de exposição e ao modo de observação.

Considerações finais

Durante a análise desses três trabalhos de Rodrigues, podemos observamos que não
existe um padrão na relação que suas obras mantêm com o espaço de exposição.

Em Gravetos e em Corais, a forma geradora de sentido na obra se destaca no espaço


neutro da galeria. Aproximam-se da concepção moderna de escultura, como objeto autônomo
e autorreferencial. Fica claro também, que nessas obras, a relação da artista com a
materialidade da cerâmica como meio de expressão é muito forte. Independentemente da mola
propulsora que originou os módulos que compõem o trabalho ou do conceito final da obra, as
características plásticas dos materiais se sobressaem à questão da relação com o espaço.

A obra Prospecção insere-se na contemporaneidade ao se negar a seguir os padrões


previamente definidos de montagem de trabalhos sobre a parede da galeria, por não se
contentar em ser apenas um objeto contemplativo, mas uma obra que propõe um exercício
reflexivo sobre sua relação com o espaço.

Outro fator que nos chamou a atenção foi a forma como a artista registrou
fotograficamente suas obras, ou como orientou os fotógrafos que fizeram os registros. Na
maioria das imagens em seu poder, o enquadramento privilegia detalhes da obra e não o
espaço como um todo.

Acreditamos que o termo ‘instalação’ foi empregado pela artista, devido


principalmente ao caráter modular de suas obras, que só se concretizam fisicamente no ato da
instalação, ou seja em sua montagem. As obras tridimensionais de Rodrigues distanciam-se da
escultura tradicional e se desdobram no espaço expositivo sem fazer dele o seu ponto
principal. No entanto, a materialidade dessas obras é tão forte que ousaríamos deixar esses
termos de lado e chamá-las simplesmente de cerâmica.
245

REFERÊNCIA

BISHOP, Claire. Installation Art: A Critical History. Londres: Tate publishing, 2010.

BUREN, Daniel. The Function of the Studio. In: ALBERRO, Alexander, STIMSON, Blake.
Institutional Critique: an anthology of artists’ writings. Cambridge: MIT, 2009.

CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

DIAS. Lincoln G.,Nomadismo e Territorialização. Vitória: EDUFES, 2008

DUARTE, Paulo Sergio (Org.). Da escultura à instalação. Porto Alegre: Fundação Bienal do
Mercosul, 2005.

FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília (Org.). Escritos de Artistas anos 60/70. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

FERREIRA, Buarque de Holanda. Miniaurélio: mini dicionário da língua portuguesa.


Curitiba: Posigraf, 2004.

KRAUS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo; Martins Fontes,1998

________. A escultura no campo ampliado. In: Arte&Ensaios nº 17. Rio de Janeiro:


Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/Escola de Belas Artes, UFRJ, 2008, pp128-
137.

KWON, Miwon, Um lugar após o outro: anotações sobre site-specific. In: Arte&Ensaio, nº
17. Rio de Janeiro: Programa de pós graduação em Artes visuais/EBA.UFRJ 2008.

MARTINS, Tatiana C.. Gravetos no caminho: Marcas do rastro criador em gravetos (1993) de
Regina Rodrigues. In :Farol: revista do programa de Pós-graduação em Artes
PPGA/UFES,Vitória, ano 10/número 12, p.90-95, 2014.

RIBENBOIN, Ricardo. Tridimensionalidade: arte brasileira do século XX. São Paulo: Cosac
Naify, 1999.
246

A arte como possibilidade de um novo habitar.


Vinicius Gonzalez (PPGA-UFES)

O presente artigo investiga a potencialidade que algumas obras de arte pública trazem de
ativar novas paisagens urbanas através de suas construções/intervenções nas cidades. Para
isso se faz necessário entender como a arte dialoga com as transformações urbanas
provocadas pelo rápido e enérgico processo de modernização a partir da segunda metade do
século XX. Falamos de obras que possibilitem reflexão sobre o papel da arte pública na
ativação de uma memória urbana, na ativação afetiva dos lugares, resignificando e
transformando-os enquanto paisagem urbana. São novas imagens/projeções, não apenas pela
simples relação arte/cidade, mas principalmente por carregar em si um discurso
memorialístico como conceito chave para essa ativação.

Palavras-chaves: Arte, Memória, Paisagem Urbana, Cidade

This article explores the potential that some public art works bring to activate new urban
landscapes through their constructs / urban interventions. For this it is necessary to
understand how art speaks to the urban transformations caused by the rapid and energetic
modernization process in the second half of the twentieth century. We speak of works that
allow reflection on the role of public art in the activation of an urban memory, affective
activation places, redefining and transforming them while urban landscape. Are new images /
projections, not only for the simple relationship between art / city, but mainly carry in itself a
memorialistic speech as a key concept for this activation.

Keywords: Art, Memory, Urban landscape, City

"A cidade favorece a arte, é a própria arte".


É citando Lewis Mumford que Argan (2005, p.73) inicia seu capítulo “A cidade ideal e
a cidade Real", para logo de inicio deixar clara a estreita relação entre o fazer história da arte
e o fazer história da cidade. Como ele próprio continua, ela, a cidade, não é apenas um
invólucro ou uma concentração de produtos artísticos, mas um produto artístico ela mesma.
Como, então, entender a cidade pelo olhar da arte?
Antes, porém, vamos resgatar algumas discussões sobre a cidade e sua percepção
através da paisagem, afim de estabelecer como nos colocamos, ou pelo menos, como
enxergamos o papel do sujeito nessa teia de relações urbanas. Entendemos que seja
fundamental partir de uma leitura universal para, pelo menos, tentar dar conta do nosso
microcosmo. Estamos falando de uma busca por um reconhecimento ontológico do termo, ou
247

simplesmente sentir-se parte. Condição fundamental no processo de significação do lugar que


habitamos. Afinal, habitar é ser-estar no mundo.
Por mais que exista um diagnóstico “padrão” para o futuro territorial dos complexos
urbanos, também é sabido que cada cidade possui particularidades e especificidades que
fazem suas engrenagens serem única, que nos possibilitam enxergá-las com olhos mais
delicados, ou como em nosso caso, possibilitam realizar uma leitura poética do que o campo
da arte entende sobre o conceito “cidade”. Nesse sentido a definição de cidade parte de uma
leitura histórica do seu processo de formação como busca de reconhecimento dos caminhos
trilhados até chegar ao ponto da busca pela apropriação de uma realidade urbana que podemos
chamar de nossa.
Historicamente, a cidade quase sempre foi sinônimo de refúgio, proteção,
sobrevivência. Símbolo máximo da libertação do homem diante da natureza. Trazia em suas
idealizações a promessa de continuidade da frágil raça humana, como acreditava os
medievais, quando os homens livres viviam dentro dos muros, enquanto os camponeses, do
lado de fora, ficavam a própria sorte. Ainda na pólis grega, a cidade propiciava aos homens
livres a oportunidade de alcançar a imortalidade de pensamento e de ação, e deste modo
ascender acima da servidão biológica (TUAN, 1980, p.172).
Argan (2005, p.73) afirma que a ideia de cidade ideal sempre esteve profundamente
arraigada em todos os períodos históricos da humanidade, sendo assim inerente ao caráter
sacro a relação institucional com a cidade. Esse pensamento se confirma na contraposição
recorrente entre a cidade celeste ou divina e a cidade terrena ou humana. Tal dualidade nos
leva a crer que o homem buscou em quase toda sua existência (se o ainda não faz) denegar o
natural como sagrado afim de desmistificar o que não dominava, sempre em detrimento da
construção de um recinto artificial que por diversas vezes almejou ser sacralizado, ou
simplesmente, reduzir a região mitológica da natureza em espaço sagrado da civilização
humana. Ou como sentencia Argan, a natureza como mundo das causas primeiras e das
finalidades últimas.
Quando se fala em cidade, nós que pertencemos às civilizações urbanas, assumimos
sempre uma postura dupla e contraditória em relação a esta forma de vida associada
(CACCIARI, 2009, p.26). De um lado, concebemos a cidade como lugar de trocas afetivas,
relações inteligentes e seguras. Aprendemos ao longo de nosso desenvolvimento como raça
que viver em grupos se torna mais vantajoso quando o que está em jogo é a sobrevivência.
Através do coletivo preservo o indivíduo e vou construindo os laços necessários para vencer
248

as adversidades naturais. Se nos primórdios, o ambiente hostil prevalecia sob nossas frágeis
condições humana, a medida que nos associamos por afinidade desenvolvemos a grande
habilidade de viver socialmente. Os agrupamentos passam a marcar territórios, criando-se um
lugar para se morar, um porto seguro afetuoso e confortável onde se pode repousar após longa
jornada.
Um dos dilemas pós-modernos apontados por Cacciari (2009, p.33), é quando nos diz
que não habitamos mais as cidades. Habitamos territórios cuja métrica já não é espacial; já
não existe qualquer possibilidade de definir eixos espaciais precisos. Se antes os sítios eram
divididos por espacialidades palpáveis, como territórios não habitados ou zonas rurais, hoje
dificilmente conseguimos distinguir os limites entre as cidades que configuram uma região
metropolitana por exemplo. Lynch (2011, p.52) define que os limites “são os elementos
lineares não usados ou entendidos como vias pelo observador”. Fala em quebra de
continuidade, como as praias, os rios, ferrovias e até mesmo espaços em construção como as
áreas industriais que circundam muitas zonas metropolitanas. Se formos diminuir o foco e
adentrarmos nas estruturas urbanas, ai sim o problema se agrava. Entre os bairros que compõe
uma cidade muitas das vezes os que os separam são uma ruela ou um beco, elementos que se
interpenetram e se sobrepõem regularmente.
Com esse pensamento nos chama a perceber que não se trata de uma materialidade
visível que o verbo habitar facilmente nos remete.
[...] O habitar não tem lugar lá onde se dorme e, por vezes, se come,
onde se vê televisão e se diverte com o computador de casa; o lugar do
habitar não é o mero alojamento. Só uma cidade pode ser habitada;
mas não é possível habitar a cidade se ela não se dispuser a ser
habitada, ou seja, se não “der” lugares. O lugar é o sítio onde paramos:
é pausa – é análogo ao silêncio de uma partitura. Não há música sem
silêncio [...] (CACCIARI, 2009, p.35).
Fala de uma transposição geográfica e física quando afirma que o desenvolvimento da
metrópole para território não pode ser programado. Não se trata, contudo, de uma
incapacidade técnica ou de uma vontade política, e sim da simples impossibilidade de
programação dos limites administrativos, que mesmo existindo são todos artificiais e fictícios.
Estamos falando de uma diluição dos limites tradicionais que até mesmo a carga simbólica
que o termo cidade carrega em si não suporta mais dentro de uma região metropolitana, por
exemplo. Onde começa e termina uma cidade? Em uma avenida? Uma esquina? Ou quem
sabe em um olhar?
249

Com o devido cuidado e sem ter a intenção de estender a longos parágrafos a


discussão, podemos afirmar que habitar não se trata de um estado de ter residência, morar em
uma construção, como dois corpos independentes. Mas sim, estabelecer um modo no qual o
homem, ao desenvolver possibilidades de uma relação ser-no-mundo1, constrói o mundo que
o circunda. Enquanto ocupação, o ser-no-mundo é tomado pelo mundo de que se ocupa […]
“a ocupação se concentra no único modo ainda restante de ser-em, ou seja, no simples fato de
demorar-se junto a” (HEIDEGGER, 1954, p.01). Perceber e responder o que nos faz ser parte,
porque não podemos imaginar uma natureza do ser (essência) sem considerar o seu entorno.
Em um claro (e breve) exercício de flexão do pensamento heideggeriano nos interessa
sua preocupação na questão do ser em conjunto enquanto tal e como esse ser se relaciona com
o todo, em uma proposição dialética entre o interior e o exterior.

Figura 1 - Robert Smithson, The Monuments of Passic, New Jersey, 1967.


Fonte: James Cohan Gallery

1
Com o conceito de ser-no-mundo Heidegger pretende caracterizar a simultaneidade de mundo e
homem, mostrando que a existência do homem recebe seu sentido da sua relação com o mundo e que este
obtém sua significação através do homem. (FERREIRA, Acylene Maria Cabral. O destino como serenidade).
250

Podemos percerber que as grandes cidades converteram-se em um arquipélago de


enclaves modernizados – com suas torres corporativas, shoppings centers e condomínios
fechados – cercados por vastas áreas abandonadas, terrenos vagos ocupados por populações
itinerantes (PEIXOTO, 2004, p.393). É um mundo cada vez mais sem passado (ou seria um
novo passado?), uma nova geografia econômica que obriga os indivíduos que nele habitam a
novas relações de interação.
Forma-se uma instabilidade espacial em áreas onde o fazer e desfazer é contínuo.
Criam-se espaços críticos, paisagens quebradas bem no meio da cidade, deslocando
continuamente nossa percepção. O aparecimento dessas novas estruturas espalhadas pelas
cidades são detritos de um passado violentado. Resíduos do progresso, depósitos em que se
acumulam vestígios arqueológicos; fraturas aparentemente desprovida de rosto e história.
Seria essa fração de memória a matéria constituinte na (re)construção imagética da
paisagem urbana através da arte?
Robert Smithson realizou, no final dos anos de 1960, diversas expedições de
reconhecimento da paisagem através de regiões industriais nos arredores de Nova York.
Resultado: uma série de seis fotografias e um foto/mapa intitulados “The Monuments of
Passic”. Através de uma narrativa documental, fez um tour por essa paisagem para retratá-la
devastada pela industrialização e pelo crescimento urbano. Nenhum desses monumentos
mapeados por Smithson são lugares aos quais seus habitantes atribuíram qualquer significado.
Ele não faz referência à história ou à antiga configuração urbana da região, mas evidencia e
aponta desde então o problema da transformação urbana e a relação de memória dos seus
habitantes.
Smithson no seu texto sobre “Monuments of Passic” tratou as estruturas fotografadas
como ruínas às avessas, ou seja, “não desmoronaram em ruínas depois de serem construídas,
mas se ergueram em ruínas antes mesmo de serem construídas” São cicatrizes que revelam as
marcas deixadas por um processo de modernidade, caracterizado pela brutalidade interventiva
e pela velocidade de deslocamento e adaptação proveniente de interesses econômicos
especulativos, geradores de espaços latentes, oscilando entre o existir e não-existir.
Através de Heidegger, usufruímos de uma noção existencial fenomenológica, baseada
na posição do homem no mundo enquanto ser ativo constituinte do todo, para entender as
engrenagens que o leva a construir sua relação memorialística através da arte com a cidade e
sua respectiva paisagem urbana. Essa torção filosófica contribui no desenvolvimento do
251

pensamento quando abordamos a problemática da memória na arte pública. Diante do


exposto, podemos afirmar que, ao paço que (re)construímos o nosso entorno, nossa realidade,
entramos em constante estágio de habitação daquilo que nos faz parte. Imersão. Completude.
Vejamos, por exemplo, a obra “After Banhof Video Walk”, dos artistas Janett Cardiff
e George Miller. Desenvolvido para a Documenta de Kassel, de 2013, o trabalho foi projetado
para acontecer em uma antiga estação ferroviária da Alemanha, em Kassel, e consiste em um
vídeo de 26 minutos que é “projetado” em um Ipod que o espectador retira em uma cabine
localizada dentro da estação.
Guiado pelo vídeo e pelas vozes de Cardiff e Miller, o espectador-usuário-transeunte
passa a se relacionar com a estação e a vaguear por uma paisagem que é tanto ficção quanto
realidade. Fala-se em um perturbador e misterioso mundo2, onde os participantes ao
assistirem as cenas na pequena tela do aparelho eletrônico, sentem a presença do que vêem ao
se posicionarem no mesmo local que tudo foi filmado. E quando buscam enquadrar o aparelho
com a cena que se desenrola, tentam seguir os mesmos movimentos como se fossem o
operador da câmera, causando estranha sensação de deslocamento temporal. Nesse momento,
passado e presente se cruzam em um espaço paralelo criado pelos artistas, onde se discuti uma
memória de um passado nem tão distante assim. Mais do que isso. Fala, também, de uma
memória paisagística típica de uma cidade modernizada ao evidenciar uma relação nem
sempre percebida que o usuário da estação ferroviária tem com seus pares e os aparelhos
urbanos que utiliza. E que só percebemos a ausência quando participamos do trabalho.

2
Em uma tradução livre, esse trecho descritivo da obra foi adaptado do site dos artistas.
252

Figura 2 – Janett Cardiff & George Miller - After Bahnhof Video Walk - Documenta
de Kassel, 2012. Foto Malvina Sammarone

Assim, habitar se faz através de uma relação sensível com o mundo (fazer arte). Habito
porque me sinto parte do que me proponho a transformar. Reconfiguro. Vejo o que ninguém
vê. Ou quando vejo o que todos veem meu olhar extrai nuanças e detalhes que possivelmente
passaram despercebidos pela grande maioria. A cidade para mim é campo fértil de
possibilidades infinitas. O skyline urbano é como uma paisagem impressionista explodindo
em movimentos multicoloridos. Retomando Tuan, talvez esse skyline urbano se aproxime da
experiência espacial dos habitantes das grandes florestas tropicais: onde a linha do horizonte,
o infinito, é barrada pelos troncos de uma mata fechada, quando na verdade não há horizonte,
e sim uma grande carência de marcos visuais (TUAN, 1980, p.91).No caso das cidades,
nossas árvores são de concreto, e vislumbrar o horizonte se transforma em exercício de
imaginação diante de truncadas e inúmeras ruas e avenidas. Talvez o mais próximo que
consigamos chegar, seja no infinito perspectivo arquitetônico.
Por isso que, quando Lynch constrói a ideia de que olhar para a cidade pode dar um
prazer especial, por mais comum que possa ser o panorama, ele deixa claro que ao mudarmos
a perspectiva do olhar passamos a enxergá-la como uma grande obra de arte temporal, como
ele mesmo define. Temporal porque não aceita padrão como outras artes, temporal porque a
cidade é vista sob todas as luzes e condições atmosféricas possíveis. “A cada instante, há mais
253

do que o olho pode ver, mais do que o ouvido pode perceber, um cenário ou uma paisagem
esperando para serem explorados” (LYNCH, 2011, p.01).
Rykwert, ainda na introdução do seu livro “A sedução do lugar”, faz interessante
relato. Desde a fase acadêmica questiona o conjunto de ensinamentos recebidos sobre a
natureza racional dos assentamentos urbanos, “assim como a ideia de que a cidade é moldada
por forças impessoais”. Para ele, outras noções, sentimentos e desejos comandam os
projetistas e construtores, não relacionando o crescimento das cidades apenas ao que os
economistas ensinavam. Acredita que a cidade seja um “artefato almejado, um constructo
humano em que muitos fatores conscientes e inconscientes desempenham seu papel”
(RYKWERT, 2004, p.05).
Mesmo reconhecendo a intenção de distanciamento na construção dos edifícios
corporativos e dos prédios habitacionais, o autor diz que:
[...] A sensação da cidade e o seu tecido físico estão sempre presentes
para os habitantes e visitantes. Apreciado, visto, tocado, cheirado,
adentrado, consciente ou inconscientemente, esse tecido é uma
representação tangível daquela coisa intangível, a sociedade que ali
vive – e suas aspirações. Uma representação, uma figuração – mas
não, ínsito, uma expressão. A palavra “expressão” sempre me faz
pensar em algo involuntário, instintivo, e por tanto, passivo, algo
como creme dental para fora do tubo (RYKWERT, 2004, p.07)
Nesse sentido, precisamos nos atentar e repousar nossos esforços. Através de um olhar
estético, enxergamos naturalmente a cidade como obra de arte. Por meio dela, podemos
descobrir suas qualidades como paisagem; ambiente carregado de significados materiais e
imateriais; de interpretações. E como sugere Rykwert, representação, ao contrário de
expressão, sugere reflexão, intenção e até mesmo, nesse contexto, um desígnio. A cidade
assim, se torna nesse momento o grande suporte, meio de construção e reconstrução de
realidades e representações, ativando e (re)configurando novas paisagens a cada olhar mais
atento, por fim, produzindo outra realidade visual.
Ora, sendo a cidade então uma marca cultural, enxergá-la como suporte e expressão da
arte não é nenhum exagero, pois como afirma Maderuelo, ela possui qualidades como
paisagem e por isso está sujeita a um olhar estético.
Entendida como obra de arte, la ciudad se encuentra sometida a la
mirada estética y, a través de ella, podemos descubrir sus cualidades
como paisaje, entorno sentimental, depósito de la historia y escenario
arquitectónico (MADERUELO, 2001, p.18)
Quando o autor espanhol traz a cidade como fruto do trabalho coletivo, gera um
profundo significado simbólico, ao ponto que podemos considerá-la como uma obra de arte
254

porque representa as aspirações, ideais, realizações e frustrações de seus habitantes ao longo


de toda história. Entende-se, portanto que sítio urbano, através de suas inúmeras paisagens,
torna-se um campo onde ocorre a materialização entre diferentes espaços e tempos, entre
diversos suportes e tipos de imagem. Nesse contexto, acreditamos que a arte pública se coloca
como responsável por ativar novas paisagens, como ocorre quando acontece eventos como o
“Madri Abierto” (Madri, Espanha) e o “Arte Cidade” (São Paulo, Brasil). Tais ações não
buscam afirmar a necessidade da arte estar fora dos museus e galerias, muito pelo contrário,
procuram enfatizar novas estratégias espaciais e críticas sobre o uso do espaço urbano
(público). Diante desse novo contexto urbano, a arte contemporânea apresenta, e representa,
sobretudo, a complexidade do ambiente, suas diferenças e, principalmente, a consequente
capacidade de interpretação de cada um que de fato ali habita, determinando múltiplas
possibilidades de leitura.
A arte pública interage de tal modo com a realidade da cidade e os seus fluxos que não
é percebida como tal. A desmaterialização da arte é fruto das reflexões contemporâneas sobre
o seu papel e lugar. A cidade como lugar da vida cotidiana, do coletivo, do fluxo de ações,
dos acontecimentos e temporalidades e da acumulação histórica, oferece reflexão estética ao
converter-se em parte das obras-manifestações de arte pública. São nessas condições que os
artistas contemporâneos, através de suas intervenções/instalações, estabelecem mudanças no
cenário, estimulam o debate comunitário, interagem com a arquitetura do entorno e
corroboram para um novo olhar sobre o lugar. Quando observamos na arte contemporânea um
campo ampliado de atuação, possibilitado pelo encurtamento da relação discursiva entre o
fazer e o pensar, passamos a enxergar as práticas artísticas pautadas em espacialidades
diversas.
255

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade - 3° ed , São Paulo:
Martins Fontes, 1995.
AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. São
Paulo: Papirus, 1994.
BERGSON, Henri. Memória e Vida; textos escolhidos por Gilles Deleuze. 2 ed. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2011.
CACCIARI, Massimo. A cidade. Tradução José J. C. Serra, Revisão João Carlos Piroto,
Editorial Gustavo Gili, SL, Barcelona, Espanha, 2009.
FREITAG, Bárbara. Teorias da Cidade. Campinas, SP: Papirus, 2006.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice/Editora Revista dos
Tribunais, 1990.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva
e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro, RJ: DP&A, 1998.
KYKWERT, Josehp. A sedução do lugar: a história e o futuro da cidade. Tradução Valter
Lellis Siqueira; Revisão técnica Sylvia Ficher – São Paulo: Martins Fontes, 2004.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas:SP - Editora da Unicamp,1990.
MADERUELO, Javier. Arte público: naturaleza y ciudad. Madrid: Fundacion César
Manrique, 2001.
_________________Paisaje y arte. Madrid: Abada Editores, 2007.
_________________Poéticas del Lugar: arte público em España. Madrid: Fundacion
César Manrique.
PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens Urbanas. 3 ed. São Paulo: Senac, 2004.
SMITHISON, Robert. Um passeio pelos monumentos de Passic. Nó Gordio. Ano 1, número
1. Dezembro 2001
TUAN, Yi-fu. Topofilia: Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente.
Edição brasileira Difel, Tradução Livia de Oliveira. São Paulo/Rio de Janeiro, 1980.
256

O tempo histórico como tempo contemporâneo: ponderações sobre a história


da arte.
Tainah Moreira Neves (PPGA-UFES)

Resumo
Esse trabalho pretende ponderar sobre os diversos modos de construir a história da arte,
principalmente sobre aquele defendido por Ronaldo Brito em seu texto intitulado “Fato
estético e imaginação histórica”. Além disso, utilizaremos o pensamento desenvolvido pelo
historiador francês Georges Duby para fortalecer e contrapor algumas ideias levantadas por
Brito. Para melhor ilustrar as proposições que serão pontuadas ao longo do texto, tomaremos
como exemplo obras de arte e monumentos arquitetônicos, com o intuito de facilitar a
compreensão das ideias apresentadas. Com isso, defenderemos o conceito de que o tempo
histórico sempre será contemporâneo àquele que o interpreta, ao historiador da arte.

Palavras-chave: Tempo histórico, História da Arte, Georges Duby

Abstract
Our intention is to think about the many ways to build the history of art, especially on that
advocated by Ronaldo Brito in his text entitled "Fact aesthetic and historical imagination". In
addition, we will use the thought developed by the French historian Georges Duby to
strengthen and oppose some ideas raised by Brito. To better illustrate the propositions that
will be scored in the text, we will take as an example works of art and architectural
monuments, in order to facilitate understanding of the ideas presented. With that, we will
defend the concept that historical time will always be contemporary to the one who interprets,
the art historian.

Keywords: Historical time, History of Art, Georges Duby

Introdução
Em seu texto intitulado “Fato estético e imaginação histórica” 1, publicado primeiramente no
livro ‘Cultura. Substantivo plural’2 de 1996, Ronaldo Brito3 pondera sobre alguns problemas
que estavam sendo levantados no âmbito do mestrado em História Social da Cultura. O
principal deles era o de pensar a história da arte como um fato histórico, sem incorporar a
dimensão da cultura, do simbólico a esse conceito. E que, com isso, tornava-se necessário

1 BRITO, Ronaldo. Fato estético e imaginação histórica. In: Brito, Ronaldo; LIMA, Sueli de (org.). Experiência Crítica. Rio
de Janeiro: Casac Naify, 2005.
2 PAIVA, Márcia de; MOREIRA, Maria Ester (Org.). Cultura. Substantivo plural: Ciência política, história, filosofia,

antropologia, artes, literatura. São Paulo: Editora 34, 1996.


3 Atualmente é professor no curso de especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil e do programa de pós-

graduação em História Social da Cultura na PUC do Rio de Janeiro.


257

repensar a abordagem da história da arte feita pelo historiador, já que ela é constituída de
“uma ambiguidade, uma relatividade, um questionamento que não é somente da ordem da
consciência mas, sobretudo, da ordem da vivência”4. Essa nova abordagem, defendida por
Brito, seria uma experiência histórica, uma inter-relação entre sujeito e objeto, entre
historiador e obra de arte, que, sem dúvida, exigiria uma imaginação histórica por parte do
interpretante.
Defendido por outros teóricos, como Merleau-Ponty, Max Weber, Nietzsche, Guilio Carlo
Argan, o conceito de que os fatos históricos, assim como as obras de arte, são fatos
interpretados pelo historiador, com toda sua armadura cultural contemporânea, é também
ponderado pelo historiador Georges Duby5. O francês vê a História como uma construção, e
que no seu interior “existem elementos passíveis de análises que podem acrescentar e
enriquecer o conhecimento” 6. Para Duby, é essencial que o historiador trabalhe com relações
interdisciplinares, uma vez que, ele é um “construtor, recortador, leitor e interprete de
processos históricos” 7. Além disso, a imaginação também é relevante para o historiador
francês, já que “o discurso histórico é uma espécie de construção imaginária”8.
Portanto, tanto Brito como Duby, defendem que o historiador deveria dar a devida
importância à sua imaginação, não para criar fatos inventados, mas para elucidar o processo
de construção histórico. Como poderíamos entender por completo a história de uma obra de
arte do século XIII se não vivemos nesse período, se não partilhamos os mesmos gostos e
crenças? Resta-nos, somente, imaginar, não algo inventado por nós mesmos, e sim uma
construção imaginária baseada em fatos, documentos, relatos dos mais diversos tipos e das
mais diversas fontes. Uma vez que, não conseguimos desvincular a história da arte da história
da civilização humana, já que a arte, e com isso a arquitetura, é intrínseca ao homem.
“O propósito da obra de arte é conservar e comunicar significados existenciais
9
experimentados” pelo indivíduo na sua relação com seu entorno. Assim, a História é um
desenrolar de significados possíveis e a evolução da história da arte se dá paralelamente ao
desenvolvimento psicológico do indivíduo. “Todas as possibilidades existenciais
experimentadas no curso da história estão agora à nossa disposição, mas estamos cegos e
não as vemos, ou optamos por um reduzido conjunto de significados, na crença de haver

4 BRITO, Ronaldo. 2005, p. 140.


5 (1919-1996) Historiador francês especializado na Idade Média.
6 SANT'ANNA, Luiz Alberto Sciamarella. Georges Duby e a Construção do Saber Histórico. 2001. 108 f. Dissertação

(Mestrado) - Curso de Programa de Pós- Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001.
Disponível em: <http://www.liber.ufpe.br/teses/arquivo/20040506103327.pdf>. Acesso em: 06 dez. 2014, p. 5.
7 SANT'ANNA, Luiz Alberto Sciamarella. 2014, p. 18.
8 Ibid., p. 53.
9 NORBERG-SCHULZ, Christian. Arquitectura occidental. Barcelona: G. Gili, 2001, p. 225 (tradução nossa).
258

descoberto a ‘verdade’ absoluta”.10 Portanto, dever-se-ia utilizar esses “produtos humanos”


para melhor compreender o papel do símbolo artístico e arquitetônico e sua atuação no
contexto da cidade, verdadeiro repositório das memórias e símbolos do passado, dessa forma
melhorando a percepção da arquitetura e da arte nos dias de hoje, assim como melhor
entendendo as inter-relações entre o homem, sua arte, sua arquitetura e sua cidade, entre o
espaço e seus significados.

O Tempo Histórico como Tempo Contemporâneo


Toda a história é contemporânea ao historiador que a lê, que a constrói e que a interpreta.
Com isso, cada história será contada de forma diferente por cada historiador, já que cada
indivíduo carrega sua própria “armadura cultural”, derivada de sua vivência. Este fato faz
com que a História não seja uma afirmação absoluta de algo, e sim uma verdade interpretada
por cada historiador. Podendo ser modificada, interpretada e reinterpretada por cada um, não
havendo a necessidade de se encontrar a verdade absoluta (que, muito provavelmente, nem
exista).
Esses fatos ficam ainda mais visíveis ao historiador da arte, que apesar de ser sempre
contemporâneo ao objeto artístico, pode interpretá-lo e percebê-lo sempre de forma
diferente11. Brito defende que “o fato de o texto literário ou a obra de arte serem
contemporâneos do esforço de compreensão recoloca, enfaticamente, a questão do
envolvimento do historiador com a obra” 12, uma vez que “só se conhece a arte quando se a
está experimentando” 13. Porém, se só podemos apreender a arte quando a experimentamos, e
se a “armadura cultural” de uma pessoa que viveu no século XV é diferente da do homem do
século XXI, consequentemente, suas interpretações serão diversas, podendo até mesmo,
serem contraditórias.
Ronaldo Brito afirma que:
Cultura é experiência vivida e assim se incorpora inextricavelmente
ao real. Os historiadores, felizmente, ficam perplexos ao saber que o
fato histórico é fato interpretado, e interpretado também por eles
mesmos: o problema da história tem início exatamente na relação do
historiador com esse fato.14

10 Ibid., p. 229 (tradução nossa).


11 BRITO, Ronaldo. 2005, p. 140.
12 Ibid., p. 145.
13 Ibid., p. 145.
14 Ibid., p. 149.
259

É bem provável que Brito nunca tenha lido Georges Duby, um dos mais reconhecidos
historiadores do mundo, e que nunca tenha se familiarizado com seu pensamento. Isto faz
com que o teórico brasileiro generalize a “classe” dos historiadores, tomando-os como meros
copiadores de histórias, sem perceber que suas “novas” proposições já foram defendidas por
vários teóricos antes dele. Duby defende exatamente que o “historiador não é mais um
colecionador e empilhador de fatos, ele é um construtor, recortador, leitor e intérprete de
processos históricos” 15.
Outro ponto do pensamento do historiador francês que teria sido de enorme importância para
Brito é o fato que a ideia de uma história de explicações finalistas, em que as dimensões das
ciências humanas não são incorporadas, é negada por Duby. Para ele, as fronteiras entre a
História e as demais ciências humanas deveriam quase não existir, passando a serem
“interfaces submetidas a fluxos e refluxos da elaboração do conhecimento, tornando-as,dessa
forma, permeáveis à elaboração e concretização de uma verdadeira interdisciplinaridade”16.
Além disso, Georges Duby abandona a concepção da história superficialmente centrada em
indivíduos excepcionais, algo que também é defendido por Brito em relação às artes. Para o
francês era necessário estudar o homem em sociedade, apercebendo dessa “sociedade como
uma paisagem que é sistema, cuja evolução é determinada por múltiplos fatores que se
relacionam, não no sentido de causa e efeito, mas de correlação e de interferência”17. Já
Ronaldo Brito acredita que a importância histórica e a evidência estética de uma obra de arte
não deveriam ser dissociadas, pois não seria possível conservar a materialidade dessas obras
sem suas avaliações estéticas.
Além disso, o teórico brasileiro defende que ninguém é “connaiseur”, especialista “por
princípio ou méritos pretéritos, só se conhece arte quando se a está experimentando”18.Por
isto, Brito afirma que “o juízo estético está constantemente em ação, a obra é sempre
contemporânea e isso imprime a sua contribuição à dinâmica de transformação do real”19.
Algo muito parecido com a afirmação de Merleau-Ponty, também lembrada por Ronaldo
Brito: “(...) o historiador trata dos eventos no presente, com sua armadura cultural, com sua
estrutura epistemológica, conformando esse objeto. Para ele, não existiria passado em
nenhum sentido estável do termo” 20.

15 SANT'ANNA, Luiz Alberto Sciamarella. 2014, p. 12.


16 Ibid., p. 12.
17 Ibid., p. 26.
18 BRITO, Ronaldo. 2005, p. 145.
19 Ibid., p. 150.
20 Ibid., p. 141.
260

Para a melhor compreensão das ideias defendidas por Brito e Duby tomaremos como exemplo
algumas obras de arte e de arquitetura, como a Mona Lisa de Leonardo da Vinci e a Basílica
de Saint-Denis, na França. As obras foram escolhidas a fim de melhor ilustrar o entendimento
de que o tempo histórico será sempre contemporâneo ao historiador/historiador da arte.
Primeiramente, analisaremos a pintura feita por Leonardo da Vinci no início do século XVI, a
Mona Lisa (Figura 1). Provavelmente um retrato de Lisa Gherardini, esposa de Francesco del
Giocondo, um comerciante florentino de tecidos21. Os processos artísticos e a identidade da
modelo continuam ainda obscuros, apesar de inúmeras tentativas de descobrir algo a mais
dessa pintura enigmática. Feita provavelmente em Florença, na Itália, é dito que Da Vinci a
carregava por suas viagens. Atualmente se encontra na Ala Denon do Museu do Louvre em
Paris, atrás de um vidro a prova de balas, de um guarda corpo e de uma multidão faminta por
um registro da obra (Figura 2 e Figura 3). É muito provável que um historiador
contemporâneo tenha uma experiência estética completamente diversa daquela sentida por
Leonardo e por historiadores antigos. Estando em um local totalmente protegida de tudo e
todos, é muito difícil haver uma experiência estética verdadeira com a obra, a própria “aura”
do museu, sua imutabilidade, contribui para isso. A questão de que o tempo histórico é
contemporâneo ao historiador é evidente, a pintura está diante dele. Porém, não é tão claro a
forma com que a pintura influencie, de modos diferentes, os espectadores e seja influenciada,
também de modos diversos, pelos mesmos.

21LOUVRE. Mona Lisa – Portrait of Lisa Gherardini, wife of Francesco del Giocondo. Disponível em:
<http://www.louvre.fr/en/oeuvre-notices/mona-lisa-portrait-lisa-gherardini-wife-francesco-del-giocondo>. Acesso em: 10
dez. 2014.
261

FIGURA 1 – MONA LISA. LEONARDO DA VINCI, 1503-1506. ÓLEO SOBRE MADEIRA POPLAR, 77 X 53 CM.
FONTE: HTTP://WWW.LOUVRE.FR/EN/OEUVRE-NOTICES/MONA-LISA-PORTRAIT-LISA-GHERARDINI-WIFE-
FRANCESCO-DEL-GIOCONDO. ACESSO EM 10 DE DEZEMBRO DE 2014.

FIGURA 2- FOTO DA MULTIDÃO EM FRENTE AO QUADRO MONA LISA, DE LEONARDO DA VINCI NO MUSEU DO LOUVRE, EM PARIS. FONTE:
HTTP://WWW.DANIELALEXANDERPHOTOGRAPHY.COM/DATA/PHOTOS/150_1MONA.JPG. ACESSO EM 10 DE DEZ. DE 2014.
262

FIGURA 3 - FOTO DA MULTIDÃO EM FRENTE AO QUADRO MONA LISA, DE LEONARDO DA VINCI NO MUSEU DO LOUVRE, EM PARIS. FONTE:
HTTP://UPLOAD.WIKIMEDIA.ORG/WIKIPEDIA/COMMONS/THUMB/9/9F/MONA_LISA_CROWD.JPG/800PX-MONA_LISA_CROWD.JPG. ACESSO EM

10 DE DEZ. DE 2014.

Acredito que através da arquitetura poderemos ilustrar melhor o conceito defendido nesse
artigo, uma vez que a arquitetura histórica se encontra em uma posição fixa na cidade desde a
sua construção até a atualidade. Além disso, “os monumentos são, de modo permanente,
expostos às afrontas do tempo vivido”22 , fazendo deles retentores da memória de várias
gerações, que impõem suas características e modos de pensar. Tomaremos a Basílica de Saint-
Denis (Figura 4), localizada na cidade de Saint-Denis, no norte de Paris, como exemplo.
Local de peregrinação desde o século V e foi reedificada no século XII pelo abade Suger (c.
1081-1151). Essa igreja posteriormente serviu de modelo para as catedrais francesas
construídas a seguir. Com o passar dos anos, a Basílica de Saint-Denis continuou a receber
visitantes e peregrinos que veneravam Saint-Denis (São Dionísio) e que também queriam
admirar os tesouros da igreja23. Com o passar dos anos o edifício da igreja continuou a ser
modificado pelas sociedades contemporâneas a ele (Figura 5). Com a Revolução Industrial, a
cidade de Saint-Denis se tornou um polo industrial importante, abrigando fábricas e casas de
operários, a cidade cresceu em torno da Basílica.
Atualmente, no século XIX, a Basílica de Saint-Denis é um dos marcos mais notórios da
cidade de Saint-Denis e até mesmo seu símbolo (Figura 6). Porém, devido a condição social e
econômica ela não se porta mais como em outros tempos. Consequentemente, a cidade de
Saint-Denis sofre com preconceitos e rejeições por parte da camada mais abastada da
sociedade francesa, que a veem como um local pobre e sem importância. Todas essas

22
CHOAY, Françoise. As Questões do Património: Antologia para um combate. Lisboa: Edições 70, 2011. p. 26.
23
LENIAUD, Jean-michel; PLAGNIEUX, Philippe. La Basilique Saint-Denis. Paris: Éditions du Patrimoine, Centre des
Monument Nationaux, 2012. p. 54.
263

adversidades têm um impacto negativo para a basílica, tornando-a quase esquecida por parte
da população francesa e mundial.
A característica “fixa” da arquitetura na cidade proporciona à ela um maior envolvimento por
parte dos espectadores do que uma obra de arte isolada em um museu. Tornando-a uma
construção cheia de camadas, físicas ou não, dos tempos históricos vividos por ela. Com isso,
é positivo olharmos a história da arquitetura e como ela sempre exigiu o envolvimento do
espectador e do historiador, para então podermos compreender a história da arte e como as
obras artísticas exigem uma experiência estética, que será sempre contemporânea.

FIGURA 4 - RECONSTITUIÇÃO DA FORMA DA ABADIA DE SAINT-DENIS NO SÉCULO XII, APÓS A REEDIFICAÇÃO DO ABADE SUGER. FONTE:
HTTP://WWW.SAINT-DENIS.CULTURE.FR/FR/1_4A_VILLE.HTM. ACESSO EM: 22 JUL. 2014.

FIGURA 5 - FOTOGRAFIA DA BASÍLICA COM SUA TORRE NORTE, ANTES DE 1846. FONTE: HTTP://WWW.FOLIAMAGAZINE.IT/PARIGI-NEL-MEDIOEVO/.
ACESSO EM: 22 JUL. 2014.
264

FIGURA 6 – VISTA AÉREA ATUAL DA BASÍLICA DE SAINT-DENIS E SEU ENTORNO. FONTE:


HTTPS://WWW.GOOGLE.COM/MAPS/VIEWS/STREETVIEW?GL=BR&HL=PT-BR. ACESSO EM: 22 JUL. 2014.

Considerações Finais
Portanto, os conceitos que Ronaldo Brito defende em seu texto já são conhecidos e afirmados
por diversos historiadores. Porém há um certo receio em se posicionar, em defender uma
verdade, mesmo sabendo que ela nunca será absoluta e que os fatos são sempre interpretados.
Já que temos a consciência de que não existe uma resposta finalista em relação à História e à
História da Arte porque temeremos em nos posicionar? Será devido ao medo de sermos
contraditos por outros teóricos contemporâneos ou não a nós?
Seja como for, devemos sempre ter em mente que a história é produto das relações humanas,
assim como a arte, e são passíveis de interpretações e reinterpretações. Essa complexidade é
própria de todo o produto humano. E ao envolver-se na experiência da obra de arte o
historiador será sempre contemporâneo à ela
265

Referências Bibliográficas
BRITO, Ronaldo. Fato estético e imaginação histórica. In: Brito, Ronaldo; LIMA, Sueli de
(org.). Experiência Crítica. Rio de Janeiro: Casac Naify, 2005.
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Edições 70, 2011.
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<http://editora.cosacnaify.com.br/Autor/76/Ronaldo-Brito.aspx>. Acesso em: 06 dez. 2014.
DUBY, Georges; LACLOTTE, Michel. História artística da Europa: Idade Média. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1998.
LENIAUD, Jean-michel; PLAGNIEUX, Philippe. La Basilique Saint-Denis. Paris: Éditions
du Patrimoine, Centre des Monument Nationaux, 2012.
LOUVRE. Mona Lisa – Portrait of Lisa Gherardini, wife of Francesco del Giocondo.
Disponível em: <http://www.louvre.fr/en/oeuvre-notices/mona-lisa-portrait-lisa-gherardini-
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NORBERG-SCHULZ, Christian. Arquitectura occidental. Barcelona: G. Gili, 2001.
PAIVA, Márcia de; MOREIRA, Maria Ester (Org.). Cultura. Substantivo plural: Ciência
política, história, filosofia, antropologia, artes, literatura. São Paulo: Editora 34, 1996.
SANT'ANNA, Luiz Alberto Sciamarella. Georges Duby e a Construção do Saber
Histórico. 2001. 108 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pós- Graduação em
História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001. Disponível em:
<http://www.liber.ufpe.br/teses/arquivo/20040506103327.pdf>. Acesso em: 06 dez. 2014.
266

Curadoria como prática artística: a experiência da exposição Formas de voltar


para casa.
Clara Sampaio Cunha (PPGA-UFES)

Resumo

O presente artigo analisará e discutirá a experiência da exposição Formas de Voltar para Casa
que ocorreu em maio de 2014 no Centro de Vitória/ES, em colaboração com os artistas Polliana
Dalla (ES), Thais Graciotti (ES), Haroldo Saboia (CE) e Fernanda Porto (CE). A experiência
será abordada a partir de bibliografia produzida por artistas como Daniel Buren e Brian
O’Doherty, e críticos e curadores como Harald Szeemann, Hans Obrist e Terry Smith. Junto às
transformações dos espaços expositivos e da prática curatorial, vem se somando uma ação que
integra conceitualmente a experiência da obra de arte. É nesse sentido que se tem observado
atuações cruzadas entre artistas e curadores. O artigo pretende voltar a atenção para a produção
em circuitos independentes e para a possibilidade que a curadoria se curatorial se construa
colaborativamente na organização de exposições, gerando diferentes alternativas para a
produção e circulação da arte.

Palavras-chave: curadoria, critica institucional, processos artísticos, arte contemporânea.

Abstract

The article proposed in this abstract is part of an ongoing dissertation research at


Universidade Federal do Espirito Santo, entitled Curation as artistic practice. In this subject,
the exhibition Ways of Coming Back Home (May 2014) that took place at the independent
venue Sala ao Lado (Vitória/ES) will be analyzed and discussed. The exhibition was conceived
in collaboration with artists Polliana Dalla (ES), Thais Graciotti (ES), Haroldo Saboia (CE) e
Fernanda Porto (CE). This experience will be approached by using texts written by artists such
as Daniel Buren and Brian O’Doherty, and art critics and curators such as Harald Szeemann,
Hans Obrist and Terry Smith. The article focus at the artistic production developed by
independent art venues and the understanding of curation as an artistic practice that could be
carried on as a collaborative way to produce art, creating alternatives to art creation and
circulation.

Keywords: curation, institutional critique, artistic processes, contemporary art.


267

Introdução

A primeira década do século XXI é considerada o período em que a curadoria se firmou como
elemento essencial no sistema de arte1, seja no seu papel de formação de público, como
intermediador dos diálogos entre artistas-exposição, seja na forma como a figura central do
curador tem se sobressaído no circuito artístico. Como um facilitador entre esses mundos, tem
de estar apto a criar a partir da manipulação de uma cultura material existente, com intuito de
gerar uma ocupação criativa do espaço expositivo. À transformação prática da função
curatorial, a de preservação de coleções e organização de mostras, vem se somando uma ação
concebida criativamente que agrega conceitualmente a experiência da obra de arte. Nesse
sentido, têm-se observado a atuação de artistas-curadores que fazem uso da crítica institucional
como ferramenta para criação de exposições e compreendem o processo como integrante a sua
prática artística.

O artigo apresentará um panorama da prática curatorial e da experiência da exposição Formas


de Voltar para Casa que ocorreu em maio de 2014, no Espaço Sala ao Lado, no Centro de
Vitória. A exposição foi realizada em colaboração com quatro artistas: Polliana Dalla (ES),
Thais Graciotti (ES), Haroldo Saboia (CE) e Fernanda Porto (CE). A Sala ao Lado surgiu no
início de 2014 e é um coletivo formado por Polliana Dalla, artista visual, Vitor Graize,
jornalista e cineasta, e Clara Sampaio, artista visual e curadora. O espaço contíguo à produtora
de cinema Pique Bandeira foi cedido para uso do coletivo, que iniciou suas atividades em
fevereiro de 2014 com objetivo de incentivar diálogos e experimentações em arte
contemporânea.

Curadoria como prática artística e a proposta da exposição Formas de voltar para casa

Se formos buscar as origens do museu moderno, chegaremos ao ambiente de um proto-museu


desempenhado pelos gabinetes de curiosidades a partir do século XVI – restritos inicialmente à
nobreza e ao clero – e, à confusa organização, para nós, dos Salões Parisienses (XVII). Essas
atividades irão abrir espaço para a criação do museu propriamente dito após a Revolução

1 TREZZI, 2010, p.01.


268

Francesa (1789-1799). O interesse em criar locais próprios para a exibição de obras - e difundir
a noção de arte como patrimônio público - tomará forma no Museu do Louvre (1793),
considerado por Hans Ulrich Obrist, o primeiro museu moderno nas acepções que conhecemos.
Há o interesse que as obras de arte e os objetos que simbolizam o patrimônio nacional sejam
eternos e resguardados pela instituição-museu. É nesse contexto de que a figura do curador se
coloca inicialmente, com a função de zelar pelos acervos dos museus no século XVIII, em meio
às transformações sócio-políticas daquele período. Hoje, além das atribuições mencionadas,
temos visto o termo sendo utilizado para designar seleções de vários tipos, como em revistas de
gastronomia com receitas “curadas” por um chef renomado e outros. O fato é que, como
explica Terry Smith (2011), “o título de curador é assumido por qualquer um que possua
minimamente um papel de criar situações nas quais algo criativo deve ser feito; (...) para o
consumo de “objetos criados” ou (...) ocasiões de cunho artístico”2

Com a transformação dos espaços expositivos, os artistas passaram a problematizar os suportes


(moldura, cavalete, pedestal) e o próprio espaço da galeria e do museu. O cubo branco -
acepção modernista para o espaço institucional supostamente neutro e adaptável - se
consolidou como modelo expositivo mais utilizado, pois nele, como afirma Brian O’Doherty,
“o mundo exterior não deve entrar, de modo que as janelas são lacradas. As paredes são pintadas
de branco. (...) A arte existe em uma espécie de eternidade [que] dá à galeria uma condição de
limbo.”3 É justamente sobre essa normatização que vários artistas irão se posicionar
criticamente às instituições. Em The Function of the Museum, texto publicado originalmente
em 1973, Daniel Buren afirma que o museu é um espaço privilegiado com uma função tripla:
estética, econômica e mística4 que envolve o suporte efetivo ou validação, a valoração, e a
consolidação do que é arte. Um trabalho que ao mesmo tempo crítica e está inserido em
grandes instituições se justifica pela pungência em discutir modelos que são impostos e aceitos
sem muitos questionamentos: “se um trabalho se abriga no museu-refúgio, o faz porque
encontra ali seu conforto e ‘enquadramento’, um enquadramento que é considerado natural
enquanto é meramente histórico”.5 Essa discussão reverberaria em projetos artísticos dos mais
diversos tipos, entre eles o Museu de Arte Moderna (1968-1972) de Marcel Broodthaers. Ali, o
artista desestabilizaria hierarquias operando como diretor, curador, artista, montador e outros.
O museu não tinha sede definida e aconteceria em seções: a mais conhecida, o “Departamento

2
SMITH, 2012, p.17-18, tradução nossa.
3
O’DOHERTY, 2007, p.05.
4
BUREN, 1983, p.41.
5
BUREN, op.cit, p.42.
269

das Águias”, durou apenas um ano. O artista pensou soluções de apresentação para os objetos
ao expor, segundo Bernadette Panek (2006, p.109) “uma relação irônica entre o objeto real, a
obra-de-arte, as imagens e as palavras”. Ao mimetizar elementos comuns ao funcionamento do
museu, como a divulgação, o convite, o evento de abertura, entre outros, coincidiria o local de
produção (ateliê) com o de recepção (museu). Enquanto os objetos expostos não eram de fato
obras de arte (como o artista mesmo atestou nas etiquetas de identificação), a instalação com
um todo era. A discussão remonta a separação definitiva entre ateliê e museu no século XIX,
período este que é marcado pela consolidação do museu como formador de uma história
cultural da arte e como conceitua Andrea Fraser, um “aparato de reificação cultural que tudo
engloba”.6

Para falarmos da ideia de uma curadoria como prática artística, precisamos voltar às
experiências de artistas como Marcel Duchamp e Joseph Kosuth. De acordo com OBRIST
(2014, p.37), desde o momento que se lançaram para além do circuito patrocinado dos Salões
Parisienses (séc. XIX), os artistas já estavam de certa forma realizando curadoria sobre seus
trabalhos e os de outros artistas. Muitas dessas experiências sobreviveram inclusive como
modelos para a prática curatorial contemporânea. Marcel Duchamp já havia feito experiências
nesse sentido quando apresentou em Paris “1200 sacos de carvão” (1200 bags of coal, 1938) e
“Milha de barbante” (Mile of String, 1942) ambas problematizando a circulação e interação
dos visitantes com as obras de arte. Com esses trabalhos, Duchamp abriu caminhos para que os
artistas começassem a tratar as salas do museu ou até o museu inteiro como contexto a ser
indagado em suas obras.7 Mais tarde, artistas como Joseph Kosuth aproveitaram a oportunidade
de estarem inseridos no circuito institucional para mostrar visões antagônicas dentro do museu.
Kosuth apresentou as exposições The play of the Unmentionable em dois momentos: em Viena,
com “Ludwig Wittgenstein: Das Spiel des Unsagbaren” (1989) e em Nova Iorque com “The
Brooklyn Museum Collection: The Play of the Unmentionable” (1990). Na primeira, à ocasião
da comemoração do centenário do filósofo Ludwig Wittgenstein, o artista foi convidado pela
Associação de Artistas Visuais de Viena – Secession8, e apresentou uma intervenção na fachada
do edifício, além de criar instalações com textos de filósofos e mostrar “artistas amigos” como
Louise Bourgeois e Monica Bonvinci. A segunda, uma exposição do acervo do museu cujo

6
FRASER, op.cit, p.182.
7
OBRIST, 2014, p.29, tradução nossa.
8
A Secessão Vienense, movimento fundado em 1897 que atuou até 1920, possui sede que hoje funciona como
galeria de arte contemporânea. Fonte: Secession. Disponível em:<http://www.secession.at/kuen stlerinnenve
reinigung/index_e.html> Acesso em 18 de março de 2015.
270

discurso curatorial partiu da justaposição de obras de períodos e países distintos, apresentou


obras envolvendo questões políticas, religiosas ou sexuais consideradas polêmicas na época de
sua realização. Coerente com seus trabalhos anteriores - que compreendem o artista como
questionador da natureza da arte – as duas propostas de instalação-exposição discutiam o
sentido de produto cultural e o papel da arte na sociedade. O artista provocou comparações
entre os trabalhos ao compreender que a disposição das obras é assumidamente produtora de
significados e responsável por alterar nossa percepção sobre a própria História da arte.

Já em Formas de Voltar para Casa, a proposta de uma curadoria colaborativa, que envolveu os
integrantes do coletivo e os artistas mencionados anteriormente, abarcou a decisão de toda a
organização da exposição: temática, obras, suportes expositivos, texto e material de divulgação.
A mostra abordou as estratégias que o artista, em sua condição de viajante, se desloca para
buscar origens e novas experiências, mas também para deixar vestígios e produzir memórias
afetivas com os locais que encontra. Não por acaso podemos remeter aos artistas da
performance e landart, que a partir da década de 60, ao se lançarem aos espaços externos ao
museu, marcarão suas presenças em territórios afastados das cidades ou em pleno caos urbano.
É aí que deixam rastros, coletam objetos, e retornam à casa-ateliê. Formas de Voltar para
Casa partiu da compreensão do processo contínuo de ir e voltar, caros aos artistas que tem
como objeto de estudo questões sobre travessia e/ou permanência. Essa maneira de produzir
provoca alterações na forma como irão pensar e fazer arte. Assim, observamos uma utilização
frequente de ferramentas de mapeamento, artifícios de retorno, seja de maneira literal, com
seus objets trouvés, seja na forma de cartografias que irão montar a partir de seus registros
(fotografias, textos, diagramas e outros). A construção da exposição, quase toda à distância,
reflete também a condição contemporânea de estar presente em várias partes do mundo ao
mesmo tempo.

Ao passo que havia a vontade de se construir uma exposição - montar as obras, criar e instalar
os suportes expositivos – os artistas também precisavam apresentar suas propostas, abrindo as
questões para debate em grupo. A partir do tema proposto, a frase-título funcionou como
questionamento e norte: “como voltar para casa?”. As obras escolhidas e produzidas
especialmente para a ocasião indicaram pistas para uma resposta. Os objetos de Haroldo Saboia
são como inventários de viagem, uma coleção de objetos em que, pouco a pouco, se tem a
oportunidade de experimentar o que o artista viveu ou quer construir, uma fresta pela qual
aproximamos nosso olhar de sua experiência criativa de artista-colecionador e fotógrafo. A
coleção, no caso de Polliana Dalla, percorre países latinos por suas línguas, particularidades e
271

semelhanças compondo cartografias, objetos (fotografias, desenhos, colagens) que unidos


criam traços de paisagem. Os contos e postais de Fernanda Porto são um convite para a jornada
à esfera do doméstico, ao imaginário da infância de lugares que ela poderia ter vivido, uma
construção de nostalgia que se mistura com sua própria lembrança do real. Por fim, é o
mergulho na topologia insular de Vitória e da Islândia que fará o percurso dos trabalhos de
Thais Graciotti, nos quais o isolamento simbólico da ilha se fez protagonista de uma condição
de estranhamento e mesmerização. Para cada um desses trabalhos foram pensadas, em grupo,
soluções expositivas específicas. Os objetos variados de Haroldo Saboia que compunham um
processo de investigação em “Como fazer um diagrama” (Figura 1, 2014) foram dispostos
sobre uma mesa branca presa à parede juntamente com fotografias emolduradas ; uma
prateleira de quatro metros de extensão com as obras de Polliana Dalla (Figura 2,“Sem título”,
2014) rebatia a instalação de Fernanda Porto (Figura 3,“Casas que morei com minha mãe”,
2014), um texto também com quatro metros de comprimento aplicado na parede oposta; e por
último, a artista Thais Graciotti escolheu projetar um de seus trabalhos em um bloco de papel
sulfite branco sobre uma prateleira de mesmo tamanho (Figura 4,“EYJA”, 2014), além de uma
impressão em adesivo vinílico (“Divagação sobre as ilhas”, 2014) na única janela da sala, por
onde entra a luz natural do ambiente.

Figura 1 (Vista superior da obra de Haroldo Saboia) e Figura 2 (Vista das obras de Polliana Dalla, à esquerda), fotografias de
Clara Sampaio (acervo pessoal).
272

Figura 3 (Vista da instalação de Fernanda Porto) e Figura 4 (Vista da obra EYJA, de Thais Graciotti), fotografias de Clara
Sampaio (acervo pessoal).

A montagem foi inteiramente realizada pelos artistas e equipe de produção da Sala ao Lado,
bem como o desenho dos suportes que foram executados em marcenaria. Para o projeto de
iluminação (Figuras 5 e 6) foram utilizadas luminárias domésticas de diferentes modelos e
alturas, criando situações variadas de iluminação para cada trabalho.

Figuras 5 e 6. Vistas da exposição, fotografias de Heitor Riguette. Disponível em: <http://bit.ly/1DEZE25>. Acesso em: 20 de

abril de 2014.

Quando as atitudes se tornam forma, uma das exposições mais emblemáticas de Harald
Szeemann (Kunsthalle Berna, 1969), trabalhou comportamentos e gestos que resultariam em
arte. Sessenta e nove artistas foram convidados a participar da mostra: “foi uma aventura do
início ao fim, e o catálogo, que discute como as obras poderiam assumir forma material ou
permanecerem imateriais, documenta essa revolução nas artes visuais”.9 O exemplo serve para
ilustrar uma questão cara às curadorias realizadas contemporaneamente: seria a exposição uma
grande “obra total” de seu autor, uma figura que usa os trabalhos para ilustrar uma determinada
teoria? Esse pensamento parece ir de encontro com as expectativas de artistas e alguns

9
OBRIST, 2010, p.113.
273

curadores: “as exposições são melhor concebidas por meio de conversas e colaborações com os
artistas, cujas contribuições devem guiar o processo desde o início”.10

Sendo assim, de que que maneira Formas de voltar para casa permite uma reflexão sobre a
curadoria como prática artística? Se concordarmos com a afirmação de FRASER (2005) que
não há um fora da instituição, observamos que os espaços independentes desempenham um
papel muito importante: o de propor questionamentos e novas formas de circulação para a arte.
O envolvimento direto dos artistas com questões expositivas, ou seja, com as convenções de
apresentação e exibição (display) difundidas pelas instituições (noções de ergonomia, trabalhos
pendurados à altura do olho do observador, entre outras) pode criar diferentes possibilidades de
inserções para os trabalhos, tanto nos espaços expositivos, quanto em ações para além de
museus e galerias, e em publicações e sites. A discussão sobre o apagamento entre as atuações
do curador e do artista traz à tona noções de autoria e processo criativo, o que acarretaria na
compreensão da atividade curatorial na contemporaneidade como produção colaborativa. Além
disso, exposições desse tipo servem de laboratório para testar novas ideias, lógica que se difere
dos interesses mercadológicos das galerias de venda. Não há a preocupação com um trabalho
“comercialmente pronto”, uma produção consistente de objetos prêt-à-porter (os objetos sobre
a mesa de Haroldo Saboia, compreendidos pelo artista como um work-in-progress,
possivelmente encontrariam dificuldade de serem mostrados em uma galeria comercial). O
artista tem controle sobre a forma como irá apresentar o trabalho, decidindo sobre o texto de
apresentação, o posicionamento das obras, o fluxo dos visitantes, e outras questões tão caras ao
pensamento curatorial contemporâneo. Como comenta TREZZI (2010, p.01): “o que podemos
chamar de era dos curadores demanda que redefinamos a prática curatorial como arte ela
mesma, com sua própria estrutura e linguagem”. É assim que, compreendendo a exposição
como produtora de sentidos, onde é possível construir e reconstruir significados para as obras,
os artistas passaram a atuar diretamente nos modos de exibição de seus trabalhos. Outra
questão importante, é que sem se vincular plenamente ao âmbito institucional - já que a atuação
de curadores e espaços independentes depende muitas vezes de patrocínios públicos ou
privados - atuar dentro do espectro das grandes instituições é essencial, pois abre espaço para
que a crítica seja testada e ensaiada.

Por fim, quando os artistas mencionados se conheceram em São Paulo em uma oficina sobre
viagem e paisagem, não havia como imaginar que desde ali já haviam criado um vínculo. De
alguma maneira, assim como a experiência vivida é um ponto sem retorno, já estavam ligados
10
OBRIST, 2014, p.32-33.
274

em seus processos artísticos, na forma como se interessam pelo registro como obra, na
impermanência de suas ações pelos espaços que percorrem, e nos relicários que constroem com
suas memórias. Nesse sentido, boa parte de um projeto curatorial já estava definido quando o
grupo fez o convite à equipe da Sala ao Lado para realizar a exposição. A colaboração se
tornou mais um elemento dentro desse processo: gerenciar a exposição, procurar soluções
expográficas para os projetos artísticos, e concordando com Harald Szeemann, “o curador deve
ser flexível: às vezes é criado, assistente, coordenador, e alguns casos inventor”11. É assim que
partimos da premissa que a curadoria possa se situar também como uma ação colaborativa entre
artistas, gerando alternativas de concepção e diálogos em arte contemporânea.

11
SZEEMANN, Harald. In: OBRIST, 2010, p.130.
275

BIBLIOGRAFIA

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FRASER, Andrea. “Da crítica às instituições a uma instituição da crítica” In: Concinnitas
Revista do Instituto de Artes da UERJ, Rio de Janeiro, Ano 9, Vol. 2, no 13, dezembro de
2008. Disponível em: < http://www.concinnitas.uerj.br/> Acesso em: 21 de setembro de 2014.

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[ARTIGO]

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TREZZI, Nicola. “The art of curating – A constellation of curated exhibitions”. Flash Art, n
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pagina =articolo_det&id_art=542&det=ok&title=THE-ART-OF-CURATING> Acesso em 27
de agosto de 2014 [revista online].
276

A web participativa não dialógica nos espaços da arte contemporânea no


Brasil.
David Ruiz Torres (PGHA-UGR)

Resumo
No início do século XXI estamos imersos na sociedade da informação, em que as Tecnologias
da Informação e Comunicação, tem conseguido se estabelecer em diferentes áreas de nossa
vida diária. Neste trabalho é abordado o papel dos museus brasileiros neste contexto,
especialmente no que diz respeito às ferramentas da Web 2.0 ou web participativa. As
possibilidades de estabelecimento de um canal comunicativo pluridirecional entre essas
instituições, os artistas, e o público através da rede, resultaram em diversas práticas que falam
de um museu social. No entanto, o ideal ainda está longe de se tornar uma realidade onde esta
presença na rede dos museus atende a valores que muitas vezes esquecem a potencialidade do
meio, assim como o papel colaborativo e ativo dos usuários na discussão das artes.

Palavras-chave: museu, web 2.0, redes sociais, ciberespaço

Abstract
In the early twenty-first century we are immersed in the information society, in which the
Information and Communication Technologies, has managed to settle in different areas of our
daily life. This paper addressed the role of Brazilian museums in this context, especially with
regard to Web 2.0 tools or participatory web. The possibilities of establishing a
communication channel pluridirectional between these institutions, artists, and the public
through the network, resulted in several practices that speak of a social museum. However,
the ideal is still far from becoming a reality where this presence in the museums network
meets values that often overlook the potential of the medium, as well as collaborative and
active role of users in the arts discussion.

Keywords: museum, web 2.0, social networks, cyberspace


277

Introdução

Os fluxos de informação em rede na contemporaneidade já podem ser percebidos na fruição


da arte na atualidade. Cada vez mais, museus e espaços expositivos tem feito uso das
ferramentas tecnológicas como um meio de circulação e mediação para interatuar com os
artistas e o público, possibilitando uma percepção da e sobre a obra totalmente diferente. Aqui
se estabelece uma nova maneira de entender o museu no ciberespaço como articulador das
múltiplas interações que se produzem na discussão das artes.
Assim, o desenvolvimento das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) nas
últimas décadas levou à nomeação da nova era que estamos vivendo, e que responde ao nome
de Era da Informação. Por definição, podemos dizer que este é um período em que o fluxo de
informações tornou-se mais rápido do que o movimento físico, começando a ser usado a partir
da década de 1990. Este novo período começou na segunda metade do século XIX, com a
invenção do telefone e do telégrafo, embora o momento de eclosão veio, bem mais tarde,
associado com o surgimento da Internet global e o desenvolvimento do meio digital no final
do século XX, quando todas as informações (texto, imagem, áudio, vídeo ...) foram
codificadas em sistema binário, se falando de uma verdadeira revolução digital que tornou
possível a veiculação plena da informação.
No entanto, esta nova dinâmica não é inteiramente nova, senão que já vem sendo gestada na
história da humanidade. De acordo com Pierre Lévy “... É a partir do desenvolvimento das
tecnologias da inteligência (a linguagem, a construção dos artefatos, a escrita, a impressão de
textos, a criação de computadores etc.) que chegamos hoje à cultura digital, e que esta não é
apenas uma evolução das máquinas, mas antes, uma evolução humana” (2010, p. 56).
Essas tecnologias da inteligência entraram no século XXI como uma revolução da
informação. Graças à expansão da Internet, novos meios de interação entre as pessoas
conseguiram romper radicalmente a relação entre espaço físico e espaço social,
tradicionalmente concebidos, tornando a localização física cartesiana muito menos
significativa para as nossas relações sociais. O sistema digital coloca-se como uma das
chaves no surgimento desses novos meios de comunicação, e resultou em um aumento da
interação entre pessoas de todo o mundo, podendo-se falar de uma comunidade global –
questão que terá um forte impacto nos modos de produção e fruição da arte na
contemporaneidade. O ciberespaço integra-se ao pensamento estético atual, no qual o
usuário/fruidor não se limita à fisicalidade de sua percepção.
278

Portanto, a presença do usuário/fruidor no ciberespaço contém uma características na forma


como a informação é transmitida/percebida, resultando no desenvolvimento da chamada
cibercultura. Deste modo, o "saber digital" como Martine Xiberras (2010) nos apresenta,
levou a uma nova forma de acesso ao conhecimento através do nosso computador ou
dispositivo eletrônico pessoal, possibilitando a obtenção de um conhecimento mais amplo e
mais diversificado, além de mais velocidade e imediatismo que são intrínsecos às
características dos meios mencionados anteriormente.
Mas, não se esqueça que neste acesso global do conhecimento, os constrangimentos sociais e
culturais também estão presentes, e que o conhecimento será associado com a posse de um
determinado dispositivo eletrônico e uma conexão à Internet. Isto significa que, em termos de
aldeia global existe também o conceito de exclusão digital, e, por conseguinte, ao
conhecimento.
Por outro lado, também falamos de informação em um nível quantitativo, pois as vantagens
oferecidas para a divulgação e consumo da informação levaram a que a Internet seja uma
grande enciclopédia de conhecimento, ou, no nosso caso, o maior museu e espaço para a
compartilha da arte até hoje visto – se considerarmos o volume de obras e “visitas virtuais”
disponíveis na atualidade por respeitáveis instituições museográficas -. Evidencia-se um
crescimento que não tem fim, pois, como Xiberras afirma, "as grandes instituições detentoras
e produtoras do saber, bibliotecas, universidades, museus, etc., começaram um longo e lento
trabalho de escaneamento de todas as obras" (2010, p. 256). Ação em curso que pretende criar
um acervo digital com forte tendência inclusiva, no sentido de acessibilidade global. Uma
nova revolução da informação.

A participação no saber digital, a web 2.0

As novas possibilidades abertas pelos meios digitais e pela internet, foram os protagonistas do
nosso tempo, o que leva a poder afirmar por alguns que, desde a invenção da imprensa por
Gutenberg, não tem acontecido progressos significativos até o advento da informação digital.
Além de comparações, devemos ter em mente que a nossa sociedade pode ser entendida como
uma sociedade do conhecimento, e que, aparentemente, a informação é cada vez mais
acessível. Mas não consiste uma informação simplesmente para ser consumida pelo usuário,
pois uma das características de meios digitais e a cibercultura é o papel colaborativo do
usuário.
279

Assim, a partir de um estágio anterior, quando a sociedade era dominada pela cultura de
massas (mass media), em que a televisão ou rádio, se projetavam sobre a sociedade em um
único canal unidirecional, no qual os usuários agiam apenas como receptores e consumidores
passivos de informações; a nova dinâmica, a partir dos anos 80 do século passado, com o
advento dos computadores domésticos, levou ao surgimento do usuário como parte do
ciberespaço, e, portanto, o advento da cibercultura. Lucia Santaella diz: "Mudanças profundas
foram provocadas pela extensão e desenvolvimento das hiper-redes multimídia de
comunicação interpessoal. Cada um pode tornar-se produtor, criador, compositor, montador,
apresentados, difusor de seus próprios produtos" (2003, p. 82).
Esta nova dinâmica no papel do usuário e processamento da informação, é representada por
uma nova maneira de entender a World Wide Web, com a implementação da chamada web
participativa, também conhecida como Web 2.0 (um termo cunhado pela empresa O'Reilly
Media, em 2004), que surge a partir da década de 2000 como um paradigma nesta forma de
ciberespaço colaborativo. Agora, o modelo de participação da Web 2.0, não oferece produtos
para o internauta, mas que o usuário representa o principal produtor de conteúdos,
aproveitando seu desejo de compartilhar a experiência e interesses, de dialogar e de assumir
um papel protagonista na rede.
Algumas das ferramentas que permitem a nova interação são os blogs, wikis, redes sociais,
folksonomia (tagging), e todos os sistemas que permitem compartilhar fotos, vídeo, áudio,
apresentações ou software na rede.
A existência dessas ferramentas está em consonância com a essência da Web 2.0, que não só
pretende oferecer alguns conteúdos para os usuários, mas que prevê-se que sejam eles
mesmos os que geram, modificam e comunicam-lhos.
Assim, é preciso destacar que as principais instituições museográficas do mundo já estão se
adaptando a esta nova forma de mediação e percepção estéticas, ampliando as ferramentas e
os modos de interação entre o público e suas obras.
Isso teria uma maior incidência hoje, graças à expansão dos dispositivos portáteis, como
smartphones ou tablets, que aumentam exponencialmente as conexões e interação dentro da
rede, e por enquanto com a instituição cultural.

Museus 2.0, o museu social


280

Como mencionamos anteriormente, as instituições museográficas que são tradicionalmente


fonte de informação e conhecimento estético, tem tomado partido da cultura digital e as
oportunidades que ela oferece começando a se gestar o denominado "cibermuseu". Hoje em
dia, é possível ter acesso a os fundos de uma biblioteca que está localizada a milhares de
quilômetros de nossa cidade; ou, no caso das universidades, ter conhecimento das pesquisas
que estão sendo realizadas graças às publicações on-line, mostrando os frutos do trabalho de
investigação nestes centros.
Os museus não estão fora desta nova dinâmica, e ainda que são uma das áreas que defende a
conservação e preservação das artes e da cultura, também têm sido capazes de se adaptar às
mudanças ao longo do tempo, com o interesse na divulgação e conhecimento, funções
também inerentes a esses espaços conforme a definição do ICOM1. Como Maria Luisa
Bellido afirma:
[...] as fortes mutações operadas na sociedade mediática resultaram na
transformação dos nossos museus pelo surgimento das novas
ferramentas tecnológicas, e também no desenvolvimento de novos
perfis para essas instituições. A mudança mais significativa é uma
consequência da aparição de um novo âmbito para as relações sociais
e culturais (2001, p. 237, tradução nossa).
Com base nestes novos perfis, os museus foram integrados na rede e permitiram ter acesso as
suas coleções e oferecer uma visão mais próxima, superando os limites físicos destas
instituições e alcançando lugares recônditos do planeta através da Internet, reunindo esforços
e conseguindo a globalização dos objetos de arte. Mas essa ação, através dos acervos digitais
ou as "visitas virtuais", é só uma pequena representação do que o ciberespaço pode oferecer;
pois alem de construir de fato uma base de dados sem limites, ou um reflexo da instituição
como uma "copia virtual" na Internet, as possibilidades do novo meio e, especialmente da
web 2.0, permitem o desenvolvimento de novas formas de encontro entre os atores da prática
da arte, assim como a identidade colaborativa dos usuários.
O surgimento da Web 2.0, permitiu aos museus usar novas ferramentas em rede e se adaptar
às novas práticas para abordar a um público maior; e se instalar no novo meio com uma

1 De acordo com os estatutos do ICOM aprovados na 22ª Conferência Geral em Viena (Áustria), em 2007: "Um museu é uma
instituição permanente, sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e aberto ao público, que adquire, conserva, pesquisa,
comunica e exibe o patrimônio material e imaterial da humanidade, para fins de estudo, educação e recreação".
281

linguagem menos institucional e uma imagem mais próxima ao usuário2. Se bem que a
presença de museus através do site corporativo tinha sido um espaço para a consulta e o
conhecimento, o uso das tecnologias 2.0 possibilitou a interação com os conteúdos do
usuário/fruidor, e a participação pluridirecional no conhecimento e discussão da arte.
De outro lado, o grau de envolvimento que supõe cada uma dessas ferramentas também difere
pela sua natureza e o conteúdo multimídia que é compartilhado, assim:
Em primeiro lugar, dentro do próprio site do museu, principalmente
através de blogs e, em menor medida, através de fóruns e wikis. Em
segundo lugar, em repositórios externos para compartilhar materiais
audiovisuais: vídeos em YouTube, fotos em Flickr, áudio em iTunes
ou apresentações em SlideShare. E, em terceiro lugar, nas redes
sociais, principalmente através de Facebook e Twitter (Río, 2011, p.
114, tradução nossa).
Por conseguinte, as plataformas nas quais os espaços de exposição se expandiram pela rede na
última década são numerosas, e deve-se adicionar outras similares que, embora não têm a
popularidade das mencionadas, também têm sido utilizadas por museus (Google+, Issuu,
Vimeo, Tumblr, Instagram...); ou em outros casos, pela recente eclosão e implantação dentro
do cenário da web participativa. Por exemplo, o caso da plataforma para compartilhamento de
imagens Pinterest, que já está presente em museus como o Museu Getty (Los Angeles,
Califórnia) ou o Instituto Smithsonian (Washington DC). Também novas e inovadoras
propostas de compartilhamento de vídeo estão conseguindo acolhida dentro do âmbito dos
museus; como por exemplo Vine, uma plataforma que da mesma forma que Twitter, permite
publicar e compartilhar vídeos com uma duração de seis segundos. O MOMA3, em Nova York
ou o Museu Britânico4 em Londres, já tem um perfil em Vine e dezenas de milhares de
seguidores.

Museus do Brasil na Web 2.0

O Brasil é um dos países com maior acesso à Internet, porém não tem a mesma performance
no que se refere ao uso dessas tecnologias de interação e acessibilidade nos espaços

2 Embora a invenção da Internet foi voltada principalmente para o trabalho em rede pelos pesquisadores, o fato é que hoje se
expandiu até limites insuspeitados, onde a presença de qualquer ente na rede é essencial, para tomar parte na comunidade de
usuários.
3 https://vine.co/u/926217262833217536
4 https://vine.co/guggenheim
282

museográficos. No enquanto, e com uma visão geral, podemos estabelecer que o uso das
diferentes ferramentas 2.0 e expansão em espaços de exposição no Brasil, tem começado há
muito tempo e aparecem propostas muito interessantes que igualmente situam ao caso
brasileiro no contexto internacional da prática do museu 2.0.
Em primeiro lugar podemos nos referir aos blogs que frente a fóruns e wikis, sem uma
presença tão notável na prática museológica, sim encontra uma representação significativa
nos museus brasileiros. Estes se caracterizam por constituir uma "bitácula digital" que tem
conseguido ter uma grande popularidade, como parte do próprio website do museu. Nesses
são postados diferentes artigos com notícias e informações sobre eventos relacionados com o
museu, fora da rígida estrutura do site corporativo, e pudendo ser utilizados de uma forma
intuitivita sem precisar grandes conhecimentos de informática; além disso, a maioria dos
servidores para hospedar o blog (Blogger, Tumblr, WordPress, UOL Blogs ...) são gratuitos
nas suas versões básicas.
Estas razões são as que levaram muitos espaços que não têm seu próprio site institucional, à
elaboração de um blog que executa as funções do mesmo. Este é o caso dos blogs do Museu
de Arte Moderna de Resende5 (RJ) e do Museu de Arte de Belém / MABE6 (PA), que
mostram toda a atividade sobre exposições, notícias, novidades e informações de contato. No
entanto, em ambos casos, as atualizações do blog tem sido esquecidas, mesmo que continuem
assiduamente nos perfis de Facebook dos mesmos, pelo que podemos extrair uma tendência
ascendente no uso das redes sociais em detrimento do blog.
O Museu de Arte de Mato Grosso7 (Cuiabá, MT), é um dos exemplos vigentes e atualizado
que contem postagens sobre as exposições e atividades da instituição. Além das funções do
blog, atua como um site, onde é possível encontrar a história do museu, links para vídeos
sobre ele, assim como a política de visitação e contato. Por seu lado, o blog do Museu de Arte
Moderna de São Paulo8, torna-se igualmente no espaço web da instituição com o acesso à
informação sobre a coleção, cursos, recursos educacionais, espaços, agenda, etc. E quanto ao
blog, é destacável o uso de tagging ou folksonomía -que é o nome dado à indexação
colaborativa por médio de etiquetas simples o palavras-chaves num espaço de nomes plano,
sem jerarquias nem relações de parentesco predeterminadas-. Assim, o usuário pode
facilmente encontrar as postagens sobre um conteúdo ou tópico específico usando os links
associados à cada etiqueta.

5 http://mamresende.blogspot.com.br/
6 http://mabelem.blogspot.com.br/
7 http://museudeartemt.blogspot.com.br/
8 http://mam.org.br/blog/
283

As chamadas "redes sociais" são a ferramenta 2.0 com maior incidência, e tem se erigido
como uma parte integrante da nossa sociedade, tanto em relação à vida profissional como à
cotidiana ou pessoal. Os museus têm utilizado o potencial desta ferramenta para se aproximar
ao público e aumentar a divulgação e número de visitas. Por essa razão, não é de estranhar
que muitas dessas instituições já tenham em seu quadro de funcionários a figura do
community manager, um profissional que é responsável pela manutenção e estratégias que
devem ser desenvolvidas em relação à comunidade de usuários dessas mídias sociais9.
As mais conhecidas redes sociais são Facebook, Twitter, e, em menor medida, Google+, nas
quais os usuários criam um perfil como parte de uma rede social de conhecidos e interesses, e
podem publicar posts, além de compartilhar álbuns de fotos e vídeos. Especialmente no
Twitter, os posts ou tweets são limitadas a 140 caracteres pelo que a informação, na maioria
dos casos acompanhada de um link, consegue ser mais precisa. Em geral, os conteúdos que os
museus postam nessas redes sociais são do tipo: notificações (alertas e lembretes de
programação do museu físico), promoções (concursos, produtos da loja on-line, publicações,
dia de entrada livre, atualizações no website, etc.), difusão (abordagem das coleções artísticas
e documentais, através de imagens, textos, áudios ou vídeos), ou convites para colaborar em
projetos museográficos (Río, 2011).
Alguns exemplos notáveis no Brasil, poderiam ser o MASP - Museu de Arte de São Paulo
Assis Chateaubriand10 e o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul11 (Porto
Alegre, RS), que tem postagens que mostram assiduamente cada uma das obras que fazem
parte do acervo ou da exposição temporária, ou os aniversários de figuras importantes no
contexto da história da arte. Também, no caso do Museu do Rio Grande do Sul, encontramos
os posts "Dicas contemporânea MACRS", que dá acesso a um conjunto de chamadas,
exposições, publicações e eventos sobre a arte contemporânea nacional e internacional.
Por outro lado, convém saber que o Brasil possui o segundo maior número de usuários no
Twitter (Semiocast, 2012), e, ainda que com uma presença menor que no Facebook12, muitos
museus incluem também esta rede social para a divulgação dos seus acervos e exposições.
Assim, vários museus brasileiros se aderiram à iniciativa global anual #MuseumWeek 2015,

9 Principalmente o trabalho do community manager teve sua emergência com o desenvolvimento significativo de redes
sociais como o Facebook ou Twitter e plataformas para o compartilhamento de conteúdo multimídia, como Youtube ou
Instagram, mas também abarca outras mídias sociais, como os blogs.
10 https://www.facebook.com/maspmuseu
11 https://www.facebook.com/contemporanears
12 Conforme as informações sobre Brasil conteúdas no site Museum Analytics, a maioria dos espaços expositivos aqui

mostrados tem um número mais elevado de usuários em Facebook do que em Twitter, sendo uma diferencia exponencial em
alguns casos como a Pinacoteca do Estado ou o Museu da Imagem e do Som, ambos em São Paulo: http://www.museum-
analytics.org/country/brazil
284

sendo o país da América Latina com o maior número de participantes. A ideia consiste em
publicar tweets durante os sete dias da semana sobre um tema diferente em relação ao museu
(souvenires, arquitetura, lugares favoritos...), e seguido pelo hasthtag correspondente.
Referimo-nos também as plataformas para compartilhar arquivos multimídia que nos últimos
anos têm tido uma grande presença em museus, especialmente os relacionados com vídeo e
fotos, e, em menor medida, as que compartilham publicações e slides.
Instagram é a plataforma que possui mais popularidade para compartilhar imagens nos
museus brasileiros, como o Museu de Arte do Rio13; além de ter algumas vantagens como que
podem ser compartilhadas a traves de redes sociais, e filtros digitais que permitem
transformar as fotografias. Por seu lado, Flickr é um dos expoentes do marcado social o
folksonomy, e permite utilizar Copyright o licenças abertas como Creative Commons para as
imagens que são publicadas nesta plataforma que conta entre os seus adeptos com o Museu de
Arte da Bahia14 (Salvador, BA).
Muitos museus apresentam seu próprio canal de YouTube para compartilhar diferentes vídeos
promocionais relativos às exposições temporárias, notícias, atividades e cursos educativos.
Assim, o canal do Museu de Arte Moderna de São Paulo15 publicou as palestras das últimas
edições do seminário "Transmuseo", ou as videoguias em libras (língua brasileira de sinais)
desenvolvidas pela entidade. Da mesma forma o canal de Youtube do Instituto Inhotim16
(MG), apresenta entrevistas com os artistas cujas obras fazem parte do acervo de arte
contemporânea da instituição.
Em menor escala, outros museus preferem a plataforma Vimeo para hospedar seus conteúdos
audiovisuais, como o Museu de Arte Moderna da Bahia17; e também podemos encontrar casos
de utilização de novos recursos como Vine, onde o referido Museu de Arte Moderna de São
Paulo - MAM18, tem um perfil com micro-vídeos promovendo exposições ou algumas obras
do acervo.
Finalmente, as editoras dos museus também se beneficiaram das ferramentas da Web 2.0,
permitindo compartilhar na rede e gratuitamente, as publicações da instituição através de
plataformas como Issuu, na qual o referido Museu de Arte Moderna da Bahia19 já tem
hospedados os números da Revista Contorno, ou os Panfletos Sanitários para divulgação.

13 https://instagram.com/museudeartedorio/
14 https://www.flickr.com/photos/bahiamam/
15 https://www.youtube.com/user/MAMoficial
16 https://www.youtube.com/user/InstitutoInhotim
17 https://vimeo.com/bahiamam
18 https://vine.co/u/926188704530317312
19 http://issuu.com/bahiamam/docs
285

Conclusões

Como já comentávamos no início deste texto, o surgimento da Internet e das mídias digitais
tem fornecido aos museus novos âmbitos de atuação nos que se projetar e difundir suas
coleções globalmente além dos limites físicos do museu, significando a "morte da distância".
Mas, o trabalho por estas instituições não teria sentido sem a existência dos internautas ou
público cibernético, que em maior ou menor grau são considerados como público potencial.
Estes usuários, também fizeram gradualmente a sua abordagem ao sistema através de
diferentes métodos que têm permitido o acesso à rede de redes e ao uso das Tecnologias da
Informação e da Comunicação (TICs), como parte integrante da nossa vida cotidiana e da
emergência do que é conhecido como a sociedade da informação. No Brasil, o Programa
Sociedade da Informação do Governo Federal, elaborou o chamado Livro Verde (Takahashi,
2000) e o Livro Branco (Ministério da Ciência e Tecnologia, 2003), um estudo que dá as
diretrizes para incentivar a presença de sociedade brasileira no contexto das TICs. Como bem
expõe o texto, suas intenções passam por: "contribuir para a inclusão social de todos os
brasileiros na nova sociedade e, ao mesmo tempo, contribuir para que a economia do País
tenha condições de competir no mercado global" (Takahashi, 2000: 10).
No entanto, a tendência destas propostas se concentra em fornecer uma gama de
equipamentos e financiamentos que permitem disponibilizar as tecnologias, mas carecem de
uma parte essencial para o desenvolvimento de tal inclusão que é parte a educação digital. Ou
seja, é preciso que o indivíduo tenha condições de extrair as informações necessárias no e do
meio, e construir com elas uma ferramenta válida para o desenvolvimento do campo
profissional, do campo perceptivo, ou do aprendizado em si. Assim, encontramos uma
realidade na qual
[...] os projetos de inclusão digital estão apresentados na fase da
conectividade, e o potencial cognitivo e inteligente dos cidadãos
conectados não se apresenta valorizado [...] De pouco adianta dar
noção de informática se ao ser inserido na rede o indivíduo só
consegue utilizar o correio eletrônico. Estando assim, subutilizada a
sua capacidade de produzir, transformar e receber outras informações
que sejam úteis ao seu dia a dia e ao seu posicionamento como
cidadão (Santos y Carvalho, 2009, p. 53).
286

Essa afirmativa apresenta uma situação que contrasta com os princípios da Web participativa
ou Web 2.0 que definimos no início do nosso texto, e que deveria conduzir-nos desde uma
sociedade da informação em que nos encontramos, na prática, a uma sociedade do
conhecimento na sua dimensão ideal. Por isso, é fundamental o desenvolvimento de
estratégias de capacitação do usuário para que de fato a relação seja significativa.
Esta tendência também pode ser traduzida no âmbito museístico, porque, apesar do potencial
oferecido pelas novas ferramentas da web, o fato é que a comunicação com o público
continua sendo unidirecional. Assim, até certo ponto, os museus estão se adaptando às novas
dinâmicas sociais como um veículo de promoção para atrair e fidelizar visitantes, mas que
pouco parecem se importar com a participação efetiva e participativa dos usuários.
Como se fora uma nova moda, a presença dos museus na rede pode ser entendida como uma
prática que tenta evitar outras formas de exclusão digital, pois a não existência na rede seria
um risco por causa da falta de difusão e visibilidade pelos usuários da Internet. Como Nuria
Rodríguez diz:
Para evitar as novas modalidades de exclusão, os museus devem estar
presentes em todos os ambientes sociais do sistema-rede, devem gerar
conteúdos em todos os momentos, interagem constantemente ... É isso
que é chamado de socialização dos discursos do museu, discursos
sociais que servem para alimentar os benefícios dos oligopólios que
controlam as infraestruturas tecnológicas que ocorrem na interação e
socialização (2013, p. 155, tradução nossa).
E é que, enquanto o mundo cibernético surgiu como um espaço aparentemente possível de
democratização, onde o acesso e a divulgação de informações deveria ser a sua tarefa
principal, a verdade é que no desenvolvimento da web 2.0 e a futura web 3.0 - ou web
semântica -, um aplicativo ou rede social será melhor quanto mais usuários fizerem uso deles.
Neste futuro próximo da web, não prima-se que o usuário possa trazer os conteúdos para ser
parte dela, senão que o importante é conhecer os seus dados para associar conteúdos de
interesse, especialmente quando os novos dispositivos portáteis geram automaticamente essas
informações com o uso do app mais básico. Assim, é possível dizer que não há valor no
volume, aqui é dada mais prioridade ao quantitativo do que qualitativo.
287

Juan Martín Prada formulou o conceito de sistema-rede, em que se sintetiza o


"reconhecimento da primazia da conectividade e dos interesses econômicos inerentes nela,
sobre suas próprias possibilidades comunicativas e relacionais" (2012, p. 25, tradução nossa).
Isso parece ser facilmente constatável no caso dos museus, onde a importância da sua
presença nas redes sociais e plataformas para compartilhar conteúdo audiovisual, é
contabilizado não pela interação ou comentários dos internautas, mas simplesmente pelo
número de seguidores ou assinaturas ao perfil.
O não aproveitamento do potencial da Web 2.0 é algo latente em cada uma das ferramentas
mencionadas no texto, especialmente em blogs ou redes sociais, cuja tipologia está mais
aberta ao inicio de um debate sincronizado para cada um dos usuários. No entanto, esta
participação é reduzida a breves apostilas desprovidos de conteúdo crítico, e que se limitam a
elogiar ou comentar brevemente os conteúdos sem gerar nenhum tipo de fórum de discussão.
Isto igualmente está relacionado com a falta de uma educação digital tanto do lado dos
museus como no que diz respeito aos usuários, que permita a possibilidade de participar nos
projetos museográficos e atividades que acontecem nestes espaços expositivos, ou estabelecer
debates e críticas da arte contemporânea, que enriqueceriam muito a experiência cultural e a
relação entre os espaços expositivos, os artistas, as obras e o público.
Esta experiência é referida por Martine Xiberras quando fala da cibercultura, e especialmente
em sua descrição dos "coletivos inteligentes" que representam uma cultura comum, "um
“húmus” compartilhado sobre o qual vem enraizar-se o refletir e o agir junto, a possibilidade
de coletivos inteligentes" (2010, p. 264).
Assim, apesar de uma presença significativa dos museus brasileiros na rede, a realidade
parece ser similar à tendência geral global, pois eles ainda resistem em integrar os conteúdos
produzidos pelos usuários, ou qualquer tipo de sugestão ou opinião quanto ao trabalho da
instituição, pois isto contrasta com a tradição destes espaços como fonte e autoridade de
conhecimento e opinião pública (Souza e Alves, 2012, p. 7).
Embora, venturosamente, existem exemplos a respeito, onde é evidente como a web
participativa pode ser adequada para as práticas sociais do museu, uma vez que representam
uma abordagem para o interesse público, e às interações e opiniões do mesmo em relação ao
objeto da arte.
Alguns exemplos de cocuradoria já aconteceram, como a exibição Democracy no festival
Design Event (2009), no norte da Inglaterra. Aqui, convidou-se ao público a votar através de
Facebook, fóruns ou blogs, aqueles trabalhos dos designers e artistas que foram hospedados
288

na web, proporcionando uma oportunidade aberta a participar na exposição final (Wolfson,


2009). Também foi destacável, o projeto Fill The Gap20 relacionado ao Luce Foundation
Center, o depósito publico do Smithsonian American Art Museum (Washington, DC). Quando
qualquer uma das obras era emprestada temporariamente, através da página de Flickr,
informava-se das dimensões do espaço livre, e convidava-se aos usuários a escolher uma nova
obra para ocupar o lugar dela, consultando o acervo digital do museu.
Para concluir, podemos ver ainda, nos museus do nosso tempo, aquelas instituições tipo
"mausoléu" criticadas pela avant-garde no início do século XX, que mostram reticências no
desenvolvimento do discurso colaborativo que possibilitam as novas tecnologias. Ainda
sobrevive aquela imagem da caverna de Platão, que tem sido associada com a estética do
virtual, na qual o ciberespaço não consegue ser mais do que um reflexo da realidade, sem
opção de ter uma validade e uma entidade própria. O novo meio propor um novo âmbito para
o colóquio das artes, no qual o cibermuseo seria um modelo de ensaio para arquitetar novas
relações culturais que não existem na instituição tradicional. Uma simples olhada em nossa
sociedade atual, nos mostra como o humano ciborg está cada vez mais presente em nossas
vidas diárias, e anuncia novas dinâmicas sociais em um presente não muito distante.
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O filósofo, o palhaço e o fim Artigo dramático.


José Ailton Arnaud, Wladelene Lima (PPGA-UFPA)

Este artigo objetiva instigar a reflexão sobre um tema caro a todos que têm interesse pelos
desdobramentos da cultura na pós-modernidade, o “fim da arte”. O filósofo estadunidense
Arthur Danto explicitou mudanças na forma de a crítica se posicionar sobre a arte no século
XX, em que narrativas mestras feitas historicamente pela filosofia já não dão conta de definir
“por que algo é uma obra de arte”. Nesse sentido, apresentamos um texto construído sob a
base da poética dramatúrgica, tal qual “A República” de Platão, para conduzir o leitor pelos
contextos históricos envoltos no tema, tais como: o descredenciamento da arte abordado por
personagens/pensadores, como Platão, Aristóteles, Hegel e Kant. O palhaço e o filósofo são
os personagens centrais que têm a missão de tocar leitores e espectadores a fim de trazê-los
para o debate e envolvê-los nessa trama construída por séculos.

Palavras-chave: Arte; Danto; descredenciamento; filosofia; fim da arte.


This article aims to instigate the reflection on a relevant theme to all who have interest in the
developments of culture in post-modernity, the "end of art". The American philosopher
Arthur Danto explained changes in the way the critical poses itself on the art in the twentieth
century, in which master narratives historically made by philosophy no longer can define
"why something is a work of art." In this sense, we present a text built on the basis of the
dramaturgical poetic, as is "The Republic" by Platão, to lead the reader through historical
contexts wrapped in the subject, such as the art disqualification approached by
characters/thinkers such as Platão, Aristóteles, Hegel and Kant. The clown and the
philosopher are the central characters that have the mission to touch readers and viewers in
order to bring them to the debate and involve them in this network built for centuries.

Key words: Art; Danto; disqualification; philosophy; end of art.

A poética e a dramaturgia

O artigo que agora se inicia, quer ser reconhecido como um exercício de mise in
abyme – um abismo dentro de outro abismo – por isso, se intitula como artigo dramático,
reivindicando a si, uma dimensão poética, a começar pela forma que se apresenta, sabedor
que, por direito, o poético deveria caber a todo conteúdo reflexo em arte.

Enunciar pensamentos filosóficos em forma de diálogos não é coisa original no mundo


ocidental. Já estamos a muito, bem enfezados com os diálogos antipoéticos de Platão. Porém,
transver tempo e espaço, pensamento poético e poesia pensante, o pensado e o praticado, na
forma de pequenos diálogos entre personagens tão abismais com o filósofo e o palhaço, é
291

brincar de pensamento espiralado. É fingir que não sabe, que o eterno retorno não é o do
mesmo; é o da diferença na repetição; é o do repetir até encontrar o diferente.

Estamos sim, repetindo velhas formas, na perspectiva de encontrar algo que mereça
menos interrogações e mais exclamações, como nos provoca o poeta Alberto Pucheu (2003)
em seus fragmentos de indiscernibilidade. Como ele, queremos um pouco de espanto, falar
como quem está espantado com aquilo que todo mundo já ouviu, já leu tantas vezes em
páginas fotocopiadas, praticamente, em todas as salas de aula, em todos os cantos desse país.
Queremos, albertinamente, escrever como quem vê pela primeira vez a palavra; como quem
tem o seu primeiro encontro com o mágico, o lúdico, o utópico. Ser puro espanto!

O corpus do artigo quer ser dramático, como síntese de um trajeto de agenciamentos


de artistas-pesquisadores na exploração da arte da pesquisa em artes. Que comece o drama!

Cena 1: Onde a filosofia se faz

(A luz vai iluminando aos poucos o cenário, com muitos livros espalhados pelo chão e em
estantes. Vê-se os dois personagens sentados um de cada lado do palco, divididos por uma
parede central. Eles falam ouvindo-se um ao outro).

FILÓSOFO – Pensamento!

PALHAÇO – Magia!

FILÓSOFO – Racionalidade!

PALHAÇO – Encantamento!

FILÓSOFO – Filosofia!

PALHAÇO – Arte!

FILÓSOFO – Arte?! O que é a Arte?

PALHAÇO – Recapitulando... antecedendo a pergunta, vem a resposta. Antes de


cristo, muito antes, eis que surge a Arte. Poderosa e embriagante, ela surge para ocupar um
vácuo entre o homem e a natureza. O divino. Já sabemos o que é arte então?! Ainda não. O
ser humano evoluiu, a arte evoluiu, o mundo evoluiu. Mas em todo canto ela estava lá, em
todas as sociedades, atuando ora acoplada à religião, à política, à economia, quase nunca
292

sozinha. O fato é, e ninguém pode negar, que a história do ser humano começou a ser contada
pelos rabiscos deixados nas paredes das cavernas, arte. E assim foram se definindo as coisas.
O que é arte afinal?

FILÓSOFO – As coisas e suas definições, heranças deixadas pelo velho mestre.


Sócrates. Suas ideias o levaram a morte na Grécia na Era ainda antes de Cristo e se propagam
até os dias de hoje, assim como, a de seu amigo e discípulo, Platão. Junta-se a estes outro
grande da Grécia, Aristóteles, que juntos influenciaram grande parte do pensamento ocidental.
Segundo Pitágoras distinguiu, existem três espécies de homens: os que se deslocam com o
intuito de comprar e vender (inferiores); os competidores (heróis); e, acima destes, os que
simplesmente veem. Assim são (estes somos nós) os filósofos, que amam a sabedoria e que
atuam por amor a esta.

As coisas estão postas para os homens, tais quais para os animais. É preciso a reflexão.
É preciso implodir as questões mais profundas, para que seja visto de perto o âmago das
coisas. Filosofia é a ginástica do pensamento. Deve-se conhecer tudo o que é passível de
conhecimento (ALVES, 2008, p. 4). Cabe a nós apurar o conhecimento. E não se trata de
oratória, de um dizer vazio. Foi Sócrates que fez o alerta. Era preciso parar de pensar sobre a
origem do universo e passar a olhar as questões da ética e da condição humana.

PALHAÇO – A condição humana estava presente na poesia, bem antes da Grécia. Nos
cânticos, em versos de povos como os hindus e persas (SCHELING, 2001). A poética,
Aristóteles, Grécia, 300 anos antes de Cristo (Palhaço encontra o livro). A epopeia e a poesia
trágica não tratam de condição humana, de ética e de moral?

FILÓSOFO – A República, Platão, século IV a.C. (Filósofo acha o livro, o abre e lê


uma página) "A idéia (sic) do bem representa o limite extremo e a custo discernível do mundo
inteligível, mas quando compreendida se impõe a razão como a causa universal de tudo o que
é bom e belo" (PLATÃO, 2006, p. 47). Porém, meu caro, nossos sentidos sozinhos não dão
conta do mundo inteligível. O olfato, paladar, visão, audição e tato não podem explicar as
representações dos objetos e sua essência. Neste mundo sensível, o que vemos são apenas
sombras e nos contentamos em acreditar ser a verdade. O que vemos e vivemos é uma cópia.

PALHAÇO – E a Arte é...


FILÓSOFO – A arte é a cópia da cópia. Um simulacro! A poesia então deve sucumbir
a filosofia, pois deseduca, não passa de uma imitação da imitação. (abre o livro novamente)
293

“Quanto mais poéticas, menos devem chegar aos ouvidos de crianças e de homens que devem
ser livres e recear a escravidão bem mais que a morte” (PLATÃO, 1997, p.76).

PALHAÇO – A filosofia tem os seus mistérios. Para Aristóteles, discípulo de Platão, a


mimises sempre esteve presente entre os gregos (abre o livro novamente), “a epopéia e a
tragédia, e também a comédia, a poesia ditirâmbica e, em sua maior parte, a aulética e a
citarística, todas vêm a ser, tomadas em conjunto, imitações” (ARISTÓTELES apud
BARRIVIERA, 2006, p. 19). Porém, discordando de seu mestre, a imitação detinha de
características pedagógicas, sim, e benéficas ao homem, uma vez que uma composição
narrativa promovia identificações entre o indivíduo e o personagem, causando efeitos
educativos, curativos e por vezes de purificação, por meio da catarse.

Cena 2: A música

(O filósofo levanta-se, vai até a geladeira, tira uma garrafa de vinho, serve-se e
começa a beber)

PALHAÇO – (lendo o livro novamente)

A algumas almas sucede serem tomadas de forte emoção. [...] Sob influência dessas
emoções, alguns são possuídos, e nós os vemos [...], quando fazem uso de melodias
que colocam a alma fora de si, restabelecidos como se tivessem recebido tratamento
medicinal e purgação. [...] Da mesma forma, as melodias práticas, proporcionam
prazer inofensivo aos homens (ARISTÓTELES apud MACIEL p. 18).

FILÓSOFO – A música (lendo o livro novamente). “A razão aliada à música. Só ela,


quando entranhada na alma, se mantém toda a vida como defensora da virtude” (Platão apud
RIBEIRO, 2001, p. 7). Ora (enquanto fala, procura um vinil na estante), para o corpo, temos
a ginástica e, para a alma, a música (Platão apud RIBEIRO, 2001, p. 6). A música, esta arte
sim tem valor educativo, pode alcançar o íntimo da alma, moldando-a para o bem ou para o
mal, além de atrair as boas virtudes e coragem (RIBEIRO, 2001).

(Localiza o vinil e o coloca no toca disco e canta junto a música)

Filosofia

Autor: Noel Rosa


Intérprete: Chico Buarque
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O mundo me condena, e ninguém tem pena


Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome
Mas a filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim
Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim
Não me incomodo que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo
Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro, mas não compra alegria
Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente
Que cultiva hipocrisia

(Do outro lado, o Palhaço pega um violão e começa tocar. Canta de forma contundente)

A dança das borboletas

Autor: Alceu Valença


As borboletas estão voando
A dança louca das borboletas
Quem vai voar não quer dançar
só quer voar, avoar
Quem vai voar não quer dançar
só quer voar, avoar
E as borboletas estão girando
Estão virando a sua cabeça
Quem vai girar, não quer cair
só quer girar, não caia!
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Quem vai girar não quer cair


só quer girar, não caia!
E as borboletas estão invadindo
os apartamentos, cinemas e bares
Esgotos e rios e lagos e mares
Em um rodopio de arrepiar
Derrubam janelas e portas de vidro
Escadas rolantes e nas chaminés
Se sentam e pousam em meio à fumaça
De um arco-íris, se sabe o que é
Se sabe o que é... Se sabe o que é...
Se sabe o que é... Se sabe o que é...
E as borboletas estão invadindo
os apartamentos, cinemas e bares
Esgotos e rios e lagos e mares
Em um rodopio de arrepiar
Derrubam janelas e portas de vidro
Escadas rolantes e nas chaminés
Se sentam e pousam em meio à fumaça
De um arco-íris, se sabe o que é
Se sabe o que é... Se sabe o que é...
Se sabe o que é... Se sabe o que é...

Cena 3: O estado da arte

(Os dois atores desfazem os personagens e modificam o cenário, enquanto falam o texto)

ATOR/PALHAÇO – A própria dialética deu origem a uma luta dissimulada que há


muito vem acontecendo e ao mesmo tempo nunca existiu.

ATOR/FILÓSOFO – Arte e filosofia. Caminhando juntas entre as ideias e separadas


por muito tempo entre a prática e a reflexão, entre o real e as definições.
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ATOR/PALHAÇO – Tanto a arte quanto a filosofia priorizam ressaltar as experiências


da vida, buscando estimular um aprofundamento sobre nós mesmos e as coisas com as quais
convivemos no mundo.

ATOR/FILÓSOFO – A estética está para o artista, assim como para o filósofo.

ATOR/PALHAÇO – Quem faz a estética? O artista produtor de seu tempo? Este ser
mutável, perceptivo e intuitivo?

ATOR/FILÓSOFO – Ou o filósofo, ser argumentativo, lógico e vive em busca


incessante da sabedoria.

ATOR/PALHAÇO – Ou o artista, ser que potencializa e materializa a imaginação.

ATOR/FILÓSOFO – Ou o filósofo que privilegia a razão.

ATOR/PALHAÇO – Difícil de concluir aqui (deixa em dúvida se está falando do


tema discutido ou da arrumação do cenário).

ATOR/FILÓSOFO – Para auxiliar no entendimento, esclarecemos: estética, estuda o


julgamento e a percepção do que é considerado belo, a produção das emoções pelos
fenômenos estéticos, bem como: as diferentes formas de arte e da técnica artística; a ideia de
obra de arte e de criação; a relação entre matérias e formas nas artes. Por outro lado, a estética
também pode ocupar-se do sublime, ou da privação da beleza, ou seja, o que pode ser
considerado feio, ou até mesmo ridículo1.

ATOR/PALHAÇO – Resumindo, a estética é a “ciência do belo e, mais precisamente,


do belo artístico” (HEGEL apud LOBO, 2003, p. 143) e ocupa-se do estudo da arte do artista
e, segundo esse entendimento, o filósofo é que tem este ofício. Então, para falar do estado da
arte, recorremos aos filósofos. Inúmeros deles se ocuparam em tratar da estética, do belo, do
feio, do gosto...

ATOR/FILÓSOFO – Dentre tantos e tantas concepções, alguns se destacaram com


ideias ora avançadas, ora inovadoras, ora simplesmente questionadoras.

CENA 3.1: O ESTADO EMBRIAGANTE DA ARTE

(Ao terminarem a arrumação do cenário, está montada uma estrutura de um bar, com uma
mesa, bebidas e luz colorida. Os dois atores saem de cena. Ao fundo veem-se duas entradas

1
Definição retirada do site Wikipédia propositalmente.
297

de cena, em cada uma delas acendem-se placas luminosas, como as que indicam os
banheiros. Em uma lê-se “Ceticistas” e em outra “Idealistas”. Entra trilha sonora
ambientando o bar. Um ator sai da porta dos “Ceticistas” e senta-se a mesa. Serve-se uma
bebida e acende um cachimbo. Outro ator sai da porta idealistas, senta-se do outro da lado
da mesa e serve-se uma taça de vinho. Ao centro da mesa está um objeto artístico abstrato)

KANT – O belo. O que é isto que tanto nos inquieta a pensar sobre? O que define o
belo?

HEGEL – Que tal começarmos pelas sensações que a arte provoca. Cada um de nós
somos provocados pelo belo desde que nascemos, que causa sensações como o agrado,
admiração, temor, compaixão...

KANT – Um bom começo. Afinal os conteúdos dependem da experiência vivida pelo


sujeito, o objeto em si não gera conhecimento. O belo é então ajuizado pelos sentimentos
subjetivos, não lógicos.

HEGEL – O homem tende a objetivar o espírito e o faz por meio a arte. Eis ai o cerne
do belo.

KANT – O belo e seus fenômenos são captados pelos sentidos por meio da intuição,
permitindo assim o juízo estético, o gosto. “Gosto é a faculdade de ajuizamento de um objeto
ou de um modo de representação mediante um comprazimento ou descomprazimento
independente de todo interesse. O objeto de um tal comprazimento chama-se belo” (KANT,
2005, p.1).

HEGEL – Pensando na beleza como fenômeno, esta “só pode se exprimir na forma,
porque ela só é exterior através do idealismo objetivo do ser vivente e se oferece à nossa
intuição e contemplação sensíveis (HEGEL apud GUEDES, 2012, p. 79). Assim sendo, a
aparência do objeto artístico é fundamental para a essência dele, pois a verdade não se
revelaria, se não se tornasse aparente e visível.

KANT – Não exatamente na forma, pois os fenômenos exteriores não são assim
percebidos imediatamente a partir da aparência, e, sim, são frutos das percepções dadas por
ela. “A existência de todos os objetos no sentido externo é duvidosa. [...] esta incerteza é
denominada ‘idealidade dos fenômenos externos’, sendo o ‘idealismo’ a doutrina desta
idealidade” (MUTLAQ, 2014, p. 309).
298

HEGEL – Estamos falando do belo artístico, somente este. Um recorte necessário,


contudo, nos é claro que o belo artístico é superior ao belo natural. Por isso, o termo estética
não dá conta, melhor seria chamar para nossa ciência, filosofia da arte, mais precisamente,
filosofia da bela arte. Assim, excluímos de imediato o belo natural (HEGEL, 2001, p. 27).

KANT – Ao citar o belo natural, é preciso tratar das categorias da beleza, tais quais:
“A beleza livre (...) e a beleza simplesmente aderente (...). A primeira não pressupõe nenhum
conceito do que o objeto deva ser; a segunda pressupõe um tal conceito e a perfeição do
objeto segundo o mesmo” (KANT, 2005, p. 75). As belezas naturais, como as flores, ou
mesmo desenhos livres que nos pareçam figuras não significam exatamente alguma coisa,
mesmo assim nos agradam, ou seja, são dotados de uma beleza.

HEGEL – A arte é superior ao belo natural pois tem à sua disposição não só as
referências da natureza, mas também as múltiplas possibilidades da “imaginação criadora que
pode ainda, além disso, manifestar-se em produções próprias inesgotáveis” (HEGEL, 2001,
p.31). A arte é oriunda do espírito e o belo natural é desprovido de espírito. Para compreender
melhor, percebamos que a beleza artística nos é apresentada, através dos sentidos, das
sensações, da intuição e da imaginação, portanto, distingue-se do pensamento comum, e deve
ser tratada de forma distinta do pensamento científico.

KANT – Mas percebamos ainda que “se a questão é se algo é belo, então não se quer
saber se a nós ou a qualquer um importa ou sequer possa importar algo da existência da coisa,
e sim como a ajuizamos na simples contemplação” (KANT, 2005, p. 49). Para que haja um
processo pleno de juízo de gosto, deve-se colocar completamente indiferente a existência do
objeto, com desinteresse mesmo. Aí percebemos então como se processa o fenômeno de
forma intuitiva, a exemplo das folhas verdes e alvas que se destacam nas copas das árvores,
neste caso, a cor verde pertence a sensação objetiva, é uma cor, já o agrado ou desagrado
provocada por ela pertence a sensação subjetiva.

HEGEL – A arte e suas obras, decorrentes do espírito e geradas por ele, são elas
próprias de natureza espiritual (HEGEL, 2001, p.37). O absoluto é o espírito, o sujeito
autoconsciente.

KANT – O prazer subjetivo é desprovido do sentido de conhecimento, o que vale é a


experiência estética.

HEGEL – A beleza é
299

A expressão máxima do Ideal, uma tentativa de transpor a realidade dura e cruel da


vida cotidiana e ao mesmo tempo projetar para si mesmo exemplos a serem
seguidos. Parece uma ideia antiga, mas é assim a premissa dos idealistas. Mas as
coisas são mutáveis, e a arte também não é eterna. A arte não é mais a melhor forma
de expressão da verdade dos homens, sendo assim, ela foi superada pelo
cristianismo e pela filosofia na sua função de tornar o espírito consciente. “Já não
vemos nela qualquer coisa que não poderia ser ultrapassada” (HEGEL apud
SOBRINHO, 2006, p. 8).

A arte está fadada ao fim, à morte.

Cena 4: O fim do começo

(Projeções são feitas em tela transparente. As imagens projetadas são ilustrativas a cada
momento do texto, em uma edição com ares de vídeo arte).

NARRADOR – A Reprodutibilidade na arte da início a um novo tempo, ou novos


tempos. A xilogravura e a litografia reinventaram a forma de expressar a vida cotidiana. Logo
foram superadas pela fotografia que, por sua vez, propiciou o advento do cinema (trechos de
filmes de Charles Chaplin e Mikey Mouse da década de 20). Foi uma questão de testar até que
os cineastas descobrissem exatamente quantos quadros por segundo deveriam passar pelo
orifício para nos dar algo ao equivalente ao movimento tal como é realmente percebido
(DANTO, 2014, p. 127). Estas expressões artísticas representam bem as mudanças
ocasionadas na forma de fazer, consumir e refletir sobra a arte. O avanço da reprodutibilidade
técnica e da massificação da arte são fatores a se considerar agora. A fonte. Obra de Marcel
Duchamp que reflete os novos paradigmas que se apresentam, mostrando claramente que a
arte é uma atividade intelectual, conceitual. “Duchamp, sozinho, demonstrou que é
inteiramente possível algo ser arte sem ter qualquer relação com o gosto, bom ou ruim. Assim
ele pôs um fim naquele período do pensamento e da prática estética com o ‘Padrão do Gosto’”
(DANTO apud GUEDES, 2012 p. 77). A arte definitivamente está em um novo patamar,
onde não há limites para sua produção, onde se faz presente um profundo pluralismo.
Conceitos antes estabelecidos, já não valem mais. Não há escolas, ou vanguardas, ou normas,
ou técnicas prevalecentes. A exemplo, “a reprodutibilidade técnica e a massificação são
inconciliáveis com a noção de ‘gênio’, que aparece ainda como indispensável à concepção
300

‘clássica’ da arte” (VATTIMO apud SOARES, 2013, p. 41). Vivemos um período de grande e
fértil liberdade artística, com certa desordem informativa instalada, onde há uma pulverização
de tudo isso ao mesmo tempo, onde “cada caso é um caso, cada obra, uma obra, que define,
tão automaticamente quanto possível, as normas de sua própria leitura” (DANTO, 2006,
entrevista). A partir do momento em que qualquer objeto pode se tornar uma obra de arte, não
há limites para sua forma ou aparência. Os meios e suportes também se multiplicam a cada
instante. Ocorre um fenômeno de perda da aura da arte como a conhecíamos até então, em
que princípios como a durabilidade e a materialidade dão lugar a transitoriedade e a
efemeridade, respondendo em parte a necessidade de consumo de novidades própria da
contemporaneidade.

Com efeito, os conteúdos divulgados pelos media assumem um caráter de


precariedade e superficialidade que choca os preceitos da estética moderna, ainda
fundada no ideal da obra de arte como “monumentum aere perennius” e da
experiência estética como experiência que envolve o sujeito autenticamente e
profundamente. Estabilidade e perenidade da obra, profundidade e autenticidade da
experiência artística são algo que, certamente, não se pode mais esperar na
experiência estética da contemporaneidade, dominada pelos mass media (SOARES,
2013, p.41).

Em um movimento de resistência, a estética moderna procura espaço em áreas


artísticas que ainda sustentem alguns dos princípios da “essência da arte (originalidade,
criatividade, gênio, etc)” (VATTIMO apud SOARES, 2013, p. 41). O design, apesar de fazer
parte do contexto plural da contemporaneidade, ainda é um ramo da arte que faz um resgate
estético moderno por meio da otimização dos objetos, harmonização e equilíbrio. Contudo, é
cada vez mais evidente que os ideais da “reprodutibilidade técnica e da massificação são
inconciliáveis com as definições tradicionais da Estética” (VATTIMO apud SOARES, 2013,
p.1). “Na pós-modernidade, não há espaço para ‘uma’ verdade filosófica da arte, para a
essência excludente do que não é essencialmente arte. Não há espaço para a ‘narrativa
redescoberta, divulgação ou revelação’ da ‘verdadeira arte’” (SOARES, 2013, p.38). O fim da
modernidade pode ser apontado então a partir do ano de 1964, quando Andy Warhol expõe
sua Brillo Box. Assim, temos o fim do começo e o começo do fim.

Cena 4.1: O começo do fim


301

(Acendem se as luzes em penumbra. No cenário, há uma lona no chão em formato de


picadeiro e duas cadeiras ao centro. Os personagens do início do espetáculo retornam a
cena, desta vez com os intérpretes invertidos. Sentam-se).

FILÓSOFO – As coisas mudaram?

PALHAÇO – Mudaram. E a arte mudou.

FILÓSOFO – Mudou?

PALHAÇO – O pluralismo atual da produção artística requer uma “revisão radical na


forma de se refletir sobre a arte e no modo de se lidar com ela institucionalmente” (SOARES,
2013, p. 36). Os aspectos analisados nas obras de arte anteriormente tornaram-se irrelevantes
a partir das caixas de Andy Warhol. Há um vazio de definições e a história da arte chegou ao
seu fim.

FILÓSOFO – Parece um pouco drástico falar que a história da arte terminou.

PALHAÇO – A história da arte não foi interrompida, mas acabada, no sentido de que
passou a ter uma espécie de autoconsciência convertendo-se, de certo modo, em sua própria
filosofia (DANTO, 2005, p.26). O que acabou foi o velho jeito de olhar a arte, com as velhas
“narrativas mestras” que deixavam fora da história muitas práticas artísticas.

FILÓSOFO – Hegel já havia anunciado a “morte da arte”...

PALHAÇO – “O “fim da arte” não significa o fim das produções artísticas. O que está
em questão não é a “morte da arte”, mas o fim dos paradigmas que construíram a história da
arte até aqui.

FILÓSOFO – Então o que vem a seguir?

PALHAÇO – Qualquer que seja a arte que venha a seguir não precisará do benefício
legitimador da história da arte. “O que havia chegado ao fim era a narrativa e não o tema da
narrativa” (DANTO, 2005, p.5). Vamos pensar no que vem depois do fim da arte (O palhaço
levanta-se e fica agitado). Vivemos uma era pós-arte que dará origem há alguma coisa
diferente, uma coisa que ainda não compreendemos.

FILÓSOFO – A estética tradicional não tem como responder as questões artísticas da


pós-modernidade. “Agora o problema filosófico é explicar porque são obras de arte”
(DANTO, 2006, p. 40).
302

PALHAÇO – Hegel acreditava que a arte não mais encontrava as necessidades espirituais da
humanidade. Somente a filosofia poderia encontrá-las. Minha visão é a oposta. Por
causa de seu pluralismo radical, a arte é capaz de encontrar nossas necessidades
espirituais de beleza - pense em arte feminista, arte gay ou no multiculturalismo.
Mas a filosofia perdeu sua capacidade de fazer algo por alguém. Ninguém pode
pensar como Hegel hoje em dia (DANTO, 2006. Entrevista).

FILÓSOFO – As artes ainda podem “ser pós-historicamente produzidas, por assim


dizer, no rescaldo de uma vitalidade desaparecida” (DANTO, 2014, p. 122).

PALHAÇO – Mas agora nada “está fora do conhecimento, nem opaco à luz da
intuição cognitiva” (DANTO, 2014, p. 150).

(Luz geral se apaga e fica somente um foco sobre o Palhaço. Este despe-se totalmente,
enquanto fala o texto)

PALHAÇO – Como diria Marx, você pode ser um abstracionista de manhã, um


fotorrealista à tarde, um minimalista mínimo à noite. Ou você pode cortar bonecas de papel ou
fazer o que mais lhe aprover (Revela uma pequena faca). “A idade do pluralismo está
conosco (...) [esfaqueia-se]. A liberdade termina em sua própria realização” (DANTO, 2005,
p. 151 e 152).

(O Palhaço cai ao chão. O foco se apaga. Acendem-se as luzes em penumbra e revela o


Filósofo a olhar para o corpo estendido ao chão. Luzes apagam-se totalmente.)

- FIM DO DRAMA –

Quem provoca o espanto, não sai espanto simplesmente, sai saciado, porém sofrendo
de agorafobia – uma fobia por tudo que só responde ao agora; que não provoca o DEVIR.
303

Referências

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Homeoesp.org. Disponível em: <
http://www.homeoesp.org/livros_online/deus_alma_e_morte_na_historia_da_filosofia.pdf>. Acesso
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BARRIVIERA, Alessandro. Poética de Aristóteles : tradução e notas. Dissertação (Mestrado em


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http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000391795>. Acesso em: 23/02/2015.

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Walter, Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. 7.ª ed. São
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DANTO, Arthur. Após o fim da arte – arte contemporânea e os limites da história. São Paulo:
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__________. A Transfiguração do lugar comum. São Paulo: Cosac&Naify, 2005.

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GAZONI, Fernando Maciel. A poética de Aristóteles: tradução e comentários. 2006. Tese


(Mestrado em filosofia). Universidade de São Paulo. São Paulo-SP. Disponível em: <
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305

Paradoxos entre arte e política nos Provos: a reinvenção da estética no


cotidiano holandês.
Flavio Lima (PPGD-UFPE)

RESUMO
Este artigo pretende compreender em que medida as manifestações vinculadas ao movimento Provo foi capaz de
produzir no cerne do cotidiano, uma experiência estética de oposição ao automatismo conformista, na Amsterdã
dos anos 1960. Buscou-se, de igual modo, a partir das formas de eficácia adjacentes do campo da arte, posicionar
a estética enquanto disciplina capaz de abarcar possíveis mediações existentes entre o sensível e o inteligível.
Evocando-se contribuições de autores como Rancière e Guarnaccia, o estudo procurou dialogar com elementos
chave que compuseram este momento histórico e a relação com o esfacelamento da tríade artista-obra-
espectador, no limiar do ambiente contracultural.

Palavras-chave: Provos, contracultura, arte política, eficácia estética, cotidiano.

ABSTRACT
This article aims to understand the extent to which manifestations linked to Provo movement was able to produce
at the heart of everyday life, an aesthetic experience of opposition to conformist automatism, in Amsterdam in
1960. Was sought, likewise, from the forms of adjacent efficacy of the art field, position the aesthetics as a
discipline can encompass possible existing mediations between the sensible and the intelligible. For this,
together with the contributions of authors such as Jacques Rancière (2012) and Matteo Guarnaccia (2010), the
study sought dialogue with key elements that comprised this conflict and its relation to the breakdown of the
triad artist-work-spectator on the threshold of countercultural environment.

Keywords: Provos, counterculture, political art, aesthetic efficacy, daily life.

Introdução
O provável resultado mais evidente quando se fala do lugar de origem da contracultura, aponta para o
Sunshine State, na Califórnia, e ignora os venturosos pioneiros holandeses, cujas atividades
anarquistas e tribais anteciparam Diggers, Yippies e Situacionistas.
Às ideias dos Provos faltou – além do imenso aparato midiático norteamericano – certo amplificador
fundamental, representado pela música pop. No universo anglo-saxão, o movimento pacifista e
alternativo pode contar com grupos ou cantores de musica folk para difusão de mensagens: nada
parecido aconteceu na Holanda, do ponto de vista de “exportação” da expressividade musical.
Camada a dentro no cotidiano, elemento indispensável para uma análise das teorias sobre a
transformação das interfaces de arte neste momento histórico, os Provos encontraram um lugar
autêntico, com certo grau de pioneirismo. No tangente a propostas de transformação do objeto e
espaço, comumente atribuído às inserções de Duchamp, Internacional Situacionista ou Fluxus,
Guarnaccia (2010) revela que:
306

(...) Amsterdam foi a primeira "zona liberada" do planeta. A primeira na qual as


ideias da Nova Consciência fincaram raízes sólidas, os cabelos compridos e os
vestidos excêntricos foram aceitos normalmente. Foi ali que as bandeiras negras da
anarquia reapareceram nas ruas, e dessa vez não era para seguir o funeral de um
velho militante. O primeiro lugar em que a mistura entre poesia, drogas e musica
pop conseguiu dar vida a um movimento contracultural gigante. E tudo isso antes do
maio francês (...).
(GUARNACCIA, 2010, p.06)

Ainda assim, diferentemente do supracitado maio francês, que objetivava levar a imaginação ao poder,
o Provo utilizou a imaginação contra o poder. Home (1962) destaca que os Provos angariaram boa
quantidade adeptos na juventude holandesa e dinamarquesa de sua época pelo fato de não se utilizarem
de uma linguagem política convencional, ao contrário, satirizá-la.
Suas raízes híbridas mesclavam arte e ativismo, de maneira a favorecer o surgimento de certo grau
inovativo em ambos, reinventando o próprio fazer político. Suas criações, portanto, dispuseram-se tão
entrelaçadas ao cotidiano, que continua sendo uma complexa tarefa distinguir o que é arte, em sentido
limitado, do que é ativismo.
Dos ensinamentos dadaístas, de modo mais ou menos consciente, os Provos tiraram alguns
ensinamentos úteis quanto ao uso dos símbolos: “(...) a indubitável influência Dada no movimento
pode ser reconhecida na obsessão de querer arrombar os significados que sustentam a ordem
estabelecida das coisas, e na fé no poder mágico da arte”. (GUARNACCIA, 2010, p.14).
Seja em seu reduto antifumo, o famoso e incendiário Templo K, nas ruas de Amsterdã, ou em seu
blasfêmico programa eleitoral, os inúmeros Planos Brancos (que nada têm de conotação racial,
preconceituosa ou purista), sintetizaram um estreitamento do fazer arte de forma a considerar-se a
insanidade dentro da política do cotidiano, sem afastar-se do descompromisso em seduzir os jovens
holandeses.
Segundo Guarnaccia (2010), a forma artística que ganha instantaneamente a simpatia dos círculos
intelectuais e boêmios, e que servira como elemento dinâmico, catalisador da transformação, era a
última novidade proveniente dos EUA: o happening (embora esta nomenclatura ainda não tivesse sido
forjada àquela época). Eram (...) “verdadeiras sessões terapêuticas selvagens e de massa, que
modificam inexoravelmente a percepção da realidade, um processo criativo capaz de desenvolver uma
consciência coletiva. Um modelo de desprogramação social”. (GUARNACCIA, 2010, p. 31).
O uso imaginativo da linguagem artística atingiu, no modus operandi desencadeado pelos Provos, o
ponto onde outras formas de conversões sociais entraram em confronto com a autoridade vigente.
Aqui, ganhou ares de delinquência juvenil non sense em maleáveis happenings e acarretou uma
reconfiguração do comportamento paradoxal.
As ofensivas para fundir arte e vida casual são parte integrante do patrimônio das vanguardas
históricas do século XX. Deste modo, para este estudo, fez-se de extrema importância uma revisão
bibliográfica que pudesse abranger diferentes visões do fazer arte no cotidiano. Na tentativa de
sintetizar as ideias levantadas pelos autores que tratam do tema.
Para melhor visualização das consequências de atividades artísticas no cotidiano, optou-se por
descrever, de forma sintética, dois importantes feitos Provos, aos quais, posteriormente, couberam
análises que partem de conceitos das formas de eficácia da arte, com especial atenção aos conceitos
formulados por Rancière (2010).
307

ARTE E POLÍTICA NA AMSTERDÃ DOS ANOS 1960


Politicamente, à época dos Provos, imperava na Holanda um paternalismo sufocante e impermeável às
mudanças, que “(...) era representado por um solido compromisso com as diferentes polaridades
religiosas, econômicas e sociais”. (GUARNACCIA, 2010, p.23).
Havia uma particular distribuição de todos os postos da vida pública - desde a administração até os
meios de comunicação de massa - entre as quatro forças principais do país: Capital, Sindicato,
Católicos e Protestantes, sobre as quais se apoiava a sociedade holandesa.
A vontade de repolitizar a arte manifestou-se nos Provos em estratégias, das quais, certamente, os
situacionistas enfurecidos zombaram por uma suposta ridícula moderação sublúdica de seus
intelectuais. Essa diversidade não traduziu apenas a variedade dos meios escolhidos para atingir o
mesmo fim. Ao passo que reflete uma incerteza mais fundamental deste fim em vista reconfigurou o
terreno onde repousa o borrão entre a arte e a política. Contudo, práticas divergentes têm um ponto em
comum: geralmente consideram ponto pacífico certo modelo de eficácia. (RANCIÈRE, 2012, p.52).
Rencière (2012) indica que a arte é considerada política porque mostra os estigmas da dominação,
porque ridiculariza os ícones reinantes ou porque sai de seus lugares próprios para transformar-se em
prática social, etc. No entanto, afirma ainda que, ao cabo de um bom século de suposta crítica da
tradição mimética, é forçoso constatar que essa tradição continua dominante até nas formas que se
querem artística e politicamente subversivas.
(RANCIÈRE, 2012, p.52).
As produções artísticas perdem funcionalidade, saem da rede de conexões que lhes dava uma
destinação antevendo seus efeitos; são propostas num espaço-tempo neutralizado, oferecidas
igualmente a um olhar que está separado de qualquer prolongamento sensório motor definido. Para
Rancière (2012), o resultado não é a incorporação de um saber de uma virtude ou de um hábitus. Ao
contrário, é a dissociação de certo corpo de experiência.
Há uma estética da política no sentido de que os atos de subjetivação política redefinem o que é
visível, o que se pode fazer dele e que sujeitos são capazes de fazê-lo. Há uma política da estética no
sentido de que as novas formas de circulação da palavra, de exposição do visível e de posições de afeto
determinam capacidades novas, em ruptura com a antiga configuração do possível. Para Rancière
(2012), a “política da arte” é, assim, feita do entrelaçamento de três lógicas: a lógica das formas da
experiência estética, a do trabalho ficcional e a das estratégias metapolíticas.
O que continua perto é o modelo de arte que deve suprimir-se a si mesma, transformando o expectador
em ator, do desempenho arte para fazer dela um gesta na rua, ou anula dentro do próprio museu a
separação entre arte e vida. O que se opõe então à pedagogia. Essa polaridade ética entre duas
pedagogias “(...) define o círculo no qual ainda hoje está frequentemente encerrada boa parte da
reflexão sobre política da arte”. (RANCIÈRE, 2012, p.57).
As formas da experiência estética e os modos de ficção criam uma paisagem inédita do visível, formas
novas de individualidades e conexões, ritmos diferentes de apreensão do que é dado, escalas nova. Não
o fazem da maneira específica da atividade política, que cria formas de enunciação coletiva (nós). Mas
formam o tecido no qual se recortam as formas de construção de objetos e as possibilidades de
enunciação subjetiva própria à ação dos coletivos políticos.
Enquanto a política propriamente dita consiste na produção de sujeitos que dão voz aos anônimos,
“(...) a política própria à arte no regime estético consiste na elaboração do mundo sensível do anônimo,
308

dos modos do isso e do eu, do qual emergem os mundos próprios do nós político”. (RANCIÈRE,
2012, p.65). Para o autor, é como se a arte, operando uma mediação entre as pessoas e o mundo,
acabasse fornecendo a possibilidade de vínculo imediato com ele, não obscurecida pela abstração
conceitual, lógica.
A experiência estética nos Provos parece apontar para uma transcendência, uma ultrapassagem daquilo
que os sentidos podem perceber e que a razão pode pensar, com alguma dose de diversão. Nesse
quadro, a função social precípua da arte é a de “fazer-se o eco e o reflexo da experiência comum, dos
grandes eventos e ideias do seu povo, da sua classe e do seu tempo”. (FISCHER, 1987, p.51).

ESTÉTICA RELACIONAL E A REINVENÇÃO DO


COTIDIANO PROVOCATIVO
A dimensão coletiva da arte, no Provos relaciona-se com o traço de universalidade da experiência que
cada um pode ter dela. O caráter único da construção da obra, sua falta de determinação social
imediata, parece ser uma radicalização da estrutura funcional a que todas as pessoas estão submetidas
no sistema. Este grupo representa um dos aspectos do último tipo de reformismo produzido pelo
moderno capitalismo: o reformismo da vida cotidiana.
As práticas dos Provos estão creditadas no poder de mudar a vida cotidiana apenas por meio de alguma
melhora bem selecionada. No entanto, é por meio dessa banalidade, tomada enquanto casual, que o
“provotariado” pode deparar-se com formas de driblar parte do mecanismo central do produto da
apatia de seus contemporâneos.
A racionalidade que vigorava no cotidiano holandês era a semelhante àquela voltada para a
instrumentalização da vida, tendendo a ocultar os diversos sofrimentos perpetrados pela e na sociedade
administrada. Na busca pela manutenção dos interesses do capital, essa “(...) racionalidade
absolutizada (...)” (ADORNO, 1982, p. 139) esquece o ser humano e, nesse sentido, converte-se em
irracionalidade.
Bourriaud estabelece bases para uma possível compreensão do fazer artístico, ao caracterizá-lo como
um meio de contato com o seu processo de manufatura. (BOURRIAUD, 2006, p. 49). Esse processo
consiste em fazer com que todo o trabalho, que na realidade do mercado somente é mediado por sua
funcionalidade externa, seja absorvido pela unidade das estratégias do grupo que, mesmo em sua
suprema falta de utilidade, acabam possuindo valor em si e para si mesmo.
Agindo apenas no especifico, acabaram por aceitar a totalidade: o conteúdo universal estético não seria
apenas alcançado pela extrema individualização (na qual a arte moderna recusa-se a uma comunicação
social direta, para alcançar outra, por assim dizer, sublimada).
Confrontados com a poética do cotidiano, evidencia-se uma lógica particular de representação e
circularidade nos chamados Planos Brancos dos Provos. Dois deles, em particular, chama a atenção
devido ao grau de inovação e ousadia: o primeiro – Plano das Bicicletas Brancas –, por estabelecer um
confronto com os glóbulos que circulavam pelo centro mágico, como era chamada Amsterdã e o
segundo – Plano Eleitoral, que consistia numa arriscada manobra que transformaria as ruas de
Amsterdam num palco de comédias (GUARNACCIA, 2010, p.42):

AS BICICLETAS PINTADAS DE BRANCO


Segundo Guarnaccia (2012), nos anos 1960, lutar contra o automóvel era algo inédito, uma blasfêmia
contra "as maravilhas do progresso". Em pleno boom automobilístico, os Provos têm a clarividência de
recusar o culto às quatro rodas e de propor a bicicleta como uma espécie de instrumento tribal: seria o
309

primeiro meio de transporte coletivo gratuito ou, em outros termos, a bicicleta Provo atua como uma
espécie de reencarnação do cavalinho de pau dos dadaístas.
Para os jovens deste grupo, a bicicleta era considerada um veículo igualitário, propiciador de
intimidades. Afirmavam que (...) se os povos précolombianos ignoravam a roda para os
deslocamentos, só a utilizando para os brinquedos e se os tibetanos a concebiam exclusivamente para
seus instrumentos de oração, a bicicleta é a síntese esplendida das utilizações possíveis da roda: jogo,
transporte e oração. (GUARNACCIA, 2010, p.45). Sem duvida, a crítica antiautomobilistica dos
Provos deve muito às intuições das mudanças sociais provocadas pela automatização do trabalho.
Seu plano consistia em distribuir bicicletas por toda a cidade para a utilização coletiva. O primeiro
plano de bicicletas brancas foi lançado no Provokatie nº 5, jornal publicado pelos Provos, contendo a
seguinte mensagem:

“Cidadãos de Amsterdam! Basta com o asfáltico terror da classe média motorizada!


Todo dia, as massas oferecem novas vítimas em sacrifício ao último padrão a quem
se desdobram: a auto-ridade. O sufocante monóxido de carbono é seu incenso. A
visão de milhares de automóveis infecta ruas e canais. O plano Provo das bicicletas
brancas nos libertará deste monstro. Provo lança a bicicleta branca de propriedade
comum. (...) A bicicleta branca está sempre aberta. A bicicleta branca é o primeiro
meio de transporte coletivo gratuito. (1965, apud Guarnaccia, 2010).

Estes e outros feitos se devem, em grande parte, aos esforços de uma enigmática figura, a quem
Guarnaccia (2010) descreve como, um “duende extravagante e exibicionista, que respondia pelo nome
de Robert Jasper
Grootveld”. Segundo Stewart Home (1962), “O Mago” e seus sócios (dentre os quais é possível
encontrar Bart Huges e o ex-situacionista Constant) tinham os pés fincados em ideias anarco-
comunistas e criativas, em ensandecidas operações de cunho dadaísta, com interpretações próprias e
magistrais.

O PLANO ELEITORAL DO “PROVOTARIADO”

Com inspirações anarquistas, muitos consideram qualquer vinculação com a política institucional pela
candidatura uma autoblasfêmia, fato que, segundo Guarnaccia (2010), aparentemente rebaixaria o
Provo de movimento de rua à força partidária. Ao mesmo tempo, nas ruas, os happenings continuavam
reprimidos violentamente pela polícia, a presença de um Provo na Câmara de Vereadores não
modificou de forma consistente a turbulenta cena política de Amsterdam.
O fato de seu vereador apresentar-se na sessão de abertura completamente vestido de branco e com
mãos e rosto pintados de branco, sugere certo compromisso com o viés performático, a fim de
introduzi-lo no contexto banalizado pela política institucional.
Desde os aplausos recebidos diariamente por uma (...) “pequena multidão que observa o vereador
Provo ir trabalhar de pés descalços” (...) (GUARNACCIA, 2010, p.80), até o fato de que ele,
performaticamente, dá inicio a suas intervenções arrotando, demonstra sua posição de
presençaadvertencia, em confronto com os outros eleitos.
310

Para Guarnaccia (2010) essa postura seria uma evidência de que os Provos não estariam interessados
no poder, não o querem e não sabem o que fazer com ele. Ao contrário, objetivavam dar poder à
imaginação para, assim, esvaziá-lo. Enquanto isso, nas ruas, happenings e choques continuam
imperturbáveis e reprimidos pela policia.
A mimese presente nas ações dos Provos também enfatiza parte da vontade de dar à arte da política um
objetivo que não seja apenas a produção de elos sociais, mas a subversão destes elos bem
determinados, “(...) prescritos na forma de instituições e decisões dos dominantes (...)”. (RANCIÈRE,
2012, p.71).

OS PROVOS E AS FORMAS DE EFICÁCIA EM SUAS


AÇÕES
Há três formas de eficácia definidas por Rancière (2012): a representativa, que como, a própria
nomenclatura sugere, quer produzir efeitos através representações, a lógica estética, na qual os efeitos
são produzidos pela suspensão destes fins representativos e, por fim, a lógica ética, que sugere que
formas artísticas e políticas se relacionem diretamente.

Rancière (2012) afirma que a arte ativista imita e antecipa seu próprio efeito, arriscando-se a tornar-se
a paródia da eficácia que reivindica. No entanto, é neste ponto que os Provos demonstraram o quanto
foram sensíveis ao problema inerente à política da arte enquanto ação direta contra a realidade da
dominação: a paródia como crítica consiste me diminuir a carga política que recai sobre a arte, pois
reduz o choque entre elementos heterogêneos à distância da alegoria.

Em contrapartida, a paródia da crítica feita pelos Provos ataca o suposto pivô do modelo, a consciência
espectadora dos jovens em Amsterdã, e se propõem a eliminar a distância entre arte produtora de
dispositivos visuais e a transformação das relações sociais. Essa prerrogativa pode ser mais bem
compreendida a seguir, no fragmento de um jornal produzido pelo grupo, em 1965:

“(...) Somos Provo... por que, então? Não e certamente para nos entediarmos. (...)
Porque este mundo esta cheio, atolado de exércitos, Estados, multidões de policiais
e espiões, cavalos de batalha, muros da vergonha, bases de mísseis, rampas
militares, quartéis, mortos de fome, histeria religiosa, burocracias e campos de
extermínio... Nos não somos tão ingênuos a ponto de acreditar que possamos
transformar este mundo, num piscar de olhos, num lugar ideal. Todos os
reformadores, inclusive os anarquistas, esqueceram de levar em conta as pessoas, o
"fator humano", como se costuma dizer.”.(1965, apud Guarnaccia, 2010).

Para Adorno (1982), a arte torna-se social no momento em que adota uma postura eminentemente
antagônica e autônoma em relação à sociedade administrada (capitalista). Tornando-se puras em si
mesmas, completamente estruturadas segundo a sua lei imanente, as ações dos Provos afrontariam uma
sociedade baseada na troca total, onde tudo existe enquanto meio; é uma negação determinada de uma
sociedade determinada.
Os dispositivos de arte destes planos se apresentam diretamente como propostas de relações sociais. O
trabalho de arte teria superado a antiga produção de objetos, como suas bicicletas brancas, somente
para contemplação: “(...) agora produz diretamente relações com o mundo, portanto, formas ativas de
comunidade”. (RANCIÉRE, 2012, p. 69).
311

É possível arriscar-se a enunciar o paradoxo da relação entre arte e política nos Provos: arte e política
têm a ver uma com a outra no sentido das operações de reconfiguração da experiência comum do
sensível. Assim, o happening pode ser considerado como uma das fagulhas que desencadeariam a
poética do grupo.
Se a experiência estética toca a política, é porque também se define como experiência de dissenso,
oposta à tradição mimética ou ética das produções artísticas com fins sociais. A arte provocativa
participa do que lhe é contrário e sua eficácia estética significaria propriamente a interrupção de
qualquer relação direta entre a produção das formas da arte e a produção de um efeito determinado
sobre um público determinado.
Estas afirmações ficam mais evidentes na medida em que Rancière (2012) a considera que a eficácia
de um dissenso não é o conflito de ideias ou sentimentos e apresenta-se, neste caso, um conflito de
vários regimes de sensorialidade. Por este motivo, no regime da separação estética, a arte acaba por
tocar na política. Política, por sua vez não é considerada aqui como “(...) exercício de poder ou luta
pelo poder. Seu âmbito não é definido pelas leis e instituições”. (RANCIERE, 2012, p.60).
A arte política, como atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos
comuns, rompe a evidência sensível da ordem
“natural” que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à
privada, votando-se, sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer.
Como produto essencialmente humano, a arte dos Provos não é uma produção automática; é, sim, um
produto humano complexo, para o qual são solicitadas as qualidades dos interatores enquanto tais.
Em primeiro lugar, a elaboração de certa compreensão do mundo e a abstração necessária para tomá-la
como conteúdo de suas ações políticas. Em segundo lugar, a capacidade de criar, que envolve três
ações básicas: projetar na mente as ações, buscar os meios mais verdadeiros e significativos para a sua
elaboração, concretizar o planejado num processo altamente dinâmico que, em seu decorrer (ou seja,
no movimento da própria obra em seu vir-a-ser).
Estes elementos não apenas puderam determinar transformações no plano original da ação, como
também nas maneiras de ser, pensar e criar dos artistas em seu diálogo com a criação coletiva de
abordagem do viver urbano de Amsterdã.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os artistas, assim como os pesquisadores, constroem a cena em que a manifestação e o efeito de suas
competências são expostos, tornados incertos, nos termos (...) do idioma novo que traduz uma nova
aventura intelectual. (RANCIÈRE, 2012, p.25). O efeito do idioma não pode ser antecipado.
Este estudo buscou compreender que elementos a arte deu à ação coletiva (...) contra as forças da
dominação que ela mesma toma como alvo (RANCIÈRE, 2012, p.74). De forma semelhante, procurou
observar os momentos nos quais a saída desta mesma arte para fora de seus habituais lugares assumiu
ares maiores que a pura demonstração simbólica.
Ficou constatado que nas ações provocativas configurou-se um cenário favorável para que os jovens
desempenhassem o papel de intérpretes ativos, que elaborassem sua própria tradução, para, enfim,
apropriar-se da história e fazer dela a sua própria. Sendo uma comunidade emancipada, eram
compostos por narradores e tradutores que incorporam suas “funções”.
312

Com isso, os Provos abriram passagens possíveis pra novas formas de subjetivação política. Mas
nenhuma parece ter sido capaz de evitar a ruptura estética que separa os efeitos das intenções e veda
qualquer via larga para uma realidade que estaria do outro lado das palavras e das imagens de suas
publicações.
Em Rancière, (2012), a arte crítica é aquela que admite que seu efeito político passe pela distância
estética. O autor compreende que esse efeito não pode ser garantido, que ele comporta uma parcela de
“indecidível”. Ainda segundo ele, haveriam duas maneiras de trabalhar e pensar esse “indecidível”: a
primeira considera um estado do mundo no qual os opostos se equivalem gerando oportunidade para
um novo virtuosismo da arte, e a segunda, reconhece aí o entrelaçamento de várias políticas, confere
figuras novas, explora suas tensões, desloca o equilíbrio do que é possível e a distribuição das
capacidades entre os envolvidos no processo.
Para os cânones revolucionários, Provo deve ser considerado um elemento reformista. Mas permanece
o fato de que as possibilidades de “Zonas Autônomas Temporárias” naquele país seguem como algo
muito surpreendente.
Também surpreendente certo respeito de que gozam na Holanda as minorias e as ideias mais
heterogêneas: os Provos foram - e continuam sendo - um dos mais influentes precursores deste
processo, pois, segundo Guarnaccia (2010):

(...) eles compreenderam que, no mundo moderno, o instrumento de luta mais


temível já não é a dinamite, mas a imaginação. Com a imaginação, é possível
arrebentar os planos de controle social, expor o verdadeiro rosto da benévola
sociedade de consumo, cutucar e ridicularizar o poder, reivindicando o direito de
todo ser humano a gerenciar a própria vida. Um único artigo nos jornais vale
milhares de manifestantes pelas ruas. (...) Com eles, o que era uma subcultura torna-
se, pela primeira vez, contracultura. Sua guerrilha místicoartistica e exemplar,
propondo uma doce ideia de gestão da vida cotidiana. (GUARNACCIA, 2010, p.43)

Em 17 de marco de 1967 sai o décimo quinto e ultimo numero do jornal Provo. Em 13 de maio do
mesmo ano, os Provos, (...) "cansados de bancar a entidade oficial de provocação" (...)
(GUARNACCIA, 2010, p.93), dissolvem-se. Desse modo, estabeleceram o novo modelo de ação que
será repetido por muitos grupos contraculturais: o da “morte e transfiguração". Desaparecer para não
se tornar previsível e depois reaparecer em outros lugares, sob outras formas possíveis de poética.
313

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Instrumental. Revista Filosofia e Ciências Humanas. Passo Fundo, Ano 11, Nº. 01, Janeiro/Julho de
1995, p. 77-89.
314

Aproximações entre livro-poema e site-specific.


Priscilla Guimarães Martins (PPGA-UFES)

Resumo

Este artigo apresenta uma análise da dimensão espaço-temporal do livro-poema,


filiado à tipologia de livros de artistas, de modo a ampliar sua compreensão e destacar a
relevância dessas produções no contexto da arte brasileira dos anos 1950 e 1960, em diálogo
com as teorias e práticas em ocorrência simultânea no cenário artístico internacional. O
empreendimento do livro-poema assume como central diversos preceitos em pauta naquele
período, convergindo com o conceito de site-specificity e marcando uma posição
intermediária na transição entre o moderno e o contemporâneo na arte produzida no Brasil.
Revisá-lo é uma forma de retomar questões ainda pertinentes na contemporaneidade, visto
que os livros de artista continuam a representar um segmento expressivo da produção artística
atual.
Palavras-chave: livro de artista; poesia concreta; site-specific.

Abstract

This paper presents an analysis of the space-temporal dimension of the book-poem,


affiliated to the artist’s books typology, to broaden their understanding and emphasize the
relevance of these productions in the context of Brazilian art from the 1950s and 1960s, in
dialogue with the theories and practices in simultaneous occurrence in the international art
scene. The book-poem project takes as central many precepts in question at that time,
converging with the concept of site-specificity and marking an intermediate position in the
transition from the modern to the contemporary in the art produced in Brazil. To review it is a
way to recover still relevant issues in contemporary times, as the artist's books continue to
represent a significant segment of the current artistic production.
Keywords: artist’s book; concrete poetry; site-specific.

As décadas de 1950 e 1960 são emblemáticas na reestruturação do estatuto do objeto


de arte, através da revisão de paradigmas modernos como autenticidade, autonomia e
exclusividade do objeto artístico, especialmente a partir da problematização de linguagens
tradicionais como a pintura e a escultura. A produção nacional estabeleceria um diálogo até
315

então sem precedentes com as produções internacionais do mesmo período, destacando-se o


protagonismo dos artistas brasileiros no debate crítico frente às produções americanas e
européias do mesmo período, quando lá se desdobrava o minimalismo e ganhavam impulso as
proposições da arte conceitual. Aqui, ganhavam força os postulados da arte e da poesia
concretas, que desembocariam no neoconcretismo e cujos artistas e obras ainda repercutem e
geram debates relevantes na contemporaneidade. Nesse contexto, o crítico de arte Guy Brett
afirma que “apesar da inadequação do rótulo, deve-se admitir que o Brasil produziu uma
forma única de ‘conceitualismo’ – lúdico, político, sensual e intrincadamente relacionado com
a poesia visual em seu emprego de palavras”1.

Na poesia, a operação mallarmesiana de uso do espaço em branco da página como


elemento poético contribuiu para a concepção da poesia e do livro como formas dotadas de
plasticidade. Na arte, seria definitivo o gesto duchampiano na emancipação do objeto artístico
para além das categorias artísticas clássicas e da noção de arte como campo discursivo. Na
corrente dessas revoluções, poetas e artistas estabeleceriam um diálogo bastante íntimo de
modo a impulsionarem reciprocamente seus campos de atuação em direção a superação dos
arquétipos tradicionais já em exaustão, encerrando formalmente o ciclo do modernismo a
partir do segundo pós-guerra. De acordo com o artista Ronaldo Brito, a arte cada vez mais
deixava de ser caracterizada por critérios estéticos definidos a priori e os artistas percebiam
que o processo de institucionalização da arte, com o qual o modernismo buscava
incessantemente romper, tornara-se inevitável, levando-os a teorizar sobre seus próprios
trabalhos e a buscar novos modos de circulação e debate para a arte.

[...] a produção se especifica, analisa com detalhes cada um de seus


momentos, é atravessada por uma série de exigências técnicas que
põem em suspenso o próprio conceito de arte como era e ainda é
entendido. E aqui a técnica deixa de ser meio expressivo do sujeito.
Ao contrário, passa a ser necessidade objetiva de os artistas
dominarem uma racionalidade profunda e generalizada para
acompanhar as determinações do sistema cultural. Necessidade de
investigar o seu campo de atuação no nível da consciência crítica.
Numa certa medida, não é mais a arte que permite a História da Arte e
sim o inverso - a História da Arte, esta construção a posteriori,
infiltra-se na produção e parece mesmo determiná-la.2

1 ABERTO fechado: caixa e livro na arte brasileira. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2012. Catálogo de exposição, p. 33.
2BRITO, Ronaldo. O moderno e o contemporâneo: o novo e o outro novo. In: BRITO, Ronaldo; LIMA, Sueli de (Org.).
Experiência Crítica. Rio de Janeiro: Cosac & Naify, 2005, p. 74-88, p. 80.
316

Os anos 1960 são marcados também – com mais expressividade na produção


americana, mas com repercussão no Brasil e no mundo – pela emergência da crítica
institucional, prática que apareceria no trabalho de diversos artistas preocupados em expor “as
estruturas e lógicas dos museus e galerias de arte”3. A artista Andrea Fraser comenta a
passagem do entendimento de instituição da arte como lugares ou indivíduos específicos para
a de um campo social mais abrangente, “que não inclui só museu ou mesmo só os sites de
produção, distribuição e recepção da arte, mas todo o campo da arte como universo social”,
ampliando a noção de lugar da arte de forma a:

[...] abarcar todos os sites nos quais a arte é apresentada – de museus e


galerias a gabinetes corporativos e casas de colecionadores, e até
mesmo espaços públicos quando neles há arte instalada. Também
inclui os sites de produção da arte, ateliês, assim como escritórios, e
os sites de produção do discurso artístico: revistas de arte, catálogos,
colunas direcionadas à arte na imprensa popular, simpósios,
conferências e aulas.4
Na sequência dos postulados do minimalismo, da crítica institucional e da arte
conceitual, emerge o conceito de site-specificity que inicialmente designava a adequação da
obra a um espaço físico específico, real e intransponível. Segundo a curadora e pesquisadora
Miwon Kwon, o trabalho site-specific “focava no estabelecimento de uma relação
inextricável, indivisível entre o trabalho e sua localização, e demandava a presença física do
espectador para completar o trabalho”5. No entanto, essa noção seria reformulada também na
medida em que se expandiam os limites institucionais da arte para além dos espaços físicos
tradicionais como museus e galerias. Desse modo, a concepção de site passaria a abranger
também toda a dimensão sociocultural, política e econômica dessas instituições, reafirmando
o campo da arte como espaço discursivo e profundamente ideológico.

A crítica e historiadora de arte Glória Ferreira destaca a “relevância do lugar de


apresentação ou inscrição do trabalho”, a partir dos anos 1960, como “indissociável da
linguagem que o constitui”, incluindo os escritos de artistas como “um traço definidor (...) na
busca da especificidade de uma situação – espacial, poética, política, etc”6. A confluência

3FRASER, Andrea. Da crítica às instituições a uma instituição da crítica. In: Concinnitas: Revista do Instituto de Artes da
UERJ, Rio de Janeiro: ano 9, vol. 2, n. 13, dez. 2008, p.181.
4 Ibid., p. 182.
5KWON, Miwon. Um lugar após o outro: anotações sobre site-specificity. In: Revista Arte&Ensaios, n. 17. Rio de Janeiro:
EBA/UFRJ, dez. 2008, p. 167.
FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Org.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2. ed., 2012, p. 19.
317

dessas tendências reestruturaria a práxis artística, assim como seus objetos, e deflagraria a
inserção da palavra (discurso) como parte constitutiva da materialidade da obra, que por sua
vez, enfrentava um processo crescente de desmaterialização.

Concomitantemente, a busca por novos espaços de circulação e debate da arte


acarretou a expansão dos limites institucionais tradicionais, incorporando todos os sites físicos
ou discursivos nos quais a arte é produzida e consumida. Nesse contexto, ganham importância
publicações independentes que facilitam a veiculação dos escritos de artistas para além das
chancelas críticas e editoriais de museus, galerias e grandes veículos de comunicação. O
cenário é favorável para o aumento de interesse dos artistas por formatos e mídias que
facilitem a veiculação de seus discursos, como cartazes, jornais, revistas, catálogos e livros.

Publicações de artistas

Informada pelas vanguardas artísticas históricas, a palavra ganharia dimensão visual,


tornando-se material e icônica, sinalizando um movimento crescente de articulação da prática
visual com a prática discursiva por parte dos artistas. “A presença do signo verbal no campo
visual, observada nas colagens e fotomontagens, adquire, assim, uma nova dimensão, na qual
são reatualizadas questões introduzidas por Duchamp”7. O artista assume para si o duplo
papel de criador e crítico da obra, ao mesmo tempo em que o texto alcança, em alguns casos,
a condição de objeto artístico.

De acordo com o artista Ricardo Basbaum é possível identificar uma importante


diferenciação no que concerne aos escritos de artistas no momento de transição entre o
moderno e o contemporâneo: “o artista moderno adota, basicamente, o manifesto como
principal modalidade discursiva – que se soma as obras mas não se confunde com elas”8, já
para o artista contemporâneo, “a palavra migra para dentro da obra” 9. É sintomático, portanto,
que nos anos 1950 seja formulada a teoria da poesia concreta brasileira e que, na década
seguinte, ocorra, ainda nas palavras de Basbaum:

A proliferação, a partir dos anos 60, de textos de artistas (textos


teóricos, ensaios, proposições, aforismos, depoimentos, etc.), a
multiplicação de experiências com meios audiovisuais – gerando o

7 Ibid., p. 10.
8 BASBAUM, Ricardo. Migração das palavras para a imagem. In: Revista Gávea, Rio de Janeiro, n. 13, set. 1995, p. 381.
9 Ibid., p. 382.
318

cinema de artista e a videoarte – e a crescente utilização da palavra


como parte da materialidade da obra – ora um elemento a mais ao lado
de outros estímulos visuais, ora trabalhada em sua espessura material
ou contextual10
Ainda sobre a relevância das publicações de artistas no contexto da arte
contemporânea, Guy Brett destaca, no catálogo da exposição de sua curadoria Aberto
fechado: caixa e livro na arte brasileira em 2012, a “predileção dos artistas brasileiros,
durante um longo período que se estendeu desde o final dos anos 1950 até o novo milênio,
pelos formatos de ‘caixa’ e de ‘livro’”11 e prossegue:

O fenômeno se fundamenta em um fascinante paradoxo. Por que – no


momento em que os artistas brasileiros de vanguarda se empenhavam
em projetar a arte para fora das galerias e dos museus, para situações
da vida cotidiana – eles estavam tão interessados nesses veículos
restritos e contidos em sua ligação com a biblioteca e o arquivo?
Talvez estivessem atraídos pela própria razão do paradoxo envolvido,
pela ironia a ser extraída do abismo entre o vazio calmo e manejável
da página ou receptáculo, facilmente ao alcance da mão, e a
incontrolável realidade circundante, seja ela o cosmos, a natureza ou a
cidade.12
Nota-se, portanto, que paralelamente à tomada de posição do artista contemporâneo em
relação ao seu campo de atuação, à redefinição do site do objeto de arte e à valorização do
discurso como prática artística, ocorre a incorporação da palavra como materialidade da obra
e a valorização do livro como forma de arte. No Brasil, essa corrente influenciaria e seria
influenciada por uma forte reformulação no campo da poesia. A poesia concreta do grupo
Noigandres13 faria uso da palavra como matéria ao expor poemas em cartazes ao lado de
pinturas na I Exposição Nacional de Arte Concreta, em 195614 (figura 1). Os livros-poemas
surgiriam como prática representativa na produção dos poetas/artistas Wlademir Dias-Pino e
Ferreira Gullar, além de aparecerem reincidentemente em trabalhos de artistas como Lygia
Clark e Lygia Pape. Por ações independentes, a arte postal ganharia repercussão a partir do

10 Ibid., p. 382.
11ABERTO fechado: caixa e livro na arte brasileira. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2012. Catálogo de exposição, p. 33, p.
11.
12 Ibid., p. 11.
13O grupo Noigandres seria formado pelos poetas Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari (responsáveis
pela elaboração teórica inicial do movimento) e Ronaldo Azeredo.
14A exposição aconteceu em dezembro de 1956 no MAM, em São Paulo, e em fevereiro de 1957 no MEC, Rio de Janeiro.
Em 2006 foi remontada no MAM-SP em comemoração aos 50 anos da mostra original com o título Concreta ’56: a raiz da
forma. Ver: A 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta. In: MENDONÇA, Antônio Sérgio; SÁ, Álvaro de. Poesia de Vanguarda
no Brasil: de Oswald de Andrade ao Poema Visual. Rio de Janeiro: Antares, 1983, p.101-109.
319

final dos anos 1960, tendo destaque a produção do artista Paulo Bruscky e o desenvolvimento
do movimento poema/processo, através do qual artistas e poetas de todo país publicavam e
distribuíam textos e poemas em pequenas publicações.

Essa intensa movimentação tanto colocaria em questão o livro enquanto veículo


legítimo para a poesia, impulsionando alguns poetas/artistas a explorarem novos meios, como,
em contrapartida, evidenciaria o livro como parte significante da leitura e não mero suporte
sem expressão sígnica. Segundo o poeta e crítico Álvaro de Sá15, seria possível classificar a
poesia concreta brasileira em três vertentes: (1) a “simbólico-metafísica”, representada por
Ferreira Gullar e que desembocaria no neoconcretismo; (2) a “de rigor estrutural”, integrada
pelo grupo Noigandres e seus continuadores, que traria “como segunda reação a poesia
práxis”; (3) a “de linguagem matemática, apresentada por Wlademir Dias-Pino, precursora do
poema/processo”16. Embora no primeiro momento esses poetas tenham concordado em
relação aos princípios definidores da poética que então teorizavam, expondo seus trabalhos
em conjunto na mostra de 1956, já se notavam algumas das divergências conceituais e
estéticas que, mais tarde, motivariam o rompimento de Dias-Pino e Ferreira Gullar com o
grupo Noigandres.

Vertentes da poesia concreta

Os poetas concretos destacariam o verbal e o visual como elementos indissociáveis na


construção de sentido e buscariam ressignificar a leitura através da exploração simultânea das
três dimensões materiais da palavra: verbal, vocal e visual (poesia verbivocovisual),
utilizando-se de signos verbais e não-verbais. Para tanto, lançariam mão de recursos
linguísticos, fonéticos e gráficos como elementos semânticos internos ao poema e cuja sintaxe
relacional e fragmentária pretendia romper com a estrutura imóvel do verso na poesia
tradicional. Para além da metáfora, figura essencialmente poética, a palavra seria
potencializada pela atomização de seus elementos sonoros e visuais, ampliando as
possibilidades de associações e significados.

O poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe


analógica, cria uma área linguística específica – ‘verbivocovisual’ –

15 SÁ, Álvaro de. Vanguarda: produto de comunicação. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 92.
16Em outra versão do mesmo texto, publicada no livro Poesia de Vanguarda no Brasil (MENDONÇA; SÁ, 1983, p. 135), há
uma variação na denominação das vertentes descritas por Álvaro de Sá: (1) a “fenomenológica” e (3) a “espacional”. Aqui
foi mantida a grafia da primeira versão.
320

que participa das vantagens da comunicação não-verbal, sem abdicar


das virtualidades da palavra.17

Figura 1: Tensão, poema de Augusto de Campos, 1956.

Já para Dias-Pino, em nada interessaria a oralidade do poema, e radicaliza: “Um


poema escrito é antes de tudo visual e não sonoro, ele não é um instrumento musical. A poesia
silenciosa, a poesia espacional é contra o herói”18. O poeta adotaria o livro de modo radical e
autorreferente, propondo o esvaziamento de conteúdos literários em favor de uma interface
informacional para o poema. A partir disso, fundamentaria a distinção entre poema-livro e
livro-poema ao defender que, no poema-livro, o suporte estaria subordinado ao poema que,
desse modo, poderia ser veiculado através de outros meios — prática reincidente nas
produções do grupo Noigandres, mais interessado em resolver a superfície da página (poesia
em cartaz). Já o livro-poema não poderia perder as particularidades físicas e (tipo)gráficas do
objeto livro para instaurar um processo específico de fruição do poema a partir da exploração
simultânea da totalidade do livro.

Existe o poema-objeto dos dadaístas. Os nossos, são objetos-poemas.


É a diferença entre poema-livro e livro-poema. O Inferno de Dante é
um poema-livro. A condição de poesia-poema (um longo poema) é
que impôs um todo ao livro, no caso de Dante. Já no livro-poema é a
expressão do próprio material usado no livro: a paginação, a página
em branco, as permutações de folhas, o ato de virar as páginas, a
transparência do papel, o corte, os cantos, etc.19

17CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Plano-piloto para poesia concreta. In: Teoria da Poesia
Concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2006, p. 215.
18 DIAS-PINO, Wlademir. Processo: Linguagem e Comunicação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1973.
19UNIVERSIDADE FEDERAL DO MATO GROSSO. Departamento de Letras (Org.). Wlademir Dias-Pino: a separação entre
inscrever e escrever. Cuiabá: Edições do Meio, 1982. Catálogo de exposição.
321

Figura 2: A Ave, livro-poema de Wlademir Dias-Pino, 1956.

A partir da formulação do livro-poema, que teria como principais exemplares os livros


A Ave (1956) (figura 2) e Solida (1962), Dias-Pino operaria a substituição da palavra por
códigos imagéticos formalmente análogos à pintura concreta, ao mesmo tempo em que faria
as páginas do livro avançarem sobre o espaço em gesto escultórico, evidenciando a
tridimensionalidade do códice e evocando a participação (cri)ativa do leitor. Philadelpho
Menezes destaca a influência que Dias-Pino teria sofrido “mais diretamente que os outros
fundadores da poesia concreta, dos postulados matemáticos que informam a arte concreta”, de
modo que ele optaria “pelo uso das combinações estatísticas, de gráficos matemáticos e
estruturas plásticas cambiáveis em substituição ao jogo de palavras”20.

Por sua vez, Ferreira Gullar exploraria em sua poesia “o espaço como dado empírico e
simbólico”21, de modo que a existência do signo dependeria essencialmente da ação do leitor,
que deveria lhe conferir expressividade e significado. Gullar realizaria experimentações com
o livro-poema, no entanto, segundo o próprio artista, esses experimentos logo apresentariam
“uma concepção bem diferente dos anteriores”, por não exibirem a “estrutura de um livro e
sim a de um objeto novo, manuseável”22. Em o formigueiro (1954) (figura 3), Gullar promove
a espacialização do poema nas páginas e ao longo de todo o corpo do livro, com palavras “que
vão sendo explicitadas por um processo que lembra o dos anúncios luminosos, onde várias

20MENEZES, Philadelpho. Poética e Visualidade: uma trajetória da poesia brasileira contemporânea. Campinas: Unicamp,
1991, p. 27.
21 Ibid., p. 57.
22 GULLAR, Ferreira. Experiência neoconcreta: momento-limite da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 37.
322

palavras que ocupam o mesmo lugar no espaço são mostradas uma de cada vez, acendendo e
apagando”23.

Figura 3: O formigueiro, poema de Ferreira Gullar, 1954.

Mais adiante, como “consequência natural do livro-poema”24, Gullar realizaria poemas


espaciais construídos em madeira, como Lembra (1954) e Pássaro (1954) (figura 4). Em
contrapartida plástica ao manifesto neoconcreto (1959) e à teoria do não-objeto (1959),
elaboraria o Poema Enterrado (1960), que consistia em uma sala no subsolo da casa do artista
Hélio Oiticica, onde havia uma sequência de cubos inseridos dentro de outros cubos cuja
manipulação revelaria uma única palavra: “rejuvenesça”. Embora esse trabalho nunca tenha
chegado a ser exposto ao público, devido a uma inundação no porão na véspera de sua
abertura, ficou o registro do projeto de sua instalação. Em sua concepção, o poema
requisitaria a participação corporal do leitor, que deveria penetrar na sala-poema — em
oposição à participação estritamente visual (poesia-cartaz) ou manual (livro-poema) como na
obra dos demais artistas/poetas concretos.

O não-objeto não é um antiobjeto mas um objeto especial em que se


pretende realizada a síntese de experiências sensoriais e mentais: um
corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente

23 Ibid., p. 75.
24 Ibid., p. 47.
323

perceptível, que se dá à percepção sem deixar resto. Uma pura


aparência.25

Figura 4: Pássaro, poema espacial de Ferreira Gullar, 1954.

A experiência plástica de Gullar, embora tenha partido de uma revisão da unidade


poesia/livro, logo se estenderia para uma investigação em torno do não-objeto e seria
interrompida já no início dos anos 1960 pelo artista, que se dedicaria então à militância
política na área da cultura durante todo o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985).
Suas formulações, no entanto, desenhariam a proposta básica do neoconcretismo, que seria
levada adiante nas obras de Hélio Oiticica e Lygia Clark, alcançando grande repercussão
internacional e marcando, possivelmente, o início da arte contemporânea no Brasil. Ronaldo
Brito afirma que “é um fato histórico que o neoconcretismo foi o último movimento plástico
de tendência construtiva no país, e que, inevitavelmente, encerrou um ciclo.”26

Nota-se, portanto, que dentro da vanguarda poética concretista seriam elaboradas


diferentes abordagens da poesia visual e da utilização do livro como forma do poema. No
entanto, Dias-Pino seria o mais interessado em problematizar o livro sem apartar-se
indistintamente do formato códice-referente. Seus livros-poemas extrapolam o postulado
verbivocovisual da poesia Noigandres e encontram pontos de contato com a fenomenologia

25 Ibid., p. 90.
26BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 1999, p.
55.
324

resgatada pela proposta neoconcretista, transitando na fronteira entre ambas as vertentes da


vanguarda (concreta e neoconcreta). A Ave seria considerada por diversos estudiosos27 como
precursora da categoria de livro de artista no Brasil e no mundo, vindo a influenciar diversos
artistas a partir do final dos anos 1950 a promoverem experimentações com este formato.

Site-specificity do livro-poema

Naturalmente, seria possível buscar antecedentes do livro de artista em práticas tão


remotas como os livros manuscritos iluminados do período medieval ou os cadernos de
Leonardo Da Vinci que datam do final do século XV. No entanto, o entendimento do livro
como linguagem artística se daria especialmente a partir do final da década de 1950, com a
ampliação da noção de arte para além das categorias tradicionais e com as experimentações da
poesia visual conjugadas às neovanguardas artísticas. Os postulados da poesia concreta, ao
fundirem texto e imagem em composições poéticas, abririam caminho para se repensar os
meios adequados para veiculação da poesia, evidenciando para alguns artistas a especificidade
do livro e, para outros, ampliando as possibilidades de publicação do poema para além dele.

Os livros de artista ganhariam espaço principalmente dentro do neoconcretismo e


permeariam a produção plástica de diversos artistas nas décadas seguintes, se estendendo até a
atualidade como parte expressiva da prática contemporânea brasileira. Embora seja bastante
numerosa essa produção, não são equivalentes os estudos e análises realizadas sobre o
assunto. É interessante observar, ainda, as particularidades do livro-poema em relação ao livro
de artista em geral, sendo aquele antecessor deste, e, nesse sentido, a obra de Dias-Pino
merece destaque.

Como é exemplar em seu trabalho, o livro-poema assume a isomorfia espaço-temporal


do objeto livro como elemento constituinte e inextricável da experimentação e do significado
do poema. Forma (livro) e conteúdo (poema) integram a unidade da obra de modo
efetivamente indivisível. Tem como característica “a fisicalidade do suporte interpenetrada
com o poema, apresentando-se como corpo físico, de tal maneira que o poema somente existe
porque existe o livro como objeto”28. Nesse sentido, seu procedimento revela convergências
com a noção original de site-specificity, na medida em que é intraduzível para outro meio,

27 Dentre eles Augusto de Campos, Álvaro de Sá, Moacy Cirne, Ulises Carrión e Paulo Silveira.
28PLAZA, Julio. O livro como forma de arte (Parte I: O livro artístico). In: Revista Arte em São Paulo, n. 6. São Paulo: edição
de Luis Paulo Baravelli, abr. 1982.
325

sendo concebido desde o início a partir das demandas específicas do site de inscrição da obra
(poema) previamente estabelecido – o livro.

Figura 6: Solida, livro-poema de Wlademir Dias-Pino,1962.

Dias-Pino transfere o espaço gráfico da poesia na planaridade da página para a


estrutura espaço-temporal do livro como um todo, reestruturando sua condição linguística e
caracterizando-o como meio insubstituível à determinadas produções artísticas. Partindo de
um fluxo verbal-tipográfico característico da poesia concreta, o poema ganha plasticidade,
chegando a abdicar da palavra para substituí-la por outros códigos visuais e ocupar o espaço
através de esculturas dobráveis de papel (figura 6). Nesse movimento, Dias-Pino problematiza
a palavra ao exibir tanto seu caráter imagético quanto sua convencionalidade, arbitrada pelo
código alfabético.

O livro é tomado não apenas como suporte de inscrição do poema, mas como espaço
de circulação da obra que conjuga em si o discurso do artista. Para além da dimensão
material, está em jogo, de maneira intencional e política, toda a problemática do livro como
objeto carregado de história e simbolismo: desde a opção por este formato ao aproveitamento
de seu volume como matéria dotada de plasticidade, que deflagra modos de manuseio e de
326

circulação específicos e que, uma vez inserido no contexto da arte, funciona também como
espaço expositivo autônomo. O livro-poema se propõe como site discursivo, não apenas por
eleger um meio expositivo alternativo aos tradicionais ou por solicitar a participação ativa do
leitor na manipulação/construção da obra. Na revisão do binário livro-poema, está implícito o
deslocamento de alguns conceitos-chaves caros aos campos da poesia e da arte e que derivam
de um posicionamento ideológico latente.

É central a oposição estabelecida por Dias-Pino entre os termos poesia e poema, no


sentido de que a poesia estaria encadeada à língua e, dessa forma, restrita ao domínio do
código alfabético — “O alfabeto é o instrumento mais cruel de dominação que o homem já
criou”29. Já o poema consistiria em um problema de linguagem e, portanto, autônomo.
Seguindo essa mesma lógica, emerge a oposição entre comunicação e informação, de modo
que a comunicação pressuporia a arbitrariedade de um código comum (alfabeto) entre todos
os indivíduos para que se efetivasse e, por isso, tornaria-se necessariamente excludente. Já a
informação prescindiria de códigos pré-existentes, devido à sua natureza didática, e incitaria a
participação crítica do receptor, em consonância com a disciplina artística.

Somam-se aos livros de artista, as publicações artísticas veiculadas através de


catálogos e revistas que se multiplicaram nas ultimas décadas, facilitadas pelas novas
tecnologias de edição e reprodução gráficas, assim como as publicações online. Amplia-se,
com isso, o campo discursivo da arte para além dos espaços institucionais tradicionais,
integrando-a ao cotidiano de um número crescente de pessoas. Os artistas mais interessados
em trabalhar com questões que tangenciam e expandem esses limites críticos tendem a
incorporar conceitos e ideias como matéria de suas obras, de tal modo que se mesclam a elas e
tiram partido do formato no qual se apresentam, convertendo as mídias utilizadas em espaços
de exibição e participação do expectador/leitor com a obra. Nesse sentido, o livro se mostra
como site propício à experimentação e tem espaço cativo na criação plástica de inúmeros
artistas, parecendo não se esgotarem as possibilidades de repensá-lo e apresentá-lo como
objeto único e aberto a novas proposições.

29 DIAS-PINO, Wlademir. Carta aberta. In: Revista Dasartes, ano 1, n. 5, 2009.


327

Referências
ABERTO fechado: caixa e livro na arte brasileira. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2012.
Catálogo de exposição.
BASBAUM, Ricardo. Migração das palavras para a imagem. In: Revista Gávea, Rio de
Janeiro, n. 13, set. 1995.
BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São
Paulo: Cosac & Naify, 1999.
BRITO, Ronaldo; LIMA, Sueli de (Org.). Experiência Crítica. Rio de Janeiro: Cosac &
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______. Leitura sobre o livro-poema A Ave. 2002. Entrevista concedida a Vera Casa Nova,
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Catálogo de exposição.
329

Tragédia na arte: uma proposta de arte postal.


Adriana Tiago Lopes (PPGA-UFES)

RESUMO:

Este trabalho é um relato de experiência de um projeto pedagógico realizado na escola


estadual Coronel Gomes de Oliveira, situada no município de Anchieta/ES. O projeto tinha
por objetivo proporcionar aos alunos do Ensino Médio uma maior valorização da disciplina de
arte, tendo como experiência a Arte Contemporânea. Decidimos fazer uso da arte postal e a
fim de ampliar as possíveis discussões e o leque de possibilidades de produção, o tema
escolhido foi tragédia.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de Arte, Proposta Triangular, Arte Contemporânea, Arte


Postal, Tragédia.

ABSTRACT:

This work is an experience report of an educational project carried out in the state school
Colonel Gomes de Oliveira, in the municipality of Anchieta / ES. The project aimed to
provide high school students a greater appreciation of the art of discipline, with the
experience contemporary art. We decided to make use of the mail art and to expand the
possible discussions and the range of production possibilities, the theme was tragedy

KEYWORDS: Art Education, Triangular proposal, Contemporary Art, Mail Art, Tragedy

1. Introdução

Este trabalho é um relato de experiência referente a um projeto desenvolvido durante o


segundo semestre de 2014, com as turmas de Ensino Médio da Escola Estadual “Coronel
Gomes de Oliveira”, localizada no município de Anchieta/ES.

Vale ressaltar que também foram realizadas entrevistas com os envolvidos, antes e
depois dos trabalhos, a fim de avaliarmos se os resultados propostos foram alcançados.
330

Fizemos uso de entrevista não estruturada por acreditarmos que esta possibilita uma coleta
mais espontânea, fornecendo importantes contribuições.

O assunto escolhido para a realização do projeto foi Tragédia e Comédia. Primeiro,


por se tratar de um tema presente basicamente nos cotidianos das pessoas, principalmente, por
meio de jornais, revistas, filmes, livros, etc. Segundo, porque o objetivo principal do projeto
era a valorização da disciplina de artes na escola, portanto fazia-se necessário a abordagem de
um assunto de fácil acesso dos educandos.

Neste relato escolhemos inserir apenas os trabalhos que contemplaram a Tragédia


como tema, apesar do projeto ter abarcado também a comédia. Para que fique claro, a
comédia foi trabalhada de forma mais teatral, com apresentações dos próprios alunos, num
grande evento que culminou com a finalização dos trabalhos. Já a tragédia, ficou por conta de
outras linguagens artísticas, com diversas atividades que tiveram como preocupação inserir a
arte contemporânea no cotidiano dos envolvidos – trabalhar com arte contemporânea foi uma
escolha que se deu a partir das entrevistas realizadas antes do início do projeto.
Diagnosticamos que os alunos não haviam estudado conteúdos referente a história da arte
contemporânea.

A idéia de trabalhar o tema tragédia com arte postal surgiu juntamente com o desejo de
proporcionar aos alunos muito mais do que o conhecimento teórico sobre o assunto. Era
necessário oportunizar a experiência de uma produção de arte contemporânea, possibilitando
a interação entre os colegas de sala e da escola como um todo. Outro fator importante foi o
baixo custo financeiro que essa experiência requeria, afinal, estávamos numa escola pública,
cuja clientela possui os mais variados perfis.

O tema também é importante por permitir o trabalho com a metodologia Triangular de


Ana Mae Barbosa, auxiliando-os na aquisição de uma educação estética bem estruturada e
enriquecimento cultural. Essa metodologia propõe que os conteúdos da disciplina de artes
sejam ministrados sob três aspectos: contextualização histórica, apreciação estética e fazer
artístico.

Começamos pela apresentação da idéia aos alunos e uma pequena explanação sobre o
que seria desenvolvido com eles. Depois optamos por mostrar algumas obras de arte postal,
dos mais variados artistas, o que permitiu sintetizar de forma clara o contexto histórico e o
desenrolar dessa prática, fomos esclarecendo as dúvidas durante as aulas expositivas e
permitimos um contato com o conteúdo através de slides projetados por um aparelho data-
331

show e o uso da internet com os celulares dos próprios alunos. Desenvolvemos um trabalho
de construção do conhecimento que pudesse servir de base para a produção final feita por
eles. Depois de termos esclarecido de maneira satisfatória, não havendo dúvidas, partimos
para a construção dos envelopes – que deveriam transmitir a visão pessoal do aluno sobre as
mais variadas formas de tragédias, fossem elas cotidianas, literárias, pessoais, etc.

Esperamos que este trabalho possa levar a uma reflexão sobre a situação atual do
ensino de Arte e que ele possa contribuir para sua melhora, incorporando novas idéias e
práticas ao cotidiano escolar.

2. O lugar da Arte na escola.

Quando cheguei à escola Coronel Gomes de Oliveira, no segundo semestre de 2013,


percebi que a disciplina de artes era tratada como um componente curricular inferior, por
parte dos alunos. Eles cumpriam as atividades apenas para ganharem nota e não por
entenderem o quão importante a arte é para a formação deles enquanto sujeitos.

Outro problema diagnosticado era a deficiência de conhecimento acerca das produções


artísticas da contemporaneidade. Realizamos entrevistas com os alunos a fim de diagnosticar
o que já sabiam e o que ainda deveriam aprender. Eles possuíam conhecimentos sobre a
história da arte antiga e medieval, mas quase não sabiam sobre arte moderna e
contemporânea, resultado que se mostrou como um grande desafio pedagógico.

Nos anos de 1960, as obras de arte ainda eram percebidas sob o ponto de vista de duas
amplas categorias: pintura e escultura. Desafiar esse duopólio foi tarefa das colagens cubistas,
performances futuristas, eventos dadaístas e, sobretudo, a fotografia. Entretanto, ainda
persistia a noção de que a arte compreende os produtos do esforço criativo humano, chamados
pintura e escultura. (ARCHER, 2001, p.1)

Depois de 1960, surgiu uma grande incerteza acerca desse sistema de classificação,
que já não era mais satisfatório. Sem dúvida muitos artistas ainda pintam e outros “ainda
fazem aquilo que a tradição se referia como escultura, mas essas práticas agora ocorrem num
espectro muito mais amplo de atividades”. (ARCHER, 2001, p. 1)

Percebemos que os alunos envolvidos no projeto ainda possuíam uma visão totalmente
condizente com esse duopólio (pintura – escultura). Os envolvidos acreditavam que a arte
limitava-se a quadros expostos em paredes:
332

Arte é um quadro bonito que a gente coloca na parede da nossa casa para enfeitar,
decorar. Eu gosto daqueles quadros de cavalo, sabe? Aqueles cavalos correndo, eu
acho tão bonito! Eu queria aprender a pintar esses quadros. (Luana Teles.
Entrevistada em: 28 set. 2014)

Percebemos pelo depoimento acima, que a aluna definiu a arte como pintura. Essa
visão limitada deve-se ao pouco conhecimento acerca da grande variedade de linguagens que
a arte contemporânea abarca.

Artista pra mim é um pintor de quadros. O cara tem que ser muito fera pra pintar, é
muito difícil! Como que eles conseguem usar aquelas cores todas? E tem quadro que
parece foto, você já viu? (risos) (Alana Boldrini. Entrevistada em: 28 set. 2014)

Mais uma vez, pelas palavras da aluna, percebemos que a pintura permanece sendo um
grande exemplo, senão o único, de arte na vivência desses alunos. Seria preciso propor uma
atividade diferenciada, a fim de desconstruir esse pensamento.

3. Arte Postal

A arte postal também é conhecida como Arte Correio (Mail Art), Arte por
Correspondência ou Arte a Domicílio. É um movimento onde os artistas substituem as
galerias e os museus por envelopes/ telegramas/ postais/ cartas/ selos/ faxes etc. Que são seus
suportes.

Os materiais utilizados para a confecção de arte postal são os mais variados como:
carimbos, colagens, idéias, textos visuais, propostas, Xerox, poesia sonora, desenhos, etc.
Depois de pronto, o trabalho é enviado para outro artista, via correios e, depois de passar pelas
mãos de diversas pessoas, retorna ao transmissor, tornando-se como uma espécie de trabalho
Bumerangue. (BRUSCKY, 2006, p 375)

A história da arte postal no Brasil está ligada a uma época em que a comunicação, apesar
da multiplicação dos meios, tornou-se difícil. Era a época da Ditadura Militar e a arte postal
foi considerada uma nova forma de expressão dos artistas. Mas seu início foi conturbado e
difícil.

A “I Exposição Internacional de Arte Correio” no Brasil foi realizada no Recife, em 1975,


organizada por Paulo Bruscky e Ypiranga Filho. Existiram dificuldades com a censura que
fechou, minutos após a inauguração, a “II Exposição Internacional de Arte Correio” realizada
no dia 27 de agosto de 1976, no hall do edifício sede dos Correios do Recife (Brasil). Os
333

artistas Paulo Bruscky e Daniel Santiago foram presos e os trabalhos recolhido, levados para a
Polícia Federal. Outros países da América Latina praticaram os mesmos atos contra artistas-
correio, que foram presos e tiveram seus trabalhos confiscados. (BRUSCKY, 2006, p 376)

O início dessa prática no mundo ainda é motivo de discussão, pois há que se levar em
conta uma série de produções que podem sim ter contribuído para tornar a idéia concreta, tais
como:

Os trabalhos de DUCHAMP, as experiências dos futuristas e dadaístas, os cartões


postais dos radioamadores (QSL), o telegrama de Rauschmberg, folon, as cartas
desenhadas de Van Gogh paea seu irmão Theo, os poemas postais de Vicente do
Rego Monteiro, datados de 1956, de Apollinaire com seus cartões-postais com
caligramas e de Mallarmé (que escreveu em envelopes os endereços dos
destinatários em quadras poéticas que contavam com a boa vontade dos empregados
dos Correios para decifrar seus enigmas poéticos), a Mail art surgiu na década de
1960 (através do grupo Fluxus e só veio a tomar impulso a partir de 1970).
(BRUSCKY, 2006, p 377)

Esclarecida toda a história da Arte Postal, iniciamos com a apreciação de algumas


imagens de obras de vários artistas, a fim de que os alunos pudessem compreender na prática
como eles deveriam criar seus trabalhos.

Para complementar as orientações, fez-se necessário explicar a origem do gênero


Tragédia, na Grécia Antiga. Para isso utilizamos uma aula expositiva e tivemos contato com
alguns autores gregos como: Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. As histórias foram apresentadas
de forma resumida por conta do tempo limitado, contávamos com apenas uma aula por
semana em cada turma.

A proposta é que os alunos dessem conta de produzir arte postal que expressasse suas
idéias particulares de tragédias, levando em consideração suas vivências pessoais. E os
resultados foram os mais variados.

Os resultados foram surpreendentes. Eles empregaram diferentes definições de


tragédia, demonstradas nas obras: distúrbios alimentares como Bulimia e Anorexia, a agitação
política que paira sobre nosso país, o Nazismo, as Guerras, Falta de liberdade religiosa,
pobreza, consumismo exagerado, preconceitos, etc. Conforme podemos perceber na figura 1.

Todos os alunos participaram da proposta e a grande maioria se entusiasmou com a


prática. Tivemos um número aproximado de 300 obras de arte postal no turno Matutino, o
único envolvido no projeto. E foi possível perceber que o envolvimento deles não se deu por
conta da nota, mas porque a proposta despertou um interesse real.
334

Figura 1: Envelope com Arte Postal. Foto da autora. Produzida em 29. Set. 2014. Fonte: Acervo pessoal

Para a troca dos postais não pudemos recorrer aos Correios, sobretudo por conta da
origem dos alunos do turno Matutino. A grande maioria mora na zona rural do município de
Anchieta, e obrigá-los a se deslocar para a cidade, a fim de postar os envelopes pelo correio,
seria dispendioso. Então, resolvemos esse problema trocando os envelopes de forma aleatória.
É importante pedir que os alunos os identifiquem para que possam recebê-los ao final de todo
o processo, e para que fique caracterizado o conceito de trabalho bumerangue, já descrito
acima.

A troca dos postais seguiu uma espécie de rodízio entre as salas, de forma que as
contribuições pudessem ocorrer de forma mais livre. É importante ressaltar que os alunos só
puderam identificar os colaboradores depois da exposição, quando conversaram entre si –
normalmente os artistas postais já sabem de antemão a quem enviarão seus trabalhos,
entretanto, aqui na escola, tivemos de adaptá-lo à realidade encontrada.

Ao final, fizemos uma exposição com os trabalhos a fim de que todos pudessem
apreciar as obras coletivas e identificar suas contribuições nas obras dos colegas e as
recebidas nas suas, conforme pode ser observado na figura 2.
335

Figura 2: Mural de Arte Postal. Foto da autora. Produzida em 29. Set. 2014. Fonte: Acervo pessoal

4. Resultados alcançados

Consideramos que o projeto atingiu seu objetivo quando das entrevistas realizadas
após a finalização dos trabalhos. O pensamento inicial dos alunos foi modificado com a
prática de arte postal.

Eu achei muito legal essa atividade! Fiquei surpresa quando recebi meu envelope de
volta. Tudo tava diferente! Fizeram coisas que eu nem tinha pensado em fazer. Eu
gostei do resultado! Fico imaginando quem escreveu cada frase, cada desenho. Foi
muito legal! (Alexia Andrade. Entrevistada em: 28 set. 2014)

Sobre o duopólio pintura/escultura acreditamos que também foi quebrado, pois a grande
maioria dos alunos percebeu que a arte contemporânea possui muitas práticas, que ela é
democrática, que os artistas hoje podem utilizar os mais diferentes materiais e deixar a
criatividade fluir.

Eu achava que artes era só quadro. Aquelas esculturas bonitas do Davi que a gente
vê nos livros. Mas essa atividade me fez perceber que hoje a arte pode ser tudo.
Basta você ter uma idéia criativa e colocar em prática. Eu nunca imaginava que um
envelope podia ser uma obra de arte (risos). Mas eu gostei sim, isso faz eu me sentir
artista sabe, claro que eu não ganhei dinheiro nenhum com isso, ganhei foi a nota
pra passar de ano (risos). Mas eu gostei de saber que eu tenho essa possibilidade, se
eu quiser ser artista eu posso ser. Porque antes eu achava que não podia porque eu
não sei pintar, mas eu agora sei que se eu quiser eu posso ser. (Leandro Oliveira.
Entrevistado em: 28 set. 2014)
336

Um dos resultados mais interessantes obtidos com esse projeto é o fato dos envolvidos
terem percebido que a arte contemporânea está bem perto de nós, que há inúmeras
possibilidades de criação e uma grande variedade de materiais a serem explorados e que a arte
não pode ser limitada a apenas duas linguagens.

Outro ponto interessante, que vale ser ressaltado, é a mudança da postura dos discentes em
relação à disciplina de Artes. Eles foram capazes de perceber o quanto a arte pode contribuir
para seu enriquecimento cultural e formação acadêmica. Não são raras sugestões para a
realização de trabalhos que contemples seus fazeres artísticos. Percebemos, a partir daí, que a
disciplina passou a ser valorizada enquanto componente curricular importante.

5. Metodologia

Ensinar o aluno do Ensino Médio sobre os períodos históricos e movimentos artísticos


contemporâneos é muito importante, mas não foi o objetivo principal dessa atividade, essas
informações, serviram para enriquecer e dar maior bagagem e qualidade ao nosso trabalho.

O desenvolvimento da composição do aluno foi baseado nas obras apresentadas, ou seja,


houve interferência do material sugerido com desenhos e idéias

Foi interessante desenvolver essa atividade em grupo, permitindo a integração e interação


entre o grupo e também com a arte Contemporânea. A metodologia que norteou nosso
trabalho foi a Proposta Triangular de Ana Mae Barbosa pautada em três aspectos: Apreciação
estética, contextualização histórica e fazer artístico. Seguimos esses passos durante todo o
desenrolar de nossa proposta. As obras foram projetadas por um aparelho do tipo data-show,
em primeiro momento, e em seguida a contextualização foi feita. Posteriormente, após a
apreciação visual de todos os alunos, partimos para a prática. Essa escolha se deu pela
simplicidade da temática e pela aproximação com o cotidiano deles.

Vejamos a aplicação do projeto passo a passo:

1° passo = Contextualizar a prática da Arte Postal no Brasil e no Mundo. Para esta aula
utilizamos o data-show da escola, que projetou algumas obras pontuais para complementar
essa contextualização

2° passo = Apreciamos obras de artistas variados; discutimos com os alunos sobre as cores, os
sentimentos e as mensagens expressas nas obras – Apreciação Estética.
337

3° passo = Discutimos a origem da Tragédia na Grécia antiga e proporcionamos o contato


com histórias clássicas escritas por autores como Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Para isso,
dividimos a turma em grupos e cada um apresentou uma história resumida.

4° Passo = Partimos para as confecções dos trabalhos que tiveram como eixo norteador a
tragédia. Foi pedido que os alunos expressassem suas visões pessoais sobre as tragédias do
mundo.

5º Passo = Foi necessário organizar as trocas dos trabalhos, como numa espécie de rodízio,
com três rodadas (cada trabalho passou pelas mãos de três alunos diferentes, antes de voltar
para as mãos do aluno/remetente).

6º Passo = Criamos uma exposição na escola para a apreciação de todos – culminância do


projeto.

6. Conclusão

Com a realização deste projeto tivemos mais uma demonstração de que a produção de
conhecimentos como atividade docente não significa que o professor realize a soma das
atividades de ensino e fazer artístico, mas possibilita pensar o ensino como processo
permanente de investigação e de descobertas individuais e coletivas.

Os alunos puderam construir um material que permitiu o desenvolvimento da


criatividade, a relação com fatos do cotidiano (como quando desenharam sobre bulimia,
política), ou seja, se tornaram sujeitos na busca pelo conhecimento e pela expressividade
artística. Essa experiência possibilitou uma reflexão a respeito das práticas do ensino de Arte
no cotidiano, demonstrando que muitas vezes o professor contempla certos conteúdos em
detrimento de outros. Dessa forma, a construção do conhecimento e da criatividade se dá de
forma limitada. Para que este processo seja efetivo é necessário que o aluno incorpore
conhecimentos variados, de forma ativa, compreensiva e construtiva.

É necessário que o aluno tenha liberdade de criar, de se expressar e que receba atenção
após suas criações. Esta atividade com arte postal não foi apenas um passa-tempo, foi muito
mais do que isso. Significou a realidade do aluno, a expressividade de seu mundo. Essa
experiência demonstrou que o professor deve ser aquele que valoriza as produções de seus
alunos, não importando sua faixa etária. Também é preciso que ele (o aluno) seja estimulado
e que as aulas tenham um caráter democrático, permitindo a expressividade e esclarecendo as
338

curiosidades dos alunos. A metodologia Triangular de Ana Mae Barbosa é a melhor escolha
para alcançar esse conhecimento significativo, essa liberdade criativa.

Além disso, destacamos que o trabalho com projetos deve ser uma prática no cotidiano
escolar. Existem várias formas de explorar essa forma de trabalho e muitas são as
gratificações.

Esse tipo de trabalho também rompe com a idéia de escola e ensino como meros
reprodutores de saberes, idéias e valores produzidos em outras esferas. A pedagogia de
projetos possibilita pensar o saber como algo que está sempre em construção, que tem
relações com o presente, sem descartar as teorias e conhecimentos produzidos. O professor
valoriza e articula o trabalho pedagógico com os múltiplos saberes produzidos e reconcilia
ação e conhecimento. Assim, o aluno deixa de ser um sujeito passivo e passa a atuar
diretamente na construção do conhecimento; pois os projetos implicam a busca, o contato
com materiais diversos, democratizando o acesso a arte. O projeto de Arte propicia a
educação para a cidadania. Dessa forma podemos nos livrar da lógica e especulação do
mercado e dos produtores de materiais didáticos descartáveis. Através dele podemos
despertar o desejo, o gosto, a imaginação e a curiosidade pelo desenvolvimento do saber
artístico.
339

Referências

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2001.

BRUSCKY, Paulo. Arte Correio e a grande rede: hoje, a arte é este comunicado. In: COTRIM,
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COLA, César Pereira.Prática de Ensino I. Vitória: UFES, Núcleo de Educação Aberta e a Distância,
2011.
340

Litografia com nanquim: novas possibilidades sobre a pedra calcária


litográfica.
Thiago Arruda (PPGA-UFES)

Resumo: O estudo apresentado faz parte de uma investigação sobre técnicas e materiais que
desenvolvo como parte do programa de estudos do laboratório de gravura na Universidade
Federal do Espírito Santo, mais especificamente na área de concentração de litografia. O
estudo converge para uma investigação que consiste em analisar alternativas e a viabilidade
para a prática e o ensino da litografia, em consonância com o estudo e esforços voltados para
a gravura de baixa-toxicidade.

Palavra chave: litografia, gravura, atóxica, nanquim, pedra calcária.

Lithography China ink: new possibilities of limestone lithographic

Abstract: The present study is part of an investigation into techniques and materials that
develop as part of the engraving laboratory studies program at the Federal University of
Espirito Santo, specifically in lithography concentration area. The study converges to an
investigation that consists in analyzing alternatives and the viability for the practice and
teaching of lithography, in line with the researches and focused efforts on to the engravings of
low toxicity.

Keywords: lithography, etching, atoxic, China ink, limestone.

Esse relato parte da investigação que desenvolvo na Universidade Federal do Espírito


Santo (UFES), no Centro de Artes mais especificamente no laboratório de litografia desde
341

meados do ano de 2013. O espaço dedicado exclusivamente para pesquisa e produção da


litografia, aproxima um dialogo entre a pesquisa acadêmica e a produção, investigação e
poética pessoal. Nesse ambiente busquei por intermédio de pesquisa e experimentação,
dirigindo a atenção do estudo, para as práticas que tangem a gravura atóxica ou de baixa
toxicidade. Ao mesmo tempo, buscava uma forma que proporcionasse de forma ampla, uma
prática mais acessível para trabalhar o desenho na litografia, para tanto investigando a
viabilidade de materiais alternativos para sua prática. A exemplo do cenário local que carece
de um mercado próprio e especializado não só para as artes gráficas mas para praticamente
todas as micro esferas das artes plásticas. Especialmente podemos citar o caso da litografia,
aonde encontramos uma serie de dificuldade e precariedade no mercado nacional em
disponibilizar todo tipo de produtos apropriados para sua prática.

Ainda, a investigação objetivou construir uma alternativa que pudesse contribuir para
o ensino da disciplina, assim como fortalecer a ações e presença dos grupos de pesquisa que
coexiste naquele ambiente ao tempo que fomenta novas possibilidades, o interesse pelo estudo
e pesquisa artística aliada a prática e acesso dentro da Universidade.

A pesquisa apresentada surge por intermédio da ação de dois grupos distintos que
atuam dentro do Departamento de Artes do Centro de Artes da Universidade Federal do
Espírito Santo, o LABGRAV e o Grupo Célula de Gravura. Os grupos compartilham de um
dialogo muito próximo assim como de membros envolvidos. Contudo, possuem suas nuanças.
O LABGRAV é um grupo coordenado pelo professor Fernando Gomez, um dos professores
que ligado às artes gráficas dentro do Departamento, o grupo consistes em alunos de
graduação, pós-graduação, ex-alunos e pessoas interessadas na vivencia dos processos
artístico de reprodutibilidade. O grupo coordenado pelo professor pesquisa as diferentes áreas
da gravura, desde materiais a pesquisa imagética individual, do mesmo modo, com interesse
especial pelos processos alternativos e de baixa toxicidade. Com bons resultados, o
LABGRAV conta com temas de monografias voltados a essas pesquisas bem como comporta
publicações e exposições nacionais e internacionais diversas.

Já o Grupo Célula de Gravura, é um grupo formado no final do ano de 2012, por


ocasião de um curso de especialização ministrado pelo artista plástico Edgar Fonseca. O
grupo converge para estudantes de graduação, pós-graduação e ex-alunos, contudo o Célula
de Gravura não integra um projeto oficializado na Universidade e tem sua pesquisa voltado
exclusivamente para a prática e pesquisa da litografia, o Grupo tem como orientadora ‘eleita’
a professora da disciplina Nelma Pezzin. O Célula de Gravura em seu pouco tempo de
342

atividade já participou consecutivamente dos principais eventos das artes gráficas do Brasil, o
SP Estampa, assim como de exposições locais e internacionais. Esse estudo parte do cenário
acima descrito como fontes, como membro de ambos os grupos entendo a contribuição
integral das duas frentes na construção dessa pesquisa. O ateliê de litografia é o único espaço
no Estado do Espírito Santo que oferece condições, bem como maquinário e instrumentos
voltados para a produção litográfica, utilizando a pedra calcária.

Cada membro do Grupo Célula de Gravura inclina sua pesquisa imagética pessoal,
aliado a pesquisa e observação dos processos gerados pela litografia. O domínio da técnica
incorpora um desafio vivenciado durante a produção de cada imagem, o aprendizado
individual soma-se a uma rede de troca de informações, tão valiosa ao gravurista. O objetivo
do grupo foca-se em, manter o ateliê de litografia produzindo e gerando novos artistas
gráficos, proporcionar uma imersão na litografia a fim de gerar uma produção de qualidade e
excelência, fazendo desse ateliê uma referencia nacional. Ao tempo de oferecer a comunidade
acadêmica, por meios das pesquisas realizadas nesse espaço, novas possibilidades de
produção dentro do ateliê, bem como técnicas alternativas que colaborem no ensino formal e
informal na arte educação.

Em um breve panorama histórico da litografia: A litografia surgiu em 1796, em


Munique, pelo checo Alois Senefelder, o processo sem duvida revolucionou a sociedade da
época, bem como as artes gráficas. Caracterizava-se por uma tecnologia mais rápida, barata
e mais eficiente do que as outras técnicas gráficas que haviam se desenvolvido até então. A
litografia origina toda a imprensa moderna do século XX. A invenção abriu novos
caminhos para a produção artística como significa também um enorme passo na evolução
da impressão de caráter comercial.

O processo se define basicamente, por uma reação química, baseia-se na repulsa recíproca
da gordura e da água, sobre a superfície da pedra calcária preparada que, posteriormente é
desenha-se com instrumentos como tuche, lápis e crayons litográficos todos tem em sua
composição a gordura como principio ativo. Observamos ainda que, desde o
desenvolvimento da técnica ao primeiro tratado publicado pelo próprio Senefelder em 1818
que em resumo consiste em: As pedras planas eram desenhadas ou escritas com uma tinta
pastosa composta por cera, sabão e negro de fumo, após o que as gravava com uma solução
nítrica, responsável por “queimar”, leia-se fixar, a gordura que se configura como sendo a
imagem desenhada, na pedra calcária; o ácido não atacava as partes escritas, que estavam
343

protegidas pela tinta, mas somente as zonas a descoberto; e; deste modo obtinha um ligeiro
alto relevo, que entintava com um rolo de borracha maciço e de grande dureza, procurando
não sujar as zonas não impressoras, após o que procedia à impressão.

Desde então o processo litográfico mantem seus mesmos atributos básicos, do


processo de gravação a reprodução da imagem final. Atentamos ainda que, ao fixamos uma
linha cronológica da litografia às novas tecnologias, a exemplo das novas tecnologias que
surgiram a parti do processo litográfico encontraremos propostas desenvolvidas pelo
próprio Senefelder, que progrediu em diferentes suportes como chapas metálicas, a
exemplo do offset. A litografia contemporânea já parte para suportes como a folha de
polímeros, além de métodos alternativos que vem sendo desenvolvidos e de baixo curso
com a litografia de cozinha. Miramos assim, um desdobramento desse cosmo mutável,
porém, que permanecer fundamentados nas especificardes e singularidades de sua gênese.

No cenário da Arte Contemporâneo, a gravura destaca-se como uma forma de arte


multifacetada, na qual coexiste uma série de tecnologias antigas e novas, que se
complementam e que paralelamente, a revisitação ou resgate de técnicas já ultrapassadas da
gravura1, constroem novos diálogos. Essa alternância, as micronarrativas entre passado e
presente, é capaz de produzir novas formas e possibilidades dentro de um universo singular,
numa época de reprodução em série, a gravura resiste como processo artístico em meio a
novas mídias de reprodução, porém, como uma ação controlada e poética.

Para melhor entender a investigação exposta aqui, precisamos apurar como, de um


modo bem simples, se estabelece o processo litográfico: a litografia entendida como uma
plano gravura2, que utiliza a pedra calcária litográfica3 como matriz, que processa as
narrativas até a geração dos múltiplos, na qual , através de um processo físico-químicos são
instigados propriedades de atração e repulsão entre nesse esquema entre dois elementos: a
água e a gordura. Vale a pena citar que, o processo litográfico contemporâneo converge para
novos materiais, entretanto, não negando o emprego das pedras calcárias, a exemplo dessa
pesquisa, a litografia contemporânea atóxica posiciona-se para a utilização da folha de
polímero pré-emulsionada confeccionadas através do processo industrial, como matriz.

1 Alvarez, Fernando Gómez. Gravura: uma introdução. Vitória: NEAD/UFES, 2011. Pág. 13.
2 COSTELLA, Antônio. Introdução à gravura e à sua história. São Paulo: ed. Mantiqueira; 1984. Pág. 91.
3 Também conhecidas como pedra calcária, pedra litográfica, pedra calcária litográfica, pedra calcária Baviera.
344

Embora acolhamos esses novos meios, atentamos para o fato que, no Brasil não
temos no mercado nacional nenhuma empresa especializada para venda desse material, nos
distanciando desse modo dessas novas tendências e produtos, o que vem a afirmar mais a
importância desse tipo de pesquisa iniciada dentro de espaços académicos, que voltam para a
comunidade estudantil.

Assim, nesse sistema plural que desenvolvi minha pesquisa, intercambiando


materiais e técnicas, partindo de uma necessidade poética inicial, e do mesmo modo,
desenvolvendo alternativas e adaptabilidades, tão precioso aos gravuristas, foi encontrado
potencialidades para um novo processo de gravação da imagem na pedra calcária litográfica.
Na pesquisa desenvolvida empregamos um tipo especifico de tinta nanquim4, disponível para
venda no mercado nacional, e de acesso relativamente fácil. O beneficiamento desse material
para a gravura consiste na sua composição química, esse possui uma resina acrílica, atóxica,
que, originalmente foi desenvolvido para se fixa a folha de poliéster.

Remanejando a natureza dos seus meios, de forma á potencializar a resina acrílica


empregada nesse material, tornando-o mais consistente. Posteriormente esse foi submetido a
testes consecutivos, empregando sobre a pedra calcária litográfica, devidamente preparada, tal
como procede, encaramos um processo laborioso aonde obtivemos um resultado positivo: a
imagem e sua constituição genética de linhas, hachuras, pontos e mancha consegui ser
gravada na pedra. Para validar o processo de gravação da imagem optamos por duas frentes
de fixagem5 o primeiro que vamos classificar como direto, aonde consideramos o processo de
gravação projetando o nanquim como sendo material gorduroso, típico da litografia e o
processo indireto no qual a imagem é construída com alguma substância não gordurosa, a
exemplo da técnica de transferência, aonde é necessário o processo de viragem 6. Foi
observado que em ambos os casos o nanquim emulsionado funcionou perfeitamente.

Tecnicamente a imagem obteve um grau de acabamento exemplar, se comportando


melhor do que o esperado. Ainda observamos uma vantagem, ante os meios tradicionais: A
gravação com nanquim não é preciso, mas recomendável, a utilização do pó de breu que é

4 Nesse estudo foi utilizada a tinta Nankin profissional, modelo TNF – 20, da marca Trident.
5O termo fixagem é usado na litografia para designar o processo de gravação química da imagem na matriz, no
caso a pedra calcaria. No processo utilizamos goma arábica na proporção 75% para 25% de goma e água e
ácido nítrico(PA) na proporção aritmética de 2 à 6 gotas para 15 ml.
6Viragem, nome técnico que é utilizado para descrever o processo que substituí por meio de uma pré-aplicação
de solução de ácido nítrico e goma arábica, o material inerte(toner ou no caso nanquim) por material gorduroso.
345

uma substancia (resina) que fica inerte no ar e é extremamente toxica, bem como do talco
industrial, que pode causar irritação nas vias aéreas superiores.

No que tange o processo de reprodução da imagem final, gravada, concluímos que


atende a todas as expectativas, somente a técnica da aguada que se mostrou um pouco indócil.
O processo usando nanquim possibilita o emprego de diferentes ferramentas como bico de
pena de forma bem fluida, pulverização, pincelada, pontilhismo, texturas, etc. Do mesmo
modo, consideramos que esteticamente as linhas possuem um preto profundo e de diferentes
calibres, que seria muito difícil de obter um resultado semelhante no processo utilizando os
materiais com base gordurosa.

Em ressalva aos resultados apresentados, indicamos que o processo de viragem seja


feito com cautela utilizando, inicialmente, um solvente mais forte7. Já o processo de gravação,
eventualmente mexer o nanquim para que sua emulsão não seja sedimentada no fundo do
recipiente, também é salutar trabalhar com uma folhar de papel e um pequeno copo com água
para prevenir eventuais entupimentos do pico de pena no processo de produção da imagem. A
viragem deve ser feita com um intervalo de tempo mínimo de 4 horas, apenar da composição
consistente do nanquim, o contato com a goma arábica, que garante a fixação, devido a sua
característica líquida pode ativar o nanquim é dificultar o processo de viragem. Ainda vale se
atentar que essas recomendações têm suas variantes, desde o tipo de composição da pedra
calcária (entre sua proporção de calcário e ferro) bem como clima, e tack da tinta, ente outros.

Dentre os meios utilizados, a investigação entende que a litografia com nanquim


proporciona, como possibilidade expressiva e poética, um desenho mais firme e encorpado.
Diferentemente do tuche a litografia com nanquim é capaz de produzir linhas de um negro
intenso e consistente. Sobre a técnica de raspagem o produto responde muito bem, não
oferecendo nenhum tipo de entreva.

A etapa de impressão não apresentou nenhum entrave, em verdade foi visto que a
litografia com nanquim se administra mais facilmente o processo de impressão, as primeiras
tentativas que normalmente são consideradas testes, foram impressas diretamente como
provas de impressão, o resultado notoriamente, se apresenta como imagem pronta para a
impressão da série. A espessura da pedra deve ser de pelo menos 5 centímetros, para evitar
rachaduras. O papel(ou outro material) é colocado sobre a pedra, de maneira alinhada. Usa-se

7 Sugerimos usar o Thinner inicialmente em seguida a água rás, mas previnamos que esse material sugere uma
toxicidade maior e seu uso dependerá da quantidade de nanquim utilizado.
346

uma prensa manual própria para a litografia, à pedra é colocada sobre a superfície plana da
prensa que desliza sob a pressão de uma trave chamada ratora. Gira-se a manivela com
cuidado para que a ratora não ultrapasse o limite da pedra, causando um acidente, devido a
forte pressão. O desenho será impresso de maneira espelhada no papel, assim como nas outras
modalidades da gravura. A litografia permite tirar muitas cópias da mesma matriz. Depois de
tiradas as cópias desejadas, a pedra está pronta para ser limpa e reutilizada.

Recomendamos que antes de se eliminar o desenho por meio da granitagem8, a


imagem deve ser limpa com solvente, retirando todo o resquício de tinta retido das
entintagens que possa ter ficado preso a pedra. Esse processo é importante, pois, facilita a
limpeza da pedra e diminui consideravelmente a possibilidade do processo gerar “fantasmas”
na pedra.

Analisando economicamente, há uma queda de acentuada dos valores, em


contrapartida ao tuche. O nanquim tem um valor 89% menor do que esse material, e que
também não temos ocorrência com facilidade em casas especializadas do ramo. Do mesmo
modo, também foi analisada a efemeridade em conjunto com os materiais e suplemento da
litografia clássica objetivou confrontar e promoves uma integração desses materiais na
composição imagética na litográfica. Satisfatoriamente constatamos que os processos não se
anulam, mas dialogam de forma harmonia respeitando suas propriedade e singularidades. Para
tanto, foi empregado o nanquim emulsionado bem como o material especifico para produção
litográfica de base gordurosa na mesma matriz. No teste foi utilizada uma pedra litográfica
granitada com os respectivos grãos 60, 80, 120, 180 e 220, optou pela granulometria do pós
de carborundum.

Como último processo a ser testado com a litografia de nanquim, apuramos a técnica
de maneira negra, nome emprestado da gravura em metal, aonde se trabalha a imagem do
negativo (imagem completamente negra) para o positivo, ou seja, extraindo matéria da pedra,
com alguma ferramenta capaz de produzir cortes, linhas de modo a descamar a pedra até
conseguir a imagem desejada. A imagem comportou-se do mesmo modo que a linha do
desenho, um negro intenso e chapado.

A utilização da tinta nanquim com base emulsionada9 como processo na produção da


litografia tradicional10, a pesquisa consegui constitui um diálogo entre os campos da

8
Processo no qual se apaga a imagem em uma pedra por meio da fricção entre a pedra calcária e pó abrasivo.
Assim preparando a pedra para ser reutilizada.
9 Copolímero Acrílico em Emulsão, faixa de concentração 12% - 16%.
347

experiência e das poéticas no processo de construção de um discurso das artes plástica, tendo
na utilização desse material uma potencialidade e alternativa para a construção da imagem
sobre a pedra calcária. Sobretudo incorpora a experiências e a práticas, dentro de um processo
de investigação de materiais suas propriedades e particularidades realizadas dentro da
Universidade, esse estudo vem a fortalecer a importância e valor da pesquisa dentro dessa
instituição, expande o alcance da gravura como potencia artística.

Em uma avaliação mais intimista com os processos, podemos definir algumas


diferenças dentro das singularidades de cada meio: a litografia usando a base gordurosa e o
processo desenvolvido com a litografia de nanquim. A litografia clássica, usando material de
base gordurosa, proporciona uma imagem que oferece uma polissemia de texturas e
profundidades muito ricas, ao passo que não foi possível reproduzir esse mesmo universo
utilizando o nanquim emulsionado. Em contra partida, o nanquim oferece a possibilidade de
trabalhar os aspectos fundamentais do desenho com grande proficiência: o ponto, a linha e a
mancha. Aspectos que mesmo com grande aparato técnico dificilmente seria capaz de
reproduzir os resultados alcançados.

Como parte do processo de pesquisa, desenvolvi uma poética própria na composição


das imagens que se valeram de uma poética particular, aonde se distingue nitidamente os
meios às nuanças de criação da imagem (figura 01).

10 Esse estudo compreenderá a litografia e/ou a litografia tradicional, como sendo uma plano gravura,
entendendo que suas características e aspectos, os quais se utiliza a pedra calcaria como matriz, aonde se
trabalha fim de gerar um trabalho gráfico/artístico capaz de gerar múltiplos.
348

Figura 01: Pedra litográfica calcária, granitagem com grão de carborundum 200°, desenho com nanquim
emulsionado, tiragem posterior 10 cópias. Observa-se linhas, pontos e manchas, anos 2014. Arquivo pessoal.

Pensar a gravura no, contexto artístico, demanda o enfrentamento da ambivalência de


sua gênese entre nós, nos termos a tradição moderna enraizada nas nossas práticas. Buscar
ampliar as vivências e possibilidades dessa linguagem configura-se como um exercício diário
e empolgante de extremos. Confortar sua trajetória histórica situa-se ao interesse em firmar-se
no campo artístico como uma linguagem cuja especificidade ancora-se na artesania autoral de
matrizes, reforçando sua identidade como instrumento de criação artística parte de uma
intimidade e cumplicidade dos meios. Em outra ponta, emergem experiências e práticas que
se ajustam na reconsideração conceitual de seus fins e meios.

O processo é de mão dupla, a expansão estética irradiasse potencializasse; em outra


reflexão, confiamos que essa investigação possa favorecer diretamente o ensino dessa
instituição. O estudo apresentado aqui é inédito, a revisão bibliográfica não encontrou
nenhuma passagem que compete com o estudo apresentado. Ao mesmo tempo, ao apresentar
resultados positivos que confere a viabilidade de utilização de um material de menor curto e
de acesso simplificado.
349

Esse relato também entende o processo de experiência como possibilidades nos


territórios de ensino em especial, os territórios de ensino/aprendizagem e de formação (ateliês
e escolas de arte), polos de irradiação, nos quais se potencializa a gravura em sua vontade
experimental e ou em sua tradição. Da mesma forma, valoriza a protocooperação entre os
nichos de formação e pesquisa, sejam instituições, grupos ou agremiações.

Esse artigo reserva um caráter inédito no seu cerne, ao mesmo tempo em que busca
explorar novas possibilidades dentro de uma linguagem estética já consolidada e que dentro
das artes gráficas, não se acha estudos referentes a esse processo. Ainda, projetamos nossos
esforços de modo que essa pesquisa seja capaz de instigar a reflexão sobre os territórios e as
zonas autônomas da gravura, fomentando sua prática e pensamento sobre seus processos
singularidades e história, na construção de um frescor artístico, como ponto de partida e meio
no processo plástico. Estabelecendo diálogos entre as zonas de pesquisa, produção e criação.
350

Referência Bibliográfica

Alvarez, Fernando Gómez. Gravura: uma introdução. Vitória: NEAD/UFES, 2011.

COSTELLA, Antônio. Introdução à gravura e à sua história. São Paulo: ed. Mantiqueira;
1984.

FERREIRA, Orlando da Costa. Imagem e letra. Introdução a bibliologia brasileira. A


imagem gravada. São Paulo: Edusp, 1994.

Site:

< http://tamarind.unm.edu/>, acessado em 29 de abril de2015, as 23h12min.


351

Tomie Ohtake: simplesmente pintura.


Ricardo José de Campos (PPGA-UFES)

RESUMO

Este artigo aborda a obra de Tomie Ohtake (1913-2015), limitando-se ao conjunto de


suas pinturas a partir de 1959 até ao final década seguinte. Para tanto, recorre ao crítico de
arte Paulo Herkenhoff, a fenomenologia de Merleau-Ponty, bem como a outros teóricos na
medida em que se relacionam com a arte abstrata em seu contexto histórico, nos fornecendo
uma melhor e mais abrangente visualização de sua obra.
Palavras-chave: Tomie Ohtake. Pintura. Olhos vendados. Expressão.

ABSTRACT

This paper discusses the work of Tomie Ohtake (1913-2015), limited to the set of his
paintings from 1959 to the end of the next decade. For both, refers to the art critic Paulo
Herkenhoff, the phenomenology of Merleau-Ponty as well as other theoretical insofar as they
relate to abstract art in its historical context, in providing a better and more comprehensive
view of his work.

Keywords: Tomie Ohtake. Painting. Blindfolded. Expression.

Introdução

Falar de pintura sobre o “velho” suporte da tela, executada com pincel e tinta,
figurativa ou abstrata, pode parecer hoje um retrocesso a paradigmas da arte ultrapassados,
tendo já desde a década de 1960, virado a página do modernismo chegando até a arte
contemporânea. Mas teriam se esgotado todas as formas de expressão deste meio na era pós-
moderna, como poderíamos talvez denominar nosso tempo histórico presente? Tomie Ohtake,
no entanto, seguiu pintando sobre tela, o mesmo suporte, durante mais de meio século, desde
1952 até 2015, expressando sua arte sem perda de vitalidade e sempre em pesquisa contínua.

Tentar abordar toda a obra da artista classificando-a ou separando-a por blocos de


períodos distintos é um procedimento que certamente não faria jus a todas as nuances,
interconecções e sutilezas de seu universo pessoal, como também incluí-la em algum “ismo”
não iria responder ou mesmo resolver a algumas questões. Desta feita, neste artigo
procederemos a analise de alguns poucos aspectos de sua obra, detendo-nos apenas a
produção pictórica do período que começa com a virada da década de cinqüenta, indo até final
352

dos anos sessenta, selecionando aqui a imagem de duas telas deste conjunto, no intuito de
desvendar linguagens, conceitos, pistas que nos revelem ao menos parte da criação de Tomie.

Percorrendo os espaços dos dois salões no segundo piso do Instituto que leva seu
nome, onde aconteceu à exposição “Tomie Ohtake - Gesto e Razão Geométrica” (novembro
de 2013 a fevereiro 2014) encontramos uma significativa parte do extenso universo pessoal da
artista, em sua maior parte pinturas. Tomie parece estar acima de qualquer definição, difícil
seria classificá-la como parte de alguma escola específica, limitação desnecessária, mesmo
porque sempre se manteve a parte e desconfortável diante destas bandeiras. Críticos seguem
tentado explicá-la elaborando teses e conceitos que nos apontam sinais sobre, quem sabe,
versos de sua poesia visual, o que já nos traz a melhor das traduções.

Esta exposição comemorativa do seu centenário realizada em São Paulo reuniu cerca
de 80 trabalhos, pinturas em sua maioria, e teve como curador Paulo Herkenhoff, profundo
estudioso de Ohtake, sobre cuja obra vem construindo um discurso coerente e sólido onde
perscruta com propriedade e profundidade sua complexa e singular arte.

Tendo a oportunidade de visitarmos a mostra, em dezembro de 2013, voltando nosso


olhar para sua produção pictórica, e numa tentativa frustrada de estabelecer alguns parâmetros
para classificá-la, percebemos com clareza que no conjunto da obra, sua linguagem passa por
uma livre transformação após curto período inicial figurativo, que transita do abstracionismo
geométrico ao informalismo, ou abstracionismo lírico, passando a seguir pelas “pinturas
cegas”, voltando a rumar para uma geometria mais rígida, partindo então para formas
circulares com influências do enzo, o circulo imperfeito no zen budismo, chegando às
espacialidades cósmicas, e finalmente ao monocromatismo dos seus últimos trabalhos.

Poucos foram os comentários da artista a respeito de sua própria obra, comedida em


sua fala, algumas muito reveladoras, como nos apresentam vídeos e entrevistas a alguns de
nossos críticos de arte, cineastas, e jornalistas e estudiosos, de forma que na nossa experiência
direta com suas criações, nos colocamos frente a uma obra literalmente sem título, como a
mesma o é na realidade desde o início, fato este que esta em total consonância com a proposta
da artista. Sua economia plástica e poder de síntese são características que nos chama de
pronto a atenção, a pureza e o refinamento da composição nos provocam uma vontade de
desvelar algo mais profundo, uma obra livre de ruídos imagéticos talvez, livre do
desnecessário e do dispensável.
353

Olhos vendados

As pinturas de uma série realizada entre 1959 e 1962, cujo total é estimado em cerca
de quarenta exemplares, tornaram-se uma singularidade na história da arte brasileira. Embora
até a nossa década não houvesse sido feita nenhuma mostra que reunisse este conjunto
específico, apenas recentemente em 2011 foi apresentada pela primeira vez no Instituto Tomie
Ohtake, a exposição individual com o título de “Pinturas cegas”, termo cunhado pelo crítico e
curador da mesma, Paulo Herkenhoff. Na ocasião de sua reedição no ano seguinte, na
Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, foi elaborado um catálogo com texto bastante
aprofundado pelo mesmo crítico, sendo 30 telas desta série apresentadas ao grande público.

Neste ensaio da obra de Ohtake denominado “Tomie Ohtake: Pinturas cegas ou o osso
do olho (o não ver na história da arte brasileira)”, o crítico estrutura a sua discussão de modo a
investigar diferentes conceitos e possibilidades de leituras, abordagens que contextualizam
sua pintura com o presente. Cada tópico proposto por Herkenhoff certamente abre caminhos
para que estas questões possam ser ainda mais aprofundadas.

Trabalhar sob o estado de não ver, sob a condição de cegueira, foi esta a proposta e o
método ao qual se submeteu a artista, pois as pinturas foram deliberadamente realizadas com
os olhos cobertos por uma venda. Para Denis Diderot, citado pelo crítico, ver não é
necessariamente compreender o mundo, em se tratando de percepção visual. Já em Santo
Agostinho encontramos o conceito de que o olhar é ludibriado e entrega-se ao ilusório sem
mesmo perceber que o verdadeiro esta além deste olhar, é o inacessível, por isso a visão é um
sentido extremamente frágil no intento de conhecer. A cegueira auto-imposta de Ohtake é
uma atitude experimental do fazer e do compreender. Uma pintura cega, porém, pode carregar
consigo vestígios da ação do chamado “inconsciente ótico” do pintor, o que no caso
comprometeria a experiência, conforme cita Rosalind Krauss, salvo no caso de o mesmo se
tratar de um cego de nascença. Contudo, em se tratando de Tomie, suas pinturas (Figura 1) ao
refletirem sua experiência pessoal, transmitem a nossa percepção que seu “inconsciente ótico”
é diferenciado por ser despojado e não dependente de formas, conforme relata a artista:
“Nasci numa casa abstrata. O ambiente era bem limpo, bem simples, somente um objeto e
uma flor. Esta atmosfera estimulava o pensamento abstrato, a experiência profunda”
(HERKENHOFF, 2012, p. 61).
354

Figura 1- Sem Título 1960 - óleo sobre tela 74,7 x 100 cm, coleção Gilberto Chateaubriand- MAM RJ.
Fonte: HERKENHOFF, 2012, p. 19.

Tomie vai entrar em contato com a filosofia zen onde busca respostas, não como
argumento teórico para elaboração de algum manifesto textual, mas como orientação do agir e
do fazer, fixando “seu foco na relação entre valores e procedimentos zens e a constituição do
signo pictórico em seu processo de constituição da imagem” (HERKENHOFF, 2012, p. 77).
Conforme nos relata o crítico, para tanto, ela lerá intensamente dos clássicos da literatura zen
a Daisetz Teitaro Suzuki, o qual teve um papel fundamental na disseminação desta filosofia
no ocidente. E curiosamente, a grande influência e incentivo neste projeto foi Mario Pedrosa,
que então retornara de um longo período no Japão. A utilização das vendas nos olhos durante
o fazer da sua pintura teve assim “o sentido de realizar uma ação pictórica no limite da
percepção”, como também a intenção de pintar sem “demarcar território” nem mesmo
produzir qualquer tipo de figuração que remeta a algum significado, e ainda na realização da
experiência, a consciência do fenômeno da passagem de tempo, atestando assim uma atitude
zen.

O fator tempo estará sempre muito presente em sua arte, já que “[...] O quadro não é
uma coisa, mas um momento; podia ser antes, podia ser depois”, disse a artista, e como nos
esclarece o crítico seu imperativo é o tempo, pois Tomie “se propõe à pura transiência do ato
para além de seu registro físico na superfície”, o seu quadro “é só campo e continuum” e “se
há necessariamente um ponto de partida da pintura, no entanto não existe um ponto de
chegada” (HERKENHOFF, 2012, p. 77).
355

“Eu nunca pintei com o emocional. O gesto era bem mais calmo, caía sempre sobre a
tela e seguia uma direção que era mais mental”, nos revela a artista. Este distanciamento
emocional, este certo não envolvimento característico com a ação, como também a escolha
pelo lado mais mental é um dado relevante e significativo para a leitura de sua obra, na qual o
vazio também se faz presente, não como “ausência de matéria pictórica”, como nos esclarece
o crítico, mas através deste “não olhar absoluto”. A valorização do vazio como parte da obra é
algo que se pode perceber em suas pinturas, elemento zen inseparável (HERKENHOFF,
2012, p. 77).

A discussão do crítico que se segue, aprofunda mais a questão quando busca uma
referência no filósofo Merleau-Ponty em O olho e o espírito. Nesta obra, escrita em 1960, o
filósofo volta a explorar o fenômeno da visão e sua relação com a pintura, analisando o caso
de Cézanne. Merleau-Ponty (2004, p. 34) esclarece que a visão não é de certo modo do
“pensamento ou da presença em si: é um meio que me é dado estar ausente de mim mesmo,
de assistir de dentro a fissão do Ser, no fim do qual eu me fecho sobre mim próprio”. Tomie
faz esta experiência como um meio propício para deixar fluir sua pintura, livre das obstruções
do olhar, da ilusão do visível que a tira de seu pensamento interior, de poder estar presente em
si mesma.

Instrumento que se move por si mesmo, meio que inventa seus fins, o olho é
aquilo que foi sensibilizado por um certo impacto do mundo e o restitui ao
visível pelos traços da mão. Não importa a civilização em que surja, e as
crenças, os motivos, os pensamentos, as cerimônias que a envolvam, e ainda
que pareça voltada para outra coisa, de Lascaux até hoje, pura ou impura,
figurativa ou não, a pintura jamais celebra outro enigma senão o da
visibilidade (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 23).

A venda, no caso de Tomie provoca também uma sensação desconcertante, onde o


referencial da trajetória do pincel sobre a tela é rompido em algum momento, fazendo com
que a apreensão do todo da composição em andamento fique comprometida, provocando um
descontrole de referência, desta feita provoca justamente a não interferência da razão,
quebrando o processo do projetar e do planejar. Não há então um plano a priori, a não ser a
definição prévia da paleta de cores a ser usada em cada uma das telas, de forma que o
resultado final estará condicionado a esta escolha cromática inicial.

Ao examinar a pintura de ação norte americana, Argan (2008, p. 530-531) contrapõe a


atitude de Pollock frente ao credo daquela sociedade puritana de então cuja máxima seria
“existe-se para fazer”, ao que o artista teria por verdadeiro: “faz-se para existir, é preciso fazer
a existência”. E completando sua argumentação diz que “antes da ação, não há nada: não um
356

sujeito e um objeto, não um espaço onde se mova, um tempo em que se dure”. Tomie parte do
zero para fazer e trazer a existência sua “pintura cega” e a partir de seu primeiro movimento o
tempo surge, nada existe antes de sua ação no espaço, ação esta que como nos diz o autor,
deve deixar certa margem ao acaso, porque a existência necessita exercitar liberdade em
relação à lógica e suas leis, deve saber lidar com todas as situações e eventos imprevistos da
vida. O pincel de Tomie percorre cegamente a superfície da tela num mover imaginativo que
reserva espaço à casualidade do existir, não se utiliza da razão fazendo um projeto,
semelhante à forma como o faziam os expressionistas abstratos, mas lança-se na ação do
pintar como se lança para a existência. A diferença aqui entre o movimento realizado por
Tomie e o de Pollock é uma questão de ritmo, citando novamente Argan que nos diz que “[...]
Tudo se resume em encontrar o ritmo próprio e não perdê-lo, aconteça o que acontecer”.

Sobre este proposital abandono de controle da obra, nos faz lembrar o automatismo
surrealista, onde se pretende “libertar o controle consciente sobre os procedimentos de
composição”, conforme nos esclarece Harisson (in: STANKOS, 2000, p. 146) que “para os
surrealistas, automatismo significava qualquer procedimento empregado como um meio para
evitar o controle sobre a composição [...]. Para Pollock, o automatismo era mais característica
de um dado ritmo mantido em toda a pintura”. A relação corporal da artista com a pintura
nesta fase, a espontaneidade gestual da sua pincelada e total liberdade de improvisação são
traços marcantes e dignos de nota.

Em Pollock o gesto tem ritmo acelerado e impetuoso, em Tomie parece render-se ao


fluir tranqüilo e gracioso dos movimentos, entregando-se a uma consciência sem necessidade
de controle total, a gestos dirigidos por uma mente não afetada por estados emocionais
extremos, em estado contemplativo.

O ritmo de Tomie é marcado por uma cadencia calma e contemplativa, não neurótica,
a lentidão segura de seus gestos diferencia-a muito dos padrões ocidentais (OHTAKE;
ARRUDA, 2000, p. 23), não se teatraliza em exagerados movimentos, mas encontra
correspondência a uma concentração mental equilibrada que a direciona no espaço-tempo na
construção do seu campo pictórico.

Aqui podemos nos referir a outro artista da “action painting”, no intuito de


estabelecer estas aproximações com paradigmas da pintura na arte moderna. Como sabemos,
o expressionismo abstrato foi uma denominação dada a artistas que nem sempre eram
totalmente expressionistas e nem caracteristicamente abstratos, como no caso de Barnett
357

Newman e Willem de Kooning respectivamente. Na abordagem de Argan, Mark Rothko é


analisado entre outras questões sob a ótica da ação, o que nos faz pensar neste caso em certa
sintonia rítmica com a obra de Tomie. A pintura vai sendo realizada com uma ação contínua
construída por gestos firmes, mas não dramáticos, na experiência de um tempo que passa sem
pressa, num compasso tranqüilo.

Pode parecer deslocado falar em pintura de ação, a propósito de Rothko, um


contemplativo com pupilas dilatadas, de gesto lento e leve que não deixa
traços. No entanto, nem todos os gestos são ditados pela neurose: o de
Rothko é calmo, cadenciado, uniforme, como o gesto do artesão que pinta
uma parede, dando uma, duas, três demãos até que a superfície atinja certo
grau de densidade e transparência, e onde havia um plano rígido e
impenetrável agora há uma veladura que deixa passar a luz, ou mesmo
emana-a através da cor. A ação não é projetada nem arremessada; realiza-se
por meio de uma gradual acumulação e refinamento da experiência,
enquanto ela se faz (ARGAN, 2008, p. 531).

Ao discutir a perspectiva neurofisiológica da percepção, Merleau-Ponty reflete sobre


os processos sensório-motores, enfatizando a experiência corpórea do sujeito na construção
do conhecimento: “Não é o sujeito epistemológico que efetua a síntese, é o corpo; quando sai
de sua dispersão, se ordena, se dirige por todos os meios para um termo único de seu
movimento, e quando, pelo fenômeno da sinergia, uma intenção única se concebe nele”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 312). Diferente da concepção cartesiana que afirma a
dualidade entre corpo e alma, para Merleau-Ponty (1999, p.193) “a consciência é o ser para a
coisa por intermédio do corpo”. O movimento corporal na sua explanação adquire
importância epistemológica, pois: “um movimento é apreendido quando o corpo o
compreendeu, quer dizer, quando ele o incorporou ao seu mundo” e ainda esclarece que
“mover seu corpo é visar às coisas através dele, é deixá-lo corresponder à solicitação, que se
exerce sobre ele sem nenhuma representação”. Desta maneira, na fenomenologia merleau-
pontiana a apreensão do conhecimento ou a percepção do mundo se faz “com o corpo” por
meio da sua própria existência, em um mundo que é temporal e espacial, e não apenas pelo
corpo ou pela mente.

É por meu corpo que compreendo o outro, assim como é por meu corpo que
percebo “coisas”. Assim “compreendido”, o sentido do gesto não está atrás
dele, ele se confunde com a estrutura do mundo que o gesto desenha e que
por minha conta eu retomo, ele se expõe no próprio gesto [...] (MERLEAU-
PONTY, 1999. p. 253).

Tomie faz das pinturas cegas uma experiência fenomenológica e epistemológica. Até
aonde meu corpo, meu gesto conhece a respeito de mim mesmo, do outro e do mundo? Como
358

se da no espaço o meu movimento? Como conhecer o gesto de minhas mãos aos correr o
pincel sobre a tela? Meu movimento será apreendido e meu corpo compreenderá a si mesmo
com o artifício da venda.

Outro aspecto da obra de Tomie que gostaríamos de nos referir, diz respeito à escolha
feita pela indefinição nominal, pois já desde o começo rejeita dar títulos às suas obras. É um
curioso e importante recurso estratégico usado pela artista para não submeter o observador, o
outro, a leituras arbitrárias de sua obra a partir de sugestões verbais. Como diz: “Não coloco
título na obra porque a pessoa fica muito impressionada e fica pensando no título e não na
obra” (HERKENHOFF, 2009, p. 113). Relembrando Harold Rosenberg quando cita que “o
lugar da literatura foi tomado pela retórica dos conceitos abstratos” e ainda sua descrição
metafórica de que a arte contemporânea se assemelha a um centauro metade composta por
materiais e metade por palavras, Herkenhoff elucida o porquê de Tomie não fazer uso da
parola, pois em sua problemática pessoal este recurso não complementaria nem poderia
ajudar a compreensão de sua obra (HERKENHOFF, 2012, p. 57).

À época das “pinturas cegas” vários artistas brasileiros, sobretudo os concretistas,


fizeram uso de uma extrema complexidade na nominação de suas produções. Títulos com
sentidos vagos, indicativos de gênero, explicativos de problemas semióticos. Ohtake entendeu
que estes títulos forçavam interpretações, verbalizavam idéias e conceitos diversos,
denotavam problemas matemáticos e gestálticos. Não pretendia que sua obra fosse definida
por meio da força da palavra (HERKENHOFF, 2012, p. 80), pela conotação e denotação de
um título, ou que a nomenclatura despertasse e estendesse outros níveis de significações e
intenções, usurpando a força da obra em si mesma. Rejeita então referências adicionais
externas a própria pintura e às operações do próprio pintar. Esta mudez harmoniza-se e
complementa-se com a cegueira, num binômio perfeito, como pintar cegamente uma pintura
inominada.

Pintar é produzir pintura sem nome, isto é, não se relacionar com a instância
fonética da comunicação, mas definir-se pela justaposição antinômica entre
cegueira e visão como tensão semiológica. [...] Portanto, cegueira e
inominação são componentes ativos do visível nesta Tomie Ohtake. Se
nenhuma obra cega de Ohtake tem título é porque isso corresponde ao
arremate do não significado em reiteração da assimbologia do inominável.
Pintar aqui é a eliminação de qualquer associação sintagmática verbal na
enunciação da pintura. A pintura cega quer apenas enunciar-se a si mesma e
exclusivamente em sua condição de pintura (HERKENHOFF, 2012, p. 59).
359

Nas palavras da própria artista: “Quando fiz esta série de olhos fechados, buscava
retirar a cor e a forma para encontrar o osso da pintura”, e complementando, o crítico nos diz
que “o osso não é algo fisicamente estruturante, mas é aquilo que explora a força sutil e
paradoxal de tomar conhecimento da impercepção (HERKENHOFF, 2012, p. 79).

Geometria expressiva

Por volta de 1962 percebe-se em suas pinturas uma nova fase na qual as áreas passam
a ser mais delimitadas e as formas tornam-se retangulares e quadradas, tendendo a uma
geometrização onde a demarcação de seus contornos é visivelmente caracterizada pelo traço
manual e irregular. Estas grandes massas geométricas provocam uma relação tanto de
equilíbrio como de desequilíbrio com o fundo e entre si. Inúmeras camadas de tinta formam
as massas planas de cores, que, porém não são chapadas, mas apresentam nuances de tons,
manchas e também texturas no seu preenchimento. Aqui aparece claramente uma das grandes
questões em Ohtake, a maneira como o racionalismo da construção geométrica dialoga com a
sensibilidade orgânica de sua pincelada gestual, onde a dialética de sua pesquisa da forma se
realiza. A precisão e perfeição da razão da forma geométrica em sintonia com a imprecisão
das formas livres e a imperfeição intencional da pincelada. Esta orientação progressivamente
aparece nestes trabalhos, onde o estudo das relações forma-cor substitui a imaterialidade e
certa aleatoriedade da fase anterior, reveladas claramente nas “pinturas cegas”. Isto fica
evidenciado nesta mostra de Herkenhoff, como o próprio título sintetiza: “Tomie Ohtake -
Gesto e Razão Geométrica”.

Algumas aproximações com a obra de Mark Rothko nesta fase, um dos grandes
expoentes do expressionismo abstrato, já foram observadas e valem aqui serem consideradas,
a própria artista revela à época como sendo um dos artistas por quem tem admiração.
Comparando a obra “Sem título (violeta, preto, laranja, e amarelo sobre branco e vermelho)
1949”, do pintor russo naturalizado norte-americano, com uma de suas pinturas desta fase, de
1964 (Figura 2), nota-se claramente afinidades entre as duas poéticas. Em Tomie, uma
delicada linha que deixa vazar o fundo da composição separa os volumes geométricos,
diferente de Rothko, onde os mesmos se fundem criando uma nuance, uma gradação tonal
esfumaçada.

Rothko é um dos artistas que admiro bastante. Alguns trabalhos meus, da


década de 1960, chegaram a cruzar com os dele. No caso dele, o encontro
das cores se dá de uma forma em que uma cor repousa sobre a outra. No meu
caso, elas criam uma ruptura, aparecendo então uma linha. Essa é a diferença
fundamental: a cor do Rothko se espalha por cima da outra, enquanto a
360

minha recorta uma superfície da cor existente e nesse vazado ponho uma
outra cor (ALMEIDA, 2006, p. 27).

Figura 2 - Sem Título 1964- óleo sobre tela 120 x 100 cm, coleção particular.
Fonte: OHTAKE; ARRUDA, 2000, p. 38.

Podemos observar que nesta fase Tomie emprega uma gama cromática reduzida, com
predominância de apenas duas ou três cores. Esta economia cromática e formal já se torna
uma marca da artista, que também explora a matéria pictórica mais carregada e densa, vezes
provocando texturas craqueladas e rugosas, como também seu oposto, camadas transparentes
de tinta diluída. A repetição é outra característica presente nestas obras, onde propõe uma
relação de distinção cromática e se percebe a diferença de peso entre os elementos, a sensação
de harmonia e equilíbrio relativos.

Sabemos que Rothko na sua maturidade artística abandona tudo que possa restar de referência
a imagens reconhecíveis, trabalhando com justaposição de retângulos diversos em campos de
cores. Sua tela acima referida (de 2,07 metros por 1,67 metros) é um exemplar que demonstra
perfeitamente a pesquisa pictórica que realizava então, que se alinhava com a teoria iniciada
por Hoffmann, a seguir desenvolvida e defendida por Greenberg no expressionismo abstrato.
A tela vai funcionar como um cenário cromático, como um campo visual, onde a cor é toda
preenchida e saturada atraindo o espectador para dentro deste campo. A escala ou dimensão
ampliada da tela é outro dado relevante, pois pretende ter relação direta com o observador, daí
361

o motivo de pintar grandes quadros. “Um quadro de Rothko nao é uma superfcie, é um
ambiente [...]. Seu objetivo é, de fato, envolver, ambientar o espectador, abrir um espaço para
sua imaginação. (ARGAN, 2008, p. 531).

A série de pinturas que Tomie produz entre os anos de 1962 a 1968 aproximadamente,
as quais também fizeram parte desta exposição em São Paulo, apresentam características
marcantes, pelo que podemos fazer algumas aproximações com Rothko nestes aspectos acima
discutidos. Apesar de a artista ter feito a partir de 1954 uma opção pelo abstracionismo, no
entanto ela não se detém em questões teóricas relativas aos debates que se sucederam no
abstracionismo lírico da escola de Paris nem mesmo no discurso do expressionismo abstrato,
ou “pintura americana” da escola de Nova York, como tampouco se envolve nos debates da
arte concreta. Seguindo um caminho muito singular, não se identifica com o tachismo, que
poderia quem sabe atraí-la, como o fez com outros artistas de origem nipônica, mas “adota
uma perspectiva analítica da pintura enquanto poética de materialidade, espaço e cor”
(OHTAKE; ARRUDA, 2000, p. 18). Sua linguagem se situa no contexto de problemáticas e
paradigmas da pintura a partir da emancipação do figurativo e anedótico, do uso da pincelada
que abandona o detalhe realista e da conquista da planaridade em detrimento da profundidade
perspectiva e se aprofunda nos campos de cores. Nesta série, tem-se exatamente a experiência
da espacialidade e envolvimento do campo da superfície pictórica, onde se é transportado para
dentro, vezes mergulhando o olhar nas transparências das suas cores, vezes detendo-se ou
sendo impedido pelas camadas mais carregadas de pigmento, conforme aponta Herkenhoff
(2000, p. 24).

Na análise do crítico, a arte de Ohtake, assim como a de Valentim e Schendel aqui no


Brasil, e a de Rothko, Kandinsky, Malevitch, Mondrian e Newman, têm uma perspectiva onde
a “pintura não figurativa se alimenta de relações com a metafísica”. O crítico nos relata que
uma vez tendo sido indagado se deveria ser construído um museu para sua obra, Rothko
respondeu em tom enfático: “No, a chapel!” (OHTAKE; ARRUDA, 2000, p. 32), tal era seu
forte sentimento de contemplação, transportando a arte para o espaço meditativo de uma
capela. A procura pela essência, pela síntese, evidenciada na poética de Tomie que trabalha
cada detalhe com cuidado e tratamento quase que ritualístico, elaborando meticulosamente a
pincelada num tempo que parece suspenso, como o que experimentado no silencio sublime de
um templo, nos remete a esta aproximação à metafísica. Sua poética é ocidental e também
oriental, a primeira devido às escolhas da artista por estar inserida e coparticipante do
contexto cultural do país no qual escolheu viver, e de outro lado, pela formação japonesa
362

vivenciada e certamente assimilada. A respeito da sua obra, declara: “[...] é ocidental, porém
sofre grande influência japonesa, reflexo de minha formação. Essa influência se verifica na
procura da síntese: poucos elementos devem dizer muita coisa. Na poesia haicai, por exemplo,
fala-se do mundo em 17 sílabas” (OHTAKE; ARRUDA, 2000, p. 35).

Sobre as diferenças entre as duas culturas, oriental e ocidental, Suzuki (1992, p. 82)
nos esclarece que “o Leste é sintético em seu método de raciocínio, não se preocupa tanto
com a elaboração das particularidades quanto com uma apreensão compreensiva do todo, e
isso intuitivamente. Por isso, a mente oriental, se assumirmos a sua existência, é
necessariamente vaga e indefinida”. A filosofia zen esta presente na pintura oriental, como na
arte do sumi-ê, por meio do conceito de que o artista deve se expressar com o que há de
essencial em si mesmo, de uma forma sintética e o mais simples possível, como também
única e singular, pois é da simplicidade do espírito zen que “[...] provém sua vitalidade,
liberdade e originalidade” (SUZUKI, 1992, p. 83). O simples em Ohtake se expressa na
síntese da complexidade. Questionada sobre sua tendência de com o tempo ter passado a ser
mais econômica na cor, Tomie responde justificando esta escolha em virtude da almejada
profundidade: “Exatamente, por isso fica mais difícil, para combinação de cor, ‘dois’ ou três,
máximo três, ‘né’? Muito difícil! Pintura também, duas cores ou três cores só. ‘Meu’ idéia é
assim mesmo. Simples não é só simples, não! Mas profundidade que tem que ter, ‘né’?”
(ITAÚ CULTURAL, 2014).

CONCLUSÃO

A obra de Tomie pode ser lida a partir da perspectiva da fenomenologia, da filosofia


zen budista, abordando aspectos como a percepção, a materialidade, a espacialidade, ou a
temporalidade. Uma análise feita do ponto de vista historicista talvez nos provoque a inseri-la
dentro de correntes como o abstracionismo ageométrico, a geometria sensível, ou sob a
influência de elementos de parte do expressionismo abstrato, ligada a um ou outro artista.

O movimento dinâmico do gesto preenche o espaço com uma presença matérica de


formas que surgem como síntese de potências complexas, sementes que encerram
configurações inexploradas, mas que, ao se manifestarem, assumem contornos moldados na
improbabilidade e incerteza da criação. O espaço, o vazio, o corpo, o gesto, a cor, a forma, o
tempo, a pintura é a configuração desta realidade.

A trajetória de Tomie Ohtake reflete o espírito inquieto do artista na busca de sua


linguagem, na construção de sua singularidade, na vivência de seu próprio tempo presente.
363

Sempre expandindo suas fronteiras, enveredando por novas pesquisas que constroem e
desconstroem suas referências, mas não perdem o fio condutor de seu gesto característico e de
suas impressões matéricas, e, diria, imatéricas. Outras abordagens seriam possíveis sobre este
recorte temporal do todo de sua obra escrita pelo seu pincel, na tentativa de extrair alguma
leitura e descrever a impressão que pode imprimir em nosso espírito a sua pintura, esta
explanação não esgota com certeza nossa discussão. Em seu longo percurso, chegando a uma
exposição de pinturas inéditas em 2013, ano de seu centenário, e neste ano com uma
individual, póstuma, com suas ultimas obras realizadas nos dois últimos anos, aos 101 e 102
anos de idade, chega até os dias de hoje com uma pintura certamente contemporânea,
dialogando coerentemente com o agora, agindo como que na resistência da pintura, do mesmo
óleo sobre tela ou acrílico sobre tela, que se renova e se reinventa em suas mãos.

Seu jogo entre perfeição e imperfeição é visto como uma verdadeira poesia que fala da
arte da vida. Simplicidade e elevação, o pouco com profundidade, provocando-nos a desvelar
seu universo. A sua pintura não tem nome, sua pintura é cega, é um campo de cores, ela é
simplesmente pintura.
364

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ALMEIDA, Miguel de. Tomie Ohtake. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006, 110 p.

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna - do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010. 709 p.

HARRISON, Charles. Expressionismo abstrato. In: STANKOS, Nikos. Conceitos da arte


moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zarrar, 2000, 306 p.

OHTAKE, Tomie; ARRUDA, Vitoria (Coord.). Exposição Retrospectiva Tomie Ohtake. Rio
de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2000. 88 p., il. color.

HERKENHOFF, Paulo. Pinturas Cegas- Tomie Ohtake. Porto Alegre: Fundação Iberê
Camargo, 2012. 128 p., il. color.

ITAÚ CULTURAL. Tomie Ohtake. 2014. Vídeo (transcrição nossa). Disponível em:
<http://www.itaucultural.org.br/index_temp.cfm?cd_pagina=2844&id=001449&titulo=Tomie
%20Ohtake&auto=undefined> Acesso em 28 abr. 2015.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins fontes,


1999, 662 p.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naif, 2004, 192 p.

SUZUKI, Daisetzu Teitaro. Introdução ao Zen-Budismo. São Paulo: Editora Pensamento,


1992.
365

Sintonia Concretista em O Vampiro da Cinemateca, de Jairo Ferreira.


Jonathan Estevam Marinho (PPGIS-UFSCar)

Neste trabalho pretende-se analisar alguns aspectos conceituais e estéticos presentes no filme
O Vampiro da Cinemateca (1977) do cineasta e crítico Jairo Ferreira. Para tanto, pretende-se
primeiramente pontuar algumas particularidades presente na história da artes concreta
européia e brasileira. A perspectiva desse recorte é traçar uma sintonia entre o cinema
experimental de Jairo Ferreira e o concretismo.
Palavras-chave: Concretismo. Jairo Ferreira. Cinema.

In this paper we intend to analyze some conceptual and aesthetic aspects present in the film
The Vampire Movie Memorabilia (1977) by filmmaker and critic Jairo Ferreira. Therefore,
first-rate intends to present some peculiarities in the history of European and Brazilian
concrete arts. The prospect of this cut is to draw a line between experimental film Jairo
Ferreira and concretism.
Keywords: Concretism. Jairo Ferreira. Film.

INTRODUÇÃO

Jairo Ferreira foi um dos cineastas paulistanos integrantes do grupo chamado Boca do Lixo1,
cuja as associações remetem ao Cinema Marginal, que por sua vez é classificado como um
movimento de vanguarda do cinema brasileiro. Além de seu trabalho como realizador, Jairo
foi jornalista e crítico de cinema nos jornais São Paulo Shimbun2, Folha de S. Paulo, O
Estado de São Paulo e Jornal da Tarde.3 Além disso também publicou o livro Cinema de
Invenção (Editora Limiar, 2000), em que aborda, de forma crítica e poética, principalmente os
trabalhos dos cineastas cujos traços experimentais eram mais notórios.
Em seu livro Cinema de Invenção, no capítulo Sintonia Experimental, Ferreira dedica-se a
descrever uma compacta genealogia do experimental no cinema mundial e nacional,
apontando assim várias possibilidades de conexões de ideias, intenções e provocações
existentes entre diversos cineastas, teóricos e artistas em geral. No subcapítulo Paideuma,

1
Resumidamente, o termo refere-se à localidade do bairro da Santa Ifigênia, próximo a Estação da Luz e Júlio
Prestes. Os cineastas que freqüentavam essa região buscavam viabilizar seus projetos fílmicos por meio das
produtoras e distribuidoras audiovisuais que ali residiam. Para uma descrição mais detalhada, ver: GAMO,
Alessandro. Vozes da Boca. Campinas: Tese de doutorado, IA/Unicamp, 2006.
2
Jornal da comunidade japonesa do bairro da Liberdade.
3
Para um melhor entendimento da vida e obra de Jairo Ferreira, ver o trabalho de dissertação do professor e
pesquisador Renato Coelho: O cinema e a crítica de Jairo Ferreira. SBU Digital UNICAMP, Campinas, 2013.
366

Ferreira coloca duas questões que serão fundamentais para este artigo. A primeira é uma
observação acerca da primeira cena do filme O Anjo Nasceu (Júlio Bressane, 1969), cuja
imagem é nada mais que um ponto preto e o som é uma música experimental, de autoria de
Guilherme Vaz. Ferreira aponta tal circunstancia como um momento em que a linguagem
audiovisual está “carregada de significado até o máximo grau possível”. A segunda
afirmação é colocada quase que como um aforismo: "No experimental de nosso cinema
importa mais o significante e menos o significado. Mais como se diz e menos o que diz”
(FERREIRA, 2000, p27).
Essas duas sentenças nos colocam diante de uma questão semiológica, especificamente
intersemiológica, intimamente ligadas às reflexões de Ezra Pound, conforme citado pelo
próprio Jairo. Várias são as tentativas de se formalizar uma “sintaxe cinematográfica”, porém,
dentro do ponto de vista de Ferreira, tais teóricos recaem na obviedade dos fatos: “a
significação cinematográfica resulta de um encadeamento particular dos elementos
semióticos, um encadeamento que é próprio do cinema” (FERREIRA, 2000, p27). Desta
forma, Ferreira parte para os princípios poundianos4, já que os julga essenciais, não para
análise, mas como auxílio para o artista no processo criativo experimental ou inventivo. É
nesse ponto que Ferreira propõe a correlação entre os conceitos literários de Pound e o cinema
de invenção.
A partir do livro ABC da literatura (POUND, 1977) elencaremos especificamente dois
aspectos da poesia, sobre os quais nos debruçaremos posteriormente: a abordagem
materialista/científica e o conceito ditchen/condensare. Portanto, para este trabalho, nossa via
de entendimento do cinema inventivo de Jairo Ferreira reside sob esses dois aspectos, na
medida em que se relacionam com o concretismo. Apresentaremos, então, algumas das
principais discussões pertencente as artes concretas (pintura, música e poesia), buscando
selecionar os principais elementos e particularidades que possam estar em sintonia com o
novo processo narrativo proposto em O Vampiro da Cinemateca.

1. Abstração e intenção não-representativa na pintura

Para se falar de concretismo é necessário antes falar de abstracionismo. A abstração nas artes
visuais surgiu na pintura por volta do final da década de 1910 e tinha como principal objetivo
libertar o sujeito da representação, permitindo a expressão intelectual, emotiva e sensitiva, por
meio puramente das técnicas expressivas inerentes à cor e forma. Assim, muitos pintores
pertencentes a movimentos de vanguarda da época, almeijavam, a priori, uma pintura que se
tornasse autônoma e independente da obrigatoriedade da figuração da realidade. Esses artistas
referiam-se à música como um modelo de arte ideal para, a partir daí, repensar seus trabalhos
e até criar novos tipos de formas artísticas.
Van Doesburg5, um dos fundadores concretismo na Europa, coloca que a questão
epistemológica da abstração nas artes, até o final dos anos 1920, não fora satisfatoriamente

4
Ferreira cita especificamente o livro ABC da Literatura (tradução de Augusto de Campos).
5
Em algumas literaturas, considera-se Doesburg como um pré-concretista e neoplasticista. Contudo,
consideramos para esse trabalho as mesmas classificações dada por Cocchiarale e Geiger.
367

convincente. Basicamente a tensão existente no pensamento abstrato das artes residia,


segundo Doesburg e seus companheiros, na contradição conceitual entre os termos abstração
e intenção não-representativa.
Na introdução ao problema, no primeiro e único número da revista Art Concret, Van
Doesburg e os primeiros concretistas avaliam a trajetória inicial do abstracionismo, sobretudo
a sua vertente geométrica, considerando que: “(...) Na busca da pureza, os artistas foram
obrigados a abstrair as formas naturais que escondiam os elementos plásticos, a destruir as
formas-natureza e a substituí-las pelas formas-arte” (DOESBURG, 1930 apud.
CANONGIA, 1977, p.42). A questão central a qual os concretistas insistiam em refutar é a de
que as tais formas-arte não se desvinculam da natureza, uma vez que são frutos do imaginário
humano.
Desprender a arte da representação sugeria criar a pintura-coisa, concreta em sua
especificidade, assim como qualquer outro objeto pertencente à realidade. E essa concretude
exclusiva da obra definia-se a partir de uma plástica essencial. Todas essas questões são
preocupações inerentes ao concretismo, como sublinham redundantemente seus criadores em
1930:
Pintura concreta e não abstrata pois que nada é mais concreto, mais
real que uma linha, uma cor, uma superfície (...) Uma mulher, uma
árvore, uma vaca são concretos no estado natural, mas no estado de
pintura são abstratos, ilusórios, vagos, especulativos, ao passo que um
plano é um plano, uma linha é uma linha, nem mais nem menos
(DOESBURG, 1930 apud. CANONGIA, 1977, p.42).

2. Música concreta: inversão conceitual

A música concreta tem suas raízes (ou referências) no cinema e no rádio, porém sua
denominação é proveniente das artes visuais. Quando, em 1948, Pierre Schaeffer cunhou o
termo "música concreta", sua intenção era a de:
(...) assinalar uma 'inversão' no sentido do trabalho musical. Ao invés
de anotar idéias musicais pelos símbolos do solfejo e confiar a sua
realização concreta a instrumentos conhecidos, tratava-se de recolher
o concreto sonoro, donde quer que proviesse, e de abstrair-lhe os
valores musicais que contivesse em potência (SCHAEFFER, 1993,
pag. 33).
Schaeffer busca estabelecer um paralelo com a pintura, no sentido conceitual. Ele observa
que, se a pintura figurativa inicialmente fora baseada em modelos do mundo exterior, a
pintura não-figurativa baseava-se em ideias abstratas. Inversamente, a música era antes
apresentada sem referências diretamente exteriores, partindo de preceitos abstratos
(sentimentos, sensações e/ou emoções), mas posteriormente passou a ser figurativa/concreta,
pela possibilidade técnica de manipular os sons ou ruídos naturais, e a partir deles conceber
uma nova estética sonora.
368

Schaeffer exibiu, nesse mesmo ano, suas/as primeiras peças musicais concretas, tendo como
peça icônica o Étude aux Chemins de Fer (Estudo para Ferrovias). Nela encontramos uma rica
e complexa montagem/edição de sons, elaborada a partir da gravação dos ruídos emitidos por
um trem, que percorre uma estrada de ferro. A manipulação posterior às captações deram
sentido a uma nova estética no campo musical, revelando uma arte sonora que questionava
todo o tradicionalismo e formalismo musical.

3. Dissidências no contexto brasileiro: a inventividade da poesia concreta

A partir de 1948, no Rio de Janeiro e em São Paulo, começaram a se formar os primeiros


núcleos de artistas visuais abstratos brasileiros. Mário Pedrosa foi um dos representantes do
grupo abstrato-concreto carioca. Em São Paulo, Waldemar Cordeiro fundou o Art Club, a
sede, por assim dizer, dos artistas abstrato-concretos paulistanos. Na capital paulista, a
sedimentação do abstracionismo foi favorecida pela criação de importantes institutos que se
mostraram abertos às novas tendências estéticas européias e norte-americanas, a exemplo do
Museu de Arte de São Paulo (MASP), em 1947, o Museu de Arte Moderna (MAM-SP).6
Embora ambos os núcleos brasileiros tenham mostrado profundo interesse pelo concretismo
europeu, seus respectivos desdobramentos caracterizaram diferenças que os distinguiam
claramente, ainda nesse inicio da década de 1950. Com a publicação do Manifesto Ruptura7,
pelo grupo de mesmo nome, em 1952, e posteriormente com a I Exposição Nacional de Arte
Concreta, em 1956, essa dissidência auto-proclamada por ambos os grupos ficou assim
polarizada: de um lado, os paulistanos que se diziam os fiéis representantes da tradição
concretista européia; do outro lado, o grupo Frente8, liderado por Ivan Serpa, dotado de uma
abordagem mais humanista e fenomenológica, dando posteriormente origem ao
Neoconcretismo.
Os desdobramentos do grupo Ruptura ganham um caráter inovador com a poesia concreta,
por meio da adesão dos poetas Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos,
que almejavam uma profunda renovação da linguagem poética a partir dos efeitos estéticos
resultantes de novas formas de disposição geométrica dos poemas no papel.
As revistas Noigandres (1952-1962) e Invenção (1962 -1967) foram, segundo Omar Khouri,
importantes veículos de disseminação das novas práticas poéticas (KHOURI, 2006). Na
ocasião da 4ª edição da Noigandres, em 1958, foi publicado o Manifesto da Poesia Concreta
(Com o subtítulo: Plano Piloto Para Poesia Concreta). Ali, os irmãos Campos e Décio
6
Suas atividades foram iniciadas em 1949, com a exposição Do Figurativismo ao Abstracionismo (MASP), e a
Bienal Internacional de São Paulo (MAM-SP), cuja primeira edição realizou-se em 1951.Também cumpriu papel
decisivo na renovação do campo cultural paulista, naquela época, a presença de artistas recém-chegados do
exterior, como o próprio Waldemar Cordeiro. Para a formação do Grupo Ruptura (anteriormente Art Club),
teve grande importância a exposição de Max Bill, realizada no MASP, em 1950.
7
O grupo era, inicialmente, formado por Waldemar Cordeiro, Geraldo de Barros, Luís Sacilotto, Lothar
Charroux, Kazmer Fejer, Anatol Wladslaw e Leopoldo Haar, com a adesão posterior de Hermelino Fiaminghi,
Judith Lauand e Maurício Nogueira Lima.
8
Inicialmente, conforme já citado, o grupo carioca iniciou-se com Mário Pedrosa, Ivan Serpa, AbrahanPalatnik e
Almir Mavignier. Posteriormente, fizeram parte do grupo Ferreira Gullar, Reynaldo Jardim, TheonSpanudis,
Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica.
369

Pignatari deixam claro seu toque inventivo e de criação de "formas novas de princípios
novos" (Manifesto Ruptura, 1952, apud CANONGIA, 1987, p. 29).
Conforme citamos inicialmente, Pound coloca dois pontos importantes dentro das discussões
criticas da poesia, que aqui iremos contextualizá-los no âmbito do concretismo. A abordagem
materialista ou cientificista, como coloca este autor, diz respeito a atenção que deve ser dada a
materialidade da referida arte, no caso a poesia literária. A linguagem falada e a escrita
realizam-se no domínio sonoro e visual, respectivamente.
O método adequado para o estudo da poesia e da literatura é o método
dos biologistas contemporâneos, a saber, exame cuidadoso e direto da
matéria e contínua comparação de uma "Lâmina" ou espécime com
outra. (...) Para começar do começo, vocês provavelmente sabem que
há uma linguagem falada e uma linguagem escrita, e que há duas
espécies de linguagem escrita, uma baseada no som e outra na vista
(POUND, 2006, pag. 23-26).
A revolução formal praticada pela poesia concreta se dá especialmente nessa esfera, na
relação analógica9 (ou não-linear) das palavras, ou mesmo sílabas, e como essa disposição
visual e sonora pode gerar várias interpretações. A aproximação com as artes pictóricas,
sobretudo às abstrato-concretas, vai ao encontro desta ideia de examinar minuciosamente os
elementos e as forças relacionais internas à obra. Nessa perspectiva, há uma superação da
forma verso, no sentido tradicional do emprego da rima, métrica e ritmo.
O segundo aspecto poundiano é advindo da etimologia da palavra "poesia", na língua alemã,
quando traduzida para o italiano, traz a palavra "condensar": ditchen = condensare. Segundo
Pound, o termo sugere a ideia de síntese ou condensação, e é a partir daí que ele refere-se a
aqueles poemas (obras) cujos elementos sígnicos possuem alto grau de harmonia em si e entre
eles, a ponto de propiciar uma grande variedades de significados. Neste enfoque, temos que a
poesia concreta busca elevar-se a um estado de símbolo gráfico ou ideogrâmico (Figura 1).

9
Usamos aqui a palavra analogia no sentido "de processo cognitivo de transferência de informação ou
significado de um sujeito particular (fonte) para outro sujeito particular (alvo), e também pode significar uma
expressão linguística, correspondendo a este processo, igualmente conhecido por comparação." Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Analogia
370

FIGURA 7. BEBA COCA COLA, DÉCIO PIGNATARI, 1957.


FONTE: HTTP://WWW.POESIACONCRETA.COM/POEMA/BEBA.HTML

4. A Nova Música no Brasil

Foi a partir dos anos de 1950 que os primeiros compositores brasileiros tomaram contato com
a música concreta, instalando-se em Paris e participando do Groupe de Recherche Musicale,
junto à equipe de Schaeffer (PALOMBINI, 2013). Segundo Vilholes, o compositor e Maestro
Hans-Joachim Keollreutter foi a figura mais importante do cenário brasileiro. Keollreutter,
junto ao também músico Ernst Mahle, foram pioneiros na difusão da nova música, centrando-
se basicamente na Escola Livre de Música da Pró-Arte10, fundada em 1952, no Rio de Janeiro
e em São Paulo. (VILHOLES, 2011)
Nas conferências ministradas ao longo dessa década, na tentativa repassar as experiências de
suas visitas ao velho continente, Keollreutter e Ernst Mahle acabam por ser um dos primeiros
introdutores das ideias concretas no Brasil. Nas palavras do próprio Keollreutter, seu
entendimento acerca da música concreta:
Música concreta. Música sem contraponto, sem harmonia, sem tema e
imitação, sem tonalidade e cadência. O princípio da música concreta
consiste no fato de que é possível produzir e isolar materiais sonoros
elementares, transformá-los integralmente e compô-los de acordo com
uma técnica, cujos recursos se encontram hoje á disposição da

10
A Fundação desta escola foi na verdade feita por "Theodoro Heuberger, jovem empreendedor alemão no
campo das artes, residente no Brasil desde 1924". Idem, Ibdem, pág. 28-29.
371

invenção musical (KEOLLREUTTER, 1952 apud VILHOLES,


2011).11
Segundo o professor e pesquisador Carlos Palombini, a proposta de reformulação estética
colocadas por Schaeffer, ao estabelecer novos parâmetros, reduzem o fazer musical a uma
condição quase primitiva. Perspectiva essa que dialoga com o mito fundador do modernismo
brasileiro, a antropofagia, na medida em que "o primitivismo aparece como signo de
deglutição crítica do outro, o moderno e civilizado" (PALOMBINI, 2013, p. 21).

5. Diálogos analógicos em O Vampiro da Cinemateca

Nossa abordagem, na qual segue ao encontro do cinema de invenção de Jairo ferreira, parte
então das colocações anteriormente abordadas. Contudo é importante frisar que Jairo Ferreira
tenha realizado O Vampiro em meados da década de 1970, porém as reverberações dessa
movimentação artística, conforme citamos anteriormente, ainda ressoavam fortemente, e se
misturavam as novas correntes da arte brasileira, a exemplo da Nova Objetividade
Brasileira.12
Gostaríamos de esclarecer que não é o intuito deste artigo discutir as questões inerentes a
esse desdobramento artístico citado no parágrafo anterior. Mas julgamos importante
citar/situar que, em meio a toda essa pluralidade artística, havia um fenômeno chamado
Tropicalismo. Embora o termo seja proveniente de Oiticica, o lançamento do disco Tropicália
(1968), que uniu vários artistas populares como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os
Mutantes e etc., imortalizou iconicamente um período onde o popular (ou o pop) misturava-se
ao erudito, o regional ao estrangeiro. O que nos vale aqui sublinhar é a sintonia extrema que
havia ali, nas diversos segmentos da produção artístico-cultural, tal como descreve Caetano
em seu livro Verdade Tropical:
(...) A clareza com que Augusto (de Campos) via o panorama da MPB
de então se mostra mais surpreendente quando penso que a impressão
de distância que o tom do seu artigo me dava, correspondia a uma
condição real: ele não apenas era um poeta de formação erudita como
também - em parte por causa da natureza e amplitude dessa erudição,
mas sobretudo pela radicalidade do experimento poético a que se
dedicava desde os anos 50 - estava à margem tanto das correntes
dominantes da intelectualidade brasileira quanto do mundanismo dos
ambientes artístico-jornalísticos onde se discutia ou fazia música
popular. (VELOSO, 1997, p.0146).

11
Publicado sob o título Um Novo Mundo Sonoro, em 7/8/1952, no jornal Diário de S. Paulo, seção Música, 8.
12
Entende-se por esse termo o movimento artístico decorrente da exposição de artes plásticas no Museu de
Arte Moderna em 1967. Este evento reuniu vários artistas, tanto aqueles vinculados às vanguardas da década
anterior (Concretismo e Neoconcretismo), como também os da chamada Nova Figuração, movimento então
recém-surgido no país, em prol também do retorno ao figurativismo. Este evento teve a participação de: Hélio
Oiticica, Lygia Clark, Rubens Gerchman, Lygia Pape, Mário Pedrosa, Carlos Vergara, Sérgio Ferro, Nelson
Leirner, Glauco Rodrigues, Mário Pedrosa, Flávio Império, Waldemar Cordeiro, entre outros.
372

O Vampiro da Cinemateca foi realizado entre 1975-1977 e, embora sendo um longa-


metragem e filmado totalmente em Super-8, tal filme é destituído de uma narrativa linear ou
clássica. O caráter fragmentário, poético e anárquico do filme confere-lhe um ar experimental,
tanto pela (re)apropriação "vampiresca" (Figura 2) e antropofágica de outras obras
cinematográficas, quanto pelas encenações performáticas do próprio autor e demais artistas da
Boca do Lixo.

FIGURA 2. FRAME DE O VAMPIRO DA CINEMATECA, 1977.


FONTE: HTTPS://WWW.YOUTUBE.COM/WATCH?V=IGF5X1RAN-Q
Não obstante, Jairo naquele momento experimentou uma ferramenta que lhe proporcionava
maior liberdade/mobilidade: o formato sonoro Super-8. O Advento do som neste filme deu-
lhe maior capacidade expressiva para experimentação, pelas facilidades na manipulação das
bandas sonoras e visuais (PANNACCI, 2013, p. 73). Embora Ferreira tenha roteirazado tal
filme, isso só ocorreu posteriormente às filmagens. Jairo tinha boa parte do material ja
gravado, de forma aleatoria. Ou seja, a montagem foi que pode dar forma a todo material ja
captado, conforme o próprio autor afirma:
Bem, eu não tive ideia de fazer um filme, não. Eu parti do fato de
que existia uma câmara e as ideias vieram depois. Tanto é que não era
para ser um filme e terminou sendo, não é? Eu comecei a filmar de
uma forma desconexa, e tal, juntando material pra ver o que iria dar.
(...) O processo foi o seguinte: eu comecei a filmar juntando elementos
que, aparentemente, eu não via como pudessem ser colocados em um
contexto geral. Era uma colagem. Por superposição de material, o
negócio estava tão caótico que eu falei: “Bem, vamos ver se eu
373

consigo dar uma estrutura a essa colagem”(FERREIRA, 1977 apud


PANNACCI, 2013, p. 75)13.
Conforme abordamos no item 3, as forças relacionais que emanam dos fragmentos (cenas)
isolados tal como são apresentados, requerem do espectador formas não-usuais de leitura. É
necessário primeiramente examinar cada trecho (fílmico), cuidadosamente, assim como as
"lâminas" citadas por Pound. E posteriormente compara-las umas com as outras, conforme
são apresentadas ao longo do tempo. A partir daí se estabelece sentidos gerais e/ou
particulares.
Em O Vampiro da Cinemateca, Jairo apresenta recorrentemente essas questões, porém no
horizonte da linguagem audiovisual. A montagem talvez seja o principal aspecto não-linear
deste filme, porém é por ela mesma que ele cria sua "estrutura-conteúdo" fragmentária,
informando como a obra está construída. Como exemplo, Jairo subverte as imagens
capturadas de filmes ja consagrados, como as de O Cidadão Kane (Orson Welles, 1941), por
contrapolas à músicas ou sons/narrações diferentes do filme original. Assim, ele estabelece,
neste caso, uma relação de igualdade entre a figura ambiciosa do personagem Charles Foster
Kane e a do político brasileiro Ademar de Barros, por sua vez significado, na banda sonora,
pelo jingle musical da campanha deste mesmo estadista.
Essa resignificação que se dá na relação imagem-som acontece em diversos momentos do
longa-metragem, principalmente na referência mor, o filme de José Mojica14: Esta noite
encarnarei no teu cadáver (1967). A característica ou o modo fastasmagórico, apresentados
recorretemente, parecem dar a tonalidade geral em O Vampiro. O trabalho com o timbre na
locução de voz, no momento da apresentação do filme, apresentando-se distorcido
(provavelmente processado/desacelerado, utilizando o efeito pitch dow) recitando a frase de
abertura "O Vampiro da Cinemateca. Uma estranha aventura de Jairo Ferreira", tal como as
práticas concretas de manipulação sonora asseguram ainda mais o caráter fantasmal desssa
obra.
No Limite, o conceito de poesia ditchen/condensare, verbete que, segundo Pound, sugere a
ideia de condensação, no aspecto dos signos e dos significados, é perceptível tanto na obra
como um todo, como em vários momentos do filme. O Vampiro da Cinemateca revela-se
como um estudo metalinguístico, antropofágico e de profunda reflexão sobre o cinema
enquanto arte. Jairo consegue, em uma única obra, reunir vários elementos que, em sintonia
com outros tantos artistas e movimentos de vanguarda, citados aqui, também exploraram sua
ferramenta/instrumento incansavelmente.

13
Pannacci detalha a seguinte nota: "Atenção, câmera, ação: Super-8 in Cinema em Close-up nº 76, 1977.
Entrevista com Jairo Ferreira; na revista não há qualquer informação sobre a identidade do entrevistador."
14
Também conhecido como Zé do Caixão.
374

Referências
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e neoconcretismo, anos 50. FUNARTE, São Paulo, 1987.

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VELOSO, Caetano. Verdade Tropical - Caetano Veloso. Companhia das Letras,São Paulo,
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VILHOLES, L. C. Música eletrônica no Brasil nos anos 1950. Revista do Programa de Pós-
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XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento; Cinema Novo, Tropicalismo;


Cinema Marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993.
375

A realidade fotográfica ou a fotografia do real?


Sandro de Souza Novaes (PPGA-UFES)

Resumo

No texto que se segue fazemos um breve histórico, concordante com o olhar do filósofo
Tcheco, naturalizado brasileiro, Vilém Flusser, sobre o aparecimento das imagens técnicas a
partir da fotografia, que, através das etapas de desenvolvimento de seus conceitos e aparelhos
geradores de cópias do mundo real, possibilitou a criação da imagem em movimento e deu
origem ao vídeo. Prosseguimos então, analisando, baseados na produção teórica de Hito
Steyerl, a entrada das obras videográficas - em especial a produção documental, nas práticas
artísticas contemporâneas, comentando sobre os trabalhos “Lixo extraordinário” de Vik
Muniz e “Z32” de Avi Mograbi e ressaltando algumas modificações basilares na percepção da
realidade que vieram atreladas a essa fusão.

Palavras chave: fotografia, imagem técnica, documentário, arte visual

Abstract
This text present a brief history, consistent with the view of the Czech / Brazilian philosopher
Vilém Flusser about the birth of the technical images since the advent of photography, which,
through the development stages of its concepts and apparatus generators of real-world's
copies, enabled the creation of the moving image: the video. Proceed, then, analyzing- based
on the theoretical work of Hito Steyerl -, the entry of videographic works - especially the
documentary production in contemporary artistic practices, commenting the works "Lixo
extraordinário" and "Z32" from the artists: Vik Muniz and Avi Mograbi, highlighting some
basic changes in the perception of reality that came linked to this merger.

Keywords: photography, Technical image, documentary, visual art


376

As imagens técnicas (da fotografia ao vídeo)

A representação mimética do mundo e as suas relações com a realidade, vem sendo discutida
há centenas de anos através das práticas artísticas, até ser quase que deixada de lado, e por um
momento foi, pelos pintores franceses na segunda metade do Sec. XIX, quando esses
buscavam alternativas de se desvencilhar de uma imposição classicista / academicista. Essa
quebra foi reforçada com o surgimento e o rápido aprimoramento das novas técnicas de
reprodução da realidade: as imagens técnicas.

Imagens técnicas são imagens geradas por aparelhos, dentre muitas, pode-se dizer que a
fotografia foi e ainda é a mais importante, criada por Niepce em 1826 (fig. 01), essa passou a
ser considerada o melhor e mais fiel modelo de representação do mundo, obrigando as
práticas pictóricas a se reinventarem, focarem nos seus próprios meios e características

Fig. 1: Fotografia Point de vue du Gras (1826) - Joseph Nicéphore Niépce. 20 x 25cm.
377

Os novos meios de produção que utilizam a tecnologia em favor da criação artística


(destacando a fotografia e o vídeo) possibilitam um enriquecimento dos estudos processuais
da experiência do trabalho de arte. Elevando assim, as possibilidades de criação para uma
nova dimensão descontinuada espaço-temporalmente.

O vídeo, derivado direto da fotografia, acarretou um profundo impacto sobre a arte e os meios
de comunicação de massas em meados do século. Este, pode-se dizer, contribuiu
potencialmente para essa citada desmaterialização da obra de arte com a promoção da imagem
não palpável e efêmera, além dos conflitos Benjaminianos sobre a facilidade da reprodução,
atualizando e embasando ainda mais as questões a respeito do assunto que já vinham sendo
discutidas.

Seguindo a linha de raciocínio do filósofo da imagem Vilem Flusser, entramos, com o


advento da fotografia, na era pós histórica da humanidade que ruma para um completamente
desconhecido futuro, estamos vivendo a era da revolução cultural das imagens, que de simples
representações do mundo: desenhos, pinturas, e esculturas, migraram para as imagens
técnicas: o instantâneo fotográfico e a desmaterialização da imagem televisiva, de vídeo, que
ainda mantém uma aproximação com o real, e rumam em direção às imagens sintéticas
criadas por códigos, derivadas de uma ciência aplicada que possibilitou aparato tecnológico
para produzi-las e que incorporam uma nova capacidade de imaginar o mundo.

Destarte vai surgir zona imaginária nova entre o homem e seus


conceitos, através da qual o homem vai poder imaginar os seus
conceitos [...] o universo das imagens técnicas (fotos, filmes,
vídeos, imagens sintetizadas por computador), vai se
densificando [...] (FLUSSER,1996 , 67)

Todos esses novos meios de criação de imagem foram incluídos nos processos de criação
pelos artistas, que, cada vez mais, tornaram-se capazes de provocar e ao mesmo tempo
enriquecer suas práticas, libertando-se da obrigatoriedade de seguir um padrão esteticista nas
obras realizadas.
378

Os aparelhos tornaram-se, com o passar do tempo, mais acessíveis e portáteis, o que facilitou
a dispersão dessas imagens, e retirou das mãos das grandes empresas essa hegemonia sobre a
representação. A partir de então quase qualquer pessoa poderia munir-se de um dispositivo de
produção de imagem e produzir as suas próprias.

Essa nova era, de captação e tradução simultânea da realidade possibilita mudanças e novas
aplicações nas artes, tais como: vídeo performance, manipulação de imagens, montagens,
teleconferências e documentários que foram rapidamente assimiladas pela arte
contemporânea.

A união entre a arte e o vídeo, nasceu em uma época de profundas modificações políticas e
críticas, o que acarretou diretamente no contexto dos resultados obtidos por essa práticas nos
seus primórdios, grande exemplo dessa situação são as vídeo performances do grupo Fluxus,
formado por artistas, escritores, cineastas e músicos, que davam prosseguimento às ideias
Duchampianas de que o espectador além de completar a obra de arte, torna-se parte dela, com
sua participação direta no evento.

Fig. 2 Still do vídeo Semiotics of the Kitchen, (1975 ) de Martha Rosler.


379

Segundo Michel Rush, em meados dos anos 50 e 60 os artistas começaram, de maneira mais
independente, a fazer filmes, a maioria deles trabalhava com outros meios e acabaram
migrando para o vídeo, o que trouxe para essa prática questionamentos referentes às práticas
as quais os mesmos estavam inseridos anteriormente, como as questões relativas à pintura:
cor, composição, tonalidades, etc. Assim como haviam também os que iniciaram sua prática
artística, já através do vídeo.

O fervor pela experimentação cinematográfica atingiu o clímax


nos anos 50 – 60, primeiro nos Estados Unidos e, depois, na
França. Em 1923 a Eastman Kodak company produziu um filme
de 16 mm para amadores, mas mesmo ele era caríssimo para
artistas mais independentes. Em meados do século, quando o seu
uso tornou-se mais comum, artistas, embora ainda em numero
relativamente pequeno começaram a fazer filmes. (RUSH, 2013,
p21).

A câmera passa a ser uma extensão do corpo e assim, cria uma relação de dependência e
completude, estabelecendo então, uma nova esfera de atuação entre o corpo e a máquina a
partir dessa junção. O artista que produz a imagem e o observador que a recebe inauguram um
novo lugar, onde o filme, gera uma ligação de significado e sentidos, uma ponte conceitual
que interliga-os, conferindo novas possibilidades de apreensão da obra.

A produção videográfica da verdade

Dentre todas as formas, meios e técnicas de produção artística que englobam a utilização do
vídeo, o documentário passou a ser considerado um dos mais importantes, principalmente se
pensarmos no contexto contemporâneo de discussões sócio-políticas, dentro do ambiente da
arte. Da segunda metade do sec. XX em diante, os artistas vem apropriando-se de técnicas e
conceitos característicos da produção documental, antes voltada somente para áreas de
comunicação, investigação e jornalismo. Alguns artistas de vanguarda desde o início do
século passado já haviam adotado o vídeo como parte de suas experimentações visuais, mas,
380

como citado acima, a partir dos anos 50 e 60 as artes apropriaram-se das novas tecnologias
possibilitando assim, uma expansão dentro das suas possibilidades de concepção.

A partir dessa conexão que aproximou meios e técnicas foi possível o desenvolvimento de
uma área específica, dentro do âmbito artístico, entre vídeo-arte, cinema, telejornalismo,
fotografia, texto, todas as possíveis formas de registro que pressupõem um comprometimento
direto com a verdade.

Alguns trabalhos produzidos sob o rótulo dessa arte documental passaram a adotar
características que aludiam a uma possível realidade do mundo, enquanto que outros
trabalhos, em contraposição, seguiam uma forma experimental, possibilitando leituras mais
subjetivas, segundo Hito Steyerl em La política de la verdad:

Las obras didáticas y realistas se alternan com producciones


documentales más reflexivas y experimentales, com arreglos
visuales que se reflejan em lá organización de los documentos y
en las subjetividades asi generadas. (Steyerl, 2004).

Dessa forma passamos compreender a história do documentário como uma tentativa de


esboçar estratégias de abordagem capazes de produzir imagens verdadeiras atreladas a uma
confiança em uma imagem que em último caso seria passível de coincidência com o próprio
mundo real.

Isso porque os vídeos documentários são conhecidos como uma prática cinematográfica
atrelados e ou na maioria da vezes envolvidos com uma ideia de comprometimento com o
real, com a verdade. Essa hipotética ligação, acarreta assim, uma responsabilidade
político/social como representação direta do mundo. Mas, essa suposta verdade
correspondente gera um problema: as imagens documentais não são, em sua maioria, uma
representação direta do mundo com forte apelo politico/social como parecem ser, elas se
baseiam nos padrões realistas que supõem um ligação direta entre a imagem e o objeto como
nos mostra Steyerl:

Las formas documentales no son uma representación sencilla y


transparente de los sucesos políticos y de las condiciones sociales,
381

como muchos casos usos contemporáneos de los estilos documentales


dan a entender. (Steyerl, 2004).

A autora cita Michel Foucault em seu livro “Vigiar e punir”, no qual fala de uma política da
verdade, termo que indica uma ordem social da verdade capaz de produzir e decidir sobre ela,
e que está indispensavelmente acoplada às relações de poder. Esse poder e o conhecimento se
confundem na organização e na produção de determinados fatos e de suas interpretações,
lançando mão de técnicas e procedimentos de produção, que expõem, supostamente, sem
deixar dúvidas, a verdade, para produzirem uma verdade aparente, uma pseudo-realidade. Nos
vídeos documentais essas técnicas são: testemunhos, depoimentos, filmagens trêmulas, som
ambiente, etc; todo tipo de convenções que faça o espectador, por associação direta, acreditar
que o que ele observa tenha uma ligação direta com o mundo que ele conhece, vive, e
observa.

FIg. 3. Gravação de documentário – exemplificação das técnicas de produção da verdade


382

Quando os artistas começaram a apropriarem-se das formas documentais eles herdaram, com
essa produção, alguns problemas já bastante conhecidos pelos cineastas da verdade, das
formas documentais, por serem conhecidas e ou usadas como possibilidade de expor a
verdade, de colocar em cheque os acontecimentos sem censuras. Segundo Steyerl (2004, p.x),
“Esse tipo de produção é diretamente atrelada a relações de poder político e social, e
consequentemente com os principais complexos de poder e conhecimento da lei, da ciência e
do jornalismo”.

Irremediavelmente as instituições de poder estão no controle das formas de produção da


verdade, cabe a arte, desmistificar essa relação, evitando a adequação à essas regras supra
citadas, a arte deve quebrar essa relação do poder que domina e determina a verdade,
lançando mão das possibilidades que o gênero dispõe e usar as técnicas de produção de modo
que permita a subversão dos valores impostos. Segundo Foucault:

“toda forma de exercer o poder que se encontra disperso por


toda a sociedade constitui uma governamentabilidade, um
governo é construído baseado no entendimento dos processos
que envolvem uma população e a utilização de recursos técnicos
para suas ações.” (Foucault, ver ano)

As formas documentais podem adquirir funções de governamentabilidade a partir do


momento que as imagens produzidas dessa forma se relacionam historicamente com as
tecnologias aplicadas para impor a ordem; o controle: vigilância, normalização, investigações,
estudos de casos e outras técnicas utilizadas por instituições como a polícia por exemplo.

Dessa forma, essa produção de uma verdade documental pode ser denominada como uma
documentalidade, a partir do momento em que ela se entrelaça com as formas de
governamentabilidade. Essa documentalidade expõe uma infiltração de uma política da
verdade documental, ou seja, traz em si, na sua essência, questões diretamente ligadas à
formações políticas, sociais, e epistemológicas.

Ela pode ser enxergada como uma intercessão, um ponto fundamental que transforma em
política de governo uma verdade documental e que também pode tornar uma verdade
documental em uma política governamental. O que acaba acarretando é uma herança dessas
383

formas de controle para o ambiente artístico, a partir do momento que os artistas começam a
trabalhar com essas formas documentais dentro dos ambientes expositivos, característicos da
instituição arte.

A documentação da realidade nas artes visuais

A partir dos anos 90 uma produção significativa de trabalhos artísticos produzidos sob o
suporte de vídeo passaram a circular em galerias, salões, exposições, festivais e museus. Esses
artistas utilizam da forma documental, dos vídeos-documentários para experimentar novos
formatos e traçar estratégias narrativas que resultam da relação direta do vídeo (herdado da
fotografia) da representação direta do real; do político/social; do mundo.

Contudo, essa produção de determinados grupos de artistas dentro do âmbito artístico


contemporâneo, aparentemente, não pretende fazer a ligação com o real como pretende a
produção do cinema documentário, esses artistas, hoje, discutem essa produção como uma
subversão das tradições, norteando novas experiências, fazendo com que essa produção do
documentário dentro da arte contemporânea seja deslocada do seu lugar comum de traduzir
experiências diretamente conectadas com o mundo e com a verdade.

Dentro do campo das artes visuais, na contemporaneidade, as formas de trabalhos que seguem
a lógica das técnicas documentais, reivindicam uma certa autenticidade que tenta garantir que
as obras façam um link direto com o campo político, com uma realidade social. Os
mecanismos formais empregados muitas vezes são sociais e realistas e tratam de se manterem
o mais transparentes e verdadeiros possível. Ela busca pela exposição da autenticidade.
384

Fig. 4: Still do filme Lixo Extraordinário (2010), de Vik Muniz.

O documentário Lixo extraordinário, do artista brasileiro Vik Muniz ajuda a ilustrar essa ideia
de um trabalho documental que está inserido no ambiente da arte e que neste caso, é feito para
descrever uma verdade da política, um certo genuíno do social. Steyerl lembra que:

“o perigo dessas formas sócio realistas que frequentemente


expõem (e exploram) as misérias da globalização, permite que
as informações aparentemente neutras sobre os problemas
sociais e políticos criem um certo voyeurismo do sofrimento,
incluindo um sistema de visão panóptica, o qual gera uma
posição de vigilância e impotência para o espectador”.(Steryerl,
2004, p. x)

Em contrapartida, do outro lado da coisa, existe outro modo de produzir documentário, mais
instigante, melhor estudada que percebe que as técnicas, os meios e as ferramentas usadas na
produção das formas documentais, podem ser subvertidas dessa documentalidade e aplicadas
numa questão de construção do conhecimento social.
385

Nestas obras não existe intenção alguma de descrever a verdade da política mas sim
questionar e mudar a política da verdade na qual sua representação se baseia.

Fig. 5: Still do filme Z32 (2008), de Avi Mograbi.

Em Z32 Um soldado israelita conta para Avi Mograbi como matou a sangue frio um inocente
durante uma operação de guerra. Exemplo de uma forma documental reflexiva, onde o autor
subverte as formas documentais para gerar epistemologicamente uma leitura subjetiva,
simplesmente inserindo uma máscara no soldado, generalizando, retirando a identidade do
assassino e colocando, empiricamente, seu rosto verdadeiro em qualquer um que assista ao
trabalho. Como quem diz: “ - Pode ser você!”

As próprias formações visuais e epistemológicas do documentário se definem como funções


políticas, mas com as formas documentais reflexivas que contrapõe as formas acima citadas,
também existe o perigo de gerar uma espécie de reflexividade ociosa que pode retirar toda a
questão ética tratada na obra e gerar um comodismo por parte do observador que torna-se
passível diante do que vê.

Como visto, é possível, por meio da arte, em certas situações o rompimento da imagem
documental com as políticas de poder e o conhecimento. Essa verdade não pode ser
produzida, nem calculada, não é objetiva, nem universal. Partindo desse pensamento
chegamos à conclusão que é possível afirmar que um documentário pode ser verdadeiro
386

principalmente por não estar relacionado com uma governamentabilidade que policíia a
verdade retratada na obra. As articulações e técnicas de produção documentais não podem ser
totalmente controladas, e ou domesticadas pelos discursos dominantes, pode-se produzir uma
verdade, mas, através de uma subversão de valores, e técnicas que conectam
epistemologicamente, artista e observador que passam a desfrutar de uma verdade
sensivelmente real.
387

BIBLIOGRAFIA

FLUSSER, Vilém. Texto / Imagem Enquanto Dinâmica do Ocidente. In Cadernos Rioarte,


Rio de Janeiro, ano II, n.5, jan., 1996

DUBOIS, P. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 1994

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CANDIOTTO, César. Foucault e a crítica da verdade. Belo Horizonte; Curitiba: Autêntica;


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Ficcions documentals. Barcelona: Caixa Fórum, 2004

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In:


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Janeiro: Zahar Editores, 1969.

RIBEIRO, Gisele. O múltiplo em tensão: cinema, arte e o político, disponível em


http://www.anpap.org.br/anais/2012/html/simposio10.html. Arquivo consultado em 09 de
novembro de 2014.
388

As fotografias de Moyra Davey como objeto teórico e ato de reinvenção do


meio.
Marianna Pedrini Bernabé (PPGA-UFES)

Resumo: Este texto busca reunir condições teóricas e reflexivas para investigar uma série de
trabalhos fotográficos produzidos pela artista canadense Moyra Davey de 2009 a 2014. Para
isso, são consultadas referências tradicionais da literatura produzida sobre a fotografia, como
A Câmara Clara de Roland Barthes, Sobre Fotografia de Susan Sontag e Pequena História
da Fotografia de Walter Bejamin; assim como um recente ensaio que realiza uma análise de
trabalhos artísticos ocidentais pós-conceituais, Reinventing the Medium de Rosalind Krauss.

Palavras-chave: Moyra Davey, fotografia, arte pós-conceitual.


Abstract: This text aims to bring together theoretical and reflective conditions to investigate
photographic works series produced by the Canadian artist Moyra Davey from 2009 to 2014.
Thereunto, traditional references about photography are consulted as Camera Lucida by
Roland Barthes, About Photography by Susan Sontag and Short History of Photography by
Walter Benjamin; as well as Reinventing the Medium by Rosalind Krauss, a recent essay that
develops an analysis of western post-conceptual artwork.
Keywords: Moyra Davey, photography, post-conceptual art.

Em uma entrevista concedida a Kunsthalle Basel1, Davey afirma que decidiu se tornar artista
aos doze anos de idade. Segundo ela, suas fortes dificuldades de expressão verbal fomentaram
uma necessidade de se expressar visualmente – e, mais tarde, de superar essa debilidade
através da escrita. Esse desejo fora levado consigo até a faculdade de artes onde, após uma
pausa de dois anos, decidiu finalmente que utilizaria a câmera fotográfica para a realização de
seus trabalhos.

A artista ainda exibe algumas imagens executadas durante sua juventude, onde se
predominam retratos (de amigos, namorados, familiares) e autorretratos, e até mesmo realiza
apropriações desse antigo material em projetos recentes (Les Godesses, 2011), mas sua
produção visual se inicia mais consistentemente após a finalização de seu MFA na

1
DAVEY, Moyra. Apud. SZYMCZYK, Adam. Accidents among the slow things: Adam Szymczyk interviews
Moyra Davey. P. 150. Disponível em: http://murrayguy.com/wp-
content/uploads/2013/03/SpeakerReceiver_MD_AS_Interview.pdf (acesso em 30 de março).
389

Universidade da Califórnia em San Diego, quando a artista decide abordar um dos temas que
se tornariam mais paradigmáticos dentro do corpo de seu trabalho: o dinheiro.

Este tema esteve presente em diferentes épocas de sua produção visual e literária. Ainda em
1988, quando a artista finaliza seu curso de mestrado e passa a residir em Nova Iorque, ela
produz um filme em super 8 chamado Hell Notes; elabora fotografias em close-up da moeda
americana, onde são retratadas ilustrações de pessoas, carros e desenhos lineares nas notas de
dólares americanos (Banknotes, 1989), assim como fotografa cem perfis de Abraham Lincoln
de cem diferentes moedas de 1 centavo de dólar (Copperheads, 1989-1990) (Figuras 3 e 4).
Esta última série foi exibida variadas vezes logo após sua finalização, e depois novamente
exposta, segundo a artista, em 1993 e 2010 – coincidentemente, de acordo com ela, no auge
das crises econômicas.

Em 2013, ela retoma essa mesma série e produz mais uma centena de perfis de Abraham
Lincoln. Entretanto, seu trabalho fotográfico neste ponto, já havia enfrentado uma importante
torcedura, onde a artista passa a intervir na superfície da imagem fotográfica através da
escrita, colagem de selos e dobra, e envia-a a diferentes destinatários. O trabalho, após tais
intervenções e envio, é exibido ao final desse processo com as marcas do deslocamento.

Em 2014, na elaboração de um vídeo em HD de trinta minutos (My Saints, 2014), Davey


reproduz uma cena do filme Suzanne’s Career (Érich Rohmer, 1963), que aborda igualmente
a temática do dinheiro. Neste trecho, um dos personagens do longa, Bertrand, que mantém
suas economias guardadas entre as páginas de um livro – ironicamente, um romance cujo
título é Diário de um ladrão, de Jean Genet – é furtado por um dos outros personagens do
filme após negar sucessivos empréstimos a seus amigos e mentir, dizendo que não tinha
dinheiro. A cena escolhida por Davey é a do personagem procurando desesperadoramente e
sem sucesso as notas guardadas entre as páginas do volume.

Tal cena também busca reproduzir um excerto da própria narrativa de Genet, quando ele
menciona ter furtado o dinheiro de um colega que estava guardado entre as páginas de um
livro. Quando a vítima descobre o desaparecimento e se põe a revirar seus pertences, Genet
afirma tê-lo observado sossegadamente e saboreado a angústia dominar sua face e
comportamento.
390

Além disso, Davey também leva essa discussão sobre o dinheiro para um ensaio publicado em
2014, o livro Burn the Diaries, no qual é revelado o seu interesse por Jean Genet e onde são
descritas as cenas do Suzanne’s Career e Diário de um Ladrão.

A leitura e escrita são temas também extensivamente trabalhados pela artista em seus projetos
visuais e literários. No início da década de noventa, Davey inicia uma documentação de
bancas de jornais (Newsstands, 1994), mencionadas na introdução desta pesquisa, onde ela
afirma efetuar a extensão de um projeto de documentação de manchetes de jornais e onde se
verifica a forte influência que o fotógrafo francês Eugéne Atget (principalmente suas bancas
de jornais fotografadas em Paris) tem sobre o seu trabalho visual.

De 1996 a 1999 ela desenvolve uma série fotográfica intitulada Books, onde aparecem
conjuntos de lombadas de livros, prateleiras abarrotadas de volumes, dicionários descomunais
etc. E em um trabalho que se inicia em 2011 e que ela intitula de Subway Writers, a artista
fotografa pessoas anônimas dentro de vagões de metrô em Manhattan operando tarefas que
envolvem a escrita à mão: crianças fazendo o dever de casa, mulheres fazendo contas,
estudantes desenvolvendo revirando páginas e textos etc.

Outra importante proposta desenvolvida pela artista envolvendo a leitura e escrita é o Les
Goddesses (2011), vídeo HD de sessenta e um minutos que fora exibido na Whitney Bienal de
2012, em que Davey aparece dentro de seu apartamento recitando um de seus textos, The wet
and the Dry, com a ajuda de um microfone e fones de ouvido. A narração se ocupa da vida de
três mulheres do século XIX, filhas de Mary Wollstonecraft: Fanny Imlay, Mary
Wollstonecraft Godwin (mais tarde, Mary Wollstonecraft Shelley, a mãe do Frankestein) e
Claire Claremont, sua meia irmã. As três irmãs, que recebiam como apelido “les goddesses”
de um amigo da família (nome que também intitula o vídeo), foram trágica e romanticamente
envolvidas com o poeta Percy Bysshe Shelley, um dos problemas desenvolvidos na narrativa.
A autora, assim, sobrepõe relatos de experiências pessoais e acrescenta fotografias da sua
juventude com a intenção de criar conexões - extremamente subjetivas e com tom
supersticioso - entre sua vida e a das quatro personagens. Um dos pontos centrais
desenvolvidos durante o vídeo com a ajuda dessas sobreposições - que além de biográficas,
são também temporais - é a perspectiva atual que envolve um compartilhamento de
informações sobre a vida privada e, ao mesmo passo, a necessidade também contemporânea
do mantimento da privacidade. Se, ao fim do vídeo, temos acesso visual aos cômodos de sua
casa, assim como a alguns dados de sua biografia, ela mantém um tom de distanciamento ao
391

nos negar imagens que criem noções de intimidade e nos oferece informações confusas e
pouco precisas.

Outro de seus trabalhos envolvendo a leitura e escrita é o ensaio The Problem of Reading, em
que a artista tem como objeto de investigação a natureza e os problemas que envolvem o
processo de leitura. Para isso ela recorre às estratégias pontuadas por Georges Perec, Harold
Bloom, Virginia Woolf, Ítalo Calvino, Oscar Wilde, Jorge Luis Borges, Frans Proust, Gregg
Bordowitz e Frans Kafka.

Um outro tema muito desenvolvido dentro do corpo de sua obra é a documentação de


interiores, onde se apresenta uma clara preocupação com questões práticas da vida doméstica.
Um de seus primeiros trabalhos que apresentam tais assuntos é uma série de fotografias
(dentre elas: Long Life Cool White, Pilon, Glad e Nachamiki) realizadas em 1999, nas quais
são apresentadas cenas de caótica desorganização doméstica: lâmpadas fluorescentes
encardidas em primeiro plano diante de um fundo com uma mesa e prateleira abarrotadas de
livros; superfícies lotadas de embalagens de alimentos, garrafas e quinquilharias; uma
geladeira antiga com o topo tomado por caixas; prateleiras com eletrônicos obsoletos e
danificados etc.

Tal tema também se encontra presente em sua coletânea Mother Reader – Ensencial Writings
on Motherhood, onde Davey comenta variados problemas que afetam as mulheres artistas e
escritoras quando estas lidam com a gestação e a criação dos filhos. A sujeira e
desorganização são um dos temas abordados pela artista através de sua seleção de ensaios.

Um outro trabalho que deixa muito evidente o interesse da artista pelos emblemas domésticos
é a série fotográfica 16 Photographs from Paris (2009), onde ela apresenta uma Paris quase
que totalmente contida dentro de interiores. Abundam fotografias de restos de bebidas e
comidas em cafés, mesas desorganizadas assinalando momentos de trabalho e | ou estudo,
uma pilha de jornais empoeirados etc. As poucas imagens executadas em ambientes abertos,
assinalam uma aproximação exacerbada e que enquadra itens de caráter intimista: lápides de
cemitérios com cartas, flores, presentes e fotografias em homenagem a falecidos.

A artista também demostra um significativo interesse, bem esmiuçado em sua narrativa Notes
on Photography & Accident, na ideia da casualidade (accident) como a força vital (lifeblood)
do ato e imagem fotográfica, tentando encontrar meios de dialogar tal noção com as últimas
tendências na fotografia contemporânea.
392

Para isso, ela recorre a diferentes autores que elaboram um estudo da natureza da foto
amparados por dados históricos, reflexões que visam definir esse meio dentro de uma
especificidade, ou estudos a partir de sua condição pressupostamente referencial. Dentre esses
autores por ela discutidos estão Walter Benjamin, Susan Sontag e Roland Barthes.

Em A Câmara Clara de Barthes, o que chama a atenção de Davey e que a instiga a ponto
empregar tal ideia na defesa da noção da casualidade como elemento intrínseco da imagem
fotográfica, é a definição do punctum, que segundo o escritor é

(...) picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de
dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me
mortifica, me fere).2

Em oposição ao punctum está o studium, descrito pelo autor como uma espécie de interesse
médio que determinada composição fotográfica exerce sobre ele quando esta possui uma
característica ou particularidade relacionada a questões e conhecimentos da cultura moral e
política da qual ele é oriundo. O punctum, pelo contrário, é descrito como o elemento
inesperado e desconcertante que intriga e fere o observador de uma forma única, particular e
que, portanto, não pode ser mediado por conhecimentos e valores precedentes.

Já na narrativa de Benjamin, Pequena História da Fotografia, a artista resgata uma parte de


um excerto onde o autor comenta a natureza contingente do ato fotográfico:

Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo o que existe de planejado em seu


comportamento, o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem
a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a
imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em
minutos únicos, há muitos extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo,
olhando para trás. 3

O aqui e agora representam o momento do clique, aquilo que o observador sente a


necessidade irresistível de descobrir com a intenção de desvelar o lugar onde a imagem fora
executada, lugar que não mais existe mas que incita o observador a procurar desvendá-lo.

Por fim, Davey também elenca uma citação de Sontag sobre as convicções do fotógrafo sobre
o ato de captura da imagem: “Most photographers have always had na almost supersticious
confidence in the lucky accident”4.

2
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984. P. 45-46.
3
BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. P. 94. Disponível em:
https://seminariostecmidi.files.wordpress.com/2012/02/benjamin-walter-pequena-historia-da-fotografia.pdf
(Acesso em 30 de março).
4
SONTAG, Susan. Apud. DAVEY, Moyra. Notes on photography & accident. P. 1. (Acesso em 30 de março).
393

A questão que consequentemente vem à tona é não apenas como essa casualidade, que artista
vê como elemento fundamental do suporte com o qual trabalha, se caracteriza dentro de suas
propostas fotográficas, mas o porquê de se trazer esse aspecto (e não outros) como elemento
preponderante para discutir suas imagens. Pois é importante ressaltar que a narrativa Notes on
Photography & Accident não fora publicada isoladamente como uma série de pareceres sobre
a fotografia contemporânea de maneira genérica, e sim como parte de um catálogo que
documentava uma de suas exposições individuais5.

Sobre isso, logo na primeira página de seu ensaio, após as citações, Davey afirma:

The notion of accident has had many meanings, from “decisive moment” to
“photographing to see what something will look like photographed” (…). 6

Suas duas interpretações da palavra apontam, sobretudo, para as noções de impermanência,


contingência e uma constante mutabilidade da matéria e/ou da visualidade desta que,
dependendo da perspectiva ou postura do fotógrafo, podem ser captadas ou apreendidas num
momento decisivo que passa diante de seus olhos ou descoberta/desveladas através de um
olhar inquieto e investigativo dele sobre a realidade aparente.

A artista parece oscilar conscientemente entre essas duas alternativas de exposição do casual.
Se em uma fotografia de sua série The White of Your Eyes (for Bill Horringan) (2010) (Figura
1) a lente registra um disco de vinil em movimento numa vitrola cujo braço afasta a agulha de
sua superfície (indicando que, no momento de captura da imagem, uma canção terminara), em
outros casos, como em toda a sua série Copperheads (trabalhos que se iniciam em 1990)
(Figuras 3 e 4) a câmera se aproxima violentamente de seu motivo, as moedas de um centavo
de dólar, tornando não só evidente como quase palpáveis (o apelo sensorial aqui é inegável) o
desgaste e sujeira em suas faces.

5
A exposição Long Life Cool White, realizada The Fogg Art Museum, Harvard University, Cambridge, MA.
6
DAVEY, Moyra. Notes on Photography & Accident. Nova Iorque: 2007. P. 1. Disponível em:
http://74.220.219.113/~murraygu/wpcontent/uploads/2012/02/Davey_Notes_on_Photography__Accident.pdf
(Acesso 30 de março).
394

FIGURA 1 - DETALHE - THE WHITE OF YOUR EYES (FOR BILL HORRINGAN), MOYRA DAVEY,
2010. IMPRESSÃO FOTOGRÁFICA, FITA ADESIVA, SELO, TINTA, 30 X 40 CM CADA. KUNSTHALLE
BASEL, BASEL, SUÍÇA.

Em uma entrevista concedida a Kunsthalle Basel em 2010, Davey afirma haver realizado o
uso de um microscópio para efetuar tais imagens que, segundo ela, são realizadas “in the most
forensic, controlled method available (...)”7, o que reforça ainda mais uma noção de pesquisa
microscópica e investigativa do cotidiano. Por outro lado, o vinil em movimento acima prato
giratório da vitrola, assim como o braço desta afastando-se, apresentam o registro de um
evento que se lança aos olhos do transeunte (ou do flanêur8) deixando-se capturar durante um
ínfimo instante.

Em 2007, como citado, parte de seu trabalho sofre grandes transformações em seu processo
construtivo: num projeto realizado em sua galeria em Toronto, Goodwater, as fotografias
passam a ser tratadas como postais ou envelopes de cartas (dobradas, fixadas com fita
adesiva, portando selos e informações manuscritas, e realizando deslocamentos geográficos).

7
DAVEY, Moyra. Accidents among the slow things: Adam Szymczyk interviews Moyra Davey. Basel: Sternberg
Press, 2010. P. 141. Disponível em: http://murrayguy.com/wp-
content/uploads/2013/03/SpeakerReceiver_MD_AS_Interview.pdf (Acesso em 30 de Março).
8
Ela se define como “a flâneuse who never leaves her apartment.” DAVEY, Moyra. apud. WEISBERG, Jessica.
Can self-exposure be private? Disponível em: http://www.newyorker.com/culture/culture-desk/can-self-
exposure-be-private (Acesso em 30 de Março).
395

Sobre essa experiência, ela afirma (em uma entrevista realizada em 2010 para a Kunsthalle
Basel):

(...) I loved the process so much – treating the photograph as a piece of paper to be
folded, written on, and taped, as opposed to the kid-gloves approach to the fine print
that must at all costs remain unblemished and end up in a frame – that I decided to
repeat it (…) The process is about (…) the accretion of time and wear on the object,
returning the photograph to its status as paper, the liberation of leaving some things up
to chance, and the idea of an exchange with a specific person. 9

Estas séries específicas do seu trabalho, assim como seus atuais desdobramentos são, a meu
ver, suas mais intrigantes propostas, pois produzem uma forte adequação e equivalência entre
o preponderante motivo fotografado (a casualidade), a sua materialidade e experiências
constitutivas e, por fim, seu modo de exibição.

Como a artista afirma, a fotografia regressa a seu estatuto de papel quando dobrado e, assim
como a carta e o postal, vira superfície da escrita, fita, cola, selo e passa pelos correios
deixando possibilidade para a intervenção do acaso, guarda as marcas dos deslocamentos e
propõe uma espécie de intercâmbio. Apresenta ainda um meio alternativo de exibição, fora do
espaço institucional, e quando o faz dentro deste espaço procura por um tratamento
diferenciado do trabalho fotográfico ao optar por não isolá-lo dentro de molduras e fixá-los
diretamente às paredes (Figura 2).

9
DAVEY, Moyra. Accidents among the slow things: Adam Szymczyk interviews Moyra Davey. Basel: Sternberg
Press, 2010. P. 146. Disponível em: http://murrayguy.com/wp-
content/uploads/2013/03/SpeakerReceiver_MD_AS_Interview.pdf (Acesso em 30 de Março).
396

FIGURA 2 - THE WHITE OF YOUR EYES (FOR BILL HORRINGAN), 2010. 24 FOTOGRAFIAS, FITA,
SELO, TINTA. 30 X 45 CM CADA. VISTA DA INSTALAÇÃO, KUNSTHALLE BASEL, BASEL, SUÍÇA.

Assim sendo, Davey seleciona a noção de casualidade como fulcral dentro de seu
desenvolvimento teórico porque esta está inequivocamente presente em seu trabalho visual.
Entretanto, este não é o único aspecto sobressalente de sua proposta plástica.

Seu trabalho se constrói, igualmente, a partir de um estudo sobre as convenções imagéticas que
determinam o ato de captura da imagem. Suas fotografias ilustram cenas – bancas de revistas,
restos de comida em mesas de cafés, superfícies empoeiradas, pilhas de jornal, botões antigos,
aparelhos eletrônicos obsoletos, moedas de um centavo etc. – onde se desdobra uma fluidez,
nitidez, apelo tátil e caráter nebuloso pouco compatíveis com as designações e descrições
tradicionais do termo.

Roland Barthes, por exemplo, em seu clássico livro A Câmara Clara10, afirma sobre a natureza
da superfície fotográfica:

Tal foto, com efeito, jamais se distingue de seu referente (do que ela representa), ou
pelo menos não se distingue dele de imediato ou para todo o mundo (o que é feito por
qualquer outra imagem, sobrecarregada, desde o início e por estatuto, com o modo com
o objeto é simulado) (...) Por natureza, a Fotografia (é preciso por comodidade aceitar
esse universal, que por enquanto apenas remete à repetição incansável da contingência)

10
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira S.A., 1984. 185 p.
397

tem algo de tautológico: um cachimbo, nela, é sempre um cachimbo,


intransigentemente.11

Em oposição à afirmação de Barthes, em muitas das fotografias de Davey a foto se distingue de


imediato do referente retratado. A aproximação violenta que a lente da câmera faz com alguns de
seus motivos (os exemplos das moedas de um centavo de dólar com os perfis de Abraham
Lincoln são paradigmáticos – Figuras 3 e 4) faz com que a associação à algum referencial só se
torne possível depois do primeiro olhar. E ainda que esse fator seja notável durante um segundo
exame, não consegue subordinar outros aspectos da composição fotográfica a seus desígnios.

Figura 3 e Figura 4 – Copperhead nº 30 e Copperhead nº 48, 1990. C-prints, 61X47,5 cm.

Elas possuem algo de fragmentário, nebuloso, abstrato que impedem ao observador a


realização de uma aproximação mnemônica ou afetiva, ao mesmo passo que impelem uma
nitidez e tatilidade abruptas. E é exatamente por isso que suas imagens (que vão muito além
dos rápidos exemplos acima) não conseguem ser abordadas de modo completo através da
historiografia tradicional, ainda que tão bem quistas por Davey. Tais trabalhos necessitam de
um diálogo que consiga absorver esses aspectos tão pouco comuns às reflexões “ortodoxas” a

11
Ibid. P. 14-15.
398

respeito da imagem fotográfica e devido a esse motivo optei por recorrer às análises de
Rosalind Krauss.

Krauss elabora, em seu Reinventing the Medium12, uma reflexão a respeito da imagem
fotográfica que a retira de seu invólucro referencial e específico, e a discute como elemento
constitutivo de um processo laboral que a situa, em termos teóricos, em diálogo com questões
relativas ao seu caráter técnico, instrumental e à sua condição de obsolescência.

Esse meio (medium), como bem explicita Krauss, não faz referências aos “tipos” de arte já
solapados através da crítica conceitual (pintura, escultura, desenho, arquitetura etc.), mas ao
meio como uma série de convenções derivadas (mas não idênticas) das condições materiais de
dado aparato técnico. Em outras palavras, o medium é, dentro deste contexto, uma espécie de
produto de um instrumento (já em processo de obsolescência) apropriado pelo artista e cujo
uso se torna alargado para diferentes possibilidades.

Neste ponto, umas das características que Krauss, ainda em Reinventing the Medium, levanta
quando analisa o trabalho do artista irlandês James Coleman – dentro de uma proposta em que
ele faz a exibição de séries de fotografias através de uma fita de slides cujo prosseguimento se
dá através do uso de um timer – é a sua elaboração de um meio que evoca uma colisão
paradoxal entre a imobilidade e o movimento.

Coincidentemente, percebo de maneira similar, dentro das propostas de Davey, a elaboração


de um medium que toca as noções de imobilidade e movimento, mas de maneira
completamente distinta. No seu caso, a obsolescência se revela, por exemplo, no uso da
câmera analógica assim como no uso do serviço postal, enquanto sua atualidade se mostra
presente na fluidez e qualidade enigmática de suas composições – que herdam características
do filme e vídeo, e não se apresentam como figurativas (apesar de retratar objetos plenamente
reconhecíveis).

Concluindo, os trabalhos de Moyra Davey vão além das associações à casualidade e


contingência – analisados pela artista e justificados através de uma crítica fotográfica
tradicional – e carregam aspectos remanescentes da arte conceitual (assim como de propostas
conceitualistas) ao tratar o ato fotográfico como parte de um processo crítico que visa
construir um trabalho visual através da desconstrução de uma ideia convencional da imagem
fotográfica (tornando a fotografia um objeto teórico) e, além disso, elaboram um reexame de

12
KRAUSS, Rosalind. Reinventing the medium. P. 289-305. Disponível em:
http://art.buffalo.edu/coursenotes/art314/krauss.pdf (Acesso em 30 de abril 2015).
399

um instrumento obsoleto através de novos empregos e propõem um alargamento de seu uso


dentro do mundo contemporâneo ao produzir questões de relevância para a arte atual (um ato,
portanto, de reinvenção do meio).

Referências:
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira S.A., 1984.
BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. P. 94. Disponível em:
https://seminariostecmidi.files.wordpress.com/2012/02/benjamin-walter-pequena-historia-da-
fotografia.pdf (Acesso em 30 de março).
DAVEY, Moyra. Accidents among the slow things: Adam Szymczyk interviews Moyra
Davey. Basel: Sternberg Press, 2010. Disponível em: http://murrayguy.com/wp-
content/uploads/2013/03/SpeakerReceiver_MD_AS_Interview.pdf (Acesso em 30 de Março).
DAVEY, Moyra. apud. WEISBERG, Jessica. Can self-exposure be private? Disponível em:
http://www.newyorker.com/culture/culture-desk/can-self-exposure-be-private (Acesso em 30
de Março).
DAVEY, Moyra. Notes on Photography & Accident. Nova Iorque: 2007. Disponível em:
http://74.220.219.113/~murraygu/wpcontent/uploads/2012/02/Davey_Notes_on_Photography
__Accident.pdf (Acesso 30 de março).
KRAUSS, Rosalind. Reinventing the medium. P. 289-305. Disponível em:
http://art.buffalo.edu/coursenotes/art314/krauss.pdf (Acesso em 30 de abril 2015).
400

Nossa paisagem sonora: Sons de todos os lados.


Hendy Anna Oliveira (DTAM-UFES)

Resumo
Leitura interpretativa dos conceitos básicos apresentados pelo autor Murray Schafer no livro
“A Afinação do Mundo”, a respeito da diversidade das materialidades da Paisagem Sonora, da
música aos diversos ambientes, do ruído e da poluição sonora. Revisar a bibliografia sobre os
conceitos de objeto sonoro daí, a importância do trabalho deste autor para conceituar os
aspectos constituintes do áudio nas mídias atuais passando pelo aspecto trágico oriundo da
poluição sonora na contemporaneidade a partir da perspectiva de Nietzsche.
Palavras-chave: Paisagem sonora; ruído; escuta; poluição.

Abstract

Interpretative reading of the basic concepts presented by the author Murray Schafer in the
book "The World Tuning", about the diversity of materiality landscape, music to different
environments, noise and noise pollution. To review the literature on the concepts of sound
object there, the importance of the work by this author to conceptualize the constituent
aspects of the current audio media through the tragic aspect arising from the noise in the
contemporary world from the perspective of Nietzsche .
Keywords: landscape; noise; listening ; pollution.

Introdução

“Qualquer coisa que se mova, em nosso mundo, vibra o ar.


Caso ela se mova de modo a oscilar mais que
dezesseis vezes por segundo esse movimento é visto como som.
O mundo, então, está cheio de sons. Ouça”.
(O Ouvido pensante – Murray Schafer)

Diversos compositores e autores trataram a música como algo relacionado com o meio
ambiente e o ouvinte. Dentre eles, Luigi Russolo (A arte do Ruído: manifesto futurista, 1913),
John Cage (4’33”, 1952 – Silence, 1961), Pierre Schaeffer (Tratado dos Objetos Musicais,
1966). Murray Schafer (A Afinação do Mundo, 2001) pesquisou, de modo particular, por
401

meio de investigações e registros sobre os sons do ambiente, nomeados por ele de soundscape
(paisagem sonora). Dessa forma, apresentaremos, a seguir, alguns de seus conceitos.

A paisagem sonora é um termo que tem origem na palavra inglesa "soundscape" cunhado pelo
compositor canadiano Raymond Murray Schafer e que se caracteriza pelo estudo e análise do
universo sonoro que nos rodeia, e que tem vindo a ganhar terreno em diversas áreas de estudo,
nomeadamente nos estudos urbanos, musicais, médicos e literários.

Observamos ainda que paisagem sonora pode ser qualquer campo de estudo acústico: uma
composição musical, um programa de rádio ou a um ambiente acústico. Todavia, formular
uma impressão exata de uma paisagem sonora é mais difícil do que a de uma paisagem visual.
Não existe nada em sonografia que corresponda à impressão instantânea que a fotografia
consegue criar. Com uma câmera, é possível detectar os fatos relevantes de um panorama
visual e criar uma impressão imediatamente evidente. O microfone não opera desta maneira.
Ele faz uma amostragem de pormenores e nos fornece uma impressão semelhante à de um
close, mas nada que corresponda a uma fotografia aérea.

Os sons, desde sempre, modelam ambientes, determinando ações e estratégias de convívio.


Colocamo-nos a pensar a escuta, relacionando-a com o avanço da tecnologia, bem como o
poder. Imaginamos nossos ouvidos como envolvidos numa teia sonora, produzindo afetos,
intensidades, sensações, potencias e despotencias que independem da vontade ou intenção do
sujeito que escuta. E nesse terreno que pretendemos trabalhar para pensar a condição da
escuta.

Quanto mais familiar é um ambiente sonoro, menos discernível ele é para nossa escuta, pois
estamos condicionados a escutá-lo de uma determinada maneira. Para Schafer, “o hábito que
adquirimos de identificar tão facilmente tanto as fontes sonoras como os sons diversos que
elas emitem, mascara nossa aprendizagem”. (SCHAFER, 2001, p. 336).

Todos os sons fazem parte de um campo contínuo de possibilidades, que pertence ao domínio
compreensivo da música. Temos a nova orquestra: o universo sonoro, e os músicos, qualquer
um ou coisa que soe.

Quanto aos ruídos, temos quatro significados atribuídos à palavra ruído conforme os tempos:
som indesejado, som não musical, som que fere o aparelho auditivo e distúrbio na
402

comunicação. Não obstante, o que se entende por ruído hoje não é o mesmo que outras
épocas. Quando pensamos numa arqueologia do ruído, é possível rastrear diferenças e
variações em seus conceitos, bem como em nossa maneira de o perceber. Ruído ou silêncio
são atributos dados ao sonoro que, em princípio, não são bons ou maus. Pensemos para além
de tais categorizações, para além do bem e do mal, como diria Nietzsche, para não cairmos
em julgamentos morais e estéticos, como em certos momentos o pensamento de Murray
Schafer parece beirar, seja pelo pensamento ecológico, jurídico ou higienista.

Traçando um paralelo com as representações apolíneas e dionisíacas de Nietzsche


observamos que uma paisagem sonora consiste em objetos ouvidos e não em objetos vistos.
Para além da percepção auditiva, estão notação e fotografia dos sons, que, por ser salientes,
apresentam certos problemas. Dessa forma, enquanto qualquer pessoa tem alguma experiência
na leitura de mapas e muitos podem extrair informações significativas de outros diagramas da
paisagem visual, como plantas arquitetônicas ou mapas executados por geógrafos, poucos
conseguem ler elaboradíssimas cartas utilizadas pelos foneticistas, engenheiros acústicos ou
músicos. Dar uma imagem totalmente convincente de uma paisagem sonora requer habilidade
e paciência extraordinárias: seria necessário fazer milhares de gravações e dezenas de
milhares de medições, e um novo modo de descrição teria que ser inventado.

Neste mesmo contexto, P. Schaeffer, 1966, sinaliza que o caminho da música foi contrário ao
tomado pela pintura. “Inversamente, a música se desenvolveu primeiro sem o mundo exterior,
só remetia a ‘valores’ musicais abstratos, se faz ‘concreta’, ‘figurativa’ poderíamos dizer,
quando utiliza ‘objetos sonoros’ extraídos diretamente do ‘mundo exterior’ dos sons naturais
e dos ruídos”, comparando as transformações da escuta, a partir das ferramentas de gravação,
ao advento da fotografia ao olhar; nesse processo, a fotografia priva a fluidez da visão e
promove uma fixação do objeto, colocando-nos, a partir do enquadre, a ver o que não se via.
Pelo enquadre da foto, somos dispensados de ver o resto, nossa atenção se fixa sobre algo que
se quis tornar visível. Com o microfone, assim como na fotografia, a escuta passou a ter um
enquadre, e se encontra emoldurada num regime sonoro proposto”.

Diante disso constamos em Nietzsche, o apolíneo e o dionisíaco como impulsos artísticos que
andam juntos e em flagrante contraposição à medida que expressam a arte do figurador
plástico, que remete a Apolo, e a arte não figurada da música que segue Dioniso. Há, no
mundo helênico, uma disposição em sentido inverso, em termos de origens e objetivos, entre
403

a arte proveniente do artista plástico e a resultante do músico. Trata-se da remissão a dois


impulsos distintos que, embora “caminhem lado a lado”, estão, via de regra, em aberta
oposição que incita a produções sempre novas. Contudo, coexistem sempre na qualidade de
opostos. A luta entre os dois simboliza a produção de algo, pois a cada luta travada algo novo
é criado. É a partir da relação e da alternância de influência desses dois opostos que se
evidencia a produção artística.

Outra questão importante se encontra posição desvantajosa quando se trata de documentos


históricos para nosso objeto histórico. Sobre isto OBICI, 2006, assinala:

Embora dispomos de muitas fotos tiradas em épocas diferentes e, antes delas, de


desenhos e mapas que nos mostram como um determinado cenário se modificou com o
passar dos anos, precisamos fazer inferências no tocante às mudanças sobrevindas na
paisagem sonora. Podemos saber exatamente quantos edifícios foram construídos numa
determinada área ao longo de uma década ou qual foi o crescimento da população, mas
não sabemos dizer em quantos decibéis o nível de ruído ambiental pode ter aumentado
em um período de tempo comparável. Mais do que isso: os sons podem ser alterados ou
desaparecer e merecer apenas parcos comentários, mesmo por parte do mais sensível
dos historiadores. Assim, embora possamos utilizar modernas técnicas de gravação e
análise no estudo das paisagens sonoras contemporâneas, para fundamentar as
perspectivas históricas teremos que nos voltar para o relato de testemunhas auditivas da
literatura da mitologia, bem como aos registros antropológicos e históricos. (OBICI,
2006, p. 20)

Assim, a paisagem sonora é um campo de interações mesmo quando particularizada dentro


dos componentes de seus eventos sonoros. Determinar o modo pelo qual os sons se afetam e
modificam (e a nós mesmos) em situação de campo é tarefa muito difícil do que separar sons
individuais em um laboratório, mas esse é um novo e importante tema com que se defronta o
pesquisador da paisagem sonora.

Aspectos da paisagem sonora

Uma paisagem sonora é composta pelos diferentes sons que compõe um determinado
ambiente, sejam esses sons de origem natural, humana, industrial ou tecnológica. O seu
estudo, enquadra-se no âmbito da Ecologia Acústica.

O que o analista da paisagem sonora precisa fazer, primeiramente, é descobrir seus aspectos
significativos, aqueles sons que são importantes por causa da sua individualidade, quantidade
ou preponderância. Finalmente, algum sistema de classificação genérica terá que ser
delineado. Inicialmente, precisamos delinear os principais temas da paisagem sonora: sons
404

fundamentais, sinais e marcas sonoras. A estes poderíamos acrescentar os sons arquétipos,


aqueles misteriosos sons antigos, não raros imbuídos de oportuno simbolismo, que herdamos
da Alta Antiguidade ou da Pré-História.

O som fundamental, ou seja, um som básico de ancoragem de um ambiente (como os sons da


água, do vento, dos pássaros, insetos e outros animais, sons que muitas vezes não são ouvidos
conscientemente), como se fosse a “tonalidade” musical do ambiente, em torno da qual o
material à sua volta pode “modular”; o sinal, ou seja, um som destacado, ouvido
conscientemente, para o qual a atenção é direcionada (Ex.: “avisos acústicos”, como sinos,
apitos, buzinas, sirenes); a marca sonora, um som característico de um determinado lugar e
que seja particularmente notado pelo povo daquele local.

Som fundamental é um termo musical. É a nota que identifica a escala ou tonalidade de uma
determinada composição. É a âncora ou som básico, e, embora o material possa modular à sua
volta, obscurecendo a sua importância, é em referência a esse ponto que tudo mais assume o
seu significado especial. Os sons fundamentais não precisam ser ouvidos conscientemente;
eles são entreouvidos, mas não podem ser examinados, já que se tornam hábitos auditivos, a
respeito deles mesmos.

O psicólogo da percepção visual fala de “figura” e “fundo”. A figura é vista, enquanto o


fundo só existe para dar a figura seu contorno e sua massa. Mas a figura não pode existir sem
o fundo; subtraia-se o fundo, e a figura se tornará sem forma, inexistente. Assim, ainda que os
sons fundamentais nem sempre possam ser ouvidos conscientemente, o fato de eles estarem
ubiquamente ali sugerem a possibilidade de uma influência profunda e penetrante em nosso
comportamento e estados de espírito. Os sons fundamentais de um determinado espaço são
importantes porque nos ajudam a delinear o caráter dos homens que vivem no meio deles. A
figura corresponde ao sinal ou marca sonora. O fundo corresponde aos sons do ambiente à sua
volta e o campo, ao lugar onde todos os sons ocorrem, a paisagem sonora.

Os sons fundamentais de uma paisagem ainda, são os sons criados por sua geografia e clima:
água, vento, planícies, pássaros, insetos e animais. Muitos desses sons podem encerrar um
significado arquétipo, isto é, podem ter-se imprimido tão profundamente nas pessoas que os
ouvem que a vida sem eles seria sentida como um claro empobrecimento, podendo mesmo
afetar o comportamento e o estilo de vida de uma sociedade.
405

Por sua vez, os sinais são sons destacados, ouvidos conscientemente. Nos termos da
psicologia, são mais figuras que fundos. Qualquer som pode ser ouvido conscientemente e,
desse modo, qualquer som pode tornar-se uma figura ou um sinal: sinos, apitos, buzinas e
sirenes. Estes especificamente precisam ouvidos porque são recursos de avisos acústicos.

Finalmente, o termo marca sonora se refere a um som da comunidade que seja único ou que
possua determinadas qualidades que o tornem especialmente significativo ou notado por um
determinado povo. Uma vez identificada a marca sonora, é necessário protegê-la porque as
marcas sonoras tornam única a vida acústica da comunidade .

Diferentes tipos de paisagens sonoras

 A paisagem sonora natural


 Sons da vida
 A paisagem sonora rural
 Do vilarejo à cidade

A paisagem sonora pós-industrial

 A revolução industrial
 A revolução elétrica

A música muda-se para dentro das salas de concerto quando já não pode ser ouvida
efetivamente do lado de fora. Ali, por detrás das paredes acolchoadas, a audição concentrada
torna-se possível. Isso equivale a dizer que o quarteto de cordas e o pandemônio urbano são
historicamente contemporâneos.

As paisagens de Haendel e Haydn são tão ricas em pormenores quanto as pinturas de


Brueghel e, como elas, cuidadosamente estruturadas. Michelangelo criticava os pintores
flamencos por não conseguirem exercer a seleção em seus temas; em vez de focalizarem uma
coisa, eles incluíam tudo o que viam. Na verdade, estas composições criam uma característica
semelhante, pois são quadros de ângulos externos; o compositor observa a paisagem a
distância. A natureza executa e ele se encarrega dos serviços de secretaria.
406

Somente nas paisagens da era romântica é que os compositores introduzem na cor da natureza
sua própria personalidade ou estados de espírito. Os eventos naturais são, então, criados para
se sincronizar ou competir ironicamente com os estados de espírito do artista...

Schubert com frequência fez a paisagem executar para ele. Em uma canção como Der
Lindenbaum [O Limoeiro], de Die Winterreise [Viagem de inverno], os estados de espírito do
poeta-compositor estimulam a árvore, fazendo seus galhos se moverem branda (no verão) ou
violentamente (no inverno), enquanto os pensamentos diurnos e noturnos se distinguem pelas
tonalidades maior e menor. Em Dichterliebe, de Schumann, a paisagem mantém suas alegres
cores de verão, enquanto a alegria do poeta se transforma em dor, uma situação amargamente
irônica que é plenamente explorada nos contrastes entre o cantor e o pianista.

No decorrer da história da música ocidental, os sons da natureza (particularmente do vento e


da água) tem sido frequente e adequadamente transmitidos, assim como sinos, pássaros, armas
de fogo e trompas de caça.

Na verdade o grande revolucionário da nova era foi o experimentador Luigi Russolo 1, que
inventou uma orquestra de ruídos, formada por objetos que zumbiam e uivavam e outras
quinquilharias, calculadas para introduzir o homem moderno no potencial musical do novo
mundo que surgia. Em seu manifesto A arte do ruído (L’arte dei rumori), de 1913, temos:

RUSSOLO (1986) nos dá um exemplo de paisagem sonora moderna:

Atravessemos uma grande capital moderna, com nossos ouvidos mais atentos que os olhos.
Nós nos deliciaremos em distinguir os redemoinhos de água, de ar ou de gás nos tubos
metálicos dos motores que resfolegam e pulsam com uma indiscutível animalidade, o palpitar
das válvulas, o vai e vem dos êmbolos, os rangidos das serras mecânicas, o andar dos trens
sobre os trilhos, o estalar dos chicotes, o agitar das cortinas e das bandeiras. Nós nos
divertiremos ao orquestrar juntos, em nossa imaginação, o estampido dos portões das lojas, as
portas batidas, o sussurro e o ruído de passos das multidões, os diversos alaridos das estações,
das ferrovias, das fiações, das tipografias, das centrais e das ferrovias subterrâneas
(RUSSOLO, 1986, p. 26).
407

Poluição Sonora!!

É necessário documentar aspectos importantes dos sons, observar suas diferenças,


semelhanças e tendências, colecionar sons ameaçados de extinção, estudar os efeitos dos
novos sons antes que eles fossem colocados indiscriminadamente no ambiente, estudar o rico
simbolismo dos sons e os padrões do comportamento humano em diferentes ambientes
sonoros, com o fim de aplicar conhecimento ao planejamento de futuros ambientes.

Desse modo, os sons que compõem a vida humana veiculam as práticas sociais que os
conformam e na composição da vida urbana, não se trata mais de um concerto da natureza
(Schafer, 2001:212), pois revela os encontros fortuitos na rua, os rituais cotidianos de
compras de alimentos para a casa, os itinerários dos habitantes que percorrem as ruas da casa
para o trabalho e vice-versa, as expressões religiosas de diversos tipos, a sociabilidade dos
bares e das calçadas, a vida cotidiana no bairro, entre muitos outros, e são aspectos que podem
ser etnografados para se pensar as feições que a crise assume no contexto das modernas
sociedades complexas. A composição de vozes e trânsito, dos sons de passos e risadas, das
sonoridades dos utensílios técnicos: celulares, caixas-registradoras, o barulho do ar
condicionado, televisão, rádio, etc, remetem à complexidade do ambiente urbano em termos
de suas expressões sonoras.

A paisagem sonora do mundo urbano contemporâneo tem sido apontada por muitos estudiosos
das condições ambientais nas grandes cidades como a responsável pelo stress, a irritação e o
desgaste físico e emocional de seus habitantes, cada vez mais submetidos à pressão da
artificialidade tecnológica do seu ambiente psicosocial. Neste sentido é que as sonoridades da
vida urbana advindas das profundas mudanças culturais das sociedades ocidentais, marcadas
pelo rápido crescimento urbano e industrial, a movimentação demográfica e as novas
tecnologias podem ser enfocadas como parte dos estudos sobre o fenômeno da tragédia da
cultura apontado por G. Simmel, em fins do século XIX. Se os sons da rua antes se
caracterizavam pelos “moedores de melodias” (Tinhorão, 2005), do realejo, dos afiadores de
faca, dos vendedores de picolé, dos pregões dos mercados públicos, dos apitos das fabricas,
dos sinos das igrejas, as serenatas e as bandas militares, latidos de cachorros, hoje, junta-se a
alguns deles uma paisagem sonora outra, a dos “ruídos” como a dos telefones celulares, das
buzinas e de travadas de pneus de carros, de tiros e de gritos, de motores de ônibus, ruídos de
betoneiras, buzinas de ambulância e carros de policia, das músicas dos bares e casas de shows,
dos aviões e helicópteros, dos estádios de futebol, etc. (BARROSO, ROCHA e VEDANA,
2008)

Com o passar do tempo observamos que a paisagem sonora ocidental torna-se muito poluída.
A crescente quantidade de motores elétricos, sejam os presentes nas residências como os
presentes do lado externo, favorecem este cenário cada vez mais ruidoso e preocupante. A
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evolução da humanidade fez com que a paisagem sonora natural fosse gradativamente se
transformando em paisagens sonoras artificiais ou tecnológicas. Os sons naturais estão se
tornando cada vez mais não-naturais e substituídos por sons feitos à máquina. A Revolução
Industrial contribuiu decisivamente para esta transformação. E também durante a década de
70, com a intensificação do tráfego das metrópoles e o surgimento do "heavy metal".

McLuhan, 1966, aponta que o microfone e o alto-falante tornaram-se órgãos estendidos do


ouvido levando a percepção dos sons a pontos improváveis para épocas anteriores. Já o
telefone, por sua vez, inaugurou outra forma de escuta: alem de possibilidades de
comunicação, até o momento inexplorada, com a presença de um som cuja fonte emissora não
é visível, foi inventado por Alexandre Graham Bell do Electrical Speech Machine, datada de
1876, e para algumas pessoas, foi o mais importante equipamento sonoro a causar
transformações nos vínculos que o homem mantém com o som.

Uma das ironias do homem ocidental e que ele nunca se preocupa com a possibilidade de que
uma nova invenção se constitua em ameaça a sua vida. E assim tem sido, do alfabeto ao
automóvel. O homem ocidental tem sido continuamente remodelado por uma lenta explosão
tecnológica que se estende por mais de 2.500 anos. A partir do telefone, no entanto, ele começa
a viver uma implosão. (MCLUHAN, 1969, p. 303)

Os estudos de paisagem sonora estão diretamente ligados aos estudos de Ecologia Acústica, e
esta, compõe-se de inúmeros tipos de sons: agradáveis, desagradáveis, ruidosos, alegres,
tristes, etc. Entretanto ela mostra-se subjetiva, no sentido de que a sua definição é resultante
da experiência individual de cada um. A ideia de paisagem sonora se refere ao ambiente
acústico natural, consistindo de sons naturais, como vocalizações de animais e sons do clima
assim como de outros elementos naturais; sons ambientais criados por humanos, por meio de
composição musical, sound design, além das demais atividades humanas comuns como
conversação, trabalho e sons de origem mecânica resultantes do uso de tecnologia industrial.

Portanto a paisagem sonora mundial deve ser considerada uma imensa composição musical
soando incessantemente à nossa volta. Somos simultaneamente seu público, seus executantes,
e seus compositores.

Schafer sinaliza, que pelo fato de a produção sonora ser, em grande parte, uma questão
subjetiva do homem moderno, a paisagem sonora contemporânea é notável por seu
hedonismo dinâmico, aponta o fim da poluição sonora por duas vias: limpeza de ouvidos ou
por um colapso mundial de energia. Sem energia, o mundo industrial pararia e,
409

consequentemente, boa quantidade das máquinas, responsáveis pela produção sonora, que
compõe os ambientes, silenciariam. Muitos sons presentes hoje sumiriam com tal colapso,
voltaríamos a viver num estado pré-revolução industrial, que pareceria quase uma volta a
paisagem sonora remota, um desejo pessoal do autor em se ver livre do mundo sonoro das
máquinas. A outra estratégia toma a forma de uma mudança na postura da escuta, uma
intenção induzida aos ouvidos que busca encarar o mundo colocando os ouvidos atentos a
paisagem sonora. Desse modo, defende a limpeza de ouvidos como estratégia para a
sensibilização e mudança de atitude para com a poluição sonora.

Bibliografia:

AZEREDO, Vania Dutra de. Nietzsche e os Gregos. São Paulo: Hypnos, n 21, 2º sem, p. 273-
287, 2008.
BARROSO, Priscila Farfan; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da; e VEDANA, Viviane. O
Sentido do trágico na paisagem sonora do mundo urbano contemporâneo. Trabalho
apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, Porto Seguro, BA, 2008.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. SP: Cultrix,


1969.

OBICI, Giuliano. Condição da escuta: mídias e territórios sonoros. 2006. Dissertação


(Mestrado em Comunicação e Semiótica) – Programa de Pós Graduação em Comunicação e
Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

RUSSOLO, Luigi. The art of noises. New York: Pendragon Press, 1986.

SANTOS, Fátima Carneiro dos. Por uma escuta nômade: a música dos sons da
rua. São Paulo: Educ: Fapesp, 2004.
SCHAEFFER, Pierre. Traité dês objets musicaux. Paris: Seuil, 1966.
SCHAFER, Murray. The tuning of the world. Toronto: The Canadian Publishers, 1977.

_____________ Lê paysage sonore. Paris: J. C. Lattès, 1979.

_____________ O ouvido pensante. Trad. Marisa Fonterrada et alii. São Paulo: EDUNESP,
1991.

_______________. A Afinação do Mundo. São Paulo, Editora Unesp, 2001.

SEINCMAN, E. “Tradição, vanguarda, na música futurista italiana”. In: Revista da USP, n.


9 (março-abril). São Paulo: Edusp, 1991.
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