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childhood & philosophy

Vol 12, No 23 (jan./abr. 2016)

Dossiê Incêndios: Infâncias do Presente

1
childhood & philosophy

Editores / Editors
David Knowles Kennedy, Montclair State University, United States
Walter Omar Kohan, Universidade do Estado do Rio de Janeiro [UERJ]

Comitê Acadêmico / Advisory Board


Barbara Weber, University of Munich, Germany
Beatriz Fabiana Olarieta, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
César Donizetti Leite, UNESP - Rio Claro
Claire Cassidy, University of Strathclyde, Glasgow, United Kingdom
Darryl Matthew de Marzio, University of Scranton
Diego Antonio Pineda, Universidad Javeriana, Colombia
Eva Marsal, Pädagogische Hochschule Karlsruhe, Germany
Félix Garcia Moriyon, Universidad Autónoma de Madrid, España
Gareth Matthews, University of Massachusetts, United States
Giuseppe Ferraro, Università Federico II di Napoli, Italy
Gustavo Fischman, University of Arizona, United States
Hannu Kalervo Juuso, University of Oulu, Finland
Joanna Haynes, University of Plymouth, United Kingdom
Juliana Merçon, Universidad Veracruzana
Karin Murris, University of Cape Town, South Africa
Marcos Antonio Lorieri, Universidade Nove de Julho (UNINOVE)
María Elena Madrid, Universidad Pedagógica Nacional, Mexico
Marina Santi, Università degli Studi di Padova, Italy
Maura Striano, Università Federico II di Napoli, Italy
Maximiliano Durán, Universidad de Buenos Aires / Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Michel Tozzi, Université Montpellier 3, France
Nadia Stoyanova Kennedy, SUNY Stony Brook University, United States
Nicolas Go, Université de Provence, France
Olga Grau, Universidad de Chile, Chile
Paula Ramos de Oliveira, Universidade Estadual Paulista
Pavel Lushyn, Kirovograd State Pedagogical University, Ukraine
Pedro Pagni, Universidade Estadual Paulista
Sérgio Augusto Sardi, Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Conselho de redação/ Editing board


Gabriela Vieira, Universidade Federal do Ceará
Maximiliano Durán, Universidad de Buenos Aires / Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Simone Berle, Universidade do Estado do Rio de Janeiro

O periódico childhood & philosophy é produto de uma parceria entre o NEFI (Núcleo de Estudos De Filosofias e
Infâncias) vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPEd) da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro(UERJ) e ao International Council for Philosophical Inquiry with Children (ICPIC). Editado no Brasil desde
sua criação, em 2005, childhood & philosophy publica regularmente três números por ano em formato eletrônico,
sendo impresso pelo menos um deles.
Site: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/childhood/index.

Capa: Marcelly Custodio de Souza


Diagramação: Marcelly Custodio de Souza e Simone Berle
childhood & philosophy: Revista do Núcleo de Estudos de Filosofias e
Infâncias (NEFI/UERJ) e do International Council for Philosophical
Inquiry with Children (ICPIC). – Vol. 12, n. 23 (2016) – Rio de Janeiro:
NEFI, 2016 –

Quadrimestral
ISSN: 2525-5061
ISSN online: 1984-5987
1.Educação – Periódicos. 2. Filosofia da Educação – Periódicos. I. NEFI

CDD 370.1
CDU 37.0
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2
Sumário

Apresentação do Dossiê Incêndios: Infâncias do Presente...................................... 5


Julio Groppa Aquino
Fabiana A. A. Jardim

“Incendios” o de la Experiencia Primaria de Existir ........................................... 9


Dora Lilia Marín-Díaz

Incêndios da Infância. Atrevimento de uma Arte Cruel .................................. 27


Luis Antonio Baptista

Uma Infância, um Silêncio, um Aprendizado do Gesto ................................... 47


Cintya Regina Ribeiro

Foucault e as Infâncias Incendiárias: Experiências de Outras Verdades e de


Outras Heterotopias .............................................................................................. 65
Alexandre Filordi De Carvalho

Cenas e Tempos de uma Infância Sem Fim: o Sentimento Trágico em


Incêndios ................................................................................................................... 87
Sandra Mara Corazza
Deniz Alcione Nicolay

Figuras da Infância: Inscrições, Circunscrições e Incêndios....................................111


Flávia Inês Schilling
Patrícia Helena Ferreira

On Knives, Infantia, and the Inhuman: a Lyotardian Reading of Incendies .. 137


David Knowles Kennedy
Walter Omar Kohan

Por Entre As Chamas Da Infância: Presente, Memória E Transmissão De


Experiências De Violência Estatal ...................................................................... 155
Fabiana A. A. Jardim

Não Mais, Mas Ainda: Experiência, Arquivo, Infância .................................. 179


Julio Groppa Aquino

childhood & philosophy, rio de janeiro, v. 12, n. 23, jan.-abr. 2016, pp. 5-7 issn 2525-5061
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doi: 10.12957/childphilo.2016.23526

APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ INCÊNDIOS: INFÂNCIAS DO PRESENTE

Julio Groppa Aquino1


Fabiana A. A. Jardim2
Universidade de São Paulo, Brasil

É com alegria que introduzimos ao leitor o dossiê Incêndios: infâncias do


presente, o qual reúne um conjunto de nove artigos dedicados à peça de teatro de
Wadji Mouawad, Incêndios, e ao filme homônimo a que ela deu origem. Tratou-se de
colocar ambas as obras em perspectiva, no que diz respeito às suas relações possíveis
com as temáticas da educação, da infância e da filosofia.
A motivação para a realização do dossiê surgiu a partir do reconhecimento
de que Incêndios consiste em um acontecimento ético, estético, político e filosófico de
monta, ao trazer para a cena do pensamento um conjunto de temas/problemas que
atravessam nossa experiência do presente.
O ator, diretor e dramaturgo Wadji Mouawad nasceu em 1968, em uma
comunidade cristã maronita no Líbano. Devido à guerra civil que ali se estendeu de
1975 a 1990, sua família exilou-se na França em meados dos anos 1970, onde viveram
até o governo francês não mais lhes conceder o direito de moradia. Da França
partiram então, na década seguinte, para viver em Montreal, onde ele se formou na
Escola Nacional de Teatro do Canadá.
As experiências da guerra e do exílio, bem como seus efeitos de
subjetivação, são questões que permeiam sua obra, aparecendo a cada vez de modo
distinto: em Litoral, a primeira peça da quadrilogia intitulada O Sangue das promessas
da qual faz parte Incêndios, um filho busca um lugar para enterrar o pai que mal
chegou a conhecer; em Incêndios, trata-se de um trabalho de recepção da herança da
mãe, por parte dos filhos, um casal de gêmeos; em Florestas, uma mulher parte em
busca das histórias das mulheres que lhe antecederam, enfrentando os laços de
sangue e ódio; em Céus, trata-se de pôr em questão a centralidade da memória.

1 E-mail: groppaq@usp.br
2 E-mail: fajardim@usp.br

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dossiê incêndios: infâncias do presente

O sentido trágico presente em suas peças, e especialmente em Incêndios, não


deve ser subestimado: em 2015, durante um período de residência artística,
Mouawad iniciou um projeto para encenar, ao ar livre e em sequência, sete peças de
Sófocles. No mesmo ano de 2015, o diretor libanês-canadense esteve no Brasil em
uma curta temporada da peça Solos, concebida e interpretada por ele próprio.
Incêndios, de 2003, é, sem dúvida, seu trabalho mais conhecido, traduzido
para muitas línguas e encenado em diferentes países. Além disso, a peça deu origem
a uma belíssima adaptação cinematográfica homônima, em 2010, dirigida por Denis
Villeneuve. O filme foi bastante premiado, tendo sido indicado ao Oscar de melhor
filme estrangeiro. E é bastante interessante observar como peça e filme se distinguem
em vários aspectos, a despeito de narrarem uma história comum. Isso porque
Villeneuve não pretendeu transpor a linguagem do teatro ao cinema; ao contrário,
traduziu a narrativa de Mouawad em linguagem visual, dialogando, inclusive, com
toda a saturação das imagens de guerras no Oriente Médio.
Quanto à iniciativa deste dossiê, foi proposto aos autores dos artigos que
refletissem sobre a experiência do contato com Incêndios, tanto em sua versão para o
teatro quando a do filme. A enorme potência do universo criado por Mouawad
revela-se nos diferentes enquadramentos analíticos que foram operados pelos
autores. Conforme se verá, Incêndios nos toca de diversos modos, articulando-se a
experiências pessoais ou intelectuais e produzindo no leitor/espectador uma
impressão profunda, que não é apenas de assombro, mas que também conduz ao
silêncio e aos trabalhos da memória. A montagem da peça no México fazia menção
aos 43 estudantes normalistas desaparecidos; no Brasil, a atriz Marieta Severo
dedicou a montagem a Zuzu Angel, relacionando assim o tema da peça à difícil
herança da ditadura civil-militar no país. São apenas dois exemplos para evidenciar o
quanto a obra tem de atualidade num contexto em que as guerras, real ou
metaforicamente, impõem-se como um legado longe de se encerrar: das trincheiras
do Oriente Médio, passando pelos conflitos na África, até as ruas das metrópoles sul-
americanas

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julio groppa aquino; fabiana a. a. jardim

Refletir sobre a experiência do presente a partir de Incêndios, no que se refere


à infância, à educação e à filosofia, foi a tarefa que os autores deste dossiê se
dispuseram, corajosa e generosamente, a levar a cabo. Por essa razão, a eles
agradecemos. Também agradecemos de modo especial aos editores da revista, os
quais acolheram de pronto o projeto do dossiê. Esperamos, por fim, que os leitores
também possam encontrar nos textos aqui reunidos ocasião de reflexão crítica sobre
nossa experiência contemporânea – doravante levemente iluminada pelas chamas
desses diversos incêndios que compõem o exercício coletivo de pensamento aqui
ensejado.

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doi: 10.12957/childphilo.2016.23336

“INCENDIOS” O DE LA EXPERIENCIA PRIMARIA DE EXISTIR

Dora Lilia Marín-Díaz1


Universidad Pedagógica Nacional, Colombia

Resumen
Dos nacimientos, cinco silencios. En la obra Incendios la infancia es la experiencia del ser
marcada por la profunda relación espacial que significa transitar, vivir y habitar un espacio,
aquella experimentada en el “ahogo al nacer cuando falta el aire, precisamente porque se accede
de improviso a él” (SANFRANSKI, 2014, p. 15). A partir de dos figuras de infancia que ofrece
Incendios – el nacimiento y el silencio – el artículo presenta un ejercicio de reflexión sobre lo que
significar construir, recorrer y habitar un mundo marcado por experiencias infantiles. En este
análisis se usa el lente arqueogenealógico propuesto por el filósofo alemán Peter Sloterdijk,
derivado del pensamiento de Heidegger y Foucault, para leer la infancia como la experiencia
primaria del existir, como el espacio de tránsito y habitación en el cual se configura y se
construye lo humano: desde el ingreso al mundo, desde los primeros instantes de su
construcción, en el tránsito entre la esfera primaria de vida – la “clausura madre” – y la esfera
animada y vivida – el “receptáculo”, (SLOTERDIJK, 2014) – ocurre la experiencia infantil y, con
ella, la compleja producción-relación-tránsito entre mundos habitados, aquella que define la
intensidad, la admiración, el desconcierto, la simpatía y la angustia… de vivir.

Palabras clave: espacio; habitar; mundo; esferas; infancia.

“Incendies” or the primary existing experience

Abstract
Two births, five silences. In the film Incendies, childhood is represented as the experience of
being marked by the profound and special relationship between traveling and inhabiting a
space that is analogous to the suffocation of the birth experience—as that shortness of breath
that results from suddenly having access to it. From the two figures of childhood that Incendie
explores—birth and silence—this paper explores what it means to construct and inhabit a world
through the archeological lens proposed by the German philosopher Peter Sloterdijk, which
derived in turn from the thought of Heidegger and Foucault. Here, childhood is read as the
primary experience of existence, as a transitional space in which is the human is built and
configured. We enter to the world in transit between the primary sphere of life—the “closing
mother”—and the lively and vivid sphere, identified by Sloterdijk as the "receptacle." The
experience of childhood is, then, a complex process of transition between inhabited worlds,
exemplifying the intensity, sympathy, admiration, bewilderment and anguish of living.

Key words: transitional space; lived world; existential spheres; childhood.

1 E-mail: dlmarind@pedagogica.edu.co

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“incendios” o de la experiencia primaria de existir

“Incêndios” ou da experiência primária da existência

Resumo
Dois nascimentos, cinco silêncios. No trabalho Incêndios a infância é a experiência do ser
marcada pela profunda relação espacial que significa transitar, viver e habitar um espaço,
aquela experimentada no “afogamento ao nascer quando falta o ar, precisamente porque se
acede de improviso a ele” (SANFRANSKI, 2014, p. 15). A partir de duas figuras de infância que
oferece Incêndios – o nascimento e o silêncio – o artigo apresenta um exercício de reflexão sobre
aquilo que significar construir, percorrer e habitar um mundo marcado por experiências
infantis. Nesta análise usa-se a lente arqueológica e genealógica proposta pelo filósofo alemão
Peter Sloterdijk, derivado do pensamento de Heidegger e Foucault, para ler a infância como a
experiência primária do existir, como o espaço de trânsito e habitação no qual se configura e se
constrói o humano: desde o ingresso ao mundo, desde os primeiros instantes de sua construção,
no trânsito entre a esfera primária de vida – a “clausura mãe” – e a esfera animada e vivida – o
“receptáculo”, (SLOTERDIJK, 2014) – ocorre a experiência infantil e, com ela, a complexa
produção-relação-trânsito entre mundos habitados, aquela que define a intensidade, a
admiração, o desconcerto, a simpatia e a angustia… de viver.

Palavras-chave: espaço; habitar; mundo; esferas; infância.

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dora lilia marín-díaz

“INCENDIOS” O DE LA EXPERIENCIA PRIMARIA DE EXISTIR

Mis amores ¿Dónde comienza su historia?


¿en su nacimiento?
Entonces ella comienza en el horror.
¿En el nacimiento de su padre?
Entonces ella comienza en una gran historia de amor.
Nawal Marwan, Carta final para Simon e Jeanne

Entre nacimientos marcados por la venganza, el dolor y la separación: el de


Nihad de Mayo y el de Jeanne y Simon Marwan; y silencios asociados a la imposibilidad
de la palabra: los de la mujer que canta, Nawal Marwan, los de sus hijos – los gemelos
y Nihad de Mayo – y el de su torturador – Abu Tarek – , las imágenes de Incendies
proponen dos figuras de infancia que remiten a la experiencia primaria de existir: la
infancia-nacimiento y la infancia-silencio. La primera es la imagen del tránsito entre
dos esferas2 y, por lo tanto, la relación medial que define la construcción y la
habitación del mundo. Una relación que pervive en los modos de estar, en la
intensidad, en la admiración y el desconcierto, en la simpatía y la angustia que
significa vivir y habitar un mundo. La segunda, es la de aquel que no habla, aquel
que tiene dificultades para decir, para expresarse en los términos convencionales y
que, como dice Gagnebin (1997), no tiene el medio de expresión propio de su
especie.3 Una ausencia de palabra, que es desconocimiento de la lengua, un aún no
saber los códigos, pero también la imposibilidad de articular pensamiento y palabra
ante la inminencia de la tragedia: el gagueo del instante de vacío, de dolor, de rabia,
de impotencia.

2 En su propuesta filosófica de la coexistencia en el espacio común que teje finos hilos entre la
intimidad y las macroesferas sociales, Peter Sloterdijk define la esfera como “la redondez con
espesor interior, abierta y repartida, que habitan los seres humanos en la medida en que
consiguen convertirse en tales. Como habitar significa siempre ya formar esferas, tanto en lo
pequeño como en lo grande, los seres humanos son los seres que erigen mundos redondos y
cuya mirada se mueve dentro de horizontes. Vivir en esferas significa generar la dimensión que
pueda contener seres humanos. Esferas son creaciones espaciales, sistémico-inmunológicamente
efectivas, para seres estáticos en los que opera el exterior” (2014, p. 37).
3 Es una figura de infancia que remite a la procedencia etimológica de la palabra in-fancia: del
verbo en latín faire, en participio presente fans. Una ampliación del tema en Pagni (2006).

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“incendios” o de la experiencia primaria de existir

Dos nacimientos: el drama del tránsito


Un nacimiento que ocurre en la oscuridad de una noche de mayo de 1970 en
el Líbano, signado por el asesinato del padre del niño, Wahab – un refugiado
Palestino –, por la vergüenza y el dolor, tanto del luto y del parto, como de la
separación de la madre de su hijo Nihad. El drama de este tránsito, de la construcción
de mundo de niño y madre, es rubricado por las condiciones de un nacimiento que
se simbolizan en los tres puntos negros inscritos por la abuela en el talón derecho del
niño (vergüenza, dolor y separación). Se trata de una señal de la experiencia primaria
de existir que define los encuentros futuros de madre e hijo y los mundos que
construirán y habitarán cada uno de ellos.
En la cárcel de Kfar Ryat, dónde Nawal pasa 15 años de su vida por asesinar
al líder de la Liga Cristiana, ocurre el primer encuentro. En ese periodo ella es
torturada y violada reiteradas veces por Abu Tarek y queda embarazada por segunda
vez. El segundo encuentro ocurre en una piscina, en Canadá, en 2009, cuando Nawal,
junto a su hija Jeanne, nada en una piscina y al acercarse a la orilla, ve el talón derecho
de un joven, tatuado con tres puntos negros; en él reconoce tanto al hijo buscado y la
posibilidad de cumplir la promesa de encontrarlo, como al torturador, al violador
que es el padre de sus otros dos hijos.
Dos encuentros que evidencian en tres señales las huellas dejadas por la
experiencia de tránsito entre la esfera primaria de vida – la “clausura madre”, la vida
uterina – y la esfera animada y vivida – el “receptáculo”, el mundo que se construye
en el ingreso y habitación del mismo (SLOTERDIJK, 2014). Se trata de una
experiencia infantil definida por la compleja producción-relación-tránsito entre las
esferas habitadas. Una relación medial que deja huella, ecos y resonancias y que es
definitiva cuando comenzamos a establecernos y a estabilizar un modo de ser
humanos, un modo de estar consigo mismo y con los otros.
La experiencia primaria de existir, aquella que intentamos atrapar desde
diferentes saberes y disciplinas cuando hablamos, reflexionamos y escribimos sobre
ese objeto-experiencia que hemos nombrado infancia, es la experiencia de sucesos

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extraños, de “situaciones mediales tempranas” que al decir de Sloterdijk (2014), dejan


huella y perviven en diferentes estados de intensidad, de entrega, de sentimiento y
resentimiento; constituidos en la coexistencia y el contacto con otros. Es la
experiencia que precede, acompaña y actualiza la propia existencia. En esta relación,
en el tránsito de una esfera a otra, se configura lo humano en cada uno, pues así
como no nace un ser humano completo, tampoco hay un mundo completo que
precede al ser en formación: nacen formas altamente permeables en espacios de alta
permeabilidad y en ellos se configuran mundos4 e individuos que no son totalmente
independientes y tampoco están totalmente terminados. En esos encuentros son
construidos los espacios de vida en los que ocurren “las conformaciones tanto
individuales como histórico-colectivas de esferas en círculos ampliados, en relaciones
de pareja, familias, amistades, asociaciones, partidos, estados, iglesias, reinos,
naciones” (SLOTERDIJK, 2014, p. 16) que hacen evidente la inevitable necesidad de
los otros: de la vida juntos para hacernos humanos.
Otro nacimiento que ocurre también en el Líbano, a finales de los años
noventa, significa una nueva apertura al mundo, signada también por el dolor, por la
tortura, por la oscuridad de una celda y por una nueva separación de la madre, esta
vez de sus hijos Jeanne y Simon. El drama de este tránsito, es el de la construcción de
dos mundos nuevos y la actualización del mundo materno. Nuevamente, estigmas
de violencia, indiferencia y dolor condicionan y acompañan la estructuración de dos
vidas y dejan huellas en su existencia. Los mundos que construyen y habitan los
gemelos se reconocen como marcados por la inminencia de una tragedia: la ruptura
de la Ley Universal que prohíbe el Incesto.5

4 Lo que se denomina aquí como mundo sigue el concepto de Heidegger, en el que


“desembocan dos momentos que proceden inequivocamente de fuentes especulativas: por un
lado, el infinitismo moderno, para el que el mundo sólo puede considerarse tal si encierra una
referencia al infinito (aquí transformado en la figura de lo abierto), y por otro, un resto teológico
que dice que el hombre sólo es hombre en la medida en que actúa ‘constituyendo el mundo’ y
se hace rodear del mundo, como si se le hubiera encargado repetir, de forma poética y técnica,
los seis días del Génesis en un segundo ciclo” (SLOTERDIJK, 2011, p. 107).
5 Sobre la Ley universal de la prohibición del incesto, ver Freud (1991).

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“incendios” o de la experiencia primaria de existir

La experiencia infantil emerge nuevamente como la apertura al mundo en la


coexistencia de las esferas habitadas y comunicadas tanto por la madre como por los
gemelos. Se trata de una experiencia de encuentro que ocurre desde los primeros
años y que actualiza las esferas de vida íntimas (particulares) y las esferas sociales: no
hay un ser humano entero y definido que viene al mundo entero y definido, sino
individuaciones, no unidades psicológicas ni conciencias personales sino devenires,
procesos de subjetivación. Existencias que “en sus realidades preindividuales,
transindividuales o interindividuales” definen sus singularidades (RODRÍGUEZ,
2009, p. 17). En palabras de Simondon (2009), se trata de seres de acción definidos en
sus modos de existencia bajo un principio de permanente individuación. Seres
configuradores de mundo que se amplia en sus singularidades. Así,
El individuo, es aquel que conserva con él su sistema de individuación,
amplificando singularidades. […] por sus condiciones energéticas de
existencia, no está solamente en el interior de sus propios límites;
también se constituye en el límite de sí mismo y existe en el límite de sí
mismo; sale de una singularidad. La relación, para el individuo, posee
valor de ser; no se puede distinguir lo intrínseco de lo extrínseco; lo que
es. esencial y verdaderamente el individuo es la relación activa, el
intercambio entre lo intrínseco y lo extrínseco con relación a lo que es
primero.; [...] lo que verdaderamente es el individuo es esta relación, no
lo intrínseco que sólo es uno de los términos concomitantes: lo intrínseco,
la interioridad del individuo no existiría sin la permanente operación
relacional que es individuación permanente (SIMONDON, 2009, p. 83).

En ese sentido, es posible pensar la experiencia del nacimiento como la


experiencia de apertura al mundo6 en la que son determinados y se determinan
mundos permeables, mundos comunicados en la forma como son producidos, como
son vividos, como son habitados. Lo que en otros términos significa entender que
[…] bajo el concepto psicoanalítico de la diada temprana madre-hijo o
bajo las figuras poético-existenciales de los amantes inseparables, los
gemelos, la gran pareja, los dos juramentados. En todos los modelos
aparecen liaisons en las que las animaciones recíprocas se generan por
resonancia radical; en cada una de ellas se muestra que a la subjetividad
real pertenecen dos o más. Cuando tales dos se abren exclusivamente
uno a otro en una repartición íntima del espacio, se forma en cada uno
de ellos un modo vívido de espesor subjetivo, que no es en principio otra
cosa que participación en resonancias esféricas. (SLOTERDIJK, 2014, p.
58)

6En esta idea de apertura al mundo está en juego el concepto de “abierto” entendido como “el
Ser en el mundo”. Para una ampliación deeste concepto vease: Agamben (2007).

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Las escenas de estos nacimientos testimonian y expresan las marcas que


signan la vida humana en el movimiento de una esfera más pequeña hacia otra de
mayor magnitud, recorrido marcado por conflictos y crisis que ponen a prueba la
capacidad humana para solucionar y ajustar ese paso a favor de la propia vida
humana, la vida juntos. Tal vez la imagen de Sanfranski del “ahogo al nacer cuando
falta el aire precisamente porque se accede de improviso a él” (2014, p. 15), sea la
mejor expresión de esa condición de lo humano y de la nueva relación espacial que
se juega en el nacimiento, en la producción/encuentro de dos esferas: en la
experiencia infantil.
El humano como ser espacial, es también un ser compartidor de espacio, un
ser cuya existencia está definida por la coexistencia con otros humanos. Se trata de
una vida en común que configura las esferas más íntimas y las esferas colectivas: “La
climatización simbólica del espacio común es la producción originaria de cualquier
sociedad. De hecho, los seres humanos hacen su propio clima, pero no lo hacen
espontáneamente, sino bajo circunstancias encontradas, dadas y transmitidas”
(SLOTERDIJK, 2014, p. 52).
El nacimiento es entonces la apertura de mundos: uno en construcción y
otros, los adultos en reconstrucción y tensión permanente. Se trata de la ruptura de la
primera esfera y la separación de la primera condición infantil, en tanto se deja de
vivir bajo la sombra de otro identificado y se construye una esfera exterior, una
esfera social que también es psicológica porque posibilita la configuración de la
propia interioridad. El nacimiento como aparición de lo externo, de lo extraño que
irrumpe y define el proceso que puede permitir la consolidación de un mundo
habitable y por lo mismo en la posibilidad de hacerse adulto:
[…] Lo que llamamos hacerse adulto son esas mudanzas, que exigen
tanta fuerza, de las subjetividades pequeñas a formas de mundo más
grandes; […] Para el niño que fuimos puede que, durante un tiempo, sea
la gran familia todavía su espacio de relación ampliado; tan pronto como
se traspasa el horizonte familiar, las formas sociales más desarrolladas
hacen valer sus derechos a troquelar y animar al individuo.
(SLOTERDIJK, 2014, p. 60)

En esta perspectiva, a cada formación social específica le pertenecen


mundos, casas del Ser que comparten una comunidad de sentido, unos marcos

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“incendios” o de la experiencia primaria de existir

semióticos que los comunican, los reúnen, los definen y los limitan. La esfera
primaria de la clausura madre ofrece un mundo que obliga la salida hacia otro
mundo exterior y es en el encuentro de ese otro mundo, en el entre-mundos que se
produce con la llegada del nuevo, donde se causan los argumentos para un estar-ahí,
un estar-con-otros, que no siempre es un estar-juntos.
Tal vez sea en la diferencia entre el estar-con-otros y el estar-juntos, que se
juega la diferencia de la experiencia infantil de Nihad de Mayo y de Jeanne y Simon y la
conformación de los mundos adultos de Abu Tarek – torturador – y de los hijos y
hermanos Marwan. Así, parece que
Toda vida pasa en su comienzo por una fase en la que un suave delirio
arregla entre dos el mundo. Éxtasis solícitos entretejen entre sí madres e
hijos en una campana de amor cuyos ecos son y siguen siendo bajo
cualquier circunstancia condiciones de una vida felizmente lograda. Pero
pronto los dos únicos son remitidos a un tercero, un cuarto, un quinto;
con la salida de la vida aislante fuera de la cobertura inicial aparecen los
polos suplementarios y proporciones espaciales mayores que definen el
contorno de las relaciones, preocupaciones, intereses adolescentes y
adultos. En las esferas agrandadas actúan fuerzas que desgarran
interiormente al individuo, en una especie de delirio, en millones.
(SLOTERDIJK, 2014, p. 65)

La pregunta por quién y cómo se acompaña a los nuevos en su camino hacia


fuera, hacia las cosas y hacia los fragmentos de mundo que organizan su Ser, es la
pregunta por la forma como compartimos espacios, por la coexistencia incluso sin
sabernos nuevos o esperar la llegada del nuevo. Es el retorno a la pregunta por el
espacio que cohabitamos, por el espacio de coexistencia físico, no psicológico. Es la
pregunta olvidada y relegada en la modernidad sobre el ¿dónde? que fue sustituida
por el ¿quién?, aquella que enfocó la mirada en la interioridad del sujeto moderno y
fijó la actividad humana en la construcción de mundos interiores e identidades
narcisas; la misma que nos alejó de la necesidad de una pregunta fundamental por el
espacio compartido, habitable y vivible con otros: un mundo solidario (no solitario),
un mundo de transferencia motivado por la fuerte necesidad de estar juntos.
“Nada es mas bonito que estar juntos” es la sentencia con la que Nawal
cierra las cartas que como madre (y prisionera No. 72) deja para sus hijos. Esas
palabras, describen la centralidad de la experiencia infantil en la cual el receptáculo,

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la esfera animada y vivida en la cual somos acogidos y acogemos a los otros define la
experiencia primaria de existir: un espacio en el que surge y se actualiza el individuo
y la cultura, el espacio que se produce donde quiera que haya seres humanos juntos.
La experiencia de los primeros años de vida es el drama del tránsito entre la primera
esfera en la que estamos inmersos y las otras posibles esferas que encontramos,
producimos y habitamos con otros. Cómo nos hacemos capaces de mundo fuera del
seno materno es determinado por la manera como habitamos ese seno y, sin
embargo, es en el encuentro y la habitación del mundo creado, en el contacto con
otros mundos que se definen nuestros modos de estar, de vivir.

Los silencios: entre el balbuceo y el gagueo

Usted aún está vivo, pero en breve usted se callará.


Yo sé eso, porque el silencio antecede a la verdad.
Firma: La prostituta 72

Silencio uno: el de una madre, Nawal, acerca de su vida juvenil como


militante política y sobre el nacimiento del primogénito entregado a un orfanato. Un
secreto no revelado de un pasado marcado por décadas de la guerra civil entre
cristianos y musulmanes, en el Líbano (1975-1990) y que sirve de leitmotiv de la
historia de una madre y estudiante que tras el cierre violento de la universidad,
emprende la búsqueda del hijo que supone víctima de una masacre, practicada por
los radicales Cristianos en Deressa.
Silencio dos: el de la presa N°72 de la cárcel Kfar Ryat, de la Mujer que acalló
la confesión del asesinato del Jefe de la Liga Cristiana y la delación del Líder de los
Refugiados Palestinos (Wallat Chamseddine), con un canto que duró quince años.
Silencio tres: el mutismo inexplicable de una madre ante el amor/odio que le
significa reconocer en un mismo individuo el hijo buscado y el torturador padecido.
Una versión moderna de la tragedia edípica que quiebra la ley de prohibición del
incesto.
Silencio cuatro: el gagueo inicial de Simon seguido de preguntas y frases que
no guarda relación lógica: “¿1 + 1, son 2? ¿1 + 1 puede dar 1?” para explicar a su

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“incendios” o de la experiencia primaria de existir

hermana la tragedia que marcó la vida de Nawal y el comienzo de sus vidas como
“una promesa: la ruptura de un sentimiento de rabia”.
Silencio cinco: La falta de palabras que experimenta Nihad Harmanni un hijo –
un niño huérfano que buscó su pasado y que “quería ser un mártir para que su
madre lo viera en los carteles” – Abu Tarek – un joven capturado y formado por los
Cristianos radicales que se convierte en un temible torturador – un padre que
descubre el signo trágico de su procedencia y del mundo construido, cuando es
interpelado por unas cartas que actúan como reveladoras de los fragmentos que
configuran su existencia.
En estas cinco escenas emerge la figura de la infancia-silencio como experiencia
infantil. Ella remite a la comprensión de un estado de no habla, de lo no expresable en
términos discursivos que se asocia a la vida de los primeros años y que reaparece en
diferentes momentos, en los segundos posteriores al instante de una revelación, de un
fatum. Se trata de un gesto que expresa la condición de un pensamiento en elaboración o
interrumpido – un aún no listo, no acabado – que no se puede articular en palabras. Es
una figura que remite a la potencialidad del pensamiento en elaboración y alude tanto a
la experiencia inicial – cuando aún no se ha accedido al lenguaje – como a la experiencia-
acontecimiento – cuando los individuos son compelidos a elaborar y reorganizar su
pensamiento para hacer comprensible y habitable el mundo experimentado.
En su condición de límite del pensamiento y del lenguaje, como lugar de
novedad, de producción y de posibilidad, la figura del silencio remite a la
experiencia singular de una vida interrogada por los espacios habitados y los
fragmentos de la esfera compartidos con otros. Es una experiencia infantil en tanto
ausencia de habla, una experiencia precedida por el develamiento de una tragedia o
por el compromiso de una venganza que obliga al restablecimiento del mundo para
hacerlo expresable a través del lenguaje. La ausencia de palabras y la necesidad de
ellas para apuntalar y hacer habitable la esfera compartida remiten a la condición de
los primeros años. Aquella que inicia antes del nacimiento, en la esfera primaria de
vida, donde se produce un “algo” vinculado a la dimensión somática del cuerpo,
responsable por los afectos y que acompañan al Ser en su exposición, en su contacto

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con otros cuando se abre al mundo y experimenta un tránsito de una esfera


primordial a otras esferas.
En el primer roce, en el tiempo y en el espacio en el que él ocurre, se
configura el Ser y su relación con el mundo – allí está él, antes de todo concepto, de
toda representación, de toda ley y de todo lenguaje (LYOTARD, 1987). En otras
palabras, el Ser se constituye en el tránsito de una esfera a otra que es la experiencia
inicial o infantil y es marcado por los primeros afectos y la relación con los mundos
de acogida. En esa experiencia afectiva, previa a toda forma de lenguaje expresable
lógicamente, se definen las particularidades que acompañan las compresiones, los
pensamientos y las elaboraciones estabilizan una existencia y que producen un sujeto
capaz de mundo. En esta perspectiva, la situación que marcó la emergencia de los
afectos que dejaron sin habla a Nawal, a Simon, a Jeanne y a Nihad puede leerse
como una experiencia infantil que marca un instante singular de desencuentro con la
palabra y la irrupción de un acontecimiento en el pensamiento, una actualización de
sus mundos (LYOTARD, 1987).
Siguiendo esta línea de reflexión es posible entender que la figura de la
infancia-silencio se trata menos de un “acontecimiento de la infancia” que de una
“infancia del acontecimiento”. La experiencia infantil es una experiencia de ruptura,
comienzo, iniciación que deja marcas imborrables: “una navaja enterrada en la
garganta, que no se remueve fácilmente” como señala Nawal en una de las primeras
escenas de la película. En esa experiencia se puede reconocer que
Lo que hace un acontecimiento del encuentro de una palabra, de un olor,
de un lugar, de un libro, de un rostro, no es su novedad comparada con
otros “acontecimientos”. Es el tener valor de iniciación en sí mismo. Sólo
más tarde se sabe de eso. Abrió una herida en la sensibilidad. Se sabe
porque a partir de ahí ella se reabrió, y volverá a abrirse, marcando el
compás de una temporalidad secreta, tal vez desapercibida. Esa herida
hace entrar en un mundo desconocido, pero sin nunca darlo a conocer.
La iniciación no inicia a nada, comienza (LYOTARD, 1987, p. 110).

En el balbucear, en los sonidos desarticulados del habla de los primeros


instantes de la vida, en el gagueo del segundo inmediato de una verdad revelada, de
una tragedia reconocida como tal, se presentan los flujos del cuerpo, los sentimientos
que envuelven el encuentro del Ser con el mundo; los afectos que hacen de una

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situación particular una experiencia de iniciación y nuevo comienzo marcado por la


“ausencia” de habla, pero no por la ausencia de los afectos y el lenguaje infantil que
marcan el cuerpo.
Aunque parezca que la experiencia de los afectos y del ser somático infantil
(la phoné) se borran frente a la fuerza del lenguaje elaborado, el lenguaje adulto que la
precede (la lexis); aunque la phoné, esa primera y simple forma de la lengua infantil –
el balbuceo del niño que aún no accede al lenguaje verbal o el gagueo del adulto ante
un fatum que desestabiliza su mundo – no pueda ser reconocida fácilmente por el
lenguaje articulado adulto, ella no deja nunca de interpelarlo: el proceso de
apropiación, aprendizaje y rearticulación de la lengua es mediado por esos balbuceos
infantiles, por los afectos que se juegan en el encuentro con el mundo, en la apertura
a otros mundos y en la conformación y ampliación de los espacios habitados
(PAGNI, 2006).
La infancia como experiencia del lenguaje no está totalmente sometida a una
“forma de ser” articulada del lenguaje que la precede. La posibilidad de articulación
del leguaje, del habla esta profundamente marcada por la relación entre esferas
habitadas y por tanto por los restos de afectos que permanecen y que, con el pasar
del tiempo, definen una relación particular y única con el lenguaje en cada individuo:
tal diferencia irreconciliable de la experiencia del lenguaje que moviliza el
pensamiento y es la posibilidad de la novedad, del comienzo. El lenguaje “no es ni la
exteriorización de un organismo, ni la expresión de un ser viviente” (SLOTERDIJK,
2011, p. 117).
La infancia como figura del acontecimiento de la propia experiencia del
lenguaje, remite a una acción que va más allá de la adquisición de la lexis y del
encuentro en los primeros años de vida de una forma-expresión que nos liga a una
organización humana. La infancia es la novedad que ocurre en el transcurso de las
experiencias de lenguaje durante toda la vida; ella aparece como la posibilidad
misma de ruptura con aquello que la antecede y, por eso, es oportunidad para lo
nuevo. En esta perspectiva, Agamben (2004) propone una infancia que no es la
experiencia que antecede al lenguaje y que tampoco se borra en su encuentro con el

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lenguaje adulto. La infancia no es la expropiación de la experiencia primera. Ella


coexiste con el lenguaje desde su comienzo:
La idea de una infancia como una “substancia psíquica”, pre-subjetiva se
revela entonces como un mito similar al del sujeto pre-lingüístico.
Infancia y lenguaje parecen así remitirse mutuamente en un círculo
donde la infancia es origen del lenguaje y el lenguaje es origen de la
infancia. Pero, tal vez sea justamente en ese círculo donde vamos a
buscar el lugar de la experiencia en cuanto infancia del hombre. Pues la
experiencia, la infancia a la cual nos referimos no puede ser simplemente
algo que precede cronológicamente al lenguaje y que, en un momento
determinado, deja de existir para volverse en habla, no es un paraíso que
abandonamos de una vez por todas para hablar, sino que coexiste
originariamente con el lenguaje, e inclusive se constituye ella misma
mediante su expropiación efectuada por el lenguaje al producir cada vez
el hombre como sujeto (AGAMBEN, 2004, p. 66).

Se trata de una figura infantil marcada por la historia y que produce historia
en una forma no lineal y discontinua al constituirse en los actos particulares que
ocurren a los sujetos también particulares. Así, la complementariedad entre infancia
y lenguaje es con certeza de “casualidad inmanente” – lo que en términos
deleuzianos, corresponde a una causalidad que se actualiza en su efecto –, cada una
de ellas se afecta y modifica en su relación con la otra de forma permanente. 7
Entre los nacimientos y los silencios que nos presenta la película Incendies de
Denis Villeneuve es posible reconocer diversas formas de la experiencia infantil,
diferentes fragmentos y vestigios de esas experiencias que marcan las formas de
habitar el mundo y los mundos que construimos. En ellas los encuentros afectivos y
afectados con esferas más amplias configuran los modos de vida y las formas como
cada uno deviene sujeto de una cultura. El acceso a un lenguaje articulado, la
construcción de un mundo conectado y determinado en su relación con otros, dibuja

7 Así, como los trazos biológicos son patrimonio natural transmitido por el código genético, la

cultura es un patrimonio hereditario transmitido por medios no genéticos, de los cuales, el más
importante es el lenguaje. De hecho, con esa analogía, Agamben señala una diferencia
fundamental entre Naturaleza y cultura, diferencia derivada de los medios de transmisión: el
código genético y el lenguaje. Con todo, justamente tal diferenciación de los medios de
transmisión sirve a ese autor para discutir no la oposición, pero sí la diferencia y
complementariedad entre cultura y Naturaleza. Al proponer al lenguaje como el transmisor
privilegiado de la herencia cultural, emergen preguntas sobre su pertenencia exclusiva a la
esfera cultural, sobre sus fundamentos biológicos y sobre las condiciones y las formas como se
efectúan en el lenguaje las complementaciones y actualizaciones de esas dos esferas
(AGAMBEN, 2004).

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“incendios” o de la experiencia primaria de existir

una infancia que es acto, potencia y acontecimiento.8 Una figura que emerge de
encuentros, generalmente, mediados por prácticas de crianza y educación que son
constantemente revisados y criticados.
Por este camino, “novedad”, “diferencia”, “acontecimiento” y “porvenir”
son trazos comunes a las figuras infantiles que se citan en los análisis propuestos por
las reflexiones filosóficas acerca de la educación. Esos rasgos también son usados,
desarrollados y articulados en las discusiones sobre las prácticas escolares en
diferentes ámbitos y, a partir de ellos, se formulan fuertes críticas a los saberes y a las
instituciones educativas, señalándolas como limitadoras de las posibilidades
infantiles. En este sentido, tal vez dos observaciones finales, derivadas de la
comprensión de las dos figuras infantiles reconocidas en la lectura que se hace de la
obra Incendios en este texto, puedan aportar algunos elementos para repensar esas
críticas:
La primera observación tiene que ver con la figura de la infancia-nacimiento
y el reconocimiento de la experiencia infantil como la experiencia de tránsito entre
dos mundos. No tanto como la llegada de algo nuevo cerrado, sino como la
experiencia de construcción de esa novedad en el encuentro de esferas y la
construcción de lo abierto, de formas de habitar y Ser. La llegada de los nuevos no es
la llegada de algo ya terminado, es la posibilidad de construcción de mundos y de
nuevas relaciones entre esferas dependientes entre sí. Así, parece necesaria una
reflexión sobre el límite y los alcances de las críticas que hacemos a la escuela y las
prácticas educativas:
¿No es la educación, quizás, en primer lugar, el ordenamiento
indispensable de la relación entre las generaciones y, por lo tanto, si de
dominio se quiere hablar, no tanto el dominio de los niños, sino más bien
de la relación entre generaciones [que parece competencia y
responsabilidad de las culturas que los acogen]? (AGAMBEN, 2007, p.
152)

8 Para ampliar, puede revisarse los análisis de Lauret sobre las figuras de infancia en el
pensamiento de Lyotard y las derivaciones posibles para pensar la educación de los niños. En
particular, ese autor revisa la imagen de la infancia como una “deuda paradójica de la cual no es
posible liberarse sino dejándola abierta e imprescindible” (LAURENT, 2008, p. 210). La infancia
será, así, todo aquello que se deja olvidar: “angustia, marcas originarias, ley” (LAURENT, 2008,
p. 210).

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En otras palabras, la educación es una de esas actividades elementales y


necesarias gracias a la cual los grupos humanos se actualizan por el nacimiento
continuado de nuevos; de individuos que no solo no están hechos por completo, sino
que en su condición de mundos en formación (individuaciones) le proponen a
quienes los acogen una tensión transformadora en sus modos de habitar, en su estar-
ahí. Esta condición no es evidente por sí misma, “y no se observa en las [otras]
formas de vida animal; corresponde a una doble relación por un lado, la relación con
el mundo, por el otro la relación con la vida” (ARENDT, 1996, p. 197). Así, en la
educación y en el encuentro entre mundos se juegan no solo relaciones
intergeneracionales que siempre son actualizaciones culturales sino procesos de
humanización fundamentales para supervivencias del animal humano.
La segunda observación se refiere a la figura de la infancia-silencio y la
posibilidad de pensar la experiencia infantil como desprendida de un vínculo etario.
En este sentido, tal vez la siguiente observación de Lyotard (1987) recoja de forma
más clara las posibilidades y los retos que propone pensar la infancia del
pensamiento como un asunto educativo, señala el autor que
el pensamiento tal vez tenga más infancia disponible a los treinta y cinco
años que a los dieciocho, y más fuera del cursus de los estudios que del
interior. [Presenta] nueva tarea al pensamiento didáctico: procurar su
infancia en cualquier parte, aunque sea fuera de la infancia (LYOTARD,
1987, p. 126)

La relectura de la experiencia infantil como la experiencia primaria de existir


que no siempre esta vinculada a los primeros años de vida, supone pensarla en
términos de un encuentro y una relación medial que significa el tránsito de una
forma de estar-ahí hacia la construcción y definición de modos diferentes de habitar
el mundo. Esa mirada abre la posibilidad de un modo de vida que se reconozca en
construcción y por lo tanto por fuera de identidades fijas. Una forma de estar-en-el-
mundo y en relación con otros mundos también en construcción y actualización:
nuevas formas de relación entre mundos que se reconocen conectados e
interdependientes.
Como animales expuestos a una condición de infancia a lo largo de la
existencia, los humanos somos sujetos de experiencias infantiles que no

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“incendios” o de la experiencia primaria de existir

permanecemos en ellas, ni en los primeros años de vida ni en los siguientes. La


condición humana es la de un viviente que pasa en algunos momentos por
experiencias infantiles que redefinen sus formas de relación con aquellos que
comparte un mismo espacio y con aquellos que llegan a co-habitar esos espacios.
Siendo los únicos animales capaces de mundo, los humanos tenemos la posibilidad
de reconocernos y actuar como seres abiertos a la construcción generacional y epocal
de mundos coexistentes y en actualización permanente. Habitantes de redondeces
con espesor interior pero abiertas, seres humanos en la medida en que conseguimos
convertirnos en tales. Habitantes formadores de esferas (creaciones espaciales),
pequeñas y grandes contenedoras de seres humanos, seres que erigimos mundos
redondos con horizontes marcados por esas redondeces (SLOTERDIJK, 2014).

Referencias
AGAMBEN, G. Infancia e historia. Traducción por: Silvio Mattoni. 3. ed. Buenos Aires:
Adriana Hidalgo, 2004.
AGAMBEN, G. Lo abierto. Traducción por: Flavia Costa y Edgardo Castro. 2 ed.
Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2007.
ARENDT, H. La crisis en la educación. In: ______. Entre el pasado y el futuro. Ocho
ejercicios sobre la reflexión política. Traducción por: Ana Poljak. 5. Ed. Barcelona:
Península, 1996, p.p. 185-208. Disponible en:
<http://www.inau.gub.uy/biblioteca/Arendt%20crisis%20educacion.pdf>
FREUD, S. El horror al incesto. In: ______. Tótem y tabú. Algunas concordancias en la
vida anímica de los salvajes y de los neuróticos. Obras completas. Tomo XIII. Traducción
por: José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu, 1991[1912-1913]. p. 11-26.
GAGNEBIN, J. M. A criança no liminar do labirinto. In: ______. História e Narração em
Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 73-92.
LAURET, Pierre. Uma inquietação a respeito da educação das crianças. Jean-François
Lyotard crítico da doutrina humanista da educação. In: BORBA, Siomara; KOHAN,
Walter (Orgs.). Filosofia, aprendizagem, experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p.
209-222.
LYOTARD, J.F. O pós-moderno explicado às crianças: correspondência, 1982-1985.
Traducción por: Tereza Coelho. Lisboa: Dom Quixote, 1987.
PAGNI, P. Infância. In: CARVALHO, Adalberto Dias de. (Org.). Dicionário de Filosofia
da Educação. Porto: Porto, 2006. p. 212-220.

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RODRÍGUEZ, P. Individuar. De cristales, esponjas y afectos. In: SIMONDON, G. La


individuación. Traducción de Pablo Ires. Buenos Aires: La Cebra, Cactus, 2009. p. 11-
19.
SANFRANSKI, R. Prólogo. In: SLOTERDIJK, P. Esferas I. Traducción por: Isidoro
Reguera. Madrid: Siruela, 2014. p. 13-24.
SIMONDON, G. La individuación. Traducción de Pablo Ires. Buenos Aires: La Cebra,
Cactus, 2009.
SLOTERDIJK, P. La domesticación del ser. In: ______. Sin Salvación. Tras las huellas de
Heidegger. Traducción por: Joaquín Chamorro Mielke. Madrid: Akal, 2011, p. 93-152.
SLOTERDIJK, P. Esferas I. Traducción por: Isidoro Reguera. Madrid: Siruela, 2014.

Recibido en: 15.05.2016


Aprobado en: 12.06.2016

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doi: 10.12957/childphilo.2016.23404

INCÊNDIOS DA INFÂNCIA. ATREVIMENTO DE UMA ARTE CRUEL

Luis Antonio Baptista1


Universidade Federal Fluminense, Brasil

Resumo
O artigo, na interlocução com a literatura, especificamente com a peça Incêndios de Wajdi
Mouawad, (2003), almeja pensar sobre as implicações éticas da noção de origem utilizada nas
Ciências Humanas como causa, fonte, início. A questão que move o artigo considera que, à luz
de Walter Benjamin (1994), a idéia de origem seria uma criação mítica. Mito no sentido da
ausência de análise histórica, do campo conflitivo de forças, do qual emerge esta noção. À luz
da contribuição benjaminiana sobre a invenção da Infância, o artigo utiliza o atrevimento
infantil como enfrentamento às forças míticas da literatura. A infância que, por meio de
experimentações, de modos peculiares de leitura e escuta, põe à prova a obediência e a
reprodução do universo mítico. Ato insurgente que impede à história narrada a conclusividade
e afirma o seu desdobramento em outras tramas possíveis. Insurgência que interrompe a
linearidade do tempo e da história. O artigo é composto por três momentos. No primeiro, são
apresentados os contrastes entre a noção de origem, conforme Benjamin, e aquela comumente
utilizada nas Ciências Humanas, assim como na vida ordinária. Fragmentos de frases da peça
Incêndios são utilizados como experimentação da escrita, no intuito de justapor tempos e
sentidos que escapam à linearidade da história. No segundo, a interlocução da literatura de
Kafka (2012) com a peça de Wajdi Mouawad se faz presente com o objetivo de pensar sobre a
agonística do silêncio e do canto nas personagens de Incêndios. No terceiro momento, é
utilizada a categoria de constelação de Walter Benjamin, para intensificar a aposta ética da obra
de Mouawad.

Palavras­chave: literatura; infância; história; Walter Benjamin.

Childhood fire. The daring of a cruel art

Abstract
This paper aims to present a reflection on the ethical implications of the notion of origin – a
construct understood in the human sciences in the sense of cause, source, beginning—by way of
a dialogue with Wadji Mouawad’s stage play Scorched. Borrowing from Walter Benjamin’s
thought, the central literary question in the play is to consider origin as a mythical creation.
Benjamin’s contribution to an understanding of childhood helps us to think how infantile
dauntlessness can confront the mythical forces of literature. Benjamin’s is a childhood that
operates through trials and peculiar modes of reading and writing which put obedience and
reproduction as features of a mythical universe to the test. Therefore, a childhood that acts to
prevent the conclusiveness of history and to assert its capacity to unfold along different
trajectories is an insurgency that interrupts time and history’s linearity. In the first section of
this paper, I contrast the notions of origin articulated by Walter Benjamin and by the human
sciences or commo­n sense. I also include some fragments from Mouawad’s play as examples
of a kind of writing that juxtaposes times and meanings which overtake the linearity of history.
In the second part, I put Kafka’s oeuvre together with Scorched in order to reflect on the

1 E­mail: baptista509@gmail.com

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incêndios da infância. atrevimento de uma arte cruel

agonism of silence and song--or chant--that traverses the experience of Mouawad’s characters.
Finally, I make use of Walter Benjamin’s notion of “constellation" to highlight the ethical
proposal implicit in Mouawad’s work.

Key words: literature; childhood; history; Walter Benjamin.

Incendios de la infancia. Atrevimiento de un arte cruel

Resumen
El artículo, en interlocución con la literatura, específicamente con la pieza Incendios de Wajdi
Mouawad, (2003), anhela pensar las implicaciones éticas de la noción de origen utilizada en las
Ciencias Humanas como causa, fuente, inicio. La cuestión que impulsa el artículo considera
que, a la luz de Walter Benjamin (1994), la idea de origen sería una creación mítica. Mito en el
sentido de la ausencia de análisis histórica, del campo conflictivo de fuerzas, de lo cual emerge
esta noción. A la luz de la contribución benjaminiana sobre la invención de la Infancia, el
artículo utiliza el atrevimiento infantil como enfrentamiento con las fuerzas míticas de la
literatura. La infancia que, por medio de experimentaciones, de modos peculiares de lectura y
escucha, pone a prueba la obediencia y la reproducción del universo mítico. Acto insurgente
que impide a la historia narrada la conclusividad y afirma su despliegue en otras tramas
posibles. Insurgencia que interrumpe la linealidad del tiempo y de la historia. El artículo se
compone de tres momentos. En el primero, son presentados los contrastes entre la noción de
origen, conforme Benjamin, y aquella comúnmente utilizada en las Ciencias Humanas, así como
en la vida ordinaria. Fragmentos de frases de la pieza Incendios son utilizados como
experimentación de la escritura, con el propósito de yuxtaponer tiempos y sentidos que escapan
a la linealidad de la historia. En el segundo, la interlocución de la literatura de Kafka con la
pieza de Wajdi Mouawad se hace presente con el objetivo de pensar sobre la agonística del
silencio y del canto en las personajes de Incendios. En el tercer momento, se utiliza la categoría
de constelación de Walter Benjamin, para intensificar la apuesta ética de la obra de Mouawad.

Palabras clave: literatura; infancia; historia; Walter Benjamin.

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luis antonio baptista

INCÊNDIOS DA INFÂNCIA. ATREVIMENTO DE UMA ARTE CRUEL

Antes do Incêndio
Era uma vez uma aldeia do Líbano onde uma velha senhora chamada
Nazira aconselhava a neta a partir daquele lugar. A jovem neta apaixonou-se por
Wahab, engravidou e foi banida pela mãe e por todos da aldeia. Chamava-se Nawal
Marwan a jovem que partiu levando consigo a cólera implacável da família. A mãe,
após o parto, entregou a criança a uma mulher chamada Elhame. O filho de Nawal
foi criado em um orfanato ao norte. A velha senhora Nazira rogava à neta para ter
coragem e partir. Dizia que é preciso aprender a escrever, a contar, a falar. A avó
exigia que Nawal pegasse a sua juventude, a sensualidade, o seu cheiro, a felicidade
possível e abandonasse a aldeia. Nos anos setenta o Líbano estava em guerra. O
jovem Wahab partiu para lutar. Norte e sul combatiam violentamente. Casas,
crianças, aldeias, do sul e do norte do Líbano, foram destruídas pela guerra. Antes de
morrer, Nazira pediu à neta que aprendesse a ler e gravasse o seu nome na pedra do
seu túmulo. Depois de alguns anos a jovem retornou e escreveu: “Noûn, Aleph, zaïn,
ué, rra! Nazira. O teu nome ilumina o teu túmulo” (MOUAWAD, 2013, p. 354). Era
nítido o nome da velha senhora cravado na pedra. Após a tarefa, Nawal procurou
desesperadamente pelo filho. Certo dia conheceu Sawda, que a viu escrever o nome
na pedra. Sawda, também jovem, desejava aprender a ler e escrever. Insistentemente
pediu a Nawal que a levasse junto na sua procura pelo filho. Em troca, cantaria
quando a nova amiga estivesse cansada. Confessou que na aldeia nada acontecia.
Apontavam o céu para ela, o vento, mas nada diziam sobre eles. Falou também que o
mundo estava mudo, a vida passava e tudo estava mudo. Almejava aprender a ler
porque, segundo ela, com uma palavra, tudo se ilumina. Nawal e Sawda desejavam
conhecer o mar. As duas partiram juntas para a procura do filho e para lutar. Foram
presas e torturadas. Nawal aprendeu a cantar, e cantava após as torturas. Cantava,
cantava, cantava e mantinha perto de si a presença da amiga. Nunca mais encontrou
Wahab. Aprendeu a cantar com Sawda, morta após explodir uma bomba que matou
o chefe dos milicianos. O filho de Nawal foi criado no orfanato. Adulto, trabalhou na

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incêndios da infância. atrevimento de uma arte cruel

prisão de Kfar Rayat. Torturava os que combatiam as milícias. Durante dez anos
Nawal cantava na prisão quando era torturada, ou quando ouvia os gritos dos
prisioneiros nas celas. O terror a impelia a cantar. Prometeu à amiga que o canto seria
uma forma de coragem. O menino levado para o orfanato, tirado dos braços de
Nawal, chamava-se Abou Tareck. Certo dia, este homem violentou a mulher que
cantava na cela. Ela engravidou, e seus dois filhos foram entregues a um homem
chamado Fahim, que os colocou em um balde para exterminá-los. Fahim entregou os
gêmeos para outro homem, chamado Malak. Malak, comovido, não realizou a tarefa
e salvou os gêmeos das águas frias do rio. Após longos anos Nawal é libertada e
parte para o ocidente. Os gêmeos lhe são entregues pelo homem que os salvou. A
menina chamava-se Jeanne, o menino Simon. Nawal partirá com os gêmeos para o
ocidente. Próximo da sua morte permaneceu cinco anos em silêncio. Antes de
morrer, deixou um testamento onde detalhava a oferta de objetos para os filhos e
para o tabelião. No testamento, fez uma exigência para os gêmeos: encontrar o pai e o
irmão. Os dois relutaram, mas partiram rumo ao oriente, na incumbência de entregar
as duas cartas, para o irmão e para o pai. Jeanne e Simon, com o auxílio do tabelião
Hermille Lebel, descobrirão o mistério. No deserto a origem será revelada. O pai e o
irmão eram a mesma pessoa. A carta foi entregue.2
Esta história será destruída pelo fogo com crueldade. A sucessão
cronológica dos fatos fenecerá. Cuidado, conspira-se uma perigosa história A
revelação queimará calendários, mapas, quimeras da esperança. Nomes e tempos
ficarão chamuscados. A origem será outra. O era uma vez de uma narração será
enfrentado. Quimeras da desesperança serão também queimadas. Das cinzas algo
restará. Será encontrado no céu, no perigoso infinito onde residem estrelas.
O que pode uma leitura? Qual o poder da escuta de certa concepção de
Infância? O que fazer do mito de uma história que despreza o atrevimento da
infância? Qual atrevimento?
A sensação que precede o vômito, a ausência do bálsamo, o mal-estar
produzido pela inexistência da conclusão feliz são características da literatura de

2 Escrita inspirada na peça Incêndios (MOUAWAD, 2013).

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Franz Kafka destacadas por Theodor Adorno (1998). Incêndios, peça escrita por Wadji
Mouawad, mantém este desconforto. Segundo Mouawad (2013, p. 321), seria uma
obra sobre origens. A mensagem edificante, a resposta definitiva, inexistem na obra
do autor libanês. Assim como em Kafka (2012) e em Artaud (2006), é uma obra cruel.
Crueldade de certa aposta da arte, da qual o suporte de um mundo reconhecível, da
função das palavras e das imagens como ornamento, é destruído. O cruel desta
aposta pede mais, muito mais, a uma agonia. Agonística incessante, desalojada das
angústias de um mundo interior alheio aos assombros do mundo. Incessante,
segundo Llansol (2011, p. 120), porque atenta aos apelos que criam e desfazem
contornos definitivos de vidas e de verdades: “A verdade não é subjectiva, nem
objectiva, mas o contorno final e acabado da vida de cada um; a resposta dada, com
recta intenção, ao justo apelo. Perguntar ‘ quem sou’ é uma pergunta de escravo;
perguntar ‘ quem me chama’ é uma pergunta de homem livre”. Liberdade perigosa
para modos de existir onde a vida os põem à prova implacavelmente. Apelo que
destroça o conforto do eu, do ser, da morte em vida na afirmação da materialidade
de uma verdade.
A crueldade da arte nesta agonística incessante atenta aos apelos do mundo
da imanência, recusa a virtude de representar mazelas ou belezas do humano, ou da
educação do espírito. Nesta recusa, afirma-se a “ausência de voz para gritar”.
Ausência, segundo Blanchot (2005, p. 51), que “não é apenas uma dificuldade
metafísica, é o arrebatamento de uma dor”. Arrebatamento de um grito do silêncio,
da lacuna, do gaguejar, do ainda não, da falta de ar, da revolta que sufoca a palavra.
O grito sem voz perdura, interrompe, corta, persevera rompendo a continuidade de
uma sentença, de uma provação, do tempo em direção ao porvir. Crueldade que
impede a catarse, rejeita a função dos órgãos do corpo, extirpa da pele, dos dedos, as
impressões digitais. Exige atenção ao tremor do corpo antes do regurgitar. Tremor
criado por nada pessoal, por nada exterior, mas efeito, segundo Blanchot (2010, p.
23), “do abalo daquilo que o conclama fora da vida ordinária. Entregue assim a uma
experiência desmedida, mede-se em relação a ela com espírito firme, difícil e ardente,
mas que na chama ainda busca a luz”. Nos comentários de Blanchot (2010) ao Teatro

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incêndios da infância. atrevimento de uma arte cruel

da Crueldade de Antonin Artaud, encontra-se o risco de um corpo na experiência.


Chamuscado, desfigurado, o corpo será outro. O conclamar para fora da vida
ordinária não seria o chamamento ao paraíso onde residiriam ideias condutoras da
vida fracassada, a harmonia perdida, mas para o mal-estar disparado pelo
estranhamento que põe à prova, testa, queima implacavelmente limites de um
horizonte. O estranhar a beleza e o horror a paralisar o corpo. O estranhar que impele
ao ato, ao jogo, ao incessante da agonística que não teme o risco. Conclamação ao
despedaçamento da compacidade daquilo que dispomos, do que somos. Apelo para
compor, montar os pedaços que restam, os escombros das histórias em pedaços.
Montagem atenta aos sinais de alarme quando o ar escasseia.
Mouawad (2013) afirma que a peça versa sobre a origem de uma história.
Talvez, não. Incêndios apresenta a barbárie da origem3. Obra que em sua trama
provoca estranhamento naquilo que a vida ordinária define como o lugar onde tudo
procede: a causa, o porquê, a fonte. Violência da origem que impede a fuga a um
destino que paralisa e entorpece. Alerta-nos Gagnebin (1994, p. 109), “Graças a essa
fuga que podem cessar a insistente repetência do previsível e a sedução triste do
totalitarismo, e que algo outro pode advir”. Na vida ordinária, a origem, sua meta e
seus valores exibem o brilho da verdade que não queima. Do fogo, temos a
combustão de matérias, a ação desencadeada por misturas, emaranhados de restos
tornando-se outros. Combustão do tornar-se, da destruição do perene que
paradoxalmente destrói e cria. No fogo poderá ser encontrada uma aposta ética onde
a destruição é inseparável da criação:
O carácter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; apenas uma
actividade: esvaziar. A sua necessidade de ar puro e espaço livre é maior
do que qualquer ódio. [...] O carácter destrutivo não vê nada de
duradouro. Mas por isso mesmo vê caminhos por toda a parte, mesmo
quando outros esbarram com muros ou montanhas. Como, porém, vê
por toda a parte um caminho, tem de estar sempre a remover coisas do
caminho. [...] Como vê caminhos por toda a parte, está sempre na

3 Segundo Gagnebin (1994), Benjamin opõe origem, Ursprung, à gênese, Entstehung. “O


Ursprung designa, portanto, a origem como salto para fora da sucessão cronológica niveladora à
qual uma certa forma de explicação histórica nos acostumou. Pelo seu surgir, a origem quebra a
linha do tempo, opera cortes no discurso ronronante e nivelador da historiografia tradicional”
(Gagnebin, 1994, p.13). Neste ensaio a origem posta em análise será a que comumente
entendemos por gênese.

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encruzilhada. Nenhum momento pode saber o que o próximo trará.


Converte em ruínas tudo o que existe, não pelas ruínas, mas pelo
caminho que as atravessa. (Benjamin, 2004, p.217)

Na verdade do dia a dia, as coisas são porque são, discursos são o que são,
protegidos pela pureza de uma luz que ordenará e punirá o desvio. Iluminação que
conduz, governa almas, mas não queima, ou destrói para abrir caminhos. Pressupõe
que onde pousa manterá intacto o objeto iluminado. Desconhece, ou desdenha a
criação e a destruição da sua força. Luz que protege o corpo para a execução das suas
funções; protege-o para não escapar, para não ser seduzido, reverberado por algo
fora do ordinário. No mundo mítico da natureza, nas diretrizes da razão, no universo
do sagrado, encontramos luzes imaculadas, cuja composição de elementos nos
escapa. Fora do ordinário, mitos correm perigo, o destino é ameaçado. Fulgores do
mundo mítico, brilhos eternos correrão perigo na vida plena de paradoxos. À
semelhança da chama soprada pelo vento, nenhum modo de vida, ou de morte, será
retido em uma única forma. A luz oferecida pelo mito não se apaga. A do fogo sim.
Verdades finitas, compostas por matérias finitas, vulneráveis às forças díspares do
vento, poderão ser apagadas, reacendidas, insufladas pela incansável ação da
história.
Em Incêndios o horror da guerra corre ao lado da violência da origem de
uma trama. Na peça um testamento exige a busca da verdade. Ela será encontrada,
mas arderá, queimará cruelmente. Verdade que nega ao corpo a imunidade, o sair
ileso após o contato com a sua chama. Wadji Mouawad apresenta o fracasso da
procura fadada a ser feliz, ou infeliz. O testamento roga, exige o fato verídico. Uma
agonística se fará entrelaçada à força do mito a dizer onde tudo começa e à crueldade
do encontro com a verdade que o destrói no uso das suas labaredas. Fogo de uma
particular salvação. Trata-se de uma obra que estilhaça o mito do início de tudo, da
fonte, do berço. Enfrenta o destino implacável da maldição de uma culpa sem sujeito.
Incêndios oferece a laica salvação onde nada começa, nem se encerra. Qual?
Na peça de Mouawad, uma mulher declara no seu testamento que seja
enterrada de costas para o céu. No testamento para os filhos gêmeos, Nawal Marwan
ordena: “Enterrem-me toda nua. Enterrem-me sem caixão. Sem hábito, sem mortalha.

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incêndios da infância. atrevimento de uma arte cruel

Sem oração. E de rosto voltado para o chão. Deponham-me no fundo de uma cova.
Testa-de-ponte contra o mundo” (MOUAWAD, 2013, p. 330). Na obra de Kafka
encontra-se a sensação que precede o vômito na falência da esperança, na recusa à
moral redentora. Encontra-se também, segundo ele, a força para exigir mais, muito
mais, de uma agonística quando é bloqueada por excesso de dor: “Nada disso -
atravessando as palavras há restos de luz” (KAFKA, 2012, p. 118). Na peça do autor
libanês estes restos são encontrados. Opõem-se a iluminar caminhos, à errância de
uma alma, ou a uma história atormentada. É a luz do fogo que queima cruelmente na
exigência do escape às amarras do sempre igual, do retorno do mesmo. Os restos de
luz ofertados por Kafka diferenciam-se das epifanias de felicidade, das prováveis
saídas do desespero. São restos de forças que retiram o corpo da paralisia, do torpor,
da inércia da desesperança, e da esperança. Por que os olhos de Nawal Marwan
voltam-se contra o céu? No testamento Narwal pede aos filhos gêmeos, Jeanne e
Simon, a entrega de duas cartas; uma para o pai, outra para o irmão. Os dois não os
conhecem. Terão a missão de descobrir a origem de tudo. Após o cumprimento da
tarefa o rosto de Nawal não terá a testa sobre a terra. O rosto fitará o mundo. O corpo
nu estará frente a frente com as estrelas. Por quê?
A busca da origem seria uma presença marcante em certas modalidades da
arte, assim como nas Ciências Humanas. Provocadas por essa busca, formulam
perguntas prontamente respondidas, como se as verdades procuradas fossem
imunes aos embates nem sempre visíveis das práticas do poder. A indagação
formulada e, logo após, a resposta ofertada sem hesitação dão lugar ao alívio, ao
oxigênio reconfortante. Qual a origem do desejo que faz a carne sentir medo? Como
nasce a inocência? De onde vem a vontade de matar e de amar? O que move o corpo
de uma criança rumo ao ideal de todos? Que predisposições explicariam o ato
violento?
Das origens, a história dos homens segue linear, atenta aos percalços que
possam interromper a continuidade. Porém o oxigênio reconfortante da resposta
poderá ser extirpado por apostas da arte onde o início e o fim serão aniquilados. O
mito da origem lega a continuidade de uma missão, a finalidade da Ideia necessitada

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de florescer, tornar-se realizada. O mundo seria o palco de germinações, de correções


do desenvolvimento das potencialidades da alma. Seria também o lugar do
aprimoramento de corpos, do fomento à esperança alojada no futuro, das agonias
necessárias para o aprimoramento do ser. Neste mito a arte seria a guardiã do
inefável adormecido na beleza a ser desenvolvida. Seria a tutora da liberdade a ser
conquistada, aprimorada no desenvolvimento do humano no contato com o outro
em constantes negociações. Cuidará e zelará pela incansável procura da verdade.
Arte do zelo, do cuidado, que não permitirá nenhuma dor desnecessária na procura
das verdades anunciadas pelos desígnios do humano. Tudo isso em um mundo onde
voz e silêncio alojar-se-iam em corpos dos quais seriam impedidos de recusar a
função dos seus órgãos, ou os desígnios da sua existência. Para a arte zelosa, a que
transforma e educa, formulações de perguntas teriam a dádiva da resposta. O vômito
aconteceria. Nenhum grito ou silêncio interromperia um percurso. O destino
realizar-se-ia4. A peça Incêndios enfrenta este mito. O que fazer com o mito da
origem?
Atenta ao mito da arte que possui a função de representar e cuidar das
potencialidades adormecidas na natureza humana rumo ao desenvolvimento, Castro
(2011, p. 176) argumenta:
A verdadeira tarefa tanto da arte quanto da filosofia é a eliminação do
mito. A crítica estética define-se, assim, como uma intervenção prática,
que visa interromper o curso do tempo histórico, interromper a sua
sequência interminável de dominações, para abrir novas possibilidades
de sentido. Quando Benjamin escreve na sétima tese Sobre o Conceito de
História que ‘nunca há um documento de cultura que não seja ao mesmo
tempo, um documento de barbárie’, é ao privilégio das forças míticas
que ele está se referindo, pois elas também se insinuam nas obras de arte
e da cultura.

Um personagem de Wadji Mouawad afirma: “a infância é uma faca cravada


na garganta e não é fácil retirá-la” (MOUAWAD, 2013, p. 416). A infância quando
impedida de desvencilhar-se da faca na garganta torna-se submissa aos imperativos

4 Sobre o destino em Benjamin, argumenta Castro (2011, p. 111): “O destino, em Benjamin,


coincide com a constituição natural do vivente, ou seja, com aquela aparência que, se não for
totalmente dissolvida, constrange o vivente na culpa; e a vida culpada, submetida ao direito, é
aquela que hesita, que se demora demasiadamente na aparência da vida, antes de se decidir a
abandoná-la pela esfera ética.”

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incêndios da infância. atrevimento de uma arte cruel

de um mundo que subtrai suas forças. A ação da faca a denota como um ente
luminoso, pleno de qualidades, mas frágil. Ente alheio ao campo conflitivo da
invenção humana. A faca a subtrai da história. Impede a recusa enérgica ao mundo
das essências onde o tempo deve seguir continuamente em direção ao futuro. A
ausência da lâmina na garganta lhe daria o ar para ser um artefato, uma incansável
criação onde os deuses faltam.
A invenção burguesa da fragilidade, da inocência infantil, é contraposta pelo
atrevimento formulado por Walter Benjamin5 (1996, p. 215): “O conto de fadas
ensinou, há muitos séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças, que
o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância”.
Enfrentamento próximo da crueldade da arte a estilhaçar a compacidade de uma
história, pondo em risco o destino que a move. O gesto infantil burla o final da
mensagem, nega à narrativa o fim conclusivo. Joga com os personagens, com as
imagens na experimentação do destruir e reconstruir incessantemente. Gesto do
desdobramento de sentidos, da decomposição de tempos e espaços. O era uma vez de
uma história será convocado a surgir de novo, irreconhecível. O fim, a sucessão
cronológica da fábula lida ou ouvida, é atrevidamente interrompido em direção à
mensagem edificante. Atrevimento perturbador da harmonia e da continuidade da
narração. Ato que torna ruína, restos, cacos o que ela ouve, ou lê; destes restos outra
composição será provisoriamente apresentada. Começos e fins do narrado serão
suspensos. A grandeza do mito perderá sua força. Segundo Gagnebin (2015, p. 175),

essas brincadeiras essenciais implicam uma noção de ação política que


não visa a transformação do mundo segundo normas prefixadas, mas a
partir de exercícios e tentativas nos quais a experiência humana – tanto
espiritual e inteligível como sensível e corporal – assume outras formas.

5 Sobre a presença da infância nas reflexões de Walter Benjamin, Gagnebin (1994, p. 94)

argumenta que as “lembranças que se lhe impuseram quando compreendeu que só podia
realmente escrever sobre sua infância quando tivesse abandonado as encenações projetadas
pelo ‘eu’, para se consagrar às descrições de um teatro cujo desenrolar não controla.
Paradoxalmente, a renúncia à autoridade do autor permite a eclosão de um texto luminoso no
qual ele reaparece como voz narrativa única, surgindo do entrelaçamento da sua história com a
história dos outros”.

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A infância, à semelhança de uma “evidência pacificada”,6 excluída da


conflitualidade da história, dá lugar, por meio da experimentação dos seus jogos, ao
gesto político produtor de cesuras na linearidade da narrativa. Deste gesto é criado o
torvelinho do vir-a-ser, do devir, do qual emergem singulares começos, peculiares
formas de origem. Segundo Benjamin (1984, p. 67):
A origem, apesar de ser uma categoria totalmente histórica, não tem
nada que ver com a gênese. O termo origem designa não o vir-a-ser
daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser e da extinção.
A origem se localiza no fluxo do vir-a-ser como um torvelinho, e arrasta
em sua corrente o material produzido pela gênese.

No testamento de Nawal Marwan é solicitada a busca pela verdade. A


missão dos gêmeos, Jeanne e Simon, consiste na entrega da carta ao pai e ao irmão.
Após o encontro algo irá acontecer. Os gêmeos viverão a sensação que precede o
vômito. O grito sem voz será ouvido. Na aldeia, antes da morte de Nawal, o
miliciano sentencia: “Vocês são essas duas mulheres: uma escreve e a outra canta
degolar-vos e já veremos se aquela que sabe cantar tem uma bela voz e se aquela que
sabe pensar ainda tem idéias” (MOUAWAD, 2013, p. 377). Canto e pensamento
causavam mal-estar ao torturador. A crueldade da arte lhe incomodava. Por quê?
Outro pedido constava no testamento: a mudança do corpo sobre a terra. Após a
entrega das cartas o rosto de Nawal fitará o mundo. O corpo nu estará frente a frente
com as estrelas. O que verá?

Fogo

Ulisses tapou os ouvidos com cera, exigiu que o prendessem ao mastro da


embarcação. Temia o canto das sereias. Desconhecia outros poderes dos seres do
mar. Inútil precaução, o canto tinha o poder de perpassar tudo que bloqueasse a sua
passagem. Para Franz Kafka (2012, p. 87), o silêncio seria o mais terrível dos poderes.

6 Denominação utilizada por Silva (2016). O referido autor, na análise do livro Coir de Schérer e
Hocquenghem, aproxima-se das considerações da Benjamin sobre a Infância: “o que torna o
livro de Schérer e Hocquenghem completamente distinto [...] é a afirmação de um inominável
da infância, que assim é pensada em sua diferença inadestrável, inapreensível senão pela
prática de uma sistemática, quer dizer, uma pragmática das paixões, dos afetos, da potência de
agir” (p. 109).

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incêndios da infância. atrevimento de uma arte cruel

Acontece que as sereias têm uma arma ainda mais terrível que o canto –
o seu silêncio. Na verdade nunca aconteceu, mas é perfeitamente
plausível imaginar que alguém se pudesse salvar do seu canto. Do seu
silêncio certamente que não. Nada de terreno pode resistir à sensação de
as ter vencido com as próprias forças, à arrogância que, na sequência
disso, tudo derrubaria. E, de facto, quando Ulisses passou, estas
portentosas cantoras não cantaram. Ou porque pensaram que a este
adversário só se lhe chegava pelo silêncio, ou porque, à vista da
felicidade estampada na cara de Ulisses, que só pensava em cera e
correntes, esqueceram de vez a cantoria.

Maurice Blanchot (2005, p. 12), diferenciando-se de Kafka, apresenta o poder


do canto das sereias. Poder também terrível como o silêncio.
Ulisses navegava realmente e, um dia, em certa data, encontrou o canto
enigmático. Ele pode portanto dizer: agora, isto acontece agora. Mas o
que aconteceu agora? A presença de um canto que ainda estava por vir.
E o que ele tocou no presente? Não o acontecimento do encontro tornado
presente, mas a abertura do movimento infinito que é o próprio
encontro, o qual está sempre afastado do lugar e do momento em que ele
se afirma, pois ele é exatamente esse afastamento, essa distância
imaginária em que a ausência se realiza e ao termo da qual o
acontecimento apenas começa a ocorrer, [...] esse acontecimento
transtorna as relações do tempo, porém afirma o tempo, um modo
particular de realização do tempo, tempo próprio da narrativa.

O silêncio e o canto de Nawal Marwan eximiam-se da exclusividade do peso


do mundo em seu corpo. À semelhança do silêncio das sereias de Kafka, desprezava
o uso das ceras e correntes dos heróis temerosos das tempestades. O silêncio dizia
não ao alarido das palavras onde o temor ao risco afirma-se. Mostrava a dor
intensamente. Apresentava no silenciar o acontecimento que sucedeu, e sucederá.
Nele um paradoxo habitava quando acolhia o mito da origem da culpa, mas a negava
afirmando que algo ainda acontecia fora dos limites exclusivos de seu corpo. O
silêncio de Nawal assemelha-se ao silere de outros tempos. Na antiguidade, segundo
Barthes (2003, p. 49), utilizavam-se duas modalidades de silêncio, tacere, o não falar, o
calar-se, e silere, o silêncio empregado para a noite, para os objetos, para o vento, para
o mar. Silere diferenciar-se-ia do silêncio da boca, afirmando nuances, modalidades
de pensar, recusa do alarido das palavras onde significados invioláveis imperam.
“Sabe-se que em música o silêncio é tão importante quanto o som: ele é um som, ou
ainda, ele é um signo” (BARTHES, 2003, p. 58). Nawal, no seu não falar afirmava
nuances do tempo justapondo modulações de intensidades do passado e do agora;
apresentava o inacabamento de uma agonística que ultrapassava o limite do seu
corpo. O deserto, a prisão, a tortura, o fogo, a escrita na pedra, a chuva esperada, o

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presente fora do Líbano a inquiriam em forma de apelo. Ela respondia


silenciosamente, no refazer dos contornos que a delineavam.
Do seu canto estaria a recusa ao presente amordaçado ao inexorável, ao
cumprimento de um destino. Canto do movimento infinito, cruel, na medida em que
conclamava ao fora, o sair da vida ordinária onde nada acontece, conclamava o
escape aos cárceres de si, dos destinos, das origens. A melodia como o fio de uma
navalha cortante, cesura insistente. Nawal enfrentava com sua música a falta de ar da
vida ordinária onde as coisas são o que são, os discursos são o que são, na qual o
hábito assemelha-se ao “lastro que acorrenta o cão a seu vômito” (BECKETT, 2003, p.
17). Na prisão canções eram entoadas como a intensidade do tempo nada
apaziguador. Nawal cantava, atormentando torturadores temerosos do canto e do
silêncio das sereias.
Uma história que sucedeu no Líbano foi destruída pelo fogo com crueldade.
A sucessão cronológica dos fatos feneceu. Pensou-se que um mistério estaria
desvendado para sempre. Cuidado, é uma trama perigosa. A revelação queimará
calendários, mapas, quimeras da esperança. Nomes e tempos ficarão chamuscados. A
verdade será outra. Quimeras da desesperança serão também queimadas. Das cinzas
algo restará. Será encontrado no céu, no perigoso infinito onde residem estrelas.
Qual?
Em uma aldeia de qualquer lugar do mundo tempos diversos atravessam
suas fronteiras. A morte não tem poros (FREITAS FILHO, 2006, p.52). A aldeia ainda
está viva. Nela uma mulher canta, outra silenciará fora dali. Uma velha senhora pede
para ter cravado o seu nome no túmulo de pedras. Na aldeia casas são incendiadas,
homens e mulheres pegam fogo, e a velha senhora roga à neta para que aprenda a
ler, contar, escrever e a pensar. A neta, certo dia, conheceu um rapaz no rochedo das
árvores brancas, apaixonaram-se e foram banidos para bem longe. Os dois sonhavam
em ver o mar juntos. O tempo é como uma galinha, a que se cortou a cabeça e que
corre para a direita e para a esquerda. A mulher que ficará muda, o seu amante, a
velha, não conhecerão o mar. A jovem apaixonada silenciará em um país bem
distante. Na aldeia engravidou. A fúria da mãe a expulsou de casa. A avó diz à neta

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incêndios da infância. atrevimento de uma arte cruel

que a cólera da mãe dela é igual à da sua mãe. A mulher que irá silenciar foi expulsa
por todos da vizinhança. Na aldeia quase não chove. Certo dia, a banida de casa
conheceu a mulher que canta e ficaram amigas. Crianças pegam, pegarão fogo
naquele lugar onde ninguém conhece o mar. Na aldeia o tempo se repetia como as
estações do ano. Para recusar é preciso falar, disse a velha senhora. A jovem que irá
silenciar no futuro contou que no lugar onde todos pegam fogo o mundo está mudo.
A que cantava disse à amiga que antes de aprender a ler lhe indicavam o céu, mas
não diziam nada sobre ele. Apontavam para o vento, para o mundo, e tudo
continuava opaco.
Em uma aldeia de qualquer lugar do mundo tempos diversos atravessam
suas fronteiras. A morte não tem poros (FREITAS FILHO, 2006, p.52). A aldeia ainda
está viva. Dentro dos seus limites o nascimento dos filhos da mulher banida dali é
fruto da violação e do horror. São gêmeos, um menino e uma menina. Nasceram e
nascerão na prisão e serão jogados nas águas frias do rio. Na aldeia céu é céu, água é
água, vento é vento e não seriam mais nada do que isso. A mulher que não sabia ler
rogava à amiga, que irá silenciar no futuro, que a terra é ferida por um lobo
vermelho. Os gêmeos foram salvos por um homem. Um menino e uma menina
escaparam das águas frias. Meninos e meninas não escaparão das águas geladas. A
mulher do silêncio aprendeu a cantar, aprendeu com a amiga que olhava o céu, o
vento e não sabia nada sobre eles. Todo o dia canta, cantava e cantará no lugar
repleto de horror e violação. No passado, no presente, no futuro, dizia a avó à neta,
tu és a sensualidade e o seu cheiro, leva-os contigo e separa-te da cólera infinita desta
família como quem se separa do ventre da mãe. Milicianos não conhecem o mar. Os
gêmeos salvos da água gelada foram levados para longe, muito longe do lugar onde
nasceram. As duas mulheres foram presas.
Em uma aldeia de qualquer lugar do mundo tempos diversos atravessam
suas fronteiras. A morte não tem poros (FREITAS FILHO, 2006, p.52). A aldeia ainda
está viva. Nela homens, mulheres, crianças pegarão fogo. O céu, o vento, os pássaros
eram o que eram, são o que são, serão o que são e nada mais, antes dela aprender a
ler e a pensar. A velha senhora, avó da mulher que irá silenciar na terra estrangeira,

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tem seu nome cravado na pedra. A aldeia arde, os gêmeos foram salvos, a mãe
cantou e ficará muda. A milícia desejava degolar as duas mulheres. Na aldeia
refugiados são incendiados. O mundo opaco é ferido por um lobo vermelho. A velha
senhora repediu, repete e repetirá: uma palavra tudo salva. Todos diziam que à
nossa volta não há beleza, só cólera de uma vida dura e agreste. A mulher mãe dos
gêmeos insistia em dizer que agora juntos, é melhor. Os refugiados incendiaram a
casa para vingarem os milicianos que tinham destruído o poço. Os refugiados
queimam a colheita porque os milicianos incendeiam casas. Milicianos incendeiam
ônibus porque refugiados não conhecem o mar. Na aldeia a história prossegue de
cólera em cólera. A avó morrerá e não sumirá. Ali quase não choveu. A velha
senhora diz para a neta que é preciso quebrar o fio da dor em tristeza, da tristeza em
dor, da dor em cólera, da cólera em tristeza. O fio é longo, vai até o começo do
mundo, diz a mulher do nome cravado na pedra. A aldeia ardeu, arde e arderá.
Em uma aldeia de qualquer lugar do mundo tempos diversos atravessam
suas fronteiras. A morte não tem poros (FREITAS FILHO, 2006, p.52). A aldeia ainda
está viva. A mãe dos gêmeos repete, repete, repete: agora juntos, é melhor. Ouviu da
avó: leve a sua sensualidade e o seu cheiro, quebre o fio, abandone este lugar. A
mulher que cantava desejava saber mais do vento, da chuva e do mundo. A mulher
que silencia foi presa e violentada. O homem afirmou que a infância é uma faca
cravada na garganta e não é fácil retirá-la. Milicianos queimam refugiados que
queimam milicianos na aldeia do rochedo das árvores brancas. Para recusar é preciso
falar, falou a velha senhora. Onde as mulheres vivem só existem fios que vão até o
começo do mundo. A velha senhora não se transformou em cinzas. Milicianos
repetem, repetem, repetem e nada acontece. O vento não soprou o nome da avó para
o esquecimento. Ela esteve, está e estará na aldeia e fora dela. Milicianos não cantam
e não silenciam. A mãe dos gêmeos aprendeu a ler e a contar histórias na vida dura
do agreste e fora dele. Aquele lugar arde, ardeu e arderá e quase não há beleza. O
mundo opaco será ferido por um lobo vermelho. Os filhos gêmeos salvos das águas
geladas foram para um lugar distante dos animais e da seca. A velha senhora não
virou cinzas, tem agora um nome como os ventos, os pássaros, e o mundo quando

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incêndios da infância. atrevimento de uma arte cruel

fala, silencia e pensa. A infância é uma faca cravada na garganta, disse o homem.
Uma palavra e tudo se ilumina, torna-se opaco, queima. Ela levou e levará para fora
de casa o seu cheiro que destrói o fio. Na aldeia o mundo tem um começo e um fim.
Do refugiado à cólera, da cólera à recusa, da recusa ao rio das águas geladas, do rio
das águas geladas ao silêncio, do silêncio à faca na garganta, da faca na garganta à
palavra, da palavra à milícia, da milícia ao canto, do fogo ao lobo vermelho, da pedra
do túmulo ao fogo, do fogo ao canto, do canto à faca, da faca à palavra, da palavra à
dor, da dor às cinzas, das cinzas à recusa, da recusa ao incêndio faziam, fazem, farão
parte do fio da aldeia onde quase não chove. O tempo é como uma galinha a que se
cortou a cabeça que corre para a direita e para a esquerda sem parar, com o seu
pescoço cortado onde o sangue submerge-nos e afoga-nos.
Em qualquer lugar do mundo onde as fronteiras são porosas a infância
desvencilha-se da faca na garganta; o céu é visto repleto de imagens de animais, de
objetos e pessoas, de mares e rios, de pedaços incompletos de dores e alegrias.
Imagens que cintilam como estrelas. Nesta constelação o passado, o presente e o
futuro brilham juntos, mudam de cor e de tamanho. A origem e o fim de qualquer
trama extinguem-se. No infinito do céu o tempo é inquieto como a chama soprada
pelo vento. A faca cravada na garganta da infância é difícil de retirar, disse, diz e dirá
o homem. Sem a faca ela torna-se o atrevimento de uma arte cruel.
Perigos sinalizados pelo intolerável de uma dor insistem em manter a sua
intensidade. Indicam, mostram o céu com seus restos, ruínas, pedaços de narrativas a
espera de composições, ou de constelações. A neta aprendeu a escrever e cravará no
túmulo da velha senhora, A, z, y, r, a, h, z, n, f, RR, b, g, x., m, j. Nome indefinido,
alojado em um corpo sem proprietário, pátria ou lugar definitivo. Nome desenhado
pela chama inquieta de uma certa forma de se fazer história. O fogo destruía
cruelmente a permanência e a clareza do corpo, do nome, do tempo.

Cinzas
Jeanne e Simon receberam uma carta após o cumprimento da missão
delegada pela mãe. Na carta Nawal propõe:

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Quando vos perguntarem a vossa história,


Digam que a vossa história, a sua origem,
Remonta ao dia em que uma rapariga
Regressou à sua aldeia natal para gravar o nome
Da sua avó Nazira no seu túmulo. (MOUAWAD, 2003, p.417)

A descoberta do torturador, pai e irmão dos gêmeos, talvez não fosse a


grande revelação desejada pela libanesa que cantava e silenciava. Jeanne e Simon
conheceram o deserto, o chão da tortura, vestígios do fogo, o rio das águas geladas,
sentiram medo como Ulisses, ouviram o canto das sereis, foram contagiados pelo
silêncio de Nawal. A origem da trama a ser desvendada não estaria alojada na
verdade do passado, mas no torvelinho dos acontecimentos, na intensidade do
tempo em cada modulação da experiência. Descobriram a potência do gesto da
mulher que canta no lugar onde o horror impera. Viveram a experiência da recusa do
outrora em tornar-se cinzas de um passado morto; cinzas sopradas pelo vento rumo
ao futuro, em direção ao encontro do esquecimento que enfraquece o corpo e
fortalece a barbárie. No túmulo de Nazira existe mais do que um nome, existem
letras do alfabeto cravadas na pedra, restos do passado inconcluso que a crueldade,
ou o atrevimento da Infância alertada por Benjamin (1994), poderá fazer do deserto o
lugar repleto de cânticos e silêncios. Nazira ainda diz: “Também tu deixarás à tua
filha a cólera como herança. É preciso quebrar esse fio” (MOUAWAD, 2003, p. 349).
A história da mulher que silenciava e cantava não acabou.
O fio foi quebrado. Todos foram atingidos por uma cruel e laica salvação.
Nawal poderia virar o corpo e olhar as estrelas. No céu uma constelação brilhava.
Qual?
Benjamin (1994), já sugere que estes pontos isolados, os fenômenos
históricos,
só serão verdadeiramente salvos quando formarem uma constelação, tais
estrelas, perdidas na imensidão do céu, só recebem um nome quando um
traçado comum as reúne. [...] Em oposição à narração que enumera a
seqüência dos acontecimentos como as contas do rosário, este
procedimento, que faz emergir momentos privilegiados para fora do
continuum cronológico, é definido, no fim das teses, como a apreensão de
uma constelação salvadora. (GAGNEBIN, 1994, p. 18)

Das cinzas do passado, dos restos deixados pela combustão, um sopro de ar,
uma lufada de vento, trará novamente o fogo. O atrevimento de certa infância ao

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mito do fim de uma história o reacenderá. A chama destrói cruelmente a


permanência e a clareza de um corpo, de um nome, de um tempo. Refugiados ainda
são incendiados. A faca na garganta da infância persiste. Torturadores que não
conhecem o mar encontram-se nos desertos das cidades. Crianças são afogadas.
Apelos convocam o transtornante exercício, segundo Llansol (2011), de liberdade.
Cânticos e silêncios estilhaçam, cortam como o fio de uma lâmina palavras de ordem
da esperança e da desesperança. As constelações aguardam composições para que
outras histórias possam ser contadas. E queimarão, como o fogo que arde, destrói e
ilumina.

Referências
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ADORNO, Theodor. Anotações sobre Kafka. In: ______. Prismas: crítica cultural e
sociedade. São Paulo: Ática, 1998. p. 239-270.
BARTHES, Roland. O neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BECKETT, Samuel. Proust. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
BENJAMIN, Walter. O Carácter Destrutivo. In: BARRENTO, João (org e trad.). Walter
Benjamin. Imagens do Pensamento. Porto: Assírio & Alvim, 2004. p. 215-217.
________. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e
Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.
________. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 3: a ausência de livro, o neutro, o
fragmentário. São Paulo: Escuta 2010.
CASTRO, Claudia. A alquimia da crítica. Benjamin e As afinidades eletivas de Goethe.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
FREITAS FILHO, Armando. Rol. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Limiar, aura e rememoração. Ensaios sobre Walter
Benjamin. São Paulo: Ed. 34, 2014.
________. História e narração em W. Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994.

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luis antonio baptista

KAFKA, Franz. O silêncio das sereias. In: BARRENTO, João (org e trad.). Franz Kafka.
Parábulas e fragmentos. Porto: Assírio & Alvim, 2012.
LLANSOL, Maria Gabriela. Um Falcão no Punho: Diário I. Belo Horizonte: Autêntica,
2011.
MOUAWAD, Wadji. Incêndios. In: ______. O sangue das promessas: Céus, Florestas,
Litoral e Incêndios. Lisboa: Cotovia, 2013. p. 319-417.
SILVA, Eder Amaral. A cruzada das crianças. Constelações da infância à penumbra.
Tese do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ. 2016.

Recebido em: 15.05.2016


Aprovado em: 19.06.2016

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doi: 10.12957/childphilo.2016.23419

UMA INFÂNCIA, UM SILÊNCIO, UM APRENDIZADO DO GESTO

Cintya Regina Ribeiro1


Universidade de São Paulo, Brasil

Resumo
Incêndios, peça teatral escrita pelo libanês Wadji Mouawad e publicada em francês em 2003,
sugere, a partir da singularidade de uma condição histórico-familiar, uma incursão analítica nas
questões que remetem às relações entre gestualidade, ética, política e infância. A análise elege
dois momentos da obra teatral para conduzir a argumentação: a) os efeitos do gesto de silêncio
da personagem Nawal; b) a conclamação ao gesto de escrita que perpassa as três gerações de
mulheres. O ensaio organiza-se a partir de três planos analíticos. Num primeiro, a partir da
questão do silêncio do gesto, buscamos, na companhia de Giorgio Agamben, explorar as
relações entre politização e estilização da gestualidade. Em seguida, no horizonte do
pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari, buscamos tomar a dimensão do gesto como
recurso estratégico, da ordem dos signos, na produção de cartografias do viver. Argumentamos
que as urgências cartográficas constituem-se como trabalhos de estilização e politização das
formas de vida, demandando uma articulação entre política da atenção e gestualidade. Num
terceiro movimento, o trabalho busca aproximar a questão da gestualidade numa perspectiva
de aprendizado, apontando os efeitos dessa experiência para tomarmos infância como uma
força pervasiva capaz de ubiquidade num tempo qualquer e em toda parte. A análise conclui
sobre o caráter de impessoalidade do gesto e de sua respectiva potência como assinatura do
mundo.

Palavras-chave: gesto; estilização; cartografia; infância; política da atenção.

A childhood, a silence, a learning gesture


Abstract
Scorched, a play written by the Lebanese dramatist Wadji Mouawad and published in French in
2003, suggests, beyond the singularity of a historical family context, an investigation about the
relationship between gestures, ethics, politics and childhood. The analysis sets out two
moments of the narrative to develop the discussions: a) the effects of the silence of Nawal´s
character; b) the writing gesture that runs through the three generations of women. The paper
is, therefore, organized according to three analytical levels. At first, regarding the gesture of
silence, it explores the relationship between politicization and stylization, along with Giorgio
Agamben’s theoretical inspiration; secondly, following Gilles Deleuze and Felix Guattari’s
theoretical legacy, the paper examines the relationship between gesture and signs, in order to
present a cartographic production of living. We state that the cartographic urgencies constitute
a kind of labor of stylization and politicization of life forms, which requires an articulation
between gestures and a political attention. Finally, the analysis approaches the issue of gestures
in a learning perspective, pointing out the effects of such experience in order to understand
childhood as a pervasive force capable of ubiquity anytime and anywhere. The paper concludes
affirming the impersonality nature of gesture and its potency as a signature in the world.

Key words: gesture; stylization; cartography; childhood; political attention.

1E-mail: cintyaribeiro@usp.br

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uma infância, um silêncio, um aprendizado do gesto

Una niñez, un silencio, un aprendizaje del gesto

Resumen
Incendios, obra escrita por el libanés Wadji Mouawad y publicada en francés en 2003, sugiere,
desde la singularidad de una situación familiar histórica, una incursión analítica sobre
cuestiones que se refieren a la relación entre gestualidad, ética, política e infancia. El análisis
elige dos momentos de la obra para argumentar: a) los efectos del gesto de silencio del
personaje Nawal; b) la llamada al gesto de escritura que se ejecuta a través de las tres
generaciones de mujeres. El artículo se organiza a partir de tres ejes de análisis. En un primer
momento, desde la pregunta acerca del silencio del gesto, buscamos, en compañía de Giorgio
Agamben, explorar la relación entre la politización y la estilización de los gestos. A
continuación, en el horizonte del pensamiento de Gilles Deleuze y Félix Guattari, buscamos
tomar el alcance del gesto como un recurso estratégico, en el orden de los signos, en la
producción de cartografías de la vida. Se argumenta que las emergencias cartográficas
constituyen obras de estilización y politización de las formas de vida, lo que requiere un vínculo
entre la política de la atención y la gestualidad. En el tercer movimiento, el análisis trata de
abordar el tema de la gestualidad en una perspectiva de aprendizaje, señalando los efectos de
esta experiencia para tomar a la infancia como una fuerza omnipresente capaz de ubicuidad en
cualquier momento y en todo lugar. El análisis concluye con la impersonalidad del gesto y su
respectivo poder como una firma del mundo.

Palabras clave: gesto; estilización; cartografía; infancia; política de la atención.

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cintya regina ribeiro

UMA INFÂNCIA, UM SILÊNCIO, UM APRENDIZADO DO GESTO

Jamais
o gesto do pintor
fica na moldura, ele
sai da moldura e
não começa com ela.
G. Deleuze; F. Guattari (1992, p.242)

Há um excessivo ruído no mundo. Com velocidades díspares, sons


sobrepostos concorrem. O século arrasta consigo essa extensa genealogia do
indizível. Sensível a essa confluência de sons incógnitos, Wajdi Mouawad (2013), a
partir da espessura de sua obra teatral Incêndios, parece evocar tal horizonte de
experiências cujos efeitos remetem de modo incisivo aos nossos atuais dilemas ético-
políticos.
Incêndios (MOUAWAD, 2013) narra uma epopeia familiar contemporânea,
num contexto geopolítico de guerras étnico-culturais. Uma mulher, um filho que lhe
foi subtraído no nascimento. As rotas de fuga das populações ameaçadas trataram de
separá-los. Insuspeitas veredas cuidaram de colocá-los frente a frente, num tempo
outro, em arenas políticas opostas, como adversários de ódio, alheios, ambos, às
condições de origem que os vinculam biologicamente. Do estupro cultural e político,
nasce um casal de filhos, gêmeos. Outros itinerários cuidarão agora de sufocar a
memória dessa genealogia trágica, arremessando cada um à suposta liberdade
subjetiva de uma vida autônoma no presente do século XXI, tal como apregoa a
crença dogmática constitutiva de certo modo contemporâneo de viver.
É dessa ambiência que buscamos fazer irromper o veio argumentativo de
nosso ensaio de pensamento. Aqui, não importa uma dedicação reflexiva ao desfecho
dessa narrativa, a saber, a partilha de um conhecimento, entre todos, a propósito
dessa verdade trágica que singularmente os produz.
Interessa-nos explorar outro timing dessa experiência: a emergência de uma
temporalidade intensiva que, refratária à clássica obediência à linearidade temporal
da narrativa – com suas demandas de começos, meios e fins – se instala

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uma infância, um silêncio, um aprendizado do gesto

compulsoriamente, ativando outra pergunta, exigindo outro modo de


endereçamento à vida.
Propomos espreitar analiticamente esse movimento a partir da mirada do
gesto. É num dos filhos gêmeos da personagem Nawal, a jovem estudante de
matemática Jeanne, que focalizaremos nosso olhar.
Retomemos, pois, a atmosfera dos ruídos do mundo. Mouawad (2013) nos
traz, de largada, a personagem Nawal capturada por uma experiência de enigmático
e abissal silêncio. Trata-se de um silêncio afirmativo, porém, intransitivo; um gesto
radical de ocupação do presente, invadindo sua orquestração ruidosa, colocando-o
em absoluta suspensão, espraiando-se à moda de um pathos de época.
Não se trata, entretanto de um ato subjetivado, ou seja, manifestação
expressiva de uma suposta subjetividade originária. Materialidade permeável,
Nawal dá passagem às forças contingenciais do fluxo do tempo e seu corpo-
pensamento “acontece” como ocasião de uma miríade de signos indevassáveis.
Arrastada por tais fluxos, ainda que em condição de resistência, Jeanne, linha
singular de passagem, afirma esse encontro com o incognoscível.
Diríamos que as figuras dos gêmeos Simon e Jeanne acionariam
movimentos variados, com seus efeitos específicos. Mas é Jeanne uma espécie de
linha de passagem que estrategicamente buscamos acompanhar – é de seu encontro
com o acontecimento do silenciar que se criarão outros mundos.
Ardiloso é o jogo do silêncio, para o qual se exige certa diligência à
iniciação. Respira-se sob o fio da navalha. O ruído do mundo pode calar o silêncio,
quando, de modo reativo, anula-se a potência do vácuo aí instalado, olvidando-o,
abstraindo-o, refratando-o, enfim. Mas, esse jogo pode transgredir-se, num golpe de
coragem: esse ruído do mundo pode também fazer silenciar: nesse caso, numa
ocupação performática do silêncio, a vacuidade sonora se afirma, expandindo-se
como uma força disruptiva vital a fecundar o presente, abrindo-lhe sua
temporalidade intensiva.
Assim, não nos interessa tomar a localidade hermenêutica do gesto de
silêncio de Nawal, a mãe. Interessa-nos perseguir os efeitos-silêncio potencializados

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cintya regina ribeiro

nessa linha de passagem, Nawal-Jeanne, flagrando as próprias condições desse gesto


de silenciar, em sua expansão dançarina, de tal modo que possamos fazer uma
imersão oceânica na própria experiência de silêncio imanente ao encontro dessas
vidas.
É nesse sentido que gesto será aqui apreendido analiticamente como
experiência impessoal, refratária a quaisquer prerrogativas de filosofias do sujeito.
Trata-se, pois, de capturar certas ocasiões de culminância de uma vida. Desse modo,
diríamos que é a vida mesma que silencia e, nesse seu gesto, convoca a outras
destinações.

Das intransitividades moventes


Poderíamos falar, pois, de uma política dos gestos, cuja especificidade será
talhada no decorrer de nossas digressões. Se, aqui, gestualidade não remete ao jugo
subjetivo, identitário, faz-se necessário operá-la como um efeito da própria
materialidade dos encontros.
Jean Galard (1997), em seu ensaio A beleza do gesto, busca, a partir de uma
discussão sobre uma estética das condutas, problematizar o fundamento ontológico
do sujeito da expressão bem como o caráter de subjetivação presumido na
gestualidade, princípios estes particularmente sustentados pela tradição estética do
romantismo.
Recusando-se a tomar os processos de estilização das condutas a partir de
princípios universais transcendentes, o ensaísta indaga: “Será que não se pode
imaginar, em vez de leis que se supõem governando a vida moral, uma arte do
‘pertinente’, produzindo para cada situação singular o gesto que a convém?”
(GALARD, 1997, p, 17).
A interpelação é oportuna para erodirmos uma suposta sacralização do
gesto – artifício que lhe conferiria uma natureza transcendente ou sublime – e ao
mesmo tempo dilatarmos o campo de possibilidades – tanto analíticas quando ético-
políticas – quando lançamos essa experiência do gesto à sua condição de imanência.

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uma infância, um silêncio, um aprendizado do gesto

Tal autor defende a tese de que o franqueamento do gesto estaria vinculado


a uma dispersão subjetiva, ou seja, à marcação de uma distância ou de um recuo em
relação a si mesmo, em detrimento de um trabalho de encontro com uma suposta
verdade subjetiva, identitária. Para sustentar sua argumentação, busca evocar, a
partir dos territórios da arte, possíveis articulações para pensarmos uma arte ou
estética das condutas – daí a sagacidade dessa ênfase numa discussão que
problematiza as teorizações tradicionais sobre gesto. De acordo com sua análise:
É próprio da arte em geral tornar-se acolhedora dos achados fortuitos.
Tirar partido dos materiais é, ao mesmo tempo, deixar viver seus
acidentes. [...] Ora, é próprio da arte de viver lidar com o acontecimento,
em outras palavras, com o imponderável e o imprevisível. (GALARD,
1997, p.100)

Essa abordagem das artes como um trabalho de luta com a materialidade –


seja no talhar o acidental dos materiais ou no afirmar radical do acaso do viver – será
o vórtice a partir do qual o gesto escapará de qualquer mandamento subjetivante.
Para lidar com o imponderável dos materiais ou da vida, faz-se necessário um
trabalho de desfocalização. Mais especificamente, “o efeito da desfocalização
equivaleria a dissociar os gestos do sujeito que os realiza, a tomá-los pelo que dizem
ou pelo que fazem, sem os imputar a uma substância subjetiva” (GALARD, 1997, p.
103).
Aqui, desfocalização remete a uma espécie de flutuação da atenção, a um
deslocar-se andarilho, arredio à seriação linear dos eventos e ao mesmo tempo
atiçado pelos chamamentos da viagem.
Nesse sentido o gesto encontra sua virtual potência na medida mesma em
que se afasta dos cálculos de subjetivação, do logos, da doxa, vertendo-se, assim,
como uma inundação estrangeira. A desfocalização ativa um jogo de exterioridade,
uma vez que “destitui o essencial, dá sentido ao acidental, detém-se no detalhe,
deriva na margem” (GALARD, 1997, p.90).
Assim, defendemos que essa decalagem entre sacralização subjetivo-
identitária e mundanidade de experiências de encontros constitui aquilo mesmo que
anima o gesto numa potência do impessoal. A propósito do efeito de criação
desdobrado desse movimento, Galard (1997) nos lembra que “quando [os artistas da

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conduta] se retiram, o gesto inteiro de sua vida tem a densidade de uma obra” (p.
117).
Gesto e obra se confundem, portanto, como um só trabalho, performativo,
de estilização e politização da vida. Afirmamos, portanto, que habitar esses
movimentos incorpóreos do gesto – “atenção flutuante, visão sem foco, vigilância
esparsa” (GALARD, 1997, p. 101) – exige recusar a loquacidade do mundo e ao
mesmo tempo nele se imiscuir, numa travessia muda.
No esteio dessas discussões, poderíamos inferir duas formulações cruciais à
argumentação desse trabalho: em primeiro lugar, assumimos a ideia de que des-
subjetivar o gesto torna-se, pois, uma ética e uma política; em segundo lugar,
postulamos que, uma vez imantado num campo ético-político, todo gesto sustenta-se
em certa política do silêncio, a qual por sua vez, demanda certa política da atenção.
Conduzindo uma instigante digressão a respeito do gesto, Giorgio
Agamben (2008) nos lança a um território de sutilezas, para explorarmos tal incursão
analítica. Em seu ensaio Notas sobre o gesto, o pensador italiano cunha a seguinte
imagem: “O que caracteriza o gesto é que, nele, não se produz, nem se age, mas se
assume e suporta. Isto é, o gesto abre a esfera do ethos como esfera mais própria do
homem” (AGAMBEN, 2008, p. 13).
Considerando discussões aristotélicas, o autor contemporâneo articula as
singularidades de três gêneros referentes à ação: afirma a distinção entre as
categorias do fazer e do agir, distinguindo, de ambas, a noção de gesto. Enquanto o
fazer estaria endereçado a um fim que lhe é exterior, o agir remeteria à própria ação
em si, constituindo-se, pois, como uma finalidade em si mesma. Ambos se
constituem como meios consagrados a um fim, ainda que voltados a qualidades
distintas. Diferentemente, o gesto seria de outro matiz: nem um fazer, nem um agir –
um suportar, um sustentar, um suster, um assumir.
Em resumo, o fazer seria um meio em vista de um fim; o agir seria um fim
sem meios. O gesto seria a pura exposição de um meio em si mesmo, sem remissão a
um fim – “um meio sem fim”, nos termos de Agamben. Sua evocação é impecável:

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uma infância, um silêncio, um aprendizado do gesto

Se a dança é gesto, é porque, ao contrário, esta é somente o suportar e a


exibição do caráter medial dos movimentos corporais. O gesto é a exibição
de uma medialidade, o tornar visível um meio como tal. (AGAMBEN, 2008, p.
13, grifos do autor)

Nessa imagem, gesto se constitui como o próprio movimento de


sustentação, expondo-se em condição de potência, como pura medialidade, ou seja,
como meio em si mesmo. Em outras palavras, aquilo que o gesto comunica é seu ato
mesmo de sustentação. Nos termos de Agamben (2008, p.13), “o gesto é, neste
sentido, comunicação de uma comunicabilidade”.
Essa ideia paradoxal de “meio sem fim” é a pedra de toque a provocar a
ruína de um modo de pensamento teleológico que produz e organiza, em larga
medida, as vidas contemporâneas. Sequestrando-se o conforto da linearidade
pressuposta no jogo lógico entre meios e fins, o gesto, rompendo tal linearidade,
colocaria em suspensão, também, a necessidade de evocar a contrapartida do sentido
para compreendê-lo, abordá-lo, tomá-lo, interpretá-lo, decifrá-lo.
Para realizarmos esse giro em relação à questão do gesto, faz-se necessário
refutar uma abordagem da linguagem alicerçada num tratamento hermenêutico,
interpretativo, tendo em vista a compreensão dos supostos sentidos que lhe seriam
subjacentes. Ao contrário, na medida em que gesto comunicaria tão somente sua
própria ação de comunicabilidade de um puro meio, faz-se necessário tomá-lo a
partir de uma frente analítica que assuma a linguagem em sua força eminentemente
performativa. Gesto constitui-se, pois, como pura performance, puro assumir, puro
sustentar. Sua efetividade não se encontraria nos sentidos do dizer, mas no próprio
acontecimento do indizível desse ato assim presentificado.
Afirmamos, pois, que haveria, no gesto, uma potência do intransitivo. Dado
que o gesto não resguardaria a polissemia de segredos em vias de decifração,
instaura-se uma fecunda intransitividade hermenêutica, ou seja, um embotamento no
fluxo compreensivo. Porém tal intransitividade não equivale ao flerte com o sublime,
tal como sugerido pelo romantismo estético. Trata-se de uma intransitividade como
gesto mesmo: a presença inarredável do impasse, do vazio como uma ocupação
plena do tempo, dispararia movimentos insuspeitos e faria saltar efeitos outros,

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cintya regina ribeiro

reconfigurando indefinidamente o jogo cartográfico, tal como sugerido por Gilles


Deleuze e Félix Guattari (1995).
Apostamos que a dilatação analítica da experiência do gesto irrompe como
um recurso extremamente potente para enfrentarmos demandas de ordem ética e
política. Apostamos também que o horizonte desse salto possível pode se constituir
num dos modos intensivos de nos lançarmos ao embate com o pensável da cultura
contemporânea, uma vez, que, como já sinalizado por Agamben (2008, p. 12), “o
gesto abre a esfera do ethos”.

Das urgências cartográficas


Ao telefone com o irmão, Jeanne diz:
Mas para isso é primeiro ela, é a mamãe que eu tenho que encontrar, na
sua vida de antes, nessa que durante todos esses anos ela escondeu da
gente. Vou desligar, Simon. Vou desligar e mergulhar de cabeça,
mergulhar longe, muito longe dessa geometria precisa que estruturava
minha vida. Aprendi a escrever e a contar, a ler e a falar. Tudo isso não
serve para mais nada. O abismo no qual vou me enfiar, esse para dentro
do qual já estou escorregando, é o abismo do silêncio dela.
(MOUAWAD, 2013, p. 77-78)

Nawal, a mãe, sustém, em gesto, a radicalidade do silêncio. Enquanto o filho


Simon recusa a imersão no abismo de sentidos supostamente entranhados nesse
silenciar, Jeanne, sua irmã, é dragada pela ocupação desse vazio intransitivo,
habitando-o. Refratário aos imperativos de forma e de conteúdo, tal vazio se instala
como pura presença.
Ocorre, pois, uma torção fundamental: Jeanne, essa linha de passagem,
parece ultrapassar a demanda hermenêutica de povoar de ruídos o gesto de silêncio
de Nawal. Esvaziando a pergunta imediata sobre o sentido, ou mais especificamente,
sobre aquilo que substancializaria a verdade, diríamos que Jeanne faz circular outra
convocação, a qual resiste a esse clamor caro à cultura, o qual busca arrebatar a vida
a partir de segmentações lineares entre começos, meios e fins. Trata-se de render-se à
convocação do inexpressível.
Esse acontecimento no qual os sentidos já não bastam, sufocando-se,
engasgando-se em seus cálculos impotentes, encontra no verbo de Agamben (2008)
uma instigante enunciação:

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uma infância, um silêncio, um aprendizado do gesto

[O gesto] não tem propriamente nada a dizer, porque aquilo que mostra
é o ser-na-linguagem do homem como pura medialidade. Mas, assim
como o ser-na-linguagem não é algo que possa ser dito em proposições,
o gesto é, na sua essência, sempre gesto de não se entender na
linguagem, é sempre gag no significado próprio do termo, que indica,
antes de tudo, algo que se coloca na boca para impedir a palavra.
(AGAMBEN, 2008, p. 14, grifo do autor)

Ora, se o gesto diz de sua própria ação de dizer, sua condição muda parece
ser essencial à sua potência. É desse abismo que se trata. O mergulho de Jeanne não
responde a um apelo subjetivo da mãe ou de si, ativado por um silêncio factual.
Trata-se de abrir passagem ao mutismo inerente ao gesto mesmo que, afirmado,
coloca em questão absoluta certa geometria do viver.
Se gesto é esse gag da linguagem, esse “algo que se coloca na boca para
impedir a palavra” (AGAMBEN, 2008, p.14), como acima formulado pelo pensador
italiano, tende a acionar outras modulações nos regimes de percepção, situação que
nos permite pensar em outras políticas da atenção – demandas urgentes na
ambiência contemporânea.
Na contramão das velocidades atuais, com suas vertigens, o mutismo faz
dilatar a temporalidade, tornando intensivo o presente, exigindo dos homens outros
silêncios – esses agudos gestos de espera que atuam como outros verbos, uma vez
que aqueles canônicos já não podem mais geometrizar.
Insistimos que não é exatamente a busca da verdade da origem o que move,
por sua vez, esse gesto-Jeanne. Já se sabe de largada sobre a verdade oculta: alhures,
há um pai, há um irmão. Mas há um mutismo essencial que exige outro gesto: a
espera. Mergulhando num tempo sem fim, em absoluta suspensão cronológica,
“Jeanne coloca os fones de ouvido, insere uma nova fita cassete e volta a escutar o
silêncio da mãe dela” (MOUAWAD, 2013, p. 78).
O acontecimento mudo requer a invenção de outra modalidade de atenção,
gesto de resistência, portanto, frente à temporalidade avassaladora das formas
culturais mais imperiosas da atualidade.
Potente, essa linha Nawal-Jeanne resiste à obediência da série silêncio-
decifração e inventa uma gestualidade silêncio-espera. Nesse gesto outro que
atravessa o campo imanente de todas as vidas em afetação é preciso a coragem de

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cintya regina ribeiro

recusar a geometria, com seus cálculos de linhas e pontos, de tal maneira que se
possa ensaiar uma cartografia de signos.
Há de se converter a atenção numa ética, numa política, de modo a
cartografar a intensidade do tempo dilatado do presente. É nesse sentido que habitar
a temporalidade da espera requer outra política de atenção, outra política de
percepção.
Dispor-se à atenção e à percepção não são ações derivadas de supostas
faculdades inerentes à condição humana. O pesquisador norte-americano Jonathan
Crary (2013), em seu extenso estudo Suspensões da percepção, ancorado no pensamento
de Michel Foucault e Gilles Deleuze, desnaturaliza tais ações, reconstruindo, por
meio de uma genealogia da atenção, os processos históricos que a tornaram centrais
ou não na produção das subjetividades e formas de vida, desde a modernidade até a
contemporaneidade.
Crary (2013, p. 32) aponta o movimento duplo aí presente:
as raízes da palavra atenção ecoam um sentido de “tensão”, de estar
“estirado”, e também de “espera”. Ela sugere a possibilidade de fixação,
de manter-se em estado de fascinação e contemplação por alguma coisa
no qual o sujeito atento está imóvel e ao mesmo tempo desancorado.

Em nossa argumentação, a exploração desses movimentos da atenção nos


parece crucial para abordarmos sua envergadura ético-política nos jogos de forças
produtores de formas de vida. A partir dessa interpelação genealógica, Crary (2013,
p. 36) afirma:
Seria possível dizer que um aspecto crucial da modernidade é uma crise
contínua da atenção, na qual as configurações variáveis do capitalismo
impulsionaram a atenção e a distração a novos limites e limiares, com a
introdução ininterrupta de novos produtos, novas fontes de estímulo e
fluxos de informação, respondendo em seguida com novos métodos para
administrar e regular a percepção.

Assim, alinhados com o autor, afirmamos que se faz necessário considerar


que os regimes de atenção e de percepção são efeitos das condições de necessidade e
de contingência históricas. Delineiam-se, pois, modos de produção dessas
experiências que investem, sobretudo na produção de temporalidades oportunas à
vigência de certas malhas discursivas. Para isso, modular capturas da atenção e

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uma infância, um silêncio, um aprendizado do gesto

fomentar designs de percepção operam como dispositivos fundamentais seja na


produção de subjetividades ou de estratégias de controle de formas de vida.
Seria possível, a partir desse horizonte, defendermos que a força ativada no
campo relacional a partir da linha Nawal-Jeanne empreende uma luta contra os
regimes de atenção e de percepção imperativos no contemporâneo daquelas vidas.
Eis o gesto impessoal de natureza ética e política, portanto.
Empreitar esse gesto só parece ser possível porque foi recusada uma ordem
geométrica, engendrando-se, tragicamente, uma experiência cartográfica então
atiçada pela convocação dos novos signos que inundaram o tempo presente. Em
suma, trata-se de saltar de uma geometria para uma cartografia.
É na companhia de Gilles Deleuze (1997, 2006, 2007, 2010, 2016) e Gilles
Deleuze e Félix Guattari (1992, 1995) que propomos acompanhar esse movimento.
Diríamos que pensar estilização e politização de um gesto supõe tomá-lo como um
trabalho cartográfico com signos. Daí a relevância na criação de outra economia da
atenção, de outro jogo de percepção.
O que se chama “percepção” não é mais um estado de coisas, mas um
estado do corpo enquanto induzido por um outro corpo, e "afecção" é a
passagem deste estado a um outro, como aumento ou diminuição do
potencial-potência, sob a ação de outros corpos. (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p. 199)

Para os pensadores franceses, tomar os signos implica apreender um jogo de


afecção. A discussão implica uma atenção ao movimento, uma vez que, para eles, “os
signos não são signos de alguma coisa, mas são signos de desterritorialização e
reterritorialização e marcam um certo limiar transposto nesses movimentos”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.85).
Assim, Incêndios sugere, a partir dessa linha Nawal-Jeanne, o disparo de um
jogo de afecção que ultrapassaria uma jornada de caráter hermenêutico, a qual
tenderia a perseguir o sentido dos gestos e a fazer falar um enigma de silêncio. Trata-
se de outra empreitada: apreender Nawal como uma linha que dá passagem a uma
modalidade incorpórea de herança, aquilo que poderíamos chamar de um
aprendizado. Aprende-se, no encontro com o gesto, uma cartografia de signos
capazes de provocar criação de pensamento.

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cintya regina ribeiro

Essa viagem cartográfica implica menos um deslocar-se para uma verdade


da origem, de um tempo passado, e mais uma espécie de nomadismo no próprio
presente. A atenção à dilatação do presente passa a ser, portanto, um gesto ético-
político de resistência, gesto eminentemente mudo, herdado e aprendido.
Enfrentar a virtual tragicidade que vai materializando a atmosfera do
presente requer uma recusa à busca de similitudes e uma entrega à
indiscernibilidade. Para Deleuze (1997, p. 90) uma zona de indiscernibilidade “se
estabelece entre dois termos, como se eles tivessem atingido o ponto que precede
imediatamente sua respectiva diferenciação: não uma similitude, mas um
deslizamento, uma vizinhança extrema, uma contiguidade absoluta”.
Essa imagem de “uma vizinhança extrema, uma contiguidade absoluta” é
fulcral – trata-se de um esforço analítico para instaurar esse lugar limite no qual tudo
está por um triz: na insistência dos espelhamentos que nos replicam uma ordem do
mundo à exaustão, também nos arrastam as voragens dos signos anunciando o tom
vibrátil da diferenciação.
Ao tomar a obra de Marcel Proust para evocar essa condição de afecção dos
signos, ou seja, essa potência do indiscernível, Deleuze constrói uma bela imagem:
Eu creio que o narrador de Em busca do tempo perdido] tem um método
e que não o sabe a princípio, que o aprende em diferentes ritmos, em
ocasiões muito distintas, e que este método é literalmente a estratégia da
aranha. [...] A aranha crê, porém crê unicamente nas vibrações de sua
teia. Enquanto a mosca não entra em sua teia, a aranha não crê em
absoluto na existência da mosca. Não crê. Não crê nas moscas. Pelo
contrário, crê em qualquer movimento da teia, por minúsculo que seja, e
crê nele como se fosse uma mosca, ainda que seja outra coisa.
(DELEUZE, 2007, p. 61-64, tradução nossa)

Essa disposição à afecção parece ser aquilo que possibilita uma criação
cartográfica da existência, esse gesto não pessoal, que implica a politização e
estilização das vidas. Crer “em qualquer movimento da teia, por minúsculo que
seja”, disponibilizar-se aos seus encontros, materializá-los como afectos – eis o
aprendizado, cujo fim não se encontra para além dali, num resgate ao passado
inconfessável, mas no próprio gesto de nomadizar o tempo, vertendo-o em sua
mesma direção, intensificando-o, pois.

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uma infância, um silêncio, um aprendizado do gesto

A atenção à plenitude dos sinais do tempo presente é um gesto radical de


pensamento e portanto, do viver. Retomando um argumento dos estoicos, Deleuze
afirma que:
todo signo é signo de um presente. [...] passado e futuro são
precisamente apenas dimensões do próprio presente (a cicatriz é o signo,
não da ferida passada, mas do "fato presente de ter havido uma ferida":
digamos que ela é contemplação da ferida, ela contrai todos os instantes
que dela me separam num presente vivo). (DELEUZE, 2006, p. 121)

Essa intensificação do presente, tomado como um lugar de contração de


todas as forças do tempo e, portanto, ocasião inexorável de afirmação trágica, torna-
se, nessa entrega cartográfica aos encontros com os signos, um acontecimento.
Entretanto, essa dimensão de encontro não se resolve dialogicamente, sob
uma economia de correspondência de afectos. Ao contrário: aqui, o aprendizado se
faz na coragem de recusa ao jogo de recognição da cultura. Sem eufemismos, é de um
modo de violência que trata Deleuze:
Sem algo que force a pensar, sem algo que violente o pensamento, este
nada significa. Mais importante do que o pensamento é o que “dá que
pensar”. [...] O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um
encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a
necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre de
uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação
verdadeira. (DELEUZE, 2010, p.89-91)

Um jogo, quando fundado na prerrogativa de compartilhamento de


sentidos entre os homens, sequestra da presença do signo sua potência de afecção.
Diferentemente, nessa perspectiva Deleuze-guattariana, o ato de pensamento seria de
ordem agonística e não de natureza compreensiva.
Essa atenção cartográfica exige uma predisposição ao encontro divergente
com o signo, nocauteando-se assim os pressupostos de recognição, ultrapassando o
campo do reconhecível e acionando uma experiência de indiscernibilidade. Nessa
deambulação, provoca Deleuze (2006, p. 210) “não são os deuses que são
encontrados; mesmo ocultos, os deuses não passam de formas para a recognição. O
que é encontrado são os demônios, potências do salto, do intervalo, do intensivo ou
do instante; eles são os porta-signos”.

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cintya regina ribeiro

Dos demônios na infância do mundo


Nawal, 65 anos, escreve em sua carta-testamento aos filhos: “gravem o meu
nome sobre a pedra e coloquem a pedra sobre meu túmulo” (MOUAWAD, 2013,
p.132).
Nawal, 16 anos, ouve de sua avó:
Escuta o que uma velha mulher que vai morrer tem para te dizer:
aprende a ler, aprende a escrever, aprende a contar, aprende a falar.
Aprende. [...] Você, Nawal, quando você souber, volta e grava meu nome
sobre a pedra: “Nazira”. Grava meu nome pois eu cumpri as minhas
promessas. (MOUAWAD, 2013, p.48)

Cunhar o nome na pedra do túmulo – eis o espírito dessa jornada. Para tal
gesto, faz-se necessário ultrapassar o mero saber acerca da origem. Trata-se, na
acepção agambeniana de gesto, de sustentar a historicidade desse saber de modo a
inscrever uma assinatura no mundo.
Quando o presente se afirma como lugar intensivo de signos em seus jogos
de afecções e seus demônios indiscerníveis, rompe-se a temporalidade linear que, ao
sitiar a vida em polos, redunda num esforço pueril de recognição de origens e fins.
Resistindo contra essa vontade sôfrega de esclarecimentos perante o viver, o espírito
nietzschiano em Deleuze relembra: “é a vida que justifica, ela não precisa ser
justificada”.
Essa também poderia ser a epígrafe de Incêndios, uma vez que já não basta o
trabalho de esclarecimento ou de conhecimento de uma verdade, mas a estilística de
um o gesto capaz de sustentar a vida mesma, naquilo que ela forja.
Assim, a insistência de Mouawad (2013, p. 130) no mantra “a infância é uma
faca enfiada no pescoço” é uma marcação rítmica que emula o gesto de Nawal,
incitando-a a corromper uma historicidade crivada por lugares estruturais
previamente demarcados numa sequência temporal.
Num giro ousado, infância e morte emergem num só engendramento e
retornam num tempo circular, violentando assim a ambiência de nosso pensamento
contemporâneo, e por isso mesmo, nos movendo em outra direção, incognoscível,
indiscernível. A verdade da infância, antes signo da origem – considerando a
placidez de um mundo ordenado pela recognição – passa a valer, agora, tão somente,

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uma infância, um silêncio, um aprendizado do gesto

como uma das contingências possíveis, uma verdade qualquer. Eis o desafio desse
deslocamento radical, o qual arranca sua força da afirmação do trágico.
Recusando a oferta fácil de mera revelação de um saber, Nawal é
materialidade do gesto mesmo de uma convocação cartográfica ao viver. Desloca o
problema da verdade da origem para abrir passagem a outro raio de interpelação,
disparado por um chamamento ético-político: como sustentar a vida, no inominável
de sua força manifesta, a despeito de uma genealogia do ódio e seus efeitos?
Ainda que a agonística dos traçados genealógicos não ofereça trégua ao
pensamento ou ao viver, urge forjar uma política outra de atenção capaz de fazer
proliferar uma expansão de signos, em sua planície rizomática. Se “o rizoma é uma
antigenealogia”, como afirmam Deleuze e Guattari (1995, p.32), uma interpelação
cartográfica aciona, aqui, um instrumento de guerra para enfrentar o contínuo
movimento do mundo, com suas temporalidades lineares e suas formas de vida
indolentes.
Nesse sentido, o mantra que insiste nessa injunção entre infância e morte faz
lembrar da permanente dança de circularidade que nos constitui. Tal movimento
liberta a infância de uma localidade estrutural, como marcação de um começo.
Infância torna-se ubiquidade, onipresença, condição que nos possibilita experienciá-
la não mais como um tempo de origem, mas como um tempo qualquer. Movente, a
origem estaria em qualquer tempo, em toda parte. No eterno retorno desse tempo
qualquer, insurreto a quaisquer teleologias, saltam as tais potências demoníacas, em
trabalho de experimentação.
“Ir em direção à infância do mundo” – conclama Deleuze (2016, p.31).
Parece-nos que esse clamor busca acionar a força de um tempo no interior do tempo
que poderia, em sua intensidade, re-presentificar a vida. Arredia a toda
substancialização, infância, essa força pervasiva, ativaria a própria atualização do
presente, abrindo-lhe o espectro de multiplicidades (im)possíveis.
Essa incursão à infância do mundo implica adentrar a indiscernibilidade
desse tempo qualquer, suspender as bússolas dos deuses, contagiar-se pelo furor dos
demônios.

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Dessa infância qualquer Nazira-Nawal-Jeanne, que eternamente retorna em


nós, um aprendizado: fazer do gesto de atenção, uma política; fazer da investida
cartográfica do viver, uma ética.
Se, como afirma Agamben (2008, p.14), “a política é a esfera dos puros
meios, isto é, da absoluta e integral gestualidade dos homens”, parece ser este o gesto
testamentário legado ao contemporâneo: a construção da dignidade necessária à
assinatura do mundo. E assinar o mundo não é gesto autoral: é a potência mesma da
vida quem assina em nós.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o gesto. Artefilosofia, Ouro Preto, n. 4, p. 9-14, jan.
2008.
CRARY, Jonathan. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna.
São Paulo: Cosac Naify, 2013.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.
________. Diferença e repetição. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
________. Mesa redonda sobre Proust. In: ______. Dos regímenes de locos: textos y
entrevistas. Valencia: Pre-textos, 2007. p. 51-70.
________. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
________. O abecedário de Gilles Deleuze. Disponível em:
http://stoa.usp.br/prodsubjeduc/files/262/1015/Abecedario+G.+Deleuze.pdf.
Acesso em: 06 jun. 2016.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
________. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia - volume 1. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1995.
GALARD, Jean. A beleza do gesto: uma estética das condutas. São Paulo: EDUSP, 1997.
MOUAWAD, Wajdi. Incêndios. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013.

Recebido em: 15.05.2016


Aceito em: 20.06.2016

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doi: 10.12957/childphilo.2016.23345

FOUCAULT E AS INFÂNCIAS INCENDIÁRIAS: EXPERIÊNCIAS DE OUTRAS VERDADES E DE


OUTRAS HETEROTOPIAS

Alexandre Filordi de Carvalho1


I
Universidade Federal de São Paulo/FAPESP, Brasil

Resumo
Considerando Incêndios (MOUAWAD, 2013) como um fazer ficcional no sentido proposto por
Foucault (1994) para o fazer história, o texto tem por objetivo geral investigar como um
conjunto de experiências heterotópicas pode suscitar um conjunto de problematizações acerca
das filiações histórica das infâncias com as verdades. Para tanto, o texto percorre dois
momentos. No primeiro, investiga a problemática questão do nascimento das verdades
(NIETZSCHE, 2001; FOUCAULT, 2006), visando provocar uma interferência nos vínculos com
as verdades, a partir de outras experiências, para se pensar a infância numa dimensão plural,
eivada de e por outras histórias. A seguir, o texto foca no aspecto de uma construção nocional
das infâncias como heterotopias (FOUCAULT, 2009), destacando alguns alcances e algumas
consequências desta abordagem para as experiências das infâncias contemporâneas. Destacam-
se, neste sentido, o direito à infância, a singularidade dos mundos das infâncias e a dimensão
micro revolucionária de cada infância como campos problematizadores na elaboração de um
duplo exercício. De um lado, trata-se de mostrar como a temática da infância se atualiza como
problematização política e, de outro lado, como é urgente a produção de outras políticas para as
infâncias. Ao cabo, o texto propõe nomear de infâncias incendiárias aquelas capazes de se
realizarem com outras verdades e outras histórias, isto é, com suas próprias heterotopias,
fazendo desta questão algo contemporâneo.

Palavras-chave: infâncias; verdades; heterotopias; infâncias heterotópicas; Foucault.

Foucault and incendiary childhoods: experiences of other truths and other


heterotopias

Abstract
This paper considers the play Incendies (MOUAWAD, 2013) as a fictional “making" in the sense
proposed by Foucault (1994) of writing history. It aims to investigate how a set of heterotopic
experiences can give rise a corresponding set of problematizations concerning the historical
connections of childhoods with truths. For this purpose, the paper describes two moments. The
first investigates the problematic issue of the birth of truth (NIETZSCHE, 2001; FOUCAULT,
2006), with the aim of awakening some interventions at the truth's bonds by other experiences,
to think childhood in a plural dimension, covered by and other histories. In the second moment,
the paper focuses on the question of a notional construction of childhoods as heterotopias
(FOUCAULT, 2009), highlighting some achievements and some consequences of this approach
for the experiences of the contemporary childhoods. We highlight in this regard the right to
childhood, the singularity of the worlds of childhood, and the micro-revolutionary dimension
of each childhood as a field of problematization, and thereby 1) show how the theme of
childhood is a political one and, 2) recognize the urgent need to produce alternative policies

1 E-mail: afilordi@gmail.com

childhood & philosophy, rio de janeiro, v. 12, n. 23, jan.-abr. 2016, pp. 65-86 issn 2525-5061 65
foucault e as infâncias incendiárias: experiências de outras verdades e de outras heterotopias

that address the multiplicity of childhoods. Finally, this paper proposes the term "incendiary”
for those childhoods that live and work with other truths and other histories—that is, with their
own heterotopias.

Key words: childhoods; truths; heterotopias; heterotopical childhoods; Foucault.

Foucault y las infancias incendiarias: experiencias de otras verdades y de


otras heterotopias

Resumo
Teniendo en cuenta Incendios (MOUAWAD, 2013) como un hacer ficcional en el sentido
propuesto por Foucault (1994) para hacer historia, el texto tiene el objetivo de investigar cómo
un conjunto de experiencias heterotópicas puede plantear un conjunto de problematizaciones
sobre afiliaciones historicas de la infancia con las verdades. Por lo tanto, el texto pasa por dos
etapas. En la primera, investiga la problemática del nacimiento de la verdad (NIETZSCHE,
2001; FOUCAULT, 2006), con el objetivo de provocar interferencias en los vínculos con las
verdades de otras experiencias, para pensar acerca de la infancia en una dimensión plural, y
plagado de otras historias. En segundo lugar, el texto se centra en el aspecto de una
construcción teórica de la infancia como heterotopía (FOUCAULT, 2009), destacando algunos
logros y algunas consecuencias de este enfoque para las experiencias de las infancias
contemporáneas. Se destacan en este sentido, el derecho a la infancia, la singularidad de los
mundos de la infancia y la dimensión micro revolucionaria de cada infância como campos
problematizadores para se realizar dos ejercicios. Por un lado, se trata de mostrar cómo el tema
de la infancia se actualiza en una dimensión política y, por otro lado, cómo es urgente una
producción de otras políticas para las infancias.. Para terminar, el texto propone llamar
infancias incendiarias a aquellas que se pueden realizar con otras verdades y otras historias, es
decir, con sus propias heterotopias, haciendo de este tema algo contemporáneo.

Palabras clave: infancias; verdades; heterotopías; infancias heterotópicas; Foucault.

66 childhood & philosophy, rio de janeiro, v. 12, n. 23, jan.-abr. 2016, pp. 65-86 issn 2525-5061
alexandre filordi de carvalho

FOUCAULT E AS INFÂNCIAS INCENDIÁRIAS: EXPERIÊNCIAS DE OUTRAS VERDADES E


DE OUTRAS HETEROTOPIAS

Introduzir o que não tem começo?


O silêncio é para todos diante da verdade
Mouawad (2013, p. 126)

Nawal, Wahab, Nihad, Abu Tarek, Jeanne, Simon, Chamseddine, Kfar


Rayat, poderiam ser atribuições semelhantes àquela profusão de seres inclassificáveis
armados numa certa “extravagância de encontros insólitos”, como destacava
Foucault (1999), acerca da enciclopédia chinesa de Borges, em As palavras e as coisas.
Longe disso, contudo. Tais nomes são experiências de heterotopias porque, antes de
mais nada, solapam toda possibilidade de compreensão imediata entre enunciado e
efeito enunciador, impossíveis de serem localizados em um espaço que os margeia
por um jogo referencial reconhecido.
Essas heterotopias, no entanto, trazem na singularidade de seus nomes, de
suas feições, na coextensão de como se relacionam com os acontecimentos e entre si
mesmos, a corrente subterrânea de fluxos de verdades quase sempre despercebidas
pelos feixes de visibilidade encontrados apenas nos escaninhos dos arquivos
constantemente revisitados. Mas nem por isso estamos fadados a seguir no mesmo
sentido de como as verdades são contadas e dadas a conhecer.
Este texto surge com o propósito de considerar a obra de Wouawad (2013),
Incêndios, como uma experiência heterotópica capaz de ensejar um conjunto de
problematizações acerca de nossas filiações com o nascimento das verdades. Para
tanto, elegemos a infância como objeto de análise coextensiva aos próprios
questionamentos acerca do nascimento de certa infância com as verdades tramadas
na obra. As personagens de Wouawad, bem como os seus lugares, nesta dimensão,
são considerados não no âmbito da ficção alusiva à criação fantasiosa do autor, mas
como condição ficcional do fazer histórico proposto por Foucault (1994). O mais
consequente, digamos, neste procedimento, é o fato de como podemos extrair e fazer

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foucault e as infâncias incendiárias: experiências de outras verdades e de outras heterotopias

circular da produção ficcional a inquietação acerca do que nos destina a crer como
ordem inevitável suscitada das verdades que intentam amarrar o sentido de nossas
origens, congelando a múltipla possibilidade de nossas experiências numa
representação, aí sim, que não passa de uma ficção de mal gosto.
Para tanto, o texto percorre dois momentos. No primeiro, investiga a
problemática questão do nascimento das verdades (NIETZSCHE, 2001; FOUCAULT,
2006), visando mostrar a derivação possível, a partir da consideração da verdade por
outras experiências, por outro vínculo fundamental com a verdade, para pensarmos
a infância numa dimensão plural, eivada de e por outras histórias. A seguir, o texto
foca no aspecto de uma construção nocional das infâncias como heterotopias
(FOUCAULT, 2009), destacando alguns alcances e algumas consequências desta
abordagem para as experiências das infâncias contemporâneas.
Mas que não haja engano, Nawal, Wahab, Nihad, Abu Tarek, Jeanne, Simon,
Chamseddine, Kfar Rayat, como veremos, não são desculpas para mais um exercício
teórico publicável. São ressonâncias concretas de uma série de histórias: histórias de
homens, de mulheres e de crianças sem aparências, mas cujas verdades, assim como
nossos olhos, não têm fundura. E se, ao cabo de tudo, nada nos comover e nada nos
mobilizar na direção contrária dos gestos reclusos às mesmas verdades, em favor de
um urgente comprometimento com outras infâncias, teremos passado ao largo do
fato de que “o menor gesto tem uma história” (DELIGNY, 2008, p. 11), e de que a
menor fagulha é capaz de fazer os maiores Incêndios.

Incêndios e o nascimento da verdade em torno de várias infâncias: outras histórias

Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos


Nietzsche (2001, p. 7)

Amarga, amarga é a verdade que deve ser dita


Mouawad (2013, p. 104)

Foi preciso empreender muita torção nos encadeamentos das convicções a


respeito dos processos pelos quais chegamos até aqui para compreender que a nossa

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alexandre filordi de carvalho

história nunca conheceu um único acontecimento capaz de datar a sua origem.


Somos, assim, conspurcados. Devemos principalmente a Nietzsche (2001) a
descoberta, ao mesmo tempo inconveniente e desconfortável, acerca dos enganos
com os valores que o homem ocidental ajuizou para anunciar a sua vontade de
principiar origem à sua própria história, ao seu pensamento e às coisas. Em pleno sol
do meio-dia na história da razão, vimos eclipsar as nossas certezas ao saber que a
invenção histórica (Erfindung) crível acerca de nossas origens repousava na
falsificação de valores inventados, na mesma proporção, para nos fazer crer nas
avaliações atribuídas a todo tipo de origem. Mas ao se desfazer do próprio valor
desses valores, Nietzsche colocou em questão a forma e o procedimento com os quais
as convicções e as verdades pudessem assentir no fazer de nossa história. Sob o
silêncio conivente de nossas certezas, tratava-se de indagar por que ignoramos um
outro tipo de “conhecimento das condições e das circunstâncias nas quais nasceram,
sob as quais se desenvolveram e se modificaram um conhecimento tal como até hoje
nunca existiu e nem foi desejado” (NIETZSCHE, 2001, p. 12).
Ainda que o nosso conhecimento tenha operado desta maneira, a latência da
verdade circunscrita às miríades dos acontecimentos julgados por inexistentes ou até
mesmo indesejados não deixou de emergir e de propagar com outro sentido nos
contornos de nossa própria história. Para tanto, foi necessário que “esses
pesquisadores e microcopistas da alma”, na bela alusão de Nietzsche (2001, p. 18), se
implicassem na produção de uma Erfindung, a respeito de nossas verdades originais.
O vasto trabalho de Foucault é uma das rubricas inequívocas empenhadas em
mostrar o lado avesso da história de como chegamos até aqui, pagando o preço que
pagamos por chegar até aqui e com quais consequências.
Tal como Nietzsche, seria preciso deixar de ignorar o que passa
despercebido na soma ínfima das frações de nossas experiências. Desta maneira,
enganar-se-iam aqueles que tomassem apenas a suposta condição real dos fatos por
circunstâncias cabais, provas monumentais da verdade e incontornável da história.
Com a crítica dos valores históricos, Foucault atualiza o esforço nietzschiano para
nos fazer ver a emersão de outras condições materiais, por sua vez, menores,

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foucault e as infâncias incendiárias: experiências de outras verdades e de outras heterotopias

marginais, impensadas, esquecidas, reduzidas ao infame, cotejadas por uma


operação de livramento da desqualificação de tudo o que sujeitava a capacidade de
um acontecimento se anunciar como outro tipo de verdade. Por isso mesmo, o que
importa, desde Foucault, é a consistência de uma experiência e não a consolidação de
sua materialidade à lógica de uma verdade positivista.
A difícil relação que temos com qualquer verdade fez com que Foucault
(1994) chegasse ao limite de afirmar ser o seu trabalho um tipo de ficção histórica.
Neste caso, não se trata de tomar a ficção por mentira ou não veracidade. Mas o seu
trabalho é uma ficção justamente porque engendrou na história as consequências
ulteriores da fortuna crítica de Nietzsche. Com efeito, alterando-se as condições pelas
quais acessamos o que é considerado por verdadeiro e universal, como pressupostos
de verdade de nossas experiências históricas, alterar-se-ia também os condicionantes
e as maneiras com os quais podemos nos inventar. O que conta, daí, é toda e
qualquer experiência, uma vez que “uma experiência é qualquer coisa da qual se sai,
a si mesmo, transformado” (FOUCAULT, 1994, p. 41). E são as experiências
inventadas na história, e nela mesma esquecidas, e são as experiências que precisam
ser inventadas e anunciadas na história para que não sejam esquecidas, o exercício
ficcional porque inventivo. Por ser assim, a ficção é capaz de produzir a experiência
com o inimaginável, com tudo o que é potente o suficiente para transformar quem de
tais experiências se acerca e é perpassado. Não sem sentido, para Foucault (1994, p.
45), “uma experiência é sempre uma ficção; é algo que se fabrica para si mesmo, que
não existe antes e que existirá apenas depois”.
Sob tal horizonte, Incêndios (MOUAWAD, 2013) deixa de ocupar o lugar da
mera ficção e entra no âmbito da experiência. A teia de seu drama participa de uma
série entrecruzada de acontecimentos que, a despeito do desfecho final, não consola
ninguém, pois causa uma abertura de expectativas e de perquirições sob o choque da
experiência com uma verdade que faz qualquer um indagar: e agora? Incêndios não
pode ser lido, mas apenas experimentado. O que sucede com quem o experimente
em seguida, tal como o ocorreu com Prometeu abandonado à própria sorte pelos
deuses após roubar o fogo sagrado, é a descoberta de que não se entra e nem se sai

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alexandre filordi de carvalho

impunimente de uma experiência qualquer. E isto já é o suficiente para sabe o que é


estar “na” história.
Uma mulher Nawal, concebe com Wahab um filho. Este lhe é tirado, em
nome da respeitosa tradição familiar de seu povoado, e lançado obscuramente à sorte
do destino da adoção. Anos depois, e sem nunca mais reencontrar Wahab, que saíra
fugido de seu povoado, Nawal parte em busca do filho perdido. Lança-se a uma
jornada infinda. Vagando entre um território e outro, investigando como pode, acaba
se deparando com a experiência-limite de uma guerra civil. Trama a morte de um
chefe miliciano e a executa. Como consequência, é detida na prisão de Kfar Rayat. Ali
é violentada incessantemente por Abu Tarik, o seu carrasco. Ali ela dá à luz aos
gêmeos Jeanne e Simon, fruto de sua violação. Ambos são tirados dela para serem
afogados. Mas o encarregado desta tarefa não tem a coragem de fazê-lo e os entrega
para Malak, que cria os gêmeos. Tempos depois, Malak reencontra Nawal e restitui a
ela os seus filhos, os gêmeos. Ao morrer, Nawal deixa aos seus filhos, Jeanne e
Simon, pela força testamentária, a missão de encontrar o seu irmão perdido e, para o
maior espanto deles, um pai que não conheciam.
Desta maneira, toda a história entra em uma cartografia aberta e movediça,
repleta de acontecimentos surpreendentes e inesperados. É sobre o destino da
verdade que a experiência das personagens se chocam, sendo esmagados por
descontinuidades abruptas. Pouco a pouco, tal como na ilusão do ponto de
nascimento do arco-íris, o que se tomava por verdade se desmancha, cedendo lugar
para a aposta em uma nova e outra procura. É assim que descobrimos que o filho
perdido de Nawal e Wahab foi batizado de Nihad Harmanni; que mais tarde haveria
de mudar o seu próprio nome para Abu Tarek, fazendo jus à mudança de sua
identidade: tornara-se um militante assassino e violento; que Abu Tarek, sendo o
filho de Nawal, era o carrasco da prisão na qual estuprara a sua mãe, sem que ambos
soubessem de seus laços. Por sua vez, os filhos gêmeos de Nawal, Jeanne e Simon,
são frutos do estupro por parte de Abu Tarik. Portanto, Abu Tarek é, ao mesmo
tempo, o irmão perdido e o pai desconhecido de Jeanne e Simon.

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foucault e as infâncias incendiárias: experiências de outras verdades e de outras heterotopias

Espantoso seria se supuséssemos encontrar na descrição acima da trama, ou


mais precisamente, da tragédia, elementos suficientes para dar conta do acesso às
verdades da história. Dentro da ficção há outras ficções, todas derivadas da
defasagem intransponível de quem anuncia, dentro de uma história, a sua versão da
história. O que haveria de preciso aí? O que escaparia aos acontecimentos narrados?
O que seria esquecido, deixado sob os escombros das opções discursivas para pôr em
evidência a face luminosa dos acontecimentos? E não estaria em tudo isso uma ficção
projetiva e inventiva do que se pretende anunciar? Mas e o que deixou de ser
anunciado, não existiria? Malak, o camponês que criou os gêmeos haveria de dizer à
Jeanne: “no jogo de perguntas e respostas a gente chega facilmente ao nascimento
das coisas, e eis que chegamos ao segredo do teu próprio nascimento” (MOUAWAD,
2013, p. 102).
Condicionado ao jogo de perguntas, o nascimento das coisas não revela as
coisas em si. No final, é de um jogo de verdade que se trata, isto é, da visibilidade
intentada a partir daquilo que se pretendeu acessar. Por isso mesmo, para Foucault,
durante muito tempo, perguntas essenciais para revelar o nascimento de nossas
experiências históricas não eram consideradas interessantes de serem feitas. Mas ao
engendrá-las, começou-se a produzir um tipo de arquivo antes ignorado, arquivo
responsável por liberar não apenas a emersão outra do nascimento das coisas, mas
também das palavras, das instituições, de uma série de práticas, de nós mesmos. Ao
cabo, estaria em jogo o nascimento de nossos próprios valores ao redor de nossas
próprias verdades. O que importa na indagação pela verdade não seria, assim, a
força capaz de revolver o fundo sobre o qual se assentaram e se apaziguaram
miríades de acontecimentos capazes de revelar a nossa filiação com a história de
outra verdade? Quem seria nosso irmão, quem seria o nosso pai nessa tragédia?
“Onde começa a verdade de vocês?” (MOUAWAD, 2013, p. 131), indagava Nawal à
Jeanne.
Onde começaria a nossa verdade, a minha e a sua? Onde começaria o peso
de todos os pesos, a valoração de todos os valores, a enunciação entre todas as

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alexandre filordi de carvalho

possibilidades de enunciação da verdade? Era preciso levar a sério o fazer ficcional,


criativo, dramático, trágico acerca de nossas origens. Era preciso

Mostrar que a demonstração científica no fundo nada mais é que um


ritual, mostrar que o sujeito supostamente universal do conhecimento na
realidade nada mais é que um indivíduo historicamente qualificado de
acordo com certo número de modalidades, mostrar que a descoberta da
verdade é na realidade certa modalidade de produção de verdade, trazer
assim a demonstração para o embasamento dos rituais, o embasamento
das qualificações do indivíduo cognoscente, para o sistema da verdade-
acontecimento – é isso que chamarei de arqueologia do saber
(FOUCAULT, 2006, p. 305-306).

Mas isso tudo não era suficiente. Não dava conta das reviravoltas de uma
história. Há também história na carne viva daquilo que foge à prova da
demonstração científica. A produção de verdade também é rara, como rara é a
história de Nawal, Jeanne, Simon, Abu Tarek; como é rara a história dos homens
infames, como enfatizava Foucault, quer dizer, a de cada um de nós. A raridade está
para a verdade por sabermos ser ela diluída e infiltrada em todo conjunto de
experiência dos indivíduos históricos. Em jogo, encontrar-se-ia uma “rarefação que,
justamente, já não incide sobre o aparecimento, a produção da verdade, e sim sobre
os que são capazes de descobri-la” (FOUCAULT, 2006, p. 316), tal como Jeanne e
Simon foram capazes de fazê-lo. Para tanto, tiveram de confrontar a verdade
parasitada em suas próprias convicções e certezas; tiveram de dissolver a verdade-
conhecimento, aquilo que insistiam em demonstrar por uma lógica de autoengano,
até os fundamentos da origem que não passava de uma certeza equivocada. Por
conseguinte, Jeanne e Simon acabaram fazendo também a genealogia de suas
próprias vidas. Em todo caso, Jeanne e Simon são testemunhas das implicações para
a singularidade de suas experiências quando se trata de

Mostrar como ela [a verdade-conhecimento] colonizou, parasitou a


verdade-acontecimento, como acabou exercendo sobre esta uma relação
de poder que talvez seja irreversível, em todo caso que é por ora um
poder dominante e tirânico; como essa tecnologia da verdade
demonstrativa efetivamente colonizou e agora exerce uma relação de
poder sobre essa verdade cuja tecnologia está ligada ao conhecimento, à
estratégia, à caça. É isso que poderíamos chamar de genealogia do
conhecimento, reverso histórico indispensável da arqueologia do saber
[...] (FOUCAULT, 2006, p. 306).

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foucault e as infâncias incendiárias: experiências de outras verdades e de outras heterotopias

Quem qualifica a verdade? Como e sob que preço? Quem pode descobrir a
verdade? Como e sob que preço? Na passagem da aula de 23 de janeiro de 1974 de O
poder psiquiátrico, em que Foucault (2006) faz o que ele chamou de breve história da
verdade em geral, a insuficiência e os limites das verdades eivadas das práticas
científicas em geral são destacados. Contudo, ocidentais que somos, acabamos por
acreditar apenas no poderio das demonstrações lógico-científicas, capazes de
franquear um nível de constatação em direito universal da verdade coincidente com
a modalidade da prática científica. Era assim que Jeanne, por ser matemática,
buscava provar em suas experiências com a verdade um encadeamento irrefutável
dos fatos. Para ela, a visibilidade da realidade era apenas compatível com o lugar em
que cada um pudesse ser capaz de ocupar em um polígono ao qual pertence.
Foucault insistia no fato de termos de enxergar a insuficiência das provas de
verdades demonstrativas pela força do acontecimento, de tudo aquilo que é capaz de
produzir descontinuidades, de ser disperso, desqualificado e imprevisível. No final, a
verdade toca é a carne de cada um e não vem apenas pelo jogo astuto do
conhecimento lógico-racional. Jeanne dá prova disto: “Hoje, aprendi que é possível
que do ponto de vista que ocupo, eu possa ver também meu pai; aprendi também
que existe um outro membro desse polígono, um outro irmão. O grafo de
visibilidade que sempre tracei está errado. Qual é o meu lugar no polígono?”
(MOUAWAD, 2013, p. 38).
O que Jeanne experimenta é a verdade-raio. Foucault utiliza esta expressão
para fazer a contraposição ao que ele denominou de verdade-céu. A verdade-céu é
da ordem universal, demonstrável, científica, lógica. A verdade-céu açambarca “a
série de verdade descoberta [cientificamente], constante, constituída, demonstrada”
(FOUCAULT, 2006, p. 304). Mas o raio corta, invasivamente, o céu. Apesar de sua
brevidade, ele é potente, capaz de cindir, de traçar rompimentos, e até de incendiar.
Nele, a verdade é sempre um risco e uma ameaça, pois é uma relação de força que se
revela. A verdade-raio diz respeito a uma outra série de experiências na história
ocidental da verdade:

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alexandre filordi de carvalho

(s)érie da verdade que não é da ordem do que é, mas que é da ordem do


que acontece, uma verdade portanto não dada na forma da descoberta,
mas na forma do acontecimento, uma verdade que não é constatada mas
é suscitada, perseguida, muito mais produção do que apofântica, uma
verdade que não se dá pela mediação de instrumentos, mas que se
provoca por rituais, que se capta por artimanhas, que se apreende de
acordo com as ocasiões (FOUCAULT, 2006, p. 304).

Ora, se o céu é apenas um, os raios sempre serão incontáveis debaixo do


mesmo céu. Em outros termos, em Incêndios (MOUAWAD, 2013) tem-se lugar a
verdade-acontecimento, indiciando em cada experiência de suas personagens uma
ruptura com a impossível conciliação da convicção presente e da incerteza vindoura.
Esta descoberta é de outra ordem: demanda a perseguição, o de chofre, a artimanha
na penetração do meandro da história esquecida e ignorada; implica o pressuposto
de que as coisas não estão dadas e não serão dadas, e que é preciso lutar por elas,
lutar pela verdade, pela origem do que não se sabe: “Por que não ter contado a
vocês?”, menciona Nawal em carta para Jeanne, porque “há verdades que só podem
ser reveladas se forem descobertas” (MOUAWAD, 2013, p. 132).
Mas nem tudo se revela, nem tudo se descobre, e a verdade sempre possuirá
a sua latência inalcançável, a origem sempre derradeira debaixo de outra ainda e
ainda outra. Na história-ficção e na ficção-história, ainda que supuséssemos algum
desfecho, é inimaginável conceber o acabamento final para o que os acontecimentos
pudessem abrigar. A produção apofântica da verdade-raio, como destacou acima
Foucault (2006), não cessa de manifestar os aguilhões do seu fulminante
descontentamento: ainda haverá um outro fato, latejará um outro acontecimento,
deparar-se-á com mais um arquivo; e também terá o que não se sabe, e, entre raios e
trovoadas, o não-dito da verdade causando tormento na ordem do mesmo – e “o céu
cai”, dizia Chamseddine a Simon, ao revelar a este que seu irmão era também o seu
pai (MOUAWAD, 2013, p. 124).
O céu que cai sob Simon e Jeanne diz do lugar das incertezas acerca da
origem de suas próprias histórias. De modo mais específico, indica as plausíveis
reviravoltas de suas filiações com as suas verdades fincadas no mais distante chão de
suas infâncias. De onde se encontram, Simon e Jeanne, ao se depararem com outras
verdades a respeito de suas vidas, deparam-se também com a dimensão irrefutável

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foucault e as infâncias incendiárias: experiências de outras verdades e de outras heterotopias

de que não conhecem a si mesmos e de que as verdades de suas histórias não


passavam de invenções para fazer encaixar origem e destino. E com relação a tal
aspecto, nenhum conhecimento seria o suficiente para resgatar o que não pôde se
consagrar como acontecimento. Doravante, alterando a origem de suas experiências
com a verdade, por efeito, eles poderão alterar a disposição de suas experiências para
as quais, anteriormente, estavam destinados.
Em Incêndios (MOUAWAD, 2013) tudo está maculado desde a infância. As
experiências que Jeanne e Simon puderem saber ter quando crianças não foram as
que, de verdade, eles tiveram. Filhos de um pai que é também irmão, os gêmeos
tiveram uma primeira criação, uma primeira experiência com a infância, longe das
pretensas certezas parentais as quais criam possuir. Mas o mesmo é válido para
Nihad, o irmão-pai, o filho tomado do primeiro amor de Nawal e de Wahab. Criança
perdida, transformada em soldado fiel a Chamseddine para, depois, deambular com
os seus atos de violência, matando crianças por esporte, tiro ao alvo, até se
especializar no requintado torturador e carrasco Abu Tarek. Mas Nawal e Wahab
também tiveram as condições locais de suas infâncias. O que sabemos delas? Ainda
que alguma coisa, isto nada seria. A vila pobre, a vida analfabeta, os amores
proibidos, a origem da vida marcada pelas guerras, pelas migrações, pelos
refugiados. A infância provada por cada uma dessas personagens não sorve em
nossas bocas com o mesmo amargor e a mesma doçura que apenas eles, e tão
somente eles, puderam experimentar.
No entrecruzamento dessas vidas há uma sucessão de cortes que fogem do
domínio de cada uma delas. É o corte da verdade-raio sob a verdade-céu. Também é
a cisão efetiva das descontinuidades de histórias que fogem dos cálculos de qualquer
compreensão. Em cada nascimento de história uma origem diversa e singular de
verdade; em cada verdade-acontecimento uma infância latente cuja revisitação pelo
desfiar da história não apenas assinala a movediça base de como os acontecimentos
podem fundar distintamente as experiências de cada um. Wahab pressente o assalto
ao seu amor, à concepção de seu filho junto de Nawal: “Nawal, hoje à noite, a
infância é uma faca que estão enfiando no meu pescoço” (MOUAWAD, 2013, p. 45).

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O tempo é o hoje, a experiência está neste agora escapável que agita um processo do
qual ainda não se mede as consequências: a faca que estão enfiando no pescoço de
Wahab, presente contínuo, será a mesma faca para Nawal? Que infância é esta? Para
Wahab, que foge na mesma noite, a infância é derivada de todo processo em curso ao
qual se consagra porque é experiência única, sem comunhão, intransferível, única:
infância acontecimentalizada até a emersão de seus efeitos igualmente singulares,
mas que não sentirá e nem vivenciará como Nawal. Ela, suspensa no intervalo de
uma ação, tão única e sua, na mesma noite, faz do acontecimento em curso a certeza
vindoura. A infância, para Nawal, de repente, não é mais um presente contínuo, mas
um futuro do qual não se escapa: “a infância será uma faca que vou enfiar no meu
pescoço” (MOUAWAD, 2013, p. 46).
Não se trata de interpretar ou de buscar a verdade oculta, exercício
hermenêutico, no sentido da faca no pescoço. A infância definida assim conjuga uma
experiência da qual não podemos fazer parte, nem avaliar, o que demandaria
julgamento, muito menos mencionar que sabemos do que se trata, o velho “eu sei
disso”. Esta experiência única incendeia as regras da própria infância. O nascimento
da infância, sendo assim, deixa de ser uma experiência modelar de captura e de
definição subjetiva atinente ao que deve fazer uma criança ou o que se deve fazer
com uma criança em sua infância.
A esta altura, a verdade-raio é capaz de incendiar as expectativas
consoladoras em torno dos fatos e das mais longínquas idiossincrasias em torno da
infância. A tragédia de Wahab-Nawal-Nahin-Jeanne-Simon, por ora, denota o
nascimento da verdade em torno de várias infâncias e como, de história em história,
devemos perder por completo aquela postura pretensiosa, como bem nos alertara
Deligny (2008), de que conhecemos a Infância, com maiúscula inchada por
emanações de uma sociedade em decomposição.
A história com as suas múltiplas verdades, como vimos, também é uma
entrada e uma saída para outras histórias e outras experiências com as verdades. A
infância deveria ser pensada nesta direção, como experiência arredia aos
qualificadores que a destina aos mesmos padrões de toda ordem, capazes de

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foucault e as infâncias incendiárias: experiências de outras verdades e de outras heterotopias

estancar, em nome de modelos constituídos – família, instituições, sociedades,


consumo, semiótica – a potência criadora de suas outras verdades. E não seria, por
isso mesmo, a infância a experiência mais heterotópica capaz de incendiar toda a
história da verdade?

Incêndios e o mundo vário: as heterotopias das infâncias

Onde estaremos, você e eu, daqui a cinquenta anos?


Mouawad (2013, p. 41)

Não há uma infância. Existem muitas infâncias, pois as infâncias são


heterotopias. O encontro com o mundo, por parte de toda criança, já é uma
experiência múltipla de inserção no espaço-temporalidade jamais isenta de
neutralidade. “Não se vive em um espaço neutro”, argumentava Foucault (2009, p.
23), com o intuito de decompor a política espacial de nossa circulação. Apesar de
podermos habitar na mesma cidade, não vivemos na/a mesma cidade. O mesmo é
válido para a consistência de nossa história, pois não há história sem circulação de
indivíduos em seus espaços.
A heterotopia é uma estratégia invasiva na política do espaço e também na
política do tempo. Em toda heterotopia repousa uma heterocronia: não se vive a
mesma temporalidade nos mesmos espaços; não se vive a mesma espacialidade na
mesma temporalidade. O muro a segregar, a delimitar, a demarcar o bem privado,
também pode ser objeto de contenção, de encarceramento, de exclusão, de cisão, de
controle de fluxos de bens, de pessoas, de animais. Qualquer indivíduo de dentro do
muro pode ser alguém distante e inacessível para quem estiver de fora. O muro pode
se transformar, ainda sob a égide de cada um de suas funções, em arte, muro de
protesto, muro de mictório, muro amparado de bêbados, muro ponto de pedintes,
muro apoio de revista policial, muro recanto da trepadeira, muro das lamentações,
muro ideológico, e sucessivamente. Estaríamos assim diante de uma experiência de
contra-espaço. A heterotopia é um contra-espaço em um contra-tempo. O que ocorre
sob o influxo da heterotopia pode acabar sendo deslocado de uma função

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normalizadora, dando lugar ao imprevisível, mas também ao que não é desejado


pela lógica daquele mesmo espaço. Assim nasceriam as utopias, por exemplo. Mas
assim também nasceram os asilos, os manicômios, os quarteis, as escolas, os
hospitais: utopia de resgate e de cura, utopia de aperfeiçoamento humano num
quadriculado de muro que se reduplicava de desconstrução em desconstrução de
funções para forjar outras.
No caso da infância, Foucault argumentava ser ela lugar precípuo da
heterotopia pois as crianças têm a capacidade de assaltar a lógica das funções e
subvertê-las por completo e, por isso mesmo, transbordar nos limites estabelecidos
também uma hetero-utopia. Assim é que a criança depara com a sua infância:
Esses contra-espaços, essas utopias localizadas, as crianças conhecem
perfeitamente. É o fundo do jardim, claro está, o celeiro, ou melhor
ainda, a tenda dos índios armada no meio do celeiro, é também – na
quinta-feira à tarde – a cama dos pais. Sobre esta cama se descobre o
oceano, porque se pode ali nadar entre as cobertas; mas também é o céu,
uma vez que se pode pular no colchão; é a floresta, porque ali se
esconde; é a noite, já que é possível se tornar um fantasma entre os
lençóis; é o prazer, e enfim, na volta dos pais a punição (FOUCAULT,
2009, p. 24).

Mas há aí um ponto problemático que não deve ser ignorado. Os adultos


são cúmplices ou não na produção das heterotopias na infância. Igualmente, os
adultos podem ser potencializadores ou não dessas heterotopias, das experiências de
contra-espaços na infância. Guattari (1985), ao escrever sobre As creches e a iniciação,
mostra com muita clareza que os adultos tendem, de maneira muito precoce, a barrar
as polivocidades de expressão e de competências das crianças, forjando para elas um
tipo de infância modelar, repleta de iniciações de captura de suas espontaneidades e
de suas singularidades. A inserção em um conjunto de semióticas dominantes,
entendidas como formas de expressar e de fazer circular feixes de valores que
organizam e orientam os sentidos e as apetências das crianças, constituiria a primeira
barragem a uma experiência de infância heterotópica.
Ora, quando Jeanne e Simon, infligidos pela promessa de serem
confrontados com experiências absolutamente impensadas acerca do nascimento de
suas verdades, veem, pouco a pouco, avançarem-se em espaços outros, dantes
inexistentes para eles, deslocando-se dos limites de suas vidas, acabam refundando

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foucault e as infâncias incendiárias: experiências de outras verdades e de outras heterotopias

para si mesmos uma série de novas experiências que somente serão possíveis com o
encontro de suas heterotopias. Ao experimentarem, contudo, tal dimensão, deparam-
se, concomitantemente, com a refundação de suas próprias infâncias.
Em primeiro lugar porque a heterotopia indica distintas denotações de
mundo. A mesma praia pode ser o belo lugar de veraneio, bem como o sepulcro de
Aylan Kurdi, a criança síria de 3 anos encontrada morta na praia de Bodrun, Turquia,
como consequência da tentativa frustrada de sua família de encontrar guarida longe
dos conflitos armados na Síria. É assim que Jeanne e Simon passam a trafegar por um
mundo com “soma monstruosa de dor” (MOUAWAD, 2013, p. 89), antes sem
significado algum para eles. Por isso mesmo, em segundo lugar, a heterotopia pode
ser criada, assim como pode ser desaparecida. A prisão de Nawal, a mãe de Jeanne e
Simon, não existe mais, transformou-se em museu. Embora assim, eles encontram ali,
pelo fio da história, fio que passa a existir por uma verdade-raio, a prisão, o lugar da
tortura, o lugar onde foram gestados. Toda heterotopia, desta forma e em terceiro
lugar, supõe a possibilidade de que vários espaços sejam justapostos, ainda que
sejam incompatíveis. A prisão é lugar de nascimento de Jeanne e Simon; é também
cumplicidade de quem ensina Nawal a cantar para sobrepor-se à toda dor – Nawal,
tornando-se a mulher que canta; a prisão é pacto da promessa e secreta, em outra
modulação espacial, a tortura e o estupro: uma prisão não é apenas uma prisão. Não
é difícil de notar que a relação do tempo com o espaço tem a sua variação conforme a
intensidade do que é vivido e experimentado nos limites do próprio espaço.
Assim, finalmente, a heterotopia está ligada aos cortes singulares do tempo,
à sua heterocronia. Um minuto de dor que suspende Nawal sobre o abismo da
eternidade é um tempo que não passa. A busca pela outra verdade, por parte de
Jeanne e Simon, acaba lançando-os em um tempo que não se ganha, mas que se
escapa a cada segundo de espera, de busca, de expectativa; este tempo salta de
maneira distinta para Jeanne e Simon. Nawal a Simon: “Agora, é preciso reconstituir
a história. A história está em migalhas. Devagarinho. Consolar cada pedaço.
Devagarinho. Curar cada lembrança. Devagarinho. Ninar cada imagem”
(MOUAWAD, 2013, p. 130). Nawal à Jeanne: “Onde começa a história de vocês? No

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alexandre filordi de carvalho

nascimento de vocês? Então ela começa no horror. No nascimento do pai de vocês?


Então é uma grande história de amor” (MOUAWAD, 2013, p. 130-131).
Se há um começo para a infância, sob tal conjuntura, ele está no próprio
lugar que a heterotopia ocupa na infância. Sem heterotopia não pode haver infância.
Mas como é da heterotopia a multiplicidade e a dispersão da multiplicidade, o que
temos são heterotopias e com elas experiências de infâncias. Jeanne e Simon partiram
ao encontro de seus contra-espaços, de suas heterotopias, encontrando, assim, uma
nova urdidura de suas infâncias. Neste encontro, fizeram das serialidades de suas
verdades e de suas origens a dissolução das mesmas serialidades e das mesmas
origens, cedendo lugar para outras infâncias. Nawal soube indicar este momento de
ruptura a Simon: “a infância é uma faca enfiada no pescoço. E você soube retirá-la”
(MOUAWAD, 2013, p. 130).
Se a infância teria sido para Nawal e Nawab a faca enfiada no pescoço, faca
que não saiu, para Jeanne e Simon a experiência passou a ser de outra consistência a
partir do momento em que eles puderam romper com o silêncio que os destinava às
verdades conhecidas desde sempre. Paradoxalmente, mesmo adultos, Jeanne e
Simon passaram a ter direito à uma outra infância, à uma outra história, à uma
heterotopia acerca de si mesmos e de suas composições subjetivas, infância
pertencida a eles: infância com outros começos para outros fins. Talvez todo este
horizonte nos sirva de base para pensarmos três conjuntos de problematização ao
redor da infância.
Uma primeira questão diz respeito ao direito à infância. Isto extrapola
qualquer dimensão de afirmação política oficial, porque a sua melhor intenção, ainda
que necessária, não mitiga as recusas e as barreiras cotidianas interpostas à
heterotopia da infância. Todavia, a infância consubstanciada na heterotopia nos
convoca, sujeitos historicamente singulares e ligados a um espaço e a uma
temporalidade, a lutar pelas condições afirmativas de qualquer experiência que
proteja a infância para que os infantes não continuem com as facas que lhe são
colocadas nas gargantas. Quer dizer, o mundo dos adultos atravessa incessantemente
as condições da infância negando a meninos e a meninas o direito de romperem com

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foucault e as infâncias incendiárias: experiências de outras verdades e de outras heterotopias

as tragédias muitas vezes cruéis da adultícia. Deligny (2008, p. 242) reforçava a ideia
de que “as crianças não têm uma nítida consciência de seus lugares no mundo”.
Neste caso, não ter lugar no mundo é expressão de libertação dos sentidos impostos
às crianças: qualquer material pode ser um objeto de brinquedo, qualquer lugar pode
ser outro lugar, qualquer pessoa pode ser um afeto de outra ordem. A infância
deveria ser o contra-espaço onde, na bela expressão de Guimarães Rosa (2001, p. 50),
“as satisfações antes da consciência das necessidades” se efetivariam
incessantemente. E, talvez assim, o que menos a infância precisa é de consciência
para se realizar quando brinca, inventa, grita, pula, agita, bagunça, prova o mundo
sem as “facas no pescoço”, isto é, podendo respirar livremente as suas próprias
heterotopias e nelas sagrarem-se apenas infantes.
Por isso mesmo, aqueles que têm consciência de seus lugares no mundo não
devem privar a infância das oportunidades autênticas e genuínas de provarem o
mundo heterotopicamente. O direito político à infância, dito deste modo, é o mesmo
que permitir a infância ser um lugar de experiência das sensibilidades atípicas, do
experimentar o mundo pela contra-espacialidade, de poder romper com as tramas
das verdades que aprisionam as infâncias nos mesmos lugares, ou mais
perversamente, que as destinam a lugares e a experiências que jamais deveriam
existir.
Para tanto, é preciso denunciar, desmantelar e agir contra os jogos das
relações de forças que sonegam o direito às infâncias heterotópicas. Ainda são
milhares de Ítalos mortos pela polícia aos 10 anos de idade;2 milhares de crianças
marchando horas para chegar à escola, e também lutando para se manter no solo em
que a sua tradição os cultivou, mas que os interesses das grandes transnacionais
intentam ignorar;3 são incontáveis as crianças sem infância, intoxicadas no cultivo do
fumo no sul do Brasil;4 são incalculáveis as crianças refugiadas e massacradas;5 são

2http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/06/1778241-sem-lar-crianca-morta-em-

perseguicao-da-policia-ja-dormiu-ate-em-van.shtml
3http://www.lemonde.fr/planete/visuel/2016/05/23/sur-la-cote-sud-africaine-conflit-

sanglant-autour-d-un-projet-de-mine-de-titane_4924734_3244.html
4 http://www.mmcbrasil.com.br/site/node/199

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alexandre filordi de carvalho

muitas as infâncias ao sopé das escadarias das muitas Candelárias; e são tantos
Nihads tirados de seus pais, traficados visando as mais distintas finalidades e
explorações6, e o que dizer das Jeannes e dos Simons, filhos da guerra, da violência,
das aniquilações raciais, dos saldos religiosos extremistas?7 Onde há afirmação, é
preciso indagar: “Essa criança não é da tua conta [Não?]. Não é da conta da tua
família, não é da conta da tua mãe, não é da conta da tua vida [Não?]. Essa criança
não existe [Não?]” (MOUAWAD, 2013, p. 43).
Mas em segundo lugar, emerge uma problematização distinta. As diferentes
denotações do mundo da infância não apenas devem ser respeitadas, todavia,
precisam mais ainda serem estimuladas à inventividade e à busca fora da grade das
verdades estabelecidas. A infância que já foi capturada pelas metas de
performatividades e de eficiências, frutos dos anseios inflexionados aos pequenos
pelo mundo dos adultos, deve ser lançado fora, em nome das infâncias heterotópicas.
Trata-se de desfazermos dos significantes da infância e deixá-la “deslizar pelos
caminhos das multiplicidades reais” (GUATTARI, 1984, p. 142). Em outros termos,
há um risco de captura da infância quando a verdade infantil é dada antes do
experimento infantil com a infância, capaz de ser criada por toda criança como o seu
jogo próprio. Representa pensar que os termos das regras a respeito do que é a
infância são constantemente contestados por aqueles que vivem a infância.
Finalmente, se as infâncias são heterotopias, cada infância é uma experiência
micro revolucionária para a nossa relação com os espaços e as ordens de
temporalidades estabelecidas. Falta ao nosso mundo essas infâncias, assim como
faltaria infância em muitas crianças. Por isso mesmo, a singularidade da infância é
um desafio. Mas aqui é preciso entender desafio por outro viés: como aquilo que vai
contra toda fides, ou seja, contra toda fé, contra toda garantia ou aquilo em que se

5 Disponível em: <https://nacoesunidas.org/resposta-ao-fluxo-de-migrantes-e-refugiados-tem-

sido-inadequada-diz-ban/
6 Disponível em: <http://www.humanium.org/fr/focus/exploitation/trafic-enfants/
7Disponível em: <http://www.independent.co.uk/news/uk/home-news/government-
announces-new-laws-to-protect-children-following-investigation-by-the-independent-into-
a7065656.html; http://www.independent.co.uk/news/world/middle-east/isis-in-fallujah-
islamic-state-is-daesh-iraq-forces-close-in-children-drown-a7066551.html

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foucault e as infâncias incendiárias: experiências de outras verdades e de outras heterotopias

confia, como Fides, que na mitologia romana era a sagração da palavra empenhada.
As infâncias heterotópicas são verdades-raios capazes de produzir um disfidare, um
desfazer, nas vontades de verdades. E não repousaria aí, em toda esta conjuntura, o
gesto distante, mas jamais esquecido, e cada vez tão mais necessário, da busca pelo
nascimento de outras verdades em torno de várias infâncias? E saberemos tirar a faca
plantada no pescoço da infância?

Infâncias incendiárias: conclusão impossível

Parece a voz dos séculos antigos.


Mas não, Sarwane, é de hoje que data a minha voz.
Mouawad (2013, p. 124)

Agamben (2009) considera por contemporâneo a marca singular do tempo


histórico que, concomitantemente, permiti-nos ser coextensivos à sua especificidade
com a mesma possiblidade de nos afastar desta singularidade a nos imprimir uma
marca. Deste ponto de vista, as questões que intentamos analisar neste texto dizem
respeito a um conjunto de problematizações contemporâneas para o campo da
infância.
Ora, se tomamos o registro analítico a partir de Foucault com o intuito de
mostrar a dupla relação entre busca histórica do nascimento da verdade com a
própria fixação da verdade enquanto prática discursiva e não-discursiva em torno da
infância, acabamos por fazer emergir a sensível aposta na necessidade para
pensarmos o nascimento da infância por outras “origens”. Existem muitas histórias
acerca das infâncias que não são narradas, postas em evidência, consideradas e
barradas na própria possibilidade existencial de tais infâncias. Neste caso, muitas
infâncias passam a ser ignoradas, escondidas, varridas para debaixo do tapete da
visibilidade do mundo e apenas esquadrinhadas em algumas apostas e em lances de
captura de determinados espaços.
Com efeito, e contra tal história da verdade, foi imprescindível considerar a
infância como experiência vária modulada na sua condição inegociável de
multiplicidade: as infâncias são heterotopias. Sendo assim, não era à toa que Deligny
(2008, p. 1249; 1251) denunciava a mesquinhez de uma sociedade habituada a negar

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alexandre filordi de carvalho

espaços sociais às crianças “refratárias à domesticação simbólica”. Também não era


sem sentido que Guattari (1985) frisava o quão é urgente mitigar a função
generalizada dos componentes afetivos e comportamentais a codificar os destinos,
sobretudo a partir da infância. Tal codificação é tão forte na cultura ocidental que
Foucault (2001) haveria de conduzir ao paroxismo o argumento de que a infância,
numa série de ordens científicas normalizadoras, tal como na psiquiatria, na
neurologia, na psicopedagogia, tornou-se uma armadilha de pegar adulto, isto é, um
componente virtual determinante no pacto incontornável de nossos destinos: infância
como faca entalada na garganta?
Poderíamos denominar de infâncias incendiárias a todas as experiências
heterotópicas que, de dentro das infâncias, seriam capazes de consumir tais
conjuntos de ordem de verdade, a partir do momento em que elas também são, tal
como Foucault propôs acerca de seus trabalhos, uma ficção, isto é, uma outra
verdade capaz de fabricar o que ainda não existe, capaz de urdir um outro princípio
para outras finalidades. As infâncias incendiárias convergem entre ficção já realizada,
como as de Incêndios (MOUAWAD, 2013) e as de Foucault (1994) – e tantas outras – e
as que necessitam ainda de serem produzidas, para a disposição efetiva de contra-
espaços a fim de que as heterotopias das infâncias e as infâncias das heterotopias não
sejam uma promessa que não se cumpra.
Precisamente a este respeito, qualquer ação já é grande coisa; qualquer tensão na
fixação das verdades ao redor das infâncias condenadas às mesmas origens já é
tentativa de um começo de outras histórias. Jeanne e Simon assim nos atestam.
Talvez sejamos deles filhos-irmãos: eis uma ficção que ainda estamos a inventar. Mas
com a diferença de ela não ser apenas um lance de história que não nos pertence, mas
história real tramada com a mesma carne e nervura de outras infâncias reais.

Que a gente fica com nossos livros e nosso alfabeto para achar isso “tão”
lindo, achar isso “tão” belo, achar isso “tão” extraordinário e “tão”
interessante! “Lindo. Belo. Interessante. Extraordinário” são escarros no
rosto das vítimas. Palavras! Pra que servem as palavras, me diz, se hoje
não sei o que devo fazer! O que a gente faz? (MOUAWAD, 2013, p. 89)

Alguém ousaria dizer que não somos contemporâneos a tudo isso?

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foucault e as infâncias incendiárias: experiências de outras verdades e de outras heterotopias

***
Para a Alice, que ainda na infância
não encontrou o seu pai.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.
DELIGNY, Ferdinand. Oeuvres. Dijon: Pollen, 2008.
FOUCAULT, Michel. Entretien avec Michel Foucault. In. ______. Dits et Écrits IV.
Paris: Gallimard, 1994, p. 41-99.
________. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
________. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
________. O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
________. Les corps utopiques, les hétérotopies. Clemancy: Nouvelles Éditions Lignes,
2009.
GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas de desejo. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1985.
MOUAWAD, Wajdi. Incêndios. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
ROSA, João Guimarães. Primeiras histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

Recebido em: 15.05.2016


Aceito em: 13.06.2016

I
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP - Processos: 16/05440-7 e
15/09357-4.

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doi: 10.12957/childphilo.2016.23352

CENAS E TEMPOS DE UMA INFÂNCIA SEM FIM: O SENTIMENTO TRÁGICO EM INCÊNDIOS

Sandra Mara Corazza1


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Deniz Alcione Nicolay2
Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil

Resumo
O texto trata do universo crítico da peça Incêndios de Wadji Mouawad. Procura caracterizar as
ações da personagem central, Nawal, como ponto de partida (e de chegada) da narrativa.
Pontua os mecanismos de escrita e memória como disparadores do pensamento e da trama
entre os elementos da peça. Nesse sentido, se atém à compreensão conceitual da noção de
tempo, procurando localizar suas dimensões no drama. Encontra em Sófocles proximidade
filosófica e instrumental com os elementos utilizados na construção das cenas. Por isso,
paraleliza Incêndios com a obra clássica Filoctetes. A partir daí, sinaliza movimentos de criação
das temáticas que se sobressaem e se relacionam nas abordagens dos enredos, apesar da
distância temporal entre ambas. Procura ainda, lançar a temática da crítica social, apresentada
pelo autor, para além do núcleo estético e cenográfico, expandindo essa análise para questões
que envolvem problemas sócio demográficos contemporâneos. Por fim, tematiza a expressão
infâncias do presente relacionando-a a noção de Infância Sem Fim (CORAZZA, 2000),
problematizando o chamado dispositivo de infantilidade. Utiliza a compreensão conceitual de
tal dispositivo para efetuar considerações sobre dois momentos da infância que se apresentam
na peça. No primeiro momento, trata da origem do sentimento da personagem Nawal e, no
segundo momento, trata da expiação desse mesmo sentimento, efetuando, assim, a condição
trágica por excelência.

Palavras-chave: infância; tempo; condição trágica.

Scenes from an endless childhood: the tragic feeling in incêndios

Abstract
The present paper discusses the critical universe of the theatre play Incêndios, by Wadji
Mouawad, taking the actions of the main character, Nawal, as both the starting point and the
point of arrival of the narrative. It punctuates the writing and memory mechanisms as triggers
for thought and plot among the elements of the play. In this regard, it attains to a conceptual
comprehension of the notion of time, seeking out its dimensions in the course of the drama. It
encounters in Sophocles' Filoctetes a philosophical and instrumental proximity. For this reason,
Incêndios and the classical work are parallel. It also raises critic social themes over and above
the aesthetic and scenographic core, expanding the analysis to questions that involve
contemporaneous socio-demographic problems. Finally, it thematizes notions of childhood
through problematizing the “childishness” trope most clearly displayed in the work Endless
Childhood (CORAZZA, 2000). It uses a conceptual analysis of this device to make
considerations about two moments of childhood that are presented in the play. In a first
moment, it discusses the origins of Nawal’s feelings and, in a second, the atonement of she
performs in resolution of these feelings, in a quintessential evocation of the tragic condition.

Key words: childhood; time; tragic condition.

1 E-mail: sandracorazza@terra.com.br
2 E-mail: deniznicolay@yahoo.com.br

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cenas e tempos de uma infância sem fim: o sentimento trágico em incêndios

Escenas y tiempos de una infancia sin fin: el sentimiento trágico en Incendios

Resumen
El texto se refiere al universo crítico de Incendios de Wadji Mouawad. Busca caracterizar las
acciones del personaje central, Nawal, como punto de partida (y de llegada) de la narrativa.
Puntúa los mecanismos de escritura y de memoria como disparadores de pensamiento y
representación gráfica de los elementos de la pieza. En este sentido, se apega a la comprensión
conceptual del concepto de tiempo, tratando de localizar sus dimensiones en el drama.
Encuentra en Sófocles proximidad filosófica e instrumental con los elementos utilizados en la
construcción de las escenas. Por lo tanto, en paralelo con Incendios está la obra clásica Filoctetes.
A partir de ahí, se señala la creación temática de los movimientos que se interponen y se
relacionan en los enfoques de las tramas, a pesar de la distancia temporal entre ellos. Asimismo,
se pretende poner en marcha el tema de la crítica social, presentada por el autor, más allá del
núcleo estético y escenográfico, ampliando este análisis a cuestiones relacionadas con
problemas socio-demográficos contemporáneos. Por último, estudia la expresión “infancias del
presente” relacionándola con la noción de Infancia sin Fin (CORAZZA, 2000), discutiendo el
llamado dispositivo de infantilismo. Se utiliza de la comprensión conceptual de tal dispositivo
para hacer un examen de las consideraciones sobre la infancia que se presentan en la obra. En
un primer momento, se trata del origen del sentimiento del personaje Nawal y en un segundo
momento es la expiación de ese mismo sentimiento, efectuándose así la condición trágica por
excelencia.

Palabras clave: infancia; tiempo; condición trágica.

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sandra mara corazza; deniz alcione nicolay

CENAS E TEMPOS DE UMA INFÂNCIA SEM FIM: O SENTIMENTO TRÁGICO EM


INCÊNDIOS

Este texto apresenta uma sequência de observações (e relações), do ponto de


vista da encenação trágica, sobre a peça Incêndios (MOUAWAD, 2013). Dessa forma,
procura localizar fragmentos de instante, de memória que possam ilustrar o caráter
da personagem central: Nawal. Parte da percepção do tempo e da distância dos
sentimentos e, por isso, busca nas antigas tragédias gregas noções constitutivas na
composição das cenas. Assim, esse texto se aproxima de Sófocles, mas, ao mesmo
tempo, mantém a devida distância. Ele se aproxima ainda da noção de Infância Sem
Fim (CORAZZA, 2000), uma vez que considera pertinente (e atual) a crítica do
dispositivo de infantilidade. Desse modo, manifesta apreço pelas infâncias do
presente, pela reflexão crítica que se sobrepõe ao discurso fatalista de nosso tempo.

As areias do tempo
A peça Incêndios de Wajdi Mouawad (2013) é extremamente prolífica em
efeitos de sentido, dramas pessoais, jogos de cenas, narrativas cruzadas. Trata-se de
procurar numa terra muito distante, do outro lado do oceano, fragmentos de vida
para recompor o quebra-cabeça da vida presente. Por isso, o tempo se intercala,
entretempo, ele tem um início na peça (a leitura do testamento de Nawal), mas não
tem um fim previsível, mesmo que as personagens executem os passos do referido
testamento e desvendem os segredos de Nawal. Existe um continuum residual
(composto de imagens, detalhes, cidades) que permanece na memória dos
espectadores. A narrativa nunca termina porque está presa no liame vital das
personagens. Tal liame é como se fosse uma teia que se tece e retece à procura da
fibra comum: a grande mãe ou o grande pai. Entretanto, não há uma origem de tudo,
porque ela ultrapassa os tempos e os lugares. O drama pessoal e familiar de Nawal
supera os limites do individual para universalizar-se na arte trágica. Assim como a
trama das antigas tragédias gregas, sobretudo de matriz sofocleana, Wajdi Mouawad

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cenas e tempos de uma infância sem fim: o sentimento trágico em incêndios

parte dos interstícios da alma humana para fazer rolar as águas de seu ananke3
inevitável. Na maldição dos labdácidas, isto é, da linhagem de Édipo, por exemplo,
as personagens são livres para escolher seu caminho; porém, cada escolha tem uma
consequência e segue um curso incontornável até que o circulo se feche e cumpra
integralmente a fala do oráculo (Édipo Rei, Édipo em Colono) (SÓFOCLES, 2006). Ou
seja, a criação do mundo exterior, da convivência social e das relações, depende de
uma projeção do mundo interior. Essa era a forma que as encenações trágicas, na
Grécia antiga, encontravam para cativar virtudes nos seus expectadores. Entre
amores e ódios, as personagens vagam pelo tablado da cena para encontrarem-se
umas nas outras. É como um exercício de interdependência, no sentido que ninguém
vive só, e que as ações transformadoras dependem do esforço coletivo. Dessa forma,
a peça Incêndios provoca reflexão sobre valores humanitários, do que realmente
importa no cotidiano das pessoas e, acima tudo, provoca o sentido da humanidade
em nós.
Mas a reconstrução do passado, do passado de Nawal, só é possível por
meio da grafia ou da escrita pessoal da personagem. Ou seja, a escrita testamentária é
a escrita final da personagem; no entanto, ela sugere o início da história com a
entrega dos envelopes aos irmãos gêmeos que, com cuidado, tem atitudes
absolutamente diferentes. Por um lado, a filha Jeanne, estudante de matemática, fica
apreensiva e curiosa sobre o conteúdo dos envelopes; por outro, seu irmão, Simon,
boxeador amador, demonstra desinteresse pela escrita de tais envelopes. Mas é a
insistência de Jeanne que levará ambos ao encontro da verdade, silenciada durante
anos na memória de Nawal. Escrita e memória exercem aqui um papel edificante,
pois é quando as vozes se calam na profusão do tempo é que uma palavra, um nome
tem o poder de libertar os signos do passado. Cada linha, cada detalhe de
composição, cada gesto de imagem carrega figurações de realidades, vividas e
experienciadas por quem já abandou o tempo físico. Porém, só se pode reconstruir
uma trajetória individual a partir desses pequenos vestígios. Se Nawal deixa cartas,

3Na mitologia grega, era uma deusa da inevitabilidade, mãe das moiras e personificação do
destino, necessidade inalterável e fato. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ananque. >Acesso em: 20/06/2016.

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sandra mara corazza; deniz alcione nicolay

uma espécie de mapa e horas e horas de gravações vazias, ela também procede como
uma mente engenhosa. Na matemática, a teoria dos grafos estuda, entre outros
conteúdos, as relações dos objetos em determinado conjunto 4 (não é aleatório que
uma das personagens, Jeanne, se interesse por conjecturas matemáticas como
também, por vezes, se expresse por meio delas), ou seja, existem pontos, arestas,
quadraturas, linhas, todo um jogo matemático a serviço do tempo e das cenas. Em
Incêndios predomina o número quatro, como um quadrado interligado por duas
faces, uma aparente outra oculta, uma dentro, outra fora, uma aberta, outra fechada.
A intensidade e o cruzamento entre as linhas de expressão de cada cena, ou de cada
Incêndio, desconstroem noções fixas de tempo e lugar. E, como a obra é parte de uma
tetralogia maior, tal forma de organização proporciona a ligação necessária com o
palco da encenação, lugar onde a peça encontra sua conexão. Claro, a construção é
fruto da singularidade do autor, mas também de uma personagem que, mesmo
morta, conduz a trama. Nawal é como uma Moira que tece o fio da vida, seguindo os
conselhos da avó Nazira: “Aprende a ler, a escrever, a contar, a falar: aprende a
pensar. Nawal. Aprende” (MOUAWAD, 2013, p. 49). É essa escrita que significa a
possibilidade de recriar passagens esquecidas, alimentando o drama psicológico das
personagens.
Assim, torna-se coerente afirmar que em Incêndios, as infâncias do presente
carregam as marcas de khrónos (mas não partilham dele), enfurecidas pelas mazelas
da linhagem familiar. E, como o velho Titã que devora seus filhos, um por um, logo
após o nascimento, também essa infância da obra, negada no brio da existência, há de
se constituir como força de resistência aos efeitos devastadores do tempo. Por isso, as
infâncias do presente partilham do tempo kairós, o antípoda de cronos. Kairós significa
o instante singular e, portanto, não representa um tempo absoluto, contínuo ou
linear, mas o momento apropriado em que a ação acontece. É de natureza qualitativa
em detrimento ao aspecto quantitativo do velho ceifeiro de cabelos brancos5. Ele não

4 Conferir Mariani (s.n.t). Disponível em: < http://www.inf.ufsc.br/grafos/livro.html> Acesso

em 18/06/2016.
5 Disponível em: <https://www.significadosbr.com.br/kairos> Acesso em 19/06/2016.

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reflete o passado, nem pressente o futuro, mas compõe um momento para toda vida.
Quando Nawal, ‘Incêndios da infância’, recorda o ônibus queimado: “Não existe
mais tempo, Sawda. Não existe mais tempo” (MOUAWAD, 2013, p. 77), ela revive os
horrores da guerra por meio de imagens estarrecedoras, recorda os sons e os apelos
dos refugiados. São mais de cinquenta anos de história que vão e vêm, personagens
(vivos e mortos) que intercalam diálogos, culturas que se entrecruzam, compondo
uma cosmologia cenográfica que, a cada recorte de tempo, instaura um quadro
único. Ora, os antigos gregos acreditavam que kairós podia enfrentar cronos, uma vez
que se apresentava mais jovem e ágil que seu oponente. Considerando que ele é esse
tempo que amplia a percepção do presente, é provável que também tenha
cristalizado fragmentos da guerra na mente da personagem central. Entretanto, ele
não acumula memória, mas partilha da leveza e da rapidez. Com efeito, é Mnemosine
(JULIEN, 2005) que liga o tempo à terra, fonte de perguntas e respostas sobre a
origem de tudo, embora nem toda informação mereça registro. Ela seleciona e aplica
o conhecimento de acordo com a sensibilidade do portador. É por isso que a
personagem (Nawal), na peça, lembra-se de alguns eventos muito específicos, quase
sempre relacionados à dor e ao sofrimento. Em algumas interpretações da mitologia
grega Mnemosine aparece como irmã de cronos e kairós como filho de Zeus. Mas, para
além das linhagens titânicas e olímpicas, importa referir que as infâncias do presente
em Incêndios igualmente partilham essa tríade funcional cronos-Mnemosine-kairós,
exatamente nessa ordem. O tempo, a memória e o instante extraordinário provocam
efeitos de sentido, de compreensão da trama e, por isso, perpassam a lógica dos
espaços vividos, desconstruindo a consciência identitária do ser infantil. Assim, não
há uma infância singular, mas infâncias que se enovelam na miséria humana.
Aliás, a definição de infância da personagem que representa o primeiro
amor de Nawal, Wahab, é curiosa e, ao mesmo tempo, profética: “Nawal, hoje à
noite, a infância é uma faca que estão enfiando no meu pescoço” (MOUWAD, 2013,
p. 45). Curiosa porque é comparada a uma faca, uma forma de assassinato, do pai
que perece para o nascimento do filho. Wahab é forçado a sair de sua terra, do lugar
de sua infância e, provavelmente, não verá seu filho nascer. Profética porque o

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nascimento dessa criança significará a desgraça de Nawal. O fruto do amor inocente,


levado por Elhame para os lados do sul, será alimentado pelo desprezo e pelo ódio,
tornando-se um cruel assassino. Depois do nascimento dos gêmeos (Incêndio de
Sarwane), quando Simon lê a carta de Nawal, aparece a mesma definição: “A
infância é uma faca enfiada no pescoço” (MOUWAD, 2013, p. 130). Ou seja, o tempo
só prolongou o sofrimento, mas Nawal precisa que os filhos descubram o segredo
incestuoso para alcançar a redenção. É preciso reconstruir a história e quebrar o ciclo
de desgraças familiares. É preciso que o amor vença o ódio, eis a grande mensagem
da peça. A obra é uma tragédia pós-moderna e as infâncias do presente estão por
todos os lados. Elas estão no campo de refugiados em Calais, no noroeste da França;
em Dadaab, no Quênia; em Kawergosk, no Iraque; em Atmeh, na Síria; em Kigoma,
no noroeste da Tanzânia. Elas nascem e vivem em zonas de guerra no Oriente Médio.
Elas foram vítimas do massacre de Realengo, da chacina de Candelária. Elas
trabalham nas minas de carvão do norte e nordeste do Brasil. Portanto, a peça expõe
um problema de significação social, presenciado em nosso tempo pelas guerras e
pela exploração financeira do grande capital.

O sentimento trágico em Incêndios


É coerente afirmar que Wajdi Mouawad organiza a produção textual de
Incêndios inspirando-se nas antigas tragédias gregas (séculos VI e V a.C.). Já referimos
sua proximidade com Sófocles. Mas porque Sófocles e não Ésquilo ou Eurípedes?
Porque os elementos esquilianos são demasiados primordiais, titânicos ou teofânicos.
Eurípedes representa a fase final da tragédia grega, substituiu a antiga Moira pelo
Eros civilizacional, ou seja, por ser o mais jovem dos três grandes poetas trágicos, ele
populariza mecanismos de persuasão e montagem, a fim de desmistificar os efeitos
trágicos da cena, descaracterizando o vínculo original da tragédia com o universo
místico religioso do povo grego (BRANDÃO, 1985). Mas isso também por obra dos
efeitos da sofística e do ambiente democrático da Pólis. Já em Sófocles, assistimos ao
exercício da construção de dramas antropomórficos, materializando o amor e o ódio
genealógico. A semelhança de Incêndios com Édipo-Rei (SÓFOCLES, 2006) é imediata,

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Jocasta revive Nawal, mas não há Édipo encarnado na peça de Mouawad, tampouco a
verdade é revelada no início como no clássico de Sófocles. Esteticamente as obras se
aproximam, talvez porque sustentem a seguinte máxima do drama trágico: “A arte
do grande poeta consiste em revelar-nos seus pensamentos sem fugir à textura da
obra de arte” (LESKY, 2003, p. 148). Isso significa que Mouawad precisa pensar na
composição do caráter de cada personagem, não apenas pela necessidade de
representação visual da peça, mas porque cada personagem é um encaixe do quebra-
cabeça, como um mosaico turco cujos ladrilhos minúsculos estampam a tonalidade
predominante da obra. As falas das personagens mais velhas transcendem o espaço
comum dos signos vulgares, servem como metáforas do segredo terrível. O
mecanismo trágico se afirma numa dupla causalidade, como se fossem as faces de
uma moeda: a face do destino e a face do homem. Ou seja, por meio desse
mecanismo, sabemos que a trama tem um destino inevitável, estarrecedor;
entretanto, isso não elimina a responsabilidade individual de cada personagem. É
como se essas duas faces coexistissem, emitissem signos, uma à outra, afim de que,
em algum momento, o círculo se quebre. É nesse sentido que aparece a afirmação de
Nawal no desfecho da peça: “As mulheres de nossa família estão todas presas numa
teia de raiva“[...]É preciso quebrar esse fio [...]” (MOUAWAD, 2013, p. 131). O apelo
da personagem é pelo rompimento de uma sina, a sina da dor, pois somente dessa
forma aquela que está morta poderá tornar os vivos melhores. Isso caracteriza o
estilo clássico da peça, a engenhosidade que provoca o sensível. Os pensamentos que
questionam valores e, sobretudo, os princípios que afirmam os pilares da civilização.
Logo, distinguindo razão e desrazão, pequenez e grandeza, afirmação e negação.
Tais considerações transcendem o palco real da encenação. O palco é o
mundo e a narrativa dramática, sua origem em terras distantes, compreende a
passagem da ignorância ao conhecimento. É muito claro o cunho social e
transformador da peça, assim como seu distanciamento do romantismo, do
idealismo ou de qualquer matriz de acepção burguesa. Existe uma concretude
encarnada na representação. Tudo é tão real a julgar pela compreensão do leitor e,
quiçá, do espectador. Theatrum mundi da vida cotidiana, cuja função dos seres

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humanos é servir de fantoche ao egoísmo e à hipocrisia, semelhante ao Mito da


Caverna de Platão (2008). O palco da encenação torna-se um jogo de xadrez onde nós
somos as peças. A sequência dos dias e das noites (inevitável cronos) são os
quadrados brancos e negros por onde nos movemos. No percurso até o outro lado do
tabuleiro, acreditamos que alguns possuem mais poder e influência que outros, mas
todos acabam rumando para dentro da mesma caixa. Mas quem é o jogador que nos
move? Há de se concordar com a afirmação de Romilly (1998, p. 22): “Cada tragédia
significava presença, e uma presença aterradora”. Embora ela se refira às antigas
tragédias gregas, em Incêndios essa presença perpassa as cenas. É o fantasma do outro
desconhecido, o silêncio de Nawal, o pecado e o medo, o desterro dos filhos e o
abandono do pai, mas, acima de tudo, é o arrependimento da personagem central.
No tribunal dos homens, Nihad é condenado, vítima e algoz e, assim como Édipo,
fura seus próprios olhos, ele deverá ter coragem para esvaziar-se da vida; porém, a
trama encerra-se antes deste ato. Ora, estamos diante de um teatro social engajado,
de uma problemática contemporânea que assola todos os povos. Talvez haja certa
proximidade com Brecht (1898-1956), na utilização de técnicas e dispositivos a fim de
provocar a análise crítica do leitor (ou do espectador). Tal análise, portanto, não tem
outra razão que não seja o despertar da consciência política e democrática das
nações.

Filoctetes e Nawal
À primeira vista uma personagem não tem nada a ver com a outra. São
distantes em todos os sentidos. Então, qual a relação possível? Já tratamos de alguns
elementos edipianos em Incêndios (mesmo sem o Édipo revelado). No entanto, a
utilização de um esquema trágico institucional extremamente simples, como o que é
utilizado por Sófocles no Filoctetes (a penúltima das sete tragédias conservadas e
encenada em 409 a.C.) pode nos trazer detalhes comparativos, literários e estruturais
com Incêndios. A lenda é conhecida no universo homérico, porém, menos importante
quando comparada aos grandes heróis da Grécia. O guerreiro Filoctetes, portador do
arco de Hércules, é abandonado na ilha de Lemnos por seus compatriotas, após ser

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picado por uma serpente. A ferida nunca cicatriza e por dez anos vive isolado na
ilha. Mas, após inúmeras batalhas, os heróis da Grécia são avisados por um oráculo
que só conseguiram tomar Tróia se contar com a presença de Filoctetes e seu arco.
Odisseu convence o jovem Néoptólemo, filho de Aquiles, a enganar Filoctetes e
trazê-lo novamente ao front de batalha. De pária a herói, eis a breve sina do miserável
personagem. Mas são os elementos utilizados por Sófocles que nos permitem traçar
paralelos com Nawal. Uma ferida que nunca cicatriza, o abandono, o silêncio, o
retorno ao passado como condição de compreensão do presente, a redenção na
imagem do menino. Essas são ações que poderiam ser aplicadas tanto numa tragédia
quanto na outra. Embora Filoctetes não comporte nenhum papel feminino, talvez pelo
respaldo institucional e jurídico da Pólis grega da época, existe um universo sensível
que brota de cada verso. Em Incêndios, ao contrário, a potência afirmativa feminina é
definitiva para a mudança de caráter das personagens. Os irmãos gêmeos, por
exemplo, sofrem uma espécie de mutação durante a peça. Eles vão sendo
melhorados, melhorando-se ao descobrir os segredos de Nawal. No Filoctetes
também, pois o jovem Neoptólemo inicialmente aceita o plano ardiloso de Ulisses
para roubar o arco do herói; no entanto, após conversar com este, o jovem muda
radicalmente seus planos. Outra relação próxima é a interdependência tempo-lugar.
Além do que assinalamos anteriormente, importa saber que o lugar da ação
manifesta a compreensão geográfica da condição social da personagem. O homem é
húmus, é terra, é barro, é argila do continente onde nasceu, por isso é simbólico o
pedido de Nawal durante a leitura do testamento: “Me coloquem no fundo de um
buraco, com a cara contra o mundo” (MOUAWAD, 2013, p. 25). Numa atitude de
humildade e desprezo, a personagem assume o peso da condição humana, afirma a
sua absoluta imperfeição. Ainda nessa linha, estendendo-a para o Filoctetes, cujo
isolamento na ilha de Lemnos provoca-lhe a extração dos mais profundos instintos
de sobrevivência (próximos do mundo animal), há de se aproximar da barbárie de
Incêndios, da selvageria que cruza naturalmente o mundo civilizado. Porém, não são
mundos muito distantes se considerarmos a construção cultural da vida em
sociedade. Um fio tênue separa civilização e barbárie. Assim, a peça mostra que não

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existe tempo definido, nem evolução dos sentimentos, mas uma sequência de erros e
acertos à mercê das forças da natureza. Filoctetes é o eu masculino de Nawal, ainda
que Nawal não seja o eu feminino de Filoctetes, ela se mantém como uma verdadeira
heroína de resistência ao mundo bestializado.

Infâncias do presente e Infância Sem Fim


Se há uma infância em Incêndios, ela não personifica nenhum personagem.
Com efeito, não há ator na peça que represente uma criança. Das idades da vida, a
infância está fora. A infância de Nawal, por exemplo, acontece em meio à pobreza, a
guerra e a miséria. Próximo ao caos e ao extermínio, não há espaço para a
manifestação do sentimento moderno de apreço pelas crianças. Mesmo que esse
sentimento seja fruto do drama burguês, como assinala a história das mentalidades
de Philippe Ariès (1981) é possível afirmar que, nos campos de refugiados, não
chegam presentes de natal. “A infância é uma faca enfiada no pescoço”, eis a máxima
que predomina no texto. Na estrutura da peça, ela simboliza o início e o fim, uma
espécie de morto social que carrega a esperança nos ombros. Ao transpor tal
problemática para o contexto das discussões políticas, econômicas e culturais
contemporâneas, Mouawad pretende abrir os olhos do mundo, denunciar que não há
futuro para as crianças se não tratarmos as feridas do presente. É cronos que devora
seus filhos, pacientemente, sem nenhuma possibilidade de libertação. No entanto, o
tempo ideal desse ser infantil é o tempo Aion porque partilha do presente
transformador. Tempo de intensidades, de brincar com os números e com as pedras
ao modo heraclitiano. Nele, o poder criador e imagético se manifesta como um
momento à parte do tempo cronos (KOHAN, 2004). Por isso, há a necessidade de se
reinventar a experiência, distante da maldade e do ódio, para que, assim, crianças
não empunhem fuzis, meninas não sejam violentadas, mães e pais não chorem a
morte de seus descendentes.
Nesse sentido, aproximamos a temática das infâncias do presente com a
expressão “infância sem fim” (CORAZZA, 2000), uma vez que colocamos em
evidência questionamentos que circundam a passagem entre a infância moderna

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para, talvez, a infância contemporânea. Mas porque referimos esse “talvez”? Porque
não há nenhuma clareza absoluta quanto aos movimentos transculturais, de
messianismo religioso, de intolerância entre povos de uma mesma nação, ou seja, do
que realmente irá acontecer daqui há uma ou duas décadas nos campos de
refugiados, por exemplo. Não sabemos se ocorreu uma passagem na história ou se
ela nunca existiu. Tal afirmação é mais coerente e cuidadosa hoje depois da
verificação de vários eventos de natureza econômica ocorridos após os anos noventa.
Falávamos no “fim da história” (FUKUYAMA, 1992) e, por consequência, no fim da
infância (POSTMAN, 1999). A presença do novo milênio que se anunciava trazia
consigo o debate de muitos problemas, sobre a organização da vida e do mundo. É
evidente que as diretrizes pós-modernas em relação aos efeitos culturais são mais
antigas, mas só se vislumbraram com intensidade nos anos setenta, oitenta e noventa.
É nessa linha, também, que operamos com o que denominamos “dispositivo de
infantilidade” na intenção de erigir análise crítica sobre o suposto “fim da infância”.
Daí uma de nossas problemáticas essenciais: “Em outras palavras: existiria uma
ruptura histórica entre a ‘Idade da Infância’, a análise crítica do ‘Fim da Infância’ e os
anseios e práticas culturais em prol de uma ‘Infância Sem Fim’” (CORAZZA, 2000, p.
29)? Com efeito, só sabemos de uma concepção quanto da outra por artifícios do
aparato simbólico da linguagem. São os mecanismos tecnopolíticos de produção de
sentido que operam a tríade poder-saber-verdade. Eles fazem essa tríade funcionar
como uma máquina de atualização e reatualização de dados estatísticos, mormente
apregoadas pelas mídias de comunicação e pelo gerenciamento econômico das
grandes potências. Ora, certamente quem escreve a história e quem manipula o
dispositivo de infantilidade não são os habitantes dos campos de refugiados. A
infância é tão vítima quanto o que se fez dela por meio desse dispositivo. Ela é um
excedente da história e da produção desordenada e, por isso, está à margem do
tempo e das sociedades civilizadas. Ainda é muito atual o apelo do autor do
Desaparecimento da Infância: “Não é concebível que nossa cultura esqueça que precisa
de crianças. Mas está a caminho de esquecer que as crianças precisam de infância”
(POSTMAN, 1999, p. 167). Seu repúdio serve perfeitamente no contexto de Incêndios,

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mais pelo núcleo da crítica social levantada do que pela estética cenográfica.
Portanto, “infâncias do presente” e “Infância Sem Fim” estendem linhas sintomáticas
de proposição e juízo. Não é possível compreender as matérias do presente sem
recuarmos na história e analisarmos os avanços (e retrocessos) do grande capital.
Trata-se de um estudo geopolítico, observando o desenvolvimento dos dispositivos
institucionais de uma nação ou país, aliado de ferramenta crítica genealógica que
avalie as dimensões (e intensidades) do jogo de forças presentes na política e no
controle econômico. Mas, assim como Incêndios já queimou os quadrados das cenas,
um estudo estrutural nessa direção implicaria extrapolar os limites do presente texto
e, por consequência, também queimaria seu fundamento e intenção.
Importa saber que a noção de “dispositivo de infantilidade” é tributária da
esteira foucaultiana. A infância, como as demais composições da subjetividade
contemporânea, foi objeto de estudo e análise do filósofo. Talvez menos a condição
etária da criança, mas, de um modo geral, o sujeito como instância nuclear da
modernidade. Desse modo, associamos o termo dispositivo à infância para tratar dos
modos de subjetivação e produção do ser infantil. Ora, se a compreensão
foucaultiana acerca do termo “dispositivo” parte da análise das sociedades
disciplinares dos séculos XVIII e XIX, sobretudo pela percepção da mutação sofrida
pelo mecanismo conhecido como “Panoptismo”, torna-se coerente aproximar este
termo das praticas culturais de nosso tempo e, sobretudo, das ponderações que
assinalamos na obra História da infância sem fim (CORAZZA, 2000). Ainda sobre tal
mecanismo, é esclarecedora a definição dada por Deleuze (1988, p. 43): “A fórmula
abstrata do Panoptismo não é mais, então, ‘ver sem ser visto’, mas impor uma conduta
qualquer a uma multiplicidade humana qualquer”6. Ou seja, trata-se de elucidar formas
de agenciamento e controle, inseridas no próprio espaço de convivência social, cujo
motor propulsor é uma engrenagem informe, imperceptível, mas que exerce
atividade direta na vida das pessoas. É uma pragmática de governo mais diluída,
mais sensível que os modelos repressores da Idade Média, porém com mais potência
e capilaridade quando se trata da produção discursiva e dos efeitos de sentido. Essa

6 Grifo do autor.

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máquina complexa (e produtiva) receberá de Deleuze (1988, p. 44) o nome de


“diagrama”. Com efeito, a noção de diagrama se aproxima da noção de dispositivo e
não seria absurdo equalizar procedimentos e metodologias de pesquisa nessa
direção. Isso faz com que pudéssemos afirmar, a partir dessa perspectiva que: “[...] o
dispositivo forma um conjunto multilinear, composto por linhas de diferentes
naturezas que não abarcam sistemas, onde cada um é homogêneo por sua conta, tal
como o sistema do sujeito, do objeto e da linguagem” (CORAZZA, 2000, p. 46). É
claro que tivemos o cuidado de observar, nessa afirmação, as três grandes instâncias
analisadas por Foucault, ou seja, as instâncias do saber, poder e da subjetividade. Ao
mesmo tempo, tratando-se do dispositivo de infantilidade e de sua constituição
diagramática é oportuno que manifestássemos intenção de mapear o terreno por
onde essas linhas discursivas pretendiam trilhar significados acerca da história da
infância. Não apenas da história, compreendida como ciência que estuda o passado
da humanidade, seu processo de evolução (linear, temporal), mas uma espécie de
história do presente que põe em evidência a genealogia das relações de força entre o
regime de enunciados. Dessa forma, a própria história é duplicada de maneira
coextensiva a todo campo social. Ela nunca é definitiva, mas parte de pontos de
emergência (e proveniência) que se entrecruzam em continuuns temporais. Portanto,
tratar de infâncias do presente é conjuntamente considerar tais aspectos teóricos
metodológicos sobre uma analítica dos modos de subjetivação contemporâneos, quer
seja na realidade das grandes cidades, quer seja no contexto da peça Incêndios.
Aliás, a partir desses apontamentos, considerando o dispositivo de
infantilidade, podemos tentar compreender parte da trama que envolve a
personagem Nihad. Ele foi abandonado quando nasceu por Nawal, persuadida por
sua mãe Jihane. As razões desse ato não são muito claras na peça, presumimos que
em decorrência da miséria familiar e da pouca idade de Nawal, que contava quinze
anos quando do nascimento da criança (era um menino, Nihad). Ele foi levado por
Elhame após o nascimento, mas Nawal promete: “Aconteça o que acontecer, te
amarei para sempre! Aconteça o que acontecer, te amarei para sempre!”
(MOUAWAD, 2013, p. 47). E, num último gesto de despedida, Nawal coloca um

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nariz de palhaço nas fraldas da criança. De alguma forma, esse gesto marca o início
dos percalços pelos quais passou a personagem central. A referência ao nariz de
palhaço aparece mais uma vez, ao final, quando Nihad está sendo julgado por seus
crimes, inclusive pela tortura da própria mãe. Ele refere: “Minha dignidade é uma
careta deixada por aquela que me deu a vida. Essa careta nunca me deixou”
(MOUAWAD, 2013, p. 125). Então, ele coloca o nariz e canta uma canção, não da
mulher que canta, mas do seu próprio repertório. Ou seja, parte do enredo se fecha,
simbolicamente, com o nariz de palhaço. Mas como atravessarmos o dispositivo de
infantilidade nessa direção? A partir do que assinalamos no texto, Nihad foi tão
vítima dos mecanismos de produção de subjetividade quanto culpado de seus
crimes. Ele era uma peça da engrenagem da máquina social abstrata, uma espécie de
fantoche guiado por outros interesses. E, se ele tivesse nascido (e criado) fora do
campo social onde viveu e cresceu, qual seria o desfecho da história? É disso que se
trata. Ora, Nihad costumava fotografar suas vítimas como um palhaço cruel da
sociedade do espetáculo, colecionador de imagens vazias. Claro que essa não era a
intenção de Nawal, o nariz deveria significar inocência e alegria; porém, converte-se
em rancor e desprezo. Mesmo assim, há que se admirar o brio da personagem
central, aquela que conta histórias dentro da história.

Verdade, narrativa e expiação


Também é por meio de sua boca que ouvimos, ao final da peça, na leitura do
envelope, a seguinte afirmação: “Há verdades que só podem ser reveladas se forem
descobertas.” (MOUAWAD, 2013, p.132). Essa concepção de verdade, manifestada
pela personagem central, merece atenção na medida em que implica a compreensão
da essência narrativa do drama. É como se tal personagem exercesse a função de
oráculo que decodifica o presente e o passado. A escrita do envelope que, de alguma
forma, personifica a fala de Nawal, traz até a cena um quadro de acontecimentos
capazes de recriar a história de vida de cada indivíduo envolvido na trama. Ela abre
a possibilidade de se reescrever, a partir daquele instante, da leitura da carta, uma
gama de experiências produtivas, porque seus atores já sabem de onde vieram, mas,

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obviamente, não sabem para onde vão. Essa forma de presentificação do tempo é
própria dos efeitos da ação narrativa desenvolvidos pelo autor da peça, porém
partilhada pela personagem que narra o evento. Ou seja, isso faz com que se possa
diminuir a distância entre os elementos do enredo e a sequência dos acontecimentos
que dão continuidade aos atos de fala. Dessa forma, entendemos que o conjunto
trágico evidenciado por Incendios se prende num jogo complexo de sentidos e
representações imagéticas que põem em movimento episódios construídos, acima de
tudo, para o campo do tablado cenográfico. Já na Poética, encontramos a definição de
quatro tipos de tragédias: a complexa, a patética, a de caráter, as de monstros (Cf.
ARISTÓTELES, 2005, p.39). Ora, pela engenhosidade ficcional da peça, pelas idas e
vindas do discurso narrativo, diríamos que a obra de Mouawad se enquadra na
primeira definição aristotélica. Ainda que tal afirmação possa parecer precipitada,
uma vez que a preocupação do velho estagirita está muito mais na distinção entre
tragédia e epopeia e na descrição da linguagem poética do que em classificar a
constituição complexa da tragédia; ainda assim, pela riqueza de elementos nessa
direção (que fazem parte da peça) é justo sinalizarmos tal atributo. Mas as
aproximações param por aí, pois ocorre o risco de transformarmos a estética do
drama cênico numa série normativa de gestos e falas, além de moralizar o discurso
das personagens. Com efeito, quanto menos cristianizarmos a obra, quanto menos
utilizarmos categorias de juízo e redenção, tanto mais será possível decifrar (e
apreciar) as passagens do jogo dramático. Inclusive, o efeito catártico não segue a
regra definida pela Poética, qual seja, a regra de inspirar “pena e temor” no
espectador a fim de que este “opere a catarse própria dessas emoções”
(ARISTÓTELES, 2005, p.24). Claro, não temos como apreciar o sentimento e as
emoções desses espectadores, uma vez que se trata da representação de uma ação
(mimeses), do instante específico em que ela ocorre. Além do mais, o conceito de
catarse não tem uma tradução precisa a partir da Poética. No drama moderno, por
exemplo, tal conceito se aproxima das ideias de ‘purificação’, ‘compensação’, ou seja,
de uma descrição moralizada acerca da tragédia antiga. No entanto, sabemos por
meio do livro VII da Política de Aristóteles (2010) que, ao tratar dos efeitos catárticos

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da música, ele sinaliza para o caráter terapêutico de tal conceito. Identifica este como
uma espécie de ‘descarga de emoções’ capaz de melhorar os sintomas vitais, mas
apenas no momento em que ocorre a ação. Acontece que Nawal foge à regra, já que
está morta na ocasião da leitura das cartas e, portanto, o efeito catártico não se aplica
a presença da personagem. Ela não é melhorada pelo evento. No entanto, na
memória de seus filhos, ela assume atributos (ou caracteres) que vão personificando
uma imagem positiva da mesma. Por meio dessa imagem, o autor se utiliza como
guia da narrativa, sem a qual as personagens não chegariam ao conflito pulsional da
obra. Ou melhor, não chegariam a ‘desvelar a verdade’ que já estava presumida de
antemão, porém foi sendo construída por cada um dos filhos. Em razão disso,
devemos aproximar Incêndios da antiga forma da tragédia grega de interpretar o
evento (ou o acontecimento), chamada por Nietzsche (2006) de ‘Ereignis’. Nesse
ponto, não devemos entrar no mérito da compreensão heidegerriana da expressão,
mas na ênfase destacada pelo filósofo de Sils Maria, já que tal linha de interpretação
(a de Heidegger) foge do contexto de nossa abordagem. É na Introdução à tragédia de
Sófocles (2006) que Nietzsche diferencia a tragédia grega da tragédia moderna,
utilizando esse termo (Ereignis) para referir-se ao instante trágico como uma
experiência direta e imediata do publico presente. Era como se ocorresse uma espécie
de exercício democrático baseado na aceitação dos diferentes (mulheres, escravos...).
Nas suas palavras: “Reunião total do povo, que reencontrava seus representantes no
coro (vox populi) e seu ideal nos heróis, que eram habituados a entender tudo
politicamente como homens políticos por excelência.” (NIETZSCHE, 2006, p.58, §3).
Esse é um momento em que a tragédia grega, no ambiente da polis, não é deturpada
pela atmosfera da corte como será posteriormente com Eurípedes. A mesma sina
ocorre com a tragédia moderna, ela não é mais popular, mas apenas um artifício de
distração das massas. Entendemos aonde Nietzsche quer chegar ao atribuir essa
expressão (Ereignis) ao estado de presença do drama trágico. Significa o
desencadeamento do ‘inédito possível’, cujo desfecho não é preconcebido de
antemão, mas imprevisível e instantâneo. Não é aleatório que o filósofo irá atribuir
importância maior à noção de pâthos que, necessariamente, a concepção aristotélica

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cenas e tempos de uma infância sem fim: o sentimento trágico em incêndios

de ação na tragédia clássica. É o pâthos que aproxima os indivíduos e, ao mesmo


tempo, os afasta do vitalismo estético grego. Espécie de mediador entre o sentimento
trágico e a dimensão afetiva do conhecimento humano. Por isso, a noção de verdade
na narrativa, sobretudo na fala de Nawal, vai nessa direção, ou seja, na direção de
Ereignis. A verdade como acontecimento, que se desenrola conforme o grau de
afecção investido por seus atores. Logo, não há verdade no sentido metafísico do
termo, mas sinais que ocorrem diante de nossos olhos e que determinam a sequência
dos fatos.
São esses sinais que auxiliam na construção do aparato discursivo
responsável pelas mudanças entre as personagens. Jeanne, por exemplo, que media
os problemas do cotidiano semelhante à resolução de conjecturas matemáticas, de
maneira lógica racional, acaba desabafando: “Hoje, aprendi que é possível que do
ponto de vista que ocupo, eu possa ver também meu pai; aprendi também que existe
um outro membro desse polígono, um outro irmão.” (MOUAWAD, 2013, p.38). Isto
quer dizer que a quadratura da história de vida da personagem não está completa,
falta um ângulo, uma linha desconhecida e invisível. É quando o olhar se detém na
possibilidade de traçar outros planos e avista algo na periferia da retina, mas não
identifica a natureza do objeto. Por isso, se abre para o desconhecido, para o lado
oposto do polígono que jamais aparece porque está encoberto pela lembrança do
sofrimento. Esse impulso à procura da verdade, por parte de Jeanne, independe da
ordem lógica dos fatos. A probabilidade de que o pai, e o irmão perdido, estejam
vivos é muito pequena. Tampouco a sentença especular de que ambos são a mesma
pessoa, já que essa é uma hipótese mais distante ainda da visibilidade concreta do
polígono. No entanto, Jeanne desconfia do que é dito, do cálculo exato, pois não
acredita no que não vê (nunca viu o pai ou o irmão morto), nem naquilo que lhe
contaram quando ainda era criança. Então, decide assumir a escrita de seu destino,
procurando vestígios, pistas, signos sonoros capazes de recriar uma história, como a
estória de um conto daqueles das mil e uma noites. Nesse caso, verdade e ficção estão
muito próximas, não se sabe qual delas produz a outra, não há certeza nos
enunciados escritos, nem nas vozes proferidas no discurso. As palavras podem

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sandra mara corazza; deniz alcione nicolay

enganar os ouvintes. A sentença de Nawal é clara: “[...] As palavras são horríveis. É


preciso ficar lúcido. Enxergar. Fazer como os antigos: tentar ler presságios no voo dos
pássaros. Adivinhar. ” (MOUAWAD, 2013, p.80). Significa que toda verdade é
apenas interpretação de interpretação. Cada palavra que vem a luz carrega o peso
condicionante das estruturas da linguagem, das teias gramaticais. Elas (as palavras)
são limitadas, uma vez que existem acontecimentos que elas mesmas dificilmente
assimilarão. Tal perspectiva é partilhada por Nietzsche na obra Sobre verdade e mentira
(2008). Em algumas traduções essa obra recebe um complemento no título: o termo
extramoral, intitulando-se Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral. Talvez seja
o período mais cético da produção do filósofo, período em que associa a verdade ao
aniquilamento da espécie humana. Em contrapartida, inspirado na tragédia ática, ele
vê a arte como a única alternativa para salvação do espírito. Agora, a verdade em
oposição à mentira é uma criação da atividade gregária da civilização no seu longo
processo de interiorização do homem. Por conseguinte, como uma espécie que
precisa sobreviver e dominar a outra, o homem de rebanho atribui o nome de
verdade a tudo aquilo que pode preservá-lo e, de mentira, o que pode destruí-lo ou
descartá-lo; daí, as palavras serem usadas pelo seu grau de utilidade em determinada
ocasião. Pode-se acompanhar Nietzsche quando questiona: “O que é, pois, a
verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfisimos, numa
palavra, uma soma de relações humanas que foram realçadas poéticas e
retoricamente, transpostas e adornadas [...]” (NIETZSCHE, 2008, p.37, § 1). Aqui, o
filósofo critica a superficialidade da linguagem que utilizamos, já que apenas
reproduzimos sentenças canônicas balizadas por séculos de civilização.
Reproduzimos modos de fala e de representação do pensamento, utilizamos
conceitos chaves para definir um objeto, mas nunca investigamos a natureza das
expressões socialmente aceitas, tampouco questionamos a validade dos nomes. É
como se, ao nascer, o ser humano entrasse numa máquina de decodificação de signos
cujos valores e sentidos fossem determinados de antemão. Com isso, Nietzsche, por
meio da valorização do senso estético das artes, quer destacar a importância de
determinadas virtudes, tais como o esquecimento e a intuição. A primeira porque

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cenas e tempos de uma infância sem fim: o sentimento trágico em incêndios

significa uma forma de esvaziamento das pseudoverdades que marcam a existência


e, a segunda, porque proporciona o raciocínio imediato sobre determinada ação,
refutando, assim, os domínios da razão. Também Jeanne se vale dessas virtudes
quando não aceita a comodidade dos fatos, deixa-se levar pelo relato improvável da
carta póstuma. Ela compreende que a verdade é uma ficção, depende da potência e
da sinergia do evento e, portanto, muitas páginas ainda estão para serem escritas.
Já falamos da possibilidade de realizar uma leitura descristianizada de
Incêndios ou, quando muito, evitar o hábito de julgamento moral das cenas que
compõem o enredo. Isso porque é muito fácil enquadrar as personagens num rol de
caracteres estereotipados. Assim, encontramos o velho, a mocinha, a heroína, o bruto,
a velha, até mesmo o vilão. Mas não se trata de elencar arquétipos cenográficos à
peça de Mouawad, ela não ocorre nessas condições, nem é possível enquadrar as
personagens num único tipo. Com efeito, a tipologia de Mouawad não se enquadra
num esquema clássico de representação da vida cotidiana. Por vezes, a peça parece
com a vida mesma, dado o peso realístico da trama. É o movimento das falas e o uso
do tempo que deslocam as personagens do lugar comum da encenação dramática.
Isso evita uma série categorizada de ideias prontas, rolls e clichês. Nawal, por
exemplo, é representada em três ou quatro momentos da vida. Claro, todos são
importantes e necessários ao conhecimento do drama. Mas é esse entrecruzamento
de falas, tempos, regiões, idades que proporcionam a riqueza de detalhes, a
produção do evento. Ainda em relação à Nawal, como a peça inicia com a morte da
personagem é de praxe no drama trágico procurar o bode expiatório. Ou seja, aquele
indivíduo que é responsabilizado pelos pecados da humanidade e, como tal, deve
sofrer martírios até alcançar a redenção. Ora, sabemos que prolongar o sofrimento é
uma especialidade da tragédia edipiana e, na religião, o próprio fundo trágico
dionisíaco serviu de matriz para a morte de Cristo. Entretanto, não devemos
conceber nem uma forma de expiação nem outra. Afinal, por quais falhas e erros
Nawal foi condenada? Quem deve ser culpado pelos erros genealógicos que
transcorrem na peça? Essa procura é infinita porque partilha do sentido trágico
original, espécie de niilismo intrínseco a condição humana. Vamos encontrá-lo na

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sandra mara corazza; deniz alcione nicolay

sabedoria céptica do velho Sileno na obra O nascimento da tragédia de Nietzsche:


“Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a
dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti
inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser.” (1992, p.36, §1). Tal
passagem ilustra o pessimismo que brota da tragédia grega e, por isso, segundo
Nietzsche, a revigoração do campo estético dionisíaco-apolínio. Significa, sobretudo,
no âmbito de Incêndios, que não há um culpado individual pelas mazelas do destino.
Nenhuma heroína como Nawal, por exemplo, deve sofrer as consequências por seus
atos. O que existe é a transposição de um drama da própria humanidade, de maneira
que os erros, as falhas são comuns a todos. Talhada pela imperfeição, a humanidade
segue seu caminho acreditando nas metáforas que ela própria inventou. E, quem
sabe, toda essa trajetória não seja apenas um conto ou uma canção de ninar.
Agora, se a infância é ‘uma faca enfiada no pescoço’ é porque o sofrimento
se prolonga por décadas. É preciso retirar essa faca, fazê-la embainhar um cabedal de
misérias e tormentos. Talvez a ação mais complexa seja exatamente o ato de retirar
essa faca e refletir sobre o que fazer depois. Não é o passado que condena o erro,
porém, as verdades que inventamos para justificar a frieza, a desfaçatez frente aos
horrores do presente.

Considerações finais
Qualquer estudo que se faça sobre a peça de Wajdi Mouawad, Incêndios,
acarreta a possibilidade de incorrermos no reducionismo de conteúdos e na pobreza
de expressão. Trata-se de uma peça de teatro e é como tal que deve ser analisada, de
modo que tudo que fizemos até aqui mereça a nomenclatura de estudo parcial sobre
a temática social provocada pelo drama trágico da personagem. A riqueza dos
detalhes, o movimento das cenas, a caracterização dos atores, a incorporação das
falas e a habilidade de interpretação estão fora dessa análise. Da mesma forma, não
se deve entender que partimos de uma simples resenha crítica sobre a peça, pois,
deste modo, teríamos que assisti-la várias vezes para contrapor enredos. Tal
procedimento poderia, ainda, criar uma espécie de psicologização do texto escrito. Se

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cenas e tempos de uma infância sem fim: o sentimento trágico em incêndios

assim pareceu ao leitor, não foi essa a intenção. Apenas estendemos linhas possíveis,
sem individualizar a análise. Num universo poético de muitas interpretações, esta é
apenas uma delas.

Referências

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São Paulo: Cultrix, 2005.
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Valente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
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DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução Claudia Sant’Anna. São Paulo: Brasiliense,
1988.
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2013.
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Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
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______. Introdução à tragédia de Sófocles. Tradução Ernani Chaves. Rio de Janeiro: Jorge
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POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Tradução Suzana Menescal de A.
Carvalho e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1999.

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sandra mara corazza; deniz alcione nicolay

ROMILLY, Jaqueline de. A tragédia grega. Tradução Ivo Martinazzo. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1998.
SÓFOCLES. Filoctetes. Tradução Trajano Vieira. São Paulo: Ed. 34, 2006.

Recebido em: 15.05.2016


Aceito em: 25.06.2016

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doi: 10.12957/childphilo.2016.23352

FIGURAS DA INFÂNCIA: INSCRIÇÕES, CIRCUNSCRIÇÕES E INCÊNDIOS

Flávia Schilling1
Universidade de São Paulo, Brasil
Patrícia Helena Ferreira2
Rede Municipal de Educação de São Paulo, Brasil

Resumo
É impossível resistir à tentação de escrever, neste breve artigo, sobre avessos e contrapelos. Pois,
afinal, estamos sob a égide de Incêndios que, ao contrário do que se espera hoje, é uma história
sem final feliz. Sem final, talvez. A contrapelo das figuras contemporâneas de infância, em
Incêndios há a presença das genealogias e suas possibilidades de liberdade, centradas na
memória, na dor, na luta, na resistência. Há, nestas mesmas genealogias, ao mesmo tempo, suas
muitas prisões. Há miragens de liberdade centradas nas figuras femininas que conseguem
olhar, de olhos bem abertos. Há a palavra – difícil e frágil – que se apresenta no cantar. Há
silêncios a serem decifrados (e respeitados) e há, principalmente, a libertação via domínio da
palavra: aprender a ler, aprender a escrever, aprender a contar, aprender a falar, aprender a
pensar. Há, como seu avesso, a impossibilidade de colocar em palavras, a inutilidade de
aprender a contar, aprender a falar, aprender a pensar. Além dos grandes discursos, há uma
proposta de decifrar pequenos gestos, pistas, enigmas. Todavia, inspirando-nos no conceito de
campo de visão e na ideia de visão periférica, como a capacidade do indivíduo enxergar pontos
ao redor de seu campo visual, trabalharemos no artigo o duplo infância-felicidade afetado pelo
discurso do risco e procuraremos focar algumas questões presentes no que chamamos de
enxurrada discursiva acerca do infantil, em especial, o apaziguamento da memória, da dor, da
luta, da resistência e do acontecimento. Para tanto percorremos a discussão sobre a proteção/
cuidados da infância com suas figuras do risco; as figuras das crianças felizes com o
deslocamento contemporâneo da ideia de resistência para o de resiliência, como sendo a
capacidade de enfrentar as adversidades. Assim tentamos captar, na angular formada, a
racionalidade vigente de uma época e ainda perceber que nela, supostamente, não há nada de
inaugural, somente rearranjos e deslocamentos, mas que produzem, efetivamente, efeitos
nos/de sujeitos.

Palavras-chave: infância; governo; risco; felicidade; memória.

Childhood figures: inscriptions, circumscriptions and fires

Abstract
In this brief article, it is impossible to resist the temptation to write about duplicities and
opposites. After all, we are discussing Fires, which, contrary to what is currently expected, is a
story without a happy ending. Or even without an ending, maybe. In contrast with the
contemporary figures of childhood, in Fires there is the presence of genealogies and their
possibilities of freedom, centered in memory, pain, struggle and resistance. At the same time,
these genealogies may be prisons of the imagination. There are mirages of freedom centered in

1 E-mail: flaviaischilling@gmail.com
2 E-mail: patihell@yahoo.com.br

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figuras da infância: inscrições, circunscrições e incêndios

feminine figures that are able to look, with eyes wide open. There is the word – hard and fragile
– that presents itself in singing. There are silences to be deciphered (and respected) and there is,
primarily, freedom through mastering of the word: learning to read, learning to write, learning
to tell, learning to talk, learning to think. There is, as its opposite, the impossibility of putting
into words, the inutility of learning to tell, learning to talk, learning to think. Beyond the big
speeches, there is a proposal for deciphering small gestures, clues and enigmas. However,
gathering inspiration from the concept of field of view and the idea of peripheral vision--
understood as the capacity of an individual to see elements outside the center of gaze—I discuss
in this paper the duplicitous childhood-happiness-as-affected-by-liabilities discourse, and focus
on some questions that arise from what I call a “discursive thunderstorm” concerning
childhood, in particular the appeasement of memory, of pain, of fight, of resistance and of
events. For this purpose, I analyze discussions about protection / child-care and their
calculations based on liability ; the figures of children dealing with the contemporary shift from
the idea of resistance to that of resiliency, as being the capacity to face adversity. I try to capture,
in the meeting-points of these discussions, the current rationality of our epoch, while
recognizing that in fact there is nothing new, only reshufflings and movements that create
effects in individuals.

Key words: childhood; governmentality; risk; happiness; memory.

Figuras de la infancia: inscripciones, circunscripciones e incendios

Resumen
Se nos hace imposible resistir a la tentación de escribir, en este artículo, sobre lo que se coloca al
revés y a contramano. Estamos, al final de cuentas, trabajando con el texto Incendios que, al
contrario de lo que hoy se espera, es una historia sin final feliz. Sin final, tal vez. O con finales y
comienzos distintos. A contramano de las figuras contemporáneas de infancia, en Incendios es
posible encontrar genealogías - sus posibilidades de libertad, centradas en la memoria, en el
dolor, la lucha y la resistencia. Hay, en estas mismas genealogías, al mismo tiempo,
posibilidades de muchas prisiones. Hay espejismos de libertad centrados en figuras femeninas
que consiguen mirar, con ojos bien abiertos. Hay palabra - difícil y frágil - que se presenta al
cantar. Hay silencios a ser descifrados (y respetados) y hay, principalmente, la liberación por el
medio de la palabra: aprender a leer, aprender a escribir, aprender a contar, aprender a hablar,
aprender a pensar. Hay, como su revés, la imposibilidad de colocar en palabras, la inutilidad de
aprender a contar, aprender a hablar, aprender a pensar. Más allá de los grandes discursos, hay
una propuesta de descifrar pequeños gestos, huellas, enigmas. Inspirándonos en el concepto de
campo de visión y en la idea de visión periférica como la capacidad del individuo de ver puntos
alrededor de su campo visual, trabajaremos en este artículo con el par infancia-felicidad
afectado por el discurso del riesgo e intentaremos colocar algunas preguntas del presente en lo
que chamamos de tempestad discursiva sobre lo infantil, en especial a los que tratan de
apaciguar la memoria, el dolor, la lucha, la resistencia: el acontecimiento. Para tanto traeremos
la discusión sobre la protección/cuidados de la infancia con sus figuras del riesgo; las figuras de
los niños felices con el desplazamiento contemporáneo de la idea de resistencia para la de
resiliencia, como la capacidad de enfrentar las adversidades. Así, intentamos capturar, en la
angular formada, la racionalidad de una época e percibir que en ella no hay nada inaugural,
solamente nuevos arreglos y desplazamientos, pero que producen, sin duda, efectos en los/de
sujetos.

Palabras clave: infancia; gobierno; riesgo; felicidad; memoria.

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flávia schilling; patrícia helena ferreira

FIGURAS DA INFÂNCIA: INSCRIÇÕES, CIRCUNSCRIÇÕES E INCÊNDIOS

Ralph (com Simon):


Você não está vendo a retranca dele...
A gente chama isso de problema de visão periférica
(MOUAWAD, 2013, p. 35)

“Incêndios”, assevera Wadji Mouawad, retoma a reflexão da questão da


origem, iniciada anteriormente com a escrita e a encenação de outra peça teatral de
sua autoria, “Litoral” (MOUAWAD, 1999). Tal problemática, ainda segundo
Mouawad, pode, conforme a perspectiva tomada, ter vários inícios, inícios esses que
acabam por se confluir nas encruzilhadas (i)lógicas das histórias que ali são cerzidas.
Histórias que se iniciam em infâncias diversas, cortadas pela violência, pela dor, pela
luta, pela resistência e pelos deslocamentos que tendem a contrariar a previsibilidade
e a linearidade dos fatos.
As angulares formadas por esses encontros e deslocamentos geram naqueles
que se deixam tombar pela sua escrita, um efeito de “chamuscamento” provocado
por um fogo que arde à brasa pequena, contínuo e poderoso, sem precisar fazer
grandes alardes. Contudo, o efeito que se produz é o de ressecamento e avaria,
sufocamento a céu aberto.
A “questão da origem” poderia também nos remeter a ideia do trágico e de
suas raízes na democracia ateniense, dos conflitos que traduzem aspectos da
experiência humana que marcam uma etapa da formação do homem interior, do
homem como sujeito responsável (VERNANT, 2011). A entrada no campo da
dramaturgia serviu-nos, porém, como pista metodológica para apurarmos a
possibilidade de adentrarmos a uma análise possível, um trampolim para
deslocarmo-nos do texto a partir dos impactos que ele mesmo produziu.
Inspirando-nos no conceito de campo de visão (LAZZARATTO, 2012),
técnica da dramaturgia em que os deslocamentos são gerados a partir de uma
movimentação feita por outro ator que estiver ou entrar em seu campo de visão, à
moda de improvisação de um texto fixo, voltaremos nossa atenção ao que nos afetou
como inscrição das figuras de infância em “Incêndios”.

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figuras da infância: inscrições, circunscrições e incêndios

A partir (e a despeito) das marcações sobre a infância presentes e ausentes


no texto procuramos traçar uma linha de análise. Ancorados, ainda, na ideia de visão
periférica, capacidade do indivíduo enxergar pontos ao redor de seu campo visual –
visão pouco rica em detalhes, quase esfumaçada, mas fundamental na captura dos
3
movimentos, intentamos, à moda de Jeanne35, mergulhar longe de uma geometria
precisa que estrutura (ou objetiva a estruturar) a vida na contemporaneidade: o
duplo infância-felicidade, na tentativa de captarmos funcionamentos e
deslocamentos das inscrições da infância, em especial a desenhada com o advento da
Modernidade.
Para tal, nosso campo de visão, também afetado pelo seu avesso, que
podemos supor está dado pelo discurso do risco, procurará focar algumas questões
presentes no que chamamos de enxurrada discursiva acerca do infantil, em especial,
o apaziguamento da memória, da dor, da luta, da resistência, do acontecimento,
enfim.
No entendimento de que ocupamos, todos, um lugar na trama que
emoldurou o sujeito moderno e entendendo que não há como deixarmos o jogo, pois
dele fazemos parte e somos nele constituídos, quiçá nossa possibilidade seja a de
criar um ponto de vista tal qual um belvedere, uma “varanda sobre o mundo”, diria
Jorge Ramos do Ó, “e o que desse plano distanciado alcançará só pode corresponder
ao que os instrumentos teóricos que ele próprio maneja lhe permitem descortinar”
(2003, p. 5). Desse lugar, mirarmos alguns pontos, aproximarmo-nos de alguns mais
específicos, para talvez tentarmos captar, na angular formada, a racionalidade
vigente de uma época e ainda perceber que nela, supostamente, não há nada de
inaugural, somente rearranjos e deslocamentos, mas que produzem, efetivamente,
efeitos nos/de sujeitos, ou como nos diria Michel Foucault (2008, p. 262), que “há
‘algo completamente diferente’: não absolutamente seu segredo essencial e sem data,
mas o segredo que elas são sem essência ou que sua essência foi construída peça por
peça a partir de figuras que lhe eram estranhas”.

3 Uma das personagens centrais da peça.

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flávia schilling; patrícia helena ferreira

Nesta perspectiva, figuras são formadas. Há a possibilidade de se pensar em


figuras que começam a aparecer no cenário, que começam a ser desenhadas, e que de
repente parecem existir com vida própria nas instituições. Tão estranhas e, de súbito,
tão naturais. Segundo a coletânea Figuras de Foucault (RAGO; VEIGA-NETO, 2006),
uma figura pode ser considerada:
[...] forma exterior, o entorno externo de um corpo, configuração;
conjunto dos traços gráficos que reproduzem alguém ou algo (real ou
imaginário); a representação gráfica, não necessariamente proporcional
ou fiel, de alguém ou de algo; qualquer representação visual (esculpida,
pintada, gravada, etc.) de uma forma inspirada na realidade ou na
imaginação; [...] imagem sem nitidez, forma apenas vislumbrada,
entrevista, vulto; representação simbólica de algo; imagem que remete a
alguma coisa, símbolo, emblema, alegoria; personagem ou personalidade
de importância; ator, intérprete, comediante que, em uma peça,
representa um ou mais personagens; diabo, demônio... (RAGO; VEIGA-
NETO, 2006, contracapa).
Há melhor definição do que é uma pesquisa, de seus encontros e intuições,
da captura sempre incompleta das figuras, vultos, imagens, personagens que nos
instigam? Deste olhar periférico, que vê vultos, que de repente percebe personagens,
diabos e demônios que não sabíamos que lá estavam e que nos informam sobre como
nos tornamos, ao final, o que somos?

Um primeiro olhar sobre a figura infantil: a indicação da proteção e o império psi

Não estamos sem recursos, as palavras são horríveis.


É preciso ficar lúcido. Enxergar.
Fazer como os antigos:
tentar ler presságios no voo dos pássaros
(MOUAWAD, 2013, p. 80)

Os discursos sobre a infância, na atualidade, emolduram um brinde a um


olhar cada vez mais pastoral e atento sobre as crianças e a infância (FERREIRA, 2013).
Disparam a nossa volta enunciados que anunciam a criança como o futuro da nação,
que enaltecem a inocência da infância, que atrelam a felicidade da infância à
existência de pais amorosos e dedicados, que narram as crianças como sementes para
a paz e a esperança.
Embora discursada como positividade e possibilidade, a infância também
transita por domínios da incerteza e do imprevisível, quando os encontros de

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figuras da infância: inscrições, circunscrições e incêndios

angulares, por muitas vezes, dão a ver situações de violência e expropriação de


direitos. No caso de Nawal, seu próprio encontro com a maternidade deu-se na
circunscrição da própria infância e o desenrolar da sua história teve desdobramentos
outros daqueles esperados para uma vida feliz. “Vai nua, com teu ventre e a vida que
ele encerra. Ou então fica e ajoelha, Nawal, ajoelha” (MOUAWAD, 2013, p. 44). A
escolha que daí parte transtorna todos os caminhos previsíveis de uma história
considerada como feliz. Uma faca plantada no pescoço.
Como analisa Dora Lilia Marín-Díaz (2010), muitos sentimentos
contraditórios acerca da infância povoam o imaginário dos cidadãos nas sociedades
contemporâneas. Tais sentimentos configuram-se em torno de quatro eixos sobre os
quais se concentram os debates mais recentes a propósito da infância:
a criminalidade – entre as crianças em perigo e as crianças perigosas; a
sexualidade – entre o abuso sexual de menores e a erotização dos corpos
infantis; o trabalho – entre o trabalho infantil e o direito e a necessidade
de trabalho de algumas crianças; e a educação – entre os direitos e os
deveres educativos das crianças (MARÍN-DÍAZ, 2010, p. 205).

Ao redor desses eixos, continua a autora, questões morais, interesses


políticos e econômicos entrecruzam-se, com objetivo de manter, transformar ou
controlar o que são e o que podem ser futuramente. Um campo discursivo é, então,
configurado “por e através de uma série complexa de relações e interações entre
discursos provenientes de sistemas e ordens diferentes” (MARÍN-DÍAZ, 2010, p. 205).
Os discursos da psicologia, medicina, pedagogia e do direito, agregam-se aos
discursos e práticas da cultura popular, da mídia, formando um conjunto de vozes,
práticas e saberes acerca do infantil.
A conclamação de um lugar especial para a infância, espaço de intervenção
das políticas públicas sociais, principalmente na área da saúde e educação, tem
chamado a atenção de estudiosos de diferentes áreas da ciência, principalmente a
partir do início do século XX. Tais estudos, de ampla magnitude, têm inventariado,
pesquisado, medido e calculado características físicas e psicológicas dessa fase do
desenvolvimento humano, como também estudado, à luz das pesquisas anteriores,
as condições (im)próprias da sua vida, criando padrões de aceitabilidade para o que
se chama de desenvolvimento normal. Por fim, em nome deste último, têm oferecido

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flávia schilling; patrícia helena ferreira

fórmulas de atuação que vão da esfera estatal à privada, no sentido de promoção de


uma melhor vida para o infante, e como consequência, para o adulto.
Trata-se, por um lado, de um empenho em proteger as crianças. As
normativas que despontaram a partir do último quartel do século XX cada vez mais
dispõem a infância como foco de atenção: são tratados internacionais, constituições,
diretrizes e pareceres na área da educação, saúde, assistência social - um olhar atento
sobre essa população, protegida agora pelo direito. Vê-se a diligência de
organizações multilaterais que atuam conjuntamente denunciando, cobrando e
incentivando práticas junto aos infantis, de modo a colocá-los a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, tal como a
carta magna brasileira de 1988 apregoa. No documento “Um mundo para as
crianças”, datado de 2002, representantes de governos dos cinco continentes
convocam todos os membros da sociedade para uma aliança mundial, firmando
compromissos com os objetivos de: pautar as crianças em primeiro lugar; erradicar a
pobreza – investir na infância; não abandonar nenhuma criança; cuidar de cada
criança; educar cada criança; proteger as crianças da violência e da exploração;
proteger as crianças da guerra; ouvir as crianças e assegurar sua
participação/proteger a Terra para as crianças; enfim, construir “um mundo para as
crianças” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2002, p. 70).
Na configuração hodierna, o investimento na infância representa, ao mesmo
tempo, uma resposta ao presente e um lançamento das bases para um futuro
planificado, e por sua vez, cada vez mais controlado e circunscrito. Variáveis têm que
ser diuturnamente acompanhadas, com objetivo de minorar os desvios e favorecer o
desenvolvimento de fatores de resiliência, autoestima, autoproteção e independência
econômica. O governo da infância tem sido então, tomado como problemática
mundial e, ao mesmo tempo, como possibilidade de intervenção certeira das políticas
sociais, dado que as crianças pequenas são consideradas “maleáveis” e suscetíveis à
influência externa. Tal discursividade, segundo o referencial analítico aqui adotado,
opera a partir da noção de risco.

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figuras da infância: inscrições, circunscrições e incêndios

Infantes: figuras do risco

Com certeza, com certeza, com certeza,


tem algumas vezes, assim, na vida,
em que é preciso agir.
(MOUAWAD, 2013, p. 80)

Uma vida que é gerada. “Meu ventre está cheio de ti. É uma vertigem, não
é? É magnífico e horrível, não é? É um abismo e é como a liberdade das aves
selvagens, não é?” (MOUAWAD, 2013, p. 41). Vida que traz para os que a
produziram um misto de espanto e soberania, medo e ousadia. A permissão ou a
proibição para sua continuidade não dependem somente dos que a provocaram, mas
de uma complexa teia de relações, interdições, morais e acasos que se constroem a
partir dos encontros. Se tais encontros partem, ao nosso entender, das armadilhas do
existir e da imanência das linhas de força que atuam sobre o vivido, qual vontade de
poder acaba por sucumbi-los de tal forma a esquadrinhá-los, alinhá-los, produzi-los
uniformes?
Entendemos que a figura de infância produzida ao longo dos séculos, em
especial com o advento da Modernidade, se autoperfaz no sentido de alimentar a
ideia de fragilidade e perigo, porvir e controle. É preciso cercá-la para que o informe
tome corpo. É necessário alertá-la dos perigos do existir. Governo da bios.
A estratégia preconizada nas atuais políticas para a primeira infância baseia-
se na noção de risco social, ou seja, o oferecimento de um acompanhamento e
cuidado “antecipados” que poderá eliminar fatores que contribuem para o aumento
da pobreza, da fome e da mortalidade infantil, controlando assim o campo
probabilístico da gestão da população. Tal discurso encontra-se vinculado fortemente
ao equacionamento de uma política econômica autorreguladora, ao fomento
tecnológico neoliberal de governo.
A noção de risco foi operada por diversas ciências, tais como a sociologia, a
psicologia e é força motriz da estatística social, quando relacionada à gestão de
populações, fazendo parte de cálculos de organização e intervenção social.

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flávia schilling; patrícia helena ferreira

O risco é “fabricado” a partir da produção de marcadores da normalidade,


os quais se relacionam mais a questões individuais do que sociais, numa lógica de
responsabilização do sujeito que se encontra na condição de risco. Segundo Simone
Hünning (2007), podemos pensar num duplo movimento quando pensamos no risco,
quando atrelado à infância ou adolescência: o risco para a criança/adolescente, ou seja,
dado a partir da falta de condições para seu desenvolvimento pleno (nesse caso
estaríamos falando das condições mínimas de cidadania – moradia, alimentação,
cuidados, educação, saúde etc.) e o risco representado pela criança/adolescente quando os
mesmos afrontam modos de vida já estabelecidos, tais como os que desde pequenos
moram nas ruas, frequentam gangues, apresentam comportamentos violentos. Tal
diferenciação, operando numa lógica de inclusão/exclusão, não tem contornos
nítidos: a vulnerabilidade e a ameaça aproximam-se na medida em que as diferenças
são tomadas, a priori, como perigosas.
A partir dessa lógica, os riscos que a infância está submetida (ou representa)
encontram-se no centro das discussões e disputas no plano ideológico, das políticas
sociais e das iniciativas práticas. Mais do que preocupação humanitária com fatias
populacionais em situação de pobreza, as práticas que se dispõem a controlar e/ou
precaver ameaças objetivas constituem uma estratégia de governo.
Para Ewald (1991) nada é em si mesmo um risco, mas os eventos podem
suscitar a possibilidade de riscos. As estratégias relativas à segurança fazem parte de
uma racionalidade que procura rearranjar os elementos da realidade de modo a
cercar os perigos possíveis. Ousaríamos dizer que os riscos estão relacionados à
possibilidade de cerceamento de uma “vida normal”, a partir de parâmetros
construídos contingencialmente. Estar “em risco” ou constituir-se “como um risco”
dependerá do lugar ocupado e das condições a que está submetido certo extrato da
população. A infância é, atualmente, o segmento da população mais apontado como
potencialmente em risco e que possibilita a fabricação de novos riscos.
Diferentemente da noção de perigo (a qual está relacionada à
imprevisibilidade), o risco tem um componente probabilístico e caracteriza-se por
uma forma de se relacionar com o futuro. A noção de risco visa à modificação do

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figuras da infância: inscrições, circunscrições e incêndios

próprio presente, mediante a antecipação do futuro, que passa a reger a relação com
o tempo atual (HILLESHEIM; CRUZ, 2008). Mediante o cálculo das probabilidades e
do controle de todas as variáveis da vida, pode-se prever (e prevenir) o que irá
acontecer. “Nesta perspectiva, o futuro é um tempo projetado no presente”
(HILLESHEIM; CRUZ, 2008, p.197).
Robert Castel (2004) analisa que, paradoxalmente, as sociedades modernas,
as quais são equipadas com um número infindável de bens materiais e de proteções,
são aquelas onde o sentimento de insegurança atravessa todos os estratos sociais,
levando-o a formular a hipótese que a insegurança moderna não se caracterizaria
pela ausência de proteção, mas sim por uma busca frenética e incessante de
segurança, a qual, por sua vez, retroalimentaria o sentimento constante de
insegurança. Estar protegido seria então, estar armazenado. À medida que a
sociedade alcança novas metas no que diz respeito à gestão da segurança, outras
novas metas surgem, dando lugar a novos riscos até então inexistentes. Instaura-se,
pois um constante mal-estar com relação ao porvir:
La imprevisibilidad de la mayor parte de esos “nuevos riesgos”, la
gravedad y el carácter irreversible de sus consecuencias, hacen que la
mejor prevención consista a menudo en antecipar lo peor y en tomar
medidas para evitar que eso advenga, aun cuando sea muy aletorio.
(CASTEL, 2004, p. 78)

A noção de risco alimentaria assim uma demanda desesperada por


segurança, dissolvendo a possibilidade de estar protegido. Na trama social a
associação de proteções, vinculadas aos direitos sociais, converte o indivíduo em foco
das atenções de instituições diversas, criadas para garantir tal asseguramento. Todo
esse debate é fundamental para compreensão das formas de governo
contemporâneas, sendo a gestão da segurança e do risco consideradas como
operadoras das políticas públicas.
Segundo Cesar Candiotto (2011), a atuação recorrente dos dispositivos de
segurança nos estados contemporâneos, mediante aparelhos encarregados da
segurança pública e políticas de seguridade social, constitui uma sedimentação do
biopoder na forma de biopolítica. O Estado de Bem-Estar social, em sua

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flávia schilling; patrícia helena ferreira

racionalidade, promove, por meio de uma reconfiguração da biopolítica436, “um novo


pacto de segurança entre as instituições políticas e os cidadãos. A partir desse pacto,
as instituições reguladas pelo Estado tentam garantir que a vida está protegida
diante das mais diversas incertezas, acidentes, prejuízos e riscos” (CANDIOTTO,
2011, p. 91). Como exemplo situa-se a seguridade social nas áreas da saúde, economia
e assistência social.
Quando esse pacto é rompido por qualquer um dos lados (cidadãos ou
Estado) são acionados os dispositivos de segurança. No caso do rompimento pelos
cidadãos, o Estado extrapola os limites jurídicos e intervém a partir de mecanismos
extralegais, eliminando os potencialmente perigosos, justificando sua atuação em
nome da vida da população. No caso do Estado romper o pacto, assevera Candiotto
(2011), apesar da desconfiança da população em relação à garantia da vida por parte
do Estado, tem-se a sensação de que a vida continua a ser regulada pelas instituições
políticas. Isso se configura como uma regulação própria da biopolítica, pois, apesar
de sob o ponto de vista jurídico uma das funções do Estado é a manutenção ou a
restituição da ordem, “da perspectiva da racionalidade governamental, esses Estados
atuam não para preservar o pacto e proteger as garantias individuais, mas para
fortalecer a administração da desordem” (CANDIOTO, 2011, p.93), reforçando a
necessidade de reconfiguração de sua soberania e de seu poder de matar e deixar
morrer.
Nessa produção governamentalizadora, conduzir uma população não
requer unicamente a extração e a formação de saberes sobre a mesma; há necessidade

4 Foucault (1997, p.89) descreve sumariamente biopolítica como “a maneira pela qual se tentou,
desde o século XVIII, racionalizar os problemas propostos à prática governamental, pelos
fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos constituídos em população: saúde, higiene,
natalidades, raças...”. Esse poder sobre a vida desenvolveu-se em dois polos interligados: o
primeiro polo centrou-se no corpo como máquina, no seu adestramento, na ampliação de suas
aptidões, na extorsão de suas forças e no crescimento de sua utilidade e docilidade – a
disciplina. O outro, centrou-se no corpo-espécie e seus processos biológicos: proliferação,
nascimento, mortalidade – processos feitos por meio de uma série de intervenções e controles
reguladores da população. Trata-se de “um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras
cabeças, se não infinito pelo menos necessariamente numerável. A biopolítica lida com a
população como problema político, como problema a um só tempo científico e político, como
problema biológico e problema de poder, acho que aparece nesse momento” (FOUCAULT,
2005, p.292-293).

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figuras da infância: inscrições, circunscrições e incêndios

também de se produzirem registros para quantificar os seus aspectos mais


característicos e propor intervenções, com base nos dados coletados. A utilização da
estatística como conhecimento das forças e dos recursos que caracterizam o governo
possibilita a economia de poder e a utilização de estratégias de ação que guiarão as
políticas de intervenção.
As estatísticas formam uma lógica prática de causação, por meio da qual
as características salientes do desenvolvimento e da natureza progressiva
dos sistemas educacionais são constituídas. Ao mesmo tempo, as
categorias e ordens de grandeza não são meros números que relatam a
condição particular de uma nação. Os números contêm o acaso por meio
das tecnologias das estatísticas. Isto é, fenômenos disparatados são
ordenados e tornados comensurados para a administração social.
Descortina-se uma uniformidade a respeito dos objetos que são contados
e ordenados [...]. O que está em fluxo se torna estabilizado de modo a
parecer apenas como um problema técnico restrito a um campo de
objetividade (POPKEWITZ; LINDBLAD, 2001, p. 120).

Tendo como superfície de aplicação o corpo-espécie, a biopolítica intervém e


controla práticas cujos focos são as taxas de natalidade, mortalidade, a saúde pública
e a segurança, de modo a atingir a população tanto em termos biológicos quanto de
poder. “Olhar e decifrar. Analisar e prescrever. Controlar e prever. Diagnosticar e
predizer. Verbos que supõem atos, configurando, igualmente, uma gramática de
práticas correlatas a uma ciência ou e a uma organização” (GONDRA, 2003, p. 27). O
interesse pela vida e as formas de proporcionar sua segurança tornam-se elementos
centrais para a gestão econômica. “A segurança constitui um tipo de racionalidade –
formalizada pelo cálculo de probabilidades que coloca a intimidade das pessoas
numa zona de governamento” (BUJES, 2011, p. 169).
Como uma tecnologia de governo, o saber estatístico tem criado
regularidades as quais têm sido postas nas populações, tornando-se necessárias e
pertinentes à sua gestão, objetivando administrar e otimizar as condutas individuais
e coletivas, desde o nascimento. Quanto mais informações são produzidas, mais
cálculos e probabilidades são apresentados, maiores são o escrutínio e a
complexificação da vida. A informação produz a (a)normalização, regra as condutas,
produz os bem sucedidos e os desviantes.
De acordo com Popkewitz e Lindblad (2001) a construção de classes de
pessoas, a sua classificação produz, por si própria, biografias para o indivíduo, o qual
é definido “de maneira normativa em relação a agregados estatísticos a partir dos

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flávia schilling; patrícia helena ferreira

quais as características específicas podem ser atribuídas a essa pessoa e segundo as


quais seu crescimento e desenvolvimento podem ser monitorados e
supervisionados” (2001, p. 131). A diferença converte-se em risco:
Estar fora (do prescrito) e ao mesmo tempo dentro (presença que se
impõe em nosso convívio cotidiano), distante (do que se deseja) e tão
incomodamente próximo (de nós - os adequados) constitui o que chamo
de risco-diferença. [...] Assume, portanto, novos sentidos que se
produzem pelo cruzamento de uma série de discursos contemporâneos
que falam a “verdade” acerca da infância, da adolescência, da
organização familiar, da educação, do trabalho (HÜNNING, 2007, p. 150,
grifos da autora)

O risco-diferença figura nos mais diferentes espaços: na pobreza, no ócio,


no meio em que se vive e frequenta, nos fazeres e nos não-fazeres, nos saberes e não-
saberes, nos modos de querer e pensar, nas famílias e na infância, conjugada a um
ou mais fatores anteriores. Com os diversos investimentos sobre a população está
cada vez mais difícil apontar os excluídos, uma vez que, de certa forma, o Estado
abarca, por meio das inúmeras políticas apontadas, a população como um todo,
operando numa lógica de cidadanização. Conforme Maura Corcini Lopes (2011,
p.286) a diminuição dos “excluídos” faz, no entanto, aparecer outras categorias, os
desfiliados, os reclusos, os em situação de vulnerabilidade social.
A norma, ao operar como um princípio de comparabilidade, age no sentido
de incluir a todos, por meio da homogeneização das pessoas, quanto pela
“banalização das diferenças identitárias que caracterizam os indivíduos dentro das
suas comunidades” (LOPES, 2011 p. 288). Nas operações de normalização investe-se
na inclusão dos desviantes à área da normalidade (cada vez mais plural e alargada),
minimizando certos traços e dificuldades, por meio de criação de políticas de
assistência e de inclusão social e educacional. É comum depararmo-nos com políticas
que enaltecem a diversidade, mas ao mesmo tempo a essencialidade da infância,
numa forma de tornar rotineira as diferenças a que as crianças estão submetidas.
Tal racionalidade de governo se posta de forma a dirigir as intervenções no
que diz respeito ao governo da população infantil. Na gestão da vida das crianças os
riscos podem estar localizados em pontos diferentes, às vezes até considerados como
incongruentes, tais como na saúde, na estrutura e renda familiar, no grau de
escolarização dos pais, na frequência à escola, dentre outros. Técnicas de segurança

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figuras da infância: inscrições, circunscrições e incêndios

são, então, recursos para a contenção dos riscos fabricados. Tais dispositivos acabam
por compor o sujeito infantil moral, num agenciamento das suas vontades e
governamento das suas condutas.
A inclusão da população em programas de assistência e educação visa
assegurar as condições básicas de sobrevivência dos indivíduos, ao mesmo tempo,
incluí-las no jogo do mercado “gerenciando e minimizando os riscos que aqueles
cobertos por tais políticas representam para si mesmos, para os outros e para o
Estado” (LOPES, 2011, p. 293). Antecipação, no presente, dos prejuízos futuros
causados pelas populações definidas como potencialmente perigosas. Crianças em
perigo/perigosas: figuras de controle. A narrativa do cuidado transformada agora
pela do risco, institui de forma diferenciada o discurso do controle. Os meandros do
existir devem ser canalizados de forma a produzir cada vez mais caminhos já
desenhados e escrutinados. Felicidade é norma.

Crianças felizes: cuidado, resiliência e (auto)conhecimento

Aprende a ler, a escrever,


a contar, a falar
(...) aprende a pensar.
(MOUAWAD, 2013, p. 48)

Em seu leito de morte Nazira ordena à Nawal que lute contra a miséria a
que seu povo está inserido por meio do que acredita ser o caminho para uma vida
outra: aprender a ler, a escrever, a contar, a pensar. Esse foi o caminho trilhado por
Nawal a partir de então e o nome de sua avó em seu túmulo foi a primeira inscrição
de saída desse mundo cercado pela violência e pela pobreza. Guerrear pela/na
palavra seria a chave para a felicidade.
Hoje, o imperativo para a felicidade não é apenas esse. É fundamental
aprender a expressar-se, a narrar-se e, com certeza, corrigir-se. Uma espécie de
saturação intimizante da vida do infantil posta-se como necessária. Ao adulto caberia
a responsabilidade de cada vez mais conhecê-lo, cercá-lo, protegê-lo até de si mesmo,
de suas possíveis frustrações, tristezas, humores. Nem muito alegre (pode ser
hiperativo), nem muito triste ou quieto (pode ser depressivo). É necessário ainda
conhecer suas preferências, suas opiniões e alegrias, enfim, fazê-lo reinar em sua

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infante soberania. Entendamos, porém, que esse reinado é somente uma ponta de
uma racionalidade vigente, onde todos (nós) somos governados, sem exceção.
Trata-se, entendemos, da celebração de uma política de governo da
subjetividade, a qual engloba os âmbitos público e privado da vida e incorpora as
questões subjetivas às técnicas governamentais, de modo a envolvê-las na relação
que cada indivíduo tem consigo mesmo. As linhas de força que atuam nessa política
colaboram para reforçar a ideia do cidadão “em busca de”, ser que mira à felicidade e
que, para alcançá-la, efetua sobre si operações de administração sobre seu corpo e
sua alma.
A busca da felicidade é apontada, além de um direito a ser perseguido
individualmente, um dever dos governos, felicidade esta definida, por exemplo,
como bem-estar psicológico, satisfação pessoal, saúde, gestão do tempo, padrão de
vida, educação, cultura, governança etc.
O que antes era um direito negativo – os aparelhos de Estado não
deveriam obstar o exercício do direito de cada um perseguir a própria
felicidade –, tornou-se, a partir da implantação do modelo de Estado de
bem-estar social (Welfare State), uma incumbência das políticas
governamentais. Propiciar e chancelar o bem-estar psicológico, a
sensação de satisfação e conforto em relação à própria vida, instituídos
como tarefa da política, não deixa de ser uma das mais atuais estratégias
de subjetivação-dessubjetivação. (CORRÊA, 2009, n. p.)

A partir da premissa de que a felicidade é um direito a ser conquistado e de


que a criança, na condição de cidadão, tem que ser acolhida em suas necessidades
básicas, seus desejos e sentimentos, faz-se essa conquista (de uma vida feliz) uma
obrigação do Estado, da sociedade e da família. Seja no nível pessoal, seja na
coletividade e nos governos, o tema da felicidade é recorrente, ensejando um tipo de
ascese no indivíduo que se subjetiva como cidadão potencialmente feliz, bem como
promovendo intervenções nas ações estatais que possibilitem a “procura” da
felicidade. A despeito de existirem atualmente inúmeros índices sociais para medir a
felicidade de uma nação, a cada dia surgem novos estudos que procuram
pormenorizar as condições/requisitos que entram na “conta da felicidade”, além de
dar uma característica mais peculiar, dependendo da especificidade de cada país.
Tal modo de ordenamento do mundo tem um passado em certa parte
recente. Com o advento da Modernidade, a estatização de diferenciados setores da

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figuras da infância: inscrições, circunscrições e incêndios

vida foi alimentada sob uma ideia de felicidade diferenciada das demais até então. Se
nos voltarmos ao século XVIII, encontraremos em Jeremy Bentham, filósofo e jurista
da época, uma noção que nos é cara até hoje. Para o pensador:
a maneira como qualquer pessoa devia buscar a felicidade era um
assunto a ser resolvido pelo indivíduo em questão. Mesmo assim, em
primeiro lugar, alguém tinha de assegurar que essa busca seria possível –
e isso era o trabalho do governo: criar condições que permitissem que
todos nós buscássemos a felicidade da maneira que achássemos melhor.
(SCHOCH, 2011, p. 38)

Para o que seria uma efetiva ação do governo, Jeremy Bentham (1979) criou
o cálculo felicífico, ou a equação da felicidade, a qual pode ser resumida na equação
felicidade é igual a prazer menos dor. Tal acepção denota uma busca racional da
felicidade e uma ação econômica do Estado, no sentido de garantir a liberdade
(salvaguardando a vida e a propriedade) do indivíduo para a sua satisfação pessoal.
A liberdade, nomeada por Bentham como segurança, não garantiria sozinha a
felicidade, pois caberia, em última instância, ao indivíduo o “querer” ser feliz. O
Estado só agiria em casos de (im)probidade, ou seja, quando a busca da felicidade
individual obstruísse a felicidade de outra pessoa, sendo então justificadas ações
coercitivas e proibitivas.
Michel Foucault destaca, em seu texto Omnes et Singulatim: uma crítica da
razão política, que a arte de governar de Estado, a qual floresceu a partir séculos XVI e
XVII, no objetivo de aumentar sua potência, utilizou-se de técnicas de governo
próprias, que apelavam para a sua intervenção. A polícia, uma de tais técnicas,
deveria velar pela preservação da vida. “Em suma, a vida é objeto da polícia: o
indispensável, o útil e o supérfluo. Cabe à polícia permitir aos homens sobreviver,
viver e fazer melhor ainda” (FOUCAULT, 2006, p. 381). Este melhor estaria
relacionado “à maior felicidade de qual ele (o homem) possa gozar dessa vida” (op.
cit.).
Nesse sentido, poderíamos dizer que, atualmente, convivemos com um
“estado de polícia” permanente. Instigados a procurarmos a felicidade em todos os
locais que habitamos, somos relembrados cotidianamente e, até mesmo,
ininterruptamente, acerca do que seria a nossa mais cara missão: construirmos um
mundo feliz (para cada um e para todos), tornando-nos a nossa própria polícia. O

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Estado age por meio de políticas de intervenção diversas (na segurança, na


moralidade, na saúde, na educação, na economia, na assistência social etc.), algumas
dessas pautadas principalmente em ações de orientação e formação, porém a
responsabilização pela conquista (ou não) da felicidade, apesar de tutelada pelo
governo, é de caráter subjetivo.
Um dos ingredientes da pílula da felicidade para as crianças é, segundo tais
referenciais, o autoconhecimento, o qual passa pela aprendizagem da percepção que
as crianças têm acerca de si mesmas, suas intenções, pensamentos e sentimentos que
as torna aprendizes confiantes, os quais desenvolvem sua autoestima e um sentido
de si (SÃO PAULO, SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO, 2007). O
escrutínio dessa racionalidade nos remete à temática do cuidar, entendido não só
como ato ligado à promoção da saúde e de hábitos higiênicos, mas como uma teia de
ações que promovem, conforme propalado, o bem-estar físico, mental e psicológico.
Documentos institucionais reverberam essa lógica de forma muito explícita:
Compreende-se hoje que cuidar da criança é atender suas necessidades
físicas oferecendo-lhe condições de se sentir confortável em relação ao
sono, à fome, à sede, à higiene, à dor, etc. Mas não apenas isto. Cuidar
inclui acolher, garantir a segurança e alimentar a curiosidade e
expressividade infantis. Nesse sentido, cuidar é educar, dar condições
para as crianças explorarem o ambiente e construírem sentidos pessoais,
à medida que vão se constituindo como sujeitos e se apropriando de
modo único das formas culturais de agir, sentir e pensar. Inclui ter
sensibilidade e delicadeza, sempre que necessário, além de cuidados
especiais conforme as necessidades de cada criança. (SÃO PAULO,
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO, 2007, p. 19).

Máquinas de “fazer falar”, de autoexpressão, os documentos que delineiam


as políticas públicas para educação, saúde e assistência social coadunam os objetivos
delineados para a infância e sua educação com sugestões e relatos de práticas
exitosas com as crianças. Estas, “falando livremente, entre uma brincadeira e outra,
entre um desenho e uma colagem, [...] contam suas histórias e dizem quem são”
(REDE NACIONAL PRIMEIRA INFÂNCIA, 2011, p.7): “Família é estar junto”;
“Falta paz e alegria em casa, todo dia sai briga”; “Quando eu brinco fico feliz”; “Eu
sei que pode escrever o que a gente pensa. Pode, não é?”; “Ter uma carteira, ter
dinheiro, isso eu quero quando crescer”; “Quem tem um amigo é muito feliz” (op.
cit.).

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figuras da infância: inscrições, circunscrições e incêndios

A inserção, nos discursos proliferados em prol de um investimento cada vez


mais antecipado na infância, da importância da educação da infância para o
desenvolvimento de, (UNICEF, 2008), opera numa lógica governamentalizadora de
cunho neoliberal. São termos de inspiração psi que se coadunam com os interesses
mercadológicos de produtividade e elevação do poder de compra.
Operando um deslocamento da lógica liberal, o neoliberalismo produz
mecanismos de incitação à liberdade, sob a forma de competição (VEIGA-NETO,
2011). Passa-se então de uma sociedade de produtores para uma sociedade de
consumidores, onde a liberdade é produzida e consumida ao mesmo tempo. Mais do
que “fazer uso de”, consumir representa pertencer a um novo mundo, um mundo
criativo, o qual exige dos indivíduos que nele habitam a capacidade de gerir sua
própria vida com seus (in)fortúnios. Destaque há de ser dado ao conceito de
resiliência, o qual ultimamente tem sido validado por todos os campos do saber, em
especial a educação e a psicologia, respingando na configuração das políticas
dirigidas às crianças e jovens.
A resiliência, capacidade de o indivíduo sobreviver às adversidades de toda
ordem, convoca a todos ao esforço pelo crescimento pessoal, em uma lógica
fomentadora do mérito. Felicidade e sucesso são metas a serem perseguidas. Opera-
se desde a tenra idade, numa lógica de produção de sujeitos autogovernáveis, que se
auto regulam e que são incitados diuturnamente a fazer escolhas por meio da
liberdade que lhes foi conferida e conquistada. Crianças e jovens resilientes, “aqueles
que tudo suportam, toleram e acolhem” (OLIVEIRA, 2011, p. 92), são cidadãos
apaziguados:
uma educação para a resiliência [...], valorizada na formação, produção e
restauração da melhoria de si e da melhoria dos outros, pelo
assemelhamento resiliente do mesmo para chegar, por outras vias, ao
vínculo entre tolerância e segurança. Semelhança dissolvida e ao mesmo
tempo renovada nas medições e projeções de cálculos probabilísticos
governáveis, voltados ao governo de todos por cada um (portanto,
democrático); medianos e individualizados (derivados de incontáveis
nivelamentos pastorais); de suportar um impacto e refazer o estado
original, não como aquele que era, mas modulado por estados
conformados ao que pretende ser em condições de tolerância e, desta
maneira, pela capacidade de sustentar um determinado estado
governável e governado, pela vida tomada sob controle e gestão
resiliente (OLIVEIRA, 2011, p.97-98).

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flávia schilling; patrícia helena ferreira

A individualização da responsabilização torna-se uma tônica a ser


proclamada. O investimento cada vez mais precoce na criança e nas suas
competências pessoais, dentre as quais se destaca a autonomia e a criatividade,
coaduna-se com um apagamento de pontos de resistência, uma vez que é imputada
ao indivíduo uma ideia de conquista pelo mérito (SCHILLING, 2013, 2014).
Com fulcro nesse debate analítico, Jorge Larrosa (1994) traz à baila a questão
da dobradura reflexiva, a qual faz com que o sujeito, a modo de uma certa ascese,
constitua-se por meio do discurso da expressividade:
[...] não se trata do fato de que a pessoa aprende meios de expressão de si
mesma. O que ocorre, antes, é que, ao aprender o discurso legítimo e
suas regras em cada um dos casos, ao aprender a gramática para a auto-
expressão, constitui-se ao mesmo tempo o sujeito que fala e sua
experiência de si. Não se trata de que a experiência de si seja expressada
pelo meio da linguagem, mas, antes, de que o discurso mesmo é um
operador que constitui ou modifica tanto o sujeito quanto o objeto da
enunciação, neste caso, o que conta como experiência de si (LARROSA,
1994, p. 67-68).
A construção da felicidade do homem, desde a sua tenra idade, depende,
assim, de uma série de intervenções sobre si mesmo, reguladas por uma disposição
de técnicas, táticas e formas de governo: o Estado regulando as condições de vida do
cidadão, por meio de dispositivos de saber-poder, que esquadrinham suas condições
de existência mapeiam suas faltas e necessidades, incitam seus desejos, promovem e
controlam a manutenção da bios. O delicado jogo de fazer viver/deixar morrer prevê
cálculos atualizados diuturnamente, estratégias diferenciadas visando situações
diversas e um controle das disposições, em cada âmbito da sociedade. A criança não
escaparia desse refinamento de ações.

A infância e suas figuras: algumas questões finais


Buscamos, a partir desta breve exposição, dar a ver uma linha de análise que
se arregimentou em duas recorrências discursivas acerca das figuras da infância na
atualidade: a do risco e a da busca da felicidade. A narrativa de “Incêndios” nos
remete a dialogarmos intensamente com tais figuras. A história de Mouawad é tecida
pelo discurso da violência, da pobreza, da violação de direitos e, principalmente, da
memória como constituidora de um sujeito que se perfaz à medida que se conhece e
se descobre. A busca por um “eu” que se encontra e se desvenda é cerzida pelo

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figuras da infância: inscrições, circunscrições e incêndios

embate com a origem. Esta, acreditamos, é o fim condutor de uma história em que a
felicidade foi buscada no encontro. “Para além do silêncio. Tem a felicidade de estar
junto. Não há nada mais lindo que estar juntos” (MOUAWAD, 2013, p. 129).
As reiterações argumentativas dos discursos do risco e da felicidade estão
alicerçadas num projeto de manutenção da vida. Fazer viver, cada vez melhor, com
mais condições e por mais tempo, compensar as deficiências e propor práticas mais
(auto)reguladoras.
O discurso do risco é tensionado pelas linhas concorrentes da
vulnerabilidade da infância e da periculosidade que a mesma pode representar. Em
ambas vertentes, o que se propõe é a intervenção precoce na criança e em sua família,
por meio de ações na área da saúde, educação e assistência social. O duplo risco-
segurança torna-se modelo produtivo, o qual promove discursos nos meios de
comunicação de massa, cria políticas de saúde e educação e produz saberes “que
promovem e promovem-se na gerência sobre si e na responsabilidade pessoal e
culpabilização dos indivíduos pelos próprios sucessos e insucessos existenciais”
(CARVALHO, 2007, p.148). A oferta e a disponibilização de informações e
conhecimento sobre os indivíduos alimenta uma pedagogia do autodidatismo (op.
cit.), que conduz os sujeitos à busca de sua autorrealização. A sistemática de
antecipação do futuro prevê o surgimento de eventos indesejáveis, tais como
doenças, comportamentos desviantes e anormais, numa tônica de responsabilização
do indivíduo pelo seu (in)sucesso - a gerência da vida passando pelo próprio
indivíduo.
A busca da felicidade, trabalho a ser perseguido e efetivado por cada um,
como um dos deveres dos estados ocidentais listados desde a carta da independência
norte americana, remalha o discurso do risco e da criança como cidadã. Tudo o que
se projeta, faz-se em nome de uma felicidade, a qual se traveste em bem-estar, saúde,
independência econômica e, principalmente, normalidade. Os índices criados forjam
a participação da sociedade e asseguram o direito à opinião e ao livre arbítrio.
Uma nova relação se estabelece entre o poder e a vida configurando uma
invasão performática de âmbitos os quais achávamos impenetráveis, “os gens, o
corpo, a afetividade, o psiquismo, até a inteligência, a imaginação, a criatividade,

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flávia schilling; patrícia helena ferreira

tudo isso foi violado, invadido, colonizado [...]” (PELBART, 2009, n.p.). Utilizando-se
de mecanismos esparramados, polimorfos e rizomáticos537, o biopoder contemporâneo
age nas formas de sentir, pensar, amar e comportar-se. Intensificar e otimizar a vida,
a partir da cooptação dos desejos e necessidades.
Dir-nos-ia Agamben (2008), que de viventes passamos a sobreviventes, à
vida reduzida ao mínimo biológico. “Estamos todos reduzidos ao sobrevivencialismo
biológico, à mercê da gestão biopolítica, cultuando formas de vida de baixa
intensidade, subestimada à morna hipnose consumista, mesmo quando a anestesia
sensorial é travestida de hiperexcitação” (PELBART, 2009, n.p.). Assim, nos
voluntariamos a bioasceses onde o self almejado, na maioria das vezes, expressa uma
“vontade de uniformidade, de adaptação à norma e de constituição de modos de
existência conformistas e egoístas” (ORTEGA, 2003, p. 63).
A conquista da felicidade, ao lado da liberdade, constitui-se como um
parâmetro para as democracias-mercado. Tal como assevera PELBART (2000), o
consenso democrático transforma o moderno cidadão em homem médio, que pasta
entre serviços e mercadorias ofertadas. Consumir cada vez mais: mercadorias, ideias
sobre o mundo e sobre si mesmo. Esse apelo à busca incessante por uma completude
consubstancia-se numa política que valoriza cada vez mais o autoconhecimento e a
conquista da autonomia do indivíduo, como formas de expressão da cidadania.
Desse modo, as intervenções contínuas das ciências, especialmente a
psicologia e a pedagogia, no sentido de intensificarem as experiências em que o
sujeito é “levado” a encontrar-se consigo mesmo, com o objetivo de conhecer-se e

5 Na biologia, um rizoma é uma estrutura componente em algumas plantas cujos brotos podem
ramificar-se em qualquer ponto e transformar-se em um bulbo ou um tubérculo. Este rizoma
pode funcionar como raiz, talo ou ramo, independente de sua localização na planta. O rizoma
tem a capacidade de conectar um ponto a qualquer outro. Para Deleuze e Guattari (2009), esse
conceito pode ser ampliado filosoficamente indicando que não há um ponto de origem ou
princípio primordial que organiza todo o pensamento. O rizoma é “um sistema a-centrado não
hierárquico e não significante [...] unicamente definido por uma circulação de estados”
(DELEUZE; GUATTARI, 2009, p. 33). Tal conceito, articulado ao de biopoder, confere a este
último uma característica de rede de relações que se espalham pelo corpo-espécie. O biopoder
foi um dos elementos indispensáveis para o desenvolvimento do capitalismo, assegurando a
inserção dos corpos no aparato produtivo e da população nos processos econômicos. (CASTRO,
2009, p. 58).

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figuras da infância: inscrições, circunscrições e incêndios

construir sua autonomia, conduziriam, paradoxalmente à obediência ao outro,


representado aqui por uma lógica governamental racionalizadora das condutas
humanas. “Quanto mais eu me procuro, tanto mais obedeço ao outro” (GROS, 2008,
p. 137). Parece-nos que o infantil, ao tomar o lugar de “falante”, cidadão de direitos, e
por consequência um constante “vasculhador” de sua própria felicidade, deslocou-se
de uma zona da anormalidade para figurar no espaço da norma. E em tal
deslizamento, sob o diapasão da liberdade, é investido a aprender a governar-se,
para ser melhor governado.
Em que pese ser a tutela das novas gerações uma necessária incumbência
dos mais velhos, a crítica aos discursos sobre a infância, à inspiração da leitura de
“Incêndios” e da trajetória de Nawal, permite-nos recompor as lógicas que
constituem uma forma de circunscrever a existência, resultado que é do incessante
embate entre governo e liberdade: sua emergência e proveniência. Tal atitude
analítica impõe o desalojar do tranquilo, confortável e morno terreno da verdade as
práticas que a constituem.
Significa, pois, postar a própria verdade no sítio da produção, da
contingência e não da essência originária: não há descoberta da verdade da infância,
mas a produção de uma verdade; não há o modo de vida feliz, mas o investimento
em práticas que, pelo seu rebatimento e reiteração, produzem dados efeitos e
constrangimentos na forma da vida. Quais? O que está em questão nesses discursos,
nesses ordenamentos, não é o infantil, a criança, mas um modo de pensar, narrar-se e
narrar o outro, sentir, agir e investir a existência, o que nos alcança a todos para,
quiçá, “salvar a dignidade do aterrorizante pequeno tédio” (MOUAWAD, 2013, p.
125). Ora, o que se produziu pode ser posto em causa; os cenários podem ser
tomados como inflamáveis – incendiários e incendiáveis. A existência pede calor. Um
exercício obstinado do pensamento, como o da protagonista de Incêndios, acerca
daquilo que nos produziu lega-nos a possibilidade da recusa e da invenção. Afinal...
(Jeanne, em sala de aula) “Vocês não vão conseguir. Toda teoria dos grafos repousa
essencialmente sobre esse problema por enquanto impossível de ser resolvido. Ora, é
essa impossibilidade que é linda” (MOUAWAD, 2013, p. 37).

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Recebido em: 15.05.2016


Aceito em: 25.06.2016

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doi: 10.12957/childphilo.2016.23520

ON KNIVES, INFANTIA, AND THE INHUMAN: A LYOTARDIAN READING OF INCENDIES

David Knowles Kennedy1


Montclair State University, USA
Walter Omar Kohan2
State University of Rio de Janeiro/FAPERJ, Brazil

Abstract
This text is an attempt to offer a reading of Incendies, a 2010 Canadian film written and directed
by Denis Villeneuve, adapted from Wajdi Mouawad's play of the same name in the light of
Lyotard’s notion of infantia. From this perspective, we can make a distinction between
childhood as a temporal human stage, and infantia as an atemporal human condition: infantia
may be described as the difference between what can and can not be said--the unsayable,
something lost that inhabits, imperceptibly, the speakable as its shadow, its reminder, an
unspoken that works as a condition of possibility in order that something meaningful could be
said. As such it is a form of the inhuman, opposed to the other form of the inhuman, called
"development,” “competition," "representative democracy," "the market," "free world," or
simply “capitalism.” Lyotard affirms that the political task of literature and art is to remember
the former inhuman, the one that each human soul carries by the fact of having been born from
a forced need to abandon its condition of indeterminacy. “Political,” for Lyotard, is the
resistance to the inhumanity of the capitalist order by means of remembering the inhuman from
which every order emerges. This is the aesthetic and political strength of Incendies: to present to
us, through its heroine, “the woman who sings,” an appeal to remember the silenced inhuman
from which we come, and which our social life has made us forget.

Key words: infantia; J.-F. Lyotard; inhuman; Incendies.

Acerca de cuchillos, infantia e inhumano. Una lectura de Incendios en clave de J.-F.


Lyotard

Resumen
Este texto es un intento de ofrecer una lectura de Incendies, una película canadiense escrita y
dirigida por Denis Villeneuve, adaptada de la obra de Wajdi Mouawad, a la luz de la noción de
infantia de Lyotard. Desde esta perspectiva, hacemos una distinción entre la infancia como
etapa temporal de la vida humana e infantia como una condición humana atemporal: a partir de
Lyotard, describimos infantia como la diferencia entre lo que se puede y no se puede decir - lo
indecible, algo perdido que habita, imperceptiblemente, lo dicho como su sombra, su memoria,
algo tácito que funciona como condición de posibilidad para que algo significativo pueda
decirse. Como tal, es una forma de lo inhumano, opuesto a otra forma de lo inhumano, llamada
"desarrollo", "competencia", "democracia representativa", "mercado", "mundo libre", o
simplemente "capitalismo". Lyotard afirma que la tarea política de la literatura y el arte es
recordar esa primera forma de inhumano, que cada alma humana carga consigo por el hecho de
haber sido obligada a nacer y abandonar su condición de indeterminación. "Política" para
Lyotard, es la resistencia a lo inhumano del orden capitalista por medio de recordar lo
inhumano de la que cada orden emerge. Esta es la fuerza estética y política de Incendios: darnos

1 E-mail: kennedyd9@verizon.net
2 E-mail: wokohan@gmail.com

childhood & philosophy, rio de janeiro, v. 12, n. 23, jan.-abr. 2016, pp. 137-154 issn 2525-5061 137
on knives, infantia, and the inhuman: a lyotardian reading of incendies

a conocer, a través de su heroína, "la mujer que canta," un llamado a recordar lo inhumano
silenciado de dónde venimos y que nuestra vida social nos ha hecho olvidar.

Palabras clave: incendios, inhumano, infantia, J. F. Lyotard.

Sobre facas, infantia, e o inumano: uma leitura lyotardiana de Incendies

Resumo
Este texto é uma tentativa de oferecer uma leitura de Incendies, um filme canadense de 2010
escrito e dirigido por Denis Villeneuve, adaptado a partir da obra de Wajdi Mouawad, à luz da
noção de infantia de J.-F. Lyotard. A partir desta perspectiva, fazemos uma distinção entre a
infância como um etapa temporal da vida humana e a infantia como uma condição humana
atemporal: infantia pode ser descrita como a diferença entre o que pode e o que não pode ser
dito - o indizível, algo perdido que habita, imperceptivelmente, o dizível como sua sombra, o
seu lembrete, algo tácito que funciona como uma condição de possibilidade, a fim de que algo
significativo possa ser dito. Como tal, é uma forma do inumano, oposta a outra forma de o
inumano, chamado de "desenvolvimento", "competição", "democracia representativa",
"mercado", "mundo livre", ou simplesmente "capitalismo". Lyotard afirma que a tarefa política
da literatura e da arte é lembrar aquele outro desumano, o que cada alma humana carrega pelo
fato de ter nascido de uma necessidade, forçada a abandonar sua condição de indeterminação.
"Política", para Lyotard, é a resistência ao inumano da ordem capitalista por meio de lembrar
esse outro inumano a partir do qual toda ordem emerge. Esta é a força estética e política de
Incendies: apresentar a nós, por meio de sua heroína, "a mulher que canta," um apelo para
lembrar o desumano silenciado de onde viemos, e que nossa vida social nos fez esquecer.

Palavras-chave: infantia; J.-F. Lyotard; inumano; incêndios.

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david knowles kennedy; walter omar kohan

ON KNIVES, INFANTIA, AND THE INHUMAN: A LYOTARDIAN READING OF INCENDIES

My theory is that one characteristic of our time is that


something is missing, as if we had lost one arm, but as
it happens with the amputated, continue to feel it as if
it were there. It is a complex feeling because we do not
know how to define what it is that is missing today,
but something is missing. Through my plays and
books I aim to remember and talk about this feeling of
lack. Why does it call for so much attention in my
work? This I do not know.”

W. Mouawad. In: GARFÍAS, 2016

This text has been written with four hands, four eyes, four ears, twenty
fingers and a number of other tools from a double body machine affected by the
mysteries evoked by Incendies, a 2010 Canadian film written and directed by Denis
Villeneuve, adapted from Wajdi Mouawad's play Scorched.
At the very beginning of Incendies we are told, in a letter from a dead
woman to her children “Infancy is a knife stuck in the throat. It can’t be easily
removed," a statement that functions as a question, and further, as a riddle that goads
us through the tragic landscape of the film. Our essay is offered as an attempt to
unfold some of the possible assumptions and inferences that lurk in this statement,
and to trace them through the Cretan Labyrinth of paradoxes, reversals and aporias
of the story. Our guides in this task will be Jean-Francois Lyotard’s notions of infantia
and of what he calls “the inhuman”, which will, we hope, provide a red thread that
will lead us to the monstrous sanctum of the archetypal Minotaur itself and out
again, in the course of one possible reading of the aesthetic and political dimensions
of the film.

Childhood/Infancy as a knife in the throat


The film’s opening statement is read from the last will and testament of
Nawal Marwan to the fraternal twins Jeanne and Simon Marwan by one Jean Lebel,
the Quebecois notary for whom Nawal served as a secretary in the latter half of her
mysterious and star-crossed life. Following her enigmatic deathbed directions, Lebel
will act as the Charon who will ferry the twins, over the Styx of memory in search of

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on knives, infantia, and the inhuman: a lyotardian reading of incendies

their father and their brother, the first of whom they had assumed to be dead in a
civil war, and the second of whom they had never seen or heard of until this
moment—in search, in short, of their childhood. Narwal’s premonitory statement
immediately evokes the image of one’s childhood as a wound that is inflicted upon
one’s adulthood--and not just a wound but a wound that will never heal; or, per the
second part of the statement, which will not heal until the instrument that inflicted it
is somehow, and with difficulty—that is, by way of a process of working through
involving some sort of anamnesis--removed. As such, the film challenges us to go a
little further, behind or before the conventional notion of “childhood,” a behind and
before that are neither topical nor chronological but ontological. In other words, our
attempt is to move from childhood to infancy, to the very first movement before any
human being moves, to the very first birth into being before we are born into earth.
In the case of Incendies, the removal of the instrument that inflicted the
wound requires encountering the sublime and numinous terror of our quasi-
mythical origins, and by implication the deep origins of what constitutes each of us—
expressed in Freudian terminology as the Oedipus myth, sexual difference, castration
of the mother, the incest taboo, pregenital sexuality, or in the association of incest
with the gods and the semi-divine, as in ancient practices of royalty, or any other
formula referring to that very first blow before we turned into ourselves.
The throat is the place in the body where human speech originates, and
where the critical difference between infans (not speaking) and adult is most concrete.
But it is also the place where infancy speaks without speaking, or beyond speech, an
affective state that both indwells and exceeds the body. It cannot be captured by
language, for it is before all representation, articulation and delineation, before all
construction, education, and socialization. This “before” is not a “life-stage,” either of
the individual or the species. It cannot be captured or expressed by discursive
language. If infancy is a form of the inhuman, a condition and not a stage of human
life, then the metaphor of infancy as a knife that wounds our throat that cannot be
(“easily”) healed suggests both that there is no (“easy”) human life without the
inhuman, no true life without the primary body and, at the same time, that culture

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and society are, in a way, unsuccessful attempts to abandon and forget infancy. As
Lyotard points it out, “the wound we are talking about ... bleeds incessantly, it
demands, of course, to be treated, but also not to be treated, [but] to be respected...”
(LYOTARD, 1999, p. 52). As we will see, this is the main political dimension of the
film: to remind us that there is no possible human life without bleeding or, in more
conceptual terms, that a human life worth living demands a certain relationship to
infancy, as a form of the inhuman. In this sense, Incendies is a call to live a fully
human life—which requires that we treat infancy with respect.
Following Lyotard further, we may also consider that the Law, which
cannot tolerate and thus proscribes the infant body, the body ruled by the affect of
“immaterial matter,” or the “body of aesthesis,” attempts to heal this wound to the
throat—the original, inchoate center of the human expression of affect. The Law
takes the aesthetic body of infancy—that condition of excess, that “remainder” that
cannot be assimilated by discursive and representational forms of signification”
(LOCKE, 2012)--as criminal flesh that eludes and thwarts Reason. The Law, in its
offense at infantia’s “criminal innocence” in respect to morals, to the code of good and
evil of which it knows nothing, in turn offends the infant body. Like the Harrow in
Kafka’s story “In the Penal Colony,” the Law cuts into the body of aesthesis--pierces
it, writing its proscriptions into its very flesh and blood, in the name of the father, of
subjectivity itself. It drives infantia into a forgetfulness that is always present, and to
which the law owes an unpayable debt. And because infancy is before
representation, in wounding it the Law forgets it, even though the very condition of
its possibility is the “intractable, the body upon which it enacts itself” (LINDSAY,
1992, p. 393).
By virtue of one of the paradoxical twists in Incendie’s narrative, to remove
the knife is to “regain” infantia by acknowledging its origins in the inhuman and the
sublime, in an experience of pain and pleasure that is before good and evil. Thus
Nawal’s twins—who are virtually two forms of, one subjectivity--recover, through
their memorial journey into the inhuman, their childhood in at least two senses. First,
they discover that they were born in the notorious Lebanese prison of Kfar Ryat in a

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time of vicious, genocidal civil war, in the fifteenth year of their mother’s
incarceration there in punishment for an assassination of a political figure in the
Christian-Muslim conflict. The twins were conceived as a result of systematic rape by
the infamous torturer “Abou Tarek”, who, unbeknownst to either he or Nawal, was
in fact her grown son Nihad of May, who had been, as the war lord Chamseddine
put it, “swallowed by the war” and ended up serving both sides. Nihad was the
product of her first love with a member of the “other side,” and was torn from her
immediately after birth. In fact her incarceration in Kfar Ryat was the indirect result
of her long and fruitless search for him through the war-torn countryside; while his
monstrous transformation into a killer and a “torture specialist” was indirectly
connected with his search for her With this discovery of their incestuous origins, the
twins laid bare the enigmatic wound of infantia, an abject, unresolved condition that
endures even beyond the apparent resolution of their quest. As Lyotard will make
clear, “there is something that will never be defeated as long as human beings will be
born infans, infants. Infantia is the guaranty that there remains an enigma in us, a not
easily communicable opacity–that something is left that remains, and that we must
bear witness to it.” (LYOTARD; LAROCHELLE, 1992, p. 416).
The story of Nawal’s “scorched” life and the resolution of the puzzle by the
twins also testifies to the enigma of the human condition: that to discover, as adults,
our “true” history reveals our debt to the infans of infantia. Jeanne and Simon
discover that there is no human order, no social life, no regulative state, no law, no
living together in the condition of infantia; but at the same time no aesthetic or
political life without the attempt to testify to it.
The apparently nonsensical, riddle-like commands to the twins that Nawal
dictates to Jean Lebel on her death bed that initiate their search—to find their father
and their brother and deliver two sealed letters to them (actually “him”),—may be
interpreted as one form of that testimony. Just prior to her death, Nawal spots her-
torturer-who-is-also-her beloved-long-lost-son-who, decades later, has emigrated to
Quebec and works as bus cleaner--at a public swimming pool, and recognizes him by
three dots on his left heel tattoed there at his birth. He does not recognize her. She

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collapses, goes silent, and dies shortly afterwards, after dictating to Jean Lebel the
two letters of instruction to the twins. Their last task is to hand the sealed letters to
Nihad of May/Abou Tarek. They intercept him as he enters the lobby of his
apartment building, and hand him the two envelopes, one marked “to the father,”
the other “to the son,” then quickly leave. He opens them. The first, addresses her
implacable torturer, who had tried unsuccessfully to “break” her in prison through
repeated rape. “I recognized you. You didn’t recognize me. It’s magnificent, a
miracle. I am your Number 72 [the number of her cell in Kfar Ryat]. Our children will
deliver this. You won’t recognize them for they are beautiful. But they know who
you are.” Upon reading this, Nihad rushes outside in search of his siblings/children,-
-to kill them as witnesses of his crimes or to embrace them?--but they are gone. The
letter finishes, “Through them, I want to tell you that you are still alive. Soon you’ll
turn silent I know, for all are silent before the truth.” It is signed “Whore 72”. Then
he opens the second letter: “I speak to the son, not to the torturer. Whatever happens,
I will always love you. I promised you that when you were born, my son. I looked
for you all my life. I found you. You couldn’t recognize me. . . . I recognized you, and
I found you beautiful. I wrap you in tenderness, my love. Take solace, for nothing
means more than being together. You were born of love, so your brother and sister
were born of love too. Nothing means more than being together. Nawal Marwan,
Prisoner Number 72.” Later in his office, their task accomplished, Lebel hands the
twins their mother’s last letter to them, which informs them that she has fulfilled her
promise to “break the chain of anger.” “The silence will be broken,” she writes, “a
promise kept.” “My loves, where does your story begin? At your birth? If so, it
begins in horror. At the birth of your father? Then it begins in a great love story. But I
say your story begins with a promise, to break the chains of anger. Thanks to you,
today I have finally kept it. The chain is broken. Finally I can take the time to cradle
you, to gently sing a lullaby to console you. Nothing means more than being
together. I love you. Your Mother, Nawal.” The last shot of the movie shows Nihad
standing silently before his mother’s grave, as if before a closed door. There is no
reconciliation, no possible life together: the debt that the human (adult) owes to the

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on knives, infantia, and the inhuman: a lyotardian reading of incendies

inhuman of infantia cannot be settled, but only remembered-- but that memory will
forever invoke a condition that prevailed before there were chains to be broken.
Jeanne and Simon recover, through their memorial journey into the
inhuman, into the powers of horror and the abject, infantia in its present absence as
the unboundaried, the unsayable—as a radical ontological condition, an initial
inhuman movement from not being to being, an ungrund. They recognize that they
are, as adults, in debt to this condition. Do they also grasp that the condition of
infans, of “miserable and admirable indetermination,” the aesthetic body, the
spirituality of flesh, is all that stands in resistance to another form of the inhuman?
For this other inhuman—the inhuman of “development” and “complexification,”
childhood is simply a functional waystation on the adult journey towards a post-
human bionic future. But a further clarification of Lyotard’s conceptual vocabulary
will be necessary to bring his ideas into a full encounter with the film.

Incendies and Lyotard’s notion of infantia


Infantia is a polysemic word in Lyotards’ works (LOCKE, 2012). On the one
hand, he builds on the Freudian notion of primary narcissism and reinscribes it as a
"monstrous" presence in a body that goes beyond anthropomorphic bodies. As such,
it is associated with the artistic and the political, as a “zone in which the "work" in
the term “work of art” is conveyed through an inaudible gesture that touches and
alters temporality. He stretches the borders of the body to include infancy as a zone
of pure affect at work inside the art object. This zone mobilizes the capacity to be
touched from the outside by that artwork as a sensorial affect.” (LOCKE, 2012) In
another respect, infantia can be described as the difference between what can and can
not be said--the unsayable, something lost that inhabits, imperceptibly, the speakable
as its shadow, its reminder, an unspoken that works as a condition of possibility in
order that something meaningful could be said.
From Lyotard’s perspective, we can make a distinction between childhood
as temporal, and infantia as atemporal. Whereas childhood can be removed from a
life, infantia is an unavoidable, inescapable dimension of the inhuman that inhabits

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any human life as its condition, and cannot be removed in any way. It can be
remembered or forgotten, but a life without infantia would not be a human life. To
understand this distinction problematizes all conventional approaches to the adult-
child relation--most obviously in the case of conventional educational discourse, in
which schooling is implicitly understood as a way to remove or abandon childhood.
In the discourses of “child” and “life-span” “development”, childhood is understood
as a discreet, predictable stage of human life, which in turn is understood as a linear
process of successive, consecutive and constant non-reversible evolutionary
movement. Here, childhood is removed by “growing up,” and the school is the social
institution charged with managing this process of removal in as painless a way as
possible, and in agreement with the aspirations that support school as a given social
and cultural institution. All conventional schools of all times and places share this
project: to make the abandonment or removal of childhood painless, and in doing so,
to create adult subjects who can function to maintain socially dominant values and
aspirations.
Thus, schooling is the cultural road of conversion from childhood to
adulthood through the social dispositifs of discipline and control, applied in order
(albeit ultimately unsuccessfully) to excise infantia, to forget the ontological ungrund
altogether. Functionally speaking, the passage is a transformation of an experience of
time--from aion to chronos; of thinking--from questioning to answering; and of being
in the world--from play to duty. In the film, Jean Lebel the notary—here in the role of
the record-keeper, the master of linearity, the exemplary adult, the servant of chronos
and the Law--suggests twice to the reluctant twin Simon that he “grow up”. Simon
tends to resist, In fact he is already quite “grown up” in his insistence on forgetting,
even shunning the inhuman of infantia by avoiding the truth of his origins. It is only
his “other self” in the person of his twin sister that draws him closer through the
emotional force and the daring tenacity of her search for their father and brother.
Only in abandoning the elision of infantia in adult rationality does he in fact grow up.
And in doing so, he (and she) become, as Nawal pronounces them, “beautiful,” and
unrecognizable to the socially constructed adult, who is captive to that other form of

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on knives, infantia, and the inhuman: a lyotardian reading of incendies

the inhuman—the inhuman of capitalism, “growth,” complexification and the future


cyborg or biorobotic subject.
Real growing up means for Simon–and also for Jeanne--accepting the reality
of the impossible, the monstrous: their mother was violated by her son, their brother-
father. In human life, a brother cannot be a father. Their story is historically and
rationally unacceptable, yet they have to accept it in order to live a human life, in
order to have a new birth. To grow up means to accept that they are part of a
horrifying, inhuman story—a story, as in Greek tragedy, that unfolds beyond their
will, or intention, or even consciousness. What in fact will lead Simon to “grow up”
in the sense of becoming truly emancipated is not, as we expect to find in ordinary
“civilized” life, simply a matter of accepting one’s own socially filtered history.
Rather, it is a matter of confronting the horror of the abject—the undifferentiated,
incestuous, uncanny, dangerous, forbidden, mad, unclean, the object of taboos—an
unnamable otherness which is invoked in our own lived origins, which is part of our
own history. The abject, as one of the four mathematicians in the story (Nawal, her
daughter Jeanne and their respective higher math teachers at university) states--is an
"insoluble problem” whose investigation leads to “more insoluble problems,” and
ultimately founders on the paradox of 1+1=1 and, as Jeanne’s professor Niv Cohen
states, can only be solved by “intuition” and “peace of mind.” This equation, which
dazzles in its uncanny elegance, is finally all that Simon, in his horror and disbelief,
can find to say to his sister when it becomes clear that the twins are the children of
their brother: father plus brother equals . . ?
As a mathematician cannot accept the aporia of 1 + 1 = 1, a rational and
civilized society cannot accept the abject, the irrationality that constitutes this specific
form of infancy. It cannot live with the memory of what challenges its own basis.
Society feels the need to forget infancy, and neoliberal societies seem to have
developed more and more sophisticated dispositifs in order to achieve this aim. In
Incendies, the problem is doubled: this “family,” if we might call it as such, has had to
overcome an difficult and unexpected childhood, and at the same time a silent,
unseen but unavoidable infantia, which casts a double shadow. The mother’s attempt

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to solve the double problem is to mirror her internal rupture by splitting—between


her son the torturer/rapist and her son the offspring of her first love. They don’t
know each other. They never will. They cannot be in any form of human relationship.
The only moment in which she meets them together, in one naked body in a pool,
she cannot connect with this two that is one. For her, they are two, they can’t be one.
She cannot be in any form of human relationship with them, but in her final letters
they are reconciled in her affirmation of the inhuman, whose ground turns out to be
unconditional love. Nawal’s life and her promise to “break the chain of anger” are
testimony to the fellowship of all humans in the inhuman, the before-being of
infantia, a form of being together (“nothing,” she writes three times, both to the
beloved son and the rapist-torturer, “is more important than being together”) in the
ungrund, the apeiron that is infancy, the body of aesthesis, the body before the Law,
before the Father, before the sexual binary, before the ethical.
There is no family no society, no culture with the abject. In the last minute
of the film the killer son (although he no longer kills, but cleans and carries garbage)
loses sight of the twins, the offspring of his monstrous urge to violate and destroy;
then, as the beloved son, he stands innocent before his mother’s grave. The problem
has not been solved. The conflict cannot be overcome by “normal” adult reasoning—
by ethics, law, custom or compensatory justice of any kind. The exceptionality of the
mother, consists in that, in her redeeming love, she has incorporated the abject in the
form of the impossible one=two; one=father+son; the innocent baby and the
sociopathic murderer; life and death; love and hate: all opposites are one in Incendies.
No science, no rationality, no social order is possible with them. . “I looked for you
all my life,” she writes. “I found you. You couldn’t recognize me. . . . I recognized
you, and I found you beautiful,” as she had described the twins in her letter to the
torturer. Nihad does not recognize either her or the twins, but she promises him that
the revelation of the inhuman in the abject, in infantia that she has brought to him
through her revelation of his origins, will re-awaken him: “I want to tell you that you
are still alive,” she writes. Is this a suggestion that there still is space for
transformation, revolution, another form of life?

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Although it ultimately kills her, Nawal overcomes the conflict by accepting


and even nurturing it. While in prison, she resisted her captors and her torturers by
singing constantly in her cell. Those who heard her song could not quite remember
it, in spite of its beauty, and she became known in the memory of all whose innocent
flesh endured the hell of Kfar Ryat as the “woman who sings”. The impossibility of
remembering her singing makes us remember what cannot be forgotten: her song is
the sublime, the impossible expression of the aesthetic body, infantia, the open throat
of the inhuman, which we recognize in art and in intractable resistance to that other
inhuman, the one that will lead to the cyborg. The “woman who sings” inscribes in
us a remainder, a not-communicable opacity that will never be defeated as far as
humans are born infants.
When they begin their search the twins are not children and they are not
adults, simply because they cannot live in childhood nor in adulthood--they cannot
inhabit a human life, they are not humans. They are told that only through searching
out the “truth” (the record, as kept by the notaries, the record-keepers, the adults, the
society, the law) of their origins will they become adults. But in fact they are not
searching for their childhood, they are searching for their original condition--for
what makes them human in a deeper sense that the civilized and confortable life of
their capitalistic world; in fact, their childhood in civilized, middle-class Canada is
perfectly well-remembered and quite “normal,” a comfortable life that any
reasonable human being would desire to live. They have different ways of
confronting the challenge of their origins: while Jeanne is more ready to confront the
unavoidable, Simon, perhaps knowing better what lurks ahead, tries to delay the
inescapable. He expresses irritation with his mother for her abnormal life. He
questions the lawyer. He resists his sister’s passionate quest. But finally they both
join in undertaking the task of uncovering the abject as an unavoidable dimension of
their attempt to live a human life, and it is Simon who finally hears the truth from the
Muslim warlord Chamsedinne who was Abu Tarek’s commander; nor could it be
different in a macho society.

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In this moment of truth, we recognize that, as a woman persecuted by


violent and impositional patriarchy—Nihad’s father, her first and only love, who
was from the “other side” of the interminable conflict, was shot at point blank range
in an “honor killing” by her cousin. Later, Nawal renounced the violence of the
Christian “nationalist” side of the conflict, assassinated the leader of the coalition,
and as a result was condemned to 15 years of prison and torture. As such, she was a
martyr.
Her cause, however, is behind and beyond politics per se. Her body,
violated so systematically in Kfar Ryat, was an aesthetic and political body, a body in
which the “chain of hatred” forged by the patriarchal lex talionis was broken, but not
her. She was there because of her political militancy and because of her aesthetic
militancy, as expressed in her courageous descent into the maelstrom of the abject, of
horror and murderous indifference, all the while singing the faerie song—strange,
inchoate, childlike yet a lullaby--of infantia. She invokes this indomitable strength-in-
vulnerability which is the mark of infantia when she addresses “my son, not the
torturer” with the words “I wrap you in tenderness, my love. Take solace . . .,”; and
to the twins, “Finally I can take the time to cradle you, to gently sing a lullaby to
console you. Nothing means more than being together. I love you.”
Jeanne and Simon lived a very “normal,” “civilized” life until they
discovered the truth, but this was a sort of false life. In fact, they “were” humans till
they discover the truth. But they were false humans because their childhood was not
their true one. This is the paradox embedded deep in the narrative: they cannot but
search for a truth that, once discovered, will reveal their monstrous origins. The path
toward themselves—what they “really” are--is also an unavoidable path that takes
them out of themselves, into what constitutes them as a shadow, a forgotten
dimension, a remainder. They are exemplars, in a radical and doubled way, of the
human aporia: there is no human life without childhood, but neither is a human life
possible without the inhuman of infantia. As they perform their final act on behalf of
their mother—the act that will allow her name to appear on her gravestone and her
face to be “turned towards the sun”—by handing the “truth” to their brother/father

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in the form of their mother’s letters to him, they have become “adults” by completing
the “record,” now filed and stamped and signed as “truth.” They have excised the
abject by incorporating it. The consumerist society will now accept them again in the
market to continue their inhuman lives. Their childhood has been legitimated by the
Law and redeemed by the administrative order, but they will remain forever in the
shadow of infantia.
On the other hand, the notary, the representative of order, while a
sympathetic, decent and well-educated character, is an example of the excision of the
abject. Jean Lobel heeds the adult taboo, the proscription from allowing the wound of
infantia to surface—of “bleeding”—by creating a two-dimensional world of truth, in
which facts, figures, dates, depositions, signatures, identity cards etc. constitute a
bullet-proof universe of simple fact, a positivist’s dream. Nothing has to make sense
as long as it is recorded—one can have the satisfaction of having excluded insoluble
problems. The triumph of the signifier over the signified. The neglecting of infantia.
In Incendies, the abject is further represented by the pervasive brutalized
horror of a war situation, here modeled on the real event of the Lebanese Civil War,
which lasted for a full 15 years (1975-1990). War is the abject’s monstrous
manifestation in culture, in history, in politics, in religion--a reign of terror in the
name of the fundamental social principle of revenge (GIRARD, 1979), and a sign of
terminal human stupefaction. The warlord Chamsedinne who delivers the final truth
to Simon, like the mother, like the notary, but in a different way than each, has
overcome it by accepting it. He mirrors the notary in his placid dispassion: all that
one can say about the manifestation of the demonic is that it happened. But it is no
accident that the backdrop for this exploration of the inhuman in infantia should bear
its strange fruit amidst the monstrous social atmosphere of genocide, in the complete
devaluation of human life, and the reduction of human persons to signs—in this case
either “Christian” or “Muslim.” We may hypothesize, taking a page from
psychoanalytic notions of repression, projection and splitting, that one of the origins
of war is in fact the very forgetting of the inhuman, of infantia, of that “miserable and
admirable indetermination” that is in fact, as the infant body, wild being, the very

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seat of our shared humanity, a space that will not relinquish the inherent spirituality
and sacred inviolability of flesh. And finally Abu Tarek, the sniper who kills children
from a rooftop, the torturer and rapist, the violator of his own maternal flesh, has
become a monster because he has lost his mother, and with that his infant body. He
has forgotten how to weep, as have his brothers in arms. War is the fantasy of the
armored machine body, hybrid excrescence of that future inhuman invoked by
Lyotard when he speaks of “development.”

The Elision of infantia and the inhuman


As Lyotard puts it, infantia is a latent condition that is behind every word
uttered by any human being, and is itself a form of the inhuman. But what it is the
inhuman? Lyotard distinguishes two of its forms (LYOTARD, 1991): the inhuman
system, called "development," "competition," "representative democracy," "market,"
"free world," or simply “capitalism”; and the inhuman that each human soul carries
by the fact of having been born from a forced need to abandon its condition of
indeterminacy. This second form of the inhuman inhabits every human being as the
passage from not-being to being. We were all forced to be born; no human being was
asked if he or she wanted to come into the world. In this sense we are all born from
the inhuman and set on a trajectory towards another inhuman.
These two forms of the inhuman are opposed to each other. Consider, for
example, the issue of time. The first inhuman, capitalism, imposes the need to run
after time, to make productive use of time; to be efficient and effective in order to
follow the extensive, successive, consecutive, and irreversible chronological
movements that constitute the preferred systematic image of time. The second does
not run behind time, but let’s time get lost in nonlinear, polymorphic, intensive,
repetitive and complex routes and patterns, searching in a distracted way for lost
time, especially that remote time of the abandoned indeterminacy, in a movement in
which the past does not always precede the present, and the future does not
necessarily succeed it. It is the circular time of eternal return, of cycles, such as the

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on knives, infantia, and the inhuman: a lyotardian reading of incendies

time of the Aymara, of a past that is in front of us in the form of what we can see, and
the future is behind us as the unknown (NÚÑEZ, R. E.; SWEETSER, E., 2006).
In subjecting the field of economy to the domination of “development,” the
inhuman also implicitly enters the field of politics. If the first form of inhuman seeks
to impose capital in all its variants as the only triumphant and hegemonic idea, with
the logical consequence that there could be no possible alternatives to the system and
no other idea is feasible beyond capital itself, Lyotard believes that the only possible
authentic politics is in the resistance to this capitalist form of inhumanity in the name
of the memory of that other form of the inhuman, the forgotten one, that of a soul
that constantly remembers its debt to the inhuman from which it was born. In his
words:
What else remains as "politics" except resistance to this inhuman? And
what else is left to resist with, but the debt which each soul has
contracted with the miserable and admirable indeterminacy from which
it was born and does not cease to be born? –which is to say, with the
other inhuman? This debt to childhood is one which we never pay off.
But it is enough not to forget it in order to resist it and perhaps, not to be
unjust. This is the task of writing, thinking, literature, arts, to venture to
bear witness to it. (LYOTARD, 1991, p. 7)

Just don’t forget the debt to infancy, in order not to be unjust, affirms
Lyotard. Resist the inhumanity of the neoliberal order by remembering the
inhumanity from which we are born, as a way of remembering the “inhuman
potential for dérèglement, for undoing the instituted rules of acculturating forces”
(LINDSAY, 1992, p. 391). The “political”—the politics of the inhuman is then the
resistance to the inhumanity of the capitalist order by means of remembering the
inhumanity from which every order emerges. It is a kind of resistance to the
pretention of any order to perpetuate itself, a resistance carried out by remembering
what makes any order possible. Neocapitalist societies do not cease in their
pretentions to impose increasing control throughout the planet and even further. In
order to do so, they seek to silence any thinking or feeling that might question their
universality, normality and naturalness--what, as infantia, might reveal them as
arbitrary, artificial, abnormal; what might interrupt their pretense to inevitability.
“Just don’t forget the debt to childhood so as not to be unfair.” We wonder whether

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david knowles kennedy; walter omar kohan

there is, in this admonition, the articulation of a political dimension that could inform
a possible reading of Incendies? Is the film a testimony to the inhuman of infantia? A
reminder of the aporia of human existence, in its double dimension of the
impossibility of healing the wound of the monstrous childhood and the silenced
infantia? A political resistance to any pretension to the naturalization of human
existence?

Is still there a political task?


If so, we could say that Incendies accomplishes what Lyotard identified as
the political task of writing: the testimony to what remains as an enigma in us
(LYOTARD; LAROCHELLE, 1992, p. 416). But this “political task of writing” may be
both necessary and impossible: impossible because we write to give form to both a
childhood and an infancy that cannot be written; necessary as a political task—as a
crucial affirmation and remembrance of that form of the inhuman that is silenced,
denied by the dominant form of the inhuman that drives consumerism, capitalism,
and neoliberal forms of social order. If writing (or filming) in testimony to infantia is
necessary and impossible, so is humanity, so is philosophy—which, like childhood, is
a kind of survivor, an entity that should be dead but is still alive (Lyotard, 1997, p.
63). This is probably the aesthetic and political strength of the film: to present to us,
through the woman who sings, who cannot be broken because she can love even the
abyss, an appeal to remember the silenced inhuman from which we come, and which
our social life has caused us to forget.
As a survivor, infantia is also a hope, in Lyotard’s words, of "the event of a
possible radical change in the flow that pushes things to repeat the same"
(LYOTARD, 1997, p. 62). Infantia names something that "already is” but yet is not
"something"--a kind of astonishment that inaugurates the world of the human yet
cannot be identified. Infantia is the name for a miracle, the interruption of the being of
things by the entrance of its other, the other of being. It might be enough not to forget
infantia “in order to resist it and, perhaps, not to be unjust,” Lyotard says. Might it be
enough? Is the feeling of infantia the “something” that “is missing” in our time,

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on knives, infantia, and the inhuman: a lyotardian reading of incendies

according to Mouawad? (GARFÍAS, 2016). Might it, for example, help us conceive of
two kinds of political relationships to bodies--the law (old or new) which wrongs the
body on the one hand, but on the other a form of life that would respect the “time of
the body”? But at the very last, has this essay/assay helped any of its readers not to
forget infantia, as our social contemporary dispositifs in neoliberal societies so
relentlessly encourage us to do? If so, might we not consider this form of resistance
our main political task as writers? We are not sure. In light of the multiple forms that
childhood takes in our time, it might not seem to be enough, but who knows, it
might be a beginning. A reader sensible to childhood and infantia will certainly help
us think about it.

Bibliographical References
GARFIAS, Ericka Montaño. Necesito oscuridad y misterio para mi obra, pues no sé
divertir: Wajdi Mouawad. La Jornada. 19 nov. 2014. Disponível em:
http://www.jornada.unam.mx/2014/11/19/cultura/a06n1cul. Access in June
12th, 2016.
GIRARD, Renee. Violence and the Sacred. Baltimore: Johns Hopkins University
Press, 1979.
LINDSAY, Cecile. Corporality, Ethics, Experimentation. Lyotard in the Eighties.
Philosophy Today, v. 36, n. 4, Winter 1992, p. 389-401.
LOCKE, Kirsten. Lyotard’s Infancy. A Debt that Persists. Postmodern Culture. v. 23, n.
1, Set. 2012. p.
LYOTARD, Jean-François. "Before the Law, After the Law: An Interview with Jean
François Lyotard Conducted by Elisabeth Weber." Qui Parle. v. 11, n. 2, 1999, p. 37-58.
______. Lecturas de infancia. Buenos Aires: EUDEBA, 1997.
______. The Inhuman: Reflections on Time. Trans. Geoffrey Bennington and Rachel
Bowlby. Stanford CA: Stanford University Press, 1991.
LYOTARD, Jean-François; LAROCHELLE, Gilbert. “That which resists after all”.
Philosophy Today. v. 36, n. 4, Winter 1992, p. 402-417.
NÚÑEZ, Rafael E.; SWEETSER, Eve. “With the Future Behind Them: Convergent
Evidence From Aymara Language and Gesture in the Crosslinguistic Comparison of
Spatial Construals of Time”, Cognitive Science. v. 30, 2006, p. 1–49.

Received in: 15.05.2016


Accepted in: 15.06.2016

154 childhood & philosophy, rio de janeiro, v. 12, n. 23, jan.-abr. 2016, pp. 137-154 issn 2525-5061
doi: 10.12957/childphilo.2016.23357

POR ENTRE AS CHAMAS DA INFÂNCIA: PRESENTE, MEMÓRIA E TRANSMISSÃO DE


EXPERIÊNCIAS DE VIOLÊNCIA ESTATAL

Fabiana A. A. Jardim1
Universidade de São Paulo, Brasil

Resumo
A partir da peça Incêndios, de Wadji Mouawad, dedicamo-nos neste artigo a examinar os
problemas que a transmissão de experiências de violência estatal coloca para as relações entre
governantes e governados, alterando os contornos da cultura política contemporânea. Temos
como pano de fundo as leituras foucaultianas de Édipo-Rei, de Sófocles, na medida em que o
autor procura nela os traços de nosso “inconsciente político” no que se refere às relações entre
poder, verdade e saber. Passamos à análise da peça de Mouawad, que, em nossa leitura, não
apenas dialoga com Sófocles, mas atualiza a encenação dessas relações entre veridicção,
aleturgia e poder, ao deslocar (conforme a experiência história do século XX) o lugar do
testemunho para o reconhecimento que confirma a dimensão propriamente trágica do drama.
Dedicamos atenção, em seguida, a pensar que lugar o testemunho ocupou no interior do
quadro das diferentes respostas que cada estado nacional ofereceu ao problema da violência
empreendida contra parcelas de sua população, conforme a norma jurídica do genocídio ou de
crimes contra a humanidade. A partir da imagem forte oferecida por Mouawad, da infância
como faca cravada no pescoço, encerramos nossas reflexões referindo-nos ao momento atual,
em que se coloca para nós a tarefa de escutar o silêncio e abrir passagem para uma entrada
decidida no agonismo da história – o que altera, sem dúvida, aspectos centrais das relações de
governo nas quais nos movemos.

Palavras-chave: Wadji Mouawad; incêndios; governamentalidade; testemunho; violência


estatal.

Among the flames of childhood: past and present memory and the experience of
state violence

Abstract
This paper works from Wadji Mouawad’s play, Scorched, to examine the problems that the
various practices State violence introduce into our political/ cultural scene. I believe that these
problems modify the relations between government and the governed on a deep level. I start by
referencing Michel Foucault’s remarks on Sophocles’ Oedipus the King; he has returned to this
play several times in his writings to outline some traces of our “political unconscious” when it
comes to the relationship between power, truth and knowledge. Mouawad’s play not only
explicitly enters into dialogue with Oedipus, but updates the staging of these relationships
between veridiction, what Foucault refers to as “alethurgy” or “truth-telling,” and power.
Mouawad produces this update by displacing the function of witness to the act of recognition
which, in Scorched, confirms the properly tragic dimension of the drama. We next pay attention
to the position that witnessing, or “testimony” has occupied within the framework of the
rationales that the nation state has offered for its violence against portions of its own
population, with reference to the juridical notion of genocide or crimes against humanity. From

1 E-mail: fajardim@usp.br

childhood & philosophy, rio de janeiro, v. 12, n. 23, jan.-abr. 2016, pp. 155-178 issn 2525-5061 155
por entre as chamas da infância: presente, memória e transmissão de experiências de violência
estatal

the strong image of childhood as a knife stuck in the throat, offered by Mouawad, we finish our
reflections by referring to the current epoch, in which we are confronted with the task of
listening to the silence of those murdered and oppressed by the state, and of opening a space for
an entrance into the agonism of history; an entrance that undoubtedly modifies central features
on the relationships of government that structure our experience.

Key words: Wadji Mouawad; scorched; governmentality; witnessing; state violence.

A través de las llamas: presente, memoria y trasmisión de experiencias de violencia


estatal

Resumen
A partir de la pieza de teatro de Wadji Mouawad, Incendios, dedicamos este artículo a examinar
los problemas que la transmisión de la violencia del estado pone para las relaciones entre
gobernantes y gobernados, cambiando los contornos de la cultura política contemporánea.
Empezamos por las lecturas que Michel Foucault dedicó a Edipo Rey, de Sófocles, en donde
buscó huellas de nuestro "inconsciente político" con respecto a las relaciones entre el poder, la
verdad y el conocimiento. A seguir, pasamos al análisis de Incendios que, pensamos, no sólo
dialoga con Sófocles, sino que actualiza la puesta en escena de estas relaciones entre veridicción,
alethurgia y poder, al desplazar (con referencia a la experiencia de las violencias del siglo XX) el
lugar del testimonio para el reconocimiento que confirma la dimensión propiamente trágica del
drama. Dedicamos atención, entonces, a pensar qué lugar ocupó el testimonio en el marco de
las diferentes respuestas que cada estado nacional ofreció al problema de la violencia dirigida
contra parcelas de su propia población, de acuerdo con la norma legal de genocidio o de
crímenes contra la humanidad. A partir de la fuerte imagen ofrecida por Mouawad – la infancia
como un cuchillo clavado en la garganta – terminamos nuestras reflexiones haciendo referencia
al momento actual, en el que estamos confrontados por la tarea de escuchar el silencio y de
hacer espacio para un decidido ingreso en el agonismo de la historia, lo que cambia, sin duda,
aspectos fundamentales de las relaciones de gobierno en las que hoy nos movemos.

Palabras clave: Wadji Mouawad; incendios; gobernamentalidad; testimonio; violencia estatal.

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fabiana a. a. jardim

POR ENTRE AS CHAMAS DA INFÂNCIA: PRESENTE, MEMÓRIA E TRANSMISSÃO DE


EXPERIÊNCIAS DE VIOLÊNCIA ESTATAL

“O Brasil é fruto do estupro”2

Este artigo registra os efeitos da impactante experiência de encontro com o


universo criado pelo dramaturgo e ator Wadji Mouawad em sua obra Incêndios
(2013). Embora meu primeiro contato com Incêndios tenha se dado por meio da
adaptação cinematográfica homônima, dirigida por Denis Villeneuve (Canadá, 2010),
a leitura da peça adensou a sensação de ter sido tocada por algo de força e beleza
extraordinárias e é por essa razão que minhas reflexões estão centradas unicamente
nela.
Dentre os vários aspectos pelos quais se poderia analisar a obra, o que tem
me mobilizado é a questão da transmissão da memória da violência e do trauma coletivos,
e como Mouawad procura delinear seus possíveis efeitos de humanização, bem como
uma proposta ético-política de interrupção. Questão central para a cultura política
ocidental do século XX, com seu acúmulo de guerras, ditaduras e genocídios, essas
experiências de violência desmedida (e, vale notar, em sua maioria violências
estatais) inscreveram o direito à memória no quadro da cidadania e alteraram a
paisagem das relações entre governantes e governados.
O texto se compõe de dois movimentos. O primeiro consiste na análise de
Incêndios: sua estrutura, seus temas e os aspectos que me mobilizam a pensa-la como
reflexão profunda sobre os limites da cultura política ocidental, em especial no que se
refere à violência e sua gestão. O segundo movimento consiste em pensar Incêndios
em conjunto com referências que se debruçam sobre a questão da transmissão da
violência estatal, seja no contexto de genocídios (como a Shoah, o genocídio ruandês
ou os até hoje não reconhecidos genocídio armênio no início do século XX e o
genocídio dos jovens negros nos Estados Unidos da América e no Brasil), seja no

2 Cartaz em manifestação de mulheres contra a cultura de estupro e a violência sexual. Rio de


Janeiro, Brasil, maio de 2016.

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por entre as chamas da infância: presente, memória e transmissão de experiências de violência
estatal

contexto de ditaduras (como as latino-americanas), seja no contexto do apartheid na


África do Sul, enfim, as muitas experiências deste tipo que não cessam de se
acumular. É no quadro de tais referências que aparecem práticas políticas em torno
do problema do direito e do dever de memória, alterando a configuração de relações
entre governantes e governados, e tornando ainda mais complexa a questão da
justiça no interior de estados nacionais.
Finalmente, nas últimas considerações, procuro retomar parte dos
argumentos desenvolvidos ao longo do artigo para me referir brevemente ao
contexto brasileiro recente. A epígrafe que abre este texto, escrita em cartaz
empunhado por uma mulher negra durante uma manifestação feminista no Brasil,
ecoa em alguma medida a tensão entre memória e história tão bem expressa por
Nawal em sua carta final aos filhos: o reconhecimento da verdade da violência
desumanizadora pode fundar uma vida humana? Como olhar a verdade desta
violência de frente, sem alimentar uma cadeia interminável de ódios? Como fazer da
enunciação da verdade dolorosa o fundamento de relações distintas? Frente aos
diferentes efeitos do direito e do dever de memória, como apalpar o enorme peso da
verdade sem permitir que ele esmague as aberturas para o novo, para a história?
Essas me parecem as questões contemporâneas colocadas pela peça.

1+1
Cartilha da Cura
as mulheres e as crianças
são as primeiras que desistem de afundar
navios.
(Ana Cristina César)

Comecemos pelo título da peça de Wadji Mouawad. O Dicionário analógico


da língua portuguesa (AZEVEDO, 2010) lista a palavra incêndio no interior de três
categorias: relações abstratas, matéria e vontade, conforme o quadro I.

158 childhood & philosophy, rio de janeiro, v. 12, n. 23, jan.-abr. 2016, pp. 155-178 issn 2525-5061
fabiana a. a. jardim

Quadro I – Analogias: incêndio


Classe Divisão Categoria Ideias afins
Mudança súbita ou violenta,
Mudança Revolução conflagração, incêndio,
desmoronamento, crise, peripécia
Relações abstratas Extinção, eliminação, morte,
Destruição extermínio, devastação, incêndio,
Causa
Violência mudança violenta, pôr um termo a,
conflagração, incêndio, agitação
Pirotecnia, foguete, rojão, incêndio,
fogueira, pira, fogo, elemento
devorador, lume
Calor
Matéria Orgânica Calefação, calentura fusão, fundição,
Aquecimento Luz
incêndio, deflagração
Jactos, golfadas de luz, fagulharia,
luminosidade, incêndio, chama
Guerra de morte/de extermínio,
Individual Guerra combustão, conflagração, incêndio,
armas fratricidas
Constrangimento, aflição, angústia,
Vontade
dor, incômodo, incomodidade,
Em referência
Dolorimento cuidados, prova, provação, fardo,
à sociedade
carga, peso, maldição, injustiça,
perseguição, abuso, incêndio
Fonte: Azevedo (2010).

O quadro nos coloca diante da complexidade do título, pois já no ponto de


partida temos a imbricação de ao menos três planos distintos, que veremos
comparecer ao jogo cênico: a revolução e a violência como abstrações, como
categorias da filosofia política sem imediata correspondência com o vivido, mas
também como mudança súbita; a concretude da matéria orgânica, referente à própria
vida e sobrevivência e o problema da vontade, relacionada ao empreendimento da
guerra, e também – em chave mais coletiva – à questão da provação, da elaboração
da dor e do luto. Sob o título aparentemente simples, é já o universo de temas que
atravessam incêndio que começa a arder.
Incêndios, portanto, aparece ao mesmo tempo como metáfora e como
realidade: há os incêndios das personagens (Nawal, a infância, Janaane e Sarwane), e
há os sucessivos incêndios das vilas, acampamentos, do ônibus de Nawal escapa na

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por entre as chamas da infância: presente, memória e transmissão de experiências de violência
estatal

última hora. É no jogo entre o concreto e o abstrato, entre o histórico e o simbólico


que a narrativa se desenrola, atualizando a tragédia edipiana.
O drama se desencadeia a partir da leitura do testamento de uma mulher
chamada Nawal Marwan. Antes mesmo que possamos, como espectadores ou
leitores, começar a compreender o que se passa, somos colocados em posição
semelhante aos gêmeos filhos de Nawal: ouvimos com o mesmo espanto as últimas
disposições de sua mãe – “Enterrem-me toda nua/Enterrem-me sem caixão/Sem
hábito, sem mortalha/Sem oração/E de rosto voltado para o chão. [...] Nenhuma
lápide deverá ser colocada/Nem meu nome gravado” ( MOUAWAD, 2013, p.330-1). E
como se não fosse suficiente, há ainda duas cartas, uma para Jeanne, a ser entregue
ao pai que eles julgavam morto, e outra para Simon, a ser entregue ao irmão de que
eles ignoravam a existência.
Aqui já temos uma primeira aproximação com o Édipo-Rei de Sófocles (cf.
FOUCAULT, 2014b; 2014c; 2014d), com o aparecimento desse mecanismo simbólico
de metades que se expressa de modo mais acabado nos gêmeos – um homem e uma
mulher, um lutador e uma intelectual, alguém que vive na corporeidade dos treinos e
alguém que vive na abstração da matemática pura. À Jeanne foi dada a tarefa de
encontrar o pai; a Simon restou o trabalho de encontrar o irmão. Eles estão, assim,
diante de um mistério que é necessário resolver, um enigma que lhes foi transmitido
pela mãe como herança e legado.
Trata-se de uma herança que eles não recebem de imediato, pois além dos
ressentimentos quanto à falta de amor dessa mãe que não consegue chamar os filhos
pelo nome, e sim por “o gêmeo”/“a gêmea”, o testamento de Nawal é também uma
convocação que comporta uma decisão: aceitar ou recusar. Ele inscreve um dever de
memória, mas que depende da vontade de cada um deles. Jeanne aceita; Simon
recusa.
A herança de Nawal não pode ser recebida passivamente; ela empurra ao
início de uma busca, a partir de pistas frágeis. Se não fosse a força dos “últimos
desejos” de alguém que acabou de morrer, e que morreu depois de passar cinco anos

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fabiana a. a. jardim

em silêncio, talvez nenhum dos gêmeos tivesse dado o primeiro passo. No entanto, o
testamento é também um pedido póstumo: é preciso encontrar o pai e o irmão para
cumprir uma promessa, para reabrir à mãe o direito à inscrição no mundo, por meio
da escrita de seu nome numa lápide. Cumprir sua promessa, atender a demanda dos
mortos para os vivos (lembrar, compreender, encerrar), passa a ser condição para a
elaboração do luto.
Jeanne parte nessa busca, tendo por companhia o silêncio da mãe nas mais
de quinhentas horas gravadas por seu enfermeiro, Antoine. O imenso volume das
fitas k7 dá a dimensão da duração do silêncio de Nawal, mas também da intensidade
do trabalho envolvido em escutar o que ele diz – “há qualquer coisa no silêncio da
minha mãe que eu quero entender”, diz Jeanne a Simon, já completamente arrancada
ao tempo presente (MOUAWAD, 2013, p.359).
Antes que Jeanne decida mergulhar no passado e nessa procura pelo pai, os
espectadores testemunhamos o amor interrompido de Nawal e Wahab – o peso da
guerra fratricida que atravessa sua história e a injustiça da separação que crava a
infância como faca na garganta; a gravidez de Nawal aos 14 anos; a violência da mãe
ao negar a existência do filho do amor, do ventre crescendo, da criança nascida –
“esse filho não conta”; a violência do filho arrancado aos braços de Nawal e
desaparecido no mundo. A primeira promessa é feita quando Nawal jura dizer ao
filho do amor do pai e de seu amor: “Aconteça o que acontecer, amar-te-ei sempre”
(MOUAWAD, 2013, p. 344-7).
A promessa se dirige ao futuro, mas à diferença do oráculo edipiano, é
impotente para dar sentido à história ou para predizer o reencontro. O trágico, em
Incêndios, não se produz no encaixe perfeito entre a palavra dirigida ao futuro e a
palavra que testemunha o passado; ao contrário: ele se produz no desencontro entre
promessa e ação, nos fatos que impedem sua realização e, nesse impedimento,
confirmam outro destino – o da repetição do ódio e da violência.
Mas se parece que agora sabemos um pouco mais do que Jeanne sobre esse
pai, o filho único nascido desse amor nos deixa dúvidas. É um, não dois. E Wahab

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por entre as chamas da infância: presente, memória e transmissão de experiências de violência
estatal

partiu, assim como Nawal, que aos 16 anos faz uma nova promessa, dessa vez a sua
velha avó, Nazira:
Nawal, há coisas que desejamos dizer à hora da morte. Coisas que
gostaríamos de dizer aos que amámos e que nos amaram... dizer-lhes...
para os ajudar uma última vez... Para os armarmos para a felicidade!...
Há um ano um filho saiu do teu ventre e desde então tu caminhas com a
cabeça nas nuvens. Não caias, Nawal, não digas sim. Diz não. Recusa.
[...] Mas para poder recusar, é preciso saber falar. Então, arma-te de
coragem e trabalha bastante!... aprende a ler, aprender a escrever,
aprende a contar, aprende a falar. Aprende. É a única hipótese de não te
pareceres conosco. Promete-mo! (MOUAWAD, 2013, p.348).

O massacre da infância aparece, nestas cenas, ao mesmo tempo como


violência e como momento de ingresso definitivo na temporalidade do presente –
afinal, Nawal faz duas promessas: uma ao filho, sinal de futuro; outro à avó, elo com
o passado e com o fio de cóleras e misérias que cabe a ela interromper. Destruir a
infância é entrar de vez no tempo agônico e trágico da história que põe à prova as
promessas. O incêndio da infância aparece no retorno de Nawal à aldeia, para gravar
o nome de Nazira na pedra: sabendo ler e escrever e contar, capaz de conferir à avó
um lugar no mundo dos vivos por meio da palavra escrita. É então que Sawda se
reúne a ela em sua busca pelo filho, no desejo de escapar ao bloqueio das lembranças
de guerra, à falta de amor na aldeia e à uma temporalidade que não têm lugar para a
memória ou para a juventude. Swada quer aprender a ler – a palavra como arma. No
caminho, no entanto, encontram destruição, morte e se deparam com o limite das
palavras e das representações para fazer frente ao horror.
Enfrentam-se com o peso inercial do passado de ódio, conforme narra o
médico que encontram justamente no orfanato de Kfar Ryat – que será
posteriormente transformado em prisão, e onde Nawal ficará presa. Procurando
explicar a investida sofrida, ele menciona uma cadeia de ataques recíprocos entre
milicianos e refugiados até chegar ao mais recente:
Por que é que eles queimaram as colheitas? Deve haver uma razão, a
minha memória pára aqui, não consigo ir mais atrás, mas esta história
pode prosseguir ainda por muito tempo, sucessivamente, de cólera em
cólera, de dor em tristeza, de violação em assassínio, até o começo do
mundo. (MOUAWAD, 2013, p.363).

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fabiana a. a. jardim

Jeanne segue os fios da vida de sua mãe, em direção ao passado, a partir de


indícios parcos: uma fotografia de Nawal e Sawda, ambas portando uma pistola, a
referência a Kfar Ryat (e o relato de que se tratava de uma prisão, presente no
processo no Tribunal Penal Internacional, que Nawal assistia quando se calou), a
descoberta de que a mãe temia os ônibus devido a ter testemunhado (enquanto
superstes) um grupo de milicianos metralhando e incendiando um carro cheio de
refugiados.
Enquanto isso, somos nós, novamente, a testemunhar (testis) as cenas de
violência vividas por Nawal e Sawda. O desespero frente à destruição de sua própria
aldeia: a família, os amigos, os vizinhos mortos. A cena mais longa da peça, que
funciona como passagem entre a primeira parte, na qual Jeanne mal começa a se
aproximar da verdade sobre seu pai, e a segunda, quando tudo estará revelado,
consiste num diálogo entre Nawal e Sawda, após mais um episódio de violência, em
que milicianos massacram um campo de refugiados. Nawal procura ser fiel à
promessa que fez à Nazira:
Escuta o que te digo: estamos cobertos de sangue e numa situação destas
o sofrimento de uma mãe conta menos do que a terrível máquina que
nos esmaga. A dor dessa mulher, a tua dor, a minha e a de todos os que
morreram esta noite já não são um escândalo, mas uma soma, uma soma
monstruosa que já não conseguimos calcular. (MOUAWAD, 2013, p.381).

[...] Sawda, depois que me arrancaram o meu filho do ventre, depois dos
meus braços, e em seguida da minha vida, percebi que era preciso
escolher: ou desfiguro o mundo, ou faço tudo para o encontrar. [Fiz] uma
promessa, uma promessa a uma velha mulher, prometi a ler, a escrever,
a falar, para sair da miséria, para sair do ódio. E vou agarrar-me a essa
promessa. Custe o que custar. (MOUAWAD, 2013, p.383).

É durante esta cena que ambas se despedem, a partir da decisão de Nawal


de matar o chefe dos milicianos com duas balas “uma por ti, a outra por mim. Uma
pelos refugiados, a outra pela gente do meu país. Uma pela sua estupidez, outra pelo
exército que nos invade. Duas balas gêmeas: não uma, não três: duas” (MOUAWAD,
2013, p.385). As balas que selam o destino de Nawal e seus filhos são, de partida,
duplas, “gêmeas”. Balas usadas para produzir, não a morte indiscriminada, “galinha
sem cabeça”, mas a morte única, do corpo matéria orgânica e da representação.
Reduzir o dois ao um para estancar a guerra. É ao longo desta cena que Nawal se
torna a mulher que canta, deixando à Sawda as letras e a poesia.

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por entre as chamas da infância: presente, memória e transmissão de experiências de violência
estatal

Como em Édipo-Rei, em que a cena entre os iguais (Creonte e Édipo e,


depois, Édipo e Jocasta) articula as diferentes aleturgias e consiste em um nível
intermediário entre deuses e terra, em Incêndios essa é a cena que reúne as duas
metades, a partir da decisão de Nawal que desencadeia o propriamente trágico do
drama.
Jeanne segue sua busca e agora já sabe que a mãe esteve presa, que foi
violentada por seu torturador, que engravidou e pariu um filho – que ela supõe que
seja o irmão desconhecido. Pensando seguir a pista sobre o paradeiro deste irmão,
Jeanne encontrará a verdade de seu próprio nascimento – o que retoma o tema
edipiano do estrangeiro que se encontrava em casa. Jeanne é Janaane; Simon é
Sarwane. Ambos são filhos da violação, ainda que uma pequena falha desperte a
esperança do erro (“Fahim disse que era inverno e nós nascemos no verão”; “meu pai
morreu como herói de guerra, não era um carrasco”). Malak, que recolhera os filhos
da mulher que canta e, depois de sua liberação, lhes devolvera a ela, é quem
reconhece Janaane e lhe revela a verdade
Agora, escuta: Fahim estende-me o balde e parte a correr. Eu levanto o
pano que protegia a criança e vejo dois bebês, dois, recém-nascidos,
vermelhos de fúria, agarrados um ao outro, apertados um contra o outro,
com todo o fervor do início da sua existência. Peguei em vocês e fui-me
embora, e alimentei-vos e dei-vos o nome de Janaane e Sarwane. E
pronto. Tu regressas aqui depois da morte da tua mãe, e eu vejo pelas
lágrimas que correm dos teus olhos que não me enganei. Os filhos da
mulher que canta são fruto da violação e do horror, eles saberão inverter
a cadência do choro perdido das crianças lançadas ao rio. (MOUAWAD,
2013, p.392).

Vale notar que os gêmeos são salvos pela aura de humanidade de que sua
mãe, a mulher que canta, lhes reveste: o canto de resistência, a voz que tenta se
sobrepor ao horror e à violência e que rememora a amizade, preserva os filhos da
morte e faz com que Malak aposte que eles poderão reverter o curso da história,
transformar o choro das crianças assassinadas em outra coisa.
Em um tribunal, agora é Nawal quem ocupa a cena e o lugar do testemunho
(superstes) acusando seu carrasco: “[...] Através de mim, são fantasmas que falam.
Recorde-se” (MOUAWAD, 2013, p.393). Em contraposição à Nawal que se calou, aqui
se trata de enunciar claramente a verdade da tortura e da violação, enunciar o nome

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do torturador: “Abou Tarek. Pronuncio seu nome pela última vez na vida.
Pronuncio-o para que saiba que eu o reconheço” (MOUAWAD, 2013, p.392). E, no
entanto, assim como Édipo, Nawal é incapaz de reconhecê-lo inteiramente e, quando
finalmente o fizer, nesse mesmo espaço ritual de busca da verdade que é o tribunal,
se calará.
Testemunhar aparece ainda, na fala de Nawal, como cumprimento da
promessa feita à Nazira, conforme lê Sarwane no caderno vermelho que recebera de
herança:
Falar-lhe como estou a falar testemunha a promessa que fiz a uma
mulher que um dia me fez compreender a importância de sair da
miséria: “Aprender a ler, a falar, a escrever, a contar, aprende a pensar”.
O meu testemunho é fruto desse esforço. Calar-me a seu respeito seria
ser cúmplice de seus crimes. (MOUAWAD, 2013, p.395).

Há ainda um aspecto de inversão nessa cena. Na tortura, é o carrasco


(sinônimo de tirano, aliás) quem procura extrair a verdade por meio da aniquilação
do corpo e do sujeito. Ao testemunhar diante dele, ao revelar a verdade por um ato
de vontade, e uma verdade capaz de condená-lo por seus crimes, Nawal retoma o ato
de cantar na prisão por meio do qual atualizava a amizade de Sawda, a promessa à
avó e o esforço em cumpri-la: ela recupera parte de sua própria humanidade diante
daquele que se empenhou em destruí-la e desfaz o elo que os unia enquanto
torturador e vítima. É esse rompimento que também lhe permite sugerir que possam
agora compartilhar a dimensão humana da dignidade: “Somos os dois da mesma
terra, da mesma língua e cada história é responsável [...] por seus carrascos e por suas
vítimas... Nessa medida, eu sou responsável por si e você é responsável por mim.
Nós não gostávamos da guerra nem da violência e fizemos a guerra e fomos
violentos” (MOUAWAD, 2013, p.394).
Após a metade sobre o pai e sobre o nascimento dos gêmeos aparecer, será
necessário encontrar o irmão, e finalmente Sarwane também decide aceitar a
convocação de sua mãe. Diferentemente do incêndio de Janaane, em que vemos
passado e presente se misturando, como a sugerir que os ecos do passado persistem
na história das mulheres (é, afinal, no feminino que Nazira enuncia o fio de ódios que
é preciso interromper), o incêndio de Sarwane é mais sucinto, mediado por palavras

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por entre as chamas da infância: presente, memória e transmissão de experiências de violência
estatal

de outros. Chamseddine, chefe da milícia nos anos 1970, é quem lhe revela a verdade
sobre seu irmão, lançando-o ao silêncio.
Ele não será capaz de recontar a verdade à sua irmã senão por meio da
linguagem matemática, de uma abstração. “Um mais um podem ser um?”, pergunta
Simon. Pergunta estranha, infantil e de resposta evidente. Um e um são dois,
aprende-se cedo. No reino da matemática pura, porém, há conjecturas a serem
provadas, e um mais um podem fazer um após uma série de cálculos. Ela tenta lhe
demonstrar, contando, calculando, multiplicando e dividindo: uma soma
monstruosa, que finalmente lhe permite compreender.
Vemos então Chamseddine contando à Simon como Nihad, seu irmão, se
transformou no carrasco Abou Tarek; como a mãe que procurava o filho e o filho que
procurava a mãe se encontraram na prisão, mas não se reconheceram, como o filho
violou e engravidou a mãe e se tornou pai dos irmãos. “A voz dos séculos passados”
traz Édipo para o presente e o faz lançar luz sobre a contemporaneidade.
É durante o testemunho de Abou Tarek que Nawal descobre a verdade; não
a verdade sobre seu torturador, mas a verdade sobre seu próprio filho. No momento
em que Abou Tarek usa o nariz de palhaço que Wahab lhe presenteara e que ela
escondera entre as fraldas do menino, junto com a promessa de um amor intemporal.
O reconhecimento da verdade, em Incêndios, não cega: cala; não é escuridão, mas
silêncio.
Após a verdade se tornar visível e ter sido enunciada, Jeanne e Simon
entregam as cartas a Abou Tarek: as duas metades reunidas nesse homem que é pai e
irmão. Unidade monstruosa, no entanto. Nawal escreve com raiva ao pai, ao
carrasco. E com imenso amor ao filho, esse filho que é necessário decididamente
reconstruir no trabalho do silêncio: “Dirijo-me ao filho e não ao carrasco./ Sê
paciente./ Para além do silêncio,/ Há a felicidade de estarmos juntos./ Nada é mais
belo do que estarmos juntos./ Pois estas foram as últimas palavras do teu pai”.
(MOUAWAD, 2013, p.414-5).

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A peça se encerra com a carta de Nawal à Jeanne e Simon – carta única


destinada a duas pessoas, invertendo a situação das duas cartas destinadas à Nihad.
Pela primeira vez, dirige-se aos filhos pelo nome próprio, como se também eles agora
pudessem receber uma identificação, dissociados de sua origem.
Ela diz a Simon:
Estás a chorar?/ Se chorares, não seques as tuas lágrimas/Pois eu não
seco as minhas./ A infância é uma faca cravada na garganta/ E tu
soubestes retirá-la./ Agora é preciso reaprender a engolir a saliva./ Por
vezes, é um gesto muito corajoso, /Engolir a saliva./ Agora é preciso
reconstituir a história./ A história está em migalhas./ Lentamente/
Consolar cada pedaço/ Lentamente/ Restaurar cada memória/ Embalar
cada imagem. (MOUAWAD, 2013, p.415-6).

A Simon, Nawal pede o trabalho da memória, do manuseio dessa história


em pedaços tão minúsculos em que quase nem se vê significação. A ele, Nawal pede
paciência e vagarosidade, até que haja novamente uma narrativa do passado, uma
paisagem da memória. Ao masculino, sempre sob o risco de repetir a violação “... até
calha bem. Tenho antecedentes, o meu pai é violador” (MOUAWAD, 2013, p.401), o
trabalho sobre o passado.
E à Jeanne:
Estás a sorrir?/ Se estás, não refreie o teu riso,/ Pois eu não refreio o
meu./ É o riso da cólera/ O das mulheres que caminham lado a lado./
Podia ter-te chamado Sawda/ Mas esse nome, ao ser soletrado,/ Em
cada uma das suas letras/ É uma ferida aberta no fundo do meu
coração./ Sorri, Jeanne, sorri./ A nossa família,/ As mulheres da nossa
família,/ Estão todas cheias de cólera. [...] É preciso quebrar o fio.
(MOUAWAD, 2013, p.416).

A Jeanne, Nawal pede o trabalho da interrupção, de ruptura do fio do ódio e


da violência e da miséria. Ao feminino, o trabalho de partejar a diferença. Não com
doçura, mas com a força da indignação.
Difícil não ver em Simon e Jeanne as duas metades do tema presente em
trabalhos de memória sobre violências estatais: “para que não se esqueça, para que
nunca mais aconteça”.
Na parte da carta destinada a ambos, Nawal retoma a importância das
promessas como guias na escuridão do tempo. Reaparece aqui a questão da
monstruosa soma de violência, a que o amor não pode fazer frente sozinho, pois
ambos se misturam na história e não se trata de chegar à verdade, mas de forjar uma

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por entre as chamas da infância: presente, memória e transmissão de experiências de violência
estatal

ficção verossímil e fundadora do novo (em termos foucaultianos, fazer aparecer,


portanto, o acontecimento, só possível no agonismo da história):
Então,/ Quando vos perguntarem a vossa história,/ Digam que a vossa
história, a sua origem,/ Remonta ao dia em que uma rapariga/Regressou à sua
aldeia natal para gravar o nome/ Da sua avó Nazira no seu túmulo./ É aí que
começa a história. (MOUAWAD, 2013, p.417).

Depois de lerem a carta, Jeanne e Simon retomam o trabalho de escuta do


silêncio de sua mãe e a peça se encerra.
Vemos reaparecer na peça de Mouawad alguns aspectos da peça de
Sófocles: o mecanismo do símbolo, a centralidade do reconhecimento, o lugar do
testemunho na revelação da verdade. Mas há diferenças importantes no drama
narrado e nos efeitos que Mouawad busca produzir.
Se a tragédia de Sófocles tem caráter exemplar e, neste sentido, pedagógico,
fazendo passar a verdade dos deuses e da lei da cidade, tornando-a visível, a
tragédia de Mouawad tem um caráter que, à falta de melhor termo, denominaremos
aqui como ético: seu texto nos convoca a ocupar o lugar de testemunhas (testis),
capazes de ver, mas, sobretudo, de suportar ouvir o horror narrado. Não somos
mobilizados enquanto pessoas a serem instruídas, mas enquanto pessoas a serem
afetadas de maneira a voltarem a enxergar algo para que o excesso, não de poder,
mas de violência, nos cegou.
O fato de cenas do passado se desenrolarem diante de nossos olhos, isto é,
de que o passado se torne presente no palco para nossos olhos e ouvidos ao invés de
aparecer pela mediação da memória das testemunhas encontradas por Jeanne e
Simon é, a este sentido, revelador de que é preciso que ocupemos este lugar para
evitar a repetição. Não apenas Nawal e os gêmeos precisam trabalhar para
interromper a cadeia de violências que se enraíza no passado: para Mouawad, todos
nós estamos envolvidos e somos chamados a nos co-responsabilizar. Nossa
dignidade humana também depende de reconhecermos nessas misérias nosso
quinhão de responsabilidade.

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fabiana a. a. jardim

Se o centro do problema em Édipo-Rei, conforme a leitura foucaultiana


(FOUCAULT, 2014a, 2014b, 2014c, 2014d), está em um saber excessivo que tenta
escapar do destino, isto é, se o que desencadeia o drama é uma vontade teimosa do
saber tirânico, obrigado a reconhecer que os homens manifestam a verdade
enunciada pelos deuses, em Incêndios o problema é um pouco distinto: enunciada a
vontade de escapar ao destino, por um ato de promessa, inteiramente intramundano
e feito entre iguais, será a quebra dessa promessa que levará à repetição da violência
e do ódio contra o próprio sangue. Mas enquanto Édipo cumpre seu destino e se
condena à errância da cegueira, Nawal de certo modo escapa novamente ao seu no
momento em que encontra uma forma de transmissão não apenas de sua memória,
mas de seu compromisso com o amor. Seu gesto de silêncio introduz uma cesura, e
abre passagem à vida dos gêmeos. Como se o inimaginável e incompreensível só
pudesse ser transmitido por meio de um ato de vontade também daquele que aceita
receber essa herança e acata, no ponto de partida, a instabilidade das promessas
feitas.
Dois últimos comentários a respeito da peça, o primeiro em relação ao
problema da purificação e o segundo relativo ao incesto. Foucault (2014a) procurou
mostrar, no curso de 1970, como Édipo-Rei põe em cena o problema, então
relativamente novo, das relações entre pureza, lei e cidade. Já em Incêndios não há
nada que remeta à possibilidade de expurgo ou purificação, no sentido de
restabelecimento da ordem (e da paz). Afinal, o século XX esteve cheio de exemplos
sobre os efeitos políticos dessa articulação entre pureza e ordem; tal horizonte,
portanto, não está colocado no drama de Mouawad, pois consistiria, inclusive, em
parte do problema. O encerramento da peça com o pedido de Simon à Jeanne, “faz-
me ouvir novamente o seu silêncio” (MOUAWAD, 2013, p.417), a mistura em cena das
temporalidades do passado e do presente, indicam ao contrário uma contaminação
constante, desejável para alimentar o compromisso de lembrar e interromper.
Finalmente, Mouawad repete o tema edipiano do incesto, mas de modo a
não permitir uma interpretação que o relacione ao desejo sexual. Pois o incesto
transcorre numa cena de violação, entre o torturador e sua vítima. Se há desejo, é o

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por entre as chamas da infância: presente, memória e transmissão de experiências de violência
estatal

desejo de aniquilação do humano. É porque Nawal e Abou Tarek estão atravessados


pela violência que não podem se reconhecer como mãe e filho. A tortura – que, vale
lembrar, aparece também em Édipo, como ameaça que ele dirige ao pastor, essa
testemunha relutante – visa obter a verdade. O que o drama de Mouawad revela é
que ela opera para ocultar a verdade de nossa vulnerabilidade comum, para impedir
o reconhecimento. Ao admitir a tortura como aleturgia válida, não fazemos senão
nos condenar ao inferno da repetição das violências.

2
Logo no início de seu livro autobiográfico, Paisagens da memória, em que
narra e reflete sobre sua experiência como vítima do nazismo, sobrevivente de
Auschwitz, Ruth Klüger nos diz
Também tenho o que contar, quer dizer, tenho histórias a contar caso
alguém pergunte, mas só poucos o fazem. As guerras pertencem aos
homens, e assim também as lembranças de guerra. Ainda mais o
fascismo, mesmo que se tenha sido contra ou a favor: puro assunto para
homens. Além disso: mulheres não têm passado. Ou não têm que ter
algum. É indelicado, quase indecente. (KLÜGER, 2005, p.13).

De fato, quando pensamos em narrativas de sobreviventes dos campos de


concentração, pensamos geralmente em Primo Levi, Jean Améry, Imre Kértsz, Robert
Antelme, Jorge Semprún, Elie Wiesel. O que isso pode significar? Como
compreender a provocação de Klüger, ao dizer que “mulheres não têm passado”?
Embora tenha ido para o campo (Lager) quando criança, será apenas em
1992, quase cinco décadas após o final da II Guerra, e por ocasião de um acidente que
lhe prende à cama, que Ruth Klüger publicará o livro sobre sua experiência na
Alemanha nazista, os ressentimentos familiares, os esforços em esconder a gravidade
da situação das crianças, as lembranças das violências e vulnerabilidades mesmo
antes de serem enviados ao campo de concentração, a tarefa de dar sentido à injustiça
sem a mediação da mãe. É mais do que um testemunho dos campos: é um
testemunho a um só tempo sobre o nazismo em sua dimensão mais extensiva e
cotidiana, tal como visto pelos olhos de uma criança, e um testemunho sobre depois
de Auschwitz – as marcas e lacunas, a raiva e como tudo isso se carrega ao longo do

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tempo, sem jamais se apagar. Sua literatura introduz uma diferença nas narrativas
que procuram oferecer testemunho das catástrofes históricas, não apenas por falar a
partir da perspectiva de alguém que experimentou a guerra, o nazismo e o campo
como criança, mas também por falar à distância da experiência, dialogando assim
com seus efeitos variados e contraditórios. Se a literatura de teor testemunhal se
afirma como dissonante em relação a cânones e a esforços artísticos que se vinculam
de algum modo à ideia de nação, constituindo-se como o esforço de voz de grupos
excluídos ou perseguidos (GINZBURG, 2008), Ruth Klüger nos traz ainda outras
questões, na medida mesmo em que já escreve após extensa bibliografia de descrição
dos campos (isto é, escreve após tal experiência já ter se inscrito, de um modo ou de
outro, no imaginário social) e que procura articular passado e presente, ambos
atravessados por seu lugar de fala como mulher.
Não é nada aleatória a escolha de Mouawad, ao apresentar em Incêndios o
drama da história de uma mulher e, ademais, conferindo imenso valor à teia de
relações femininas3: parece que ele nos quis narrar as versões menos visíveis de uma
sequência de guerras (nesse “oriente médio global” no qual inscreve sua história)
cuja profusão das imagens parece ter solapado nossa sensibilidade.
Daí também a centralidade do som e do silêncio, ao invés da visão.
Selligman-Silva, referindo-se a Benveniste, delineia uma genealogia dos usos da
prática do testemunho. “Desde a Antiguidade”, afirma o autor, “vincula-se a
testemunha e testemunho à visão” (2010, p. 4).
A testemunha, no sentido de “o que vê”, se aproxima tanto dos
paradigmas da historiografia como da cena do tribunal. Neste último
sentido, o termo mantém ecos de sua origem em “terstis”, terceiro,
enquanto instância para decisão em um julgamento entre duas partes.
(SELLIGMAN-SILVA, 2010, p.4).

É a partir do confronto entre esta localização de testis como um terceiro e de


superstes como sobrevivente que Selligman-Silva identifica dois modelos de

3 É neste sentido que Incêndios apresenta ressonâncias longínquas com o documentário Repare

bem (Dir.: Maria de Medeiros. 2013, 123min., Brasil/Portugal/Espanha), que nos apresenta a
história e a experiência de três gerações de mulheres cuja vida esteve atravessada pelas
violências de estado.

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por entre as chamas da infância: presente, memória e transmissão de experiências de violência
estatal

testemunho que estão presentes, por vezes ao mesmo tempo, nessa literatura
produzida a partir da experiência de catástrofes históricas.
O modelo do testemunho como testis é visual e corresponde ao modelo
do saber representacionista do positivismo, com sua concepção
instrumental da linguagem e que crê na possibilidade de se transitar
entre o tempo da cena histórica (ou a “cena do crime”) e o tempo em que
se escreve a história (ou se desenrola o tribunal). [...] Ao voltarmo-nos
para o paradigma do superstes, os valores são outros. Aqui, pressupõe-se
uma incomensurabilidade entre as palavras e esta experiência da morte,
um topos na bibliografia sobre o testemunho no século XX.
(SELLIGMAN-SILVA, 2010, p.5).
Vemos, assim, como a duplicação constante que marca Incêndios (os gêmeos,
as duas balas, o filho que se torna o pai, Nawal enquanto testemunha testis e ao
mesmo tempo superstes, que é assassina e vítima de tortura) consiste em referência à
lei das metades, ao mecanismo do símbolo presente em Édipo, e também que faz
referência a este gênero bem mais recente das obras de teor testemunhal. A
duplicidade importa porque Mouawad parece nos sugerir que não se trata de escolha
entre um e outro, mas de sustentar a necessidade de ter ambos em conta no trabalho
de elaboração do trauma.
Referindo-se especificamente aos dois paradigmas que atravessam o gesto
do testemunho, Selligman-Silva comenta
[...] Ao invés de reduzir o testemunho ao paradigma visual, falocêntrico
e violento (que tende a uma espetacularização da dor), e sem esquecer
testis a favor apenas de superstes, minha proposta é entender o
testemunho na sua complexidade enquanto misto entre visão, oralidade
narrativa e capacidade de julgar: um elemento complementa o outro,
mas eles relacionam-se de modo conflituoso. (SELLIGMAN-SILVA, 2010,
p.5).
É como, portanto, se Édipo-Rei e Incêndios fossem metades estranhas, que não
se ajustam perfeitamente. Entre ambas há pontos de encaixe, mas, sobretudo, lacunas
e descontinuidades. Desde o momento de emergência de práticas rituais de justiça
que progressivamente colocaram o testemunho, a visão, a auto-aleturgia no centro do
dizer-verdadeiro e da manifestação da verdade até o momento em que escreve
Mouawad, acontecimentos importantes cavaram as fundas diferenças entre as duas
peças. A conquista da América, a escravização de populações africanas, a
colonização, as duas grandes guerras e, mais espetacularmente, a bomba atômica e o
genocídio dos judeus na Alemanha nazista, a multiplicação de genocídios entre

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fabiana a. a. jardim

diferentes países: eventos distintos e, no entanto, interligados. Não se trata


simplesmente de fazer notar o aumento na escala dos massacres, mas de observar
como estamos falando de efeitos das articulações entre verdade – saber – poder.
Cada um desses acontecimentos inseriram novos problemas para o
pensamento filosófico e político. Quando falamos da questão do testemunho,
estamos falando também da emergência de uma nova questão, que aparece no
contexto específico da Europa no pós II Guerra Mundial, ligada à invenção da ideia
mesma de genocídio como categoria jurídica ou, pouco depois, à ideia de crimes
contra a humanidade que deram suporte ao enfrentamento de ditaduras ou do pós-
apartheid. Problemas práticos, portanto, ligados não apenas à esfera ético-estética
(como representar tais eventos?), mas também à esfera jurídica (como julgar tais
atrocidades? qual processo de julgamento capaz de identificar e punir culpados sem,
com isso, afirmar que aqueles que não foram identificados ou punidos são inocentes?
até quando é possível julgar?) e política (como curar um corpo nacional fraturado?).
Problema de imaginação, problema de justiça, problema de reconciliação.
Jacques Derrida, em seminário sobre a questão do perdão, da verdade e da
reconciliação, tomando Hegel, Mandela, Tutu e Bill Clinton como personagens do
teatro da verdade e da reconciliação, encontra uma cena de tribunal em que,
desconsiderados os limites interpostos por certo excesso de tradução, uma mulher se
recusa a perdoar os assassinos de seu marido; além disso, menciona uma entrevista
de Desmond Tutu, em que ele fala da reconciliação e remete a uma mulher que
perdoou os policiais que assassinaram seu filho. Derrida afirma:
Uma mulher diz “não estou disposta a perdoar”, uma outra, “eu o
perdôo”. Não sublinho somente para lembrar que a questão da diferença
sexual, muito além do grande exemplo sul-africano ou de todo exemplo
possível, marca em seu interior a questão do perdão. É preciso nunca
esquecer disso. E não apenas porque se pode pensar que o amor ou a
compaixão, associados mais ao perdão do que ao rigor do direito,
parecem naturalmente mais femininos do que masculinos, como se o
excesso de perdão sobre o direito, sobre a retribuição calculável, até
mesmo sobre a vingança, fosse mais coisa da mulher do que do homem.
[...] Não é apenas por essas questões de fundo (mulher e perdão, figura
cristã do perdão como amor e da mulher como amor). Não é apenas
porque, tantas vezes, as testemunhas sobreviventes são mulheres. Mas
porque a cena do testemunho e da verdade, a revelação da verdade,
encena o corpo da testemunha, que também pode ser uma vítima (por
exemplo, uma mulher vítima da tortura ou do estupro). (DERRIDA,
2005, p.79-80).

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por entre as chamas da infância: presente, memória e transmissão de experiências de violência
estatal

Sendo Nawal Marwan, a personagem de Incêndios, alguém que vai presa por
um crime político, vale a pena mencionar a análise de Derrida sobre a especificidade
da violência sobre as mulheres militantes, a quem se recusa a identidade política e se
acusa de prostituição – o que as sujeita aos abusos sexuais e ao estupro, violência que
torna mais difícil e doloroso seu testemunho.
Mulheres e crianças são, geralmente, consideradas vítimas inocentes da
guerra, desproporcionalmente mais sujeitas não somente à morte, mas a um conjunto
de violências e catástrofes. Pensemos nos estupros de “purificação étnica” na Bósnia
ou nos raptos de meninas para serem vendidas pelo Boko Haram, na Nigéria.
Pensemos também nas mães e avós de mortos e desaparecidos durante a ditadura
civil-militar na Argentina, ou, ainda, nas mães de meninos e jovens negros das
periferias brasileiras.
O que Jacques Derrida no sugere é que os testemunhos das mulheres fazem
problema para os esforços de uma instituição como as comissões de verdade e
reconciliação, na medida em que seu lugar de testemunho (testis e superstes)
enunciaria uma verdade que confronta a reconciliação, que ameaça reacender os
ódios que animaram a violência. Ao ocupar a cena pública, no tribunal ou na política,
e perfurar a verdade com seu avesso, as mulheres – mais do que outros que
compareçam a esta cena – desnudariam “[...] a linguagem e a lei como constructos
dinâmicos, que carregam a marca de uma passagem constante, necessária e
impossível entre o “real” e o simbólico, entre o “passado” e o “presente””
(SELLIGMAN-SILVA, 2010, p.5).

a felicidade de estarmos juntos


O momento atual no Brasil é de tensões, retrocessos e também de amargura.
Tem sido comum escutar uma espécie de autocrítica radical de pessoas que
militaram contra a ditadura e/ou, por vezes na geração seguinte, se engajaram na
construção democrática: não falamos o suficiente, falhamos na transmissão do horror
e na construção de outro país. São palavras doloridas, que colocam em xeque o

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fabiana a. a. jardim

passado de luta e dedicação ao projeto nacional que encontra limites claros no


presente. E recoloca a questão: como não esquecer, como não permitir que aconteça
novamente?
A partir de Foucault, vemos como Édipo-Rei encena a emergência de relações
entre saber – verdade – poder no qual emerge a figura da testemunha como alguém
que habita na verdade, que autentica seu dizer por um “eu mesmo” e que manifesta
a verdade ao trazer o presente para o passado. A partir de Mouawad, vemos como
essa mesma figura está atravessada por acontecimentos que marcaram o século XX –
acontecimentos violentos, em grande medida empreendidos pelo Estado ou em seu
nome, e que fizeram reunir na testemunha, testis e superstes.
Mas talvez seja possível sugerir que, na medida em que ele nos convoca a
também testemunhar cenas a que nem Jeanne, nem Simon têm acesso, Mouawad
condiciona a possibilidade de cesura do fio de violências à generalização da
ocupação do lugar de testemunha, à difusão de uma disposição subjetiva e coletiva
em escutar.
Jeanne Marie Gagnebin (2006) comenta, a respeito do trabalho de duas
descendentes de sobreviventes do genocídio armênio:
[...] então nossa tarefa consistiria, talvez, muito mais em restabelecer o
espaço simbólico onde se possa articular aquele que Hèléne Piralian e
Janine Altounian chamam de “terceiro” – isto é, aquele que não faz parte
do círculo infernal do torturador e do torturado, do assassino e do
assassinado, aquilo que, “inscrevendo um possível alhures fora do par
mortífero algoz-vítima, dá novamente um sentido humano ao mundo”.
[...]. Nesse sentido, uma ampliação do conceito de testemunha se torna
necessária; testemunha não seria somente aquele que viu com seus
próprios olhos, o histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha
também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração
insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante,
como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou
por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida
apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada
reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a
ousar esboçar outra história, a inventar o presente (GAGNEBIN, 2006,
p.57).

Há ainda o enigma do silêncio de Nawal: é condição de seu trabalho intenso


para encontrar um modo de cumprir a promessa? Pois o que ela encontra – as cartas,
o convite à procura, a transmissão de uma herança – é, sobretudo, uma forma de
dispor as informações e de conduzir à verdade. Uma verdade complexa, misturada,

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por entre as chamas da infância: presente, memória e transmissão de experiências de violência
estatal

em que quase tudo se esclarece, mas em que a origem dos gêmeos é questionada:
pode ser no horror, pode ser no amor; pode ser na violência, pode ser no encontro.
Ela oscila entre o quase inenarrável e as histórias que se conta aos filhos, para os
adormecer (MOUAWAD, 2013, p.391). Tal indefinição – que não se encerra
simplesmente com a tentativa de resolvê-la em uma promessa – condensa a própria
situação ético-política formulada a partir de Auschwitz. Como aponta novamente
Jeanne Marie Gagnebin:
Como toda linguagem humana repousa sobre essa separação abissal
entre phonè e logos, entre voz e linguagem, assim também toda vida
política em comum, todo bios, repousa sobre o abismo da zoè, dessa vida
nua que nos assemelha aos bichos. O que Auschwitz nos legou também é
a exigência, profundamente nova para o pensamento filosófico e, em
particular, para a ética, de não nos esquecer nem da infância nem da vida
nua: em vez de recalcar essa existência sem fala e sem forma, sem
comunicação e sem sociabilidade, saber acolher essa indigência primeva
que habita nossas construções discursivas, que só podem permanecer
incompletas. (GAGNEBIN, 2008, p.17).

Não se trata, portanto, de chegar a uma verdade originária, com supostos


poderes purificadores sobre o presente: não se trata de recompor a memória perdida,
de restaurá-la a partir das mesmas práticas historiográficas que a fizeram submergir
no silêncio ou no esquecimento. Trata-se apenas de abrir a possibilidade da escuta
dos fragmentos de verdade que, coletivamente, podem nos fazer chegar mais perto
do vivido (mesmo quando se trata de um horror inimaginável) e, mais importante,
nos ajudem a reconhecer e nomear o que se perdeu. Como aponta Achille Mbembe,
referindo-se ao trabalho da memória que tem por horizonte a emancipação:
A memória popular nunca conta histórias limpas, não há memórias
puras e diáfanas [...]. Na memória dos povos colonizados encontramos
muitos fragmentos do que, em determinado momento, foi rompido e que
já não pode ser reconstituído em sua unidade originária. Assim, o ponto
central de toda memória a serviço da emancipação reside em saber como
viver o perdido, com que nível de perda podemos viver. Há perdas
radicais, das quais nada se pode recuperar e, no entanto, a vida continua
e devemos encontrar mecanismos para tornar tal perda presente de
algum modo. Podemos recuperar alguns objetos de uma casa
incendiada, e até mesmo reconstruir a casa, mas há coisas que não
poderemos jamais substituir porque são únicas, porque mantínhamos
com elas uma relação única. E é necessário viver com essa perda, com
essa dívida impagável. A memória coletiva dos povos colonizados busca
modos de assinalar e viver aquilo que não sobreviveu ao incêndio (MBEMBE,
2016; grifos meus).

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fabiana a. a. jardim

Tirar a infância da garganta, engolir a saliva, quebrar o silêncio: essas


parecem ser as tarefas éticas atreladas a este lugar de testemunhas que Mouawad nos
convoca a ocupar. O que nos sugere que entre o Brasil da cordialidade e da
democracia racial e o Brasil que é violento e fruto do estupro, há um enorme silêncio
a ser escutado e a ser rompido até que sejamos capazes de engolir a saliva,
interromper o fio do ódio, identificar o que resistiu ou não ao incêndio. Para além do
silêncio, quem sabe a felicidade de estarmos, sob novas formas, juntos?

Referências
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Cultrix/Edusp, 1981, p.19-52.
AZEVEDO, Francisco Ferreira dos Santos. Dicionário analógico da língua portuguesa:
ideias afins/thesaurus. 2. ed. atual. e rev. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.
DERRIDA, Jacques. O perdão, a verdade, a reconciliação: qual gênero? In:
Nascimento, E. (org.). Jacques Derrida: pensar a desconstrução. São Paulo: Estação
Liberdade, 2005, p.45-99.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Serrote, n.13, São Paulo, 2013, p.99-133.
FOUCAULT, Michel. Aula de 17 de março de 1971. In: ________. Aulas sobre a vontade
de saber. (Curso no Collège de France, 1970-1971). São Paulo: Martins Fontes, 2014a, p.
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________. O saber de Édipo. In: ________. Aulas sobre a vontade de saber. (Curso no
Collège de France, 1970-1971). São Paulo: Martins Fontes, 2014b, p. 209-238.
________. Do governo dos vivos. (Curso no Collège de France, 1979-1980). São Paulo:
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________. Obrar mal, decir la verdad: función de la confésion el la justicia. (Curso de
Louvaina, 1981). Buenos Aires : Ediciones Siglo Veintiuno, 2014d.
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________. Apresentação. In: Agamben, Giorgio. O que resta de Auschwitz? São Paulo:
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GINZBURG, Jaime. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Conexão Letras,
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Auschwitz. São Paulo: Editora 34, 2005.

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por entre as chamas da infância: presente, memória e transmissão de experiências de violência
estatal

MBEMBE, Achille. "Cuando el poder brutaliza el cuerpo, la resistencia asume una


forma visceral". Entrevista publicada em <<eldiario.es>>, em 16/06/2016. Acesso em
17/06/2016.
MOUAWAD, Wadji. O sangue das promessas: Céus, Florestas, Litoral e Incêndios.
Lisboa: Artistas Unidos/Cotovia, 2013.
SELLINGMAN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Tempo e Argumento, v.2, n.1,
Florianópolis, p.3-20, jan./jun., 2010.
________. Narrar o trauma – a questão dos testemunhos de catástrofes históricas.
Psicologia Clínica, vol.20, n.1, Rio de Janeiro, p.65-82, 2008.

Recebido em: 15.05.2016


Aceito em: 22.06.2016

178 childhood & philosophy, rio de janeiro, v. 12, n. 23, jan.-abr. 2016, pp. 155-178 issn 2525-5061
doi: 10.12957/childphilo.2016.23331

NÃO MAIS, MAS AINDA: EXPERIÊNCIA, ARQUIVO, INFÂNCIA

Julio Groppa Aquino1


Universidade de São Paulo, Brasil

Resumo
A partir de uma leitura sumária da obra conhecida como Os jogadores de cartas de Caravaggio,
sugere-se inicialmente uma plataforma analítica acerca dos diferentes regimes de tempo
imanentes à experiência do viver e, mais especificamente, à apreensão narrativa do vivido. Eis o
que estaria em questão também na peça Incêndios de Wajdi Mouawad, de 2003, bem como no
filme correlato de Denis Villeneuve, de 2010, no que se refere ao tour de force operado pelos
filhos da personagem Nawal, os quais herdam a tarefa de recompor a história pessoal de sua
mãe e, por extensão, as suas próprias, fazendo com que passado e presente se digladiem e,
então, se confundam na forja arquivística daquelas vidas. O acento argumentativo aqui
ensejado volta-se não a uma possível reapropriação preservacionista da memória, mas à
descontinuidade artificiosa do arquivo, segundo as acepções a este conferidas por Michel
Foucault e Arlette Farge, abrindo caminho para uma perspectiva da educação como empuxo a
um trânsito aberto e sempre instável com o extraordinário arquivo do mundo e as
temporalidades vertiginosas nele atuantes. Calcado em tal premissa, o texto conclui propondo
uma mirada em direção à infância como potência de reinvenção discursiva que os mais novos
são eventualmente capazes de materializar a partir das pegadas que os mais velhos deixam para
trás.

Palavras-chave: arquivo; infância; Incêndios; Wajdi Mouawad.

No longer, but still: experience, archive, childhood


Abstract
Starting from a brief reading of Caravaggio’s painting The Cardsharps, the article begins by
suggesting a theoretical platform for an analysis of the different regimes of time immanent in
the experience of living and, more specifically, in its narrative apprehension. This is what is at
stake in the play Scorched by Wajdi Mouawad and Denis Villeneuve’s film based on it – Incendies
– which chronicles the journey of discovery undertaken by the children of one Nawal Marwan,
as they inherit the task of pulling together their mother’s personal history and, by extension,
their own, making past and present confront and mingle with each other in the archival forge of
their lives. The discussions focus not on a preservationist reappropriation of memory, but on
the ingenious discontinuity of the archive, according to the meanings which have been
conferred to it by Michel Foucault and Arlette Farge, paving the way for a perspective of
education as a push into an open and always unstable space of trafficking between the
extraordinary archive of the world and the vertiginous temporalities acting on and within it. As
such, this paper concludes proposing an approach to childhood as potency for the discursive
reinvention that the young are eventually able to accomplish by following the footprints that
their elders have left behind.

Key words: archive; childhood; Scorched/Incendies; Wajdi Mouawad.

1 E-mail: groppaq@usp.br

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não mais, mas ainda: experiência, arquivo, infância

No más, pero aún: experiencia, archivo, infancia

Resumen
A partir de un breve análisis de la obra conocida como Jugadores de Cartas de Caravaggio, se
sugiere inicialmente una plataforma analítica sobre los diferentes regímenes de tiempo
inmanentes a la experiencia del vivir y, más específicamente, a la aprehensión narrativa de lo
vivido. Esto sería lo que estaría en juego también en la obra de teatro Incendios de Wajdi
Mouawad, de 2003, y en la película correspondiente de Denis Villeneuve, de 2010, en cuanto un
tour de force llevado a cabo por los hijos del personaje Nawal, quienes heredan la tarea de
restaurar la historia personal de su madre y, por extensión, las suyas propias, haciendo que
pasado y presente se enfrenten y luego se confundan en la construcción archivística de aquellas
vidas. El acento argumentativo aquí deseado se vuelve no hacia una posible reapropiación
preservacionista de la memoria, sino a la discontinuidad ingeniosa del archivo, según las
acepciones que le confieren Michel Foucault y Arlette Farge, abriendo camino para una
perspectiva de educación como empuje a un tránsito abierto y siempre inestable con el
extraordinario archivo de mundo y las vertiginosas temporalidades que actúan en él. Basado en
esa premisa, el texto concluye proponiendo una mirada hacia la infancia como potencia de
reinvención discursiva que los más jóvenes, eventualmente, son capaces de materializar a partir
de las huellas que los mayores dejan atrás.

Palabras clave: archivo; infancia; Incendios; Wajdi Mouawad.

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julio groppa aquino

NÃO MAIS, MAS AINDA: EXPERIÊNCIA, ARQUIVO, INFÂNCIA

Quem dentre vós dirá convictamente:


os alquimistas morreram – aqueles simples –
morreram os conquistadores, os reis,
os tocadores de alaúde, os mágicos.
Oh, engano!
Adélia Prado

No primeiro plano da tela, sobre o qual o pintor faz incidir a luz


diretamente, desenrola-se um jogo de cartas entre dois dos três personagens ali
retratados, cada qual enredado em um tipo de gesto que não se confunde com o
alheio. Em segundo plano, fora do jogo e aquém do alcance da luz primeira, o
terceiro personagem está posicionado ao lado de um dos jogadores, a partir de onde
é estrategicamente capaz de enxergar suas cartas.
Seja por descaso, por ingenuidade ou apenas por inexperiência, o jogador
cujas cartas são avistadas permanece cabisbaixo, parecendo não se importar com o
que se passa ao seu redor. Mas ele joga mesmo assim. E, se o faz, quer vencer. Por
honra ou deleite, quer impor sua vontade ao outro.
Absorto em uma espécie de beatitude presente naqueles que creem na
própria capacidade de derrotar o destino de uma maneira que tanto desconhecem
quanto se esforçam por conhecer, ele não desvia o olhar das cartas de que dispõe,

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não mais, mas ainda: experiência, arquivo, infância

prendendo-as com as duas mãos. Quer fazer frente ao azar que, no entanto, não o
abandonará. Em vão, ele calcula.
Entre os dois jogadores, ambos em pé, uma pequena mesa suporta a pressão
do cotovelo direito de um, bem como a da mão esquerda dos outros dois. Sobre o
aparato, repousa esquecido outro jogo, preterido, supõe-se, em favor das cartas, estas
mais propícias ao embuste que ali toma lugar.
Frente a frente, os dois oponentes aparentam ser jovens, embora suas
vestimentas os diferenciem, pois pertencem, presumidamente, a classes sociais
distintas. O primeiro ostenta um traje elegante e sóbrio, ao passo que as roupas
coloridas do outro não escondem as mangas mal cosidas. Soma-se um punhal preso
na cintura do último.
Embora o rosto do segundo jogador só possa ser visto lateralmente, sua
expressão atenta aos movimentos do adversário mais lembra a postura de um
caçador, compenetrado no cumprimento de sua missão. Há de ser ágil; não há tempo
a perder. Tal como seu oponente, ele também calcula. Suas contas, contudo, não se
devotam aos caprichos aleatórios do destino, mas às reações em ato de seu
adversário. A presa está fadada a um bote instantâneo.
Um nítido antagonismo é, assim, plantado pelo artista: a languidez do
primeiro jogador em confronto com a sofreguidão do segundo. Dois regimes da
vontade. Na peleja, a vagareza de um choca-se com a presteza do outro. Dois regimes
de tempo, igualmente.
Enquanto o jogador plácido demora-se nas matemáticas do porvir,
imaginando imiscuir-se na ordem das coisas, o outro mantém a mão direita atrás das
costas, ocultando duas cartas-reserva presas a um cinto, uma delas a ponto de
descarte, cuja aparição súbita no jogo tomará de assalto as previsões do adversário,
demonstrando-lhe, afinal, a inocuidade dos intentos deste. O jogador ladino
triunfará, não importa o quê. Mas não o fará sem a ajuda do terceiro personagem,
somos levados a crer.
Situado ao fundo da tela, próximo à parede que delimita o enquadramento
ótico a absorver um segundo foco de luz, o terceiro personagem aparenta ser mais

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julio groppa aquino

velho do que os outros dois. Aparenta também uma condição social semelhante à do
comparsa, de quem talvez pudesse ser o mentor. Barba por fazer, ele é o único dos
três a vestir luvas; a da mão direita está puída ou rasgada nas pontas do dedo médio
e do polegar.
Fora do campo de visão do jogador desavisado, ele sinaliza ao parceiro, com
os dedos indicador e médio em riste, algo que vê. Num primeiro momento, deduz-se
que se trata de uma informação sobre a configuração das cartas nas mãos daquele
que está sendo ludibriado. Mas, se observada atentamente, sua expressão parece
indicar algo de outra ordem.
Em que pese o fato de que não é possível enxergar um de seus olhos,
barrado pela aba do chapéu do primeiro jogador, resta uma visão de conjunto de seu
semblante que sinaliza, em alguma medida, um estado de perplexidade ou, talvez,
de pavor. Sua testa enrugada, o olhar estatelado, a boca curvada, um pronunciado
pasmo. O que ele avista que tanto o alvoroça?
Se fixarmos o foco tanto em sua feição quanto na do segundo jogador, eis
que a atenção deles nem mais parece capturada pelo primeiro jogador, mas por algo
que se anuncia por detrás das costas deste ou para além delas. Algo aí se insinua, se
esgueira, abre passagem, não se pode refrear. Algo impronunciável, talvez.
Eis a ambiência cênica da obra de Michelangelo Merisi da Caravaggio
intitulada I bari, cuja tradução aproximada para o português seria Os batoteiros, e não
Os jogadores de cartas, tal como o quadro é usualmente conhecido. Segundo um
clássico dicionário da língua italiana (ZINGARELI, 1928, p. 123), o verbete baro, no
singular, comporta as seguintes acepções: servo de soldados; fraudador; ladrão do
jogo de cartas; aquele que aufere barroco, ou seja, ganho ilícito.
A obra, datada de 1595 e pertencente à primeira fase (não religiosa) de
Caravaggio, é um óleo sobre tela de 94,2 cm de altura por 130,9 cm de largura.
Encontra-se, desde 1987, nos Estados Unidos, tomando parte do acervo permanente
do Kimbell Art Museum, em Fort Worth, Texas.
O quadro conheceu várias destinações durante os seus mais de quatro
séculos de existência. Primeiramente, foi adquirido pelo Cardeal Francesco Maria

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não mais, mas ainda: experiência, arquivo, infância

Bourbon del Monte, que viria a tornar-se patrono de Caravaggio, abrigando-o,


inclusive, em seu palácio. Il bari passou, por herança, ao sobrinho do Cardeal,
Alessandro del Monte, e então foi adquirido pelo Cardeal Antonio Barberini, que,
novamente por herança, legou-o a seu sobrinho, Dom Maffeo Barberini, e este a seu
filho, Dom Urbano Barberini. O próximo herdeiro seria o irmão deste último, outro
cardeal – Francesco Barberini –, que o teria legado a uma sobrinha, esta ancestral da
linhagem proprietária da última destinação conhecida do quadro: a família Colonna-
Sciarra. Ali teria permanecido até o final do século XIX e, então, desaparecido. Um
século mais tarde, foi redescoberto em uma coleção particular na Suíça, quando foi
adquirido pelo museu texano.
Consagrado pelos estudiosos da obra de Caravaggio ora como um retrato
realista dos costumes da época, ora como uma parábola moral contra o vício e a
corrupção, Il bari presta-se aqui, no entanto, a outro tipo de perspectivação, mais
afeita à alavancagem de certos efeitos de pensamento acerca do próprio ato de jogar
cartas, do que à remissão aos supostos significados etéreos que aquela composição
pictórica traria embutidos em si.

***

De maneira consoante ao jargão da mecânica segundo o qual haverá jogo


quando houver uma folga imprevista entre as peças de determinado mecanismo, o
ato de jogar contempla, a rigor, um conjunto de desvios. Outro domínio, o marítimo,
vale-se de uma acepção igualmente inusitada da expressão: quando há balanço da
embarcação causado pela agitação do mar.
Estendendo analogicamente tais noções ao âmbito das cartas, deduz-se que
tal prática encamparia não apenas a observância do conjunto de condições formais
para sua consecução, mas também os movimentos desagregadores de tais condições.
Construção e ruína, portanto.
Isso significa que a disposição para equacionar matematicamente a sucessão
arbitrária das cartas, por meio de respostas estratégicas à contingência dos números e
naipes, figurará como condição necessária, mas não suficiente, para suplantar as

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julio groppa aquino

vicissitudes do jogo. Infensa aos cômputos probabilísticos, a aparição casuística das


cartas é o que decretará tanto a evolução quanto o desfecho da partida. Não há
panaceia, portanto, uma vez que tudo dependerá, ao fim e ao cabo, dos arranjos
ditados pelo acaso: azar ou sorte; malogro ou êxito; infortúnio ou regozijo. Aqui, não
há meios-termos, tanto menos consolação.
Mais especificamente, um jogo de cartas, a despeito das regras pontuais que
singularizam suas diferentes versões, é constituído por três domínios invariantes: um
jogador, seu(s) oponente(s) e o monte de cartas. Este último guarda os segredos a que
todos estão submetidos, cabendo a estes jamais ter ciência de antemão da sequência
das cartas; caso contrário, a legitimidade do contrato que os une cai por terra. É
possível afirmar, então, que o monte toma assento no jogo; mais correto dizer, ele é-
lhe soberano.
Desta feita, uma ignorância expectante e mutuamente compartilhada por
ambos os participantes instaura as condições de possibilidade da ação, atravessada,
claro está, por diferentes regimes de tempo, sempre em altercação.
Que se imagine, então: sobre uma mesa qualquer repousam três conjuntos
de cartas de uma partida já encerrada. Não apenas dois, mas três estratos de tempo
distribuem-se ali de modo não complementar nem proporcional, embora em
perpétuo entrelaçamento e em mútua pertença.
No primeiro plano, sempre mais evidente, repousam aquelas cartas que
outrora habitaram a mão do vencedor. Trata-se das sequências inteiriças de jogadas
que chegaram a um bom termo, fruto das escolhas presumidamente certeiras daquele
jogador. Cartas que, alinhadas com precisão, se encaixam perfeitamente, fazendo
recordar um desenho linear de feitos originados na suposta astúcia do vencedor;
feitos cuja origem ele, encharcado de ingratidão para com o acaso, confundirá ora
com predestinação, ora com livre-arbítrio seu. Tempo de triunfo; tempo de
enfatuação.
De modo transversal e desconexo a elas, distribuem-se sobre a mesma mesa
outras cartas, mas agora em disparate e rancor. Filhas do azar e em descomunhão
com a urgência das conexões ansiadas, são aquelas que restaram desemparelhadas

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não mais, mas ainda: experiência, arquivo, infância

na mão do perdedor. Alheias ao fulgor geométrico dos esquemas orquestrados pelo


adversário que a tudo fulminaram, elas não cumpriram seu destino esperado, não
conheceram senão a fatalidade da procrastinação. Ao perdedor restará, então, o
veredicto de uma descontinuidade nefasta a governar um conjunto de desfeitos seus,
em relação aos quais não há remédio, exceto a constatação de que o acaso não foi
generoso o bastante para ofertar-lhes alguma espécie de justa forma, senão uma vaga
e, no limite, frustrada anunciação. Tais acontecimentos persistirão aprisionados no
domínio das promessas não cumpridas. Irresoluto tempo subjuntivo das coisas;
tempo de expectação.
Mas resta ainda uma terceira força presente no jogo, a qual não se dobra
nem à impavidez do vencedor, nem ao silêncio desacorçoado do vencido, escapando
inteiramente ao cerco totalizador da díade cálculo versus risco: as cartas que, viradas
para baixo, resistem incógnitas no monte, sem encontrar uma forma possível de
materialização. Signo bruto de um futuro que sequer ganharia a luz do dia, elas
constituem-se de uma fibra única e distinta das cartas anteriores, já que
permaneceram em um tênue estado de devir, tão logo desbaratado pelo ultimato do
fim da partida.
Trata-se, essa última força, da mão-de-ferro do trágico a urdir
ininterruptamente os acontecimentos deflagradores do jogo; trágico aqui
compreendido como potência apenas. Potência intransitiva de composição e, no
mesmo golpe, de aniquilação de todas as coisas. Potência de existir que recolhe não
apenas o sonho difuso de prosperidade e bem-aventurança, mas também a soma de
todos os medos, todos os acidentes e, enfim, a morte – horror e êxtase de todos nós,
pobres viventes.
Eis aquilo que, a nós, se pode vislumbrar no olhar dos batoteiros de
Caravaggio.

***

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julio groppa aquino

Atentos aos protocolos usuais de uma partida de cartas, é sobre a hipótese


da experiência como superfície de um jogo que almejamos nos debruçar, tendo em
mente a admoestação foucaultiana de que a
[...] experiência não é nem verdadeira nem falsa. Uma experiência é
sempre uma ficção; é alguma coisa que se fabrica para si mesmo, que não
existe antes e que poderá existir depois. É essa a relação difícil com a
verdade, a maneira como esta última se acha engajada em uma
experiência que não está ligada a ela e que, até certo ponto, a destrói.
(FOUCAULT, 2010, p. 293-294)

Tal hipótese não se presta, em absoluto, a conjecturar uma analogia


explicativa totalizante dos movimentos de uma vida, mas a fomentar um
procedimento aberto e, se possível, indeterminado quando se trata de colocar em
causa não apenas as pautas do agir, sempre incógnitas, mas também as composições
narrativas acerca do que se viveu, sempre incertas. A experiência, portanto, não
como expressão de uma memória cumulativa, mas como desvio e, no limite,
desbaratamento seus.
A fim de evitar, a todo custo, uma apreensão positivadora dos eventos
passados, a qual se atualiza amiúde por meio da extração de “uma lógica ao mesmo
tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância, estabelecendo
relações inteligíveis, como a do efeito à causa eficiente ou final, entre os estados
sucessivos” (BOURDIEU, 1996, p. 184), urge ombrear com a ortodoxia do próprio
intento memorialístico – o que exigiria o discernimento de que tanto aquele que narra
quanto aquele que é narrado não são senão dois pontos moventes em um presente
igualmente movente, cujas rotações são desprovidas de qualquer significado
transcendente.
Daí que o grau de dificuldade que se impõe àquele que computa seja os
próprios passos, seja os alheios, não é determinado apenas pela vulnerabilidade e,
em última instância, pela corruptibilidade das reminiscências, mas pela natureza
escura, amorfa e, afinal, indócil da matéria que constitui a experiência e que não abre
mão de continuar atuando no presente da narração. Força que se insurge contra toda
forma de existir prisioneira da involução dos dias e que, sem pedir licença ou perdão,
a faz latejar, estalar e fremir, ao arrepio da exiguidade sovina de um presente sempre
em distrato com os viventes.

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não mais, mas ainda: experiência, arquivo, infância

Senão vejamos: alijado da consonância entre a luminosidade dos


acontecimentos que outrora abrigaram seus dias e o que deles resta em sua memória,
o narrador persistirá assombrado por um encarniçado esprit de l'escalier: sua
compreensão do vivido será sempre tardia, opaca, desventurada. Todas as coisas
idas escapam-lhe sem cessar, sem jamais conhecer repouso, nem tradução.
Uma tartamudez infinita o assombra, sem, contudo, ser capaz de obliterar
sua marcha. Cambaleante, ele prosseguirá narrando, de um modo ou de outro, o que
assegura ter testemunhado, já que não pode fazer diferente. A verdade está a seu
lado, ele crê sem pestanejar. Assim, entre a memória em dissipação e a própria
intangibilidade do referente passado, tudo resumir-se-á a contar mais uma vez o que
se viveu – acrescentando-lhe um ponto ou subtraindo-lhe outro, tanto faz.
Eis que, então, narrar uma vida metamorfoseia-se em um jogo dentro de
outro jogo: nem irremediavelmente perdido, nem ganho sem a cooptação do
oponente maior, qual seja, si próprio. Um jogo extemporâneo e sempre arriscado, em
que já não há mais jogadores, mas apenas os indícios de sua presença, rastros de uma
força antes cintilante, agora inerte. Retrato.
Disso decorre que, ao se fazer uso do expediente memorialístico a fim de
prestar contas de uma existência, será inevitável emparedar seus acontecimentos
constitutivos, imobilizando-os narrativamente. Todo encadeamento de feitos
consistirá, assim, em uma ruptura voluntária e provisória do fluxo volumoso de
intercorrências que condicionaram os fatos em voga na narração. Tempo rarefeito,
episódico, que não conhecerá sucessão, a não ser aquela imputada artificial e
estrategicamente pelo narrador, sobretudo quando está em causa o expediente
confessional, autenticador compulsório de si mesmo. Isso porque
a confissão contém elementos de identificação do eu em uma tentativa
deliberada e autoconsciente de explicar e expressar-se a uma audiência
na qual o indivíduo existe e busca confirmação. [...] A confissão é, então,
um ato comunicativo e expressivo, uma narrativa em que (re)criamos a
nós mesmos por meio da criação de nossa própria narrativa,
retrabalhando o passado, em público, ou pelo menos em diálogo com o
outro. Quando o sujeito está confessando e criando o seu “eu”, parece
sentir-se compelido a dizer a verdade sobre si mesmo. (BESLEY, 2008, p.
76-77)

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Tratar-se-ia, então, de dizer a verdade da verdade e, com isso, liquidar de


vez a peleja memorialística?
Revolver os itinerários de uma vida, desentranhando acontecimentos que,
malgrado a inconstante vibração que deles emana, não se dobram ao sabor dos
comandos incessantes do narrador, refratários que são a qualquer tipo de
indulgência restitutiva. Escarafunchar vestígios de memória, próprios e alheios, em
busca de um fio de verossimilhança que a tudo perpassasse. Desapegar-se das
contingências para, então, repatriá-las ao modo de uma réstia identitária, com o fito
de persuadir de que ali haveria mais que uma mera vida.
Não, descobre-se de pronto. “As palavras são vento, um sussurro exterior,
um ruído de asas que mal ouvimos na seriedade da história” (FOUCAULT, 1987, p.
237-238).
À mercê das operações teleológicas da memória, em que se forjam os rumos
das coisas havidas e não havidas, o mau hábito do narrador – à moda do
embevecimento do vencedor do jogo de cartas – residiria precisamente na
negligência do entrecruzamento permanente de diferentes dimensões de tempo a
coabitar o encontro entre o vivido e o narrado.
Daí que entabular o jogo da experiência segundo outras regras não se logra
senão como um gesto duplamente capaz de recusar tanto a psicologia estática dos
jogadores quanto as matemáticas do jogar, voltando a atenção à imanência do monte
de cartas – zona de indiscernibilidade entre passado e futuro, espaço de suspensão
no qual narradores e narrados, vencedores e vencidos já não podem mais se
distinguir. É lá que a experiência se aloja e, de lá, emite continuamente seus sinais,
conquanto incompreensíveis a nós.
Se assim compreendido o trabalho de dizer a que se veio, ao narrador nada
restará senão precipitar o encontro com uma verdade outra, inclinada mais ao perigo
da própria dissolução do que aos rebatimentos da capitulação memorialística, esta
recodificada em domesticação de todas as coisas que, entretanto, continuam a agitar-
se sem trégua. Encontro despossuído de qualquer pretensão épica, já que composto
de migalhas, bagatelas e minudências de uma pele já perdida incontáveis vezes, e

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sempre a ponto de fazê-lo novamente. Encontro improvável entre matérias


heterogêneas, assimétricas e, no limite, incomunicáveis. Um jogo de cartas apenas,
sem oponente, nem final.

***

Em uma entrevista do criador de Incêndios a um jornal brasileiro, Wajdi


Mouawad manifesta seu desconforto em relação a uma passagem do filme correlato
dirigido por Denis Villeneuve.
Há um breve momento, tão breve que as pessoas talvez nem percebam.
Nawal, a protagonista, fala no ouvido do tabelião e, na cena seguinte,
tenho sempre a impressão de que ele escreveu a carta dela para os filhos.
Minha personagem é uma mulher que perdeu tudo. Aquela carta é sua
única realização. Sugerir que outro a escreveu vai contra meu texto e a
própria Nawal. (MERTEN, 2015, s.p.)

A carta em questão refere-se à cláusula derradeira do testamento da


personagem Nawal Marwan. Segundo a vontade da mãe dos gêmeos Jeanne e
Simon, ela deveria ser enterrada nua e sem caixão,
[...] Sem hábito, sem mortalha / Sem oração / E de rosto voltado para o
chão. / Deponham-me no fundo de uma cova, / Testa-de-ponte contra o
mundo. / À laia de despedida, / Lancem sobre mim / Cada um de vós /
Um balde de água fresca. / Em seguida lancem a terra e selem o meu
túmulo. [...] Nenhuma lápide deverá ser colocada / Nem o meu nome
gravado. / Não há epitáfio para aqueles que não cumprem as suas
promessas. / E houve uma promessa que não foi cumprida. / Não há
epitáfio para aqueles que se calam / E eu calei-me. / Não há epitáfio
para um nome ausente numa lápide ausente. / Não há nome.
(MOUAWAD, 2013, p. 330-331)

Junto aos pouquíssimos pertences deixados aos filhos, Nawal lega-lhes uma
incumbência insólita: à garota, entregar um envelope a seu pai, presumido morto; ao
rapaz, entregar outro envelope, agora a seu irmão, cuja existência era desconhecida a
ambos até então. Só então os gêmeos receberiam uma carta – aquela a que se refere
Mouawad na entrevista supracitada –, a partir da qual o silêncio anterior seria
rompido e, nos dizeres da personagem já desaparecida, “[...] poderá então ser posta
uma pedra no meu túmulo / E o meu nome gravado na lápide ao sol” ( MOUAWAD,
2013, p. 332). Uma promessa, enfim, se cumpriria, e não pelas mãos de quem a fizera.

Um nome seria restituído a quem de direito.

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Eis aqui, de pronto, o argumento principal da peça de teatro Incêndios, de


2003, transposta para o cinema em 2010, sob o mesmo título: dois jovens herdam, à
revelia e a contragosto, a tarefa de recompor a história pessoal de sua mãe e, por
extensão, as suas próprias. Para tanto, disporão apenas de um casaco de presidiário
com a inscrição 72 nas costas, bem como um caderno contendo um depoimento
acusatório contra um torturador – neste último caso, uma das divergências entre a
peça e sua adaptação ao cinema.
Ladeados pelo tabelião Hermile Lebel, a quem foi confiada a execução do
testamento de Nawal, Jeanne e Simon embarcam em um tour de force que os obriga a
se defrontar, a partir de vestígios esparsos e desconexos, com a biografia materna que
lhes fora negligenciada, sobretudo nos últimos anos de vida da mãe, quando, sem
razão manifesta, ela caiu doente e perdeu a fala; mudez autoimposta, descobre-se
mais tarde, entrecortada subitamente por uma pequeno mantra: “’Agora que estamos
juntos, melhorou’” (MOUAWAD, 2013, p. 336).
O que de tão excruciante se escondia em seu banimento voluntário do
mundo? Que forças ter-se-iam se apoderado daquele corpo suspenso entre a vida e a
morte, petrificado por uma promessa não cumprida? Quem seria(m) aquele(s) de que
Narwal tanto ansiava apenas estar junto?
A experiência impingida aos dois jovens protagonistas lança-os a uma
espécie de mar aberto da ignorância, na esteira do qual será preciso adentrar um jogo
cujas regras não se dizem. Hão de jogar apenas e, no decorrer da partida, aprender a
fazê-lo.
Em outra entrevista, o diretor de Incêndios assim define seus intentos:
A busca é sair de sua casa atrás de algo que se encontra talvez no outro
lado do mundo. [...] Desconfio muito do sentimento nostálgico, do lugar
perdido, no entanto, creio que minha obra está na ordem da busca de
algo perdido. [...] É um sentimento complexo, porque não sabemos
definir o que é que nos falta hoje, mas algo nos falta. (GARFIAS, 2014,
s.p., tradução nossa)

Na jornada rumo ao outro lado do mundo, os protagonistas são movidos


pela percepção difusa de uma falta, nos moldes de um órgão amputado que persiste,
no entanto, a reclamar seu direito de existência. E o faz de maneira recalcitrante.

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não mais, mas ainda: experiência, arquivo, infância

Rajadas de tempo sobrevêm-lhes violentamente, decretando a revogação


das vigas veridictivas de sustentação do presente, de maneira análoga a um estado
de guerra, assim como o descreve Nawal: “Já não há tempo. O tempo é uma galinha
a que se cortou a cabeça, o tempo corre como um louco, à esquerda e à direita, e, do
seu pescoço cortado, o sangue submerge-nos e afoga-nos” (MOUAWAD, 2013, p.
371).
Tempo de cisma; tempo de desrazão.
A saga dos jovens personagens é assim sumarizada por uma comentadora:
[...] não temos aí apenas uma história de família como unidade social
gregária, mas o avesso disso, resultado de um conjunto cujas partes
foram separadas e cuja força de atração para uma reconstituição por um
lado leva a uma busca de unidade e, por outro, conduz a uma fenda
maior, constituída por falhas trágicas. (BULHÕES-CARVALHO, 2014, p.
60)

Tal como em Édipo-Rei, cuja estrutura dramatúrgica, resguardadas as


respectivas especificidades das duas obras, poderia ser associada à de Incêndios, é por
meio da exposição lenta e dolorida a uma exterioridade radical que os protagonistas
podem, enfim, aceder a uma verdade íntima, desde logo, demasiado perturbadora.
Sai de cena a epifania, entra a prova. Vai-se o golpe de misericórdia divino, adentra a
contingência acidentada dos assuntos humanos. Desfalece o sujeito da memória,
impõe-se o eu da experiência.

Podemos dizer, portanto, que toda a peça de Édipo é uma maneira de


deslocar a enunciação da verdade de um discurso de tipo profético e
prescritivo a um outro discurso, de ordem retrospectiva não mais da
ordem da profecia, mas do testemunho. É ainda uma certa maneira de
deslocar o brilho ou a luz da verdade do brilho profético e divino para o
olhar, de certa forma empírico e quotidiano, dos pastores. (FOUCAULT,
2002, p. 40)

Retorcidas, as vozes do passado chegam a Jeanne e Simon em ondas


assincrônicas, ora justapostas, ora estilhaçadas. Um emaranhado de mensagens
disparatadas decreta-lhes um mandado de escuta e, ao mesmo tempo, de seleção e de
corte. Será preciso reinventar o quebra-cabeça de uma história comum aos vivos e
aos mortos sem o consolo da miragem de uma fundação, tanto menos a ilusão de
repatriação dos acontecimentos relegados a escombros da memória alheia. Mais, a

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busca da origem das coisas revelar-se-á senão um vórtice de sofrimento,


incompreensão e horror.
Um excerto de um diálogo da peça é revelador nesse sentido:
Há dois dias, os milicianos enforcaram três adolescentes refugiados que
se arriscaram a sair dos campos. Porque é que os milicianos enforcaram
três adolescentes? Porque dois refugiados do campo tinham violado e
matado uma rapariga da aldeia de Kfar Samira. Porque é que esses dois
tipos violaram essa rapariga? Porque os milicianos tinham lapidado uma
família de refugiados. Porque é que os milicianos a lapidaram? Porque
os refugiados tinham incendiado uma casa perto da colina do tomilho.
Porque é que os refugiados incendiaram a casa? Para se vingarem dos
milicianos que tinham destruído um poço escavado por eles. Porque é
que os milicianos destruíram o poço? Porque uns refugiados tinham
queimado as colheitas do rio do cão. Porque é que eles queimaram as
colheitas? Deve haver uma razão, a minha memória pára aqui, não
consigo ir mais atrás, mas esta história pode prosseguir ainda por muito
tempo, sucessivamente, de cólera em cólera, de dor em tristeza, de
violação em assassínio, até ao começo do mundo. (MOUAWAD, 2013, p.
363)

Alheia a toda ambição de pacificação das coisas pregressas ou, de outro


modo, de acerto de contas com elas em prol de um futuro mais promissor, a
singularidade argumentativa de Incêndios, quer-nos parecer, se perfaz no e pelo tipo
de jogo narrativo estabelecido entre mais velhos e mais novos – compreendido aqui
como trabalho, por excelência, educativo –, segundo o qual a estes é reservada uma
tarefa obscura, truncada, não obstante incontornável, de obrigação para com a
verdade, esta consubstanciada em um mosaico de forças em permanente duelo,
fazendo com que passado e presente se digladiem e, então, se confundam na forja
arquivística daquelas vidas.
Disso deriva uma perspectiva da educação, aqui defendida, como empuxo a
um trânsito aberto e sempre instável com o extraordinário arquivo do mundo e as
temporalidades vertiginosas nele atuantes; trânsito condicionado, no entanto, por um
perene embate narrativo entre as gerações e pelos efeitos insondáveis que
assombram tal embate, a fim de conjurar o silêncio trágico que, de um modo ou de
outro, nos tocaia sem cessar.

***

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não mais, mas ainda: experiência, arquivo, infância

Lê-se na carta-testamento da mãe: “Agora, é preciso reconstituir a história. /


A história está em migalhas. / Lentamente / Consolar cada pedaço / Lentamente /
Restaurar cada memória / Lentamente / Embalar cada imagem” (MOUAWAD,
2013, p. 416).
O clamor de Nawal por morosidade não parece ser adventício. Trata-se de
um dos predicados basais quando está em curso outro tipo de jogo instituinte da
experiência, agora lastreado pela imersão no arquivo do mundo, o que pressupõe o
labor de uma verdade de todo extrínseca ao narrador. Experiência errática,
turbulenta, anônima, dessubjetivadora. Nascente de vida, jamais sua
desembocadura.
Ao confrontar a apreensão da experiência talhada por Nietzsche, Bataille e
Blanchot àquela apregoada pela fenomenologia, Michel Foucault argumenta na
seguinte direção:
[...] a experiência é tentar chegar a um certo ponto da vida que seja o
mais perto possível do não passível de ser vivido. O que é requerido é o
máximo de intensidade e, ao mesmo tempo, de impossibilidade. [...] A
experiência em Nietzsche, Blanchot, Bataille tem por função arrancar o
sujeito de si próprio, de fazer com que não seja mais ele próprio ou que
seja levado a seu aniquilamento ou à sua dissolução. É uma empreitada
de dessubjetivação. (FOUCAULT, 2010, p. 291)

Eis o ponto de inflexão em relação ao eu da experiência, antagônico ao


sujeito da memória; este a encarnar o pleito de unificação identitária de seus eus
pregressos, sempre em estado de turvação, decadência ou, no limite, desaparição;
criatura lamuriosa, consumida pela acareação entre o pouco que pôde ser e o muito
que deveria ter sido ou, mutatis mutandis, tornar-se doravante.
Para o eu da experiência, as regras do existir perfazem-se diametralmente
outras. Um eu que já não pode mais subsistir, caso restasse a ilusão de ter havido
algum dia. Um eu nem presente nem ausente, apenas avesso à reivindicação de
ponto de fuga de todas as coisas. Um eu agônico, mas sem fadiga, apenas em
demorado desfazimento. Um eu que encontrará seu desterro exatamente lá onde se
supunha encontrar o esplendor dos pertencimentos atávicos. Um eu-poeira-de-todos-
os-ventos: “[...] não soberano, mas dependente, não origem absoluta, mas função
modificável incessantemente” (FOUCAULT, 2014, p. 54). Um eu-arquivo.

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O apego à noção de arquivo, no rastro das formulações de Foucault (1987;


2000; 2002; 2010; 2014) e Arlette Farge (2009), afigura-nos decisivo para nossos
intentos.
Em duas ocasiões após o lançamento de A Arqueologia do saber, o pensador
francês explicou o que havia defendido em seu livro de 1969. A saber:
Por arquivo entendo, primeiramente, a massa das coisas ditas em uma
cultura, conservadas, valorizadas, reutilizadas, repetidas e
transformadas. Em resumo, toda essa massa verbal que foi fabricada
pelos homens, investida em suas técnicas e suas instituições, e que é
tecida com sua existência e sua história. (FOUCAULT, 2014, p. 52)
Por arquivo, entendo o conjunto de discursos efetivamente
pronunciados; e esse conjunto é considerado não somente como um
conjunto de acontecimentos que teriam ocorrido uma vez por todas e
que permaneceriam em suspenso, nos limbos ou no purgatório da
história, mas também como um conjunto que continua a funcionar, a se
transformar através da história, possibilitando o surgimento de outros
discursos. (FOUCAULT, 2000, p. 145)

Independentemente das tantas ilações que daí podem ser subtraídas, basta
atermo-nos à premissa de que o arquivo consiste em um ponto de vista sobre o
discurso e, ao mesmo tempo, na ocasião de sua reatualização incessante. Espaço em
que vida e morte esgrimam, compondo uma algaravia de vozes que reclamam seu
direito de ir e vir, contra toda forma de contingenciamento narrativo. E já que não
dispõe de um centro irradiador, o arquivo perfaz-se apenas pelas extremidades –
múltiplas, incontáveis, em indefectível profusão. Seu modus operandi é o da flutuação.
Dito de outro modo, trata-se da superfície de lutas discursivas em que se
forjam as composições de sentido que somos eventualmente capazes de operar com
os ecos veridictivos do passado; composições delimitadas, claro está, pelos jogos de
verdade correntes. Por isso, as modulações constantes do arquivo e, por extensão,
sua não sinonímia com a verossimilhança histórica ou a literária, estas sob a
atribuição e a jurisdição de outrem.
Novamente, com Foucault (1987, p. 150-151):
A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada: ao mesmo
tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da
orla do tempo que cerca nosso presente, que o domina e que o indica em
sua alteridade; é aquilo que, fora de nós, nos delimita.

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não mais, mas ainda: experiência, arquivo, infância

Com efeito, o arquivo não remete meramente aos despojos do tempo e aos
ruídos que deles insistem em emanar, mas ao trato que concedemos a essa matéria
espessa nas fileiras turbulentas do presente. Nem pó, nem sombra; lava, porventura.
Outra marca distintiva da noção de arquivo é oferecida pela historiadora
Arlette Farge (2009, p.11):
O arquivo não se parece nem com os textos, nem com os documentos
impressos, nem com os “relatos”, nem com as correspondências, nem
com os diários, e nem mesmo com as autobiografias. É difícil em sua
materialidade. Porquanto desmesurado, invasivo como as marés de
equinócios, as avalanchas ou as inundações.

A analogia com as forças naturais presta-se, tudo indica, a elucidar o


impacto disjuntivo do encontro com “silhuetas desfalecidas ou sublimes” (FARGE,
2009, p. 49), as quais só nos recônditos do arquivo parecem encontrar guarida, jamais
repouso. Ali não há silêncio, nem pasmaceira.
Mas tampouco haveria narrativas edificantes ali. O arquivo é, antes, o
suporte de prolongamento da inteligência dos antepassados, consubstanciada no rol
de respostas tão efetivas quanto contingentes para os problemas com que eles se
defrontaram enquanto viveram; respostas cuja transposição ao presente é vedada,
sob pena de falseamento do próprio presente.
O arquivo oferece rostos e sofrimentos, emoções e poderes criados para
controlá-los; seu conhecimento é indispensável para tentar descrever
depois a arquitetura das sociedades do passado. No fundo, o arquivo
sempre agarra pela manga aquele ou aquela que resvalaria com extrema
facilidade no estudo das formulações abstratas e de discursos sobre.
(FARGE, 2009, p. 94)

Habitar o arquivo implicará, então, o empenho em cartografar os arranjos


veridictivos de que se ocuparam nossos antepassados, as polêmicas que os
absorveram, as intrigas que os abateram, os quais não cessam de nos enredar, uma
vez que pontilham não apenas as verdades que refugamos sem pesar, mas também
aquelas que insistimos em perpetuar. Daí a conclusão de Farge (2009, p. 35): “Talvez
o arquivo não diga a verdade, mas ele diz da verdade, tal como o entendia Michel
Foucault”.
O acento argumentativo aqui volta-se, assim, ao enfrentamento do próprio
tempo a reboque não de uma reapropriação preservacionista da memória, mas da

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descontinuidade artificiosa do arquivo, nos moldes do fazer cinematográfico como


Andrei Tarkovsky (1998, p. 74) o tinha em conta:
Trata-se de selecionar e combinar os segmentos de fatos em sucessão,
conhecendo, vendo e ouvindo exatamente o que se encontra entre eles e
o tipo de ligação que os mantém unidos. Isso é cinema. De outra forma,
podemos nos deixar levar com muita facilidade para o caminho habitual
da dramaturgia, construindo uma estrutura de enredo baseada em
personagens predeterminados. O cinema deve ser livre para selecionar e
combinar eventos extraídos de um “bloco de tempo” de qualquer largura
ou comprimento.

Tempo morto, tempo redivivo. Tempo infinito em sua frágil duração.

***

A tríade jogo-experiência-arquivo, tal como delineada em nosso percurso


até o momento, oportuniza o desentranhamento de uma tópica que esteve à espreita
o tempo todo: a infância.
A tomar pelo que se testemunhou em Incêndios, dispomos de condições
suficientes para conjecturar uma mirada à infância como potência de reinvenção
discursiva que os mais novos são eventualmente capazes de materializar a partir das
pegadas que os mais velhos deixam para trás, propiciando transações veridictivas
marcadas por algum ineditismo. A ver.
Na mesma carta já referida, a mãe consola primeiramente o filho:
Se chorares, não seques tuas lágrimas / Pois eu não seco as minhas. / A
infância é uma faca encravada na garganta / E tu soubeste retirá-la. /
Agora, é preciso reaprender a engolir a saliva. / Por vezes, é um gesto
muito corajoso / Engolir a saliva. (MOUAWAD, 2013, p. 416)

A atitude de encorajamento dos mais novos, em favor de alguma altivez


ante os maus tratos perpetrados pelo mundo pregresso, é acompanhada da
consternação dos mais velhos por não terem sido capazes de privar os primeiros
desse destino, obrigando-os a oferecerem a si mesmos em holocausto. Não há
esquiva do passado. É preciso lembrar.
À filha, Nawal dirige outras palavras de cuidado:
Se estás [a sorrir], não refreies teu riso, / Pois eu não refreio o meu. / É o
riso da cólera [...]. / As mulheres da nossa família / Estão todas cheias
de cólera. / Eu estava cheia de cólera contra a minha mãe, / Tal como tu
estás cheia de cólera contra mim, / Tal como a minha mãe estava cheia
de cólera contra a mãe dela. / É preciso quebrar esse fio. (MOUAWAD,
2013, p. 416)

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não mais, mas ainda: experiência, arquivo, infância

Se, por um lado, a iniquidade do mundo parece ser, à primeira vista, o único
legado de fato que os mais velhos deixam para trás, constituindo uma urdidura
imemorial de crueldade e ressentimento, por outro, é essa mesma herança que
possibilita os mais novos não capitular diante do irremediável, obrigando-os a sair
em busca de uma continuidade renovada e, talvez, menos predatória das coisas
vivas. Não há esquiva do presente. É preciso lembrar para esquecer.
Mediante o horizonte de pensamento desencadeado em e por Incêndios,
depreende-se a irrupção de uma infância outra, arredia a qualquer encastelamento
discursivo apriorístico e, de modo inverso, adepta da errância, do desgoverno e, no
limite, do risco (AQUINO, 2012).
De modo frontal a qualquer pleito de tutela operado amiúde pelos cânones
teóricos acerca de um tal sujeito da infância, trata-se de tomar esta como uma espécie
de valência vital do eu da experiência: um modo desassombrado de enfrentamento
do íngreme arquivo do mundo, por meio do exercício de um éthos exploratório
fervilhante, este condicionado pela fricção de regimes de tempo assincrônicos,
embora intrinsecamente conexos.
Isso significa investir a experiência virtual dos mais novos – em termos
análogos àqueles do imperativo testamentário de Nawal – como suporte generativo
de um mundo comum aos homens, doravante nem à frente, nem atrás, mas ao lado
dos vivos, bem como dos mortos. Infância em estado de hibridez arquivística
permanente, portanto, regido pela gramática de um vitalismo inviolável em suas
máximas fragilidade e delicadeza.
Em outros termos, infância não como antecâmara do existir, mas como
prerrogativa ético-política de quem vive, enquanto vive, porque vive. Infância, em
suma, não como lócus originário da experiência humana, mas exatamente como sua
força de variação e, quiçá, de reinvenção.
Infância, assim, como escultura do próprio tempo, nos moldes do ofício da
edição cinematográfica, segundo o qual “juntar, fazer a montagem é algo que
perturba a passagem do tempo, interrompe-a e, simultaneamente, dá-lhe algo de

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novo. A distorção do tempo pode ser uma maneira de lhe dar expressão rítmica”
(TARKOVSKY, 1998, p. 144).
Um jogo iniciático rudimentar, em vias de algum tensionamento dos modos
de habitar o tempo que rebenta e, então, evapora em nossos órgãos. Tempo que
devasta, mas que também depura, fortalece e, depois, desfaz o que fez.
Sim, o tempo, esse “animal estranho” (MOUAWAD, 2013, p. 390).

Referências
AQUINO, Julio Groppa. Fragmentos de um discurso sobre a infância. Childhood &
Philosophy, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, p. 33-66, jan./jun. 2012.
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Recebido em: 15.05.2016


Aceito em: 18.06.2016

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