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fotopoemas

em pandemia

ÁLLAN MATSON
WESCLEY GAMA
– NEIL ARMSTRONG

(Sem título): Viagem de pesquisa feita pela ONG Casarão de Poesia às origens de Oswaldo Lamartine de Faria - Sitio Rolinha; Serra Negra do Norte, RN - 2019
©2020 Állan Matson & Wescley Gama

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parcialmente, por qualquer meio ou forma sem a citação da fonte.

Diagramação e capa
Wescley Gama
Imagem da capa
Állan Matson
Revisão
Iara Maria Carvalho

Capa: Sant'Ana mascarada: Intervenção feita pelo estilista e designer Rodrigo Gloss - Currais Novos, RN - 2020

Lançamento original em formato e-book (pdf)


Junho de 2020

1. Fotografia–brasileira.
NEIL ARMSTRONG
2. Poesia brasileira. I. Título.
CDU: 00(00)-0

Contato com os autores: wjgama@gmail.com e acemattson@gmail.com


Apresentação

FOTOPOEMAS EM PANDEMIA:
a arte e seus cotidianos afetivos
por Iara Maria Carvalho*

Para além do óbvio, a arte é um manancial de possibilidades que sedimenta vozes plurais e
sentimentos únicos. Mirar o olhar sobre o real circundante através da arte, é tarefa que exige
desprendimento e imaginação criadora, a fim de romper com os limites do possível e alcançar as
impressões do inominável e do invisível.
Ao longo da história da humanidade, a arte tem sido essa espécie de refúgio para onde o ser
humano se volta quando tudo é vazio; ou ainda um tipo de lugar como um púlpito, sobre o qual se
vociferam os clamores da coletividade, numa busca incessante por transformação.
Não seria diferente nos tempos de pandemia em que vivemos neste 2020, ano que certamente
ficará marcado como um dos mais emblemáticos da história dos homens e das mulheres sobre a Terra. A
arte, diante de tantas ameaças aos direitos humanos fundamentais, tornou-se, agora, ainda mais
necessária.
É daí que surgem os fotopoemas em pandemia, um diálogo interartístico entre o poeta Wescley
Gama e o fotógrafo Állan Matson, ambos artistas e ativistas culturais de Currais Novos, Seridó Norte-rio-
grandense.
Da seleção de 36 fotografias e 28 poemas, apreende-se registros de cotidianos afetivos dos mais
diversos. O olhar do poeta e do fotógrafo se entrecruzam em hiatos difusos, levando-nos a perguntar: quem
nasceu primeiro? A palavra ou a imagem? Eu, particularmente, respondo: isso realmente importa?
Caminhando pelo percurso discursivo deste livro, brotam aos olhos cenas poéticas tocantes. Cada
personagem evocado pelos poemas e fotografias ganham a forma de todos nós: costureiras, vendedores de
frutas, casais, crianças, cangaceiros, bichos, plantas, seres inanimados – metonímias do humano primordial,
parte abundante de nossa geografia sentimental.
O poeta Mário Quintana disse que “o fotógrafo tem a mesma função do poeta: eternizar o momento
que passa”. A vida passa por nós através do cotidiano, e é o cotidiano a força de pulsão que rege os
caminhos deste livro. Desde os gestos de homens e mulheres comuns, jeitos simples de viver e conviver nas
cidades do interior ou no campo; até os novos modos de ser e estar no mundo, que nasceram depois do
surgimento da pandemia do coronavírus.
Penso que, numa época em que o isolamento social é algo tão necessário, debruçar-se sobre um
livro cuja coluna dorsal é o AFETO, é algo que nos inspira a caminhar. Sim, porque é do afeto cotidiano e de
cotidianos repletos de afetividade que este livro se compõe. Percorrer essas páginas com o coração aberto é
um abraço possível para o momento, e que resistirá às agruras desta época, lembrando-nos que a arte
oxigena, liberta e salva, sempre.

*Iara Maria Carvalho é poeta, mestra em estudos da linguagem e agente de cultura em Currais Novos/RN
Poemas: Wescley Gama Fotografias: Állan Matson
Poente em P&B: Fazenda Santa Isabel; Currais Novos, RN - 2017
Fotopoemas em quarentena
A relação entre imagem e poema.
A fotografia documental emparelhada em prosa com o poema
estimula a ludicidade do leitor.
A multiplicidade de eventos e a polissemia das fotos casam
perfeitamente com a leveza e a nostalgia dos poemas,
causando esse evento imaginativo. Dentro de cada imagem
cabe um poema e dentro de cada poema se concebe um
retrato lírico das emoções do autor, assim como Wescley Gama
ecoa através de suas palavras.
Essa seleção de fotos de vários temas e datas valsam ao gosto e
interpretação do leitor. Cada verso desenhado em luz nas
tonalidades preto e branco equilibra-se nas estrofes, formando
novas versões e ambientando emoções. Os dois textos
paralelos se complementam e se expandem para além da
interpretação do recorte de realidade.
Állan Matson
vamos aos pães,
ao autocuidado
ao amor,

esqueçamos por um momento

as coroas, políticas e engrenagens,


as opiniões em contrário
esqueçamos por um minuto

um minuto

um minuto

de
respiração
e silêncio

Infância no sertão - Criança se alimentando tranquilamente após seu momento de lazer - Av. Albany Salustino; Currais Novos, RN - 2017
o milharal

quando a enxada chambocava a terra,


mané de barro coloria as espigas
sementeadas ainda nos grãos de milho...

e descansava como um balaio de despensa,


cheio de aguardos e cores novas.

A colheita - O agricultor e cantor Carlito Moura mostrando o resultado de sua lavoura - Chácara Nossa Senhora das Graças no Totoró de Baixo; Currais Novos, RN - 2019
a beleza obscura e gráfica
da cidade

é a plástica ideia
de que insistimos
na possível e humana teia

no sonoro sonho do recolhimento das fendas


na cor úmida das virtudes do coração.

(sem título) - Antiga casa na Rua 7 de Setembro - Currais Novos, RN - 2017


fotografia de uma hiroshima sertaneja

cheiro de lamparina
acesa
rebeldia de goteira.

vendaval de panos brancos nos varais.

Um novo acessório: Máscaras dispostas no varal - Currais Novos, RN - 2020


no frêmito
sigo
fogo-fátuo

FRETES E MUDANÇAS: Fretista carregando sua carroça na Teotônio Freire - Currais Novos, RN - Abril de 2020
lave primeiro os copos, filha.
ficam limpos, sem gordura.

e depois as colheres, garfos e facas.


tudo bem limpinho
só então cuide do restante da louça

(tapiocas giram no ar
café coando agora)

podemos jantar

Mesa do café - Estudo de natureza morta - Currais Novos, RN - 2019


tilintar de xícaras brancas de café.
vovô desce com o enxadeco,
que o inverno vai ser bom.

lavoura arcaica brilhando.

na serra de santana
chuva grossa no telhado,
gotas furando brechas,

inverno fino dentro de casa.

Caçuá: Cesta trançada de palha em cima de um chiqueiro de galinhas - Fazenda Santa Isabel; Currais Novos, RN - 2017
mulheres lavavam roupa
no olho d’água,
cantando a brancura que renascia.

A prosa e a roça: Neta e Rosailma contemplam a colheita no campo enquanto conversam - Chácara Nossa Senhora das Graças no Totoró de Baixo; Currais Novos, RN - 2020
poema para um certo Rosa:

o velho e cansado João


(recostou a velha cabaça d’água
no chão da mesa riscada a faca
e) respirou música pela última vez.

Eletricista aposentado: Ariston em sua oficina pessoal (em casa) enquanto conserta uma lanterna - Currais Novos, RN - 2020
lampejos, lampiões

facho de luz
que cinde as frestas
das árvores,
assomando no horizonte,

rompendo a tardezinha,

amarelo-queimado
a transpassar meus olhos:
dois lampiões em chamas
à procura de abrigo.

Os dois candeeiros: Produtos num vuco-vuco na rua do famigerado beco da troca - Rua Bom Jesus; Currais Novos, RN - 2020
respirava montanhas
e respingava morenezas
em tudo que via,
aquele homem de barro.

(sem título): Transeunte na feira livre - Av. Laurentino Bezerra; Currais Novos, RN - 2020
trilhos velhos brotando flores
moinho em último girar
moenda antiga encarquilhada
quero morrer ouvindo Bach.

Fita Beethoven - Currais Novos, RN - 2019


dois jovens cavalos correm ali, livres
brincantes, enamorados
sobre a folhagem seca de imensas, maternais e aconchegantes
árvores.

rios que correm


beijos que deslizam
dias que correm
abraços que deslindam
o amor mais sincero

jovens amantes nus na selva, na relva, nas águas, no mato, na mata -


densa, escura, silenciosa, fria e cheirosa,

linda, perene:
fora da curva, fora do tempo.

as folhas seguem caindo nas águas tranquilas do rio.

e tudo cicla.

e se basta.

(para Gerlana Maria)


Cavalo - Povoado Boa Vista; Currais Novos, RN - 2015
lia alpendres à tardinha,
comunicava ações às aves de rapina
e, quando acordava, ninava o café
na pequena cozinha de tirna e lembranças

Ao pé da cerca de Mandacaru - Currais Novos, RN - 2019


cochilo - minha mente singra
por sobre árvores e serras escuras,
pintadas de sombra pela noite,
que avança inútil.

nesta face fria


resvala o fim da madrugada,
anunciando um minuto de esperança
dentro de outra manhã
nascendo irrequieta,

me consumindo em luz.

Fazenda Solidão - Serra Negra do Norte, RN - 2019


quando estava sozinha à noite,
maria punha os meninos na cama
e costurava a noite,
como se fosse um sapato de bebê.

Costureira: Trabalhando na fabricação de máscaras durante a pandemia - Currais Novos, RN - 2020


abre os ombros
abre o peito
abre o coração

do outro lado do lago


do rio, do açude

do outro lado
desse enxame em chamas
e dessa surdez
aos olhos dos pequeninos do mundo

há sorrisos largos e profundos

Olhar - Currais Novos, RN - 2019


poema de estrada

por entre serras sertânicas,


aguadas pelas chuvas de abril
e serpenteadas por um velho
ônibus da Jardinense,
eu desenho um poema diminuto
nas cordas virtuais
de um telefone de bolso.

Linhas na estrada: Série de fotos feitas na estrada "Diário do estudante viajante" - 2015
na cidade ainda há de haver
alguns leitores de disquete.
as ruas vão anoitecendo devagar
e o calor cedendo a uma brisa.

as pessoas se sentam
nos botecos de calçada
e celebram o cotidiano,
mesmo sem saber.

copos de café tilintam.

dezembro desponta.

Cena Urbana - Currais Novos, RN - 2018


vários homens a caminho da olaria
bicicletavam a estrada
toda cheia de pedrinhas,
miudinhas como dedo mindinho
de menino recém-nascido.

Bagageiro - Currais Novos, RN - 2019


burros com cargas d’água
passam sede no caminho seco.

Cuidador de cavalos: Garoto alimenta cavalos nas cercanias do Cruzeiro de Currais Novos, RN -2017
bois pousados à beira de barreiros sangrando
vencem todos os relógios de parede da fazenda

Memórias do Passado: Viagem de pesquisa feita pela ONG Casarão de Poesia às origens de Oswaldo Lamartine de Faria - Sitio Rolinha; Serra Negra do Norte, RN - 2019
abro uma goiaba bem madura
seu cheiro me enraíza
mais ainda a esta manhã
com este sol das seis

me traz verdades:
não preciso refletir
sobre o cheiro de uma fruta.
ela me invade as narinas
com pureza e verdade

eu que lute pra entender isso,


a vida simples

aqui no sítio,
os muitos santos
juntos na parede,
veem uma nova ceia,
santa pela sua candura:

Uma pinha
suculenta
é generosamente
partilhada.

“Portá”: Viagem de pesquisa feita pela ONG Casarão de Poesia às origens de Oswaldo Lamartine de Faria - Sitio Caiçarinha; Serra Negra do Norte, RN - 2019
nas paredes de barro
Zé do né se encostava
e emprestava gentilezas,
dentro da tarde cinzenta.

ele sabia,
o café não tardava
e as casas de marimbondos
se preparavam rápidas
para suas histórias de trancoso.

Casebre abandonado: Zona Rural de Currais Novos, RN - 2018


desassossegavam-se os ânimos
assistidos pela vermelhidão
do céu na roça
e João
acocado)
já perto da noite (não atinava para a
vontade que nascia no vento:

ir-se somente:

mas, ao tinir das lâminas,


t
o
d
o
s

c
a
íram
e a cor da tarde morrendo
era a cor do sangue morrendo
e a luz de um homem caindo
era luz de um homem tecendo
...
um destino.

Lampião e Maria Bonita mascarados: Retratos da Currais Novos Pandêmica, RN - 2020


Há muitos andarilhos na estrada.
Passo rápido no meu carro velho amassado
e o sol reluz natural e quase esperançoso
- no meu sentir -
amanhecendo alaranjado no asfalto negro.

Passo rápido mas não sei pra quê,


não sei pra onde.
Lembro das contas não quitadas,
inquietas no porta-luvas do carro
e me pergunto se isso é importante.

Na praça de uma cidadezinha qualquer


crianças compram algodão doce
- chamávamos "barba de véi"
na infância em San Vicente.

Imagino que elas, as crianças,


acham que os adultos sabem
para onde estão indo
e o que fazem da vida.

Paro pra um café com leite.

Os andarilhos seguem.

Bazuca, o Andarilho – cantor naturalista – Currais Novos/RN - 2019


ver a vida escorrendo simples
como as gotas de sol
que descem sobre a fronte
dos vendedores de fruta
da feirinha de Pium

o ano novo vai nascendo assim


junto com a esperança
dos que abrem o ferrolho das portas
apenas para a luz entrar
e incendiar de vida as paredes:
móveis e xícaras prontas pro café.

(sem título): Senhores transitam na feira livre de Currais Novos durante a pandemia, RN - 2020
vidas secas
burlam o alarido da poeira
e o chamboque do sol
que encortina todos os laços de
sal entre as figuras.

vidas secas secam à beira de barreiros


sem água ou esperança de água,
ou o que seria a lembrança tímida
de uma caneca velha de alumínio.

vidas secas.

vidas secas.

Vi das secas a esperança líquida


vertendo nas cordas do meu pensamento
a robustez de um inverno bom.

Sede: senhor provando água do barreiro - Sítio Catunda; Currais Novos, RN - 2018
Unidade telefônica: miniestação telefônica para manter esse orelhão (o único telefone fixo na época) no Povoado Boa Vista; Currais Novos, RN - 2015
Wescley Gama nasceu Állan Matson nasceu em
em 1981, em São 1996, na cidade de
Vicente/RN. É poeta e Currais Novos/RN. É
músico, além de ativista fotógrafo documental e
cultural junto à ONG artístico no âmbito do
Casarão de Poesia, que Seridó. Graduando em
promove atividades História pela UFRN.
culturais na cidade de
Currais Novos/RN.

(Sem título): Em primeiro plano, a entrada da rua Major Salviano, e ao fundo a Casa de Cultura de Caicó, RN - 2019
Poente do Totoró; Currais Novos, RN – 2017

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