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em pandemia
ÁLLAN MATSON
WESCLEY GAMA
– NEIL ARMSTRONG
(Sem título): Viagem de pesquisa feita pela ONG Casarão de Poesia às origens de Oswaldo Lamartine de Faria - Sitio Rolinha; Serra Negra do Norte, RN - 2019
©2020 Állan Matson & Wescley Gama
Diagramação e capa
Wescley Gama
Imagem da capa
Állan Matson
Revisão
Iara Maria Carvalho
Capa: Sant'Ana mascarada: Intervenção feita pelo estilista e designer Rodrigo Gloss - Currais Novos, RN - 2020
1. Fotografia–brasileira.
NEIL ARMSTRONG
2. Poesia brasileira. I. Título.
CDU: 00(00)-0
FOTOPOEMAS EM PANDEMIA:
a arte e seus cotidianos afetivos
por Iara Maria Carvalho*
Para além do óbvio, a arte é um manancial de possibilidades que sedimenta vozes plurais e
sentimentos únicos. Mirar o olhar sobre o real circundante através da arte, é tarefa que exige
desprendimento e imaginação criadora, a fim de romper com os limites do possível e alcançar as
impressões do inominável e do invisível.
Ao longo da história da humanidade, a arte tem sido essa espécie de refúgio para onde o ser
humano se volta quando tudo é vazio; ou ainda um tipo de lugar como um púlpito, sobre o qual se
vociferam os clamores da coletividade, numa busca incessante por transformação.
Não seria diferente nos tempos de pandemia em que vivemos neste 2020, ano que certamente
ficará marcado como um dos mais emblemáticos da história dos homens e das mulheres sobre a Terra. A
arte, diante de tantas ameaças aos direitos humanos fundamentais, tornou-se, agora, ainda mais
necessária.
É daí que surgem os fotopoemas em pandemia, um diálogo interartístico entre o poeta Wescley
Gama e o fotógrafo Állan Matson, ambos artistas e ativistas culturais de Currais Novos, Seridó Norte-rio-
grandense.
Da seleção de 36 fotografias e 28 poemas, apreende-se registros de cotidianos afetivos dos mais
diversos. O olhar do poeta e do fotógrafo se entrecruzam em hiatos difusos, levando-nos a perguntar: quem
nasceu primeiro? A palavra ou a imagem? Eu, particularmente, respondo: isso realmente importa?
Caminhando pelo percurso discursivo deste livro, brotam aos olhos cenas poéticas tocantes. Cada
personagem evocado pelos poemas e fotografias ganham a forma de todos nós: costureiras, vendedores de
frutas, casais, crianças, cangaceiros, bichos, plantas, seres inanimados – metonímias do humano primordial,
parte abundante de nossa geografia sentimental.
O poeta Mário Quintana disse que “o fotógrafo tem a mesma função do poeta: eternizar o momento
que passa”. A vida passa por nós através do cotidiano, e é o cotidiano a força de pulsão que rege os
caminhos deste livro. Desde os gestos de homens e mulheres comuns, jeitos simples de viver e conviver nas
cidades do interior ou no campo; até os novos modos de ser e estar no mundo, que nasceram depois do
surgimento da pandemia do coronavírus.
Penso que, numa época em que o isolamento social é algo tão necessário, debruçar-se sobre um
livro cuja coluna dorsal é o AFETO, é algo que nos inspira a caminhar. Sim, porque é do afeto cotidiano e de
cotidianos repletos de afetividade que este livro se compõe. Percorrer essas páginas com o coração aberto é
um abraço possível para o momento, e que resistirá às agruras desta época, lembrando-nos que a arte
oxigena, liberta e salva, sempre.
*Iara Maria Carvalho é poeta, mestra em estudos da linguagem e agente de cultura em Currais Novos/RN
Poemas: Wescley Gama Fotografias: Állan Matson
Poente em P&B: Fazenda Santa Isabel; Currais Novos, RN - 2017
Fotopoemas em quarentena
A relação entre imagem e poema.
A fotografia documental emparelhada em prosa com o poema
estimula a ludicidade do leitor.
A multiplicidade de eventos e a polissemia das fotos casam
perfeitamente com a leveza e a nostalgia dos poemas,
causando esse evento imaginativo. Dentro de cada imagem
cabe um poema e dentro de cada poema se concebe um
retrato lírico das emoções do autor, assim como Wescley Gama
ecoa através de suas palavras.
Essa seleção de fotos de vários temas e datas valsam ao gosto e
interpretação do leitor. Cada verso desenhado em luz nas
tonalidades preto e branco equilibra-se nas estrofes, formando
novas versões e ambientando emoções. Os dois textos
paralelos se complementam e se expandem para além da
interpretação do recorte de realidade.
Állan Matson
vamos aos pães,
ao autocuidado
ao amor,
um minuto
um minuto
de
respiração
e silêncio
Infância no sertão - Criança se alimentando tranquilamente após seu momento de lazer - Av. Albany Salustino; Currais Novos, RN - 2017
o milharal
A colheita - O agricultor e cantor Carlito Moura mostrando o resultado de sua lavoura - Chácara Nossa Senhora das Graças no Totoró de Baixo; Currais Novos, RN - 2019
a beleza obscura e gráfica
da cidade
é a plástica ideia
de que insistimos
na possível e humana teia
cheiro de lamparina
acesa
rebeldia de goteira.
FRETES E MUDANÇAS: Fretista carregando sua carroça na Teotônio Freire - Currais Novos, RN - Abril de 2020
lave primeiro os copos, filha.
ficam limpos, sem gordura.
(tapiocas giram no ar
café coando agora)
podemos jantar
na serra de santana
chuva grossa no telhado,
gotas furando brechas,
Caçuá: Cesta trançada de palha em cima de um chiqueiro de galinhas - Fazenda Santa Isabel; Currais Novos, RN - 2017
mulheres lavavam roupa
no olho d’água,
cantando a brancura que renascia.
A prosa e a roça: Neta e Rosailma contemplam a colheita no campo enquanto conversam - Chácara Nossa Senhora das Graças no Totoró de Baixo; Currais Novos, RN - 2020
poema para um certo Rosa:
Eletricista aposentado: Ariston em sua oficina pessoal (em casa) enquanto conserta uma lanterna - Currais Novos, RN - 2020
lampejos, lampiões
facho de luz
que cinde as frestas
das árvores,
assomando no horizonte,
rompendo a tardezinha,
amarelo-queimado
a transpassar meus olhos:
dois lampiões em chamas
à procura de abrigo.
Os dois candeeiros: Produtos num vuco-vuco na rua do famigerado beco da troca - Rua Bom Jesus; Currais Novos, RN - 2020
respirava montanhas
e respingava morenezas
em tudo que via,
aquele homem de barro.
(sem título): Transeunte na feira livre - Av. Laurentino Bezerra; Currais Novos, RN - 2020
trilhos velhos brotando flores
moinho em último girar
moenda antiga encarquilhada
quero morrer ouvindo Bach.
linda, perene:
fora da curva, fora do tempo.
e tudo cicla.
e se basta.
me consumindo em luz.
do outro lado
desse enxame em chamas
e dessa surdez
aos olhos dos pequeninos do mundo
Linhas na estrada: Série de fotos feitas na estrada "Diário do estudante viajante" - 2015
na cidade ainda há de haver
alguns leitores de disquete.
as ruas vão anoitecendo devagar
e o calor cedendo a uma brisa.
as pessoas se sentam
nos botecos de calçada
e celebram o cotidiano,
mesmo sem saber.
dezembro desponta.
Cuidador de cavalos: Garoto alimenta cavalos nas cercanias do Cruzeiro de Currais Novos, RN -2017
bois pousados à beira de barreiros sangrando
vencem todos os relógios de parede da fazenda
Memórias do Passado: Viagem de pesquisa feita pela ONG Casarão de Poesia às origens de Oswaldo Lamartine de Faria - Sitio Rolinha; Serra Negra do Norte, RN - 2019
abro uma goiaba bem madura
seu cheiro me enraíza
mais ainda a esta manhã
com este sol das seis
me traz verdades:
não preciso refletir
sobre o cheiro de uma fruta.
ela me invade as narinas
com pureza e verdade
aqui no sítio,
os muitos santos
juntos na parede,
veem uma nova ceia,
santa pela sua candura:
Uma pinha
suculenta
é generosamente
partilhada.
“Portá”: Viagem de pesquisa feita pela ONG Casarão de Poesia às origens de Oswaldo Lamartine de Faria - Sitio Caiçarinha; Serra Negra do Norte, RN - 2019
nas paredes de barro
Zé do né se encostava
e emprestava gentilezas,
dentro da tarde cinzenta.
ele sabia,
o café não tardava
e as casas de marimbondos
se preparavam rápidas
para suas histórias de trancoso.
ir-se somente:
c
a
íram
e a cor da tarde morrendo
era a cor do sangue morrendo
e a luz de um homem caindo
era luz de um homem tecendo
...
um destino.
Os andarilhos seguem.
(sem título): Senhores transitam na feira livre de Currais Novos durante a pandemia, RN - 2020
vidas secas
burlam o alarido da poeira
e o chamboque do sol
que encortina todos os laços de
sal entre as figuras.
vidas secas.
vidas secas.
Sede: senhor provando água do barreiro - Sítio Catunda; Currais Novos, RN - 2018
Unidade telefônica: miniestação telefônica para manter esse orelhão (o único telefone fixo na época) no Povoado Boa Vista; Currais Novos, RN - 2015
Wescley Gama nasceu Állan Matson nasceu em
em 1981, em São 1996, na cidade de
Vicente/RN. É poeta e Currais Novos/RN. É
músico, além de ativista fotógrafo documental e
cultural junto à ONG artístico no âmbito do
Casarão de Poesia, que Seridó. Graduando em
promove atividades História pela UFRN.
culturais na cidade de
Currais Novos/RN.
(Sem título): Em primeiro plano, a entrada da rua Major Salviano, e ao fundo a Casa de Cultura de Caicó, RN - 2019
Poente do Totoró; Currais Novos, RN – 2017