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O cheiro de anil exalava da anágua (*) Versão ampliada do texto lido na mesa
no varal. A peça secava sob o sol do Rio de de encerramento do evento Temas e
Janeiro. Quanto mais seca mais volumosa. Debates -20 Anos do Programa de Pós-
Sobre a anágua a saia estampada aguardava Graduação em Psicologia Social da
o instante para adornar a velha passista da UFRGS, realizado em outubro de 2018.
ala das baianas, ou o corpo da filha de santo.
O sol testemunhava, a cada festa de
Na barra do tecido de morim o bordado de
santo, a cada desfile na avenida, a diferença
richelieu¹ endurecia na corda de arame do
dos bordados na barra do pano engomado.
verão carioca. Nos becos das favelas, nos
Ano após ano formas e cores variavam
quintais suburbanos, o cheiro de anil, o
tecidas à mão pelas bordadeiras do
aroma da goma de maisena invadia a
richelieu: pássaros, flores, símbolos dos
atmosfera dos dias anteriores ao desfile da
orixás eram lembrados como registro das
escola de samba, assim como ao das festas
festas cotidianas. Moldes antigos para a
nos terreiros onde os deuses dançam. Nos
tecelagem da renda ganhavam contornos
quintais e nos becos avistavam-se indícios
inéditos. Dos quintais o traçado das linhas
de que algo importante para a cidade iria
feito a mão exibia o desafio de não repetir o
acontecer. Aguardavam o chamamento dos
mesmo desenho. No varal, a anágua
tambores. A terra batida dos terreiros, o
bordada prenunciava que o som dos
asfalto da avenida, seriam ocupados por
tambores traria à cidade a
sons onde corpo, memória e música se
indissociabilidade entre música e memória.
entrelaçariam como as linhas do richelieu.
Rev. Polis e Psique; 20 ANOS DO PPGPSI/UFRGS, 2019: 162 - 170 162
Baptista, L.
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tambor. Tocava com tanto gosto e maestria repetição do brincar infantil como uma
que a Morte ficou maravilhada, não quis experiência política devastadora.6
que ele morresse e o avisou da armadilha.
Ela (a criança) não quer fazer
Icu se pôs a dançar inebriadamente,
a mesma coisa apenas duas vezes, mas
enfeitiçado pelo som do tambor do menino.
sempre de novo, cem e mil
Quando o irmão se cansou de tanto
vezes. Não se trata apenas de assenhorear-
tocar, o outro, que estava escondido no
se de experiências
mato, trocou de lugar com o irmão, sem
terríveis e primordiais pelo amortecimento
que Icu nada percebesse. E assim um irmão
gradual, pela invocação
substituía o outro e a música jamais
maliciosas, pela paródia; trata-se também
cessava. E Icu dançava sem fazer sequer
de saborear
uma pausa. Icu, ainda que estivesse
repetidamente, do modo mais
muito cansada, não conseguia parar de
intenso, as mesmas vitórias e triunfos. O
dançar. E o tambor continuava
adulto alivia seu coração do
soando seu ritmo irresistível. Icu implorava,
medo e goza duplamente sua felicidade
queria descansar um pouco. Os
quando narra sua
Ibejis então lhe propuseram um pacto. A
experiência. A criança recria essa
música pararia, mas a Morte teria
experiência, começa
que jurar que retiraria todas as armadilhas.
sempre tudo de novo, desde o início.
Icu não tinha escolha, rendeu-se. Os
Talvez seja esta a raiz mais
gêmeos venceram. Foi assim que os Ibejis
profunda do duplo sentido da
salvaram os homens e ganharam fama
palavra alemã Spielen (brincar e
de muito poderosos, porque nenhum outro
representar): repetir o
orixá conseguiu ganhar aquela peleja com
mesmo seria seu elemento comum. A
a Morte. Os Ibejis são poderosos, mas o que
essência da
eles gostam mesmo é de brincar.
representação, como da brincadeira,
Qual o poder de um tambor? não é “fazer como se”, mas “fazer
sempre de novo”, é a
Da astúcia dos gêmeos a música e o
transformação em hábito de uma
revezamento enfrentam as armadilhas de
experiência devastadora
Icu. Na repetição do toque dos tambores a
(Benjamin, 1994, p. 253).
brincadeira tornara-se um potente ato de
combate. Walter Benjamin define a Qual o poder do revezamento no
toque do tambor? Por que revezar? Qual
5
uma exigência fundamental e traz como
Lenda iorubá descrita por Prandi, 2001, p.
conseqüência o fato de que “a história a
366.
contrapelo” do passado e a reflexão crítica
6
Sobre o sentido político do ato de brincar sobre o presente coincidem” (Gagnebin,
em Benjamin, Gagnebin afirma: “Crianças 2014, p. 257).
e artistas se põem a experimentar com o
mundo, isto é, a destruí-lo e a reconstruí-lo,
porque não o consideram como Referências
definitivamente dado. Essas brincadeiras
BAPTISTA, L.A.S. Artes da Cidade. O
essenciais implicam uma noção política que sagrado e a barbárie de um homem
comum. In: Emerson Fernando Rasera;
não visa a transformação do mundo
Maristela de Souza Pereira; Dolores
segundo normas prefixadas, mas a partir de Galindo. (Org.). Democracia
Participativa, Estado e Laicidade:
Rev. Polis e Psique; 20 ANOS DO PPGPSI/UFRGS, 2019: 162 - 169
A Cidade dos Tambores
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