Você está na página 1de 26

Cesário Verde

ANTOLOGIA POÉTICA

Ilustrações de José Manuel Saraiva


Cesário Verde
ANTOLOGIA POÉTICA

Ilustrações de José Manuel Saraiva


Edição literária de Margarida Noronha e José Manuel Saraiva
ÍNDICE

CONTRARIEDADES 9

NUM BAIRRO MODERNO 13

CRISTALIZAÇÕES 19

DE VERÃO 23

O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL 28


I – AVE MARIAS // NAS NOSSAS RUAS, AO ANOITECER, 28
II – NOITE FECHADA // TOCA-SE AS GRADES, NAS CADEIAS. SOM 31
III – AO GÁS // E SAIO. A NOITE PESA, ESMAGA. NOS 34
IV – HORAS MORTAS // O TETO FUNDO DE OXIGÉNIO, D’AR, 37

NÓS 39
I // FOI QUANDO EM DOIS VERÕES, SEGUIDAMENTE, A FEBRE 39

DESLUMBRAMENTOS 43

ARROJOS 45

DE TARDE 49

LÚBRICA 50

HUMILHAÇÕES 53

MERIDIONAL 57

A DÉBIL 59

Autor: CESÁRIO VERDE 62

Ilustrador: JOSÉ MANUEL SARAIVA 64


Treze poemas em cada livro,
treze poemas como treze luas,
como os treze poemas do calendário lunar.

A lua, esse ser cambiante


que muda a sua face de espelho circular.
Senhora das marés, astro da fecundidade.
Ritmos lunares para dar medida ao tempo,
ao tempo poético.
Cesário Verde
ANTOLOGIA POÉTICA
CONTRARIEDADES

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;


Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:


Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora


Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas d'ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco, entre as nevadas roupas!


Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;


Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta


No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

9
A Crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras exceções merece-me o epigrama.


Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,


Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingénuo os abandone,


Se forem publicar tais cousas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,


Obtém dinheiro, arranja a sua «coterie»;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;


Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos...

10
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.


Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.


Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;


Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras…

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?


A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!

12
NUM BAIRRO MODERNO

A Manuel Ribeiro

Dez horas da manhã; os transparentes


Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se os nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.

Rez-de-chaussée repousam sossegados,


Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu conchego,


E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quasi sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,


Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a:


Pôs-se de pé, ressoam-lhe os tamancos,
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.

13
Do patamar responde-lhe um criado:
«Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.» E muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.

Subitamente, – que visão de artista! –


Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!

Boiam aromas, fumos de cozinha;


Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,


Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injetados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,


Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos – ossos nus, da cor do leite,
E os cachos d’uvas – os rosários d’olhos.

14
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como d'alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,


Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O sol dourava o céu. E a regateira,


Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me prazenteira:
«Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!...»

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;


E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.

«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»


E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude,
Ou duma digestão desconhecida.

15
E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira


Duma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias,


Ouço um canário – que infantil chilrada! –
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz, na sua chita,


O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.

E como as grossas pernas dum gigante,


Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.

16
Cesário Verde
Lisboa, 1855 - Paço do Lumiar, 1886
José Joaquim Cesário Verde nasceu em Lisboa no dia de São Cesário, a 25 de fevereiro
de 1855. Nesse ano, Baudelaire publicava na Revue des Deux Mondes 18 poemas que
posteriormente seriam incluídos em As Flores do Mal, obra cuja influência viria a ser
relevante em Cesário e em O Livro, não só pela sua temática, simbólica e imagística,
como também pela sua própria estrutura. Oriundo de uma família burguesa, desde
jovem que Cesário se repartiu entre a loja de ferragens da baixa lisboeta de que o seu
pai era proprietário e a quinta da família de Linda-a-Pastora; satisfazendo, margi-
nal e simultaneamente, o seu gosto pelas letras. Aos 18 anos, em 1873, matriculou-se,
por breves meses, no Curso Superior de Letras, começando a frequentar os meios
literários e as tertúlias intelectuais da capital. É por essa época que, pela primeira vez,
se publicam poemas seus no Diário de Notícias, passando o poeta a colaborar dora-
vante em jornais e revistas. A partir de 1875, escreve alguns dos seus melhores poe-
mas, vindo a lume, em 1880, «O Sentimento dum Ocidental», que seria mal rece-
bido e incompreendido pela crítica de então. Cesário, desiludido, passa a dedicar-se
em exclusivo aos negócios familiares e só quatro anos depois, em 1884, é que volta a
publicar o longo e pungente poema narrativo autobiográfico – «Nós» –, cuja
primeira parte apenas é reproduzida nesta antologia, e onde o poeta evoca a morte de
uma irmã e de um irmão, ambos de tuberculose, doença que o viria igualmente a viti-
mar aos 31 anos, a 19 de julho de 1886, numa quinta no Paço do Lumiar, às portas de
Lisboa.
Só no ano seguinte, em 1887, é que viria a ser organizada, postumamente, e por ini-
ciativa do seu amigo Silva Pinto, uma compilação dos seus poemas, a que se deu o
nome de O Livro de Cesário Verde, de acordo com um plano que constava entre os ma-
nuscritos oferecidos àquele por Jorge Verde, irmão do poeta. Não isento de polémi-
ca, O Livro de Cesário Verde tem conhecido até à data diferentes fixações e edições.
Poeta de um só livro, como Pessanha, a quem influenciou, Cesário, naturalista e sim-
bolista, edificou-se sob a égide do realismo e do parnasianismo literários e impôs-
-se, sobretudo, pela sua oposição ao lirismo tradicional e pela exploração de uma lin-
guagem do concreto e de um tom natural, abrindo assim caminho ao modernismo e
ao neorrealismo, ao mesmo tempo que marcava, no século XIX, uma renovação sin-
gular na estilística poética portuguesa. Os seus versos, prosaicos, de pinceladas
impressionistas, sugestivos, condensando sensações físicas e morais, retratam a
temática do amor e da mulher, da cidade e do campo, seus cenários prediletos, e re-
velam uma visão extraordinariamente plástica do mundo, por parte daquele que é
conhecido como o poeta da cidade de Lisboa, mas também da natureza antiliterária:
«A mim o que me rodeia é o que me preocupa», escreveu ele em carta a Silva Pinto,
e muito justamente, quiçá!
Margarida Noronha

63
José Manuel Saraiva
Porto, 1974
Ilustrar Cesário é acrescentar, preencher, rechear, esvaziar, fender, divagar
entre o poeta e as suas palavras, entre o que se lê e o que se quer ler.
Parti de Contrariedades, escritas por um Cesário fiel, até ao fim, à integridade
do seu projeto estético, recusando afundar-se nas violentas críticas que o
acossaram em vida. E segui, vislumbrando uma imagística surrealista na
recomposição do corpo, cidades que se ergueram do suor dos homens do
campo, o labor das gentes campestres, sentimentos num passeio por uma
Lisboa em decadência, o contraste entre o vigor do campo e a enfermidade
da cidade, a revolta contra uma mulher enquanto símbolo de uma classe
soberba, o poder do olhar feminino, a serenidade de uma tarde ao relento, a
entrega ao desejo erótico, a ilusão pela amada altiva que humilha a alma, o
submergir em busca da sensualidade libertadora e a inocência da débil mu-
lher acossada.
Ilustrar Cesário é ter o privilégio de estudar a fundo o poeta disfarçado de
comercial que geriu o negócio da família sem nunca abandonar a sua escrita,
nascida da análise do real, o seu real. O poeta de um único livro póstumo, de
uma obra que resiste. Hoje e sempre.
José Manuel Saraiva

65
«Não quero nada, deixa-me dormir.»

Foi com estas palavras, proferidas ao único irmão que lhe sobreviveu,
que Cesário Verde se despediu da vida.
E este livro, que saiu do prelo em novembro de 2011,
pretende muito simplesmente homenagear
este poeta de versos tão intensos quão singulares.
Este livro convida-o a ler um poema por dia,
ou por semana,
ou mês lunar.
Depois, pode deixá-lo a repousar numa estante,
aberto na ilustração que quiser,
que é, nem mais nem menos,
a leitura que José Manuel Saraiva fez das palavras da poeta,
para deleite dos nossos olhos e do nosso olhar mais pessoal.

Desfrute-o!

Coleção: Treze Luas

© do texto: Cesário Verde, 2011


© das ilustrações: José Manuel Saraiva, 2011
© desta edição: Kalandraka Editora Portugal Lda., 2011
Rua Alfredo Cunha, n.º 37, Salas 34 e 56
4450-023 Matosinhos - Portugal
Telefone: (00351) 22 9375718
editora@kalandraka.pt
www.kalandraka.pt

Faktoria K de Livros é uma chancela da Kalandraka Editora


Edição literária: Margarida Noronha e José Manuel Saraiva

Impresso em Gráficas Anduriña


Primeira edição: novembro, 2011
ISBN: 978-989-8205-74-2
DL: 334080/11

Reservados todos os direitos


(Os poemas e os textos desta obra foram fixados e compostos ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.)

Você também pode gostar