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ANTOLOGIA POÉTICA
CONTRARIEDADES 9
CRISTALIZAÇÕES 19
DE VERÃO 23
NÓS 39
I // FOI QUANDO EM DOIS VERÕES, SEGUIDAMENTE, A FEBRE 39
DESLUMBRAMENTOS 43
ARROJOS 45
DE TARDE 49
LÚBRICA 50
HUMILHAÇÕES 53
MERIDIONAL 57
A DÉBIL 59
9
A Crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.
10
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!
12
NUM BAIRRO MODERNO
A Manuel Ribeiro
13
Do patamar responde-lhe um criado:
«Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.» E muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.
14
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como d'alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
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E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
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Cesário Verde
Lisboa, 1855 - Paço do Lumiar, 1886
José Joaquim Cesário Verde nasceu em Lisboa no dia de São Cesário, a 25 de fevereiro
de 1855. Nesse ano, Baudelaire publicava na Revue des Deux Mondes 18 poemas que
posteriormente seriam incluídos em As Flores do Mal, obra cuja influência viria a ser
relevante em Cesário e em O Livro, não só pela sua temática, simbólica e imagística,
como também pela sua própria estrutura. Oriundo de uma família burguesa, desde
jovem que Cesário se repartiu entre a loja de ferragens da baixa lisboeta de que o seu
pai era proprietário e a quinta da família de Linda-a-Pastora; satisfazendo, margi-
nal e simultaneamente, o seu gosto pelas letras. Aos 18 anos, em 1873, matriculou-se,
por breves meses, no Curso Superior de Letras, começando a frequentar os meios
literários e as tertúlias intelectuais da capital. É por essa época que, pela primeira vez,
se publicam poemas seus no Diário de Notícias, passando o poeta a colaborar dora-
vante em jornais e revistas. A partir de 1875, escreve alguns dos seus melhores poe-
mas, vindo a lume, em 1880, «O Sentimento dum Ocidental», que seria mal rece-
bido e incompreendido pela crítica de então. Cesário, desiludido, passa a dedicar-se
em exclusivo aos negócios familiares e só quatro anos depois, em 1884, é que volta a
publicar o longo e pungente poema narrativo autobiográfico – «Nós» –, cuja
primeira parte apenas é reproduzida nesta antologia, e onde o poeta evoca a morte de
uma irmã e de um irmão, ambos de tuberculose, doença que o viria igualmente a viti-
mar aos 31 anos, a 19 de julho de 1886, numa quinta no Paço do Lumiar, às portas de
Lisboa.
Só no ano seguinte, em 1887, é que viria a ser organizada, postumamente, e por ini-
ciativa do seu amigo Silva Pinto, uma compilação dos seus poemas, a que se deu o
nome de O Livro de Cesário Verde, de acordo com um plano que constava entre os ma-
nuscritos oferecidos àquele por Jorge Verde, irmão do poeta. Não isento de polémi-
ca, O Livro de Cesário Verde tem conhecido até à data diferentes fixações e edições.
Poeta de um só livro, como Pessanha, a quem influenciou, Cesário, naturalista e sim-
bolista, edificou-se sob a égide do realismo e do parnasianismo literários e impôs-
-se, sobretudo, pela sua oposição ao lirismo tradicional e pela exploração de uma lin-
guagem do concreto e de um tom natural, abrindo assim caminho ao modernismo e
ao neorrealismo, ao mesmo tempo que marcava, no século XIX, uma renovação sin-
gular na estilística poética portuguesa. Os seus versos, prosaicos, de pinceladas
impressionistas, sugestivos, condensando sensações físicas e morais, retratam a
temática do amor e da mulher, da cidade e do campo, seus cenários prediletos, e re-
velam uma visão extraordinariamente plástica do mundo, por parte daquele que é
conhecido como o poeta da cidade de Lisboa, mas também da natureza antiliterária:
«A mim o que me rodeia é o que me preocupa», escreveu ele em carta a Silva Pinto,
e muito justamente, quiçá!
Margarida Noronha
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José Manuel Saraiva
Porto, 1974
Ilustrar Cesário é acrescentar, preencher, rechear, esvaziar, fender, divagar
entre o poeta e as suas palavras, entre o que se lê e o que se quer ler.
Parti de Contrariedades, escritas por um Cesário fiel, até ao fim, à integridade
do seu projeto estético, recusando afundar-se nas violentas críticas que o
acossaram em vida. E segui, vislumbrando uma imagística surrealista na
recomposição do corpo, cidades que se ergueram do suor dos homens do
campo, o labor das gentes campestres, sentimentos num passeio por uma
Lisboa em decadência, o contraste entre o vigor do campo e a enfermidade
da cidade, a revolta contra uma mulher enquanto símbolo de uma classe
soberba, o poder do olhar feminino, a serenidade de uma tarde ao relento, a
entrega ao desejo erótico, a ilusão pela amada altiva que humilha a alma, o
submergir em busca da sensualidade libertadora e a inocência da débil mu-
lher acossada.
Ilustrar Cesário é ter o privilégio de estudar a fundo o poeta disfarçado de
comercial que geriu o negócio da família sem nunca abandonar a sua escrita,
nascida da análise do real, o seu real. O poeta de um único livro póstumo, de
uma obra que resiste. Hoje e sempre.
José Manuel Saraiva
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«Não quero nada, deixa-me dormir.»
Foi com estas palavras, proferidas ao único irmão que lhe sobreviveu,
que Cesário Verde se despediu da vida.
E este livro, que saiu do prelo em novembro de 2011,
pretende muito simplesmente homenagear
este poeta de versos tão intensos quão singulares.
Este livro convida-o a ler um poema por dia,
ou por semana,
ou mês lunar.
Depois, pode deixá-lo a repousar numa estante,
aberto na ilustração que quiser,
que é, nem mais nem menos,
a leitura que José Manuel Saraiva fez das palavras da poeta,
para deleite dos nossos olhos e do nosso olhar mais pessoal.
Desfrute-o!