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NÃO QUERO RECORDAR NEM CONHECER-ME

Não quero recordar nem conhecer-me.


Somos demais se olhamos em quem somos.
Ignorar que vivemos
Cumpre bastante a vida.

Tanto quanto vivemos, vive a hora


Em que vivemos, igualmente morta
Quando passa connosco,
Que passamos com ela.

Se sabê-lo não serve de sabê-lo


(Pois sem poder que vale conhecermos?),
Melhor vida é a vida
Que dura sem medir-se.

Ricardo Reis, O guardador de rebanhos

COMEÇO A CONHECER-ME. NÃO EXISTO


Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulho de chinelas no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.

Álvaro de Campos, Tabacaria e outros poemas

NÃO, NÃO É CANSAÇO…


Não, não é cansaço…
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo…
Não, cansaço não é…
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço por quê?


É uma sensação abstracta
Da vida concreta –
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como…
Sim, ou por sofrer como…
Isso mesmo, como…

Como quê?…
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,


Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.


Confesso: é cansaço!…

-
O FUNCIONÁRIO CANSADO
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado de um dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música.
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

António Ramos Rosa, O grito claro (1958)

António Vítor Ramos Rosa nasceu a 17 de outubro de 1924, em Faro, Portugal. Com mais
de 50 obras publicadas, é considerado um dos mais importantes e influentes poetas do século
XX em seu país ao desenvolver uma importante atividade nos domínios da teorização e da
criação poética. Foi militante do MUD (Movimento de União Democrática), de oposição ao
regime salazarista, chegando a ser preso.António Ramos Rosa ganha destaque no meio
literário português no início da década de 50, ao fundar e fazer parte de revistas importantes,
principalmente a “Árvore”, que ele organizou juntos com outros poetas da época, como
António Luís Moita, José Terra, Luís Amaro e Raul de Carvalho, e que apresentava poemas
de legado surrealista, primando uma postura de isenção aos feixes estéticos que atravessavam
a época e apontando uma evolução da poesia neorrealista. António Ramos Rosa recebeu,
entre outros, o prêmio Fernando Pessoa, em 1988; o prêmio PEN Clube Português e o
Grande Prêmio de Poesia Associação Portuguesa de Escritores/CTT – Correios de Portugal,
em 2006, pela obra Gênese (2005); e o prêmio Luís Miguel Nava (2006) pelas obras de poesia
publicadas no ano anterior: “Gênese e Constelações”.
António Ramos Rosa faleceu a 23 de setembro de 2013, em Lisboa, Portugal.

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