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Alberto Caeiro

X - «Olá, guardador de rebanhos,

«Olá, guardador de rebanhos,

Aí à beira da estrada,

Que te diz o vento que passa?»

«Que é vento, e que passa,

E que já passou antes,

E que passará depois.

E a ti o que te diz?»

«Muita coisa mais do que isso,

Fala-me de muitas outras coisas.

De memórias e de saudades

E de coisas que nunca foram.»

«Nunca ouviste passar o vento.

O vento só fala do vento.

O que lhe ouviste foi mentira,

E a mentira está em ti.»

s.d.

“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa


e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

- 40.

“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.


XXIII - O meu olhar azul como o céu

O meu olhar azul como o céu

É calmo como a água ao sol.

É assim, azul e calmo,

Porque não interroga nem se espanta...

Se eu interrogasse e me espantasse

Não nasciam flores novas nos prados

Nem mudaria qualquer coisa no sol de modo a ele ficar mais belo...

(Mesmo se nascessem flores novas no prado

E se o sol mudasse para mais belo,

Eu sentiria menos flores no prado

E achava mais feio o sol...

Porque tudo é como é e assim é que é,

E eu aceito, e nem agradeço,

Para não parecer que penso nisso…)

s.d.

“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa


e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

- 49.

XXVIII - Li hoje quase duas páginas

Li hoje quase duas páginas

Do livro dum poeta místico,

E ri como quem tem chorado muito.

Os poetas místicos são filósofos doentes,

E os filósofos são homens doidos.


Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem

E dizem que as pedras têm alma

E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas as flores, se sentissem, não eram flores,

Eram gente;

E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;

E se os rios tivessem êxtases ao luar,

Os rios seriam homens doentes.

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios

Para falar dos sentimentos deles.

Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,

É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.

Graças a Deus que as pedras são só pedras,

E que os rios não são senão rios,

E que as flores são apenas flores.

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos

E fico contente,

Porque sei que compreendo a Natureza por fora;

E não a compreendo por dentro

Porque a Natureza não tem dentro;

Senão não era a Natureza.

s.d.

“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa


e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

- 53.

“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.


Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,

Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,

Porque para o meu ser adequado à existência das coisas

O natural é o agradável só por ser natural.

Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,

Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno—

Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,

E encontra uma alegria no facto de aceitar—

No facto sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.

Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece

Senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida?

O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,

Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime,

Da mesma inevitável exterioridade a mim,

Que o calor da terra no alto do Verão

E o frio da terra no cimo do Inverno.

Aceito por personalidade.

Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,

Mas nunca ao erro de querer compreender demais,

Nunca ao erro de querer compreender só com a inteligência.

Nunca ao defeito de exigir do Mundo

Que fosse qualquer coisa que não fosse o Mundo.

24-10-1917

“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e


notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

- 92.
III - Ao entardecer, debruçado pela janela,

Ao entardecer, debruçado pela janela,

E sabendo de soslaio que há campos em frente.

Leio até me arderem os olhos

O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês

Que andava preso em liberdade pela cidade.

Mas o modo como olhava para as casas,

E o modo como reparava nas ruas,

E a maneira como dava pelas coisas,

É o de quem olha para árvores,

E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando

E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza

Que ele nunca disse bem que tinha,

Mas andava na cidade como quem anda no campo

E triste como esmagar flores em livros

E pôr plantas em jarros...

s.d.

“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa


e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

- 25.
Ricardo Reis

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre.

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre.

E deseja o destino que deseja;

Nem cumpre o que deseja,

Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros

O Fado nos dispõe, e ali ficamos;

Que a Sorte nos fez postos

Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento

Do que nos coube que de que nos coube.

Cumpramos o que somos.

Nada mais nos é dado.

29-7-1923

Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).

- 171.

Da nossa semelhança com os deuses

Da nossa semelhança com os deuses


Por nosso bem tiremos
Julgarmo-nos deidades exiladas
E possuindo a Vida
Por uma autoridade primitiva
E coeva de Jove.

Altivamente donos de nós-mesmos,


Usemos a existência
Como a vila que os deuses nos concedem
Para esquecer o Estio.

Não de outra forma mais apoquentada


Nos vale o esforço usarmos
A existência indecisa e afluente
Fatal do rio escuro.
Como acima dos deuses o Destino
É calmo e inexorável,
Acima de nós-mesmos construamos
Um fado voluntário
Que quando nos oprima nós sejamos
Esse que nos oprime,
E quando entremos pela noite dentro
Por nosso pé entremos.
30-7-1914

Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).

- 40.

Antes de nós nos mesmos arvoredos

Antes de nós nos mesmos arvoredos


Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde.


Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.

Tentemos pois com abandono assíduo


Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.

Inutilmente parecemos grandes.


Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.

Se aqui, à beira-mar, o meu indício


Na areia o mar com ondas três o apaga.
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?
8-10-1914

Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).

- 52.
Sofro, Lídia, do medo do destino. [1]

Sofro, Lídia, do medo do destino.

Qualquer pequena cousa de onde pode

Brotar uma ordem nova em minha vida,

Lídia, me aterra.

Qualquer cousa, qual seja, que transforme

Meu plano curso de existência, embora

Para melhores cousas o transforme,

Por transformar

Odeio, e não o quero. Os deuses dessem

Que ininterrupta minha vida fosse

Uma planície sem relevos, indo

Até ao fim.

A glória embora eu nunca haurisse, ou nunca

Amor ou justa estima dessem-me outros,

Basta que a vida seja só a vida

E que eu a viva.

26-5-1917

Poemas de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte.) Lisboa:
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1994.

- 80.

Uns, com os olhos postos no passado,

Uns, com os olhos postos no passado,


Veem o que não veem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, veem
O que não pode ver-se.

Porque tão longe ir pôr o que está perto —


A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora


Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
28-8-1933

Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).

- 154.

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