Você está na página 1de 17

ONDE CANTA O SABIÁ?

Paródias e releituras da “Canção do Exílio”,


de Gonçalves Dias
“Nossos bosques têm mais vida/ Nossa vida, no teu seio, mais amores”: esses
versos certamente soam familiares para você, que logo se lembra das sessões cívicas
no colégio ou das partidas da seleção na Copa do Mundo. O que você talvez não saiba
é que eles existem há muito mais tempo que a letra do Hino Nacional Brasileiro, de
autoria de Osório Duque-Estrada. Na verdade, esses versos foram compostos por
Gonçalves Dias (1823–1864), importante poeta da primeira fase do Romantismo
brasileiro, e figuram em um poema intitulado “Canção do Exílio”. Leia as estrofes iniciais:

Minha terra tem palmeiras


Onde canta o Sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,


Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

(...)

O maranhense Antônio Gonçalves Dias (1823–1864) pertence a uma linhagem


de escritores empenhados em exaltar um Brasil ainda jovem, recém-independente de
Portugal. Como era de se esperar, esses artistas voltaram seus olhos para nossas
riquezas naturais, de fazer inveja em qualquer europeu. Indianista convicto, Dias chegou
até mesmo a viajar para a Amazônia em 1850 a fim de estudar a cultura e a língua das
tribos locais, retornando com o Dicionário da Língua Tupi.
O poema “Canção do Exílio” traz muito dessa cor local valorizada pelos primeiros
românticos: cantam-se as aves, os bosques, as várzeas, o céu — elementos que enchem
de saudade um eu-lírico exilado no continente europeu, mais especificamente em
Coimbra, cidade portuguesa. Ganha destaque a figura do sabiá, ave de canto melodioso,
representando não apenas a fauna, mas os poetas do Brasil. A constante oposição entre
o “aqui” e o “lá”, sendo “lá” sempre muito mais atrativo que “aqui”, revela o projeto
romântico de exaltação da pátria, agora em pé de igualdade com seus antigos
colonizadores.
A forma do poema é simples: 24 versos, agrupados em três estrofes de quatro
versos e duas estrofes de seis. O verso é aquele de sete sílabas métricas, também
chamado de redondilha maior. É um tipo de verso muito empregado na tradição popular
e facilmente reconhecível em cantigas de roda: perceba como “Minha terra tem
palmeiras/ Onde canta o sabiá” soa muito parecido com “Se essa rua fosse minha/ Eu
mandava ladrilhar”, ou com “Atirei o pau no gato/ Mas o gato não morreu”, ou com
“Vamos dar a meia-volta/ Volta e meia vamos dar”... Trata-se de um ritmo singelo e fácil
de memorizar. Não é à toa que o poema se popularizou tanto.
Falando nisso, a “Canção do Exílio” é um dos textos mais parodiados da literatura
brasileira, isto é, muitos autores leram o poema de Gonçalves Dias e escreveram sua
própria canção do exílio, enriquecendo o diálogo com diferentes visões e opiniões sobre
o Brasil. Há paródias de todas as épocas e de todos os gêneros: até o compositor Chico
Buarque e o comediante Jô Soares deram seu parecer sobre o assunto. Nossa seleção
de paródias contempla algumas das mais curiosas e interessantes intertextualidades.
Portanto, nada mais conveniente que, no ano do bicentenário de Gonçalves Dias,
escutemos o que ele e, a partir dele, outros grandes artistas brasileiros têm a dizer sobre
nossa terra e nosso povo. Mais do que isso: avaliando o saldo desses últimos anos de
pandemia, em que nos vimos praticamente exilados do mundo exterior, por que não nos
juntamos ao time e escrevemos nossas próprias canções? Boa leitura e mãos à obra!
CANÇÃO DO EXÍLIO
Gonçalves Dias (1843)

Kennst du das Land, wo die Zitronen blühen,


Im dunklen Laub die Gold-Orangen glühen?
Kennst du es wohl? — Dahin, dahin!
Möcht ich... ziehn.

[Conheces o país onde florescem as laranjeiras?


Ardem na escura fronde os frutos de ouro...
Conhecê-lo? Para lá, para lá quisera eu ir!]
Goethe (tradução de Manuel Bandeira)

Minha terra tem palmeiras


Onde canta o Sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,


Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,


Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,


Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,


Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Ouça o poema na voz do ator Paulo Autran


CANÇÃO DO EXÍLIO I
Casimiro de Abreu (1855)

Eu nasci além dos mares:


Os meus lares,
Meus amores ficam lá!
— Onde canta nos retiros
Seus suspiros,
Suspiros o sabiá!

Oh que céu, que terra aquela,


Rica e bela
Como o céu de claro anil!
Que seiva, que luz, que galas,
Não exalas
Não exalas, meu Brasil!

Oh! que saudades tamanhas


Das montanhas,
Daqueles campos natais!
Daquele céu de safira
Que se mira,
Que se mira nos cristais!

Não amo a terra do exílio,


Sou bom filho,
Quero a pátria, o meu país,
Quero a terra das mangueiras
E as palmeiras,
E as palmeiras tão gentis!

Como a ave dos palmares


Pelos ares
Fugindo do caçador;
Eu vivo longe do ninho,
Sem carinho;
Sem carinho e sem amor!

Debalde eu olho e procuro...


Tudo escuro
Só vejo em roda de mim!
Falta a luz do lar paterno
Doce e terno,
Doce e terno para mim.

Distante do solo amado


— Desterrado —
A vida não é feliz.
Nessa eterna primavera
Quem me dera,
Quem me dera o meu país!
CANÇÃO DO EXÍLIO II
Casimiro de Abreu (1857)

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,


Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu morro


Respirando este ar;
Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo
Os gozos do meu lar!

O país estrangeiro mais belezas


Do que a pátria, não tem;
E este mundo não vale um só dos beijos
Tão doces duma mãe!

Dá-me os sítios gentis onde eu brincava


Lá na quadra infantil;
Dá que eu veja uma vez o céu da pátria,
O céu do meu Brasil!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,


Meu Deus! não seja já!
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Quero ver esse céu da minha terra


Tão lindo e tão azul!
E a nuvem cor de rosa que passava
Correndo lá do sul!

Quero dormir à sombra dos coqueiros,


As folhas por dossel;
E ver se apanho a borboleta branca,
Que voa no vergel!

Quero sentar-me à beira do riacho


Das tardes ao cair,
E sozinho cismando no crepúsculo
Os sonhos do porvir!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,


Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
A voz do sabiá!

Quero morrer cercado dos perfumes


Dum clima tropical,
E sentir, expirando, as harmonias
Do meu berço natal!
Minha campa será entre as mangueiras
Banhada do luar,
E eu contente dormirei tranqüilo
À sombra do meu lar!

As cachoeiras chorarão sentidas


Porque cedo morri,
E eu sonho no sepulcro os meus amores
Na terra onde nasci!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,


Meu Deus! não seja já
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Ouça aqui uma leitura de “Canção do Exílio I”


Ouça aqui uma leitura de “Canção do Exílio II”
CANTO DE REGRESSO À PÁTRIA
Oswald de Andrade (1925)

Minha terra tem palmares


Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas


E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas


Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá

Não permita Deus que eu morra


Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo
CANÇÃO DO EXÍLIO
Murilo Mendes (1925–1929)

Minha terra tem macieiras da Califórnia


onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil-réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade


e ouvir um sabiá com certidão de idade!

Ouça o poema na voz do professor Jorge Miguel


NOVA CANÇÃO DO EXÍLIO
Carlos Drummond de Andrade (1945)

Um sabiá na
palmeira, longe.

Estas aves cantam


um outro canto.

O céu cintila
sobre flores úmidas.
Vozes na mata,
e o maior amor.

Só, na noite,
seria feliz:
um sabiá,
na palmeira, longe.

Onde tudo é belo


e fantástico,
só, na noite,
seria feliz.
(Um sabiá,
na palmeira, longe.)

Ainda um grito de vida e


voltar
para onde tudo é belo
e fantástico:
a palmeira, o sabiá,
o longe.
UMA CANÇÃO
Mário Quintana (1962)

Minha terra não tem palmeiras...


E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há.

Minha terra tem relógios,


Cada qual com sua hora
Nos mais diversos instantes...
Mas onde o instante de agora?

Mas onde a palavra "onde"?


Terra ingrata, ingrato filho,
Sob os céus da minha terra
Eu canto a Canção do Exílio!
SABIÁ
Chico Buarque e Antônio Carlos Jobim (1968)

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar uma sabiá,
Cantar uma sabiá

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra de uma palmeira que já não há
Colher a flor que já não dá
E algum amor talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos de me enganar
Como fiz enganos de me encontrar
Como fiz estradas de me perder
Fiz de tudo e nada de te esquecer.

Ouça a canção aqui


CANÇÃO DE EXÍLIO FACILITADA
José Paulo Paes (1973)

lá?
ah!
sabiá…
papá…
maná…
sofá…
sinhá…

cá?
bah!
NOVA CANÇÃO DO EXÍLIO
Luís Fernando Veríssimo (1978)

Minha terra tem Palmeiras


Coríntians, Inter e Fla,
mas pelo que se viu na Argentina
não jogam mais futebol por lá.

Os amigos que aqui gorjeiam


dizem que a coisa vai aos trancos.
Falam de promessas de abertura
e de um suposto novo Santos.

Nosso céu tem mais estrelas,


mas no chão continua o assombro:
a melhor conjunção do horóscopo
é a de quatro estrelas no ombro.

Nossas várzeas têm mais flores


nossas flores mais pesticidas.
Só se banham em nossos rios
desinformados e suicidas.

Nossos bosques têm mais vida


porque nas cidades se morre.
Quando não é assaltante ou vizinho
é um motorista de porre.

Em cismar, sozinho, à noite


mais prazer encontrava eu lá.
Agora sei que cismar pode,
mas sozinho, e à noite, não dá!

Minha terra tem palmeiras


mas anda escasso o arvoredo.
Tudo se corta, queima e derruba
menos, claro, o Figueiredo.

Minha terra tem primores


de que os amigos me falam até tarde.
Lembro samba, feijoada, bons papos,
mas quem é essa Bruna Lombardi?

Nossos bancos têm mais juros


nossos corruptos mais favores
nossos pobres mais desgraça
nossa vida mais amores.

O sabiá, eu sei, já não canta


por questões ecolo-genéticas.
Mas ninguém sentiu muita falta,
agora existem as Frenéticas.
Descobriram um sabiá renitente
que insistia em cantar, por mania.
Seu número não passou na Censura:
ele insistia em cantar “Anistia!”

Leio Veja, IstoÉ, JB,


mas o pacote chega atrasado.
Estou atualizadíssimo
com o Brasil do mês passado.

Minha terra tem novidades


que compreendo mal e mal.
Mandei perguntar: “E o biorritmo?”
Responderam: “É lento e gradual”.

Às vezes nos reunimos


para grandes sessões nostalgia.
Um disco do Chico, um retrato
ou uma leva de ambrosia.

Minha terra tem sabores


que tais não encontro eu cá.
Todos os vinhos do exílio
por um gole de guaraná!

Há coisas que não acredito


entre o trágico e o cômico.
Peste suína, carnaval subvencionado
vá lá – mas o senador biônico...

Minha terra tem palmeiras


onde cantava o sabiá.
Grande questão só há uma:
a Júlia fica com o Cacá?

Mas não permita Deus que eu morra


sem que eu volte para lá.
OUTRA CANÇÃO DO EXÍLIO
Eduardo Alves da Costa (1985)

Minha terra tem Palmeiras,


Corinthians e outros times
de copas exuberantes
que ocultam muitos crimes.
As aves que aqui revoam
são corvos do nunca mais,
a povoar nossa noite
com duros olhos de açoite
que os anos esquecem jamais.

Em cismar sozinho, ao relento,


sob um céu poluído, sem estrelas,
nenhum prazer tenho eu cá;
porque me lembro do tempo
em que livre na campina
pulsava meu coração, voava,
como livre sabiá; ciscando
nas capoeiras, cantando
nos matagais, onde hoje a morte
tem mais flores, nossa vida
mais terrores, noturnos,
de mil suores fatais.

Minha terra tem primores,


requintes de boçalidade,
que fazem da mocidade
um delírio amordaçado:
acrobacia impossível
de saltimbanco esquizoide,
equilibrado no risível sonho
de grandeza que se esgarça e rompe,
roído pelo matreiro cupim da safadeza.

Minha terra tem encantos


de recantos naturais,
praias de areias monazíticas,
subsolos minerais
que se vão e não voltam mais.
CANÇÃO DO EXÍLIO ÀS AVESSAS
Jô Soares (1992)

Minha Dinda tem cascatas


Onde canta o curió
Não permita Deus que eu tenha
De voltar pra Maceió.
Minha Dinda tem coqueiros
Da Ilha de Marajó
As aves, aqui, gorjeiam
Não fazem cocoricó.

O meu céu tem mais estrelas


Minha várzea tem mais cores.
Este bosque reduzido
Deve ter custado horrores.
E depois de tanta planta,
Orquídea, fruta e cipó,
Não permita Deus que eu tenha
De voltar pra Maceió.

Minha Dinda tem piscina,


Heliporto e tem jardim
Feito pela Brasil's Garden:
Não foram pagos por mim.
Em cismar sozinho à noite
Sem gravata e paletó
Olho aquelas cachoeiras
Onde canta o curió.

No meio daquelas plantas


Eu jamais me sinto só.
Não permita Deus que eu tenha
De voltar pra Maceió.
Pois no meu jardim tem lagos
Onde canta o curió
E as aves que lá gorjeiam
São tão pobres que dão dó.

Minha Dinda tem primores


De floresta tropical.
Tudo ali foi transplantado,
Nem parece natural.
Olho a jabuticabeira
Dos tempos da minha avó.
Não permita Deus que eu tenha
De voltar pra Maceió.

Até os lagos das carpas


São de água mineral.
Da janela do meu quarto
Redescubro o Pantanal.
Também adoro as palmeiras
Onde canta o curió.
Não permita Deus que eu tenha
De voltar pra Maceió.

Finalmente, aqui na Dinda,


Sou tratado a pão-de-ló.
Só faltava envolver tudo
Numa nuvem de ouro em pó.
E depois de ser cuidado
Pelo PC, com xodó,
Não permita Deus que eu tenha
De acabar no xilindró.

Você também pode gostar