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Nome: Juliana Rodrigues Alves Costa

DRE: 118061370
Habilitação: Letras: Português/Literatura
Disciplina: Poesia Portuguesa II
Professora: Sofia de Sousa Silva

Antes de dar início à análise de “O poema”, de autoria de Luiza Neto Jorge, faz-
se necessário esclarecer que sua poesia se insere no contexto histórico da ditadura
salazarista em Portugal. Dessa forma, entende-se que a produção artística da poetisa,
amplamente divulgada e conhecida a partir da publicação do conjunto de livros
inseridos em “Poesia 61”, constrói-se a partir de um viés de experimentalismo
linguístico – e, consequentemente, poético – e de resistência que tem por objetivo
principal subverter, por meio da linguagem, a realidade opressora vigente. Dito isso, a
análise do poema de Luiza Neto Jorge não pode deixar de passar por questões sociais de
modo a elucidar como a poesia pode retratar a realidade da época a fim de servir como
um claro espaço de alerta e crítica sociais.

Esclarecendo que o poema


é um duelo agudíssimo
quero eu dizer um dedo
agudíssimo claro
apontado ao coração do homem
falo
com uma agulha de sangue
a coser-me todo o corpo
à garganta
e a esta terra imóvel
onde já a minha sombra
é um traço de alarme

II
Piso do poema
chão de areia
Digo na maneira
mais crua e mais
intensa
de medir o poema
pela medida inteira
o poema em milímetro
de madeira
ou apodrece o poema
ou se alteia
ou se despedaça
a mão ateia
ou cinco seis astros
se percorre
antes que o deserto
mate a fome
de Terra Imóvel

A partir de uma leitura primária breve de “O Poema”, constata-se, com


facilidade, a presença de elementos textuais entendidos como transgressores pela
sociedade ditatorial portuguesa da época. Isso porque o fazer poético, em Luiza Neto
Jorge, permite a união de uma figura feminina, frequentemente tolhida por uma
sociedade que tende a olhar qualquer tipo de demonstração de emancipação feminina
como um ataque direto aos valores fundamentadores de sua moral e de seus bons
costumes, à expressividade poética de “O Poema”. É, portanto, por meio de uma
abordagem visceral que a poeta reformula a concepção poética feminina dentro da
literatura portuguesa ao evidenciar uma poesia que perpassa, igualmente, a denúncia
social de uma realidade retrógrada, que não consegue conceber a mulher como
detentora de sua própria liberdade – inclusive, sexual –, e a construção de uma arte
rebelde no que tange a tradição estética.

Nota-se, já na primeira parte do poema, a temática que será por ele abordada: a
maneira como a poesia pode macular a realidade social de modo a subvertê-la através da
linguagem a fim de alcançar uma sociedade menos opressora. Dessa forma, ao
compreender o espaço poético como um elemento violador do sistema, entende-se a
razão pela qual a poetisa constrói, em “O Poema”, uma poesia demarcada pela
irregularidade métrica, constatada a partir do uso de versos livres, e pelo praticamente
inexistente uso de rima, o que se nota ao perceber a preferência pela utilização de versos
brancos. A vertente rítmica, contudo, ainda se faz presente dentro da construção poética
de Luiza Neto Jorge, assemelhando-se em muito à construção do Simbolismo devido ao
uso de figuras de sonoridade e de construções metafóricas. Assim, como forma de
demonstrar que o fazer poético pode ser o responsável por transformar a sociedade, vê-
se a referência a metáforas inusitadas; a saber, a figura do dedo e do falo – sendo essa
última responsável pela apresentação de um certo erotismo a partir da referência “falo/
com uma agulha de sangue/ a coser-me todo o corpo/ à garganta/ e a esta terra imóvel”..
Entende-se, portanto, por meio dessas analogias implícitas, que é o poema o
encarregado de tocar o cerne da sociedade, alertando-a sobre questões que lhes são
intrínsecas. Há, contudo, a interessante análise sobre a figura do falo uma vez que existe
a possibilidade de dupla interpretação construída a partir de uma homonímia perfeita: é
permitido ao leitor entender o termo em questão como o órgão reprodutor masculino ou
como a primeira pessoa do singular, no presente do indicativo, do verbo “falar”. Ambas
as análises corroboram a ideia de que a poesia é um espaço de crítica social; a primeira
delas, contudo, conversa com uma questão aqui anteriormente problematizada: a
referência ao órgão sexual masculino pode conversar diretamente com o contexto
histórico de uma sociedade patriarcal e retrógrada que limita a figura feminina a um
lugar submisso, algo que seria revertido somente pelo poder da palavra conferido pela
poesia.

Faz-se importante frisar, porém, que ver uma poetisa construindo essa
simbologia era algo inovador e demasiadamente transgressor, o que, conforme esclarece
Rosa Maria Martelo, em “Em parte incerta: estudos de poesia portuguesa moderna e
contemporânea.” reveste o fazer poético de Luiza Neto Jorge de uma conversa única
entre erotismo e escrita. Assim, entende-se que, já na primeira parte de “O Poema”, a
poetisa presenteia os leitores com uma das máximas pujantes de seu fazer estético: o
que, segundo Rosa Maria Martelo, seria a apresentação de uma “identidade feminina
que passa pela afirmação do corpo e da sexualidade de maneira claramente provocativa
no contexto epocal em que obra se situa”. É dessa forma, pois, intensa e uterina,
profunda e avassaladora, que a autora penetra a ferida de uma sociedade antiquada que,
conforme a ideologia compartilhada pelos autores de Poesia 61, precisa urgentemente se
reformular.
Na segunda parte de “O Poema”, observa-se certa confirmação do que fora
anteriormente apresentado na medida em que o fazer poético e a poesia em si são
compreendidos como um componente da realidade – motivo pelo qual a autora aclara
que a base sustentadora do poema se converte em uma espécie de chão de areia,
metáfora que fomenta a ideia de um pilar de sustentação facilmente subjugado à
mutabilidade do tempo e à ação externa e, ademais, demonstra o desejo de alteração da
realidade vigente já que a areia possibilitaria a transformação constante. É essa metáfora
que pode ser entendida, aliás, como uma crítica ao sistema ditatorial que julga ser sólido
e indestrutível, mas que, como tudo na vida, pode ver seu desmoronar a partir da crítica
perene em uma poesia. Para evitar, pois, a influência exterior, torna-se necessário,
segundo o eu-lírico, entender a totalidade poética de modo que, dessa forma, o poema
possa, ao se metamorfosear em constituinte da realidade social, elevar-se e não mais se
destruir. Nesse momento, é interessante não só perceber como a expressividade da
poesia de Luiza Neto Jorge se vale da musicalidade lograda pelos parônimos “alteia” e
“ateia”, bem como analisar a ambiguidade trazida pela palavra “ateia”. Essa
ambiguidade possibilita ao leitor uma dupla leitura de forma que lhe é cabível, pois,
interpretar que a mão que redige a poesia, essa tal substância social, e que provoca sua
elevação a um status quo de divindade – percebido a partir da referência aos astros no
verso seguinte – pode ser despedaçada pelo sistema opressor vigente ao construir a
poesia como um espaço de crítica social ou, ainda, entender que é essa mão, que nega a
existência de quaisquer divindades, a responsável por, junto aos astros celestiais –
detentores de, segundo os moldes de uma sociedade ditatorial portuguesa extremamente
religiosa, toda a sabedoria – atingir a evolução social antes que o deserto – metáfora
para o vazio existencial – encarregue-se de alimentar a todos os habitantes de uma
“Terra Imóvel” – construção essa potencializada, também, pelo paradoxo presente na
associação entre o deserto e a saciedade.

Assim, “O Poema” é finalizado não apenas como uma referência a um livro de


autoria de Luiza Neto Jorge, mas também com uma simbologia para a própria sociedade
portuguesa dentro de um contexto de ditadura: é o sistema opressor que impede
Portugal de progredir a fim de alcançar um status quo de glória como visto em outrora.
É esse sistema que não concebe a mulher como dona de sua liberdade, é esse sistema
que se pauta em uma constante doutrina política, social e religiosa que manterá a todos
atolados em uma “terra imóvel” e que poderá, se não houver a transformação pela luta e
resistência, soterrá-los no vazio das vontades e dos desejos humanos mais profundos.

O que se nota, portanto, é que Luiza Neto Jorge, em “O Poema”, reconstrói, por
meio de uma abordagem intensa e extremamente sensível, embora transgressora e, até
mesmo, erótica e sexual, a visão acerca da poesia feminina num contexto de crise ao
entendê-la como um espaço transgressor das convenções poéticas e sociais. Para tal, a
autora propõe a criação de um metapoema a fim de validar, por meio da própria
estrutura e a partir de simbologias únicas e profundas, os valores desenvolvidos dentro
de sua poesia, ou seja, a construção de um fazer poético que defende que a mulher
encontre sua libertação e tome o poder sobre toda e qualquer nuance de sua existência.
Ademais, o que se pode constatar é que a poesia de Luiza Neto Jorge, no que concerne a
construção única de seu fazer poético, reforça o ideal subversivo e transformador da
“Poesia 61” ao propor a reconstrução da convenção social em voga na sociedade
portuguesa da época. Por essa razão, ela é, sem dúvida, um dos grandes nomes da
literatura portuguesa pela forma como dessacralizou os ideais do feminino e do fazer
poético.

Bibliografia:

CANTINHO, Maria João. Luiza Neto Jorge ou o corpo inenarrável. Revista Pasmas,
30 de dez. de 2016. Disponível em: <https://medium.com/pasmas/luiza-neto-jorge-ou-o-
corpo-inenarr%C3%A1vel-faeb714e65e3>. Acesso em: 08.01.2021.

ABREU, Carolina Alves Ferreira de; OLIVEIRA, Rita do Perpétuo Socorro de. Uma
abordagem feminista na poesia de Luiza Neto Jorge. Amazonas, 2016. 17 p.
Programa de pós-graduação. Faculdade de Letras da Universidade Federal do
Amazonas.

MARTELO, Rosa Maria. Em parte incerta: estudos de poesia portuguesa moderna e


contemporânea. 1ª edição. Porto: Campo das Letras, set. de 2004.

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