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Bernardo Soares

Fragmento 1
(our childhood's playing with cotton reels, etc.)

Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca
tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da
minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para a rua do meu sonho, esqueço a
vista no seu movimento.
Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção.
Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é
meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma.
Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse
por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um
sonho longínquo. Nas minhas próprias paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre
o longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumavam quase na distância das
minhas paisagens sonhadas, tinham uma doçura de sonho em relação às outras partes da
paisagem — uma doçura que fazia com que eu as pudesse amar.

A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda, e só na minha morte me


abandonará. Não alinho hoje nas minhas gavetas carros de linha e peões de xadrez —
com um bispo ou um cavalo acaso sobressaindo — mas tenho pena de o não fazer... e
alinho na minha imaginação, confortavelmente, como quem no inverno se aquece a uma
lareira, figuras que habitam, e são constantes e vivas, na minha vida interior. Tenho um
mundo de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas.
Alguns passam dificuldades, outros têm uma vida boémia, pitoresca e humilde. Há outros
que são caixeiros-viajantes (poder sonhar-me caixeiro-viajante foi sempre uma das
minhas grandes ambições — irrealizável infelizmente!). Outros moram em aldeias e vilas
lá para as fronteiras de um Portugal dentro de mim; vêm à cidade, onde por acaso os
encontro e reconheço, abrindo-lhes os braços, emotivamente... E quando sonho isto,
passeando no meu quarto, falando alto, gesticulando... quando sonho isto, e me visiono
encontrando-os, todo eu me alegro, me realizo, me pulo, brilham-me os olhos, abro os
braços e tenho uma felicidade enorme, real, incomparável.

Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram! O que eu
sinto quando penso no passado que tive no tempo real, quando choro sobre o cadáver da
vida da minha infância ida,... isso mesmo não atinge o fervor doloroso e trémulo com que
choro sobre não serem reais as figuras humildes dos meus sonhos, as próprias figuras
secundárias que me recordo de ter visto uma só vez, por acaso, na minha pseudovida, ao
virar uma esquina da minha visionação, ao passar por um portão numa rua que subi e
percorri por esse sonho fora.
A raiva de a saudade não poder reavivar e reerguer nunca é tão lacrimosa contra Deus,
que criou impossibilidades, do que quando medito que os meus amigos de sonho, com
quem passei tantos detalhes de uma vida suposta, com quem tantas conversas
iluminadas, em cafés imaginários, tenho tido, não pertenceram, afinal, a nenhum espaço
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onde pudessem ser, realmente, independentes da minha consciência deles! Oh, o passado
morto que eu trago comigo e nunca esteve senão comigo! As flores do jardim da pequena
casa de campo e que nunca existiu senão em mim. As hortas, os pomares, o pinhal, da
quinta que foi só um meu sonho! As minhas vilegiaturas [férias] supostas, os meus
passeios por um campo que nunca existiu! As árvores de à beira da estrada, os atalhos,
as pedras, os camponeses que passam... tudo isto, que nunca passou de um sonho, está
gravado na minha memória a fazer de dor e eu, que passei horas a sonhá-los, passo horas
depois a recordar tê-los sonhado e é na verdade saudade que eu tenho, um passado que
eu choro, uma vida-real morta que fito, solene no seu caixão.

Há também as paisagens e as vidas que não foram inteiramente interiores. Certos


quadros, sem subido relevo artístico, certas oleogravuras que havia em paredes com que
convivi muitas horas — passaram a realidade dentro de mim. Aqui a sensação era outra,
mais pungente e triste. Ardia-me não poder estar ali, quer eles fossem reais ou não.
Não ser eu, ao menos, uma figura a mais desenhada daquele bosque, ao luar que havia
numa pequena gravura dum quarto onde dormi já não em pequeno! Não poder eu pensar
que estava ali oculto, no bosque à beira do rio, por aquele luar eterno (embora mal
desenhado), vendo o homem que passa num barco por baixo do debruçar-se de um
salgueiro! Aqui o não poder sonhar inteiramente doía-me. As feições da minha saudade
eram outras. Os gestos do meu desespero eram diferentes. A impossibilidade que me
torturava era de outra ordem de angústia. Ah, não ter tudo isto um sentido em Deus,
uma realização conforme o espírito de meus desejos, não sei onde, por um tempo
vertical, consubstanciado [unido ou consolidado] com a direcção das minhas saudades e
dos meus devaneios! Não haver, pelo menos só para mim, um paraíso feito disto! Não
poder eu encontrar os amigos que sonhei, passear pelas ruas que criei, acordar, entre o
ruído dos galos e das galinhas e o rumorejar matutino da casa, na casa de campo em que
eu me supus... e tudo isto mais perfeitamente arranjado por Deus, posto naquela
perfeita ordem para existir, na precisa forma para eu o ter que nem os meus próprios
sonhos atingem senão na falta de uma dimensão do espaço íntimo que entretém essas
pobres realidades...
Ergo a cabeça de sobre o papel em que escrevo... É cedo ainda. Mal passa o meio-dia e é
domingo. O mal da vida, a doença de ser consciente, entra em o meu próprio corpo e
perturba-me. Não haver ilhas para os inconfortáveis, alamedas vetustas [muito velhas,
antigas; a que a idade conferiu respeitabilidade; venerabilidade], inencontráveis de
outros, para os isolados no sonhar! Ter de viver e, por pouco que seja, de agir; ter de
roçar pelo facto de haver outra gente, real também, na vida! Ter de estar aqui
escrevendo isto, por me ser preciso à alma fazê-lo, e mesmo isto não poder sonhá-lo
apenas, exprimi-lo sem palavras, sem consciência mesmo, por uma construção de mim-
próprio em música e esbatimento, de modo que me subissem as lágrimas aos olhos só de
me sentir expressar-me, e eu fluísse, como um rio encantado, por lentos declives de
mim próprio, cada vez mais para o inconsciente e o Distante, sem sentido nenhum
excepto Deus.

Fragmento 2
3

Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele
sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do
Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para
leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais quedos — tudo
isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto.
Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo1 de Cesário Verde, e
tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que
foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas
ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias
de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu.
Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas
e eu ser alma, o que pode ser que nada valha ante o que é a essência das coisas. Há um
destino igual, porque é abstracto, para os homens e para as coisas — uma designação
igualmente indiferente na álgebra do mistério.
Mas há mais alguma coisa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma
tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e
uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus
próprios sonhos se me erguem em coisas, não para me substituírem a realidade, mas
para se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora, como
o eléctrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador nocturno, de
não sei que coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do
entardecer!

Passam casais futuros, passam os pares das costureiras, passam rapazes com pressa de
prazer, fumam no seu passeio de sempre os reformados de tudo, a uma ou outra porta
reparam em pouco os vadios parados que são donos das lojas. Lentos, fortes e fracos,
os recrutas sonambulizam em molhos ora muito ruidosos ora mais que ruidosos. Gente
normal surge de vez em quando. Os automóveis ali a esta hora não são muito frequentes;
esses são musicais. No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de
resignação.
Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada, tudo é alheio ao meu destino, alheio,
até, ao destino próprio — inconsciência, círculos de superfície quando o acaso deita
pedras, ecos de vozes incógnitas — a salada colectiva da vida.

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Que ou quem é do mesmo tempo ou da mesma época. = COETÂNEO, CONTEMPORÂNEO (IN DICIONÁRIO PRIBERAM ONLINE).
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Fragmento 3

Quando outra virtude não haja em mim, há pelo menos a da perpétua novidade
da sensação liberta.

Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei de repente nas costas do


homem que a descia adiante de mim. Eram as costas vulgares de um homem
qualquer, o casaco de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional.
Levava uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no ritmo
de andando, um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão direita.

Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem. Senti nele
a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana, pelo banal quotidiano
do chefe de família que vai para o trabalho, pelo lar humilde e alegre dele,
pelas pequenas alegrias e tristezas de que forçosamente se compõe a sua vida,
pela inocência de viver sem analisar, pela naturalidade animal daquelas costas
vestidas.

Desvio os olhos das costas do meu adiantado e passando-os a todos mais,


quantos vão andando nesta rua, a todos abarco nitidamente na mesma ternura
absurda e fria que me veio dos ombros do inconsciente a quem sigo. Tudo isto
é o mesmo que ele; todas estas raparigas que falam para o atelier, estes
empregados jovens que riem para o escritório, estas criadas de seios que
regressam das compras pesadas, estes moços dos primeiros fretes — tudo
isto é uma mesma inconsciência diversificada por caras e corpos que se
distinguem, como fantoches movidos pelas cordas que vão dar aos mesmos
dedos da mão de quem é invisível. Passam com todas as atitudes com que se
define a consciência, e não têm consciência de nada, porque não têm
consciência de ter consciência. Uns inteligentes, outros estúpidos, são todos
igualmente estúpidos. Uns velhos, outros jovens, são da mesma idade. Uns
homens, outros mulheres, são do mesmo sexo que não existe.

Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos.

A sensação era exactamente idêntica àquela que nos assalta perante alguém
que dorme. Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se
possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado
egoísta, é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem
dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.
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Ora as costas deste homem dormem. Todo ele, que caminha adiante de mim
com uma passada igual à minha, dorme. Vai inconsciente. Vive inconsciente.
Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sono. Ninguém sabe o que
faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida,
eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma
ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda a vida social
dormente, por todos, por tudo.

É um humanitarismo directo, sem conclusões nem propósitos, o que me assalta


neste momento. Sofro uma ternura como se um deus visse. Vejo-os a todos
através de uma compaixão de único consciente, os pobres diabos homens, o
pobre diabo humanidade. O que está tudo isto a fazer aqui?

Todos os movimentos e intenções da vida, desde a simples vida dos pulmões


até à construção de cidades e à fronteiração de impérios, considero-os como
uma sonolência, coisas como sonhos ou repousos, passadas involuntariamente
no intervalo entre uma realidade e outra realidade, entre um dia e outro dia
do Absoluto. E, como alguém abstractamente materno, debruço-me de noite
sobre os filhos maus como sobre os bons, comuns no sono em que são meus.
Enterneço-me com uma largueza de coisa infinita.

Fragmento 4
6

Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um


livramento, aquelas frases simples de Caeiro, na referência natural ao que
resulta do pequeno tamanho da sua aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode
ver-se mais do mundo do que da cidade; e por isso a aldeia é maior que a
cidade...

"Porque eu sou do tamanho do que vejo


E não do tamanho da minha altura."

Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito,
limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida.
Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu
e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me
estremece no corpo todo.

"Sou do tamanho do que vejo!" Cada vez que penso esta frase com toda a
atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir
consteladamente o universo. "Sou do tamanho do que vejo!" Que grande posse
mental vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se
reflectem nele, e, assim, em certo modo, ali estão.

E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus
todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. "Sou do
tamanho do que vejo!" E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de
vago o azul meio-negro do horizonte.

Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvajaria ignorada,


de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade larga
aos grandes espaços da matéria vazia.

Mas recolho-me e abrando. "Sou do tamanho do que vejo!" E a frase fica-me


sendo a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim,
por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro
que começa largo com o anoitecer.

Fragmento 5
7

O único viajante com verdadeira alma que conheci era um garoto de escritório
que havia numa outra casa, onde em tempos fui empregado. Este rapazito
coleccionava folhetos de propaganda de cidades, países e companhias de
transportes; tinha mapas — uns arrancados de periódicos, outros que pedia
aqui e ali —; tinha, recortadas de jornais e revistas, ilustrações de paisagens,
gravuras de costumes exóticos, retratos de barcos e navios. Ia às agências
de turismo, em nome de um escritório hipotético, ou talvez em nome de
qualquer escritório existente, possivelmente o próprio onde estava, e pedia
folhetos sobre viagens para a Itália, folhetos de viagens para a Índia, folhetos
dando as ligações entre Portugal e a Austrália.

Não só era o maior viajante, porque o mais verdadeiro, que tenho conhecido:
era também uma das pessoas mais felizes que me tem sido dado encontrar.
Tenho pena de não saber o que é feito dele, ou, na verdade, suponho somente
que deveria ter pena; na realidade não a tenho, pois hoje, que passaram dez
anos, ou mais, sobre o breve tempo em que o conheci, deve ser homem,
estúpido, cumpridor dos seus deveres, casado talvez, sustentáculo social de
qualquer — morto, enfim, em sua mesma vida. É até capaz de ter viajado com
o corpo, ele que tão bem viajava com a alma.

Recordo-me de repente: ele sabia exactamente por que vias férreas se ia de


Paris a Bucareste, por que vias férreas se percorria a Inglaterra, e, através
das pronúncias erradas dos nomes estranhos, havia a certeza aureolada da sua
grandeza de alma. Hoje, sim, deve ter existido para morto, mas talvez um dia,
em velho, se lembre, como é não só melhor, senão mais verdadeiro, o sonhar
com Bordéus do que desembarcar em Bordéus.

E, daí, talvez isto tudo tivesse outra explicação qualquer, e ele estivesse
somente imitando alguém. Ou... Sim, julgo às vezes, considerando a diferença
hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que
somos acompanhados na infância por um espírito da guarda, que nos empresta
a própria inteligência astral, e que depois, talvez com pena, mas por uma lei
alta, nos abandona, como as mães animais às crias crescidas, ao cevado que é
o nosso destino.

Fragmento 6
8

Tudo é absurdo. Este empenha a vida em ganhar dinheiro que guarda, e nem tem filhos
a quem o deixe nem esperança que um céu lhe reserve uma transcendência desse
dinheiro. Aquele empenha o esforço em ganhar fama, para depois de morto, e não crê
naquela sobrevivência que lhe dê o conhecimento da fama. Esse outro gasta-se na
procura de coisas de que realmente não gosta. Mais adiante, há um que ☐

Um lê para saber, inutilmente. Outro goza para viver, inutilmente.

Vou num carro eléctrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em
todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os pormenores são
coisas, vozes, frases. Neste vestido da rapariga que vai em minha frente decomponho o
vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram — pois que o vejo
vestido e não estofo — e o bordado leve que orla a parte que contorna o pescoço separa-
se-me em retrós de seda, com que se o bordou, e o trabalho que houve de o bordar. E
imediatamente, como num livro primário de economia política, desdobram-se diante de
mim as fábricas e os trabalhos — a fábrica onde se fez o tecido; a fábrica onde se fez
o retrós, de um tom mais escuro, com que se orla de coisinhas retorcidas o seu lugar
junto do pescoço; e vejo as secções das fábricas, as máquinas, os operários, as
costureiras, meus olhos virados para dentro penetram nos escritórios, vejo os gerentes
procurar estar sossegados, sigo, nos livros, a contabilidade de tudo; mas não é só isto:
vejo, para além, as vidas domésticas dos que vivem a sua vida social nessas fábricas e
nesses escritórios... Toda a vida social jaz a meus olhos só porque tenho diante de mim,
abaixo de um pescoço moreno, que de outro lado tem não sei que cara, um orlar irregular
regular verde-escuro sobre um verde-claro de vestido.

Para além disto pressinto os amores, as secrecias [sic], a alma de todos quantos
trabalharam para que esta mulher, que está diante de mim no eléctrico, use, em torno
do seu pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retrós de seda verde escura fazendo
inutilidades pela orla de uma fazenda verde menos escura.

Entonteço. Os bancos do eléctrico, de um entretecido de palha forte e pequena, levam-


me a regiões distantes, multiplicam-se-me em indústrias, operários, casas de operários,
vidas, realidades, tudo.

Saio do carro exausto e sonâmbulo. Vivi a vida inteira.

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