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Bernardo Soares
Fragmento 1
(our childhood's playing with cotton reels, etc.)
Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca
tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da
minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para a rua do meu sonho, esqueço a
vista no seu movimento.
Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção.
Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é
meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma.
Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse
por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um
sonho longínquo. Nas minhas próprias paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre
o longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumavam quase na distância das
minhas paisagens sonhadas, tinham uma doçura de sonho em relação às outras partes da
paisagem — uma doçura que fazia com que eu as pudesse amar.
Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram! O que eu
sinto quando penso no passado que tive no tempo real, quando choro sobre o cadáver da
vida da minha infância ida,... isso mesmo não atinge o fervor doloroso e trémulo com que
choro sobre não serem reais as figuras humildes dos meus sonhos, as próprias figuras
secundárias que me recordo de ter visto uma só vez, por acaso, na minha pseudovida, ao
virar uma esquina da minha visionação, ao passar por um portão numa rua que subi e
percorri por esse sonho fora.
A raiva de a saudade não poder reavivar e reerguer nunca é tão lacrimosa contra Deus,
que criou impossibilidades, do que quando medito que os meus amigos de sonho, com
quem passei tantos detalhes de uma vida suposta, com quem tantas conversas
iluminadas, em cafés imaginários, tenho tido, não pertenceram, afinal, a nenhum espaço
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onde pudessem ser, realmente, independentes da minha consciência deles! Oh, o passado
morto que eu trago comigo e nunca esteve senão comigo! As flores do jardim da pequena
casa de campo e que nunca existiu senão em mim. As hortas, os pomares, o pinhal, da
quinta que foi só um meu sonho! As minhas vilegiaturas [férias] supostas, os meus
passeios por um campo que nunca existiu! As árvores de à beira da estrada, os atalhos,
as pedras, os camponeses que passam... tudo isto, que nunca passou de um sonho, está
gravado na minha memória a fazer de dor e eu, que passei horas a sonhá-los, passo horas
depois a recordar tê-los sonhado e é na verdade saudade que eu tenho, um passado que
eu choro, uma vida-real morta que fito, solene no seu caixão.
Fragmento 2
3
Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele
sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do
Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para
leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais quedos — tudo
isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto.
Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo1 de Cesário Verde, e
tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que
foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas
ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias
de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu.
Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas
e eu ser alma, o que pode ser que nada valha ante o que é a essência das coisas. Há um
destino igual, porque é abstracto, para os homens e para as coisas — uma designação
igualmente indiferente na álgebra do mistério.
Mas há mais alguma coisa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma
tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e
uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus
próprios sonhos se me erguem em coisas, não para me substituírem a realidade, mas
para se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora, como
o eléctrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador nocturno, de
não sei que coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do
entardecer!
Passam casais futuros, passam os pares das costureiras, passam rapazes com pressa de
prazer, fumam no seu passeio de sempre os reformados de tudo, a uma ou outra porta
reparam em pouco os vadios parados que são donos das lojas. Lentos, fortes e fracos,
os recrutas sonambulizam em molhos ora muito ruidosos ora mais que ruidosos. Gente
normal surge de vez em quando. Os automóveis ali a esta hora não são muito frequentes;
esses são musicais. No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de
resignação.
Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada, tudo é alheio ao meu destino, alheio,
até, ao destino próprio — inconsciência, círculos de superfície quando o acaso deita
pedras, ecos de vozes incógnitas — a salada colectiva da vida.
1
Que ou quem é do mesmo tempo ou da mesma época. = COETÂNEO, CONTEMPORÂNEO (IN DICIONÁRIO PRIBERAM ONLINE).
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Fragmento 3
Quando outra virtude não haja em mim, há pelo menos a da perpétua novidade
da sensação liberta.
Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem. Senti nele
a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana, pelo banal quotidiano
do chefe de família que vai para o trabalho, pelo lar humilde e alegre dele,
pelas pequenas alegrias e tristezas de que forçosamente se compõe a sua vida,
pela inocência de viver sem analisar, pela naturalidade animal daquelas costas
vestidas.
Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos.
A sensação era exactamente idêntica àquela que nos assalta perante alguém
que dorme. Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se
possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado
egoísta, é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem
dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.
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Ora as costas deste homem dormem. Todo ele, que caminha adiante de mim
com uma passada igual à minha, dorme. Vai inconsciente. Vive inconsciente.
Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sono. Ninguém sabe o que
faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida,
eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma
ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda a vida social
dormente, por todos, por tudo.
Fragmento 4
6
Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito,
limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida.
Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu
e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me
estremece no corpo todo.
"Sou do tamanho do que vejo!" Cada vez que penso esta frase com toda a
atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir
consteladamente o universo. "Sou do tamanho do que vejo!" Que grande posse
mental vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se
reflectem nele, e, assim, em certo modo, ali estão.
E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus
todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. "Sou do
tamanho do que vejo!" E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de
vago o azul meio-negro do horizonte.
Fragmento 5
7
O único viajante com verdadeira alma que conheci era um garoto de escritório
que havia numa outra casa, onde em tempos fui empregado. Este rapazito
coleccionava folhetos de propaganda de cidades, países e companhias de
transportes; tinha mapas — uns arrancados de periódicos, outros que pedia
aqui e ali —; tinha, recortadas de jornais e revistas, ilustrações de paisagens,
gravuras de costumes exóticos, retratos de barcos e navios. Ia às agências
de turismo, em nome de um escritório hipotético, ou talvez em nome de
qualquer escritório existente, possivelmente o próprio onde estava, e pedia
folhetos sobre viagens para a Itália, folhetos de viagens para a Índia, folhetos
dando as ligações entre Portugal e a Austrália.
Não só era o maior viajante, porque o mais verdadeiro, que tenho conhecido:
era também uma das pessoas mais felizes que me tem sido dado encontrar.
Tenho pena de não saber o que é feito dele, ou, na verdade, suponho somente
que deveria ter pena; na realidade não a tenho, pois hoje, que passaram dez
anos, ou mais, sobre o breve tempo em que o conheci, deve ser homem,
estúpido, cumpridor dos seus deveres, casado talvez, sustentáculo social de
qualquer — morto, enfim, em sua mesma vida. É até capaz de ter viajado com
o corpo, ele que tão bem viajava com a alma.
E, daí, talvez isto tudo tivesse outra explicação qualquer, e ele estivesse
somente imitando alguém. Ou... Sim, julgo às vezes, considerando a diferença
hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que
somos acompanhados na infância por um espírito da guarda, que nos empresta
a própria inteligência astral, e que depois, talvez com pena, mas por uma lei
alta, nos abandona, como as mães animais às crias crescidas, ao cevado que é
o nosso destino.
Fragmento 6
8
Tudo é absurdo. Este empenha a vida em ganhar dinheiro que guarda, e nem tem filhos
a quem o deixe nem esperança que um céu lhe reserve uma transcendência desse
dinheiro. Aquele empenha o esforço em ganhar fama, para depois de morto, e não crê
naquela sobrevivência que lhe dê o conhecimento da fama. Esse outro gasta-se na
procura de coisas de que realmente não gosta. Mais adiante, há um que ☐
Vou num carro eléctrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em
todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os pormenores são
coisas, vozes, frases. Neste vestido da rapariga que vai em minha frente decomponho o
vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram — pois que o vejo
vestido e não estofo — e o bordado leve que orla a parte que contorna o pescoço separa-
se-me em retrós de seda, com que se o bordou, e o trabalho que houve de o bordar. E
imediatamente, como num livro primário de economia política, desdobram-se diante de
mim as fábricas e os trabalhos — a fábrica onde se fez o tecido; a fábrica onde se fez
o retrós, de um tom mais escuro, com que se orla de coisinhas retorcidas o seu lugar
junto do pescoço; e vejo as secções das fábricas, as máquinas, os operários, as
costureiras, meus olhos virados para dentro penetram nos escritórios, vejo os gerentes
procurar estar sossegados, sigo, nos livros, a contabilidade de tudo; mas não é só isto:
vejo, para além, as vidas domésticas dos que vivem a sua vida social nessas fábricas e
nesses escritórios... Toda a vida social jaz a meus olhos só porque tenho diante de mim,
abaixo de um pescoço moreno, que de outro lado tem não sei que cara, um orlar irregular
regular verde-escuro sobre um verde-claro de vestido.
Para além disto pressinto os amores, as secrecias [sic], a alma de todos quantos
trabalharam para que esta mulher, que está diante de mim no eléctrico, use, em torno
do seu pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retrós de seda verde escura fazendo
inutilidades pela orla de uma fazenda verde menos escura.