Você está na página 1de 14

Cesário Verde

Introdução à obra
História
Cesário verde nasceu na alma da cidade, perto da Sé, e a manifestação muito cedo de tuberculose fez com que se instalasse
no campo e depois deambulasse em outras zonas campestres na altura.

Descreveu poeticamente de forma expressiva a cidade de Lisboa, as suas gentes, os seus espaços e a sua vida tão complexa e
contrastante, representando na evolução da poesia portuguesa do século XIX substâncias naturalistas, isto é, o real
observável, o mundo do quotidiano.

Conseguiu um retrato vivo da realidade e das contradições de uma cidade em que coabitavam a opulência e a miséria.

O admirado “O sentimento dum ocidental” foi certamente inspirado e escrito aos ares noturnos de Lisboa, e foi publicado no
Porto, em 1880. É nele que se encontra toda a Lisboa em versos: as ruas ao entardecer, o ar que abafa e incomoda, as
lâmpadas de gás que se acendem, os trabalhadores recortados na luz embaciada…

Cesário verde
⮚ Surrealista- ultrapassa o real;
⮚ Realista-descreve as coisas como as vê;
⮚ Impressionista- impressões;

Poesia
Temas e processos da poesia de Cesário Verde:

⮚ Observação circunstancial;
⮚ O espaço e o ambiente da cidade;
⮚ A transfiguração poética do real;
⮚ Perceção sensorial da realidade;
⮚ O real circundante;
⮚ Deambulações quotidianas;
⮚ Tipos sociais;
⮚ Imaginário épico- Invoca Camões no poema “O sentimento dum ocidental”.

Os poemas de Cesário Verde apresentam frequentemente uma estrutura narrativa, que se coagula com o papel que o sujeito
poético neles assume. Com efeito, o “eu” dos poemas de Cesário é habitualmente um “eu” em deambulação, que vagueia
pelos espaços e dele recolhe sensações e impressões. Ao percorrer os espaços, o poeta capta, pelos sentidos, a ambiência e
regista a sua perceção sensorial da realidade, dando um enfoque especial à cor, à luza e ao movimento.

⮚ Deambulação e imaginação (Surrealista)- Cesário Verde focou-se no realismo enquanto fonte de matéria poética e
privilegiou o imediato, captando imagens e sons em deambulações quotidianas, como por exemplo em “Num Bairro
Moderno” e “O sentimento dum Ocidental”;
⮚ Perceção sensorial (Impressionista)- captou as impressões que a realidade lhe provoca, na sequência de uma
perceção minuciosa através dos sentidos, com destaque para a visão, registando, a cor, a luz e o movimento.

O poeta é, pois, um observador acidental nos passeios pela cidade ou pelo campo.

Compara a cidade com o campo:



Cesário Verde
Cidade- (doença/morte), espaço corrompido e corruptor, que oprime, sufoca, entristece e angustia;
⮚ Campo- (saúde/ vida), espaço salutar, alegre, amplo, repleto de via.

Na cidade destaca-se o povo (carpinteiros, calceteiros, operários, varinas, floristas, prostitutas, vendedoras), e a mulher:

⮚ Mulher da cidade: surge, com frequência e corresponde a uma mulher distante, que fascina o sujeito poético e
todos os que a vislumbram;
⮚ Mulher do campo: mulher serena, doce, natural.

⮚ Representação da cidade e dos tipos sociais (Realista)-nos seus poemas destaca-se como tema central a antinomia
cidade-campo (opostos), atendendo às condições sociais e económicas, tanto no campo como na cidade de Lisboa no
século XIX.

O sujeito poético ultrapassa muitas vezes o papel de mero observador do meio envolvente, assumindo um papel de
sonhador, alguém que não vê só a realidade, mas o que está para além dela, seja no passado, no futuro, ou na sua
imaginação. Através dos sentidos, os elementos recolhidos são depois transformados pela sua “visão de artista”, originando
uma outra realidade, como o “novo corpo orgânico” que, no poema “Num Bairro Moderno”, se forma a partir de um cesto de
legumes e de frutas. É igualmente esta transfiguração do real, que no poema “O sentimento dum Ocidental”, permite
ressuscitar “mouros, baixeis, heróis”, “Camões[..] salvando um livro, a nado!” ou projetar um outro futuro épico “Nós vamos
explorar todos os continentes/E pelas vastidões aquáticas seguir!”
⮚ Transfiguração poética do real - através da memória, Cesário Verde recria o real com grande nitidez e precisão, como
se fosse uma pintura que expressa uma visão íntima da realidade tal como foi percebida pelo “eu”;

Seguindo a estrutura narrativa, que acompanha os momentos do final do dia até às altas horas da madrugada, “O sentimento
dum Ocidental” espalha, num longo conjunto de estrofes, à maneira das epopeias antigas, as emoções de um homem do
ocidente perante a sociedade contemporânea. Esta, contudo, não é descrita em termos de exaltação gloriosa, contrastando a
grandeza da pátria do passado com a decadência do presente, triste e desgraçado.

Linguagem estilo
⮚ Regularidade estrófica (predomínio da quadra e da quintilha), métrica (versos longos-decassilábicos e alexandrinos) e
rimática;
⮚ Vocabulário simples, concreto e objetivo, com recurso a empréstimos;
⮚ Uso expressivo do adjetivo e do adverbio;
⮚ Sensorialismo da linguagem (sensações provocadas pelo real):
Cesário Verde
Num bairro moderno
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada
Pelos jardins estancam-se os nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.

Rez-de-chaussée repousam sossegados,


Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reduzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu conchego,


E a vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,


Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a:


Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.

Do patamar responde-lhe um criado:


“Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.” E muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.

Subitamente,- que visão de artista!-


Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
Cesário Verde
Boiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,


Um corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injetados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,


Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos-ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas- os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante


Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmidos, fragrante,
Como de alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,


Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O sol dourava o céu. E a regateira,


Como vendera a sua fresca alface,
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me prazenteira:
“Não passa mais ninguém!... Se me
[ajudasse?!...”

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;


E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.

“Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!”


E recebi, naquela despedida,
Cesário Verde
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude,
Ou duma digestão desconhecida.

E enquanto sigo para o lado oposto,


E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre, afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maças do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira


Duma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias,


Oiço um canário- que infantil chilrada! -
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz, na sua chita,


O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita;
As suas couves repolhudas, largas.

E, como as grossas pernas dum gigante,


Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre o pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.

Análise:

O sujeito poético deambula pela cidade e sente-se doente.


Estamos a ver o bairro pelos olhos do sujeito poético.
As classes mais desfavorecidas veem do campo, fogem para a cidade em busca de melhores condições de vida.
Temos um poeta muito sensorial e uma poesia impressionista.

Estrutura externa:
⮚ Estrofes: quintilha (5 versos);
⮚ Versos: decassilábico (10 silabas métricas);
⮚ Rima: esquema rimático a b a a b (rima cruzada e emparelhada em a e interpolada em b).
Cesário Verde
Título

Local: “Num bairro moderno”- onde mora gente com dinheiro (2/3º estofe)

1ª estrofe

Tempo: “Dez horas da manhã”

Perguntas:

1.1. a) O sujeito poético (“Eu”, v. 12)


b) narra o percurso que faz até ao seu local de trabalho, pelas “Dez horas da manhã” (v. 1)
c), atravessando um bairro “moderno”, como anuncia o adjetivo do título, em que reconhece novidades técnicas: as vias
revestidas de macadame e as paredes rebocadas. Nele destacam-se “uma casa apalaçada” (v. 2), os “jardins” (v. 3), a “rua
macadamizada” (v. 5) e “as persianas” (v. 7), os “quartos estucados” (v. 8) e os “papéis pintados” (v. 9) do interior de
algumas habitações
d) Ao longo do seu percurso, o sujeito poético/narrador encontra “um criado” (v. 26), “padeiros” (v. 38), “Um
pequerrucho” (v. 80) e “ménages” (v. 88) e “uma rapariga”(v. 17), cujo cesto de verduras lhe permite imaginar um ser
humano excecional.

1.2. Sinestesia – “brancuras quentes” (v. 4) – destaca a sensação de abafamento de que é vítima o “eu” e que lhe provoca as
“tonturas duma apoplexia” (v. 15).
Adjetivação – vv. 2, 4, 5, 6, 8, 9, 12, 16, 18... – caracteriza de forma expressiva o ambiente e as figuras humanas.
Comparação – v. 19 – aproxima a cesta do espaço rural, introduzindo-o na cidade.
2.1 “Notei” (v. 17) e “examinei-a” (v. 21).
2.2. Com o recurso aos diminutivos, o sujeito poético realça a fragilidade física da regateira (que se opõe à sua força
psicológica) e aproxima-se afetivamente dela, manifestando o seu carinho e a sua solidariedade.
2.4. A vendedeira é “prazenteira” (v. 64) e transmite “As forças, a alegria, a plenitude” (v. 73) ao sujeito poético. A cesta
representa simbolicamente o campo, elemento que lhe fornece a sua energia positiva e a torna saudável e feliz.
2.5. O sujeito poético afirma ter alcançado (“recebi”, v. 72) “forças”, “alegria” e “plenitude” (v. 73) e ter-se sentido desafiado
(“incita”, v. 93) a mudar a sua situação anímica depois da proximidade com a jovem e com as “emanações sadias” (v. 86) da
sua giga. Dada a interpretação metafórica da cesta, o próprio eu-narrador atesta os efeitos benéficos do campo sobre os
habitantes da cidade.
3. Critica social: com o episódio do criado o poeta denuncia as condições de vida do povo e as situações de exploração
internas à própria classe e expressa a sua solidariedade social face aos oprimidos.
3.1. Os “padeiros” (v. 38) e a vendedeira podem ser vistos como tipos sociais que contribuem para esta crítica.
4. a) O advérbio “Subitamente” (v. 31) destaca a natureza imprevista e abrupta da “visão de artista” e o modo surpreendente
como a mesma foi ganhando forma na sua imaginação.
4.1. Sugestionado pela giga da vendedeira, o narrador parte dos produtos nela contidos para recompor, “por anatomia / Um
novo corpo orgânico, aos bocados.” (vv.41-42). Ele representa as boas influências do campo, capazes de gerar energia e
sanidade, por oposição à fragilidade física e à pequenez moral dos habitantes da cidade.
Cesário Verde
O sentimento dum ocidental
I
Ave Marias

Nas nossas ruas, ao anoitecer,


Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,


O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,


Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,


As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,


De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as cronicas navais:


Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E no fim da tarde inspira-me; e incomoda!


De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;


Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
As portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
Cesário Verde
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reduz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!


Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de cravão,


Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infeção!

II
Noite Fechada

Toca-se as grades, nas cadeias. Som


Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!

E eu desconfio, até, de um aneurisma,


Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares,


E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas, num saudoso largo,


Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terramoto,


Muram-me as construções retas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no reto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.

Mas, num recinto público e vulgar,


Cesário Verde
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental de proporções guerreiras,
Um épico de outrora ascende, num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,


Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espetrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalaria


Dos arcos dos quarteis que foram já conventos;
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derram-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives


Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristas


Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.

E eu, de luneta de uma lente só,


Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; ás mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luza joga-se dominó.

Análise:

Cesário Verde
Contraste entre ricos e pobres, realçando a exploração.
⮚ Deambulação pelas ruas de Lisboa.
⮚ Reconhece as características da cidade, mas gosta disso.
⮚ Aprisionamento do sujeito poético ao longo do dia;

Título- o sentimento remete para o destaque de fatores emocionais, para a importância de que se revestem as impressões
dominantes do sujeito poético.

Poema longo: 44 quadras, versos decassilábicos (1º de cada quadra) e alexandrinos (os seguintes).

Na noite Fechada: a noite é frequentada pelos ladrões, prostitutas e bêbados.

O sentimento dum ocidental pretende homenagear Camões na passagem do 3° aniversário do seu falecimento. Cesário Verde
diz que o poema foi escrito com a intenção de celebrar Camões, a que os republicanos deram um relevo especial. Como tal,
temos presente uma alusão a Os Lusíadas e à “ocidental praia lusitana”.

3 séculos depois, este ocidental percorre o espaço de uma civilização industrial e urbana e reage emocionalmente a ela,
confrontando amargamente o presente com um passado épico.

A lembrança do passado épico é desencadeada pelo presente atrofiante (“E evoco, então..[…]”) que angustia o poeta;
encarado como um tempo perdido, esse passado surge como imagem de contrate com um presente que se adivinha de
corrupção e decadência, anunciando um futuro também sombrio.

Cesário Verde exprime, assim, “uma representação objetiva da… decadência história” em que tinham encalhado Portugal e
os portugueses, contrapondo a denúncia da triste realidade em que o país se encontrava, através do ambiente que se
desenvolve o poema, a “triste cidade”, simbolicamente depreciativo (a realidade é triste, Lisboa é triste, o país é triste, os
portugueses são tristes…).

⮚ A referência às “crónicas navais” e as “sovertas naus” é uma evocação da pureza dos Descobrimentos, o ar não
corresponde à realidade vivida.
⮚ A figura de Camões, o “épico de outrora”, aparece transmutada em “estátua” fria.
⮚ Os militares perderam o orgulho de outrora e servem a mediocridade instituída.

É clara a oposição entre aquilo que Cesário pretende que a realidade seja e o que ele sente que ela é.

A grande motivação para a escrita do poema foi a necessidade de denúncia sentida pelo autor, perante a realidade da
Lisboa do seu tempo, povoada de uma maioria de gente submissa e desgraçada, a contrastar com uma minoria abastada e
“feliz”.

Uma Lisboa que representava, desgraçadamente a realidade amorfa, decadente, aviltada, do país.
Cesário Verde
A débil

Eu, que sou feio, sólido, leal,


A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso,


Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,


Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

“Ela aí vem!” disse eu para os demais;


E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;


E invejava, - talvez que o não suspeites! -
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.


Triste eu saí. Doía-me a cabeça;
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltada das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu, muito natural,


Seguias, a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Sorriam, nos seus trens, os titulares;


E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto,
Que não te morrerá sem te casares!

Soberbo dia! Impunha-se respeito


A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Cesário Verde
Desejava beijar sobre o teu peito.

Com elegância e sem ostentação,


Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.

“Mas se a atropela o povo turbulento!


Se fosse, por acaso, ali pisada!”
De repente, paraste embaraçada
Ao pé dum numeroso ajuntamento.

E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,


Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então, que eu, homem varonil,


Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.

Análise:

O sujeito poético encontra-se na mesa de um café durante o dia e observa uma moça.
Esta mulher é muito natural e ele sente medo que ela caia nas mãos de abutres.
Denota-se a admiração do sujeito poético pela inocência e fragilidade da moça.

Perguntas:

1.1. O sujeito poético encontra-se num café “sentado à mesa dum café devasso” (v. 5), bebendo “cálices de absinto” (v.
10), “triste” e com dores de cabeça (v. 22).
1.1.1. A situação do “eu” resulta da influência negativa da cidade – da “Babel tão velha e corruptora” (v. 7) – em que
se insere.
2. Vv. 2, 6, 9, 15, 20, 25, 37, 38 e 51.
2.1. O paralelismo sintático confronta (aproximando os adjetivos que se sucedem) as características da mulher
“natural” (v. 25) e as do “eu” que a observa, inserido no reflexo do espaço da cidade “corruptora”.
2.1.1. Eu, que sou feio, sólido, leal, / A ti, que és bela, frágil, assustada ; A ti, que és ténue, dócil, recolhida, /Eu, que
sou hábil, prático, viril. – Oração adjetiva relativa explicativa; função sintática de modificador apositivo do
nome.
3.1. Vv. 23-26 (indiferença face à “turba ruidosa” e às “exéquias dum monarca”); vv. 43-44 e 46-48 (timidez no
ambiente “ameaçador” da cidade).
3.2. Uma pombinha tímida e quieta / Num bando ameaçador de corvos pretos.- Metáfora, Antítese e Adjetivação
expressiva. A metáfora e a antítese aproximam a “débil” – “Uma pombinha tímida e quieta” (ave conotada com a paz)
– do “ajuntamento” de “corvos pretos” (“padres de batina”e “altos funcionários”) conotados com a agressividade,
confirmando-se, assim, a caracterização negativa da cidade. A adjetivação expressiva realça as características
contrastantes das duas aves.
4.
Cesário Verde
Sentimentos de carinho, devoção (vv. 2-4 e 33-34), solidariedade (vv. 8 e 41-42) e sente-se capaz de mudar (vv.
11.12) (chega a aventar a hipótese de com ela constituir “uma família”, vv. 35-36 e 50).
5. A exclamação evidencia a perspetiva do sujeito poético face ao dia que descreve, que se tornou “soberbo”, mais
luminoso, após a visão da “débil”.
6. As aspas assinalam passagens em discurso direto (vv. 13 e 41-42).
7. E, quando socorreste um miserável, / Eu, que bebia cálices de absinto, /Mandei ir a garrafa, porque sinto / Que me
tornas prestante, bom, saudável.
E, quando socorreste um miserável- oração subordinada temporal;
que bebia cálices de absinto- oração subordinada adjetiva relativa explicativa;
porque sinto - oração subordinada adverbial causal
Que me tornas prestante, bom, saudável.- oração subordinada substantiva completiva.

De Tarde

Naquele pic-nic de burguesas,


Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quanto tu, descendo do burrico,


Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,


Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro, a sair da renda


Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Análise:

Fala de um piquenique.

Ação: piquenique;
Tempo: de tarde “ainda o sol se via”;
Personagens: eu lírico e um tu (burgueses);

Os burgueses vão de burrico e acampam nos penhascos

1ª estrofe
Cesário Verde
Temos presente sensações visuais de ambiente primaveril em “aguarela” que remete para uma pintura.

Na primeira estrofe, o sujeito poético apresenta o contexto em que a situação que recorda se desenrola, o “pic-nic”, e
destaca algo que se distinguiu e podia ser registado em forma de pintura, o que desperta o interesse pela sua
identificação, que vai ocorrer nas estrofes seguintes.

4ª estrofe

O “ramalhete rubro”, que refere a “coisa simplesmente bela” (v. 2) que atraiu a atenção do sujeito poético durante o
“pic-nic de burguesas” (v. 1), simboliza a voluptuosidade da figura feminina.

Temos presente uma anástrofe que destaca o motivo central do texto, através da inversão da ordem sintática natural
(o sujeito surge depois do predicado e no final do texto, em lugar de relevo).

Você também pode gostar