Você está na página 1de 5

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL

Curso: Letras/Espanhol
Unidade de Dourados
Professora Me. Thaize Soares Oliveira
Disciplina: Literatura Portuguesa 2
Acadêmico(a): ____________________________________________________________________

Cesário Verde

Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros, Cuja coluna nunca se endireita,
Vibra uma imensa claridade crua. Partem penedos; cruzam-se estilhaços.
De cócoras, em linha os calceteiros, Pesam enormemente os grossos maços,
Com lentidão, terrosos e grosseiros, Com que outros batem a calçada feita.
Calçam de lado a lado a longa rua,
A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
Como as elevações secaram do relento, Que espessos forros! Numa das regueiras
E o descoberto Sol abafa e cria! Acamam-se as japonas, os coletes;
A frialidade exige o movimento; E eles descalçam com os picaretes,
E as poças de água, como um chão vidrento, Que ferem lume sobre pederneiras.
Refletem a molhada casaria.
E nesse rude mês, que não consente as flores,
Em pé e perna, dando aos rins que a marcha Fundeiam, como a esquadra em fria paz,
agita, As árvores despidas. Sóbrias cores!
Disseminadas, gritam as peixeiras; Mastros, enxárcias, vergas! Valadores
Luzem, aquecem na manhã bonita, Atiram terra com as largas pás.
Uns barracões de gente pobrezita
E uns quintalórios velhos com parreiras. Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente!
-
Não se ouvem aves; nem o choro duma nora! Carros de mão, que chiam carregados,
Tomam por outra parte os viandantes; Conduzem saibro, vagarosamente;
E o ferro e a pedra - que união sonora! - Vê-se a cidade, mercantil, contente:
Retinem alto pelo espaço fora, Madeiras, águas, multidões, telhados!
Com choques rijos, ásperos, cantantes.
Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria:
Bom tempo. Os rapagões, morosos, duros, Em arco, sem as nuvens flutuantes,
baços, O céu renova a tinta corredia;
E os charcos brilham tanto, que eu diria Toda abafada num casaco à russa.
Ter ante mim lagoas de brilhantes!
Donde ela vem! A atriz que tanto cumprimento
E engelhem, muito embora, os fracos, os E a quem, à noite na platéia, atraio
tolhidos, Os olhos lisos como polimento!
Eu tudo encontro alegremente exato. Com seu rostinho estreito, friorento,
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos. Caminha agora para o seu ensaio.
E tangem-me, excitados, sacudidos,
O tato, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato! E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Como lajões. Os bons trabalhadores!
Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem Os filhos das lezírias, dos montados;
De tão lavada e igual temperatura! Os das planícies, altos aprumados;
Os ares, o caminho, a luz reagem; Os das montanhas, baixos, trepadores!
Cheira-me o fogo, a sílex, a ferragem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura. Mas fina de feições , o queixo hostil, distinto,
Furtiva a tiritar em suas peles,
Mal encarado e negro, um pára enquanto eu Espanta-me a atrizita que hoje pinto,
passo, Neste dezembro enérgico, sucinto,
Dois assobiam, altas as marretas E nestes sítios suburbanos, reles!
Possantes, grossas, temperadas de aço;
E um gordo, o mestre, com um ar ralaço Como animais comuns, que uma picada
E manso, tira o nível das valetas. esquente,
Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Homens de carga! Assim a bestas vão curvadas! Encaram-na sangüínea, brutamente:
Que vida tão custosa! Que diabo! E ela vacila, hesita, impaciente
E os cavadores pousam as enxadas, Sobre as botinhas de tacões agudos.
E cospem nas calosas mão gretadas,
Para que não lhes escorregue o cabo. Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem que inda o público a passagem abra,
Povo! No pano cru rasgado das camisas O demonico arrisca-se, atravessa
Uma bandeira penso que transluz! Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
Com ela sofres, bebes, agonizas; Com seus pezinhos rápidos, de cabra!
Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,


Surge um perfil direito que se aguça;
E ar matinal de quem saiu da toca,
Uma figura fina, desemboca,
Logo a moleirinha, toc, se levanta,
Guerra Junqueiro P'ra vestir os netos, p'ra acender o lume…

I Toc, toc, toc, como se espaneja,


*A MOLEIRINHA* Lindo o jumentinho pela estrada chan!
A MOLEIRINHA Tão ingenuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Pela estrada plana, toc, toc, toc, Dá-me até vontade de o levar á egreja,
Guia o jumentinho uma velhinha errante. Baptisar-lhe a alma p'ra a fazer cristan!
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toc, toc, toc, Toc, toc, toc, e a moleirinha antiga,
A velhinha atraz, o jumentito adiante!… Toda, toda branca, vae n'uma frescata…
Foi enfarinhada, sorridente amiga,
Toc, toc, a velha vae para o moinho, Pela mó da azenha com farinha triga,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!… Pelos anjos loiros com luar de prata!…
E comtudo alegre como um passarinho,
Toc, toc, e fresca como o branco linho, Toc, toc, como o burriquito avança!
De manhã nas relvas a córar ao sol. Que prazer d'outrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui creança,
Vae sem cabeçada, em liberdade franca, Que era assim tal qual a jumentinha mansa
O gerico russo d'uma linda côr; Que adorou nas palhas o menino Deos…
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o, toc, toc, a moleirinha branca Toc, toc, é noite… ouvem-se ao longe os sinos,
Com o galho verde d'uma giesta em flor. Moleirinha branca, branca de luar!…
Toc, toc, e os astros abrem diamantinos,
Vendo esta velhita, encarquilhada e benta, Como estremunhados cherubins divinos,
Toc, toc, toc, que recordação! Os olhitos meigos para a ver passar…
Minha avó ceguinha se me representa…
Tinha eu seis anos, tinha ella oitenta, Toc, toc, e vendo sideral tesoiro,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!… Entre os milhões d'astros o luar sem veo,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Toc, toc, toc, lindo burriquito, Quem será que moe estas farinhas d'oiro
Para as minhas filhas quem m'o dera a mim! Com a mó de jaspe que anda alem no ceo!…
Nada mais gracioso, nada mais bonito!
Quando a Virgem pura foi para o Egipto, Novembro de 1888. Os simples.
Com certeza ia n'um burrico assim.

Toc, toc, é tarde, moleirinha santa!


Nascem as estrellas, vivas, em cardume…
Toc, toc, toc, e quando o galo canta,
Fialho de Almeida

O Corvo

Aos primeiros clarões da manhã, o casco do galeão tinha-se afundado inteiramente.


Para qualquer lado que se olhava, o mar não tinha termo; o céu ia coberto duma bostela de nuvens cor de
chumbo, mosqueada de fulvo, que se fora erguendo duma banda, erguendo, té descobrir sobre a linha do mar
uma fímbria d’alva muito pálida, por onde a luz começou a esclarecer de manso o plano líquido. E esse plano
amainava e começara a perder os vagalhões...
Sobre as águas se erguia à maneira de torre, um grande ilhéu bronco e tisnado. Era uma massa de fortins
dentada toda em roda, por cima de cuja plataforma outras moles gigantes se aprumavam. E havia pórticos,
recantos, pátios, levadiças: a ressaca bramia nos recôncavos da rocha babujenta; por cima as nuvens galopavam,
embebendo os goelanos e os corvos marinhos do seu chorume glácido e mortal.
Mas que silêncio! A tormenta da noite esfalfara a seu turno os elementos, e do galeão perdido nada restava
mais do que um cadáver de escravo, flutuando de braços, pela água — tísicas as pernas, os ombros recaindo em
bola sob o esforço dos deltoides que a agonia paralisara na sua derradeira contratura, e a cabeça tão baixa e
metida n’água, entre as espáduas, que esse cadáver dir-se-ia havê-la perdido no cepo, sob a machadada certeira
dum carrasco.
Entanto a madrugada tocava de lividezes frias a epiderme corrugosa das águas, à medida que as nuvens se
erguiam do oriente, pondo na linha d’água uma grande boca de claridade. Essa boca escancarava para dentro
duma noção de deserto e d’infinito, sem uma vela, e toda ululante, desse soturno troar que vem do fundo do
oceano, como a imprecação de todos os milhões de seres que ele afogou.
Crescia a luz, e as nuvens se iam, lentas e cansadas, para outro hemisfério talvez, descobrindo os mares. E
os rochedos do ilhéu, se por um lado desciam na paisagem, do seu prestígio fantástico, nem por isso ficaram
menos lúgubres, com as suas grandes arestas medievais, e as suas proporções de sepulcro e pedestal.
De roda, as águas batiam-lhe de través os flancos carcomidos, com uma raiva que parecia insistir na proporção
da inutilidade do ataque. E ao largo, por todas as bandas, não se viam senão brilhar palhetas finas na orla das
ondas, uma após outra, correndo, e resolvendo-se alfim numa babugem d’espuma efervescente.
Mau grado o aspecto pacífico, aquela imensidade era sinistra: tintas de cólera passavam às vezes,
como maus pensamentos, por baixo da epiderme glauca do oceano; via-se então escancarar covas na água, brotar
um braço da espádua duma onda; e o eterno marulho abrir um eco, que estrugia metalicamente em cada palheta,
e acordava no teclado das ondas o mais desconforme coro de rancor.
Sobre uma crista de rocha estava um corvo, um corvo marinho, velho e calculado, cujos olhos
corriam o mar à busca de sustento, e cujos lentos meneios traíam na extrema prudência, a sagacidade cruel dos
pássaros cobardes, a quem a luta repugna, e que se ingurgitam só de podridão. Tinha as patas fincadas no
fraguedo, as asas lassas pendendo ao chão, como se estivessem decepadas, e avançara o pescoço como quem
fareja, estralejando o bico à guisa da matrácula. Como era enorme, o vulto dele, naquela postura de caça, tinha
um selo diabólico e maldito. Era ainda noute, já o corvo tinha lobrigado o cadáver do escravo à tona d’água, e
estivera a espreitá-lo dali, do seu reduto, partilhado entre a voluptuosa sensação da carne podre, e o pavor
d’avançar sobre uma presa suspeita, que ele não via bem se vivia ou estava morta.
E de cima da rocha o seu olhar espiava dum lado os outros corvos, e doutro lado o flutuar do corpo,
cada vez mais dobrado, e que dir-se-ia lutar contra o impulso das ondas, para fugir às voracidades da ave
impassível e satânica. Do seu poiso elevado enfim o corvo veio descendo, em pulos mansos, aos contrafortes
mais baixos do rochedo, em cuja babosa escarpa vinham partir-se os cachões da ressaca.
Aqui se detinha um pouco a olhar de lado a presa cobiçada, além se deixava escorregar pelas
salsugens marinhas, recuando aos repoupos, com um pavor cobarde, de cada vez que a vaga vinha marrar com
o negro à penedia.
Houve um momento em que o refluxo das águas, mais forte, desviou o cadáver do ilhéu, cerca duns
metros, tomando-o nas curvas dum remoinho brusco que depois o arrojou furiosamente, para uma distância além
da penedia. E isto açulou o apetite sinistro do pássaro, cujas asas se abriram de repente.
De manso, ao rés d’água, sem um grasnido que aos outros desse alarme do nefando repasto,
começou ele a voar, numa espiral frenética de gula, que descia e subia, em voos de seta, e tocava ao de leve a
carne do cadáver, fugindo, voltando, té lhe ferrar de raspão a primeira bicada.
Sem receio de rivais, aquele funéreo festim haveria parecido à ave delicioso. Mas era evidente que
o ciúme de partilhar o banquete o desesperara, e desta vez o corvo tinha pressa em chegar aos bocados saborosos.
... Aí começa uma luta entre o corvo que pula sobre as espáduas do escravo, a ver se o volta, pra
lhe sorver os olhos, como regalo primeiro da orgia perpetrada, e o cadáver que se defende à injúria, ocultando
cada vez mais a cabeça sob a água, e deixando os braços oscilar, como duas inúteis e inertes barbatanas.
Por muito tempo esta manobra prossegue, e à medida que avança, a impaciência da ave vai num
crescendo de cólera inarrável. Ela abre as asas, ergue-se um instante no ar, para cair depois a todo o peso, sobre
um ombro do náufrago, a provocar oscilação que lhe desloque o corpo daquela postura passiva de defesa. Ela
lhe rasga as carnes com as cortantes lâminas do bico, que se crava mais fundo, e mais, cada vez mais, na
proporção da certeza que tem na impunidade. Mas tudo é inútil. O negro lá continua de bruços sobre as ondas,
hirtas as pernas, o cavername do tronco abroquelado em glaciais musculaturas, os ombros sempre unidos, a
cabeça debaixo do peito, como em vivo fizera, quando o chicote do amo lhe arava as carnes, delas fazendo suar
martírio e sangue. De roda, tudo agora se alarga sob a coral de luz que a manhã canta.
As nuvens foram-se: o sol rebenta afinal à boca do grande deserto d’água, e pacifica-lhe as fúrias
coas refulgências geniais da sua claridade. E nada é mais doce do que esse murmúrio sem fim das grandes águas,
horrísono ainda há pouco, agora lírico e profundo, como o poean entoado pelos efebos, na terra helena, depois
duma batalha. Só o corvo prossegue na sua tarefa exaustinada, e, imagem do ódio, ei-lo armando em força a
cobardia, requintando a vingança, tripudiando sobre a impunidade — como esses vencidos que se desforram da
humilhação sofrida, indo aos cemitérios esbofetear os cadáveres dos vencedores.
(O País das Uvas, Lisboa, Clássica, 1946, pp. 167-171.)

Moisés, Massaud. A Literatura Portuguesa Através Dos Textos (Portuguese Edition) (p. 480).
Editora Cultrix. Edição do Kindle.

Você também pode gostar