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Cristalizações

Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros, A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!

Vibra uma imensa claridade crua. Que espessos forros! Numa das regueiras

De cócoras, em linha os calceteiros, Acamam-se as japonas, os coletes;

Com lentidão, terrosos e grosseiros, E eles descalçam com os picaretes,

Calçam de lado a lado a longa rua, Que ferem lume sobre pederneiras.

Como as elevações secaram do relento, E nesse rude mês, que não consente as flores,

E o descoberto Sol abafa e cria! Fundeiam, como a esquadra em fria paz,

A frialidade exige o movimento; As árvores despidas. Sóbrias cores!

E as poças de água, como um chão vidrento, Mastros, enxárcias, vergas! Valadores

Refletem a molhada casaria. Atiram terra com as largas pás.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha Eu julgo-me no Norte, ao frio – o grande
agita, agente! –

Disseminadas, gritam as peixeiras; Carros de mão, que chiam carregados,

Luzem, aquecem na manhã bonita, Conduzem saibro, vagarosamente;

Uns barracões de gente pobrezita Vê-se a cidade, mercantil, contente:

E uns quintalórios velhos com parreiras. Madeiras, águas, multidões, telhados!

Não se ouvem aves; nem o choro duma nora! Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria:

Tomam por outra parte os viandantes; Em arco, sem as nuvens flutuantes,

E o ferro e a pedra – que união sonora! – O céu renova a tinta corredia;

Retinem alto pelo espaço fora, E os charcos brilham tanto, que eu diria

Com choques rijos, ásperos, cantantes. Ter ante mim lagoas de brilhantes!

Bom tempo. Os rapagões, morosos, duros, E engelhem, muito embora, os fracos, os


baços, tolhidos,

Cuja coluna nunca se endireita, Eu tudo encontro alegremente exato.

Partem penedos; cruzam-se estilhaços. Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.

Pesam enormemente os grossos maços, E tangem-me, excitados, sacudidos,

Com que outros batem a calçada feita. O tato, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato!
Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem Donde ela vem! A atriz que tanto cumprimento

De tão lavada e igual temperatura! E a quem, à noite na platéia, atraio

Os ares, o caminho, a luz reagem; Os olhos lisos como polimento!

Cheira-me o fogo, a sílex, a ferragem; Com seu rostinho estreito, friorento,

Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura. Caminha agora para o seu ensaio.

Mal encarado e negro, um pára enquanto eu E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
passo,
Como lajões. Os bons trabalhadores!
Dois assobiam, altas as marretas
Os filhos das lezírias, dos montados;
Possantes, grossas, temperadas de aço;
Os das planícies, altos aprumados;
E um gordo, o mestre, com um ar ralaço
Os das montanhas, baixos, trepadores!
E manso, tira o nível das valetas.

Mas fina de feições , o queixo hostil, distinto,


Homens de carga! Assim a bestas vão curvadas!
Furtiva a tiritar em suas peles,
Que vida tão custosa! Que diabo!
Espanta-me a atrizita que hoje pinto,
E os cavadores pousam as enxadas,
Neste dezembro enérgico, sucinto,
E cospem nas calosas mão gretadas,
E nestes sítios suburbanos, reles!
Para que não lhes escorregue o cabo.

Como animais comuns, que uma picada


Povo! No pano cru rasgado das camisas esquente,

Uma bandeira penso que transluz! Eles, bovinos, másculos, ossudos,

Com ela sofres, bebes, agonizas; Encaram-na sangüínea, brutamente:

Listrões de vinho lançam-lhe divisas, E ela vacila, hesita, impaciente

E os suspensórios traçam-lhe uma cruz! Sobre as botinhas de tacões agudos.

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca, Porém, desempenhando o seu papel na peça,

Surge um perfil direito que se aguça; Sem que inda o público a passagem abra,

E ar matinal de quem saiu da toca, O demonico arrisca-se, atravessa

Uma figura fina, desemboca, Covas, entulhos, lamaçais, depressa,

Toda abafada num casaco à russa. Com seus pezinhos rápidos, de cabra!

Cesário Verde

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