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“Num Bairro Moderno”, de Cesário Verde

Dez horas da manhã; os transparentes Do patamar responde-lhe um criado:


Matizam uma casa apalaçada; «Se te convém, despacha; não converses.
Pelos jardins estacam-se as nascentes, Eu não dou mais.» E muito descansado,
E fere a vista, com brancuras quentes, Atira um cobre lívido, oxidado,
A larga rua macadamizada1. Que vem bater nas faces duns alperces.

Rez-de-chaussée2 repousam sossegados, Subitamente - que visão de artista! -


Abriram-se, nalguns, as persianas, Se eu transformasse os simples vegetais,
E dum ou doutro, em quartos estucados, À luz do Sol, o intenso colorista,
Ou entre a rama dos papéis pintados, Num ser humano que se mova e exista
Reluzem, num almoço, as porcelanas. Cheio de belas proporções carnais?!

Como é saudável ter o seu aconchego, Boiam aromas, fumos de cozinha;


E a sua vida fácil! Eu descia, Com o cabaz às costas, e vergando,
Sem muita pressa, para o meu emprego, Sobem padeiros, claros de farinha;
Aonde eu agora quase sempre chego E às portas, uma ou outra campainha
Com as tonturas duma apoplexia3. Toca, frenética, de vez em quando.

E rota, pequenina, azafamada, E eu recompunha, por anatomia,


Notei de costas uma rapariga, Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Que no xadrez marmóreo duma escada, Achava os tons e as formas. Descobria
Como um retalho de horta aglomerada, Uma cabeça numa melancia,
Pousara, ajoelhando, a sua giga4. E nuns repolhos seios injetados.

E eu, apesar do sol, examinei-a: As azeitonas, que nos dão o azeite,


Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos; Negras e unidas, entre verdes folhos,
E abre-se-lhe o algodão azul da meia, São tranças dum belo cabelo que se ajeite;
Se ela se curva, esguedelhada, feia, E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E pendurando os seus bracinhos brancos. E os cachos de uvas - os rosários de olhos.

1 Pavimentada com pedra britada 3 Suspensão súbita de movimento e da sensação


2 Rés do chão relacionada com uma afeção cerebral, hemorragia,
congestão ou derramamento sanguíneo
4 Cesta larga e baixa
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre E enquanto sigo para o lado oposto,
As hortaliças, túmido5, fragrante6, E ao longe rodam as carruagens,
Como dalguém que tudo aquilo jante, A pobre afasta-se, ao calor de agosto,
Surge um melão, que me lembrou um ventre. Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras, Um pequerrucho rega a trepadeira
Sangue na ginja vívida, escarlate, Duma janela azul; e, com o ralo
Bons corações pulsando no tomate Do regador, parece que joeira
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras. Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.
O sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface Chegam do gigo7 emanações sadias,
E dera o ramo de hortelã que cheira, Oiço um canário - que infantil chilrada! -
Voltando-se, gritou-me, prazenteira: Lidam ménages8 entre as gelosias9,
«Não passa mais ninguém!... Se me E o sol estende, pelas frontarias,
ajudasse?!...» Seus raios de laranja destilada.

Eu acerquei-me dela, sem desprezo; E pitoresca e audaz, na sua chita10,


E, pelas duas asas a quebrar, O peito erguido, os pulsos nas ilhargas11,
Nós levantámos todo aquele peso Duma desgraça alegre que me incita,
Que ao chão de pedra resistia preso, Ela apregoa, magra, enfezadita,
Com um enorme esforço muscular. As suas couves repolhudas, largas.

«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!» E, como grossas pernas dum gigante,
E recebi, naquela despedida, Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
As forças, a alegria, a plenitude, Carregam sobre a pobre caminhante,
Que brotam dos excessos de virtude Sobre a verdura rústica, abundante,
Ou duma digestão desconhecida. Duas frugais12 abóboras carneiras13.

5 Dilatado, inchado 10 Tecido de algodão de fraca qualidade


6 Aromático, perfumado 11 Partes do corpo humano situadas acima das ancas
7 cesto 12 Simples, leves
8 Empregadas domésticas 13 Variedade de abóbora
9 persianas

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