O poema descreve um bairro moderno e burguês através dos olhos de um poeta que o percorre. O poeta focaliza detalhes das casas e jardins e pessoas como padeiros e uma vendedeira. A vendedeira é retratada como frágil e oprimida pelo seu trabalho pesado. O poeta usa sua imaginação para transformar vegetais em partes do corpo humano, recriando poeticamente a realidade.
Descrição original:
Análise do poema "Num Bairro Moderno " de Cesário Verde
O poema descreve um bairro moderno e burguês através dos olhos de um poeta que o percorre. O poeta focaliza detalhes das casas e jardins e pessoas como padeiros e uma vendedeira. A vendedeira é retratada como frágil e oprimida pelo seu trabalho pesado. O poeta usa sua imaginação para transformar vegetais em partes do corpo humano, recriando poeticamente a realidade.
O poema descreve um bairro moderno e burguês através dos olhos de um poeta que o percorre. O poeta focaliza detalhes das casas e jardins e pessoas como padeiros e uma vendedeira. A vendedeira é retratada como frágil e oprimida pelo seu trabalho pesado. O poeta usa sua imaginação para transformar vegetais em partes do corpo humano, recriando poeticamente a realidade.
Matizam uma casa apalaada; Pelos jardins estancam-se as nascentes, E fere a vista, com brancuras quentes, A larga macadamizada. Rez-de-chauss repousam sossegados, Abriram-se, nalguns, as persianas, E dum ou doutro, em quartos estucados, Ou entre a rama dos papis pintados, Reluzem, num almoo as porcelanas. Como saudvel ter o seu conchego, E a sua vida fcil! Eu descia, Sem muita pressa, para o meu emprego, Aonde agora quase sempre chego Com as tonturas duma apoplexia. E rota, pequenina, azafamada, Notei de costas uma rapariga, Que no xadrez marmreo duma escada, Como um retalho de horta aglomerada, Pousara, ajoelhando, a sua giga. E eu, apesar do sol, examinei-a; Ps-se de p; ressoam-lhe os tamancos; E abre-se-lhe o algodo azul da meia, Se ela se curva, esguedelhada, feia E pendurando os seus bracinhos brancos. Do patamar responde-lhe um criado: "Se te convm, despacha; no converses. Eu no dou mais." E muito descansado, Atira um cobre ignbil oxidado, Que vem bater nas faces duns alperces. Subitamente - que viso de artista! Se eu transformasse os simples vegetais, luz do Sol, o intenso colorista; Num ser humano que se mova e exista Cheio de belas propores carnais?!
Biam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz s costas, e vergando, Sobem padeiros, claros de farinha; E s portas, uma ou outra campainha Toca, frentica, de vez em quando. E eu recompunha, por anatomia, Um novo corpo orgnico, aos bocados. Achava os tons e as formas. Descobria Uma cabea numa melancia, E nuns repolhos seios injectados. As azeitonas, que nos do o azeite, Negras e unidas, entre verdes folhos, So tranas dum cabelo que se ajeite; E os nabos - ossos nus, da cor do leite, E os cachos de uvas - os rosrios de olhos. H colos, ombros, bocas, um semblante Nas posies de certos frutos. E entre As hortalias, tmido, fragrante, Como dalgum que tudo aquilo jante, Surge um melo, que me lembrou um ventre. E, como um feto, enfim, que se dilate, Vi nos legumes carnes tentadoras, Sangue na ginja vvida, escarlate, Bons coraes pulsando no tomate E dedos hirtos, rubros, nas cenouras. O Sol dourava o cu. E a regateira, Como vendera a sua fresca alface E dera o ramo de hortel que cheira, Voltando-se, gritou-me prazenteira: " No passa mais ningum! ... Se me ajudasse?! ..." Eu acerquei-me dela, sem desprezo; E, pelas duas asas a quebrar, Ns levantmos todo aquele peso Que ao cho de pedra resistia preso, Com um enorme esforo muscular. (...) E pitoresca e audaz, na sua chita, O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraa alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita, As suas couves repolhudas, largas. E, como as grossas pernas dum gigante, Sem tronco, mas atlticas, inteiras Carregam sobre a pobre caminhante, Sobre a verdura rstica, abundante, Duas frugais abboras carneiras. Lisboa, Vero de 1877 Cesrio Verde
ANLISE
O poema "Num Bairro Moderno" exemplificativo de um dos traos
caractersticos da poesia de Cesrio Verde - a deambulao. O poeta percorre o bairro enquanto se dirige para o emprego - " (...)Eu descia, / Sem muita pressa, para o meu emprego," (est. III, vv. 2-3) e o seu olhar que, como uma "cmara", vai "focando" vrios planos: a "casa apalaada", os "jardins" que se estendem ao longo da "larga rua macadamizada" (est. I), os "rez-de-chausse" cujas persianas que se abrem deixam ver pormenores do interior das casas - "quartos estucados", "papis pintados", "porcelanas" (est. II). Note-se que tanto estes pormenores do espao interior como as referncias anteriores a elementos do espao exterior sugerem bem-estar, o conforto que se vive neste bairro moderno e burgus; o poeta explicita-o ao introduzir com um comentrio pessoal a terceira estrofe - " Como saudvel ter o seu conchego / E a sua vida fcil!" Esta ideia de conforto sugerida no s pelas referncias objectivas como pela linguagem expressiva utilizada, nomeadamente por verbos e adjectivos: "com brancuras quentes" - sinestesia, "Rez-dechausse repousam sossegados" - hiplage - transfere-se para as casas o ambiente de tranquilidade que se vive no seu interior e que acentuado pela associao pleonstica do verbo "repousar" e do adjectivo "sossegado", "Reluzem, num almoo, as porcelanas."
O brilho que emana das loias um dos elementos que
confere visualismo a esta descrio. O motivo do olhar domina a composio: "Matizam", "fere a vista", "Reluzem", "Notei", "examineia", so elementos lexicais que confirmam a importncia que a percepo visual detm no poema. Nas estrofes IV e V o poeta referese vendedeira como se o seu olhar se fixasse sobre uma imagem da qual o poeta destaca aquilo que visualmente o impressiona - "uma rapariga / Que no xadrez marmreo duma escada, / como um retalho de horta aglomerada, / Pousara, ajoelhando, a sua giga." de notar o forte contraste visual (sugerido) entre o branco e o negro, dispostos em xadrez, e o colorido das frutas e legumes que esto dentro da cesta. A esta associam-se outras sensaes. Ainda na quinta estrofe o som que vem completar o quadro -"ressoam-lhe os tamancos"; na oitava estrofe a associao de sensaes - sinestesia- o processo atravs do qual o poeta transmite a sua viso impressionista da realidade - "Biam aromas, fumos de cozinha;" (olfacto), "Com a cabaz s costas, e vergando, / Sobem padeiros, claros de farinha;" (viso), "E s portas, uma ou outra campanha / Toca, frentica, - hiplage - de vez em quando." (audio).
Os "padeiros", a "regateira" so tipos sociais caractersticos do espao
urbano descrito. Gente do povo, contrastam com a imagem elegante, requintada do bairro burgus. Os padeiros "sobem" "vergando" sob o peso do cabaz (est. VIII); a vendedeira, frgil, obrigada a um trabalho pesado. sobre esta ltima que a ateno do poeta se detm: as indicaes relativas ao aspecto fsico - "pequenina" (est. IV), "esguedelhada, feia", "os (...) bracinhos brancos" (est. V), "magra", "enfezadita" (est. XIX); ao vesturio - "rota" (est. IV), "os tamancos", "abre-se-lhe o algodo azul da meia" (est. V), "na sua chita" (est. XIX) - caracterizam-na socialmente e reiteram uma ideia de debilidade, de fragilidade ( recurso a diminutivos) que acentua o peso da opresso de que vtima. Essa sugesto encontra-se igualmente nas expresses que relatam os movimentos e gestos da rapariga sobretudo na expressividade dos verbos utilizados: "ajoelhando" (est. IV), "se curva", "pendurando" (est. V), "Ns levantmos todo aquele peso / Que ao cho de pedra resistia preso / Com um enorme esforo muscular." (est. XIV), "Carregam sobre a pobre caminhante" (est. XX). Contudo, apesar de feia e desprezada por ela que o sujeito potico nutre simpatia. A subjectividade do poeta est presente em expresses como as da sexta estrofe em que o criado (um outro tipo social), "do patamar", isto , de cima, altivo, "muito descansado", em contraste com a vendedeira, "Atira um cobre ignbil" (hiplage), integrando deste modo no poema a crtica desigualdade e injustia social. Para
alm de que "sem desprezo" (est. XIV) que o poeta auxilia a
"regateira", comungando com ela dum mesmo esforo e tornando-se como que solidrio da sua condio. Alis, a forte conscincia da injustia e de opresso parece ser exclusiva do poeta, pois a rapariga enfrenta-os com a coragem e alegria - "E pitoresca a audaz (...) / O peito erguido, os pulsos nas ilhargas, / Duma desgraa alegre que me incita, / Ela apregoa (...) / As suas couves repolhudas, largas."
Neste texto alternam as referncias concretas a elementos objectivos
que compem o espao (fsico e social) e a expresso subjectiva do sujeito lrico. Este no se limita a descrever lugares e personagens. A descrio com frequncia impressionista e aos elementos descritos o poeta associa o seu estado psicolgico, o que acontece na terceira estrofe quando, para alm de comentar o que v, o sujeito afirma "quase sempre chega / Com as tonturas de uma apoplexia" ou se mostra "contagiado" pela fora interior da rapariga - "Duma desgraa alegre que me incita" (est. XIX). No entanto, nas estrofes sete e nove a doze que a presena de um "eu" lrico assume particular relevo:
"Subitamente - que viso de artista! - / Se eu transformasse os
simples vegetais, / A luz do sol, o intenso colorista, / Num ser humano que se mova e exista / Cheio de belas propores carnais?!" (est. VII). Atravs da imaginao, o sujeito transfigura poeticamente a realidade exterior, estabelecendo associaes entre "os simples vegetais" e partes de um corpo humano. Os verbos utilizados na estrofe nove apontam precisamente para essa reconstruo do real elaborada mediante a fantasia - "recompunha", "Achava", "Descobria". A estas formas no Pretrito Imperfeito, sucede-se o Presente do Indicativo - "So" (est. X) - estabelecendo-se assim um percurso entre o acto de imaginar (de recompor a realidade) e a existncia real, presente de um universo, o universo potico que resulta da criao. Universo que, neste caso, como comum na poesia de Cesrio Verde, assume contornos plsticos, caractersticas pictricas - so "os tons e as formas" (est. IX), "as posies" (est. XI) dos frutos e dos vegetais que possibilitam a associao de ideias na qual consiste esta transfigurao.