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Tema: a oposição campo / cidade – dramatização de uma invasão simbólica da cidade

pelo campo, representada por uma vendedeira e sua giga de frutas e legumes.

. Assunto: o percurso do sujeito poético, a caminho do emprego às dez horas de uma quente manhã
de agosto, pelas largas ruas macadamizadas de um bairro moderno da cidade, e ao longo
do qual faz contrastar o conforto dos habitantes do bairro com o esforço de uma vendedeira
ambulante, uma jovem camponesa pobre. Os frutos e legumes que vende são o pretexto
para uma transfiguração do real, transmutando os legumes e frutos num ser humano.

Perante este cenário, é fácil concluir que o poema apresenta uma linha narrativa:
o sujeito poético caminha, pelas ruas macadamizadas de um bairro da cidade, para o seu
emprego, às dez horas de uma manhã quente de agosto. Em determinado momento vê
uma camponesa pobre, uma vendedeira ambulante a colocar o cabaz pesado de frutos e
legumes nas escadas de uma casa luxuosa. Esta é a cena que inspira nela a “visão de
artista”, que é o principal foco do poema. O sujeito poético vai observando, com bastante
pormenor, o que o rodeia, contrastando a frescura da vida confortável das
casas “apalaçadas” com o calor daquela rua. Segue-se a caracterização da vendedeira e
transformação dos elementos da sua giga num “corpo orgânico”.

Estrutura interna
Porém, este luxo da vida confortável na sombra fresca das ilhas privativas de verdura, que
são as casas apalaçadas, contrasta com a crua hostilidade da luz e do calor na larga rua
desabrigada: “E fere a vista, com brancuras quentes, / A larga rua macadamizada.” (vv. 4-
5)
O sujeito poético desempenha um papel activo na medida em que, enquanto
caminha, vai observando o que o rodeia com uma particularidade de detalhes que
constituem o seu próprio comentário selectivo. As casas grandiosas têm fontes e jardins;
os seus interiores, vislumbrados através das janelas quando se abrem as persianas,
revelam a folhagem pintada dos papéis de parede – o jardim capturado e enclausurado
como um tema decorativo – e o reluzir reconfortante das porcelanas frias. Mas além de
reportar o que vê e o surpreende nas ruas durante os passeios pelos bairros da cidade,
ele integra-se nas várias cenas que anota na sua poesia. Daí, vemo-lo às “Dez horas da
manhã”, a descer, “Sem muita pressa, para o [seu] emprego”, e a observar agudamente o
meio ambiente. O “eu” projecta-se, assim, como quem vai todos os dias para o seu
emprego, tal como qualquer lisboeta o faz, na rotina e monotonia típicas do ambiente
citadino e burguês de qualquer capital em qualquer época. Perante esta vida monótona, o
sujeito poético reage negativamente – fala das “tonturas duma apoplexia” que já se lhe
tornaram quase habituais.
Os ataques de tonturas levam o sujeito poético a ironizar enquanto caminha sobre
a “vida fácil” representada pelas casas “apalaçadas” que abundam nas ruas largas e
modernas que distam do seu emprego (est. 1-3). A sua observação contém
particularidades que são o seu próprio comentário selectivo (estr. 2). O luxo contrasta com
a hostilidade da luz e do calor (est. 1, vv. 4-5) que retém a sua visão na presença da
vendedeira de hortaliça (est. 4-5), enquanto a restante cidade prossegue na sua rotina
quotidiana (est. 8); o sujeito poético fica, porém, imerso na visão que o leva a recompor
gradualmente um “novo corpo orgânico” com os produtos do cabaz da vendedeira (est. 9-
12).

. 2.ª parte (estr. 4-6) – Entrada da vendedeira, simbolizando a invasão da cidade pelo campo.

No ambiente hostil onde caminha, a atenção do sujeito poético é atraída pela


presença da vendedeira de hortaliça numa escada de mármore.
A rapariga é socialmente inferior ao sujeito lírico. No entanto, tem mais em comum
com as ilhas de verdura do bairro moderno do que ele: pertence ao mundo natural da
vegetação que, na forma do jardim ou da sua representação no forro das paredes, circunda
e invade a casa apalaçada, da mesma maneira que ela invadiu a cidade com o seu “retalho
de horta aglomerada”.

. Descrição da vendedeira:
– “rota, pequenina, azafamada” – tripla adjectivação, diminutivo;
– “esguedelhada” – desleixada – , feia” – dupla adjectivação, sensação visual;
– pobre, pelas vestes, que são apresentadas mesmo antes da camponesa em si mesma;
– “ressoam-lhe os tamancos” – sensação auditiva;
– “o algodão azul da meia” – sensação visual, metonímia;
– “os seus bracinhos brancos” – sensação visual, diminutivo carinhoso;
– demonstra ser activa, diligente, trabalhadora (estr. 13, vv. 1-5);
– mostra-se robusta [“Nós levantámos todo aquele peso / (...) Com um enorme esforço
muscular.” – estr. 14, vv. 3-5; “E como as grossas pernas dum gigante...”, “... abóboras
carneiras.”, estr. 20], em paralelo com o seu aspecto frágil: “magra, enfezadita” (estr. 19,
v. 4)

Esta descrição vinca bem o contraste entre a vitalidade dos produtos do campo
transportados pela vendedeira e a sua fragilidade.
Por outro lado, sugere a imagem de uma criatura pobre e privada de tudo, com uma
vida que é uma verdadeira luta, pis embora “azafamada",
continua “rota” e “esguedelhada”, de uma pobreza que se reflecte também nas meias que
se abrem quando ela se curva. Não obstante, ela é alegre e “prazenteira”; a sua boa
disposição reflecte-se nos tamancos que ressoam, no algodão azul das meias, na chita
estampada e nas ramagens da sua saia, e dá-lhe uma projecção ao mesmo
tempo “pitoresca e audaz”, como alguém que desabafa a sua própria penúria, com o “peito
erguido, os pulsos nas ilhargas” (mostrando-se decidida), e “duma desgraça
alegre” (paradoxo) que incita o sujeito poético.

Relações:
A tensão que existe entre o criado desdenhosamente impaciente e a hortaliceira
tem uma projecção simbólica nos últimos três versos da estrofe, cujo efeito é a
intensificação da atitude negativa do sujeito perante o criado: por
transferência metonímica, a moeda «lívida, oxidada» representa a cara cor de cadáver
(«lívido», significando cor de chumbo, entre o negro e o azul, ou a cor cadavérica) do
criado, o «bater» da imagem representa a atitude hostil deste perante a rapariga, enquanto
as «faces» dos «alperces», sobre os quais a moeda cai, simbolizam, pela sua frescura
saudável, as faces da própria rapariga. A bofetada verbal que se lhe dá transforma-se,
assim, numa bofetada simbolicamente física.
A pobreza desta vendedeira é um sintoma de injustiça social, tal como a riqueza
contrastante das casas apalaçadas.

. Recursos expressivos:
– sinestesia: "xadrez marmóreo" (sobreposição de sensações visuais e tácteis);
– nas estrofes 5 e 6 há um grande rigor de observação (“apesar do sol, examinei-a”), obtido
através da importância conferida às sensações auditivas ("ressoam os tamancos") e
às sensações visuais ("o algodão azul da meia", "os seus bracinhos brancos”, "um cobre
lívido, oxidado”);
– na estrofe 6 nota-se a grande capacidade de síntese de Cesário Verde e do seu génio em
conseguir caracterizar todo um universo social e psicológico através da fala do criado ("Se
te convém, despacha; não converses. / Eu não dou mais...”), de gestos burgueses de
arrogância presentes na expressividade do(a):
® superlativo analítico "muito descansado”;
® forma verbal "atira”;
® personificação "cobre lívido”;
® cariz pejorativo e desprezível presente no adjectivo oxidado – autênticos traços naturalistas
da poesia de Cesário;
– a adjectivação utilizada para a vendedeira caracteriza-a como inferior, desprezível;
bos: "notei", "examinei" – observação do sujeito poético.

. 3.ª parte – Transfiguração da realidade – marca surrealista


Marcas do real – "E eu recompunha"
– a azáfama matinal de uma rua citadina (estr. 7-8):
. sensações olfactivas: "Bóiam aromas";
. sensações visuais: "fumos de cozinha", "claros de farinha";
. sensações auditivas: "uma ou outra campainha toca".
NOTAS:

1.ª) O ser humano vegetal que emerge da cornucópia trazida para a cidade pela
frágil mensageira do campo é uma mulher gigantesca com grandes seios maternais ("seios
injectados”) e opulentas “carnes tentadoras”; uma Deusa-Mãe arquetipal,
uma personificação da Natureza.

2.ª) Este exuberante corpo vegetal é a antítese do corpo da vendedeira que o


transporta: caracterizada inicialmente como “rota, pequenina, azafamada”, a rapariga é
também “esguedelhada, feia” (estrofe 5), “magra, enfezadita” (estrofe 19), “descolorida
nas maçãs do rosto, / E sem quadris na saia de ramagens” (estrofe 16).

3.ª) A transfiguração do real (que foi desencadeada pelo “cobre lívido,


oxidado” caindo sobre as “faces duns alperces” – estr. 6, vv. 4-5), essa fuga para o
fantástico não significa um abandono do real, mas sim atribui uma visão mais ampla dos
seus aspectos essenciais, conseguida através da transformação de sensações em
imagens. Deste modo, dos frutos e legumes nasce a imagem das várias partes de um
gigantesco corpo natural, simbólico do campo: prevalecem os substantivos,
a adjectivação sugestiva [“túmido”, “fragrante”, est. 11, v. 3; “(...) vívida, escarlate”, est.
12, v. 3; “(...) hirtos, rubros”, est. 12, v. 5], o verbo expressivo em “Bóiam aromas, fumos
de cozinha” (est. 8, v. 1); existem enumerações (est. 10-11), elipses (est. 9, vv. 5; est. 10,
vv. 4-5), comparações (“túmido”, “fragrante, / Como de alguém que tudo aquilo jante, /
Surge um melão, que me lembrou um ventre”, est. 12, vv. 3-5; “E como um feto”, est. 12,
v. 1); hipálage (“E às portas, uma ou outra campainha / Toca, frenética, de vez em
quando”, est. 8, vv. 4-5); e metáforas [“(...) verdes folhos”, est. 10, v. 2; “São tranças dum
cabelo (...)”, est. 10, v. 3; “E os nabos – ossos nus”, est. 10, v. 4; “E os cachos de uvas –
os rosários dos olhos”, est. 10, v. 5].
Em suma, esta metamorfose da realidade é bastante simbólica. A giga é “um
retalho de horta”, daí que transpire força, vigor, saúde, vida, poder de transformação, por
oposição à cidade, representada pelo sujeito poético e, de certa forma, pela hortaliceira,
conotada com dor, sofrimento e, no limite, morte. Esta oposição campo / cidade, vida /
morte é um dos binómios estruturadores da poesia de Cesário e está ligada ao mito de
Anteu. Anteu foi um gigante, filho de Neptuno e da Terra. Na luta contra Hércules, Anteu
recuperava forças cada vez que tocava no solo e era invencível. Então, Hércules ergueu-
o nos braços e conseguiu desta forma eliminá-lo. Fala-se deste mito sempre que alguém
estabelece contactos com a origem das suas ideias ou dos seus sentimentos e recupera
energias físicas ou psicológicas. No caso deste poema, o mito de Anteu está presente no
sentido de que só o contacto com o real, mas sobretudo com o campo, com a terra, confere
ao homem força e vitalidade.

4.ª) Serão a reacção física negativa e a tensão psicológica que o sujeito patenteia
na 1.ª parte apenas o resultado da monotonia da sua vida? Ou serão ao mesmo tempo o
resultado de um esforço constante de sublimar problemas pessoais? Nesta ordem de
ideias, o que lhe desperta o interesse não é a paisagem, em geral, mas, especificamente,
as casas, os lares, que, por sua vez, representam tudo aquilo que lhe é negado pela sua
inadaptação sexual. Enquanto o «eu» vai observando e anotando, apresenta-se-lhe
repentinamente, de costas, a figura de uma pequena hortaliceira, e logo, numa imagem
brilhante e visual, o sujeito foca nela um aspecto erótico, ou pelo menos, sugestivo, no
«algodão azul da meia» que se abre quando ela se curva. Neste momento começa-se a
sentir a tensão que noutros poemas se manifesta perante a figura feminina quando,
«Subitamente, através da sua visão de artista», todos os controles, as barreiras censoriais
erguidas contra os impulsos da líbido no processo de sublimação, se rompem, e segue-
se-lhe depois o quadro mais sensual de toda a obra de verdiana, como seu o «eu»
estivesse protegido e desculpado agora pela sua «visão de artista». É neste momento que
a sexualidade inerente, insatisfeita e problemática do «eu», em termos da sua
ambivalência, atinge o seu clímax.

5.ª) Por outro lado, é aqui que o sujeito poético se apresenta na pele de um artista,
de um poeta, no gesto demiúrgico de transformar esses alperces, humilhados pelo valor
de troca e pela classe que o determina (representada no criado de uma casa apalaçada),
num motivo de metaforização poética de recriação vital - de uma sobre-vida. Trata-se aqui
de um projecto de sobre-vivência não só do sujeito, que passa a ter uma visão de artista e
se autocontempla no acto de transmutar os simples vegetais, com a ajuda da luz do sol,
num corpo recriado, mas também de sobre-vivência da própria natureza vegetal, reagindo
contra a funesta redução do seu uso ao valor de troca, entendido como mortal: o cobre é
qualificado de oxidado e além disso Cesário substituiu a qualificação da versão primitiva,
«ignóbil», por «lívido». Deslocou o enfoque do conflito humano e sentimental para um nível
mais profundo, onde a lógica económica se cruza com uma lógica fantasmática dominada
pela pulsão de morte. Para revalorizar a natureza - os frutos e os legumes - o sujeito
torna-se e mostra-se poeta, capaz de a recriar num corpo carnal, e põe a nu o
procedimento metafórico com a sua capacidade fecundadora e produtiva. A metáfora
transforma-se assim num equivalente da fertilidade da natureza.
Convém ainda notar que não é um corpo qualquer que a «visão de artista»
recompõe, mas pedaços de um organismo feminino, agigantados e plurais, numa série que
caminha do mais epidérmico para o mais visceral, para os órgãos da digestão, da
procriação e para os centros de vida: «ventre», «feto», «sangue» e «corações pulsando».
Se a natureza comestível se transforma em natureza carnal e fértil, o contrário também
sucede. A metáfora é também pretexto para uma oralização dos estilhaços do corpo
feminino, tornando-o deglutível e nutritivo como as hortaliças e como elas revigorante, pois
que é do «gigo» que o sujeito recebe «emanações sadias».
6.ª) Uma vez que o sujeito poético recompõe, isto é, compõe de
novo “um novo corpo orgânico” com os frutos e legumes vistos em
termos metafóricos (“... descobria / Uma cabeça numa melancia...”), a sua actividade
implica a existência anterior de um modelo ou arquétipo, de uma «ideia» no sentido
platónico, que houvesse sido decomposto em frutos e legumes. Esse modelo é, portanto,
a própria Natureza. Mas como o corpo que é recomposto é um corpo “novo”, fica também
implícito que a Natureza, no processo da sua decomposição, tinha perdido a sua forma ou
totalidade original. A visão de artista ganha, assim, uma dimensão mais ampla e mais
profunda: é um projecto “visionário” de reconquista de um paraíso perdido.

. 4.ª parte (est. 13 - fim) – Interrupção da visão pelo pedido da vendedeira ao sujeito poético que a ajude,
seguida da observação:

. da vendedeira:
- a palidez e a fragilidade:
. metáfora / sensação visual: "descolorida nas maçãs do rosto"(1) ;
. metáfora e hipérbole: "e sem quadris na saia de ramagem"(1) → associado à “rama dos
papéis pintados” (v. 9) nas paredes da casa apalaçada, este verso torna-se
numa comparação entre a vendedeira rural que invade a cidade com o campo e a casa
citadina que aprisiona o campo na cidade;
. adjectivação expressiva: "pitoresca e audaz"; "magra, enfezadita"; "ver-dura rústica, abundante";
"repolhudas, largas"; "pobre caminhante"; "duas frugais abóboras carneiras";
. antítese e construção estrófica final, onde o verso mediano carrega com todo o peso dos 2
+ 2 versos marginais, referindo-se aquele à «pobre caminhante» e os outros quatro, que o
encaixam e esmagam, às «grossas pernas dum gigante» e à «verdura
rústica, abundante» das abóboras:
"Ela apregoa, magra, enfezadita, / As suas couves repolhudas largas." → contraste entre
a fragilidade da vendedeira e a "robustez" dos produtos que transporta;
. comparação: "E como as grossas pernas dum gigante (...) / Duas frugrais abóboras carneiras", realçando
as grandes dimensões e o peso das abóboras em contraste com a fragilidade da
vendedeira;
. sensação auditiva: o pregão da vendedeira;
. oxímoro/paradoxo: "desgraça alegre";

. do conteúdo da giga:
expressiva: "repolhudas, largas"; "emanações sadias"; "duas frugais abóboras carneiras";
- sensações olfactivas: os aromas provenientes da giga;

. da realidade exterior:
- metáforas: "O sol dourava o céu";
“Seus raios de laranja destilada”;
ões auditivas: "E ao longe rodam umas carruagens"; "Oiço um canário";
- imagem: "... parece que joeira / Ou que borrifa estrelas"; "... e a poeira / Que eleva nuvens altas a
incensá-lo";
- exclamação: "que infantil chilreada";
- adjectivação expressiva: "infantil chilreada".
O aspecto da colaboração aprazível que se salienta na expressão «sem desprezo»
reforça-se pelo uso da 1.ª pessoa do plural do verbo junto com o pronome correspondente,
que estabelece um cunho de intimidade relativamente à relação que assim se institui entre
o sujeito e «ela». A hortaliceira depois agradece-lhe e ´é como se o «eu» se purificasse e
purgasse do fastio que sente em relação ao meio urbano por ter tido este contacto com
uma presença feminina bem diferente da maioria das mulheres que se nos afiguram na
poesia de Cesário em geral. Mas, se bem que o contacto se realize e o sujeito consiga
vencer momentaneamente a distância social entre ele e ela, é um contacto passageiro cujo
aspecto transitório se salienta pelo substantivo «despedida», com a sua conotação de
partida, que, por sua vez, se realça em função do pronome demonstrativo do terceiro grau
(«naquela despedida»). A separação já implícita concretiza-se pelos verbos motores que
se lhe seguem quando os dois seguem em direcções opostas, num acto mútuo de
afastamento que transpõe para o lado espacial o que já se verificou no temporal: «E
enquanto sigo para o lado oposto, / [...] / A pobre afasta-se [...].» A relação «eu-ela» marca-
se com o afastamento, um afastamento implícito e "psicológico", em função da divergência
de classe social, e um afastamento explícito e físico, em função da dinâmica do
desencontro.

Como foi dito anteriormente, a “visão de artista” do sujeito poético é um


projecto “visionário” de reconquista de um paraíso perdido.
É nestes termos que a atitude dele perante a pobreza da rapariga pode tomar a
forma aparentemente contraditória acentuada pelo uso do verbo incitar na sequência
do oximoro “desgraça alegre”. A rapariga, como a transportadora da energia vital que falta
ao sujeito poético – aprisionado na rotina diária da sua vida citadina contra a qual reage
com frequentes tonturas ou da qual procura fugir em fantasias visionárias – , é ela própria
transfigurada porque transfiguradora. Até a sua miséria pessoal é secundária à riqueza
funcional da sua identificação com o mundo natural que representa. Com efeito, é
directamente dela que o sujeito poético recupera a força simbolizada por esse mundo. Ela
pede-lhe, “prazenteira”, que a ajude a levantar o pesado cabaz e ele acede, “sem
desprezo”; a frase com que ela lhe agradece tem nele o efeito mágico de uma bênção:
“«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.”
O efeito cómico dos últimos versos é característico do uso de ironia como um
mecanismo de correcção sentimental na poesia de Cesário: a virtude é o seu próprio
prémio, mas uma boa digestão ajuda. Mário Sacramento refere que este comentário irónico
se relaciona com as “tonturas” a que o sujeito poético se refere no início do poema: «Tal
“digestão desconhecida” só ironiza se tivermos presentes os prenúncios de apoplexia que
o narrador nos havia confiado sessenta versos atrás.» Não obstante a auto-ironia, o
contacto do sujeito poético com a vendedeira, que, no plano simbólico, é a transportadora
da Deméter construída pela sua “visão de artista”, tem sobre ele um efeito regenerador:
sente-se com força, alegria, plenitude.
A metamorfose dos frutos e dos legumes tem, portanto, um equivalente psicológico
na transformação subjectiva que ocorre no sujeito lírico. O processo dessa transformação
gradual é marcado pelas sucessivas modificações da sua atitude em relação ao Sol.
Inicialmente um sol real e hostil, cuja intensidade interfere com a visão literal das coisas
– “E eu, apesar do sol, examinei-a” (est. 5) – , torna-se ele próprio, no acto da visão
artística, num “intenso colorista”, num artista também, e num aliado do sujeito lírico: “Se eu
transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista...” (est. 7).
E logo que o artista acaba de “dourar” a realidade no seu acto de imaginação
criadora, assim também “o Sol dourava o céu” (est. 13). A maiúscula, indicativa
da personificação do sol, que não fora usada na primeira referência ao sol real, também
o não vai ser quando aparece pela última vez, de novo o sol real, mas agora como um
efeito metonímico do gosto e da cor da própria fruta (est. 18).
A atenção do sujeito poético volta a incidir sobre os pormenores do seu ambiente
imediato. Na quadra anterior tinha observado as nuvens altas de poeira a “incensar” uma
criança que regando uma trepadeira, numa “janela azul”, “parece que joeira ou que borrifa
estrelas”. Agora ouve a “infantil chilreada” de um canário, sente a lida das “ménages entre
as geloseias” e vê o Sol de novo integrado no contexto dos outros objectos da realidade
restaurada. Mas a vendedeira – “magra, enfezadita” – só é parcialmente restaurada à
realidade das suas circunstâncias objectivas, pois continua ainda associada às qualidades
de “força, alegria, plenitude” transpostas para ela da Natureza.
A visão final do sujeito lírico, no entanto, não é a rapariga magra e enfezadita mas
as enormes pernas de um gigante emergindo, sem tronco, da “verdura rústica” do cabaz
que ela leva à cabeça:
“E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.”
Esta nova metamorfose do conteúdo do cabaz, a visão das pernas do colosso
triunfante carregando sobre “a pobre caminhante”, funciona como um comentário ambíguo
e complexo da primeira metamorfose. A mudança do estado psicológico do narrador
estivera intimamente ligada à obliteração visionária da percepção objectiva da vendedeira
e dos seus produtos; esta última visão reintegra a percepção compadecida da rapariga,
finalmente entendida como uma “pobre caminhante” esmagada pela imensidade do peso
que transporta.
Esta complexa atitude em relação à vendedeira de “Num Bairro Moderno” marca
um ponto de viragem no tratamento do contraste campo-cidade na poesia de Cesário. Na
prévia polarização de sentimentos e de atitudes nesta antinomia, «campo» tinha
representado um conjunto de recordações, de percepções e de projectos que funcionavam
como uma metáfora de uma ordem oposta à realidade constritora da cidade. Era portanto
definido em termos negativos: o significado de «campo» só era deduzível por contraste
com o seu pólo oposto, a cidade confinadora. Era uma essência sem existência real.
A metáfora amplificada que é “Num Bairro Moderno” funde a observação e o
símbolo: o contraste entre os pólos semânticos, representados pela cidade e pelo campo
adquire neste poema uma nova dimensão que prevê a investigação e a análise do campo
nos seus próprios termos, independentemente da ideia ou conjunto de ideias sobre a
cidade que haviam determinado a definição do campo como seu equivalente antinómico.
O ponto nodal da evolução semântica da metáfora “campo” é a consciência social
despertada pela cidade, e expressa na atitude compadecida e revoltada dos narradores de
“Desastre” e de “Contrariedades” perante a pobreza e a opressão que nela observaram. É
significativo que a desgraça do ajudante de pedreiro de “Desastre” não tenha sido
temperada por qualquer elemento de “alegria” que pudesse inspirar o narrador a uma visão
transfiguradora e que a miséria da engomadeira de “Contrariedades” não tenha sido
considerada nem “pitoresca” nem “audaz”. O único incitamento trazido por essas duas
vítimas da exploração citadina foi ao protesto contra a ordem social denunciada pelas suas
situações.
A pobreza da vendedeira de “Num Bairro Moderno”, descrita objectivamente pelo
narrador antes de ser neutralizada pela sua visão transfiguradora da Natureza, é um
sintoma tão claro da injustiça social como a riqueza contrastante das casas apalaçadas.
Este contraste, dramatizado no sobranceiro e alienado desdém de um criado de
uma dessas casas pela rapariga (“Do patamar responde-lhe um criado: / «Se te convém,
despacha; não converses. / Eu não dou mais.» E muito descansado, / Atira um cobre lívido,
oxidado, / Que vem bater nas faces duns alperces.”) e no contraste implícito entre a
imagem das carruagens rodando ao longe e a imagem da “pobre caminhante” curvada sob
o seu pesado fardo, revela a posição anómala do narrador, que nem pertence ao campo
como a vendedeira, nem tem o poder para se apropriar de um pedaço de campo para seu
uso privativo na cidade, como os donos das casas apalaçadas.
O bairro moderno e a visão inspirada pela presença da camponesa nas suas ruas
representam duas maneiras de resolver a anomalia: o narrador pode tentar triunfar na
cidade, nos termos da cidade, e assim alcançar a vida fácil e confortável das casas
apalaçadas; ou pode transfigurar a cidade, num acto de imaginação artística. Mas é no seu
contacto humano com a vendedeira que recebe as forças, a alegria e a plenitude que lhe
faltavam. A ajuda que oferece “sem desprezo”, em contraste dramático com o desprezo do
criado alienado, sendo uma recusa das hierarquias sociais em que ele próprio, a caminho
do emprego, está relutantemente integrado, é o prelúdio da sua compadecida visão final
da “pobre caminhante”.
Assim, a base de uma possível resolução dinâmica do inevitável impasse gerado
pelo conflito entre uma consciência social compadecida pela miséria de que não partilha e
um mundo onde essa miséria parece ser a fundação necessária da riqueza, começa a ser
criada neste poema não já pela simples polarização do sentimento nos significantes
antinómicos “campo” e “cidade” – ou os seus equivalentes
temporais “passado” e “presente” – mas pela dramatização, na situação de uma
«persona» poética, de um processo entre os dois pólos. Com efeito, ao colocar a fuga
visionária do narrador na área semântica de caracterização social definida pelo todo do
poema, Cesário está a significar valores opostos aos da sua própria classe privilegiada,
sugerindo uma reformulação socialmente amplificada do anterior contraste entre campo e
cidade.

. A dicotomia cidade/campo e o mito de Anteu

Quanto à dicotomia cidade/campo, esta fica bem explícita ao encararmos a


vendedeira como a metonímia do próprio campo, invadindo assim com o seu pregão, a
sua força, a sua vitalidade, o bairro citadino, apático, adormecido; chega mesmo
a sensibilizar o sujeito poético que corresponde ao seu chamamento para a ajudar a
prosseguir a sua tarefa (“Eu acerquei-me dela, sem desprezo”, est. 14, v. 1). A invasão da
cidade pelo campo é ainda mais flagrante quando a própria giga da vendedeira –
outra metonímia quando se lhe coloca o epíteto de “(...) retalho de horta aglomerada” (est.
4, v. 4) – toma vida na visão do poeta (est. 9-12) ao ponto de, no final, tomar a vendedeira
como fazendo parte dessa super-realidade (ela é a causa e o efeito), uma vez que
a comparação das “grossas pernas” com as “abóboras carneiras” nos transporta
novamente para tal transfiguração (est. 20).
O mito de Anteu (um gigante e portentoso lutador, era invencível desde que
estivesse em contacto com a terra; aliás, nas lutas a sua energia era redobrada quando
era atirado ao chão devido a esse contacto com o solo) perpassa no simbolismo dado a
esta figura feminina e os produtos transfigurados – repare-se como é do próprio chão que
o sujeito poético ajuda a vendedeira a recolocar a giga na cabeça (“Nós levantámos todo
aquele peso / Que do chão de pedra resistia preso, / Com um enorme esforço muscular.”,
est. 14, vv. 3-5) e deste acto lhe advêm “As forças, a alegria, a plenitude” (est. 15, v. 3), tal
como Anteu se manteve indomável enquanto não tirou os pés da terra, já que desta
emanava toda a sua força, o seu poderio. Por extensão a esta ideia, todos os produtos
luxuriantes da giga são produtos da terra e, por tal, pujantes, robustos, vitalizadores –
repare-se na antítese aquando da descrição da vendedeira (“Ela apregoa, magra,
enfezadita, / As suas couves repolhudas, largas.”, est. 19, vv. 4-5) ou, ainda,
na comparação com os membros inferiores – aqueles que inerentemente à terra estão
ligados: “(...) grossas pernas dum gigante”, “(...) Duas frugais abóboras carneiras.” (est. 20,
vv. 1, 5).

. Marcas do Surrealismo: a transfiguração surrealista dos frutos e legumes num "corpo humano", uma
transfiguração que foi tornada possível, esteticamente, pelo poder de uma «visão de
artista».

. Marcas do Impressionismo:
. a presença da cor;
. a presença da luz;
. as formas;
. o uso da sinestesia;
. o uso da hipálage;
. a acumulação de pormenores;
. a impressão inicial que o objecto provoca no sujeito;
. as sensações;
. a noção de movimento [“Sobem padeiros (...)”].

. Marcas do estilo poético de Cesário:


-» emprego de um vocabulário pragmático, preciso, concreto e corrente (“Se ela se curva
esguedelhada, feia...”);
-» utilização inusitada do adjectivo (“Atira um cobre lívido, oxidado”);
-» emprego da sinestesia (“Brancuras quentes”);
-» recurso a sensações:
- visuais: “matizam”;
- tácteis: “fere”;
- olfactivas: “Bóiam aromas, fumos de cozinha”;
“A hortelã que cheira”;
- auditivas: “Toca frenética...”;
- gustativas: “Como dalguém que tudo aquilo jante”.

. Síntese

. Duas realidades presentes no poema:


* a objectiva, construída através da descrição do bairro e das personagens que nele se
movimentam (estrofes 1-6, 13-19);
* a subjectiva, patente na fuga imaginativa leva a cabo pela visão pessoal do sujeito que
vagueia, deambula pelo bairro (estrofes 7-12 e 20).

. O poema explicita o carácter deambulatório (o sujeito descreve o que vê à medida que


passeia pelo bairro), cinético e visual da poesia de Cesário:
* a focagem do plano geral (o bairro);
* a passagem para o plano particular (o episódio da hortaliceira).

. Características narrativas do poema:

. Tempo: “dez horas da manhã” (1);


“ao calor de Agosto” (16).

. Espaço: “larga rua macadamizada” enquadrada por casas apalaçadas com quartos estucados,
paredes de papéis pintados, mesas com porcelanas, jardins com nascentes Þ bairro
burguês (1, 2).

. Personagens:
- sujeito poético: frágil, doente, “Com as tonturas de uma apoplexia”;
- hortaliceira: mulher do povo, esguedelhada, magra, feia, doente, enfezadita (5, 16, 19).
A mulher do povo, apresentada de uma forma realista, não sujeita a uma metamorfose
poética, constitui uma inovação da poesia de Cesário. Esta mulher pobre, feia, “sem
quadris”, esmagada pelo peso do cabaz, simboliza também as preocupações sociais
presentes na poesia de Cesário, aspectos «revolucionários» para a época.

. Ação: o deambular do sujeito poético pelo bairro:


- o encontro com a hortaliceira e a fuga imaginativa a partir da giga (esta fuga imaginativa é
uma micronarrativa encaixada na narrativa de 1.º grau);
- o retomar do passeio e a visão final.

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