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TRABALHO: O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL, Cesário Verde

O Sentimento dum Ocidental III - Ao gás

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos


Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arripia os ombros quase nus.

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso (transformação poética do real)


Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.

As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

Num cutileiro, de avental, ao torno,


Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

E eu que medito um livro que exacerbe,


Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

Longas descidas! Não poder pintar


Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!

Que grande cobra, a lúbrica pessoa,


Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

E aquela velha, de bandós! Por vezes,


A sua trai^ne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

Desdobram-se tecidos estrangeiros;


Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes


Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,


Pede-me esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!

TOPICOS DE AVALIAÇÃO

1. Referências espácio-temporais.

2. Realidade observada (espaços e figuras humanas).

2.1. Aspetos negativos presentes nessa observação crítica da cidade.

3. Estado de espírito/sentimentos provocados por essa visão no sujeito

poético.

4. Presença de elementos que apontam para a evasão/transfiguração.

4.1. Presença do imaginário épico.

5. Poesia que resulta da:

5.1. Deambulação;

5.2. Poetização do real.

6. Perceção sensorial.

7. Os recursos estilísticos mais relevantes e sua expressividade.

ANALISE ATENDENDO A TODOS OS TÓPICOS

«Ao Gás» é o terceiro momento do poema «O Sentimento dum Ocidental», de Cesário


Verde.Este excerto constitui uma espécie de síntese de alguns dos temas fundamentais da
poesia de Cesário Verde, como sendo a questão da humilhação (sentimental, estética, social),
a preocupação com as injustiças sociais e o sentimento anti burguês.
Das várias figuras femininas referidas neste poema, a mulher "magnética" é talvez a que
permite estabelecer mais aproximações e mais pontos de afastamento com outras figuras
femininas da imagética (é relativo a imagem) cesariana.
Assim, para além da variedade de figuras femininas presentes, as outras "personagens" ora
são um meio de o poeta expressar a sua solidariedade pelos excluídos, pelos que trabalham (o
velho professor de latim), ora um meio de concretizar a pintura da cidade, que aqui aparece,
como é constante nos poemas de Cesário, como símbolo de dor, sofrimento, solidão, até de
vencidismo - "Mas tudo cansa!". Por oposição, surge, implicitamente, uma ténue alusão ao
campo, modelo de saúde, vitalidade, força - "Um cheiro salutar e honesto a pão no forno".
Finalmente, dever-se-á ainda referir a fuga imaginativa presente na segunda estrofe ("Eu
penso / Ver círios laterais, ver filas de capelas...") e na décima estrofe ("Tornam-se mausoléus
as armações fulgentes").

Todo o poema e toda a descrição da cidade assentam numa sucessão de sensações, desde as
tácteis ("Um sopro que arrepia os ombros quase nus"), as auditivas ("...ao chorar doente dos
piao"; "Da solidão regouga um cauteleiro rouco"; "Pede-me sempre esmola"), as olfactivas
("exala-se, inda quente / Um cheiro salutar e honesto a pão no forno"; "Flocos de pós-de-arroz
pairam sufocadores") ao claro predomínio das visuais ("E a vossa palidez romântica e lunar!").

Ao longo deste poema, há uma personagem principal enaltecida: a cidade (Lisboa) num tom de
desencanto, de melancolia, de evidente vencidismo. Assim sendo, é lógico que este texto de
Cesário Verde possa ser considerado uma epopeia, pois todo ele se estrutura em torno dessa
realidade (a cidade), mas esse canto acaba por ser negativa, porque o tom que dele se
desprende é de clara melancolia.

Tempo: Num determinado período do dia, a noite - "A noite pesa, esmaga”.

Personagens:

- As burguesinhas do catolicismo (seres desprezíveis, insignificantes, que se deslizam pelo chão


dos canos). O sujeito poético compara as freiras de antigamente com as burguesinhas do
catolicismo. A mulher como sinédoque social.

- Pessoa lúbrica, comparada a uma cobra, espartilhada, magnética a atrair o luxo.

- A velha, de bandós, de vestido com traine (acrescento farto e longo, a arrastar pelo chão), e
os mecklemburgueses.

- O homenzinho idoso que exclama "Dó da miséria!...Compaixão de mim!...", e nas esquinas


pede esmola, é o velho professor de latim do Poeta.

- As impuras que se arrastam nos passeios de lajedo. Os pobres andrajosos e doentes, que são
afectados pelo sopro saído das embocaduras.
- Personagens imaginadas: santos em capelas, com círios, andores, ramos, velas. Fiéis
frequentadores da catedral de comprimento imenso.

- Um forjador de avental e os padeiros no fabrico do pão.

- As modistas das casas de confecções e modas. O ratoneiro imberbe (uma criança


delinquente) que olha pelas vitrinas das casas de confecções e modas.

- Um cauteleiro regouga, solitário.

Ao longo deste poema, o sujeito poético aborda a cidade num tom de desencanto, de
melancolia, numa perspectiva de humilhação e frustração, como se sentisse derrotado pela
vida artificial e desumana que é a cidade. Todo o poema se estrutura em torno dessa realidade
(a cidade), que acaba por ser negativa, porque o tom do sujeito poético é de clara mágoa.

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Nesta 3 parte regista-se uma nova progressão temporal. começa pela a articulação do poema
anterior “e saio” onde o Eu tinha acabado de sair de um cafetaria. Este poema desenvolve-se
acompanhando o deambular do sujeito poético pelas ruas da cidade - "Passeios de lajedo", "as
embocaduras", "Cercam-me as lojas" - num determinado período do dia, a noite - "A noite
pesa, esmaga". A noite adensa-se e a cidade está iluminada pela luz artificial dos candeeiros de
gás. Ao longo do poema há referências a determinados tipos sociais principalmente à
associação de degradação social “A noite pesa, esmaga./Nos passeios de lajedo arrastam-se as
impuras” usando a metáfora remetendo à prostituição : as impuras, as burguesinhas, a mulher
"magnética" ("a lúbrica pessoa") e a velha de bandós constituem o leque feminino de
personagens; a par, surgem outras figuras como o forjador, o "ratoneiro imberbe", os
caixeiros, o cauteleiro e o "velho professor" de latim, agora um pobre pedinte. Na 1º estrofe o
Eu Sensibiliza-se com o sofrimento no interior dos hospitais e com os pobres mal vestidos e
doentes, expostos às correntes de ar.

Na 2ºestrofe, o sujeito poético sente-se cerrado. Este revela consciência de que as lojas
tépidas que o cercam se assemelham a uma catedral de comprimento imenso, ou seja, uma
das origens do cerco que o afecta vem do lado religioso, outra vem do lado do desequilíbrio
social.

Na 3ºestrofe, o sujeito poético sensibiliza-se com a sorte das burguesinhas do catolicismo,


comparando a sua dependência aos deveres do seu tempo (submissão à casa, devotas e
beatas, educadas para o piano e as boas maneiras, sem vontade própria…) com a das freiras do
antigamente (sujeitas aos jejuns e às crises de histerismo). Critica às práticas do
catolismo/perceção sensorial: auditiva : “e lembram me , ao chorar doente dos pianos, as
freiras que os jejuns matavam de histerismo”

Na 4ºestrofe, mostra apreciar as coisas autênticas e salutares da vida (o trabalho do forjador, o


fabrico do pão), ou seja, aqui o sujeito poético faz a comparaçao dos 2 tipos sociais a cidade e
o campo onde usando a fusão a sinestesia e adjetivação no “num cutileiro, de avental, ao
torno (homem das facas) “um forjador maneja um malho rubramente” (homem do ferro) “de
uma padaria axala-se, inda quente, um cheiro salutar e honesto a pão no forno” (padeiro)
critica a desigualdade na sociedade e mostra a sua compaixão com os desvavorecidos
enaltecendo o campo sendo um lugar de vitalidade, saude e a cidade um lugar de fraude,
doentio e insalubre, exalta a produtividade de quem trabalha.

Na 5ºestrofe, revela a sua intenção de intervir na sociedade: fantasia de escrever um livro que
exacerbe, que cause impacto, que aparir do real se crie uma poesia objetiva em que haja uma
analise da realidade. Mostra tbm pouca simpatia pelas casas de confecções e modas, devido
ao que elas representam no antro de contradições que é a cidade.

Na 6º estrofe, o sujeito poético demostra a sua insatisfação perante as ruas da cidade, que não
pode descrever com versos salubres nem magistrais, pois estas ruas são melancólicas e
associadas ao terror. Mostra o seu desejo de criar uma nova realidade “longas descidas! Nao
poder pintar com versos magistrais, salubres e sinceros” uma poesia real com função social e
moral com vertentes para o ensinamento, despertar consciencias.

Na 7ºestrofe, revela rispidez perante os que, apoiados pela sorte, são atraídos pelo luxo e pela
futilidade “que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!” , usando tbm a metáfora “grande
cobra, a lubrica pessoa”. Critica tbm o espaço por onde anda a vaguear “que ao longo dos
balcoes de mogno se amontoa” um lugar ligado à burguesia, altiva e materialista

Na 8ºestrofe, contrapõe a ostentação e o luxo à desgraça e à miséria (através da velha de


bandós e dos mecklemburgueses que a acompanham).

Na 9ºestrofe, mostra não concordar com o comportamento dos clientes das lojas da moda.

Na 10ºestrofe, “Mas tudo cansa!Apaguam-se”, o sujeito poético diz sentir-se cansado de toda
aquela loucura que é a cidade que dá atenção aos mais fracos, neste caso ao cauteleiro, que
regouga, rouco, solitário. O brilho apaga-se: sobra apenas solidao e o abatimento do sujeito
poetico mostrando este sofrimento na metafora ligada à morte “Tornam-se mausoléus as
armações fulgentes”

Na última estrofe, o sujeito poético mostra compaixão pelos desfavorecidos, no caso concreto
do seu velho professor de latim, e repulsa pelo desprezo a que, simbolicamente, foram
deitados os valores culturais do país. Dimensao critica: a cidade mergulha na escuridão insinua
que o mundo moderno despreza o saber , a cultura e valoriza mais o luxo, o lucro, a
ostentação

Análise Formal

Esquema Rimático: ABBA/CDDC/EFFE/GHHG/IJJI/KLLK/MNNM/OPPO/QRRQ/STTS/UVVU

Tipos de Rima: Interpoladas

Métrica: Hendecassilábico (Irregular)

Contém 11 Quadras

Figuras de Estilo:

Apóstrofe “Ó moles hospitais! Sai das embocaduras”, v. 3

Enumeração “Com santos e fiéis, andores, ramos, velas”, v.7

Ironia “Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.”, V.32

Tripla adjectivação “Com versos magistrais, salubres e sinceros”, v. 22;

Metáfora “Que grande cobra, a lúbrica pessoa”, v. 25

Dupla adjectivação “E nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso”, v. 42,

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