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Tópicos:
TÍTULO:
- Referência a um espaço, “bairro moderno”. Preposição “em” indica cena”
- Bairro moderno -> referência específica.
PRIMEIRAS ESTROFES:
- Tempo cronológico, métrica do relógio.
- precisão, descontinuidade e visualidade.
- parataxes
- associação com precisão científica.
- objetividade: o sujeito só aparece lá na frente, apagado, desvalorizado
- eu-lírico trabalhador. inserido numa lógica do trabalho
- eu-lírico trabalhador oposto ao flaneur
SEGUNDAS ESTROFES:
- Vendedora pobre
- Contraste social
- Falta de relação entre a vendedora e o bairro em que ela está
- tensão
ESTROFES DO DELÍRIO:
- “Visão de artista” é uma decisão consciente, um esforço de imaginação
- Transe, abertura aos sentidos
- Colocar os vegetais em relação, construção de uma organicidade.
- escalada de cores do verde ao vermelho. sensualidade.
- eu-lírico igual ao Flanêur
FINAL DO POEMA:
- Eu-lírico agora permanece aberto aos sentidos. Mundo inteiro de alguma forma
posto em relação.
- Relação social também pode acontecer (eu-lírico ajuda vendedora). De novo aqui
ele se distingue um pouco do Flanêur.
- Cena se desfaz, cada um vai pro seu lado, mas sutilmente transformado.
Título:
- “bairro moderno” é referência a um lugar. Mas não só. O uso da preposição “em”
evidencia que não se trata de um poema sobre um lugar, mas um poema que se passa em
um lugar. Então só por esse título a gente já pode supor (com razão) que vai acontecer uma
cena no poema, como se ele fosse um conto. Uma narrativa. Isso é uma característica
específica, não é qualquer poema que constitui uma cena.
- Apesar do artigo “um” assinalar certa indeterminação (“um” bairro moderno pode ser
qualquer bairro moderno) é preciso levar em conta que o lugar de onde o poeta escreve, da
Europa do último quarto do século XIX, e sobretudo Portugal, é ainda um lugar
eminentemente suburbano e rural. Na década de 1870, 74% da população portuguesa vive
em ambientes rurais, aldeias e pequenas e antigas vilas. Então a ideia de “bairros” só é
possível ainda em um conjunto específico e limitado de grandes cidades. Essas grandes
cidades, por sua vez, modernizam-se aos poucos nessa época, vão abrindo “largas ruas
macadamizadas” e perdendo suas feições medievais antigas. É um movimento que parte
do centro endinheirado dessas cidades e não necessariamente abrange todo o tecido
urbano. Portanto, a referência a um “bairro” que seja especificamente “moderno”
necessariamente se reporta a um ambiente rico e central de uma grande cidade, o que é
um espaço bastante específico. Onde eu quero chegar? Quero dizer que o título é mais
preciso do que pode parecer a um leitor de hoje. A rigor, por conta de alguns referentes
especificamente portugueses que vão aparecer mais tarde no poema, apenas alguns
poucos pedaços das cidades de Lisboa e do Porto podem ser a contrapartida não-fictícia do
bairro a que o eu-lírico se refere.
Primeiro verso:
- O poema começa com a expressão “dez horas da manhã”, seca. Isso marca o tempo de
uma forma precisa, o tempo do relógio, e situa o poema dentro de uma temporalidade
cronológica. Pode parecer banal mas não é: trata-se de uma outra marca da modernidade
com a qual estamos excessivamente acostumados, e que precisamos desnaturalizar para
compreender o verso de Cesário. Marcar que o poema acontece às 10 da manhã é
diferente de marcar que o poema acontece “no raiar do dia” ou “nas horas frescas da
manhã”. Essa percepção do tempo mais ligada aos fenômenos sensíveis e cíclicos da
natureza estaria ligada ao que se chama “tempo kairótico”, que parte mesmo de uma
eternidade que se repete. É importante ressaltar que o tempo do poema do Cesário é
medido na métrica exata do relógio, o chamado tempo cronológico, porque quando ele
escreve isso a revolução que instituiu a hegemonia do tempo cronológico sobre o kairótico
ainda era bem recente. Essa percepção precisa do tempo cronológico só se torna
hegemônica na Europa no próprio século XIX: está associada à secularização do mundo e
ao avanço tecnológico: é o tempo do trem, da cidade. É o tempo associado à noção de
progresso. Faz parte da mudança de paradigma que dá início a essa coisa vaga que a
gente chama de modernidade. Então só pelo título e pelo primeiro verso nós já vemos que
esse poema institui uma cena num ambiente específico urbano e moderno, além de se
instituir em uma forma de perceber o tempo que também é urbana e moderna. Isso é
importante.
-Essa precisão pode ser associada a certo tipo de racionalidade objetiva típica do saber
científico, que é (numa simplificação um pouco grosseira) exatamente o saber capaz de
organizar, catalogar, separar tudo no seu devido lugar. Há, inclusive, uma outra
característica desse início que podemos associar à ideia de ciência: a quase ausência do
sujeito. Todas aquelas orações coordenadas assindéticas que abrem o poema não
permitem que a gente entenda que exista um sujeito ali percebendo aquela cena. É uma
descrição impessoal, objetiva. Só no segundo verso da terceira estrofe (com a cena já
bastante descrita e organizada) é que ficamos sabendo que tudo está sendo percebido por
um “eu” que está a caminho do seu “emprego”. É assim, bastante desvalorizado, que surge
o sujeito do poema, de quem ficamos sabendo rapidamente essa informação que me
parece importante: ele é um trabalhador, que está andando por aquela rua macadamizada
a caminho do seu trabalho. Se o eu-lírico é apresentado como um trabalhador, apesar dele
ser um “eu” que está percebendo essa cena toda, me parece que ele compartilha uma
característica com os objetos que ele percebe: ele também tem um uma função precisa,
objetiva, específica (a de ser trabalhador). Isso é uma leitura que a gente pode até chamar
de um pouco marxista. O eu-lírico como também um objeto.
Três estrofes seguintes: Aqui o nosso eu-lírico repara em um outro elemento da paisagem,
um elemento humano. É uma moça que vende verduras numa cesta, e fica andando de
uma casa pra outra do bairro moderno. A moça é evidentemente pobre, mais humilde do
que o bairro em que ela está e do que o trabalhador que a observa. Mas uma das coisas
mais bonitas do poema inteiro, na minha opinião, é a imagem que o Cesário usa pra
significar essa pobreza: o algodão da meia da moça tem um rasgo que se abre quando ela
se curva pra pousar a cesta de verduras dela. Isso é muito interessante porque continua
mantendo o poema no registro da visualidade, do detalhe preciso e descontínuo, mas é um
detalhe que diz muito. Esse pequeno rasgo que aparece com o esforço do corpo da
vendedora nos informa sobre a sua pobreza e sobre a dureza de seu ofício. Isso contrasta
fortemente com uma frase que o eu-lírico tinha dito na terceira estrofe do poema, em que
ele se refere às pessoas do bairro moderno como gente de vida fácil. Ora, a vida da
vendedora é tudo menos fácil, o esforço dela fica muito marcado no poema… Então a gente
pode dizer que esse segundo passo do poema continua marcado pela precisão e pela
descontinuidade (inclusive as parataxes continuam aparecendo) mas agora podemos dizer
que um desses elementos precisamente descritos, a vendedora, contrasta muito com os
outros. A consagração desse contraste está na moeda que é atirada pra ela pelo criado de
uma dessas casas ricas, à maneira de uma esmola. Não pode haver imagem mais clara de
que estamos vendo o encontro de duas pontas de um quadro social, e é um encontro tenso,
uma relação difícil, que praticamente não se dá. Ela está sendo expelida, expulsa daquele
bairro.
Seis estrofes seguintes: Chegamos no clímax do poema. O ponto em que alguma coisa
acontece. “De súbito” o eu-lírico fica contaminado por uma “visão de artista” e passa a
querer ver a cena de uma maneira inteiramente diferente. É preciso calma aqui. Porque
uma leitura apressada pode levar a gente a crer que ele é atravessado por uma visão
alucinatória, que ele de repente passa a ver diferente por acaso. Mas o poema não abre
essa possibilidade de leitura. O que acontece é que o eu-lírico decide por conta própria
imaginar que os vegetais da vendedora são um ser humano. Isso que é a visão de artista,
no poema: algo que o eu-lírico decide. Olhem aí o uso do condicional:
O eu-lírico decidiu se abrir pros outros sentidos, o que colocou ele numa espécie de
transe. Aí ele volta a se concentrar na visualidade, mas agora uma visualidade restrita: ele
só consegue ver a cesta de vegetais da vendedora. Essa visão é atravessada, enriquecida,
por esse transe de sentidos e pelo esforço de imaginação a que ele se propôs. E os
vegetais da cesta começam a compor, como ele queria, algumas formas humanas. O que
interessa aqui é que o que transforma os vegetais num corpo orgânico é exatamente a
relação entre eles. O que a “visão de artista” faz é colocar os elementos que o sujeito já
estava vendo antes em relação. É uma visão que contrasta muito com a ideia de
descontinuidade anterior. Enquanto o bairro foi descrito com tudo muito bem separado em
seu lugar, a cesta aparece como um construto formado por objetos ligados uns aos outros
ao ponto deles formarem um todo orgânico.
Aos poucos, esse todo que foi imaginado pelo eu-lírico num transe de sentidos
começa ele próprio a provocar outras sensações. As imagens que ele constrói com as
frutas e legumes vão ficando cada vez mais sensuais. Ele fala de seios, ventres e, no final,
já está falando de “carnes tentadoras” e de sangue. Aliás não entendo muito da simbologia
das cores, mas acho bonito e significativo que a descrição vá evoluindo desde os repolhos,
nabos e azeitonas, que tem cores mais frias e neutras, até terminar nos vegetais vermelhos
e laranjas, que são a ginja, o tomate e a cenoura. Parece que ele vai aumentando a
temperatura das cores.
O que eu acho fundamental destacar é que estamos diante de um trabalhador que
interrompeu seu caminho pro trabalho pra ficar imaginando coisas como se fosse um
artista. Ele cria para si um pequeno espaço de liberdade, rompe com a sua função, se
permite delirar. E imaginar, neste poema, significa colocar as coisas em relação - no caso,
os vegetais de uma cesta. Acho que neste ponto o trabalhador do Cesário Verde re-
encontra o flaneur do Baudelaire. Ele não é um desocupado que flana livremente pela
cidade sem os compromissos dos outros homens, mas ele se permite um instante disso,
brevemente, pontualmente. E captura um instante com a sua imaginação.