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SEMENTE DE LABIRINTO

Havia na tribo dos Ararunas um guerreiro; chamava-se Paracambana. Quando


homens brancos chegaram famélicos e amarelos em suas caravelas, ele esteve entre os que
que trataram de suas feridas e chegou a lhes dar de comer. Quando depois os mesmos brancos
voltaram trazendo presentes– agora mais corados, mas ainda brancos – Paracambana foi um
dos mais ávidos para fazer trocas: ofereceu aos visitantes uma pedra brilhante do tamanho do
seu punho, trazida por um primo seu que dizia ter atravessado o Paebiru até as montanhas
brancas do oeste. Em troca, exigiu uma curiosa peça de roupa que um dos marinheiros usava
nas pernas. O tuga aquiesceu, despindo-se entre o ávido e o constrangido. Nosso herói caiu
apaixonado por aquele pedaço de tecido que era um e bifurcava-se em dois, e que ele no
início ele chamou de uma palavra hoje esquecida, mas que em sua língua significava
“semente de labirinto”. Logo, no entanto, foi ensinado que aquele enigma de pano se
chamava "calça”. Paracambana ficou tão siderado pelo presente que naquela noite não
dormiu em sua oca: decidiu tomar a trilha que dava na Pedra do Lago, onde morava o espírito
do avô de seu avô, para passar a noite admirando a Semente de Labirinto. O um que virava
dois.
Foi por isso que Paracambana não viu quando, naquela madrugada, os homens
brancos voltaram silenciosamente à aldeia dos Ararunas, dessa vez em maior número, para
trucidar todos os seus habitantes em busca de mais pedras como aquela que ele lhes tinha
dado, e limpar aquele terreno para a futura construção de um forte. Os Ararunas acordaram
desorientados e tentaram se defender contra as lâminas de aço e a pólvora, impingiram baixas
em seus contrários, mas nada disso impediu a aniquilação. Na manhã seguinte, ao voltar da
Pedra do Lago, Paracambana não achou mais que poças e restos, e sequer conseguiu chorar
de tanta dor. Não encontrou palavras em sua língua para algo tão final quanto aquilo. Quando
recuperou as forças e a consciência de si, após sabe-se lá quanto tempo, foi um pouco como
se tivesse acabado de nascer. Imbuído de uma energia que lhe vinha sabe-se lá de onde,
Paracambana levantou-se, secou os olhos e fugiu para o interior por caminhos do mato que
sabia que existiam mas que nunca tinha tomado antes. Sumiu na serra, carregando sempre a
Semente de Labirinto que lhe custara tudo.
A história era pra acabar aí, com nosso herói morrendo sozinho de fome ou ataque de
bicho no meio do mato, mas acontece que o homem era tenaz. Sabemos que ele não pereceu
pelo número surpreendente de relatos de bandeirantes e degredados da época, que dão conta
de um gemtio desgraçado que andava sem paz por todas as tribos e vilas da região, feito o
judeu errante das escrituras. Conta-se que ele vinha sempre com a mesma história, embora as
palavras abaixo certamente sejam imprecisas:
"Vosso Pajé vos ensina que o tempo é correr em volta de um lago! Que depois do sol
vem a lua, e depois da lua o sol, e depois da chuva a estiagem, e depois do fim o começo,
para todo o sempre. Vosso pajé mente! O tempo não é nem a volta do lago, nem o fundo do
lago, nem o fundo do vosso cu! O tempo é como a calça do homem branco (aqui
Paracambana ostentava seu puído presente de português). Sempre que um conflito acontece,
o mundo se divide em dois, como a calça do homem branco, e as duas verdades são a
verdade, mas cada uma numa perna do tempo. Eu digo: (aqui, fazia uma pausa para tomar ar
e começava a chorar) quando os meus irmãos e primos guerrearam contra os homens brancos
na calada da noite, eles tanto ganharam quanto perderam, dependendo da perna da calça em
que se está. Eu, miserável, vim parar na perna na qual nós fomos derrotados, mas há uma
outra em que nós Ararunas vencemos os invasores, comemos sua carne envolta em biju e
estamos ainda festejando com cauim. Eis o mistério da grande calça do tempo, a Semente de
todos os labirintos!".
Pajés da terra e missionários jesuítas, igualmente ofendidos em suas respectivas
cosmogonias, frequentemente clamavam para que se jogassem pedras em Paracambana, que
se partisse o crânio de Paracambana, que se empalasse o rabo de Paracambana. Um noviço
especialmente pio, recém chegado do Minho, sugeriu que se jogasse Paracambana em certo
lago da região, amarrado a um tronco que boiasse, para que sanguessugas chupassem todo o
seu sangue, em nome da Salvação. Mesmo os que não chegavam a esse ponto eram unânimes
em pedir que alguém – pelo amor de Deus, Tupã ou o escambau – arrancasse aquela calça da
mão daquele louco tagarela. Mas Paracambana sempre escapulia por entre os dedos de todos
logo após a pregação, angariando um ou dois seguidores no processo. Seu séquito crescia
devagar, e crescia sempre. Se por sorte conseguiam destruir sua calça com uma flecha ou
uma bala errante, em pouco tempo o herói emboscava um invasor português particularmente
desavisado e logo aparecia com outra. Tranquilo e infalível.
Eventualmente, é claro, o último dos Ararunas acabou morrendo. Uns dizem que foi
traído por um de seus seguidores, que o enforcou com as pernas da calça. Outros, menos
afeitos a encerrar suas narrativas com justiças poéticas, sustentam que ele vagou para tão
longe da praia onde nasceu que foi dar em uma floresta que não conhecia. Ali, abandonado
pelos discípulos, se perdeu e acabou comendo um bicho venenoso. Onde todas as narrativas
concordam é que, antes de morrer, Paracambana espalhou sua pregação alucinada por muitas
tribos e vilas. A lenda de um certo "messias das calças" ficou particularmente famosa entre os
filhos dos brancos, e logo uma fração daquela multidão rufiões formou em torno dela uma
pequena porém sólida seita religiosa, praticada em sussurros numa língua que misturava
rudimentos da língua geral com qualquer coisa de português, espanhol, francês e holandês.
Escapava, assim, do ouvido censor dos jesuítas.
Até hoje a seita dos Paracambanas (ou paracambanistas) está por aí, perdida entre as
juremas e os kardecismos, pregando que, sempre que alguém tem que decidir se "sim" ou se
"não", na verdade a pessoa decide as duas coisas, e o tempo se subdivide mais uma vez em
duas pernas. Consolam-se afirmando que cada desgraça é a condição para a existência de um
júbilo numa outra perna da Grande Calça de Deus, assim como se humilham nos momentos
felizes ao imaginar sua contraparte de desgraça. Há quem faça chacota, dizendo que, para os
Paracambanas, os seus mortos "voltam ao grande cós”. Mas essas mesmas pessoas engolem
suas palavras jocosas após assistirem ao ritual secreto em que os Paracambanas se conectam
com infinitas realidades paralelas através do transe provocado por certas ervas rituais. A
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro preserva um grosso tomo do fim do século XIX, no
qual um paracambanista erudito discute com referências a Taine e Bergson a possibilidade da
existência de uma perna da calça do tempo em que próprio o tempo tenha dito "não" para a
hipótese de ser uma calça, criando um paradoxo cósmico. No início do século XX, alguns
Paracambanas se embrenharam nos Pampas e desceram até o Rio da Prata, onde um homem
chamado Borges inspirou-se na seita e escreveu toda a obra de sua vida. Mais recentemente,
notícias do culto chegaram aos ouvidos de um inconsolável jogador de futebol italiano,
Roberto Baggio, que converteu-se e até hoje sonha alcançar a perna da calça em que seu
pênalti entrou.
Ontem, um ônibus fechou o táxi que me conduzia pelo Túnel Rebouças a uns noventa
por hora. Tive certeza de que ia morrer. Cheguei a me sentir por um brevíssimo momento
conectado com uma realidade em que eu tinha sim capotado com o táxi e me entrevado entre
as ferragens. No espaço de frações de segundos, tangenciei esse mundo em que meus amigos
e familiares estão agora chorando a minha morte, protestando contra o caos do trânsito. Vi-
os, no meu enterro, afastando as moscas com as mãos, e senti o calor que fazia no cemitério.
Mas o motorista do ônibus decidiu num espasmo que “não”, dando uma guinada súbita para o
outro lado que salvou a minha vida e a do taxista.
A barra da calça do tempo é um tecido perigoso no qual se roçar. Enquanto o taxista
berrava xingamentos, eu vi outras coisas antes que o transe acabasse e eu me assentasse de
volta no corpo, cujo coração batia descaralhado. A perna do tempo em que eu respondi
“consequência” em vez de “verdade”, e acabei ficando zarolho aos seis anos. A perna do
tempo em que eu tinha seios cirurgicamente implantados. A perna em que certa menina disse
“sim” pra mim e fomos milionários, infelizes, fumantes e obesos para sempre. Em que minha
mãe disse "não" para o bebê que crescia dentro dela e que era eu. Aquela outra que eu tive
uma vida rigorosamente igual a que tenho, inclusive tendo escrito um conto idêntico a este…
mas em malaio, devido à circunstância de um antepassado meu ter decidido emigrar para
Singapura em certo ponto do Século XVIII. A perna em que Vargas decidiu que a vida era
ainda, apesar dos pesares, um lugar mais interessante do que a história. Em que um camponês
grego matou aquele neném de pés inchados em vez de entregá-lo ao rei Pólibo, nos livrando a
todos do complexo de Édipo. A perna insuportável de tão bela em que os Ararunas venceram
todas as investidas dos brancos e estão até hoje se fartando de cauim nas praias do que nunca
chegou a se chamar Brasil.

30 DE JUNHO DE 2013
O professor Olímpio tinha passado a semana inteira jogando ovo em manifestante, do
alto de sua janela. A hipocrisia daquelas "passeatas" o enjoava: era apenas mais um falso
confronto entre jovens que não estavam dispostos a morrer e uma polícia sem virilidade para
matar. O que sobrara do Brasil? O que entendia aquela geração sobre revolução? O professor
Olímpio sempre dizia sempre que as duas grandes revoluções do século XX tinham sido a
cubana, em 1959, e a brasileira, em 31 de março de 1964: “porque vieram pra mo-ra-li-zar”,
ele repetia, escandindo desnecessariamente as sílabas para os seus orientandos chocados.
Durante aquele louco mês de junho ele desistira de tentar enfurnar-se nos livros (quem
conseguia, com tantos gritinhos de "não vai ter copa" vindos da rua?) e se contentara com a
TV: com o volume no máximo, assistia a todos os jogos da Copa das Confederações.
Até com isso estava decepcionado. O futebol, essa antiga paixão, não lhe dava mais
qualquer prazer. A seleção comandada por Luís Felipe Scolari era decepcionante, desde o
“banana” Júlio Cesar até o “afeminado” Neymar, e Olímpio se deixava levar por uma
nostalgia dos tempos de Pelé: "craque tem que ser macho". A salvação do professor fora
assistir aos jogos da Espanha, a campeã do mundo, que tinha uma seleção imbatível: pra
começar, era conhecida como "a fúria", um epíteto bem mais digno do que "os canarinhos";
depois, ela jogava um futebol geométrico, metódico, sem frescura. Agora, no cair da noite do
30 de junho, Olímpio havia acabado de se afundar no sofá para assistir ao que sabia que seria
um massacre: a Espanha enfrentaria o Brasil pela final do torneio, e a fatal goleada que viria a
favor dos ibéricos seria o derradeiro golpe no orgulho nacional. Os olhos patrióticos de
Olímpio (sim, ele era um patriota) se encheram de lágrimas de expectativa, e ele já separara
uma boa dúzia de ovos no braço da sua poltrona para descontar sua frustração nos
manifestantes. Lá de fora vinha o som plástico de cassetetes batendo em escudos e o cheiro
de gás lacrimogêneo.
O juíz apitou o início do jogo. Já sem paciência para a voz infernal de Galvão Bueno,
Olímpio logo tirou o som da TV, o que quase prejudicou seu entendimento do lance ocorrido
no segundo minuto do primeiro tempo. Fred penetrou na área e embolou-se entre os
zagueiros e o goleiro Casillas. Como que milagrosamente parida daquela suruba, a bola
escapuliu, caprichosa, e foi morrer no fundo da rede. Olímpio lembrou-se de Drummond: "é
feia mas é uma flor". Fora o gol mais horroroso da história, mas, que diabo, fora um gol.
Brasil um, Espanha zero, no que parecia ser o prenúncio de um milagre.
E foi um milagre que se descortinou diante de Olímpio. Como que subitamente possuída, a
seleção brasileira agigantou-se e pintou uma Guernica na zaga espanhola. Até o fim do jogo
outros dois gols viriam, selando o placar inacreditável de três a zero. Mas o mais
impressionante foi o zagueiro David Luiz, que, com os nomes de um rei judeu e um rei
francês, impôs-se como o monarca sagrado e absolutista da área brasileira, tirando bola até
em cima da linha. "Esse time vai ganhar a copa de 2014”, pensou Olímpio. "E esse menino
David Luiz vai ser o herói da conquista, o símbolo de um novo Brasil que está nascendo.
Esse é macho". Com a mente fixa nessa ideia de um novo Brasil, Olímpio reparou em como
vinha sendo injusto com os manifestantes. Eram bravos que há um mês vinham ocupando as
ruas, protestando contra os desmandos e a corrupção. Como ele fora tolo! Como fora
preconceituoso! Aqueles jovens estavam salvando o Brasil, afinal, como o David Luiz. Ainda
haveria tempo de se redimir? Olímpio queria fazer parte da onda de mudança, não podia
deixar que pensassem que ele era um reacionário.
Na rua, os manifestantes continuavam gritando suas palavras de ordem e enfrentando a
polícia. O grupo que passava sob a janela de Olímpio gritou: "quem apoia pisca a luz! quem
apoia pisca a luz!". Levantando-se avidamente do sofá, como que esquecido dos seus setenta
anos, o professor correu na direção do interruptor. E o teria alcançado, se não tivesse
derrubado no caminho a dúzia de ovos, escorregado neles e quebrado a bacia.

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