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30 DE JUNHO DE 2013
O professor Olímpio tinha passado a semana inteira jogando ovo em manifestante, do
alto de sua janela. A hipocrisia daquelas "passeatas" o enjoava: era apenas mais um falso
confronto entre jovens que não estavam dispostos a morrer e uma polícia sem virilidade para
matar. O que sobrara do Brasil? O que entendia aquela geração sobre revolução? O professor
Olímpio sempre dizia sempre que as duas grandes revoluções do século XX tinham sido a
cubana, em 1959, e a brasileira, em 31 de março de 1964: “porque vieram pra mo-ra-li-zar”,
ele repetia, escandindo desnecessariamente as sílabas para os seus orientandos chocados.
Durante aquele louco mês de junho ele desistira de tentar enfurnar-se nos livros (quem
conseguia, com tantos gritinhos de "não vai ter copa" vindos da rua?) e se contentara com a
TV: com o volume no máximo, assistia a todos os jogos da Copa das Confederações.
Até com isso estava decepcionado. O futebol, essa antiga paixão, não lhe dava mais
qualquer prazer. A seleção comandada por Luís Felipe Scolari era decepcionante, desde o
“banana” Júlio Cesar até o “afeminado” Neymar, e Olímpio se deixava levar por uma
nostalgia dos tempos de Pelé: "craque tem que ser macho". A salvação do professor fora
assistir aos jogos da Espanha, a campeã do mundo, que tinha uma seleção imbatível: pra
começar, era conhecida como "a fúria", um epíteto bem mais digno do que "os canarinhos";
depois, ela jogava um futebol geométrico, metódico, sem frescura. Agora, no cair da noite do
30 de junho, Olímpio havia acabado de se afundar no sofá para assistir ao que sabia que seria
um massacre: a Espanha enfrentaria o Brasil pela final do torneio, e a fatal goleada que viria a
favor dos ibéricos seria o derradeiro golpe no orgulho nacional. Os olhos patrióticos de
Olímpio (sim, ele era um patriota) se encheram de lágrimas de expectativa, e ele já separara
uma boa dúzia de ovos no braço da sua poltrona para descontar sua frustração nos
manifestantes. Lá de fora vinha o som plástico de cassetetes batendo em escudos e o cheiro
de gás lacrimogêneo.
O juíz apitou o início do jogo. Já sem paciência para a voz infernal de Galvão Bueno,
Olímpio logo tirou o som da TV, o que quase prejudicou seu entendimento do lance ocorrido
no segundo minuto do primeiro tempo. Fred penetrou na área e embolou-se entre os
zagueiros e o goleiro Casillas. Como que milagrosamente parida daquela suruba, a bola
escapuliu, caprichosa, e foi morrer no fundo da rede. Olímpio lembrou-se de Drummond: "é
feia mas é uma flor". Fora o gol mais horroroso da história, mas, que diabo, fora um gol.
Brasil um, Espanha zero, no que parecia ser o prenúncio de um milagre.
E foi um milagre que se descortinou diante de Olímpio. Como que subitamente possuída, a
seleção brasileira agigantou-se e pintou uma Guernica na zaga espanhola. Até o fim do jogo
outros dois gols viriam, selando o placar inacreditável de três a zero. Mas o mais
impressionante foi o zagueiro David Luiz, que, com os nomes de um rei judeu e um rei
francês, impôs-se como o monarca sagrado e absolutista da área brasileira, tirando bola até
em cima da linha. "Esse time vai ganhar a copa de 2014”, pensou Olímpio. "E esse menino
David Luiz vai ser o herói da conquista, o símbolo de um novo Brasil que está nascendo.
Esse é macho". Com a mente fixa nessa ideia de um novo Brasil, Olímpio reparou em como
vinha sendo injusto com os manifestantes. Eram bravos que há um mês vinham ocupando as
ruas, protestando contra os desmandos e a corrupção. Como ele fora tolo! Como fora
preconceituoso! Aqueles jovens estavam salvando o Brasil, afinal, como o David Luiz. Ainda
haveria tempo de se redimir? Olímpio queria fazer parte da onda de mudança, não podia
deixar que pensassem que ele era um reacionário.
Na rua, os manifestantes continuavam gritando suas palavras de ordem e enfrentando a
polícia. O grupo que passava sob a janela de Olímpio gritou: "quem apoia pisca a luz! quem
apoia pisca a luz!". Levantando-se avidamente do sofá, como que esquecido dos seus setenta
anos, o professor correu na direção do interruptor. E o teria alcançado, se não tivesse
derrubado no caminho a dúzia de ovos, escorregado neles e quebrado a bacia.