Você está na página 1de 4

“ESPOCA-BUCHO” COM SALSICHA, RECEITA PRA

FICAR DOENTE DE COMIDA


Vilões da obesidade infantil, alimentos ultraprocessados aprofundam desnutrição e
criam fome oculta entre os mais pobres
Camille Lichotti|28 jul 2022_08h59

No fim de maio passado, Silvana Freitas viu o filho empalidecer depois de


comer sozinho dois pacotes de macarrão instantâneo. Marcos André, de 10 anos,
teve tontura, vomitou, reclamou de dores no abdômen e pediu que a mãe o levasse
ao hospital. Não era a primeira vez que ele sentia aquela sensação nauseante.
Quando a médica perguntou o que ele havia comido naquele dia, a resposta foi um
cardápio repleto de produtos ultraprocessados e alimentos de alto teor calórico. O
diagnóstico foi idêntico ao que o menino recebera tantas vezes antes. “A doutora
falou que ele tinha que parar de comer besteira porque estava doente de comida”,
lembra a mãe.
Silvana Freitas, de 32 anos, está desempregada e recebe 400 reais do Auxílio
Brasil para pagar as contas, comprar comida e criar dois filhos. Como o dinheiro é
curto, ela precisou voltar a morar na casa dos pais na periferia de Trizidela do Vale,
no interior do Maranhão, num bairro onde há casas de taipa, casas de tijolo sem
reboco e terrenos abandonados. Com o preço da comida nas alturas, a carne sumiu
do prato da família. “Antes, com 7 reais de carne, dava para almoço, janta e eu
ainda mandava para os meus pais. Hoje eu tenho até vergonha de ir com 7 reais
pro açougue”, diz ela. A família substituiu a carne por salsicha – uma proteína
ultraprocessada com alto teor de gordura – ou linguiça. Verduras e legumes, já
escassos, são os primeiros a desaparecer quando o orçamento aperta. “Isso não
enche a barriga, não. A gente procura comprar comida que dê para matar a fome e
[que nos permita] ficar muito tempo sem comer de novo”, diz.
O filho mais novo de Silvana, Marcos André, enche a barriga com fritura,
salgados, biscoitos e lanches. Às vezes o café da manhã do menino é pão,
refrigerante e duas bombas – bolas de massa frita recheadas com queijo e presunto
que ele compra na padaria no fim da rua. O salgado, criado na capital do Piauí e
popular nas cidades do Maranhão, pode chegar a pesar 1 kg – e é, de fato, uma
bomba calórica. Também é comum que ele troque a refeição por pacotes de
macarrão instantâneo, que custam apenas 1,50 real numa venda ao lado da casa
dos avós. Apesar de ainda ser uma criança, Marcos André já está com colesterol
alto – o que leva ao acúmulo de gordura no interior dos vasos sanguíneos e
aumenta o risco de complicações cardiovasculares. O menino, que usa roupas
largas de adulto, muito maiores que seu tamanho, pesa quase 60 kg. Segundo a
OMS, o peso ideal de uma criança com 10 anos completos é 31 kg.
Trizidela do Vale é um município pobre de 22 mil habitantes, segundo a
estimativa do IBGE. A cidade tem quase 66% da população inscrita no cadastro
único do governo federal para famílias em situação de pobreza ou de extrema
pobreza. De acordo com informações da própria prefeitura, mais de 8 mil pessoas
são beneficiárias do Auxílio Brasil. Na cidade, o índice de obesidade infantil
(somando a moderada e a grave) mais do que triplicou: subiu de 4% em 2008 para
16% em 2021 entre as crianças de 5 a 10 anos.
Os dados foram compilados pela piauí e pela agência de dados públicos
Fiquem Sabendo, com base no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional
(Sisvan) do Ministério da Saúde. O Sisvan registra peso e altura de crianças que
chegam à rede de atenção primária do sistema público de saúde, a maioria
atendida por programas sociais. As informações se referem prioritariamente a
crianças em situação de vulnerabilidade social, e, por isso, o sistema serve de guia
para todas as estratégias e ações do Ministério da Saúde na área de alimentação e
nutrição.
Como mostrou a primeira reportagem da série Má alimentação à brasileira, a
proporção de crianças de 5 a 10 anos acima do peso explodiu nos últimos treze
anos em todo o país: a taxa de crianças com obesidade subiu 70% de 2008 a 2021.
Isso significa que praticamente uma em cada cinco crianças atendidas pelo sistema
público de saúde está obesa. Ao mesmo tempo, a fome persiste: os números do
Sisvan mostram que a taxa de crianças abaixo do peso adequado para a idade
parou de cair em 2021, interrompendo a tendência de queda registrada desde
2008. E, em nove estados, a taxa de crianças de 5 a 10 anos em situação de
magreza ou magreza acentuada aumentou nos últimos dois anos. A cidade
maranhense de Trizidela do Vale é um microcosmo desse cenário. Ao mesmo tempo
que a obesidade infantil disparou, a fome persiste. Em 2021, o índice de crianças
abaixo do peso, que vinha caindo nos últimos anos, voltou ao mesmo patamar de
2008. A fome deixou de ser o principal problema nutricional em Trizidela do Vale –
mas não porque tenha deixado de existir. Agora, desnutrição e obesidade são
problemas que se somam.
Na mesma rua onde mora o menino que enche a barriga com alimentos
supercalóricos, uma família vive em insegurança alimentar grave. A desempregada
Verônica Coelho, de 27 anos, mora algumas casas adiante, na mesma calçada, com
as filhas de 9, 6 e 4 anos. O local onde ela mora é na verdade uma adaptação nos
fundos da casa da mãe. Sala e cozinha dividem o mesmo ambiente, separados por
um lençol, e o banheiro é improvisado do lado de fora. Coelho também recebe os
400 reais do Auxílio Brasil, que não são suficientes para pagar todas as despesas.
Quando vai ao mercado, ela só consegue comprar três pacotes de leite em pó, que
custam 7 reais a unidade. Mas isso só é suficiente para duas semanas. No último
mês de junho, as meninas ficaram o resto do mês sem beber leite. “Elas pediam e
eu não tinha pra dar”, conta a mãe.
A comida sempre acaba antes que Coelho consiga dinheiro para comprar
mais. No fim do mês passado, por exemplo, ela só tinha feijão e café em casa. As
crianças só não passaram fome porque comeram na escola e pediram comida na
casa da avó. Mas Coelho está acostumada a passar os últimos dias do mês só
bebendo café. Segundo ela, isso espanta a fome. “Eu tenho vergonha de pedir pra
comer na minha mãe e fico pensando que a comida lá pode acabar. Não dá para
ficar nós duas sem nada”, explica. “Às vezes eu pergunto pra minha mãe por que a
nossa vida é tão ruim. E ela responde que tá assim para todo mundo aqui.”
Verônica Coelho, à esquerda, com as filhas de 6 e 4 anos e a mãe, Marli Chaves/Foto: Joaquim
Cantanhêde

Tanto a fome quanto a crescente epidemia de obesidade atingem em cheio a


população mais vulnerável hoje porque os dois fenômenos têm as mesmas causas:
pobreza, desigualdade e má alimentação. Graças à alta prevalência de obesidade
infantil, a cidade de Trizidela foi um dos 1.320 municípios brasileiros a entrar na
Estratégia Nacional de Prevenção e Atenção à Obesidade Infantil (Proteja), lançada
em agosto de 2021 pelo Ministério da Saúde. Ao todo, a pasta vai transferir 32
milhões de reais para que os municípios coloquem em prática ações de vigilância.
Quando a piauí esteve na cidade, no fim de junho, o município estava na fase de
levantamento de dados.
Crianças obesas têm mais chance de se tornarem adultos obesos – e podem
adquirir ao longo da vida uma série de doenças relacionadas ao excesso de peso,
como hipertensão, diabetes e problemas cardiovasculares. E quanto mais precoce o
início da obesidade, maior é o impacto na saúde do indivíduo. Enquanto a
obesidade infantil traz uma nova carga de vulnerabilidade aos mais pobres, o Brasil
caminha para ter uma população doente no futuro. “A consequência disso é a
mortalidade prematura, aumento de gastos na área da saúde e sobrecarga do
sistema hospitalar”, explica a nutricionista Daniela Neri, do Núcleo de Pesquisas
Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP.
Um grupo de pesquisadores coordenado pelo pesquisador Leandro Rezende,
do departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo,
estimou que só em 2019 foram gastos mais de 1,4 bilhão de reais com doenças
crônicas não transmissíveis relacionadas ao excesso de peso no Brasil. Naquele ano
houve 128 mil mortes, 496 mil hospitalizações e 32 milhões de procedimentos
ambulatoriais realizados pelo SUS atribuíveis ao sobrepeso e obesidade. E a
tendência é que esse quadro piore nos próximos anos.
Mas antes de se tornarem adultos doentes, crianças com excesso de peso
estão começando a ter a qualidade de vida prejudicada ainda na infância. Nos
últimos anos, a endocrinologista Maria Edna de Melo, chefe da Liga de Obesidade
Infantil da Faculdade de Medicina da USP, começou a notar uma diferença no
padrão de atendimento de crianças com sobrepeso: elas chegam ao hospital mais
jovens e com quadros cada vez mais graves. Também se tornou assustadoramente
comum atender meninas e meninos que têm colesterol alto, hipertensão e diabetes
antes de chegar à adolescência. “Eu nunca tinha visto isso antes”, diz a
especialista. “O mais triste é que essas crianças não tiveram praticamente nenhum
tempo de vida saudável.”
Em 2021, o Brasil registrou número recorde de internações de crianças de
até 14 anos por causa de diabetes na rede pública de saúde. Segundo dados do
Ministério da Saúde, só na faixa etária de 5 a 9 anos foram mais de 2 mil
internações – 22% a mais que no ano anterior. O tipo mais comum de diabetes está
relacionado ao excesso de peso e sedentarismo. Enquanto a tendência geral foi de
queda na quantidade de internações por pela doença, entre as crianças essa é uma
curva que só cresce.
Silvana Freitas conta que o filho, Marcos André, o menino que nem entrou
na adolescência e já está com o colesterol alto, tem peso acima do ideal desde
muito novo. Mas ela sempre viu nisso um sinal de saúde. Esse tipo de pensamento
é uma espécie de herança cultural entre as pessoas que já passaram fome, como a
própria Silvana. Durante a infância, na mesma Trizidela do Vale, ela chegou a
dividir dois ovos com os nove irmãos – porque não havia mais o que comer.
Naquela época, diz ela, os salgadinhos de pacote baratos não ficavam amontoados
nas prateleiras do mercado e biscoito era coisa de criança rica.
Agora Freitas teme pela saúde do filho mais novo. A família tem histórico de
diabetes – uma doença relacionada ao excesso de peso. O pai do menino, que
também é obeso, toma remédios contra a doença e teve que parar de trabalhar por
complicações. “Eu fico pensando que isso pode dar no meu filho também, então
tenho que ficar controlando”, diz. Mas as idas ao hospital e as orientações dos
médicos não impedem o garoto de continuar comendo os salgadinhos e pacotes de
macarrão instantâneo. “Ele só faz uma pausa quando sente essas gasturas e vai
para o hospital. Mas assim que ele melhora, volta a comer tudo de novo”, conta a
mãe.
O refrigerante que Marcos compra, que também é produzido no estado, é a
cópia da cópia da marca mais famosa – o que lhe rende a alcunha de “espoca-
bucho”, porque só serve mesmo para fazer engordar. A garrafinha de 250 ml custa
1 real. Doce e barata, a bebida é campeã de vendas entre as crianças, diz o dono da
venda, um senhor de cabelo grisalho e óculos grossos. Mercadinhos desse tipo se
espalham por toda a cidade de Trizidela, até nas ruas sem calçamento da área
rural. É praticamente impossível encontrar as grandes marcas de biscoito nessas
vendas. Mas nas prateleiras sempre há macarrão instantâneo – uma febre entre as
crianças da cidade –, refrigerantes “espoca-bucho” e salgadinhos de pacote mais
baratos que frutas.

Você também pode gostar