Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Feira de Santana
2015
CHARELLYS RIANNE DA SILVA SOUZA
Feira de Santana
2015
CHARELLYS RIANNE DA SILVA SOUZA
_____________________________________________________
Prof. Dr.Claudio Cledson Novaes
Orientador – UEFS
_______________________________________________
Prof.ª Doutora Flávia Aninger de Barros Rocha
UEFS
_____________________________________________
Prof. Doutor João Evangelista do Nascimento Neto
UNEB
A ARIANO SUASSUNA
Quero agradecer inicialmente a Deus, pois Ele é a minha bússola, meu alimento espiritual,
minha pedra angular e foi quem me guiou em todos os momentos e jamais desistiu de mim.
À minha família; pai, mãe, avós e demais familiares, tias, tios e primos que sempre
acreditaram no meu potencial e me incentivaram a seguir na vida acadêmica.
Aos meus filhos queridos, Iori Gabriel e Adam Emanuel que acompanharam dias e noites
de leituras e estudos, que suportaram a ausência materna por causa das diversas
comunicações apresentadas por mim ao longo do mestrado.
Asthar Chaves, meu querido e amado companheiro, que tanto se preocupou com minhas
leituras e com minha escrita, procurando livros buscando materiais e cuidando de lembrar-
me do tempo para o estudo.
Às minhas amigas-irmãs de longas datas Ana Paula, Luciana, Glauce e Ana Kelly que
estiveram comigo em momentos de preocupação e de grandes felicidades.
Aos meus colegas de mestrado que se tornaram amigos Evanilson, Railma, Rúbia, Telma,
Lenis, Juliana Silveira, Juliana Cordeiro e outros que estiveram comigo nessa caminhada.
À CAPES pela concessão da Bolsa na modalidade Demanda Social, sem a qual eu não
teria concluído esta pesquisa
O imaginário é o caminho de toda minha literatura.
(Ariano Suassuna, em Cadernos de Filmagens de A Pedra do
Reino, 2007, s/p).
RESUMO
Esta dissertação tem por finalidade estudar a obra literária do autor paraibano Ariano
Suassuna e da obra cinematográfica de Luiz Fernando Carvalho por meio da análise da
obra A Pedra do Reino. A dissertação apresenta claramente três etapas: a primeira envolve
um estudo panorâmico acerca das produções de Ariano Suassuna e sua arte situada no
contexto da cultura popular. A segunda etapa consiste em compreender de que maneira
Suassuna e Carvalho se apropriam da ideia de imaginário popular, para a elaboração das
obras literária e cinematográfica. Nesta etapa, fazemos um estudo sobre as memórias e os
mitos que povoam o imaginário popular do povo nordestino, buscando compreender de
que maneira a criação de uma região baseada na tradição se estabelece em meio à
modernidade. A terceira etapa aborda uma análise sobre a obra cinematográfica, discutindo
conceitos de adaptação e transposição fílmica, desconstruindo a ideia de fidelidade, a partir
da discussão sobre. Conclui-se neste estudo que fazendo uso dos elementos do imaginário
popular nordestino, Carvalho estabeleceu um diálogo entre as obras, no intuito de transpor
o que estava escrito na obra de Suassuna para o cinema.
This thesis aims to study the literary work of Paraiba author Ariano Suassuna and
cinematographic work of Luiz Fernando Carvalho by analyzing the work The Stone of the
Kingdom. The thesis clearly shows three stages: the first involves a panoramic study about
the production of Ariano Suassuna and his art within the context of popular culture. The
second step is to understand how Suassuna and Carvalho appropriate the popular
imagination the idea, to the development of literary and cinematic works. At this stage, we
do a study on the memories and myths that populate the popular imagination of the
northeastern people, trying to understand how to create a zone based on the tradition
established in the midst of modernity. The third step covers an analysis of the
cinematographic work, discussing concepts of adaptation and filmic transposition,
deconstructing the idea of fidelity, from the discussion. It is concluded in this study that
making use of elements of the popular northeastern imaginary, Oak established a dialogue
between the works in order to implement what was written in the work of Suassuna to the
cinema.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS.........................................................................................11
2 REPRESENTAÇÕES DO IMAGINÁRIO...................................................................31
3 A LITERATURA NO CINEMA..................................................................................53
CINEMATOGRÁFICA.......................................................................................................57
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 75
11
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
afirma Farias (2006), o intérprete que visa explicar para os demais personagens e para o
leitor as formas de expressões ligadas ao processo artístico.
Para a análise deste primeiro subcapítulo, utilizamos como aporte teórico autores
como: Tavares (2007), Santiago (2007) e Newton Júnior (2008). No segundo
subcapítulo, em que discutiremos a ideia de cultura popular, utilizaremos Canclini
(1997), Hall (1997), Chauí (2006) e outros.
O segundo capítulo tratará do estudo do imaginário popular nordestino baseado
na memória coletiva e nos mitos que povoam esse imaginário. Para esta análise
utilizamos teóricos como: Le Goff (1996), Mircea Eliade (1991), Calvino (1977) e
Teixeira (2003). O imaginário foi importante no processo criativo da obra, já que mitos
indígenas, africanos e portugueses compuseram as obras, como o mito sebastianista,
mencionado anteriormente, o mito da Onça Malhada e outros tantos que estão na obra.
O terceiro capítulo analisa o processo de transposição fílmica, em que o diretor
cinematográfico Luiz Fernando Carvalho, recusa o processo de adaptação, pois tem a
pretensão de criar algo muito próximo ao texto literário, procurava ser o mais fiel
possível às entrelinhas do texto, preocupa-se com a resposta criativa.
Neste capítulo, estabelecemos uma relação entre literatura e cinema, explicando
sobre as características e especificidades de cada uma dessas artes. É discutida, nesta
oportunidade, a ideia de adaptação fiel e de diálogo entre as obras literária e
cinematográfica. Esta análise é fundamentada a partir dos teóricos Xavier (2003),
Randal Johnson (2003) e Avellar (2007).
Apesar de o lócus do objeto de estudo ser o Sertão, não caberá à presente
dissertação analisar ou conceituar tal vocábulo, pois, além de não ser esta a proposta do
estudo, também existe a dificuldade de uma conceituação fechada para ela. O que
buscamos analisar é a representação do imaginário popular nordestino na criação da
obra literária e fílmica A Pedra do Reino.
Os recursos metodológicos utilizados para a execução do estudo são: pesquisa
bibliográfica, levantamento de fontes e análise das obras literária e cinematográfica A
Pedra do Reino. O estudo desenvolvido é pertinente pois transita entre duas linguagens,
a literária e a cinematográfica. Este estudo procura contribuir para novas pesquisas
acerca da obra A Pedra do Reino, estudos sobre o imaginário popular e diversos outros
aspectos apresentados ao longo da dissertação.
13
Sinésio era adorado pelo povo sertanejo que depositava nele as últimas
esperanças de um enigmático Reino. Segundo comentários, ele fora sequestrado e
assassinado, mas o povo continuava esperando sua volta e seu Reino miraculoso.
O sentimento sebastianista até hoje é lembrado em Pernambuco durante a
Cavalgada da Pedra do Reino. A obra surge como tradução dos mitos de Dom Sebastião
e de diversos outros, de imagens transmitidas pelos artistas e cantores populares do
Sertão brasileiro e da cultura ibérica medieval. Com o memorial, o narrador-
personagem Quaderna considera estar criando um documento oficial da Literatura
Brasileira, na busca de justiça, posicionando o sertão como o espaço do sobre o qual a
nação foi erguida.
Até aqui, foi mencionado que a escrita do romancista paraibano se baseia nas
manifestações eruditas e populares, ligadas ao Romanceiro Popular. Dessa forma,
explanar o conceito de Romanceiro Popular é indispensável aos que leram ou
pretendem ler A Pedra do Reino.
Segundo Tavares (2005), o Romanceiro Popular do Nordeste é uma literatura
oral que foi transplantada para o mundo da literatura escrita. A cultura oral e a cultura
escrita não são o contrário uma da outra, nem são adversárias: são parceiras, que se
ajudam e se complementam. Segundo ele, qualquer livro de língua e literatura
portuguesa e brasileira enumera os romanceiros mais antigos, que preservam os
romances em verso dos portugueses.
Muitos desses poemas foram trazidos para o Brasil durante o período da
Colonização e, também, após a Independência e o Império. Faziam parte da cultura
geral da época, momento no qual todos se interessavam por essas histórias metrificadas
e rimadas. Alguns deles, conhecidos em Portugal muito antes dos portugueses
chegarem ao Brasil, foram transformados em folhetos de cordel. Alguns continuaram
preservados na literatura oral como poemas recitados. E há ainda, aqueles que
perderam a forma versificada e viraram histórias, misturando-se com narrativas
tradicionais e contos de fadas, aquilo que, no Nordeste, recebe o nome de “história de
Trancoso”.
Gonçalo Fernandes Trancoso compilou uma antologia de contos populares em
Portugal no século XVI. No Brasil, já no início do século XX, Figueiredo Pimentel
publicou coletâneas de narrativas tradicionais cujos títulos também passaram a ser
18
Muitos dos escritores nordestinos, dentre eles Ariano Suassuana, fazem uso do
Romanceiro Popular Nordestino para escrever suas obras, utilizando-se de uma
literatura erudita paralela às características populares.
Silviano Santiago, em Seleta em prosa e verso (2007), afirma que compreender e
situar a contribuição de Ariano Suassuna para a literatura brasileira atual nos leva
obrigatoriamente a repensar o sentimento de nativismo e, ao mesmo tempo, o papel das
fontes populares na elaboração do projeto literário. Continua a dizer que as peças de
Suassuna, em particular, propõem pensar o brasileiro dentro do ibérico-sertanejo. O
texto folclórico e a literatura de cordel, que as alimentam, trazem a influência da
colonização ibérica na região equatorial. Unem-se, assim, no produto literário, o desejo
de inscrevê-lo em determinado ponto do Nordeste do Brasil e a necessidade simultânea
de apresentar esse ponto como um microcosmo da sua realidade cultural luso-brasileira.
Conforme Silviano Santiago (2007), a grande diferença entre os demais autores
romancistas do Nordeste e Ariano Suassuna é que não existe, por parte deste último, a
intenção de fazer um levantamento artístico-sociológico da região nordestina. Ele busca
a recriação poética do Nordeste, utilizando, para isso, os textos do Romanceiro Popular,
a partir dos folhetos da literatura de cordel.
A literatura de cordel, que o romancista paraibano conheceu ainda na infância,
viria a ser uma das fontes de inspiração não só da sua obra literária, mas do Movimento
Armorial, sua grande intervenção na cultura brasileira. Segundo Tavares (2007), para
Ariano Suassuna, o cordel é uma forma de expressão que envolve a Literatura, por meio
da história contada em versos; a Música, pela toada (a solfa utilizada no Sertão para
cantar os versos); e as Artes Plásticas, pelas xilogravuras que ilustram as capas dos
folhetos.
Foi em torno das três expressões citadas acima que ele escreveu o Romance D’A
Pedra do Reino. No cordel, o teatro está presente na arte histriônica do cordelista ou
folheteiro, que, recitando ou cantando seus versos diante do público, muda de voz e de
postura, atuando como narrador ou como personagens que interpreta no diálogo, com
alternância da voz e de atitude, como no teatro de mamulengos, em que o artista dá voz
e movimento a todos os bonecos.
Em vez de se nomear Ariano Suassuna como um escritor, deve-se ampliar a
ideia para um artista, uma vez ele que passeou por diversas áreas da arte, começando
pela poesia, depois o teatro, seguindo-se do romance, ensaio, do trabalho com desenho,
20
pintura e tapeçaria. Ainda não achando suficiente, o paraibano criou seu próprio gênero
artístico, chamado de iluminogravura – trabalho que integra poesia e pintura.
Além da iluminogravura, Ariano Suassuna também criou a estética armorial, que
foi anunciada formalmente na noite de 18 de outubro de 1970, a partir do lançamento do
Movimento Armorial. O evento foi o resultado do trabalho de Ariano Suassuna como
diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco.
Desde a aceitação de tal convite, dedicou-se a convocar artistas de diversas áreas, que
trabalhavam distantes uns dos outros, para tentar harmonizá-los em torno de um
conceito estético definido como Arte Armorial:
A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a
ligação com o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do
Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que
acompanha seus “cantares”, e com a Xilogravura que ilustras suas capas,
assim como o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse
mesmo Romanceiro relacionados (SUASSUNA, 1977, p.39).
Tradicionalista de 1926, que teve Gilberto Freyre como seu grande divulgador; o
Movimento de Cultura Popular criado por Miguel Arraes, em 1960; e assim por diante.
Desta maneira, compreende-se que o Movimento Armorial incluiu professores e
estudantes universitários tentando estabelecer uma ponte entre o que era erudito e a
cultura popular. É com base nisso que foi feita a análise a seguir.
que mantém as culturas populares vivas é justamente a sua capacidade de ser renovada
e reelaborada, buscando tradições e crenças, ressignificando-as no contexto
sociocultural vigente.
Para discutir de forma sucinta o fenômeno da modernidade, bem como seus
entrelaces com as tradições, utilizaremos, além de outros estudos, os de Anthony
Giddens (1991), que propõem uma descrição densa sobre o assunto e suas
consequências. Segundo Giddens, essa chamada modernidade “refere-se a estilo,
costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século
XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência”.
Assim, entender a modernidade é como entender as características de um determinado
tempo, suas dinâmicas, os fatores mais marcantes, as interações e as peculiaridades
relativas àquele tempo.
Giddens trata das descontinuidades surgidas a partir da vida moderna, podendo
ser observadas nos aspectos como tempo e espaço e na aceleração do ritmo da mudança
de instituições modernas. Em As consequências da modernidade (1991), ele observa
que tempo e espaço só se separaram após a invenção do relógio mecânico, durante o
século XVIII, e foi dessa maneira que ambos ajudaram na própria construção histórica
da modernidade, na medida em que criavam mecanismos para a organização
racionalizada.
Vivemos uma época marcada pela desorientação e pela sensação de que não
compreendemos inteiramente os eventos sociais. A modernidade alterou as relações
sociais e também a percepção dos indivíduos e coletividades sobre a segurança e a
confiança, bem como sobre os perigos e riscos do viver. E é no auge do século XX que
o capitalismo e o progresso – na acepção positivista – fazem com que a identidade do
homem moderno se fragmente.
É possível notar o ritmo dinâmico da mudança da modernidade, principalmente
após o surgimento de novas tecnologias, ou seja, com o advento da globalização e as
novas formas de comunicação, fazendo a ressalva de que, talvez por isso, Giddens
defina a globalização como “ação à distância”, mostrando como essa globalização
representa mudanças na vida social e política. Um dos resultados da globalização é a
ordem social pós-tradicional, momento em que a tradição perde seu lugar de
importância e o sujeito passa a escolher seu próprio destino, sem seguir necessariamente
valores e modelos tradicionais.
26
das manifestações culturais. Dessa maneira, o que realmente tem relevância são as
relações de forças na luta cultural.
Ao investigar a luta cultural e assumir a diversidade de formas pela qual essa
luta se apresenta, Hall (2003) levanta um questionamento em relação ao conceito de
tradição, que é tido como vital para a cultura popular, mas que se relaciona de modo
mínimo com a persistência de elementos arcaicos. Ele afirma que a tradição pode se
articular de diferentes maneiras e adquirir um novo significado.
Ainda de acordo com o teórico em questão, o papel do popular na cultura
popular é o de fixar autenticidade das comunidades populares, enraizando-se nas
experiências. A ideia é pensar no povo e sua relação com bloco de poder, sendo a
cultura popular uma “arena” do consentimento e da resistência, visto que é a cultura
popular o local onde a luta a favor ou contra a cultura dos poderosos é engajada. Então,
entende-se que as práticas populares só podem ser analisadas dentro de um contexto de
relações de grupos dominantes, e que a cultura popular não pode ser vista de forma
isolada, pois a sua existência se situa somente dentro das relações sociais (HALL,
2004).
Para Canclini (1983), as culturas populares são compreendidas através da
conexão com os conflitos de classe e com as condições de exploração sob as quais esses
setores produzem e consomem. Deve-se compreender a relação entre culturas populares
e a cultura hegemônica como um processo híbrido, em que um nutre e o outro se
apropria de elementos culturais. Portanto, o popular é algo construído, não preexistente.
Compreendendo que o popular é algo inventado, composto e não algo original,
passamos a examinar como o escritor paraibano Ariano Suassuna se apropriou dos
elementos ditos eruditos e populares para a constituição do Movimento Armorial.
Suassuna projetava em sua obra um Sertão distinto da face sulista, que era
marcada pelo desenvolvimento econômico e social, e seria o local guardião das
verdadeiras tradições. O Movimento Armorial surge como um desdobramento das
ideias nacionalistas daquela vertente do modernismo, mas também profundamente
inspirado pela ideia de brasilidade nordestina tributária da obra de Freyre. Propõe-se
construir uma arte erudita brasileira a partir das raízes populares. O sertão nordestino
seria o lócus privilegiado da – assim por eles denominada – genuína cultura popular, em
que o artista nacional deveria buscar os elementos para a elaboração de sua obra. Lá
repousaria a matéria-prima capaz de revelar uma das faces do Brasil.
29
2 REPRESENTAÇÕES DO IMAGINÁRIO
Segundo Ivan Teixeira (2003), em português, o sufixo ário produz, entre outras,
a ideia de coleção, conjunto ou de lugar onde se guardam coisas, tal como se verifica em
“vocabulário”, “apiário”, “relicário” e “armário”. Logo, a palavra “imaginário” é um
conjunto de imagens, visto que o termo decorre de imagem.
Para essa afirmação, o autor diz se basear na acepção de imaginário registrada
por Gilbert Durand, que conceitua tal vocábulo, associando-o à de museu no sentido de
repositório de imagens, não só as já produzidas pelo homem, mas as que ainda serão.
Portanto, o sentido dessa palavra, além de significar acumulação, significa também
produção, reprodução e recepção da imagem.
Gilbert Durand (apud TEIXEIRA, 2003, p.43-44) afirmava que a imagem é a
matéria de todo processo de simbolização, fundamento da consciência na percepção do
mundo. Imaginário, dessa forma, é a capacidade individual e coletiva de dar sentido ao
mundo. É o conjunto relacional de imagens que atribui significado a tudo que existe.
De acordo com Teixeira (2003), no dicionário etimológico de José Pedro
Machado, o termo imagem, derivado do latim imagine, desencadeia uma longa sucessão
semântica, em que se destacam os vocábulos: “representação”, “imitação”, “retrato”,
“imagem”, “fantasma”, “visão”, “sonho” etc. Liga-se ainda à noção de comparação e
parábola, trazendo, além disso, a ideia de imitação por oposição à realidade. Assim,
imagem é sinônimo de símbolo, porque se trata de uma coisa que é tomada em lugar de
outra.
Teixeira (2003) ainda explica a etimologia do verbo “imaginar”, que em língua
latina significa o ato de produzir imagens ou de representá-las. Afirma que, ao longo do
tempo, o termo imaginação passou por mudança semântica e que há as variantes
semânticas atuais, ilusório ou fantástico. O vocábulo imaginário, ao assumir a condição
de substantivo, apresenta-se como resultado da fusão entre imagem e imaginação, pois a
criação de imagens pressupõe o uso da imaginação. Então, a ideia de imaginário
pertence à esfera semântica do mito, da utopia e da criação artística, em cujo âmbito se
coloca a literatura, sendo que o imaginário se integra ao universo das construções
simbólicas.
Compreendendo o imaginário como pertencente ao universo de construções
simbólicas, faz-se necessário conceituar símbolo. François Laplantine e Liana Trindade,
32
em sua obra intitulada O que é imaginário (2003), apresentam duas formas para o
estudo do símbolo, uma baseada nos conceitos presentes nas metodologias ou
hermenêuticas fenomenológicas e cognitivas, e a outra, baseada na abordagem da escola
antropológica e filosófica substancialista.
Conceituando a partir do primeiro grupo de metodologias, no qual imagem e
símbolo se diferem, o símbolo sendo convencional e a imagem não o sendo, devido a
sua identidade com o objeto, os autores utilizam o conceito sugerido por Charles S.
Peirce, no Dictionaire encyclopedique des sciences du languageque. O símbolo é
definido como um signo determinado pelo seu objeto dinâmico somente no contexto em
que ele é interpretado. Os autores afirmam que o caráter convencional coloca o símbolo
no interior do funcionamento social com todas as suas ambiguidades, seu caráter
sincrético, polissemântico, caracterizando o movimento unitário e afetivo de todos os
indivíduos de uma cultura sobre uma mesma figura sintética.
Laplantine e Trindade (2003) explicam que o símbolo ultrapassa seu referente e
contém, através de seus estímulos afetivos, meios para agir, mobilizar os homens e atuar
conforme suas próprias regras normativas. Desse modo, o símbolo constitui
representação, não sendo apenas substituições exatas dos objetos apresentados na
percepção, mas apresentação do objeto percebido de outra forma, atribuindo-lhe
significados diferentes, porém limitados pelo próprio objeto que é dado a perceber.
Como apresentado anteriormente, existe também a abordagem da escola
antropológica e filosófica substancialista. Segundo Laplantine e Trindade (2003), as
teorias substancialistas constituem a continuidade da tradição neoplatônica, em que as
imagens e o imaginário são sinônimos do símbolo, já que as imagens são formas que
contêm sentido afetivo universal ou arquetípico, cujas explicações remetem às
estruturas do inconsciente, ou mesmo às estruturas biopsíquicas e sociais da espécie
humana.
Laplantine e Trindade (2003) citam Freud, cuja psicanálise está fundamentada
na noção de inconsciente, contudo, considera os símbolos e o imaginário a partir dos
significados contidos na história individual e coletiva. Na concepção freudiana, os
indivíduos produzem sonhos coletivos (mitos) e sonhos pessoais, utilizando imagens
que são registros transfigurados e sublimados de suas experiências individuais.
Quanto ao imaginário a partir de significados contidos na história individual,
pode-se perceber a presença do imaginário individual de Ariano Vilar Suassuna em sua
33
Figura 3 – Imagens dos atores que encenaram as personagens Quaderna, Clemente e Samuel
Fonte: Livro Romance D’A Pedra do Reino e o Príncipe do sangue do vai-e-volta (1976)
Todos os fatos narrados são ditos a partir das memórias do próprio Quaderna. O
leitor fica suscetível apenas ao ponto de vista do personagem e suas impressões acerca
de sua própria trajetória:
Agora, preso aqui na Cadeia, rememoro tudo quanto passei, e toda a minha
vida parece-me um sonho, cheio de acontecimentos ao mesmo tempo
grotescos e gloriosos. (SUASSUNA, 1976, p. 5).
Aí, foi a vez de eu consultar meu padrinho João Melchíades sobre essas
cantigas. Ele me explicou que aquilo era “uns romances velhos, meio
desmantelados e já um pouco fora de moda”. (SUASSUNA, 1976, p. 58).
Para Quaderna, as narrativas cantadas por seu padrinho são de grande relevância,
pois assim ele saberia tudo sobre a sua família e sobre si próprio. Para ele, a literatura é
um sinônimo de compreender a própria vida. Como Santo Agostinho afirma em
Confissões (2003, p. 249), “[...] é no palácio da memória que encontro a mim mesmo, e
recordo as ações que fiz, o seu tempo, o lugar e até os sentimentos que me dominavam
ao praticá-las”, e “[...] é lá que estão também todos os conhecimentos que recordo,
aprendidos pela experiência própria ou pela crença no testemunho de outrem.”.
Tendo em vista essas considerações sobre a memória, pode-se perceber que o
protagonista deseja tornar-se mantenedor e divulgador das narrativas e trovas populares
passadas de gerações para gerações, não permitindo que a cultura que tanto preza se
perca no tempo. Considerando os elementos da cultura africana, Quaderna representa
43
também, a imagem do griot, que são indivíduos que tinham o compromisso de preservar
e transmitir histórias, fatos históricos, os conhecimentos e as canções ao seu povo.
Quaderna vive essas memórias no presente. Ele olha a praça pela janela de sua
cela e rememora todo o acontecido, trazendo pelos olhos e transpondo para o papel
todas as vivências de sua família de reis e rainhas até chegar a si. Do conjunto de ideias
e crenças transmitidas ou vividas no passado, retiram-se analogias de coisas
experimentadas pelo próprio indivíduo ou por quem nelas acreditou apoiado em
experiências anteriores. Tecem-se umas e outras com as passadas. Meditam-se as ações
futuras, os acontecimentos, as esperanças. Reflete-se em tudo, como se estivesse no
presente (AGOSTINHO, 2003).
Luiz Fernando Carvalho, em sua produção A Pedra do Reino, permaneceu fiel à
estrutura do romance. A série é contada em primeira pessoa, pelo narrador-personagem.
A câmera cinematográfica é o olho do próprio Quaderna, que expõe as imagens por
meio do fluxo de consciência. A narração ocorre num tempo distante dos fatos
ocorridos. A personagem principal, também na série, está rememorando ações passadas,
as quais são divididas, simultaneamente, em quatro tempos: a época do menino; o
período em que atua como palhaço na praça pública, também marcado pelo assassinato
de seu padrinho e pelo sonho de se tornar imperador do Brasil; o momento do
julgamento perante o juiz carregador; e, por fim, quando ele escreve a epopeia, preso na
torre. Os quatro tempos são narrados descontinuamente, obedecendo à ordem em que as
imagens são rememoradas, tendo assim uma natureza de reminiscência.
Milton José de Almeida, em Arte da memória (1999), define o cinema como arte
da memória, procura fixar as recordações através de técnicas de imprimir na memória
“lugares” e “imagens”. Nesse sentido, cita o texto de autoria anônima Ad Herennuim,
que propõe regras para memorizar locais e as imagens a serem colocadas, e aconselha
que os locais sejam lugares que permaneçam fáceis e firmes na memória, como uma
casa. Quanto mais coisas se quer recordar, mais locais devem ser criados, e é importante
que eles formem uma série. Assim, podem ser recordados em ordem, ou se pode
começar de qualquer lugar dessa série e seguir para frente e para trás, podendo,
portanto, ser preenchidos novamente:
Luiz Fernando Carvalho buscou na memória estética imagens por meio das quais
pudesse dar forma a um conteúdo da imaginação de Quaderna. A câmera surge como a
exteriorização de visões interiores, do olhar e da memória do narrador-personagem. Não
só a câmera, como a própria escolha de atores que participam da série e da ambientação,
todos esses elementos estão diretamente ligados à questão da memória coletiva.
O diretor, além de escolher atores locais para compor o elenco, resolveu ir até a
cidade de Taperoá e construir a cidade cinematográfica lá, onde se passa realmente a
história. O propósito dessa construção foi estar inserido no local da trama.
João Irênio, o cenógrafo, comenta:
representação que os faz diferentes uns dos outros, expressando seus valores,
percepções e maneiras de viver.
O cinema e a televisão revelam-se uma arte da memória. Milton José de
Almeida (1999) diz que o cinema é uma invenção moderna que cria ficção e realidades
históricas, em imagens agentes e potentes, ao mesmo tempo que também produz
memória. As imagens do cinema são fantásticas, trazem a potência do real e agem em
nosso imaginário ou adormecem inesquecíveis em nossa memória. Quando novamente
despertadas, ressurgirão visualmente na forma de alusão e recordação.
Tanto na obra literária quanto na obra televisiva, apreende-se que, para
Quaderna, a memória é fundamental, a individual e a coletiva, já que é por meio dela
que retorna à origem. Na história do protagonista, nota-se que a memória consiste na
chegada do passado no presente, que só tem validade graças ao que narra. É somente
porque a personagem tem memória que se pode escrever ou ver. Ele guarda os dados
dentro de si em suas recordações vividas e contadas.
A memória de Quaderna nos dois tipos de obra é como um filtro que permite
reconstituir a própria trajetória e voltar ao começo. A memória acaba sendo um dos
fatores mais importantes da obra, já que é através dela que se pode compreender o
romance. Logo, primeiro se tem de aceitar e reconhecer as lembranças de Quaderna
para tornar crível o mundo do narrador-personagem, sempre compreendendo que tudo
por ele narrado parte da cultura que retém a memória, pois é esta que o faz existir.
A palavra Mito vem do grego mytos – palavra expressa, discurso, fábula. Tanto
o texto quanto a produção televisiva nos transportam para um lugar mítico do sertão
chamado Pedra Bonita. Ariano Suassuna utilizou-se do conhecimento popular para a
produção da obra, com imagens que revelam a cultura popular ocidental, que são
traduzidas para a cultura do sertão brasileiro. As narrações são derivadas das histórias
populares de cordel e o mais nítido mito presente no romance é o de Dom Sebastião,
além de outros que povoam o imaginário coletivo do povo nordestino. A estrutura
básica que constitui o mito pode ser considerada como um modelo de funcionamento do
imaginário.
47
Pedra Bonita, como se sabe, era uma espécie de reino encantado; para
desencantá-lo e fazer ressuscitar D. Sebastião fazia-se preciso banhar as
pedras e regar os campos com sangue humano. Depois do milagre da
ressurreição, os negros acabariam brancos, os velhos moços, os pobres ricos e
todos, afinal de contas, sentirse-iam imortais. No terceiro dia da matança, as
bases das colunas de granito, que serviam de templo ou lugar de reunião dos
fanáticos, tinham recebido o holocausto de trinta crianças, doze homens e
onze mulheres. A pouca distância das pirâmides, havia um grande
subterrâneo, onde o chefe ministrava o vinho sagrado aos adeptos, bebida
composta de jurem a e manará. O rei tinha tratamento de santidade e todos
lhe beijavam os pés. Em pregações usava o mesmo uma coroa tecida de cipó
de japecanga. Quando terminavam suas prédicas, o povo, cabriolando e
batendo palmas, prorrompia em vivas ao rei D. Sebastião. (PINTO, 1958,
p.79-80)
Segundo Le Goff (1996, p 331), mito e escatologia têm duas estruturas, dois
discursos diferentes. O mito está voltado para o passado, exprime-se pela narrativa. A
escatologia olha para o futuro e revela-se na visão da profecia que “[...] realiza a
transgressão da narrativa: está iminente uma nova intervenção de Yahweh, que eclipsará
a precedente”. Mas, o mito e a escatologia aliaram-se para darem, por um lado, a ideia
de uma criação entendida como primeiro ato de libertação como ato criador. A
escatologia projeta uma forma profética, que é suscetível a fazer um novo pacto com o
mito.
Além do mito do eterno retorno de Dom Sebastião, percebe-se também muita
fantasia como nas histórias de Cavalaria, com reis, rainhas e cavaleiros, e mitos do
sertão como o da Onça Caetana. O imaginário é o caminho da literatura de Suassuna.
Em entrevista aos diários de gravação da série A Pedra do Reino, o autor diz:
E de fato, assim sucedeu e assim era. Naquele dia, a morte Caetana, numa de
suas inumeráveis metamorfoses, estava voando, sob a forma de onça sagrada
e vermelha e alada, por sobre o reino do sertão. (SUASSUNA apud
CARVALHO, 2007, s.p.)
Quanto às Onças, posso dizer em sã consciência que fui criado junto com
uma, na fazenda “Onça Malhada”, pertencente a meu tio e Padrinho, Dom
Pedro Sebastião Garcia-Barreto. Na “Onça Malhada”, não sei se como alusão
ao nome da fazenda, havia uma Onça-Pintada, mansa, criada solta no pátio e
no tabuleiro da frente da casa. (SUASSUNA, 1976, p. 12).
Além disso tia Filipa cantava para embalar meu sono, entre outros, o
Romance Da Onça Malhada, e eu sonhava muitas vezes com essa Onça,
imagem por um lado, de tudo que era belo e prazeroso, e por outro, de tudo
que era maldade, perigo e desordem. Cheguei a trepar com ela, em sonhos,
resultado talvez, duma tentativa que eu e Arésio tínhamos feito, quando
meninotes, com a Onça mansa da fazenda. (SUASSUNA, 1976, p. 102)
Encontra sua primeira amante, Maria Safira, que possui, para ele, duas faces, a
da sensualidade e a da ameaça. Como Quaderna tomou na infância o fatídico “chá de
cardina”, o qual, segundo o pai, estimula a inteligência, mas “afraca a força de homem”,
Safira consegue convencê-lo de que somente com ela Quaderna conseguirá recuperar
sua macheza. A mulher é por ele chamada de “a possessa” e o sexo entre os dois é
permeado de perversões e de blasfêmias, como no capítulo em que ele vai ao seu
encontro na Igreja, onde ela está se confessando. Enquanto narra seus pecados ao padre,
Maria Safira desnuda partes do corpo para exibir-se a Quaderna, que a observa a
distância, e indica-lhe um gesto que espere atrás do altar-mor. Depois que o padre se
afasta, o protagonista a encontra na igreja agora deserta:
Ela chegou para perto de mim e abraçou-me, sempre sem dizer palavra. Todo
seu corpo se achegou ao meu e ela sorriu, notando, pelo contato, que seu
gesto sacrílego já obtivera, em mim, o efeito costumeiro contra algum resto
da cardina que tivesse ficado no meu sangue de homem. Então, suavemente,
como uma onça no cio, deitou-se no chão de tijolo da igreja e ergueu o
vestido. (SUASSUNA, 1976, p. 264)
[...] a Onça era mesmo formada pelas pedras, o mato, as estradas, o Sol, de
modo que, refletida no espelho diabólico, eu estava envolvido por ela,
colocado no próprio campo de pelos de seu dorso (SUASSUNA, 1976, p.
442).
Observa-se que o uso de figuras como reis, rainhas e cavaleiros vem das
histórias de cavalaria da Idade Média, que narravam acontecimentos históricos e
heroicos com personagens corajosos que viviam cheios de aventuras. Essas obras
possuem um caráter místico e simbólico. Idelette Muzart-Fonseca dos Santos (2006)
afirma que o romance é originário de fragmentos de canções de gesta medievais.
Ariano Suassuna, que parece brincar com obras medievais e entrelaçá-las à
cultura popular, afirma:
[...]
Neste Planeta terrestre, o Homem não se domina, tendo que viver sob o jugo
da providência Divina. Foi feito do pó da terra, no pó da terra termina! Assim
eu mostro a estrada do Passado e do Presente, Estrada onde morrem Reis
molhados de Sangue quente! (SUASSUNA apud CARVALHO, 2007, p. 14).
É comum o leitor, encantado por uma obra literária, esperar do cinema uma
adaptação mais próxima possível do livro. A partir da aproximação entre o texto
literário e a adaptação cinematográfica, o leitor/espectador expõe sua preferência. Além
disso, há o preconceito de uma arte se sobrepor a outra.
A relação entre literatura e cinema é antiga e frequente, pois muitos filmes são
obras adaptadas ao cinema. Entretanto, durante muito tempo, a Literatura foi vista como
superior ao cinema, por isso buscava-se o fator “fidelidade” da obra fílmica em relação
à obra literária. A questão da “fidelidade” será estudada neste capítulo, pois apesar de
bastante discutida, é ainda hoje, pretendida por alguns cineastas e leitores/espectadores.
Neste capítulo, também será abordada a questão do diálogo entre as duas artes e
é a partir do conceito de dialogismo que analisamos o processo de transposição fílmica
de A Pedra do Reino. Este dialogismo seria a relação que um texto estabelece com
54
diversos outros tipos de texto artístico e também com seu público.A literatura pode se
relacionar dialogicamente com o cinema e com outras expressões culturais e vice-versa.
Neste capítulo, discutimos a ideia de que a literatura não se sobrepõe ao cinema, mas
que cada arte tem suas especificidades e que um filme, mesmo sendo uma adaptação de
uma obra literária, é uma nova arte.
adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas com seu próprio contexto,
atualizando a pauta do livro mesmo quando o objetivo é a identificação de valores nele
expressos.
Johnson (2003) ressalta que a obra literária e o obra cinematográfica são
distintas. O autor da obra literária utiliza a linguagem verbal, a riqueza metafórica e
figurativa, enquanto o cineasta lida com imagens visuais, a linguagem oral (diálogo,
narração e letras de música), sons não verbais (ruídos e efeitos sonoros), música e a
própria língua escrita (créditos, títulos e outras por escrito).
As relações literatura e cinema não se dão de forma unilateral, mas sim em vias
de mão dupla, pois a princípio o cinema buscou inspiração na literatura e,
posteriormente, a literatura sofreu tal influência do cinema, mudando seu estilo e até sua
temática (JOHNSON, 2003). As primeiras produções cinematográficas sofreram forte
influência das obras literárias e as obras literárias foram modificadas, fazendo com que
uma completasse a outra, por um lado, a literatura recebendo elementos
cinematográficos, e, por outro, o cinema encontrando na literatura várias narrativas para
sua produção.
Xavier (2003) destaca que as equivalências entre as palavras e imagens, ou entre
o ritmo musical e o de um texto escrito, entre a tonalidade de um enunciado verbal e de
uma fotografia, colocam-se no terreno chamado estilo. Afirma que o cineasta toma
aquilo que é específico do literário e procura sua tradução no que é específico do
cinema, fazendo para isso um modo de tradução próprio ao cinema, que é análogo ao
modo como se obtêm certos efeitos do livro. Essa analogia está apoiada nas distâncias,
tonalidades, gradiente de ritmos, bem como o uso figurativo da linguagem.
Apesar dos pontos de distinção entre a literatura e o cinema, existem também
pontos em comum, como a narrativa. Segundo Xavier (2003), a narrativa é uma forma
de discurso que pode ser examinada num grau de generalidade que permite descrever o
mundo narrado ou falar sobre muitas coisas que ocorrem no próprio ofício da narração
sem que seja necessário considerar particularidades de cada meio material. Desse modo,
é notório que ambas as artes são compostas por narrações e que todas as narrações têm,
em comum, características como tempo, espaço, tipos de ação, personagens, sem
necessidade de atentar para a narração, se está em palavras ou imagens.
Xavier (2003) vai além, ao afirmar que diante de qualquer discurso narrativo se
pode falar em fábula, querendo referir-se a certa história contada, a certas personagens,
56
Dom Pedro Dinis Ferreira Quaderna fora julgado e condenado por causa de uma
denúncia feita após a morte de seu tio e padrinho. Pretendia que o Juiz Corregedor e sua
escrivã, Margarida, pudessem ajudá-lo a escrever seu memorial.
Conforme Luiz Fernando Carvalho (2007), ainda na cabeça, todo o projeto
filosófico e estético de Quaderna é desenvolvido a partir do cenário de interrogatório.
Os membros são pequenos contos, histórias introduzidas na trama principal. Por fim, o
coração, que é mais ligado a Arésio, personagem vinculado às questões do sangue e que
termina vencido pelo próprio coração, pois, apesar de ser um selvagem, ama. Amou o
seu pai, o Rei, mais que todos os filhos, e amou Maria Inominata, agindo sempre com o
coração.
Luiz Fernando Carvalho (2007) mostrou preocupação em encontrar uma
linguagem apropriada para traduzir em sua obra cinematográfica a complexidade da
obra de Suassuna, além de ter demonstrado uma preocupação com a resposta criadora
do texto. Buscando fidelidade à escrita, o diretor cinematográfico utilizou elementos do
60
Figura 10 – Imagem das fases de vida de Quaderna, trabalhados no filme a partir da memória.
época do palhaço, a fase da juventude, quando seu padrinho é assassinado e, por fim, a
fase adulta, em que ele é julgado, está preso na torre e escreve seu memorial.
A figura acima mostra Quaderna e seu grande sonho de ser o rei do Quinto
Império e do Quinto Naipe. As cenas apresentadas na minissérie são memórias do
protagonista que se misturam com seus próprios sonhos e imaginação, fazendo com que
a obra fílmica, além de ser elaborada a partir das reminiscências, use também imagens
do onírico. Carvalho utiliza a fantasia assim como faz Suassuna, para a criação de
Quaderna e do seu sertão mítico e fabuloso.
Em algumas das cenas, parece esta personagem, ser lunática, como Dom
Quixote, parece por vezes está num mundo de pura imaginação e loucura.
62
fiel, pois esse fato corresponde aos recursos expressivos da linguagem do cinema, em
que se faz uma simplificação de elementos da obra literária.
Ao preocupar-se com a resposta criadora ao texto, Carvalho apropriou-se de
tudo que tornasse a sua obra fílmica mais similar à obra literária. O diretor
cinematográfico convidou Ariano Suassuna para que o escritor falasse acerca dos
arquétipos das personagens e sobre as suas motivações ao escrever a obra. Além disso,
os atores tiveram aulas sobre estética e passos de dança do Cavalo Marinho, que é um
teatro popular de rua nascido na Zona da Mata pernambucana.
No processo de criação da obra cinematográfica, Carvalho também utilizou
instrumentos como a rabeca e o pandeiro para brincar com a música, com a dança, a
poesia e as coreografias. A roupa de Quaderna velho, o palhaço, tem estilo medieval. A
Folia de Reis serviu de inspiração do coro da Maria do Badalo, formado pelas
cantadeiras de uma região de Pernambuco. O grupo formou uma espécie de coro de
tragédia grega, que acompanha a fábula e age como consciência crítica do povo. Todos
esses recursos foram utilizados para estabelecer uma similaridade entre as obras.
Muitos dos elementos citados ao longo do texto serviram como pedra angular
para a construção da obra literária de Suassuna e foram fonte de inspiração à obra
cinematográfica de Carvalho. Compreendendo o processo de adaptação, pode-se então
afirmar que as similaridades entre as obras, foi alcançada por Carvalho, a partir de uma
interpretação simbólica da obra literária. Portanto, observa-se que a proposta da
transposição do diretor cinematográfico, não está ligada a uma questão de um
naturalismo, porque ele seria impedido tanto pelos recursos diferentes de cada
linguagem, como pela própria impossibilidade de repetição do mesmo, mas sim ao
simbólico, que está na questão da leitura e da interpretação.
A transposição literária, desta forma, define-se através da relação de coerência,
que a obra cinematográfica mantém com o texto de origem, utilizando, para isso,
configurações discursivas que vão ao encontro das do texto literário. Carvalho elabora a
transposição, utilizando para isso, uma alternativa interpretativa, em que teve grande
ajuda do escritor da obra literária, Ariano Suassuna. Um dos roteiristas, Luiz Alberto de
Abreu (2007), comenta:
obra fílmica se inicia no futuro, enquanto que a obra literária encontra-se no presente
em que Quaderna narra o motivo pelo qual está preso.
Os cortes e síntese no texto literário para a adaptação cinematográfica tornam
a obra fílmica mais dinâmica. A posição da câmera, a narração, a expressão corporal e
os diálogos também contribuem para dinamicidade do filme. É através da relação
narrador-personagem com a câmera, que por vezes interage com ela, que faz com que o
telespectador tenha a sensação de estar inserido na trama.
O dialogismo intertextual permite ao leitor/espectador perceber a aproximação
ou distância da obra cinematográfica em relação ao texto literário, compreendendo ser o
filme uma nova arte criativa. Stam (2000) afirma que a adaptação é uma forma de
dialogismo intertextual, pois as formas de texto são geradas por as práticas discursivas
de uma cultura.
Cada parte formadora da obra cinematográfica leu, interpretou e ajudou na
elaboração da nova arte criativa que é o filme A Pedra do Reino. Das releituras
interpretativas do texto literário de Ariano Suassuna, surge o roteiro de A Pedra do
Reino. Um dos roteiristas, Luís Alberto de Abreu, comenta sua interpretação da obra
literária:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Romance Armorial D’A Pedra do Reino é uma das obras mais importantes de
Ariano Suassuna, em que o Sertão ganha uma dimensão de um Reino poético, mítico,
fabuloso e armorial. Esse feito deve-se à valorização da cultura popular do Nordeste e
ao projeto de criação do Movimento Armorial, pensado e executado por Suassuna.
Um Sertão pedregoso e cruel, que dá espaço ao Reino mágico, onírico e poético
da Pedra do Reino. Reino este, construído por Ariano Suassuna e posteriormente por
Luiz Fernando Carvalho em sua obra fílmica. Apesar de ter sido em forma de
microssérie, exibida na TV, o diretor cinematográfico utilizou técnicas do cinema.
O diretor cinematográfico entra no universo da Pedra do Reino, elaborado por
Suassuna, aproveitando, também, assim, como o escritor paraibano, de elementos do
teatro e do circo. Na tentativa de uma resposta criativa mais fiel ao texto literário,
Carvalho busca, assim como Suassuna, trabalhar a partir do imaginário coletivo.
Atores desconhecidos da TV e do cinema, mas que já trabalhavam com teatro
em sua região, foram selecionados e convocados a participar da produção da obra
fílmica. Além dos atores, artesãos, costureiras e diversos outros tipos de artistas que
eram locais também e compuseram a obra fílmica A Pedra do Reino.
O espaço do cenário era de suma importância; portanto, se a proposta de
Carvalho era transpor para as telas as entrelinhas do texto literário, o melhor seria ir
para o manancial de toda aquela história, Taperoá. Carvalho fez de Taperoá uma cidade-
lápide em que os elementos da ficção misturam-se com elementos verdadeiros que
compõem a cidade, tornando-a, assim, uma cidade memória, construída a partir do
imaginário coletivo mítico.
Neste trabalho, buscou-se compreender de que maneira Suassuna e Carvalho
apropriaram-se do conceito de imaginário para concretizar as suas obras. É notório que
tanto Suassuna quanto Carvalho fazem uso de elementos do imaginário coletivo,
Suassuna construindo, pretensiosamente, para consolidar uma identidade do povo
nordestino, baseado na cultura popular. Enquanto que Carvalho busca uma aproximação
com a obra literária. Essa cultura baseada na tradição e na origem do povo brasileiro
busca, nas três raças, uma ideia de Nordeste como berço cultural do Brasil.
No terceiro capítulo, a análise da obra é baseada na teoria do dialogismo.
Através desta teoria, o diretor cinematográfico, estabeleceu um diálogo entre a literatura
74
e o cinema, tendo êxito na resposta criativa do texto para a telas. Essa transposição que
aproximou o texto literário da obra fílmica, foi possível pela assimilação de elementos
do imaginário, baseado na cultura popular.
Compreendemos então, que a obra literária é uma, e a obra cinematográfica é
uma nova obra, pois possibilita a interpretação do cineasta, além de ser uma elaboração
conjunta.
75
REFERÊNCIAS
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Cia das
Letras, 2000
BITTER, Daniel. O Movimento Armorial- Ariano Suassuna e a construção de uma
arte brasileira de raízes populares. Dissertação de Mestrado. Escola de Belas Artes,
UFRJ, 2000.
BRONZEADO, Sônia Lúcia Ramalho de Farias. O Sertão de José Lins do Rego e
Ariano Suassuna: Espaço regional, messianismo e cangaço. Editora Universitária
UFPE. Recife, 2006.
BURKER, Perter. Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
CARVALHO, Luiz Fernando. Cadernos de Filmagens do diretor Luiz Fernando
Carvalho e o diário de elenco e equipe. São Paulo. Globo, 2007.
CALVINO, Ítalo. Atualidade do Mito. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
CANCLINI, Nestor. A Encenação do Popular. In Culturas Híbridas. SP, Edusp, 1997.
76
FILMOGRAFIA
A PEDRA DO REINO. Luiz Fernando Carvalho. Rio de Janeiro: TV GLOBO, 2007. 02
discos (276 minutos divididos em 5 capítulos): sonoro, colorido. DVD.