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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AGRESTE DE PERNAMBUCO - UFAPE

JULIO HENRIQUE BALTAZAR DA SILVA

A INCERTEZA INQUIETA: o insólito em contos de Sylvia Plath

Garanhuns-PE
2022
JULIO HENRIQUE BALTAZAR DA SILVA

A INCERTEZA INQUIETA: o insólito em contos de Sylvia Plath

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Curso de Licenciatura em Letras - português/inglês
e suas respectivas literaturas, na área de
Literaturas Estrangeiras Modernas, da
Universidade Federal do Agreste de Pernambuco-
UFAPE, como requisito parcial para a Obtenção do
grau de Licenciado em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Monaliza Rios Silva

Garanhuns-PE
2022
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Universidade Federal do Agreste de Pernambuco
Sistema Integrado de Bibliotecas (SIB-UFAPE)

Silva, Julio Henrique Baltazar da


S586i A incerteza inquieta : o insólito em contos de Sylvia Plath / Julio Henrique Baltazar da
Silva. – Garanhuns, 2022.
119 f. : il. color.

Orientador(a): Monaliza Rios Silva.


Monografia (Graduação) - Universidade Federal do Agreste de Pernambuco, Licenciatura
em Letras, Garanhuns, BR-PE, 2022.

Inclui referências.

1. Literatura americana 2. The Daughters of Blossom Street 3. Poesia americana 4. Ficção


americana I. Silva, Monaliza Rios (orient.) II. Universidade Federal do Agreste de Pernambuco
III. Título
CDD 810

Elaborado por Marília Santana (CRB-4/1294)


JULIO HENRIQUE BALTAZAR DA SILVA

A INCERTEZA INQUIETA: o insólito em contos de Sylvia Plath

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Curso de Licenciatura em Letras - português/inglês
e suas respectivas literaturas, na área de
Literaturas Estrangeiras Modernas, da
Universidade Federal do Agreste de Pernambuco-
UFAPE, como requisito parcial para a Obtenção do
grau de Licenciado em Letras.

Garanhuns-PE, __ de maio de 2022.

BANCA EXAMINADORA:
__________________________________
Profa. Dra. Monaliza Rios Silva
(Orientadora - UFAPE)
__________________________________
Prof. Dr. Pedro Felipe Martins Pone
(1º Examinador Externo – DLCH/UFERSA)
__________________________________
Prof. Me. Bruno Eduardo da Rocha Brito
(2º Examinador Externo - UFPE)
Dedico este trabalho à MARISTÂNIA BALTAZAR
DA SILVA, minha mãe, meu incondicional apoio nesta
jornada e na vida, responsável por plantar o amor da
literatura nela.
AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Maristânia Baltazar da Silva, que luta por mim todos os dias de sua
vida.

À minha irmã, Any Biatriz Baltazar da Silva, com a qual compartilho o amor pelos
livros e palavras.

À minha tia, Estela Baltazar da Silva, pelo suporte e carinho que dedica a mim e à
minha família.

Aos meus amigos e colegas, como Renata de Oliveira Almeida, Maria das Dores
Andrade de Lima e Rivaldo Alves.

À UFAPE, instituição que me formou como professor e pesquisador.

À Banca Examinadora, pelas contribuições neste trabalho.

Em especial, à minha prezada e querida orientadora Profª. Dr a. Monaliza Rios Silva,


pela troca mútua de saberes, inteligência e lucidez de suas aulas, grupos de estudo, e orientação
que compartilhamos.
“I am already in another world - or between two
worlds, one dead, the other dying to be born” (Sylvia
Plath)
RESUMO

Nos contos “Johnny Panic and the Bible of Dreams” e “The Daughters of Blossom
Street”, da escritora estadunidense Sylvia Plath (1965), pudemos observar a presença
do insólito. Portanto, o presente estudo pretende investigar como o insólito se
apresenta e é caracterizado nos contos supracitados. Nesse sentido, buscou-se
identificar, analisar e interpretar os elementos insólitos (inquietante/abjetos) na
narrativa dos contos que compõem o corpus de pesquisa, pelo viés metodológico da
Crítica Psicanalítica (EAGLETON, 2006). Para tanto, recorremos a uma pesquisa
bibliográfica: em primeiro lugar, coletando e interpretando dados sobre a autora, em
algumas biografias da estadunidense Sylvia Plath, a exemplo de Stevenson (1992) e
de Rollyson (2015); em segundo lugar, buscando em aportes teóricos de autores
como Todorov (1981), Freud (1919) e Kristeva (1982), a delimitação da presente
categoria de análise; e por último, buscando analisar o nosso corpus, à luz da
categoria do insólito, através do Fantástico, do inquietante e do abjeto. Assim,
pudemos observar que o insólito se apresenta relacionado ao espaço narrativo; aos
elementos simbólicos, tais como: sanidade/insanidade; ordem/desordem; morte/vida;
real/inconsciente; e à temática da incerteza, permeados nos contos em questão.

Palavras-chave: Sylvia Plath; Insólito; Johnny Panic and the Bible of Dreams; The
Daughters of Blossom Street.
ABSTRACT

In the short stories “Johnny Panic and the Bible of Dreams” and “The Daughters of
Blossom Street”, by the American writer Sylvia Plath (1965), we could observe the
presence of the weird fiction. Therefore, the present study intends to investigate how
the weird fiction presents itself and is characterized in the aforementioned short stories.
To do so, we sought to identify, analyze and interpret the weird fiction elements
(uncanning/abjection) in the narrative of the short stories that make up the research
corpus, through the methodological bias of Psychoanalytic Criticism (EAGLETON,
2006). In order to do so, we resorted to a bibliographic research: first, collecting and
interpreting data about the author, in some biographies of the American Sylvia Plath,
such as Stevenson (1992) and Rollyson (2015); secondly, seeking in theoretical
contributions from authors such as Freud (1919) and Kristeva (1982), the delimitation
of the present category of analysis; and finally, seeking to analyze our corpus, in the
light of the weird fiction category, through the uncanning and the abjection. Thus, we
could observe that the weird fiction is related to the plot; to symbolic elements, such
as: sanity/insanity; order/disorder; death/life; real/unconscious; and the theme of
uncertainty, permeated in the stories herein referred to.

Keywords: Sylvia Plath; Uncanning; Johnny Panic and the Bible of Dreams; The
Daughters of Blossom Street.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Representações de Plath................................................................... 12


Figura 2 – Sylvia Plath, Northampton, Massachusetts-EUA, 1954..................... 13
Figura 3 – Sylvia Plath e Ted Hughes, Cambridge, Reino Unidos, 1957............ 14
Figura 4 – A Figura do Quinquagésimo Nono Urso com um Familiar da Sadie.. 15
Figura 5 – Plath e a Fusão do Eu com a Natureza: Sylvia em seu quintal em
Wellesley, entre 1954 e 1955............................................................................... 53
Figura 6 – Desenho feito por Sylvia Plath, em 1958, de flores-do-campo........... 60
Figura 7 – Estampa de Sylvia Plath com a Deusa Ísis......................................... 73
Figura 8 – Lázaro, no filme Sylvia (2003)............................................................. 74
Figura 9 – Wuthering Heights Hoje, desenho feito por Sylvia Plath, em 1956...... 77
Figura 10 – The Fall of the House of Usher, ilustração......................................... 78
Figura 11 – Sylvia Plath, datilografando, Heptonstall (1956)................................ 89
Figura 12 – Ilustração do ambiente externo em “Johnny Panic and the Bible of
Dreams, na edição alemã da coletânea (2011).................................................... 93
Figura 13 – Dom Quixote enfrenta os moinhos de vento..................................... 97
Figura 14 – O Gato de Cheshire, ilustração de John Tenniel (1864)................... 106
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
2 VIDA E OBRA DE PLATH – “IT MIGHT BE ME, THAT SWEET WORD:
SUCCESS”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

3 O INSÓLITO: DO FANTÁSTICO AO INQUIETANTE E ABJETO – “THE


HORROR IS THE SUDDEN FOLDING UP AND AWAY OF THE
PHENOMENAL WORLD”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

3.1 O FANTÁSTICO DE TODOROV (1981). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24


3.2 O INQUIETANTE DE FREUD (1919). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
3.3 O ABJETO DE KRISTEVA (1982). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
3.4 O INSÓLITO EM CONTOS DE SYLVIA PLATH. . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

4 ANÁLISE DO INSÓLITO EM “AS FILHAS DE BLOSSOM STREET” E


“JOHNNY PANIC E A BÍLIA DOS SONHOS”: “I FEEL LIKE LAZARUS
[...] BEING DEAD, I ROSE UP AGAIN”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

4.1 ENTRE O MUNDO DOS MORTOS E O DOS VIVOS: “AS FILHAS DE


BLOSSOM STREET”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
4.2 ENTRE O MUNDO REAL E O INCONSCIENTE: “JOHNNY PANIC E A
BÍBLIA DOS SONHOS”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120

REFERÊNCIAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
10

1 INTRODUÇÃO

Nascida em Boston, Massachusetts-EUA, Sylvia Plath pode ser considerada


uma das vozes de língua inglesa mais proeminentes do século XX. Conhecida
principalmente por sua produção poética de forte fundo confessional, a exemplo de
seu livro Ariel (PLATH, 1965), que traz poemas como “Lady Lazarus” e “Tulips”. No
entanto, escreveu diversos artigos, contos e ensaios durante sua curta vida, tentando
a publicação de quase todos em revistas estadunidenses e britânicas, (BASSNETT,
1987). Sua obra como um todo foi influenciada pelos eventos que marcaram sua
passagem pela terra, principalmente sua luta contra a depressão, o turbulento
casamento com o poeta laureado Ted Hughes, a difícil relação com a mãe e a precoce
ausência paterna.
Temas recorrentes em sua obra são a morte e a ressurreição, o ambiente
psiquiátrico/médico, o fazer literário/poético e a relação marido e esposa no ambiente
conjugal. Parte da sua obra em prosa foi editada e publicada por seu ex-marido, após
o fatídico suicídio que lhe trouxe estrondosa fama póstuma, em um só volume: Johnny
Panic and the Bible of Dreams and Other Prose Writings (1977). Dentre todos os textos
deste volume, coletamos o nosso corpus, que consiste em dois contos: “The
Daughters of Blossom Street” – escrito em 1959; e “Johnny Panic and the Bible of
Dreams” – escrito em 1958. Justificamos nossa escolha, pois ambos apresentam
semelhanças temáticas, influenciados pelo emprego temporário de Plath como
secretária, no mesmo hospital em que foi internada após a sua primeira tentativa de
suicídio (STEVENSON, 1992).
Em “The Daughters of Blossom Street” acompanhamos a rotina de uma equipe
de secretárias interrompida pela aproximação de um furacão que desperta
acontecimentos insólitos naquele local. Já em “Johnny Panic and the Bible of Dreams”,
os leitores se deparam com uma secretária que sorrateiramente copia os sonhos dos
pacientes que frequentam a ala psiquiátrica na “Bíblia dos Sonhos”, volume dedicado
à divindade-diabólica referenciada no título.
Durante as análises destes contos, procuramos investigar a relação dos textos
com a categoria do insólito e do abjeto, pela luz dos autores que investigaram a
relação do inquietante/insólito/abjeto na literatura, a saber: Todorov (1981), que
11

teoriza sobre o Fantástico; Freud (1919), que fala sobre o Inquietante na literatura;
e Kristeva (1982) que argumenta sobre o Abjeto.
A nossa metodologia adotada segue o viés da Crítica Psicanalítica, como indica
grande parte do arcabouço teórico escolhido, buscando apoio na psicanálise para
construir “o que se poderia chamar de subtexto para a obra”, que por sua vez é “um
texto que está inserido nela, visível em certos pontos sintomáticos de ambigüidade,
evasão ou ênfase exagerada” e que nós como críticos, “somos capazes de escrever,
mesmo que o romance em si não o escreva” (EAGLETON, 2006, p. 268). Dentro da
variedade de subtextos que uma obra pode despertar, segundo Eagleton (2006), a
Crítica Psicanalítica concentra seu olhar no sentido "inconsciente da obra”: “As
introvisões da obra” que “estão profundamente relacionadas” com “aquilo que ela não
diz, e como não o diz”, o que “pode ser tão importante quanto o que diz” (p. 268).
Nesse sentido, “que parece estar ausente, ser marginal ou ambivalente a
respeito dela, pode constituir uma chave mestra para as suas significações”
(EAGLETON, 2006, p. 268). Na perspectiva de Eagleton (2006), a Crítica Psicanalítica
pode dizer “alguma coisa sobre a maneira pela qual os textos literários se formam”,
revelando “alguma coisa sobre o significado dessa formação” (p. 268).
Logo, nossa pesquisa é dividida em três seções: a primeira é dedicada a uma
explanação sobre a vida e obra de Sylvia Plath, em especial os contos que compõem
o nosso corpus. Na segunda, recorremos ao arcabouço teórico já mencionado para
investigar o insólito pelo viés da Crítica Psicanalítica. E por fim, na terceira seção,
procuramos empreender uma análise da obra em questão — os contos “The
Daughters of Blossom Street” e “Johnny Panic and the Bible of Dreams” — por meio
da investigação das categorias do insólito e do abjeto.
12

2 VIDA E OBRA DE PLATH – “IT MIGHT BE ME, THAT SWEET WORD:


SUCCESS”1

Sylvia Plath foi uma poeta e escritora estadunidense, cuja produção literária,
de forte cunho confessional, saiu da obscuridade após seu suicídio em 11 de fevereiro
de 1963 e sua figura ganhou ares míticos. Tal fenômeno é semelhante ao que
acontece com astros do rock, dadas as devidas proporções: seus cabelos coloridos
de louro e cortados rente aos ombros, seu rosto delicado e suas roupas estilo anos
1950 estampam objetos, camisetas e até mesmo artigos de papelaria (vide Imagem
1).
Sua obra mais conhecida, o romance autobiográfico publicado postumamente
em 1963, The Bell Jar [A Redoma de Vidro], tornou-se uma obra de grande fortuna
crítica, lido, relido e destrinchado em escolas e universidades ao redor do mundo. A
constante busca em vida pela aceitação e “fama” literárias da escritora, alcançadas
post mortem é assunto de biografias, como: Bitter Fame [Amarga Fama] (1989), de
Anne Stevenson; Red Comet: The Short Life and Blazing Art of Sylvia Plath (2020),
de Heather Clark (sem tradução no Brasil); e American Isis [Isis Americana] (2013),
de Carl Edmund Rollyson.

Figura 1 – Representações de Plath

Fonte: O autor (2022)2

1
In: PLATH, Sylvia. The Unabridged Journals of Sylvia Plath, 1950-1962. New York: Anchor
Books, 2000, p. 276. “Deve ser eu, essa palavra doce: sucesso”, em tradução livre.
2
Montagem a partir de imagens coletadas de sites como www.reddit.com; www.shopee.com.br;
www.teepublic.com, em 2022.
13

Segundo Rollyson (2015), Sylvia Plath começou a sua produção literária, em


prosa e poesia, “praticamente assim que aprendeu a ler e escrever” (p. 29). Segundo
o autor, que coaduna com a posição de Stevenson (1992, p. 22), a jovem garota
estadunidense aspirava à fama literária: não lhe bastava escrever, precisava ser lida
e aclamada, pelos críticos e pelo público leitor em geral (ROLLYSON, 2015, p. 15). E
em busca desta “fama”, desde a adolescência, costumava enviar contos e poemas
para revistas e jornais, tanto para periódicos femininos considerados populares como
as revistas Seventeen e Mademoiselle quanto para as conceituadas revistas literárias,
lidando com as constantes recusas e eventuais aceitações com o espírito da
persistência norte-americana (op. cit, p. 225).
Atualmente, Plath é conhecida como uma das principais poetas estadunidenses
do século XX, tendo atingido a sua tão almejada fama postumamente. The Colossus
and Other Poems (PLATH, 1960) reúne uma parte de sua produção poética de grande
parte da sua vida, da adolescência ao casamento com o poeta laureado Ted Hughes.
No entanto, composições como “Lady Lazarus”, “Daddy” e “Tulips” são alguns
de seus mais conhecidos poemas, escritos após seu conturbado divórcio, e se
encontram na sua última obra publicada em vida: Ariel and Other Poems (1965),
considerada a “obra-prima de Plath” (ROLLYSON, 2015, p. 361). O restante de
produção lírica de Plath foi editada de forma póstuma por Hugues, nas coletâneas
Crossing the Water (1975) e The Collected Poems (1981).

Figura 2 – Sylvia Plath, Northampton, Massachusetts-EUA, 1954

Fonte: Clark (2020, p. 828)


14

De acordo com Carl Rollyson (2015), The Collosus and Other Poems foi a obra
de Plath mais aclamada em vida da autora, desmentindo a ideia de que Plath foi
apenas celebrada por seus pares postumamente:

As resenhas do The Colossus foram notáveis. Críticas em publicações e


jornais de prestígio elogiaram as “qualidades virtuosas de seu estilo”,
chamando-a de “inteligente”, “vivaz”, equilibrada e situando-a ao lado de Ted
Hughes e Theodore Roethke. Alguns desses adjetivos podiam ser
interpretados como condescendentes, mas, lidas por inteiro, as resenhas
revelam respeito e admiração, (ROLLYSON, 2015, pp. 251-252).

No entanto, a recepção inicial da crítica em relação a Ariel foi ambígua.


Segundo Clark (2020), “a maioria dos revisores não sabiam o que fazer com as
metáforas abrasivas e pulsantes em poemas como Lady Lazarus ou com a imagética
apimentada de Edge”3 (p. 13, grifos da autora). Segundo a autora, a revista Time
classificou Ariel como um livro com um “jato de flamas de um dragão literário que, em
seus últimos meses de vida, absolveu um rio flamejante de desgraças, através de uma
paisagem literária”4 (CLARK, 2020, p. 13). Antes de saírem no volume, muitos dos
poemas de Ariel foram recusados por conceituados veículos como as revistas The
New York e a The Atlantic “exatamente aqueles que viriam a agradar à posteridade”
(ROLLYSON, 2015, p. 295).
Apesar de ser mais conhecida por sua poesia, em diversas passagens de seu
diário, Plath deixou explícita sua intenção em escrever também em prosa e ser
reconhecida por ambos, conforme vemos em sua declaração seguinte: “eu deveria
acumular notas que, com meus vários prêmios, deveriam me tornar capaz de escrever
um romance”5 (PLATH, 1959). Dentre sua produção em prosa, sua obra de maior
fama, é exatamente um romance: referimo-nos à obra The Bell Jar (PLATH, 1963) –
no Brasil conhecido como A Redoma de Vidro – romance publicado “sob o
pseudônimo de Victoria Lucas”, segundo Rollyson (2015), “devido à natureza
autobiográfica do romance” (op. cit. p. 306).

3
[...] most reviewers didn’t know what to make of the burning, pulsating metaphors in poems
like Lady Lazarus or the chilly imagery of Edge. Em tradução livre.
4
[...] jet of flame from a literary dragon who in the last months of her life breathed a burning river
of bale across the literary landscape. Em tradução livre.
5
I should amass enough, what with my various prizes, might make me able to write a novel. Em
tradução livre.
15

A obra em questão se trata da ficcionalização dos eventos que antecederam


sua primeira tentativa de suicídio, após sua experiência desastrosa como editora-
júnior na revista Mademoiselle. Inicialmente a recepção do romance foi mista.
Segundo Bassnett (1987) algumas críticas foram “analfabetas” em seu tratamento
para com o romance (p. 32). Segundo Rollyson (2015) essas críticas “algumas boas
e outras nem tanto”, não saciaram a vontade de Plath pelo sucesso “sobretudo porque
o romance não encontrara editor para publicá-lo nos Estados Unidos” (p. 306). Por
outro lado, o romance atingiu sucesso póstumo e, em 1979, ganhou uma adaptação
para o cinema, confirmando o interesse em especial do público e mídia nesta obra da
escritora.
Na esteira do interesse pela biografia de Plath, e do sucesso editorial de The
Bell Jar, os dois volumes de suas cartas e os diários –The Unabridged Journals of
Sylvia Plath: Transcripts from the Original Manuscripts at Smith College (1982) –
também angariaram interesse nos últimos trinta anos. Segundo Anne Stevenson
(1992), além dessas obras, Plath teria escrito os esboços de um segundo romance,
centrado nas questões conjugais de uma protagonista feminina, chamado Falcon
Yard, mas o havia destruído junto a poemas do marido ao descobrir o caso dele com
a ex-companheira do poeta David Wevill (p. 321).
No entanto, como aponta Bassnett (1987), Plath, durante toda sua vida,
publicou estórias curtas em revistas diversas, tanto nos Estados Unidos quanto na
Inglaterra. Parte dessa produção em contos foi reunida e editada na coletânea Johnny
Panic and the Bible of Dreams and Other Prose Writings, em 1977, por Ted Hughes e
publicada pela primeira vez em português brasileiro com o título de Johnny Panic e a
Bíblia dos Sonhos e Outros Textos em Prosa, em 2020, da qual extraímos o nosso
corpus: “Johnny Panic e a Bíblia dos Sonhos” – o conto que dá o título da coletânea –
e “As Filhas da Blossom Street”. Alguns anos após a publicação da coletânea,
Margaret Atwood escreveu uma crítica no The New York Times (presente na edição
brasileira, como uma apresentação) na qual classifica a obra como “um trabalho de
menor destaque de uma autora de destaque” (ATWOOD, 1979 In PLATH, 2020, p.
13). Segundo a escritora canadense Atwood, Plath era uma poeta maior que
prosadora:

publicações como esta me deixam apreensiva, uma vez que sugerem que
alguém escarafunchou gavetas de escrivaninha que a autora, se viva
16

estivesse, sem dúvida manteria firmemente trancadas. Que escritora em sã


consciência entregaria ao mundo, por vontade própria, seus contos da época
da faculdade, suas anotações ressentidas sobre os comportamentos de
vizinhos desagradáveis, suas tentativas constrangedoras de escrever ficção
formulaica para revistas? (ATWOOD, 1979 In PLATH, 2020, p. 14)

Clark (2020) classifica o conto que dá título ao livro, como “a estória agora-
clássica”6 (op. cit, p. 466) e observa que tal conto foi rejeitado para publicação pela
revista Sewanee Review em 1961, “por um editor que parecia confuso pela prosa
experimental de Plath”7 e posteriormente publicado pela The Atlantic, em 1968
(CLARK, 2020, p. 466).
Segundo Clark (2020), o editor da primeira revista considerou que o narrador
de Johnny Panic “estava muito aquém do mundo normal”8 (p. 466, grifos da autora).
Segundo Paul Alexander (2009), as críticas imediatamente posteriores à publicação
do conto “seriam poucas – e misturadas”9 (p. 387). Por outro lado, Clark (2020) ainda
afirma que “The Daughters of Blossom Street” foi aceito por The London Magazine na
figura do editor John Lehmann, de primeira, após a recusa de outros contos e poemas
da autora (p. 498);
O primeiro fato relevante na biografia de Plath consiste no seu ingresso no
Smith College no ano de 1951, “acerca de noventa milhas” (ROLLYSON, 2015, p. 41),
longe de sua mãe, com quem possuía uma relação entre a dependência e o
ressentimento (que povoa grande parte de sua obra). O Smith College, segundo Anne
Stevenson (1992), “dedicava-se a cumprir uma obrigação moral mas não
revolucionariamente social para com as mulheres americanas” na formação de
esposas cultas com certa independência no campo civil, mas onde “ainda não se
esperava que assumissem um papel pouco feminino em assuntos de governo,
negócios artes e ciências” (p. 46). E neste ambiente, uma espécie de instituto
educacional feminino, Plath começou as suas primeiras tentativas literárias:

Ao longo de todo o segundo ano da faculdade, Sylvia continuou a trabalhar


em seus contos, ficando acordada até tarde na cozinha da Haven House,
datilografando. Boa parte do trabalho recebia bilhetes de recusa, que pouco
serviam para abalar sua determinação, que acabou recompensada no início
de junho, quando lhe deram o prêmio de ficção da Mademoiselle, no valor de
quinhentos dólares, por Sunday at the Mintons. (ROLLYSON, 2015, p. 66)

6
[...] the now-classic story”. Em tradução livre.
7
[...] by an editor who seemed confused by Plath’s experimental prose. Em tradução livre.
8
[...] was too removed from the normal world. Em tradução livre.
9
[...] would be few—and mixed. Em tradução livre.
17

Após dois anos de faculdade, a “típica” garota estadunidense trabalhou com


dedicação e perfeccionismo na busca do sucesso literário e acadêmico, “Sylvia é
escolhida para o cargo de editora convidada da Mademoiselle, em Nova York, em
1953” (ROLLYSON, 2015, p. 88). Segundo Stevenson (1992), Plath se preparou
especialmente para esse tão concorrido estágio, a ponto de negligenciar disciplinas
regulares do seu curso. A experiência nesta revista, na qual Plath tanto sonhou em
publicar, resultou nos fatídicos fatos ficcionalizados em The Bell Jar (STEVENSON,
1992). Apesar das altas expectativas – que Plath acalentava em tudo que se propunha
a fazer – o estágio não transcorreu como a autora de “Daddy” esperava: “o trabalho
parecia fascinante de fora, mas na verdade era servil e degradante” (op. cit., p. 67)
para ela e houve um choque entre a “delicadeza puritana” de Sylvia e os valores nova-
iorquinos “modernos” das outras jovens estagiárias e a equipe do periódico.
Nesse sentido, segundo Rollyson (2015), “Sylvia logo descobriu que a uma
editora não cabia somente escrever e revisar, mas também atuar como estafeta e
datilógrafa” (p. 90). Em conversas anteriores com a mãe, ela admitira “que a correria
do fim do semestre e a rápida partida para Nova York” lhe haviam despertado “ao
mesmo tempo” sentimentos de “euforia e medo e que tinha dificuldade para lidar com
situações de grande pressão” (op. cit, p. 91). O acúmulo de trabalho, a pressão
imposta pela editora-executiva Cyrilly Abels e uma intoxicação alimentar coletiva entre
as estagiárias/editoras convidadas, culminou no “colapso nervoso” de Plath no último
dia do estágio, com as demais garotas “observando-a jogar roupas ao vento”10 pelo
telhado afora (CLARK, 2020, pp. 232-3).
De volta à casa da mãe, nas férias de verão em junho daquele mesmo ano, a
depressão de Plath se agrava e ela entra em contato com as experiências que
influenciariam sua obra inadvertidamente: as jornadas entre médico, hospital e
psiquiatra, culminando em “um tratamento brutal de eletrochoques, administrado sem
sedativos ou relaxantes musculares” (ROLLYSON, 2015, p. 215). O arbitrário e
equivocado tratamento possivelmente deixou Sylvia Plath traumatizada e pode ter
precipitado sua primeira tentativa de suicídio:

10
[...] watching her toss clothes into the wind. Em tradução livre.
18

Em 24 de agosto [1953], um dia em que Sylvia parecia melhor, Aurelia saiu


com uma amiga e ao voltar para casa encontrou um bilhete em que a filha
dizia ter ido dar uma longa caminhada. Sylvia sumiu durante três dias, até
Warren [irmão] ouvir o que lhe soou como um gemido vindo do porão. Ali a
encontrou num espaço apertado, semiconsciente depois de vomitar os
comprimidos para dormir que tomara para pôr fim à vida. (ROLLYSON, 2015,
p. 96)

Logo, Plath foi internada em um hospital psiquiátrico, o “Hospital McLean, em


Belmont, Massachusetts” onde progrediria sob tratamento da doutora Ruth Beuscher,
que se tornaria mais tarde sua terapeuta e amiga para a vida toda (ROLLYSON, 2015,
p. 96). A tentativa de suicídio de Plath teve certa repercussão local. Segundo Rollyson
(2015), de início ela não pretendera se tornar notícia, mas essa fama “provocou um
impacto notável em sua vocação de escritora” e “morrer se tornara parte do seu
genuíno objetivo” (p. 96).
Dois anos mais tarde, em 1955, Sylvia conseguiu uma bolsa concedida pela
Fulbright para estudar em Cambridge e se deleitou inicialmente “com os séculos de
tradição londrina, imbuídos da luminosidade prateada e nebulosa” (ROLLYSON, 2015,
p. 130). Segundo Stevenson (1992), o encanto não foi necessariamente recíproco.
Plath era considerada uma estadunidense padrão pelos britânicos com uma certa
“vulgaridade” na forma asseada de se vestir e na busca pelo conforto característico
do povo da Nova Inglaterra e na expansividade “que a expunham à zombaria em
Cambridge” (p. 124). Em 25 de fevereiro de 1956, Plath compareceu a uma festa,
onde sabia de antemão da presença do poeta em ascensão Edward James Hughes,
conhecido na universidade como Ted Hughes. Ela havia lido poemas dele na revista
criada por Hughes e seus colegas universitários, a St. Botolph’s Review, e eles
chamaram a sua atenção: “Sylvia já chegou bêbada à festa, mas suficientemente bem
para recordar e recitar a obra de Ted Hughes” (ROLLYSON, 2015, p. 139).
Segundo o próprio diário de Plath, a relação entre ambos foi intensa desde o
início: Ted perguntou-lhe se ela gostara de seus versos e recebeu como resposta um
beijo que lhe tirou sangue dos lábios (ROLLYSON, 2015, p.140). Ted era um ameno
britânico – “Ted Hughes era um homem de Yorkshire, um provinciano que não
pertencia ao bem-nascido cenário que ainda rondava Oxbridge naqueles dias” 11
(CLARK, 2020, p. 336) – mas a típica “vulgaridade” estadunidense de Sylvia Plath

11
Ted Hughes was a Yorkshireman, a provincial who did not belong to the highborn set that still
filled Oxbridge in those days. Em tradução livre.
19

parecia o atrair. Pouco mais de quatro meses depois do primeiro encontro, Sylvia e
Ted se casaram em uma cerimônia secreta, com Aurelia Plath como único membro
das famílias de ambos. Segundo Rollyson (2015), Plath tinha receio em anunciar seu
casamento, porque “correria o risco de perder a bolsa da Fulbright, uma vez que
supunha que o subsídio se destinava a estudantes solteiros” (p.161). Plath se tornou
depende de seu marido, idealizando sua figura, preenchendo o vácuo deixado pela
orfandade paterna precoce de seu pai, Otto Plath:

Antes de dormir a cada noite, ela se ajoelhava diante da janela e enviava toda
sua força e amor à cama de Ted em Yorkshire. Eu não acredito que alguém
já amara desse jeito: ninguém amará assim. O ritual a fazia sentir mais
conectada com seu marido: minha vida inteira sendo, respirando, pensando,
dormindo e comendo fizeram, de alguma forma [...] me tornar
indissoluvelmente soldada a você.12 (CLARK, 2020, p. 403, grifos da autora)

Após uma lua de mel na Espanha, em 1957, o casal se muda para os Estados
Unidos, onde se empenhou em conseguir a fama literária para ambos: segundo
Rollyson (2015), Plath se dividia entre escrever, a sua produção literária e a
datilografar “o trabalho de Ted” e reunir poemas e contos de ambos “que pretendia
enviar para apreciação” de periódicos, muitas vezes apenas os poemas dele eram
aceitos (p. 175). Segundo Anne Stevenson (1992), Plath ajudou a corrigir as provas
do livro do marido, The Hawk in the Rain (HUGHES, 1957) [O Falcão na Chuva] (p.
149). Eles não eram apenas marido e esposa, mas também “colaboradores estéticos”,
segundo Clark (2020, p. 18). Plath tomara a iniciativa de enviar o manuscrito de Ted
para a editora Faber and Faber, na Inglaterra, após o livro vencer prêmio “New York
City Poetry Center/Harper’s” [Prêmio Nova Iorque de Poesia / Prêmio Harper], que lhe
trouxe notoriedade pela primeira vez: Hughes não sabia da iniciativa da esposa
(CLARK, 2020, p. 419).

Figura 3 – Sylvia Plath e Ted Hughes, Cambridge, Reino Unido, 1957

12
Before bed each night, she knelt by the window and threw all her force and love toward Ted’s
bed in Yorkshire. I can’t believe anybody ever loved like this; nobody will again. The ritual made her feel
more connected to her husband: my whole life, being, breathing, thinking, sleeping, and eating, has
somehow [...] become indissolubly welded to you. Em tradução livre.
20

Fonte: Clark (2020, p. 852)

Após o fim da bolsa de Plath, nos EUA, o casal começou a lecionar para
sobreviver, Plath não se adaptou e achava a atividade de dar aulas cansativa
(STEVENSON, 1992, p. 163). Em 1958, Plath procurou um emprego que lhe
enervasse menos e lhe possibilitasse mais tempo para escrever: “encontrou um quase
imediatamente”, na ala psiquiátrica do “Massachusetts General Hospital”, em que
acumularia funções datilografando fichas dos pacientes e “trabalhando ao mesmo
tempo como secretária” (op. cit, 188).
Segundo Clark (2020) “o pagamento era baixo e as horas de serviço eram
maiores do que ela desejava”13 (p. 465), mas Plath não teria mais que levar trabalho
para casa. Era o hospital onde fora internada depois de sua tentativa de suicídio em
1953 (op. cit., p. 465). Imediatamente após abandonar o emprego, Plath utilizaria sua
experiência datilografando “registros na clínica psiquiátrica” (op. cit. p. 465),
atendendo telefonemas e executando todo tipo de trabalho administrativo. Nos seus
contos “Johnny Panic and the Bible of Dreams” (1958) e “The Daughters of Blossom
Street” (1959) essas lembranças seriam resgatadas (ROLLYSON, 2015, p. 227).
Em 1960, o casal Plath-Hughes volta para Londres/Inglaterra, e em 01 de abril
daquele ano, nascia Frieda Rebecca Hughes, a primeira dos filhos do casal e que
sanaria parte das dúvidas da mãe em relação à maternidade (ROLLYSON, 2015, p.
244). Em outubro daquele mesmo ano, The Colossus é publicado contendo os
poemas assombrados pelo “espírito” de Otto Plath e é aclamado (op. cit, p. 223).
Quase dois anos depois, nascia o primeiro filho, em 17 de janeiro de 1962, Nicholas
Hughes Plath.

13
[...] the pay was low and the hours longer than she wanted. Em tradução livre.
21

Apesar da aparência de família feliz, segundo Rollyson (2015), Plath admitiu


anteriormente, em sessões de terapia com a Dra. Beuscher “ter ciúmes de Ted e
desconfiar da sua atração por outras mulheres” e confessou “identificá-lo com o pai,
seus rostos e corpos ficando intercambiáveis em seus sonhos” (p. 231). Em maio de
1962, os Hughes conhecem David Wevill e sua esposa Assia, e os convidam a passar
um fim de semana em Court Green, propriedade alugada por Ted e Sylvia em Devon,
no campo.
Segundo o autor de Isis Americana, Rollyson (2015), “para Sylvia, porém, a
atração entre Ted e Assia foi palpável”, gerando uma das suas crises de ciúmes (p.
266). Em 09 de julho de 1962, em um golpe novelesco do destino, “Sylvia correu para
atender o telefone antes de Ted” e “reconheceu a voz da mulher que queria falar” com
seu marido, “ainda que Assia tenha falado baixo, fingindo, segundo achou, ser um
homem” (op. cit, p. 269). No dia seguinte, “uma Sylvia enfurecida, humilhada” passou
a exigir que seu marido saísse de casa e no dia seguinte ao pedido da mulher, “ele
partiu para Londres” e “voltava, vez ou outra, para ver os filhos” (op. cit, p. 272). Logo,
a dona-de-casa mudaria radicalmente:

A partir do momento em que arrancou o fio do telefone da parede, Sylvia


declarou guerra aberta. A esposa que havia posto o marido em primeiro lugar,
garantido que ele disputasse concursos de poesia, sido cozinheira e
arrumadeira, deixado a carreira em suspenso e criado os filhos do casal,
sumiu. Essa fase acabou para Ted Hughes, que sabia disso, sabia por que
vira como a escritora era capaz de se virar contra as pessoas e sabia que ela
era impiedosa — caricaturando até mesmo mentores, como a sra. Prouty e a
própria mãe. (ROLLYSON, 2015, p. 398)

Logo após a expulsão de Hughes, Plath deixa Court Green e parte para umas
“férias” na Irlanda. Dali, entediada, decide se instalar em Londres e encontrou “a casa
dos seus sonhos: situada na Fitzroy Road, no. 23, em Primrose Hill” onde o poeta
Yeats havia morado (ROLLYSON, 2015, p. 292). No frio rigoroso britânico, gripada,
sozinha com duas crianças, Plath sentiu falta do conforto de casa, tendo que “arrastar
baldes de carvão e de cinzas” para se aquecer (op. cit, p. 296).
Durante a instalação no novo apartamento, Plath chamara “o clima de “nojento”,
também “um bom termo para descrever sua sensação poderosa de repulsa e tristeza”
(ROLLYSON, 2015, p. 304). A autora de “Lady Lazarus”, organizava o apartamento
novo com aparentemente euforia, mas sua mãe do outro lado do oceano “desconfiava
de que toda essa atividade frenética simplesmente disfarçava a depressão da filha”
22

(op. cit, p. 299). Enquanto falava com um advogado, pensando em um divórcio formal,
“as noites eram tão terríveis que Sylvia recorria a comprimidos para dormir, que a
levavam a algum lugar profundo, dizia” (op. cit, p. 278).
Durante a ressaca pós-separação, sozinha em um apartamento gelado com
duas crianças, Plath escreveu a maioria dos poemas que lhe trariam notoriedade após
a morte: “viveu um surto de inspiração e produziu duas dúzias de seus poemas mais
potentes. Os críticos ficaram maravilhados por sua intensidade e sua arte, mas não
fizeram justiça a seu humor mordaz” (ROLLYSON, 2015, p. 290). Em janeiro de 1963,
The Bell Jar [A Redoma de Vidro] é publicada na Inglaterra por meio de um
pseudônimo e recebe críticas mistas. No mês seguinte, “o confiável Dr. Horder”, que
tratava de Plath no Reino Unido, “concluiu que os remédios não estavam funcionando
e tomou providências para hospitalizá-la”, com sua crise de depressão se agravando,
Plath recorre a uma amiga “a escritora Jillian Becker, indagando se podia visitá-la com
as crianças” (op. cit, p. 310).
Sob vigilância de Jillian, Plath pega as crianças e se hospeda na casa da amiga.
Segundo Rollyson (2015), durante sua última semana de vida, Plath em sua crise
nervosa delirava durante a noite, relembrando em voz alta as suas questões com a
mãe, seu falecido pai e o ex-marido: “a morte do pai e a traição de Ted com Assia” (p.
311). Dormia à base de antidepressivos, mas durante o dia parecia melhor,
impressionando seus anfitriões com sua fome (op. cit, p. 311).
No sábado saiu “mas não contou aos Becker aonde foi e não os acordou ao
chegar em casa”, alegando ter se encontrado, talvez sem o saber, pela última vez com
Ted (op. cit, p. 311). No domingo, anunciou que voltaria para casa com as crianças e
não conseguiu ser dissuadida pelos amigos: Gerry, o marido de Jillian, deixou Plath
no apartamento da Fitzroy Road, no trajeto “ela começou a chorar”, o fazendo tentar
“insistentemente fazê-la desistir e voltar”, mas sem sucesso (op. cit., p. 313).
Já no apartamento, “próximo à meia noite” Plath desce até o apartamento de
seu vizinho idoso, Trevor Thomas com a desculpa de que precisava de selos
emprestados e pergunta “a que horas Trevor sairia para trabalhar no dia seguinte” –
ele estranha o comportamento e a pergunta de Plath e se oferece para chamar o
médico dela, o Dr. Horder – mas ela recusou a ajuda, falando que estava tendo “o
sonho mais maravilhoso do mundo” (ROLLYSON, 2015, p. 313). Anne Stevenson
(1992) levanta a hipótese de que Plath não queria morrer, mas sim se sentir tão
23

próxima da morte ao ponto de “ressuscitar”, como o eu poético de “Lady Lazarus”:


planejava ser salva por seu vizinho. Segundo a autora, Plath não previra que o
vazamento de gás afetaria o apartamento de Trevor Thomas, impedindo-o de se
levantar e sair de casa no horário que ele lhe tinha falado (STEVENSON, 1992, pp.
378-9). Rollyson (2015) narra os momentos finais de Sylvia Plath:

Estávamos agora no dia 11 de fevereiro e a poeta se preparava para morrer.


Deixou comida e bebida para os filhos no quarto deles e abriu uma janela. No
corredor, prendeu um bilhete com o nome e o telefone do Dr. Horder no
carrinho de bebê. Calafetou a cozinha da melhor maneira que pôde com fita
isolante, toalhas e panos. Ligou o gás e enfiou a cabeça o mais
profundamente possível no forno. Uma enfermeira, que chegou por volta das
nove e meia para começar seu expediente, ouviu as crianças chorando na
janela e chamou um operário para arrombar a porta do apartamento. Eles
encontraram Sylvia Plath deitada no chão da cozinha com a cabeça dentro
do forno. Era tarde demais para revivê-la. (ROLLYSON, 2015, p. 314)

A coletânea Johnny Panic and the Bible of Dreams and Other Prose Writings
[Johnny Panic e a Bíblia dos Sonhos e Outros Textos em Prosa] é editada e publicada
em 1977, de forma póstuma por seu ex-companheiro. Ted foi responsável por alterar
e mutilar a obra de Plath: Hughes queimou o último dos diários da ex-companheira,
mexeu na ordem dos poemas nas coletâneas de poesia e omitiu alguns “porque eles
magoariam pessoas vivas, outros por serem mais fracos do que os que acrescentara
ao arranjo original de Plath” (ROLLYSON, 2015, p. 361) e editou os diários
sobreviventes, cortando “as referências à sua falta de educação e as críticas a Aurelia
Plath (op. cit, p. 340, grifo do autor).
3 O INSÓLITO: DO FANTÁSTICO AO INQUIETANTE E ABJETO – “THE
HORROR IS THE SUDDEN FOLDING UP AND AWAY OF THE PHENOMENAL
WORLD”14

3.1 O FANTÁSTICO DE TODOROV (1981)

Segundo Todorov (1981) a definição do fantástico perpassa diretamente uma


espécie de ambiguidade: em um mundo ficcional que guarda semelhanças com o
nosso mundo, onde fadas e gnomos não existem “[...] se produz um acontecimento

14
In: PLATH, Sylvia. The Unabridged Journals of Sylvia Plath, 1950-1962. New York:
Anchor Books, 2000, p. 263. “O horror é um repentino dobrar-se e distanciar-se do mundo fenomenal”,
em tradução livre.
24

impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar” (p. 15), um
acontecimento sobrenatural. Em quem o percebe, persiste a dúvida: “ou se trata de
uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem
sendo o que são” ou o contrário, tal acontecimento realmente aconteceu e “é parte
integrante da realidade, e então esta realidade está regida por leis que
desconhecemos” (op. cit, p. 15). A esse fenômeno da “incerteza”, o autor dá o nome
de “vacilação”: “O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece
mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural”
(TODOROV, 1981, p. 16).
Segundo o pensamento todoroviano “tanto a incredulidade total como a fé
absoluta nos levariam fora do fantástico: o que lhe dá vida é a vacilação” (TODOROV,
1981, p. 18). Mas a quem pertence essa “vacilação”? Pode ser o personagem,
segundo o ponto de vista do autor “é ele quem, ao longo da intriga”, da trama, do
enredo, “terá que optar entre duas interpretações” [a sobrenatural ou a cética, a real
ou a imaginária] (op. cit., p. 18). No entanto, o efeito do texto fantástico depende
principalmente da vacilação do leitor – “a primeira condição do fantástico” – porque
mesmo que o personagem da história esteja vacilando, o efeito se perde se o leitor
souber quais são os “dois sentidos” (TODOROV, 1981, p. 19). Desse modo, “o
fantástico implica, pois, uma integração do leitor com o mundo dos personagens” e
pode ser definido “pela percepção ambígua que o próprio leitor tem dos
acontecimentos relatados” (op. cit., p.19). A função do leitor, e não “o leitor real”, está
"implícita" no texto, assim como “a função do narrador” (op. cit., p. 19).
Por essa perspectiva do fantástico todoroviano, não necessariamente a
vacilação estará “representada” dentro da obra, ainda que na maioria dos textos
fantásticos esteja: há exceções em que os personagens creem “fielmente” na vida do
real ou do sobrenatural (TODOROV, 1981, p.19). Segundo o autor, não ocorre nesses
casos, o processo cunhado por ele como “identificação”, vez que a integração entre
leitor/personagem já mencionada aqui é “uma condição facultativa do fantástico” (op.
cit., p. 19).
A definição do fantástico de Todorov, desse modo, perpassa o cumprimento de
três condições: a primeira, na qual há a necessidade do texto de obrigar o leitor “a
considerar o mundo dos personagens como um mundo de pessoas reais” e
consequentemente “a vacilar entre uma explicação natural e uma explicação
25

sobrenatural dos acontecimentos evocados” (TODOROV, 1981, p. 19-20); a segunda,


o personagem pode sentir essa “vacilação”: “de tal modo, o papel do leitor está, por
assim dizê-lo, crédulo a um personagem e, ao mesmo tempo, a vacilação está
representada, converte-se em um dos temas da obra” (op. cit., p. 20); e a terceira, na
qual o leitor deve ignorar “tanto a interpretação alegórica como a interpretação
poética” (op. cit., p. 20, grifo do autor). Segundo o autor, a primeira e a terceira são as
mais importantes e “constituem verdadeiramente o gênero”, enquanto a segunda é
opcional (TODOROV, 1981, p. 20).
Segundo Todorov (1981), a primeira condição está relacionada “ao aspecto
verbal do texto”, as visões ambíguas (p. 20). A segunda, por um lado, remete ao

aspecto sintático [...] implica a existência de um tipo formal de unidades que


se refere à apreciação dos personagens, relativa aos acontecimentos do
conto”, espécies de “unidades” que “poderiam receber o nome de reações,
por oposição às ações que formam habitualmente a trama da história.
(TODOROV, 1981, p. 20)

E por outro lado, também remete ao “aspecto semântico”, visto que trata de um
“tema representado”, é a percepção (Todorov, 1981 p. 20). E a terceira condição “tem
um caráter mais geral” e vai além da divisão em três aspectos por se tratar “de uma
eleição entre vários modos (e níveis) de leitura” (op. cit., p. 20).
Além dessas três condições, o fantástico todoroviano não se caracteriza
necessariamente pelo elemento sobrenatural, por este ser muito amplo (TODOROV,
1981, p. 20); e nem pela mera existência de “uma sensação de medo nos
personagens” (op. cit., p. 20) – o medo se relaciona comumente ao fantástico, mas
não é uma das suas condições. Além disso, “não é possível definir o fantástico como
oposto à reprodução fiel da realidade, ao naturalismo” (op. cit., p. 20). Desse modo,
segundo Todorov (1981), o que caracteriza o fantástico é a “vacilação” – seja entre o
real e o ilusório – posto que há dúvidas “não de que os acontecimentos tivessem
acontecido, mas sim de que nossa maneira de compreendê-los tivesse sido exata”
(op. cit., p. 21); seja entre o real e o imaginário – em que “perguntamo-nos se o que
se acredita perceber não é, de fato, produto da imaginação” (TODOROV, 1981, p. 21).

3.2 O INQUIETANTE DE FREUD (1919)


26

Para Freud (1919), o inquietante (unheimlich, em alemão no original;


uncanning, da tradução para o inglês) é um dos domínios da estética, a qual não está
“limitada à teoria do belo, mas definida como teoria das qualidades de nosso sentir”
(p. 187). O inquietante está relacionado, portanto, “ao que é terrível, ao que desperta
angústia e horror”, ainda que não seja utilizado com um “sentido bem determinado”
(FREUD, 1919, p. 188). Na busca da conceituação do termo, o inquietante freudiano
é definido a partir da sua relação com seu aparente oposto: o inquietante “é aquela
espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante
familiar” (op. cit., p. 188). Freud vai buscar nas raízes da língua alemã essa dicotomia
de significados:

A palavra alemã unheimlich é evidentemente o oposto de heimlich, heimisch,


vertraut [doméstico, autóctone, familiar], sendo natural concluir que algo é
assustador justamente por não ser conhecido e familiar. Claro que não é
assustador tudo o que é novo e não familiar; a relação não é reversível. Pode-
se apenas dizer que algo novo torna-se facilmente assustador e inquietante;
algumas coisas novas são assustadoras, certamente não todas. Algo tem de
ser acrescentado ao novo e não familiar, a fim de torná-lo inquietante.
(FREUD, 1919, p. 188)

Freud (1919), apresenta a dicotomia – o familiar e o não familiar, infamiliar –


observando que o elemento inquietante necessita de um elemento de “incerteza
intelectual” como condição de existência: “O inquietante seria sempre algo em que
nos achamos desarvorados” (p. 188). Nesse sentido, indo mais a fundo na busca do
significado da dicotomia heimlich/unheimlich, Freud (1919) define que heimlich possui
outro núcleo de significado, que “não sendo opostos, são alheios um ao outro” (p.
190). Além do já mencionado significado “do que é familiar, aconchegado”, o termo
também está ligado ao que é “escondido, mantido oculto” (p. 191).
Desse modo, o autor define que unheimlich seria tudo o que deveria
permanecer secreto, oculto, mas apareceu” (FREUD, 1919, p. 191) e não apenas
aquilo que não é familiar. Sendo assim, o unheimlich tem seu significado calcado na
“ambiguidade”, no que está entre o limiar de ambos, coincidindo “com o seu oposto”:
“unheimlich é, de algum modo, uma espécie de heimlich” (op. cit., p. 191).
No que concerne ao inquietante na literatura, Freud (1919), baseado em
Jentsch (s/d), observa que a dúvida é o principal recurso na implementação desse
efeito, deixando o leitor com uma sensação de “incerteza” em segundo plano, em que
27

persiste o efeito emocional, sem que quem lê o texto literário seja instigado a uma
investigação (vez que tal efeito seria perdido) (FREUD, 1919, p. 192). Tal incerteza,
inicia-se na construção da atmosfera do texto, “não nos permitindo saber, claro que
deliberadamente, se está nos levando ao mundo real ou a um mundo fantástico
qualquer” (op, cit., p. 194).
Ao final, “o leitor” pode ser “informado dos pressupostos da ação, que até então
lhe foram ocultados”, gerando nele um sentimento de “total perplexidade” e não de
“esclarecimento” do inquietante (FREUD, 1919, p. 196). Exemplos do inquietante na
ficção e na vida real são citados por Freud (1919), como objetos ou seres inanimados
que podem adquirir vida, são exemplos de situações inquietantes, pela “suspeita de
que processos automáticos – mecânicos – podem se esconder por trás da imagem
habitual que temos do ser vivo” (p. 192). Nesses casos, o inquietante pode vir também
da semelhança de algo “inanimado com o vivo”, como a fobia que muitos mantêm em
relação a bonecas, que o autor relaciona a “um desejo infantil ou tão somente uma
crença infantil” (FREUD, 1919, p. 194-196).
Há também o resgate do “tema do duplo” (grifo do autor): segundo a teoria de
Rank, mencionada por Freud (1919), “o duplo foi originalmente uma garantia contra o
desaparecimento do Eu”, um desafio contra a finitude da vida perante a morte: a alma
com sua imortalidade “foi provavelmente o primeiro duplo do corpo” (p. 197). Nesse
sentido, Freud (1919) observa que o duplo nasce em um estágio que ele nomeia como
“narcisismo primário”, mas ultrapassa tal fase (p. 197). Na fase posterior ao narcisismo
inicial – “a ideia do duplo” – existe a possibilidade do Eu “adquirir novo teor dos
estágios de desenvolvimento posteriores da libido”:

No Eu forma-se lentamente uma instância especial, que pode contrapor-se


ao resto do Eu, que serve à auto-observação e à autocrítica, que faz o
trabalho da censura psíquica e torna-se familiar à nossa consciência
[Bewußtsein] como consciência [Gewissen]. No caso patológico do delírio de
estar sendo observado, ela torna-se isolada, dissociada do Eu, discernível
para o médico. O fato de que exista uma instância assim, que pode tratar o
restante do. Eu como um objeto, isto é, de que o ser humano seja capaz de
auto-observação, torna possível dotar de um novo teor a velha concepção do
duplo e atribuir-lhe várias coisas, principalmente aquilo que a autocrítica vê
como pertencente ao superado narcisismo dos primórdios. (FREUD, 1919, p.
197, grifo do autor).
28

Sendo assim, podem ser incorporadas ao duplo, tanto “esse conteúdo


repugnante para a crítica do Eu”, quanto “todas as possibilidades não realizadas de
configuração do destino” que são associadas com a fantasia e, também, com a
totalidade das “tendências do Eu que não puderam se impor devido a circunstâncias
desfavoráveis” e das “decisões volitivas cortadas” que criam a “ilusão do livre-arbítrio”
(FREUD, 1919, p. 198). No entanto, na teoria freudiana, “o caráter inquietante” do
duplo não provém de tais “processos psíquicos patológicos” (FREUD, 1919, p. 198);
o que explicita “o esforço defensivo que o projeta para fora do Eu como algo estranho
no duplo” é “o fato de o duplo ser criação de um tempo remoto e superado, em que
tinha um significado mais amigo”, (op. cit., 1919, p. 198). Nas fases posteriores ao
“narcisismo primário”, então “o duplo tornou-se algo terrível” (op. cit., 1919, p. 198).
Outro elemento "inquietante" é a “repetição não deliberada” que transforma o
que “ordinariamente é inofensivo” em “algo fatal, inelutável, quando normalmente
falaríamos apenas de acaso” (FREUD, 1919, p. 199, grifo do autor). Segundo a teoria
de Freud, o que torna a repetição algo inquietante, “em determinadas condições” junto
a “certas circunstâncias” que remontam “ao desamparo de alguns estados oníricos” é
o “recuo a determinadas fases da evolução o sentimento do Eu, uma regressão a um
tempo em que o Eu ainda não se delimitava nitidamente em relação ao mundo externo
e aos outros” (op. cit,. p. 198). Em relação ao efeito inquietante da repetição, Freud
(1919) observa que “pode remontar à vida psíquica infantil”:

no inconsciente psíquico nota-se a primazia de uma compulsão de repetição


vinda dos impulsos instintuais, provavelmente ligada à íntima natureza dos
instintos mesmos, e forte o suficiente para sobrepor-se ao princípio do prazer,
que confere a determinados aspectos da psique um caráter demoníaco,
manifesta-se claramente ainda nas tendências do bebê e domina parte do
transcurso da psicanálise do neurótico. As considerações anteriores nos
levam a crer que será percebido como inquietante aquilo que pode lembrar
essa compulsão de repetição interior. (FREUD, 1919, p. 199)

Outro exemplo do inquietante trazido por Freud (1919), que também se encaixa
na questão de um sentimento reprimido inconscientemente que retorna, assim como
o duplo e a fobia de objetos inanimados ganharem vida, é o temor do “mau-olhado”:
quem possui “algo valioso” e teme receber a inveja dos outros, na verdade, receia “a
inveja que sentiria no caso inverso” (p. 200). Dentro da teoria freudiana, esses
exemplos se relacionam ao termo cunhado como “onipotência do pensamento” e a
fase do “animismo” no desenvolvimento humano: o segundo se caracteriza pela
29

povoação primitiva do mundo por “espíritos” e “pela superestimação narcísica dos


próprios processos psíquicos, a onipotência dos pensamentos e a técnica da magia”,
em que os seres humanos tendem a explicar o que está fora do aparentemente à
parte da explicação racional da realidade com a “atribuição de poderes mágicos” e o
sobrenatural (FREUD, 1919, p. 201).
Segundo o psicanalista austríaco, durante a nossa evolução individual psíquica
“passamos por uma fase correspondente a esse animismo dos primitivos”, deixando
em nós “vestígios e traços ainda capazes de manifestação”, e que tudo o que hoje
nos parece “inquietante” toca nesses “restos de atividade psíquica animista”
estimulando sua manifestação (FREUD, 1919, p. 201). Desse modo, dentro da teoria
freudiana “todo afeto de um impulso emocional, não importando sua espécie, é
transformado em angústia pela repressão” (op. cit., p. 201).
No entanto, Freud (1919) observa que “o elemento angustiante é algo reprimido
que retorna”, e que esse elemento angustiante “seria justamente o inquietante”, não
importando se sua origem provém da própria angústia “ou carregado de outro afeto”
(p. 201). O autor interpreta essa possibilidade como a possível “natureza secreta do
inquietante” e diz que o uso da linguagem converteu o heimlich em “seu oposto, o
unheimlich”, o qual “não é realmente algo novo ou alheio, mas algo há muito familiar
à psique, que apenas mediante o processo da repressão alheou-se dela” (op. cit., p.
201). Freud (1919) se atêm à definição de Schelling: “o inquietante é algo que deveria
permanecer oculto, mas apareceu” (p. 201).
A partir dessa definição, Freud (1919) apresenta o exemplo do inquietante
relacionado à morte e ao retorno dos mortos – a ressurreição – que novamente
remonta aos pensamentos dos primórdios: “em nenhum outro âmbito nossos
pensamentos e sentimentos mudaram tão pouco” (p. 201). Essa "imobilidade” no que
concerne à morte vem de dois fatores, “a força de nossas reações emotivas originais
e a incerteza de nosso conhecimento científico”:

Nossa biologia ainda não pôde decidir se a morte é o destino necessário de


todo ser vivo ou apenas um incidente regular, mas talvez evitável, dentro da
vida. É certo que a frase “Todos os homens são mortais” vem apresentada,
nos manuais de lógica, como exemplo de proposição universal, mas para
nenhuma pessoa ela é evidente, e hoje, como outrora, nosso inconsciente
não tem lugar para a ideia da própria mortalidade. (FREUD, 1919, p. 202)
30

Segundo a teoria freudiana “nosso inconsciente não tem lugar para a ideia da
própria mortalidade” e por isso “o primitivo medo dos mortos”, ou do “retorno dos
mortos”, ainda está “tão forte dentro de nós”, levando a “manifestar-se quando há
alguma solicitação'' (FREUD, 1919, p. 202). Dentro do espectro dessa fobia, está
também “tudo o que se relaciona com a morte, com cadáveres”, como uma “casa mal-
assombrada”:

em algumas línguas modernas a nossa expressão uma casa unheimlich pode


ser vertida apenas por uma casa mal-assombrada. Poderíamos ter iniciado
nossa indagação com esse exemplo de Unheimlichkeit, talvez o mais forte de
todos, mas não o fizemos porque nele o inquietante está muito mesclado ao
horripilante, e em parte é por ele coberto. (FREUD, 1919, p. 201, grifos do
autor).

Logo, a repressão é a “condição necessária para que o primitivo retorne como


algo inquietante” e ela “subsiste” no espectro do medo da morte, em que “condições
remotas e raramente concretizadas” se sobrepõem a nossa racionalidade “e a postura
emocional ante a morte, originalmente bastante equívoca e ambivalente” foi
abrandado em direção às “camadas superiores da vida psíquica, dando lugar ao
inequívoco sentimento da piedade” (FREUD, 1919, p. 202). Por outro lado, o
inquietante muitas vezes também é atribuído além das fronteiras da morte:
normalmente atribuímos o inquietante a “uma pessoa viva”, se e “quando lhe
atribuímos más intenções” (op. cit. p, 202). No entanto, só isso não torna a pessoa
inquietante: “é preciso igualmente que essas intenções de nos prejudicar se realizem
com a ajuda de forças especiais” (op. cit,. p, 202).
Tais “força especiais”, “forças secretas” ou sobrenaturais, encontram-se no
"terreno do animismo”, e se aplicam também ao inquietante relacionado à "epilepsia”
e à “loucura”: “os leigos veem nelas a manifestação de forças que não suspeitavam
existir no seu próximo, mas que sentem obscuramente mover-se em cantos remotos
de sua própria personalidade” (FREUD, 1919, p. 203).
Segundo Freud (1919) “o unheimlich” pode ser o oculto-familiar, o “heimlich-
heimisch”, que sofreu “uma repressão e dela retornou, e que tudo inquietante satisfaça
tal condição” (p. 204). Nesse sentido, o autor estabelece “uma distinção entre o
inquietante que é vivenciado e aquele que é apenas imaginado, ou sobre o qual se lê:
o inquietante vivenciado “depende de condições muito mais simples, mas abrange
31

casos muito menos numerosos”, nesse caso “ele se enquadra plenamente em nossa
tentativa de solução, que sempre remonta a algo reprimido, há muito tempo
conhecido” (FREUD, 1919, p. 206).
Aquilo que superamos, permanece no nosso inconsciente: “as velhas”
convicções ainda subsistem dentro de nós, à espreita de confirmação” (FREUD, 1919,
p. 206). Mas “quando acontece algo em nossa vida que parece trazer alguma
confirmação às velhas convicções abandonadas” enquanto “não nos sentimos
inteiramente seguros” das novas, “temos a sensação do inquietante” (op. cit., p. 206).
Por outro lado, “o contraste entre reprimido e superado” não se aplica da mesma forma
“o inquietante da literatura” da mesma forma, porque os universos ficcionais têm
“como premissa de sua validade, o fato de seu conteúdo não estar sujeito à prova da
realidade” (op. cit., p. 207).
Desse modo, a ambientação do texto ficcional está ligada à liberdade do fazer
literário:
Entre as muitas liberdades do criador literário está a de escolher a seu bel-
prazer o mundo que apresenta, de modo que este coincida com a realidade
que nos é familiar ou dela se distancie de alguma forma. O fantástico ou
sobrenatural não podem ter influência inquietante dentro do texto literário,
porque para que surja o sentimento inquietante é necessário [...] um conflito
de julgamento sobre a possibilidade de aquilo superado e não mais digno de
fé ser mesmo real, o que não existe em alguns textos de ficção, como as
fábulas. Sendo assim, no reino da ficção deixa de ser inquietante muita coisa
que o seria se ocorresse na vida, se o escritor conseguir manter os
pressupostos dessa realidade poética. (FREUD, 1919, p. 207-8, grifos do
autor)

No entanto, a situação muda de figura se o escritor, "aparentemente" conseguir


se mover “no âmbito da realidade comum” e, por consequência, “também aceitar as
condições todas que valem para a gênese da sensação inquietante nas vivências
reais”, levando o que produz o efeito inquietante de uma para outra (FREUD, 1919, p.
208). Porém, dentro do fazer literário, o escritor tem o poder de “exacerbar e multiplicar
o inquietante muito além do que é possível nas vivências”. Ele pode nos enganar “ao
prometer-nos a realidade comum e depois ultrapassá-la” (op. cit., p. 208). Inicialmente,
o leitor reage a “suas ficções” tal como reagiria às suas “próprias vivências”: e ao notar
“o engano, é tarde demais, o autor atingiu seu propósito”, mesmo que parcialmente
(FREUD, 1919, p. 208). Pois, o leitor pode ficar no final com “um sentimento de
insatisfação, uma espécie de desgosto pelo malogro tentado” (op. cit., p. 208).
32

Para evitar esse efeito indesejado, o autor pode usar “um meio” para escapar
ao “protesto” do leitor e “melhorar as condições para atingir seu propósito”:

Consiste em não nos deixar perceber, durante muito tempo, que premissas
escolheu para o mundo por ele suposto, ou em retardar até o fim, com astúcia
e engenho, tal esclarecimento decisivo. No geral, porém, cumpre-se aí o que
enunciamos: a ficção cria possibilidades de sensação inquietante, que não se
acham na vida. (FREUD, 1919, p. 208)

No entanto, segundo Freud (1919), essas “complicações” se aplicam apenas


ao “inquietante que se origina daquilo que foi superado” (p. 208). Segundo o
pensamento freudiano “o inquietante que vem de complexos reprimidos é mais
resistente” e assim persiste inquietante tanto na vida real quanto na ficção (op. cit., p.
208). Assim, o inquietante que nasce daquilo que foi superado “mostra esse caráter
na vida e na obra que se situa no terreno da realidade material, mas pode perdê-lo
nas realidades fictícias, criadas pelo autor” (op. cit., p. 208).

3.3 O ABJETO DE KRISTEVA (1982)

Segundo Julia Kristeva (1982), o abjeto não possui, propriamente, um objeto


de nítida definição, não possui “um objeto definível”15 (KRISTEVA, 1982, p. 01, grifo
da autora): ele não tem um ob-jeto [sic.] facilmente nomeado ou imaginado. Segundo
a autora, o abjeto possui apenas uma semelhança com o ob-jeto e há de se manter
“opposed to I” [oposto ao Eu] (op. cit., p. 01). No entanto, o objeto, em seu processo
de oposição, equilibra o sujeito “dentro de uma textura frágil de um desejo por
significado” e o torna “incessante e infinitamente”16 homólogo a ele, o objeto
(KRISTEVA, 1982, p. 02). Enquanto o abjeto é radicalmente “excluído” e arrasta o
sujeito para o lugar “onde o significado colapsa” (KRISTEVA, 1982, p. 02).17
Nesse sentido, o abjeto é “um certo ego que emerge de seu senhor, um
superego”18 e foi expulso por ele (KRISTEVA, 1982, p. 02, grifos da autora). Porém, a
abjeto escapa do seu local de “banimento” desafiando seu “mestre”, indo em busca

15
[...] a definable object. Em tradução livre.
16
[...] within the fragile texture of a desire for meaning [...] ceaselessly and infinitely. Em tradução
livre.
17
[...] excluded [...] where meaning colapses. Em tradução livre.
18
[...] a certain ego that merged with its master, a superego. Em tradução livre.
33

de “uma descarga, uma convulsão, um grito”19(op. cit., p. 02). Segundo Kristeva


(1982), para cada “ego” existe um objeto e consequentemente, para cada "superego"
existe um abjeto (p. 02). Segundo a autora, o abjeto se encontra nos domínios de um
surgimento “massivo e repentino” de “inquietação”, algo que anteriormente pode ter
sido “familiar” e retorna para atormentar o sujeito, o eu, como algo “radicalmente
separado” ou repugnante: “algo que eu não reconheço como uma coisa”20
(KRISTEVA, 1982, p. 02, grifo da autora).
Logo, Kristeva (1982) observa que o abjeto inicialmente se encontra no domínio
da náusea, do vômito provocado pela sujeira, dos dejetos e lixos: “aversão à comida
talvez seja a forma mais elementar e arcaica do abjeto”21 (p. 02). Tal náusea, separa
o sujeito “da mãe e do pai que proferem isso”22: esse elemento é recusado, o “signo”
do desejo do sujeito, não é assimilado, mas expulso (KRISTEVA, 1982, p. 03). Nesse
sentido, a comida não é considerada um “outro”, o sujeito neste ato expulsa a si
mesmo, cospe e abjeta a si mesmo, dentro “do mesmo movimento”23 através do qual
o “eu” reivindica estabelecer-se a si mesmo (op. cit., p. 03).
Nesse processo, o “eu” vomita silenciosa e violentamente, dá à luz a si mesmo:
uma convulsão que está cimentada no “sistema simbólico”, mas que sem poder ou
querer “tornar-se integrado para responder a isso, reage, abjeta”24 (KRISTEVA, 1982,
p. 03). Dentro do abjeto, há o elemento do “cadáver”, aquilo que “irremediavelmente
falha, é latrina e morte”25; aquilo que de forma violenta perturba quem o confronta
“como uma tentativa frágil e falaciosa”26 (op. cit., p. 03). Em frente a uma “morte
significada”27, o sujeito é levado a compreender, reagir ou aceitar a morte (op. cit., p.
03).
Nesse sentido, tanto “a refuta quanto o cadáver” mostram ao sujeito aquilo que
o ser humano descarta para sobreviver: ali o “eu” está nos limites da condição do ser

19
[...] banishment [...} master [...] a discharge, a convulsion, a crying out. Em tradução livre.
20
[...] massive and sudden […] uncanniness […] radically separate […] a something that I do
not recognize as a thing. Em tradução livre.
21
[...] food loathing is perhaps the most elementary and most archaic form of abjection. Em
tradução livre.
22
from the mother and father who proffer it. Em tradução livre.
23
the same motion. Em tradução livre.
24
[...] symbolic system [...] to become integrated in order to answer to it, it reacts [...] It abjects.
Em tradução livre.
25
[...] irremediably come a cropper, is cesspool, and death. Em tradução livre.
26
[...] as fragile and fallacious chance. Em tradução livre.
27
[...] signified death. Em tradução livre.
34

humano “como um ser vivo” 28 (KRISTEVA, 1982, p. 03). Esses dejetos são expelidos
para que o sujeito possa continuar a viver até que “nada mais reste” no corpo e “caia
além do limite – cadere, cadáver”29 (op. cit., p. 03).
O “eu” se torna o cadáver, que não repele, mas é repelido: “a borda se tornou
um objeto”30 (op. cit., p. 03-4). Como o sujeito pode “ser” sem fronteiras, sem limite?
O sujeito torna-se “abjetado” em seu próprio mundo, e “privado do mundo”31; o “eu”
perde a consciência (op. cit., p. 04). Essa "perda de consciência" do eu, é “a quebra
do mundo que eliminou as bordas” 32, na perspectiva de Kristeva (1982, p. 04).
Pela perspectiva de Kristeva (1982), a abjeção não é causada meramente pela
“falta de limpeza ou de saúde”, mas sim aquilo que perturba “a identidade, o sistema,
a ordem” e não respeita “fronteiras, posições, regras” e o que está no limiar: “o limiar,
a ambíguo, o composto”33 (p. 04). Por outro lado, segundo a autora, aquele que
apenas nega a “moralidade” não é abjeto, porque pode existir “grandeza na
amoralidade”34 (op. cit., p. 04).
Enquanto, pelo contrário, a abjeção é “imoral, sinistra, calculista, obscura”35,
um terror que “dissimula” (KRISTEVA, 1982, p. 04). Logo, sobre o abjeto em si, a
autora observa que ele “simultaneamente procura e pulveriza” o sujeito e encontra
sua maior força quando o sujeito, cansado de suas tentativas infrutíferas de se
identificar com “algo do lado de fora”36 e descobre o “impossível” dentro de si mesmo
e percebe que não é o outro o “abjeto” (op. cit., p. 05).
Nesse sentido, o abjeto do eu seria a forma culminante dessa experiência, na
qual todos os objetos do sujeito são meramente baseados em “the inaugural loss”
[perda inaugural] que funda seu próprio ser (KRISTEVA, 1982, p. 05). Logo, a abjeção
de si mesma, mostra que toda abjeção é o reconhecimento de que o desejo em
qualquer ser é fundado. Por essa perspectiva, a psicanálise retém o produto nomeado
como o objeto de desejo, o qual é mais ou menos fetichizado (op. cit., p. 05). No

28
[...] refuse and corpses [...] as a living being. Em tradução livre.
29
[...] nothing remains [...] falls beyond the limit–cadere, cadáver. Em tradução livre.
30
[...] the border has become an object. Em tradução livre.
31
[...] abjected [...] deprived of world. Em tradução livre.
32
[...] the breaking down of a world that has erased its borders. Em tradução livre.
33
[...] lack of cleanliness or health. […] identity, system, order […] borders, positions, rules […]
the in-between, the ambiguous, the composite. Em tradução livre.
34
[...] morality [...] grandeur in amorality. Em tradução livre.
35
[...] immoral, sinister, scheming, and shady. Em tradução livre.
36
[...] simultaneously beseeches and pulverizes [...] something on the outside. Em tradução
livre.
35

entanto, segundo Kristeva (1982), a experiência do desejo em si mesmo, ao ser do


objeto, leva à compreensão de que o abjeto do eu é o único significado da abjeção. A
partir daí, a autora observa que o significante da abjeção é a “literatura”, (op. cit., p.
05).
Na perspectiva de Kristeva (1982), a abjeção pode constituir para alterego, na
lógica da castração, “o desvio das manobras perversas apresenta-se com seu próprio
corpo e ego como os não-objetos mais preciosos”37 (p. 05). O corpo e o ego, não são
mais vistos por si mesmos, mas estão perdidos e abjetos (op. cit., p.05). Segundo a
autora, o abjeto se diferencia essencialmente do “inquietante” de Freud, por ser “mais
violento” e ser elaborado por uma falha em “reconhecer sua espécie” (KRISTEVA,
1982, p. 05). Nesse sentido, nada na abjeção é familiar, mesmo “a sombra de uma
memória”38 (op. cit., p. 05). Então, Kristeva (1982) traz o exemplo de “uma criança
que engoliu seus pais muito cedo”39 e para se recuperar rejeita e vomita tudo o que
lhe foi dado, todos os objetos: antes que essas coisas sejam significáveis para ela, a
criança as expulsa e “constitui seu próprio território, baseado pelo abjeto”40 (p. 06).
A partir deste exemplo, a autora introduz a questão do medo: “o medo
sedimenta seus compostos conjugados a outro mundo, vomitado, afastado, perdido” 41
(KRISTEVA, 1982, p. 06). Fora do torpor causado pela ausência do corpo da mãe da
criança, acompanhado da aversão, há o medo. Nesse sentido, o fóbico não tem outro
objeto que o abjeto: enquanto o medo “tão logo surge, tão logo desaparece como em
uma miragem”42 e impregna “todas as palavras da língua com a não existência”43 (op.
cit., p. 06). Então, o medo é “colocado entre parênteses”, discurso que só aparecerá
sustentável “apenas se confrontado com o outro, incessantemente”, um fardo ao
mesmo tempo repelente e repelido, “um poço profundo de memória que é inalcançável
e íntimo”44 (op. cit., p. 06). Relacionando a questão do medo na teoria de Kristeva,
está o inconsciente:

37
[...]turning away from perverse dodges, presents himself with his own body and ego as the
most precious non-objects. Em tradução livre.
38
[...] the shadow of a memory. Em tradução livre.
39
[...] a child who has swallowed up his parents too soon. Em tradução livre.
40
[…] constitutes his own territory, edged by the abject. Em tradução livre.
41
Fear cements his compound, conjoined to another world, thrown up, driven out, forfeited. Em
tradução livre.
42
[...] sooner has it cropped up than it shades off like a miragem. Em tradução livre.
43
[...] all words of the language with nonexistence. Em tradução livre.
44
[…] only if it ceaselessly confront that otherness […] a deep well of memory that is
unapproachable and intimate. Em tradução livre.
36

A teoria do inconsciente, como é bem conhecida, pressupõe uma repressão


de conteúdos (afetos e apresentações) que, desse modo, não tem acesso à
consciência, mas efeitos dentro das modificações do sujeito, ora pelo
discurso (atos falhos etc), ora pelo corpo (sintomas), ora por ambos
(alucinações etc). Como correlato à noção de repressão, Freud argumenta
que a negação é um meio de perceber a neurose e a rejeição (repúdio) é um
meio de situar a psicose45. (KRISTEVA, 1982, p. 07)

Essa assimetria das duas repressões se acentua porque “a negação está


relaciona ao objeto enquanto o repúdio afeta o desejo em si”46, Freud nomeia esse
processo como "repúdio em Nome do Pai" (KRISTEVA, 1982, p. 07). No entanto, em
face do ab-jeto (a fobia e a divisão do ego), Kristeva (1982) levanta a possibilidade de
que “essas articulações de negatividade partam para o inconsciente”47 (p. 07) e
possam ter se tornado inoperante. Os conteúdos inconscientes ‘permanecem
excluídos de um modo estranho “não radical o bastante para permitir uma segura
diferenciação” entre sujeito e objeto, embora com “nitidez suficiente para uma posição
defensiva a ser estabelecida”48 (p. 07).
O abjeto, existe para aquele dejeto que se coloca, situa-se e se separa e,
portanto, “dispersa invés de obter suas cargas, desejos, pertences ou refutas”49
(KRISTEVA, 1982, p. 08). O abjeto em vez de se questionar pelo seu ser, pergunta-
se sobre o seu lugar: o abjeto é um “extraviado” (op. cit., p. 08). É nesta terra do
esquecimento que o abjeto obtém seu prazer e “esse prazer por si só faz com que o
abjeto exista como tal”50 (op. cit., p. 08-09). O sujeito é engolido por esse prazer, mas
o Outro, em troca, mantém o sujeito longe do afogamento ao tornar o prazer
repugnante, levando à compreensão do porquê de “muitas vítimas do abjeto sejam as
vítimas fascinadas do prazer”51 (op. cit., p. 09).

45
The theory of the unconscious, as is well known, presupposes a repression of contents
(affects and presentations) that, thereby, do not have access to consciousness but effect within the
subject modifications, either of speech (parapraxes, etc.), or of the body (symptoms), or both
(hallucinations, etc.). As correlative to the notion of repression, Freud put forward that of denial as a
means of figuring out neurosis, that of rejection (repudiation) as a means of situating psychosis. Em
tradução livre.
46
[...] denial's bearing on the object whereas repudiation affects desire itself. Em tradução livre.
47
[...] those articulations of negativity germane to the unconscious. Em tradução livre.
48
{...] not radically enough to allow for a secure differentiation [...] clearly enough for a defensive
position to be established. Em traduções livres.
49
[...] strays instead of getting his bearings, desiring, belonging, or refusing. Em tradução livre.
50
[...] that jouissance alone causes the abject to exist as such. Em tradução livre
51
[...] so many victims of the abject are its fascinated victims. Em tradução livre.
37

Nesse sentido, a abjeção é além de tudo, ambiguidade: conhecida como um


perigo constante, também é composta em si mesma “por julgamento e afeto, por
condenação e anseio, por sinais e desejos” (op. cit., p. 09-10). A abjeção preserva o
arcaísmo do pré-objeto, “na violência imemorial com a qual um corpo se vê separado
de outro para que possa existir”, mantendo aquela noite “na qual um panorama da
coisa significante desapareça e onde apenas o afeto imponderável seja realizado” 52
(op. cit., p. 10).
Nesse sentido, o sujeito pode ser afetado pelo que não apareceu ainda como
uma coisa, porque “leis, conexões e até estruturas de significado”53 governam e o
condicionam (KRISTEVA, 1982, p. 10). Logo, o abjeto é demarcado pelo fluxo
heterogêneo que também devolve abjeção e habita um “animal humano” esse que foi
“altamente alterado” (op. cit., p. 10). A abjeção está diretamente inserida na dicotomia
“Outro” e “Eu”:

O Eu experencia o abjeto apenas se um Outro esteja firmado no lugar do que


será o eu. Não com um outro com quem me identifico e incorporo, mas um
Outro que precede a mim e me possui e, através de tal posse causa o
surgimento do eu. A posse que precede o advento do eu: um ser-aí [Dasein
N.T.] do simbólico que um pai deve e não deve incorporar. O significado é
mesmo inerente ao corpo humano54. (KRISTEVA, 1982, p. 10, grifo da
autora)

Segundo Kristeva (1982), um espaço se delimita separando o abjeto do sujeito


e de seus objetos porque há uma repressão primária que nasce antes do surgimento
do eu de seus objetos e representações. Os objetos e representações, por sua vez,
dependem de uma “repressão secundária”, que aconteceu posteriormente “em uma
fundação enigmática que já foi delimitada”, em seu retorno de forma fóbica, psicótica
e “na forma da moda mais imaginativa do abjeto, notifica-nos dos limites do universo

52
[...] of judgment and affect, of condemnation and yearning, of signs and drives [...] in the
immemorial violence with which a body becomes separated from another body in order to be [...] in
which the outline of the signified thing vanishes and where only the imponderable affect is carried out.
Em tradução livre.
53
[…] laws, connections, and even structures of meaning. Em tradução livre.
54
I experience abjection only if an Other has settled in place and stead of what will be "me." Not
at all an other with whom I identify and incorporate, but an Other who precedes and possesses me,
and_through such possession causes me to be. A possession previous to my advent: a being-there of
the symbolic that a father might or might not embody. Significance is indeed inherent in the human body.
Em tradução livre.
38

humano”55 (op. cit., p. 11). Nesse estágio, o inconsciente ainda não existe e é
elaborado “quando representações e afetos (amarrados ou não a representações)
moldam uma lógica"56, pois não estamos mais na esfera do inconsciente, mas no limite
da repressão primordial (op. cit., p. 11).
Nesse caso, o abjeto é um esboço de um “um sinal para um não-objeto”, nos
limites da “repressão primária”, podemos compreender que ele se aproxima por um
lado do “sintoma somático” e pelo outro da “sublimação no outro” (KRISTEVA, 1982,
p. 11). De um lado, o sintoma é uma linguagem que desiste, é “uma estrutura dentro
do corpo, um aliem não assimilável, um monstro, um tumor, um câncer” e não é
escutado pelos “mecanismos de escuta do inconsciente”57 (KRISTEVA, 1982, p. 11).
De outro, pelo contrário, a sublimação nada mais é do que “a possibilidade de nomear
o prenominal, o pré-objeto”, que na verdade é apenas “trans nominal, um trans
objeto”58 (op. cit., p. 11).
Por essa perspectiva, o abjeto é cercado pelo sublime, este não “no mesmo
momento da jornada”, mas é “o mesmo sujeito e fala os trazendo à existência”
(KRISTEVA, 1982, p. 11). O sublime, desse modo, não tem objeto como o abjeto,
porque o objeto do sublime se dissolve nas rupturas de “uma memória sem fundo”
(op. cit., p. 12). Então o sublime desencadeia, como sempre o fez, um jato de
“percepções de palavras” que expande a memória sem limites e o sublime é “um algo
adicionado” que expande o sujeito (op. cit., p. 12). Kristeva (1982) observa que o
abjeto pode aparecer como uma sublimação mais frágil e mais arcaica, de “um objeto
ainda inseparável” de um impulso: o abjeto é o pseudo objeto que se constitui antes,
mas que aparece apenas antes nas brechas da “repressão secundária” (p. 12).
Logo, o abjeto será o objeto da repressão original, este sendo “uma habilidade
de falar sobre o ser, sempre já prescrutado pelo Outro, para dividir, rejeitar, repetir”59
(KRISTEVA, 1982, p. 12). O abjeto confronta de um lado, naqueles estados frágeis

55
[...] on an enigmatic foundation that has already been marked off [...] and in more imaginary
fashion in the shape of abjection, notifies us of the limits of the human universe. Em tradução livre.
56
[...] when representations and affects (whether or not tied to representations) shape a logic.
Em tradução livre.
57
[...] a structure within the body, a nonassimilable alien, a monster, a tumor, a câncer. [...] the
listening devices of the unconscious. Em tradução livre.
58
[...] the possibility of naming the prenominal, the pre-objectal [...] trans-nominal, a trans-
objectal. Em tradução livre.
59
[...] the ability of the speaking being, always already haunted by the Other, to divide, reject,
repeat. Em tradução livre.
39

onde o homem “vagueia nos territórios do animal” e, por outro, dentro da nossa
“arqueologia pessoal”, nas nossas tentativas de se separar da entidade maternal (op.
cit., p. 12-13). Num sentido mais ampliado, “diacronia subjetiva” é uma pré-condição
do narcisismo, coexistindo e se fragilizando de forma permanente (op. cit., p. 13).
Dentro desse domínio, entra o conceito de Freud sobre a repressão ordinária:
na qual o que reprime “não pode manter-se pressionado” e onde o que reprime sempre
“empresta sua força e autoridade” do que aparentemente é muito secundário, a
linguagem (KRISTEVA, 1982, p. 13). Nesse sentido, a autora fala da instabilidade da
função simbólica da linguagem, na qual o aspecto da “proibição colocada no corpo
maternal” é o mais significativo, onde se constitui “um espaço estranho”, um khóra
(op. cit., p. 13). Em benefício do “Ego”, ou em detrimento do mesmo, o impulso serve
para relacionar o ainda “não-ego” com um “objeto” para constituir ambos, esse
movimento, em sua dicotomia (“dentro/fora, ego/não ego”), visa colocar o ego “um
centro no sistema solar dos objetos” (op. cit., p. 14).
No entanto, o signo reprime o khóra e seu “eterno retorno”, apenas com o
desejo como testemunha dessa pulsação primária, o qual, por sua vez, expatria o Ego
para outro sujeito e enxerga “a exatidão do Ego apenas como narcisista” (KRISTEVA,
1982, p. 14). O narcisismo aparece nesta teoria como “uma regressão para aposição
retardatária” do outro, “um retorno ao refúgio autocontemplativo, conservador e
autossuficiente”, (op. cit., p. 14). Nesse sentido, Julia Kristeva (1982) vê o abjeto como
uma espécie de “crise narcisista”, uma testemunha do “aspecto efêmero do estado”,
conhecido como narcisismo com “ciúme reprovador” (op. cit., p. 14). E em retorno, o
abjeto dá ao narcisismo sua classificação como “aparência” (op. cit., p. 14).
Por essa perspectiva, é na crise narcisista que a visão do abjeto é trazida à
tona: quando o superego interrompe o desejo que iria em direção ao outro ou o outro
“como seu papel demanda, não o preenche”, fazendo o desejo e seus significantes
“voltar ao mesmo”, perturbando “as águas de Narciso” (KRISTEVA, 1982, p. 14-15).
Nesse momento, há uma transferência para a repressão secundária, com sua
carga de “significados simbólicos”, os recursos da repressão primitiva, o abjeto. Nesse
sentido, é o luto por um objeto já perdido para sempre: ele quebra “a parede da
repressão” e seus julgamentos, traz o Ego de volta a sua fonte nos limites abomináveis
“do qual, para existir, o Ego se quebra”, atribui a ele "uma fonte do não-ego, trajeto e
morte” (op. cit., p. 15). Portanto, o abjeto é uma ressurreição “que passou pela morte”
40

do Ego, em uma alquimia que transforma com um novo significado de “morte que leva
ao começo da vida” (op. cit., p. 15).
Por sua vez, o abjeto está ligado à “perversão”, correlacionado ao superego: o
abjeto é perverso porque não abre mão ou assume “uma proibição, uma regra ou uma
lei”, mas as distorce e as corrompe (KRISTEVA, 1982, p. 15). Logo, a corrupção é
considerada nessa teoria como “a aparência socializada do abjeto” (op. cit., p. 16). A
aderência à moral e à lei é necessária porque o perverso se encontra no “inter espaço
do abjeto”, no meio, no limiar, no interdito, e a literatura parece ser escrita “fora dos
aspectos insustentáveis do perverso ou das posições do superego” (op. cit., p. 16).
Então, segundo Kristeva (1982), o escritor fascinado pelo abjeto, imaginando sua
lógica “se projeta nele, introjeta-o e, como consequência, perverte a linguagem”, o
estilo e o conteúdo (p. 16).
Porém, por outro lado, como sentido do abjeto, a literatura funciona como “juiz
e comparsa” do abjeto, o que também se aplica à literatura que o confronta
(KRISTEVA, 1982, p. 16). Essa escrita, para um sujeito “firmemente estabelecido” em
seu superego, necessariamente se encontra no intermediário, no inter espaço que
caracteriza a perversão e, por sua vez, provoca o abjeto (op. cit., p. 16). E esses
escritos apelam para “uma suavização do superego” e quem os escreve, implica “na
habilidade para imaginar o abjeto”, uma capacidade de se ver em seu lugar e colocá-
lo de lado “apenas por meio de deslocamento de jogo verbal” (op. cit., p. 16). Somente
após a “morte”, o escritor conseguirá escapar do abjeto, purificando o leitor do abjeto,
através da literatura (op. cit., p. 16).
Por outro lado, o abjeto está conectado ao sagrado porque acompanha “todas
as estruturas religiosas” e ela aparece para ser elaborada de uma nova maneira “no
momento do seu colapso” (KRISTEVA, 1982, p. 17). Segundo Kristeva (1982),
podemos distinguir diversas estruturas da abjeção, cada uma determinando “uma
forma específica do sagrado”: o abjeto tem o seu aspecto de exclusão, que coincide
com “o sagrado, vez que o constitui” (p. 17). O abjeto persiste como tabu em regiões
monoteístas, porém derivando para formas mais secundárias, como a transgressão
da lei e encontrando o pecado cristão ao final, ao se integrar “como uma ameaça à
alteridade, mas sempre nomeável, sempre totalizante” (op. cit., p. 17).
Então, a purificação, em seus vários meios, compõe a história das religiões e
termina com a “catarse par excellence” chamada arte, distante e próxima da religião
41

ao mesmo tempo (op. cit., p. 17). Fora do sagrado, o abjeto encontrou ressonâncias
mais arcaicas “que são culturalmente anteriores ao pecado” nas sociedades
primitivas. Em um mundo em que o Outro entrou em colapso, “a tarefa estética”
consiste em retraçar “os limites frágeis da fala” sendo mais próximo da sua aurora
para “a primazia inferior constituída pela repressão primária” (KRISTEVA, 1982, p. 17,
grifo da autora).

3.4 O INSÓLITO EM CONTOS DE SYLVIA PLATH

Petersen (2015) escreveu uma análise do conto “The Fifty-Ninth Bear”,


publicado na coletânea Johnny Panic and the Bible of Dreams and Othe Prose
Writings (PLATH, 1977). Petersen (2015) se baseia no “Inquietante” de Freud (1919)
e no Fantástico/Estranho de Todorov (1970) em sua análise, observando que Plath
conduz “sutilmente seu leitor do estranho, do insólito, ao sobrenatural” (p. 155).
Segundo a estudiosa, o insólito se encontra principalmente no final surpreendente, em
que a dúvida persiste no leitor, em torno do envolvimento do elemento sobrenatural
orquestrado pela esposa na morte do marido, assassinado pelo quinquagésimo nono
urso do título: “os indícios sobrenaturais”, ao longo do desenvolvimento do enredo,
“podem passar despercebidos”, apesar de haver certo estranhamento em relação ao
casal protagonista e alguns acontecimentos da história (PETERSEN, 2015, p. 156).
Nesse caso, o insólito se encontra no final, na “morte de Norton ao tentar
afastar o urso”, momento em que Petersen (2015) encontra detalhes que podem
apontar para o sobrenatural relacionado a tal acontecimento: “a sutileza de tais
afirmações, somada à coincidência do número cinquenta e nove, criam o insólito,
enquanto remetem ao fantástico” (p. 157). Há uma “incerteza” no conto, relacionada
ao desfecho da história, enquadrando-se no domínio do estranho:

The Fifty-Ninth Bear se enquadra na categoria do estranho (ou do estranho-


fantástico como veremos depois), visto que o leitor é levado a acreditar na
intervenção do sobrenatural por meio do narrador ao mesmo tempo em que
as leis da natureza não são alteradas no texto, o que dá a ele um caráter
insólito. Desde o começo da narrativa de Plath, percebem-se acontecimentos
estranhos; o elemento sobrenatural, no entanto, é introduzido apenas em seu
desfecho, ficando o estranhamento das páginas iniciais mais evidente após a
leitura da última. (PETERSEN, 2015, p. 157, grifo da autora)
42

Segundo a autora, “The Fifty-Ninth Bear” se enquadrada dentro do que o autor


russo Todorov (1970) chama de “estranho-puro”: são as narrativas onde existem
“acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leis da razão” dentro
da história, mas que mesmo assim são considerados “incríveis, chocantes, insólitos”
(PETERSEN, 2015, p. 157). O estranho todoroviano, segundo a autora “estranho-
fantástico”, ocorre quando o que, aparentemente, é racional recebe no fim uma
explicação sobrenatural: “quando acontecimentos inicialmente explicáveis
racionalmente conduzem personagem e leitor a acreditarem na intervenção do
sobrenatural, cria-se um caráter insólito, estranho” (op. cit., p. 157). Logo, os
acontecimentos do conto parecem “acontecimentos casuais”, quanto não, o que gera
o estranho: “o mundo natural segue suas regras, mas o recalcado ainda está por vir”
(op. cit., p. 165).
No conto em específico, a função do leitor fica explícita – função essa “implícita
no texto, inscrita precisamente, junto aos movimentos dos personagens” dentro do
fantástico de Todorov – e também contribui para o efeito de estranhamento, porque
“o leitor não conhece os fatos sobrenaturais antes dos personagens como ocorre em
outras narrativas” (PETERSEN, 2015, p. 158). Tanto o marido, Norton, quanto a
esposa, Sadie, não demonstram ciência do caráter sobrenatural dos acontecimentos.
Tais fatos permitem ao leitor desconfiar deles “só por meio das três frases do
narrador”, através das quais podemos tomar ciência do sobrenatural na obra, “sendo
justamente este estranhamento final provocado no leitor o responsável por seu caráter
não só insólito, como também fantástico” (op. cit., p. 158).
Petersen (2015) relaciona o estranho de Todorov (1970) com o inquietante
de Freud (1919), observando que o termo “Unheimlich” pode ser relacionado a
“heimlich”. Nesse sentido “estranho e selvagem poderiam ser, em algum contexto,
representados pela mesma palavra” e construindo uma associação na qual “o urso
[do conto de Plath], animal selvagem, representa o sobrenatural, criando, assim, o
estranho” (p. 159). Em seguida, a autora relaciona o estranho com o caráter do
inquietante de Freud, do que é oculto, escondido, principalmente do leitor, no conto
“The Fifty-Ninth Bear”, tal fato é retratado por meio da forma como “Sadie vê seu
marido, o que ela realmente pensa a situação por que passam, que, como sabemos,
vai além do que é dito por ela a ele” (PETERSEN, 2015, p. 159). A esposa, Sadie,
torna-se uma figura “estranha” para o leitor que a conhece “apenas pela visão de
43

Norton”, estranhamento esse que “culmina em sua vingança final, e, assim,


surpreende” (op. cit., p. 159).
Figura 4 – A Figura do Quinquagésimo Nono Urso como um Familiar de Sadie

Fonte: Petersen (2014, p. 01)

Logo, a autora também recorre à definição de Freud (1919), de que o


inquietante algo que deveria ter continuado oculto, mas voltou, um elemento que
causa medo e que retorna, algo que é familiar (PETERSEN, 2015, p. 159-160). A partir
dessa definição, a autora argumenta que o urso na verdade era um elemento familiar
à Sadie:

A familiaridade da mulher para com o urso que mata seu marido é o ponto
auge do estranhamento na narrativa; ela anseia por ele, por vencer a aposta,
e, como que respondendo a seu chamado, o animal volta juntamente a todo
o ressentimento recalcado por Sadie. Não vemos a percepção que a mulher
tem do marido, mas sabemos o quão frágil e dependente ele a imagina; aquilo
que parece não abalar Sadie, por fim, retorna para então matá-lo.
(PETERSEN, 2015, p. 160)

A diante em sua análise, Petersen (2015) também menciona o caráter da


repetição no Inquietante de Freud (1919): essa repetição quando está sujeita “a
determinadas circunstâncias”, causa “o estranhamento, evocando a sensação de
desamparo, semelhante à de alguns estados oníricos”, (p. 160). Segundo a autora, na
narrativa de Plath (1977), o número cinquenta e nove “como o número do urso que
mata Norton, de acordo com a contagem do casal, o que, juntamente às outras causas
já citadas, aumenta o estranhamento do desfecho da narrativa, (PETERSEN, 2015, p.
161). Há também no conto outras repetições, são “coisas estranhas que acontecem
no parque, como “o sumiço da água, a falta de combustível, assim como as dores de
44

cabeça constantes de Norton” que constroem a “sensação de desamparo”, (op. cit., p.


161).
Petersen (2015), também menciona em sua análise o “estranho efeito”,
relatado na teoria de Freud (1919), que ocorre quando as fronteiras entre a
imaginação e a realidade são apagadas: quando algo até então considerado mera
imaginação, surge na realidade, (p. 161). A autora observa esse efeito quando “as
preocupações de Norton passam de imaginárias a reais” como se estivessem
prevendo o futuro estranho do personagem, (op. cit., p. 161). Outro elemento relato
por Freud (1919)), é observado por Petersen (2015), em “The Fifty-Ninth Bear” – no
qual o leitor é mantido em suspenso em relação à verdadeira “natureza” dos
acontecimentos insólitos – sendo “essa a estratégia de Plath em seu conto” ao colocar
de forma clara a explicação do desfecho, “desvelando antes disso apenas indícios do
estranho, sem se comprometer com qualquer definição até o final”, (PETERSEN,
2015, p. 161).
No transcorrer da análise, a autora associa o clima de mistério construído na
narrativa ao feminino, “gerado e descrito por sua não-compreensão pelo masculino”,
(PETERSEN, 2015, p. 163). A relação entre feminino e masculino é enxergada por
Lizzy Welby (2012) em outro conto de Plath (1977), “Johnny Panic and the Bible of
Dreams”. A autora analisa o conto segundo a teoria de Kristeva (1982): a figura de
Johnny Panic é enxergada por Welby (2012) como uma “manifestação literária de
Plath da ansiedade”. A personagem Johnny Panic é responsável por induzir na
narradora um estado de psicose (WELBY, 2012, p. 131-2). A narradora, Sally,
desenvolve uma obsessão que cresce junto a “seu desejo de obter acesso às
anotações dos pacientes”, aos sonhos/pesadelos deles. Ao ser pega “no ato de
memorizar os sonhos”, ela é levada “à sala de eletrochoque e é submetida ao
tratamento de eletro-convulsão”60 (op. cit., p. 132). Ao final do conto, o leitor entende
que “Sally é diagnosticada psiquicamente” com o mesmo quadro dos outros pacientes
do hospital que consiste em uma escalada predeterminada de “saúde/doença mental”,
mas que há uma desconfiança, acentuada pelas “sutis dicas semânticas” deixadas no

60
[...] her desire to gain access to the patients’notes [...] in the act of memorising Dreams [...] to
the electroshock room and undergoes electro-convulsive treatment. Em tradução livre.
45

texto: a secretária “compartilha com os pacientes uma rota às suas inconsciências,


cuja porta de entrada são os sonhos”61 (op. cit., p. 132, grifo da autora).
Porém, a autora observa que há uma diferença crucial entre os outros
pacientes e a narradora do conto: Sally, no início da história, imagina-se como sã e
parece ao leitor ser “uma narradora confiável”, podendo assim explorar e examinar “a
vida criativa do inconsciente, o outro eu” em que a lógica ordenada da linguagem é
substituída por “uma narrativa dispersa e espiralar que é uma dança eterna nas
sombras do deslocamento e da suspensão”62 (WELBY, 2012, p. 132). Logo, Welby
(2012) examina o sonho recorrente de Sally, no qual “um corpo de água primordial e
poluído, descrito como Lago do Pesadelo ou Pântano da Loucura, para os quais as
mentes das pessoas correm à noite”63 (p. 132, grifos da autora). Segundo a autora, o
sonho e Sally evocam uma passagem que é ao mesmo tempo “psiquicamente
carregada e profundamente perturbadora” (op. cit., p. 132).
Nesse caso, o lago no sonho de Sally representa uma carga simbólica de
desordem, “os destroços da humanidade” com tantas “mensagens inconclusas” a
vagar “assustadoramente ente os detritos dos objetos descartados do cotidiano”
(WELBY, 2012, p. 132). O lago é um símbolo que, no discurso psicanalítico, é
associado ao espaço maternal pré-simbólico e permanece como “um lugar de
transgressão do mundo ordenado do Simbólico” onde a autoridade acaba
prevalecendo: o sonho da narradora é um testemunho da capacidade subversiva do
reino materno de “ruptura com um falocentrismo autocrático” (op. cit., p. 132).
“O abjeto sonho do lago” é rico em “detalhe terrível” com imagens que são
“cruas e aterrorizantes” e há um contraste entre a interpretação que a própria Sally faz
do seu sonho e os poucos detalhes que ela oferece dos sonhos dos pacientes
(WELBY, 2012, p. 132-133). O sonho de Sally é “pura escala e horror”, com a imagem
permanente de um lago pré-histórico “dicas de um tempo anterior aos registros
escritos, um tempo antes da linguagem”, um espaço que é definido “em termos
espaciais, não temporais” (op. cit., p. 133). Esse lago, continua sendo “a fonte de todos
os sonhos”, mostrando que Sally tem uma conexão com todos os pensamentos

61
[...] shares with the patients a route into their unconscious, where the point of entry is the
dream. Em tradução livre.
62
[...] a sprawling, spiralling narrative that is an endless shadow dance of displacement and
deferral. Em tradução livre.
63
[...] a polluted, primordial body of water, described as Lake Nightmare or Bog of madness into
which people’s minds run at night. Em tradução livre.
46

inconscientes de “cada pessoa do mundo que já sonhou”, não apenas com os


pacientes do hospital (op. cit., p. 133).
Nesse sentido, Sally funciona como “um traço de raio psíquico para cada
pessoa que já sonhou” através dos tempos, não apenas do “próprio sentido do eu”,
mas também da capacidade deles de imaginar “os pensamentos espirais através da
mente de um outro” (WELBY, 2012, p. 133). Então a secretária, pode tanto se
relacionar quanto se identificar com o “feminino subversivo", dentro desta história
relacionado com “o outro lado da fronteira do Simbólico”. Portanto, Sally não só é
capaz de “experienciar uma conexão empática com o sonhador”, mas também
consegue tomar ciência de sonho “antes de ele ter sido sonhado” (op. cit., p. 133).
Ela não cria os sonhos realmente, apenas “recria uma narrativa”, em uma
configuração já kristevaniana: “a grande Fazedora de Sonhos” não é apenas
responsável pela mecânica do lago dos sonhos, “todos os suportes que flutuam sobre
e abaixo de suas sombras, de águas abjetas”, mas também projeta realidades
alternativas (WELBY, 2012, p. 134, grifo da autora). “O lago fluido, ondulante e
assustador”, em si mesmo, é um espaço de criatividade que é enxergado como
“aterrorizante” se percebido do ponto de vista dos “guardiães da economia
falogocêntrica” e dos psiquiatras que mantêm o interesse em imaginar “os efeitos
subversivos da semiótica como abjeto” (op. cit., p. 134).
“A Fazedora de Sonhos onisciente” pode ser lida como “uma aterrorizante
matriarca fálica” capaz de romper e desestabilizar “o tecido diferenciado do Simbólico
psico-rígido” (op. cit., p. 134). A autora enxerga o lago como a representação de “um
lugar de subversão pré-edipiano”:

onde a autoridade materna próxima-de-se-tornar-abjeto se afasta dos


desejos orais da criança e dos excrementos anais. Esta Semiótica, que é
reanimada nos sonhos do lago de Sally, garante, na terminologia
kristevaniana, um reavivamento do arcaico modo de operação pré-edipiano.
De acordo com Kristeva, antes de a criança entrar no domínio linguístico do
Simbólico, ela/ele existe em um espaço psíquico pré-edipiano, que ela chama
de chora semiótica, que é uma totalidade não expressiva formada pelos
desejos e suas estases em uma motilidade que é tão completa quanto
regulada64. (WELBY, 2012, p. 134, grifos da autora)

64
[...] where the soon-to-beabjected maternal authority holds sway over the child’s oral desires
and anal expulsions. This semiotic, which is reanimated in Sally’s dream lake, ensures, in Julia
Kristeva’s terminology, a revival of archaic pre-oedipal modes of operation. According to Kristeva, before
a child enters the linguistic realm of the Symbolic, s/he exists in a pre-Oedipal psychic space, what she
terms the semiotic chora, which is a nonexpressive totality formed by the drives and their stases in a
motility that is as full as it is regulated. Em tradução livre.
47

O estado pré-edipiano está vinculado a um tempo de enunciados pré-verbais


“quando a criança ainda está por sucumbir às injunções que serão impostas a ela ante
à palavra paterna e à lei-do-pai”65. Assim, o semiótico entre em contradição com o
simbólico (WELBY, 2012, p. 134). Existem ecos do reino materno, ainda que possam
estar marcados pela autoridade paterna que os consideram abjetos: esses ecos
invadem e impactam “ao desenvolvimento da identidade da criação como um sujeito
que fala” à medida que avança na esfera estruturada da “ordem Simbólica”, (op. cit.,
p. 134). Nesse sentido, a noção de semiótica de Kristeva pode ser caracterizada como
“um estado verbal de livre associação”, um tempo de enunciados pré-línguisticos
cadenciados (op. cit., p. 134, grifo da autora).
Neste reino indiferenciado, não existem fronteiras linguísticas e nem “injunções
Simbólicas”, às quais a criança está ligada intrinsicamente, e seus desejos e impulsos
estão ligados ao “eu corporal da mãe” (WELBY, 2012, p. 134). Logo, a autoridade
materna existe “antes da Palavra (ditatorial) do Pai” e a mãe inicia “o processo de
socialização ao regular os impulsos orais e anais da criança” (op. cit., p. 134). Nesse
caso, a semiótica, segundo Welby (2012), baseia-se em Kristeva e é “um protótipo do
Simbólico até o momento em que a criança começa a reconhecer uma autoridade
Materna” antes de submeter à autoridade do pai (p. 134).
A autora observa que a autoridade materna em qualquer forma é uma ameaça
constante ao “poder autocrático da autoridade do pai” sublinhada pela potência
dominante do falo que necessita para salvaguardar seu poder contínuo e imaginar “o
domínio materno como um lugar de terror”, um lugar da castração, “um domínio que
pode destituir o homem de ser homem” (WELBY, 2012, p. 134). A criança, até o
momento da entrada no Simbólico, conseguiu se identificar com a mãe, como “um
objeto ideal”.
Welby (2012) interpreta o lago dos sonhos de Sally o caracterizando pela
“ansiedade profunda” da narradora “com suas imagens de embriões revestidas de
horror em potes revolvidos por tenebrosas águas tóxicas” (p. 135). Águas essas que
escondem os dragões, que são figuras maternais abjetadas no primitivo patriarcal
dando os primeiros passos em direção ao “processo de socialização comunitária

65
[...] when the child has yet to succumb to the injunctions that will be imposed upon it once the
paternal word and law-of-the-father. Em tradução livre.
48

falogocêntrica” (op. cit., p. 135). A autora observa que é na paisagem semântica do


sonho de Sally e, “mais especificamente em seu sonho do lago”, que:

Nós sabemos que houve um tempo antes dos decretos sociais; antes dos
guardiães autocráticos do mundo do pai julgando que a figura da mãe deve
ser abjetada se o apropriado e limpo eu tiver que existir. E Sally tem a
habilidade de examinar as profundezas quase insondáveis de sua
inconsciência e sonhar-se de volta ao tempo pré-verbal, que é então
acessado através do sonho lúcido da imaginação66. (WELBY, 2012, p. 135,
grifos da autora)

Nesse sentido, os sonhos estão associados aos “empreendimentos literários”,


que por sua vez “têm sido associados há muito tempo com a vida livre de imaginação”,
uma fonte de “criatividade e inspiração (WELBY, 2012, p. 135). Os sonhadores que
frequentam o hospital são definidos ela “psicótica natureza de seus sonhos” e são
confinados para que suas mentes possam ser curadas da imaginação: “uma série de
choque elétricos estão à disposição”, (op. cit., p. 135, grifo da autora).
Por sua vez, Sally torna-se proficiente em reconhecer “o que é medicamente
categorizado e rotulado como psicose e manifestado no sonho lúcido dos pacientes”
e misteriosamente começa a transcrever sonhos dessas pessoas “antes de eles os
sonharem” (op. cit., p. 135). Para um paciente católico com medo da morte, “Sally
imagina um sonho em que ele é encarcerado no porão do monastério gótico, rodeado
por uma vista interminável de crânios e ossos aumentados ao infinito por uma série
de espelhos”67, por exemplo (op. cit., p. 135).
Welby (2012) enxerga a figura do espelho nesse sonho como “a noção
lacaniana da imagem no espelho (mal)representando um sentido de identidade de um
sujeito” e observa que ela também insere cadáveres “no cenário bizarro”, os quais, na
perspectiva kristevariana, representam o máximo de abjeção (p. 135-6). Esses
cadáveres são iluminados com “iluminação contemporânea”, detalhe que a narradora
do conto chama de “elemento poético” que o próprio Johnny Panic injeta “na vida
subconsciente do sujeito” (WELBY, 2012, p. 136, grifo da autora). “O pânico do

66
[...] we learn that there was a time before societal edicts; before the autocratic keepers of the
paternal world deemed that the maternal figure must be abjected if the clean and proper self is to be.
And Sally has the ability to plumb the almost unfathomable depths of her unconscious and dream herself
back to a pre-verbal time, which is then accessed through the dream-life of the imagination. Em tradução
livre.
67
Sally imagines a dream in which he is incarcerated in a Gothic monastery cellar surrounded
by an endless vista of skulls and bones augmented to infinity by a series of mirrors. Em tradução livre.
49

paciente, em letras maiúsculas” é a rota plathiana para “a vida criativa do artista no


fascínio da psicose”: a ansiedade se torna “o psicótico abismo da boca” pelo qual o
artista consegue cavar “um caminho imagético para a sociedade como estado
inominável da histeria” (op. cit., p. 136, grifo da autora).
O balbucio sem sentido do psicótico não é absurdo, não é um sentido: “mas
não nomear significa que Plath traduz e dá voz ao inominável, através da expressão
artística” (WELBY, 2012, p. 136). Esses pacientes entram naquela ala do hospital
apenas uma vez, até serem encaminhados para um local mais permanente, em outro
hospital destinado a casos mais graves: “um destino que aguarda a própria Sally”,
amarrada em uma maca, recebendo choques elétricos em meio “aos cantos dos
pacientes” (op. cit., p. 136). Johnny Panic vem ao resgate de Sally, quando ela já se
achava perdida “como uma alternativa espetacular, ardente e poderosa para o pai-da-
lei”. Johnny Panic é “sua Palavra embolada, vaga e não linear” desafiando para
sempre “a ordem Simbólica, na interpretação de mundo de Sally”68 (op. cit., p. 136).
Frente a Johnny Panic, as figuras de autoridade que tiveram poder suficiente
para forçar “uma jovem mulher a se submeter a um tratamento aterrorizante contra
sua vontade” são obscurecidas pela sua “iluminação poética” que está fluindo dele,
“do olho banido que tudo vê” (WELBY, 2012, p. 136). Logo, Sally está pronta para
tomar seu lugar como “uma adepta de seu amor abjeto ligado à morte” que a levará
inevitavelmente ao suicídio, sendo abandonada por todas essas figuras de autoridade,
que estão encerrados dentro “dos confins das fronteiras do Simbólico” (op. cit., p. 136).
Sally, nesse caso, é sacrificada ao simbólico e “crucificado por suas transgressões
contra a lei-do-pai”, transgressão essa a de transcrever nos sonhos dos pacientes em
“um compêndio quase poético do substrato de seus inconscientes” (op. cit., p. 136).
Aqui a autora associa com a teoria de Freud, as imagens condensadas e
deslocadas e os símbolos que dominam a lógica mais ordenada que caracteriza “o
discurso Simbólico” (WELBY, 2012, p. 137). E por fim, “o sonho do lago de Sally” é
enxergado pela autora como “a origem do afloramento materno”, poluída e abjetada
pelas figuras de autoridade naquele hospital, “que caracteriza a vida livre da

68
[...] as a spectacular, fiery, powerful alternative to the father-of-the-law [...] his jumbled, hazy
non-linear Word [...] the Symbolic order, in Sally’s interpretation of the world. Em tradução livre.
50

imaginação como fazedora da alteridade e, assim, definida pela loucura”69 (op. cit., p.
137).
Dentro desse “o universo fictício de Plath de poder e terror” pode ser ouvido um
“lamento queixoso de luto múltiplo” causado pela perda da “metáfora materna” e pela
“irremediável impossibilidade de reescrever a narrativa da figura materna abjetada”
(WELBY, 2012, p. 137). E luto também pela perda de “uma força feminina nutriente e
criativa” que só pode ser recuperada no “sonho lúcido da imaginação”. Na ficção de
Plath, o maternal feminino é “sinônimo da representação medicada da histeria” (op.
cit., p. 137).
Castillejos (2002) analisa a questão do espaço nos textos de Sylvia Plath em
“Johnny Panic and the Bible of Dreams”, inicialmente dividindo a produção da autora
entre as primeiras histórias escritas por Plath como “descrições mais realistas” e os
escritos posteriores como “o cenário que rodeia as personagens aparece desenhado
com pinceladas descritivas e de forma mais abstrata e simbólica”70, com uma ênfase
na descrição psicológica e nas relações interpessoais das personagens (p. 81).
“Johnny Panic and the Bible of Dreams” e “The Daughters of Blossom Street” se
encontram no segundo grupo, segundo a autora. Nesses contos “há apenas detalhes
do marco de referência onde transcorrem a ação”. No primeiro conto, que dá nome à
coletânea, o leitor apenas fica sabendo que a história se passa numa clínica “onde a
protagonista se dedica a tomar nota dos sonhos dos pacientes para sua análise
posterior” (CASTILLEJOS, 2002, p. 82).
De forma semelhante, no segundo conto, “The Daughters of Blossom Street”,
o cenário é um hospital, onde começam a aparecer “lampejos de realismo imaginário
que não havíamos visto antes” e os cenários são descritos explicitamente “em
consonância com os acontecimentos” como se estivessem se adaptando a eles para
destacá-los (CASTILLEJOS, 2002, p. 83). Nesse sentido, Castillejos (2002) observa
que as flores que a personagem Emily Russo recebe das suas colegas de trabalho,
“já em seu leito de morte”, parecem se mesclar com sua identidade e estar à beira de
um colapso, assim como a própria personagem (p. 83). Dentro dessa dinâmica
espacial, a morte de Emily está associada à “ausência de luz” (op. cit., p. 83).

69
[...] who characterise the free life of the imagination as markers of alterity and thus defined by
madness. Em tradução livre.
70
[...] el escenario que rodea a los personajes aparece dibujado con brochazos descriptivos y
de forma más abstracta y simbólica. Em tradução livre.
51

A autora observa que na prosa plathiana há uma sincronia entre “o tempo


atmosférico e os elementos físicos” que rodeiam as personagens, por um lado, e por
outro, seu estado de espírito: “efetivamente, a utilização da paisagem para simbolizar
emoções humanas predominantemente negativas”, uma influência de T. S. Eliott em
Plath (CASTILLEJOS, 2002, p. 83). De Tennyson, Baudelaire, Laforgue e Rimbaud,
Plath herda o recurso da utilização de paisagens exteriores para simbolizar estados
mentais, do estado psicológico do sujeito (op. cit., p. 83). Baudelaire refina a técnica,
levando-a “de fora para dentro” para obter a paisagem interior. O poeta francês
também introduz “o tema da cidade moderna como objeto de descrição de suas
paisagens simbólicas”, o que também está presente em Plath (op. cit., p. 84).
Segundo a autora, Tennyson e Baudelaire expandem o uso das paisagens, que
antes eram usadas apenas como cenário simplesmente decorativo, e com eles
passam a serem utilizadas “para simbolizar emoções humanas”, e mais tarde com
Eliot traz “a novidade de uma poesia que fala de paisagens concretas com grande
realismo” (CASTILLEJOS, 2002, p. 84), mas que não é puramente descritivo, pois dá
conta também de estados de ânimo e espírito.
Em Eliot, a paisagem consegue “ambientar o que conta como para descrever
estados emocionais, morais e espirituais” (op. cit., p. 84). O que também acontece em
“The Daughters of Blossom Street”: a história começa com a ameaça de um furacão
e “e uma forte chuva” e termina com um abrandamento das forças da natureza depois
da morte de duas personagens da história, a saber: Emily, uma das secretárias e Billy
Monihan, uma espécie de garoto de recados (op. cit., p. 84-5).
Logo, a tormenta passa e a chuva se acalma, “a paz em que agora descansam
Emily e Billy o invadira todo”, uma relação não casual entre “o estado dos personagens
e o tempo atmosférico”, entre paisagens interiores e exteriores (CASTILLEJOS, 2002,
p. 85-86). A autora observa que na escrita de Plath, há também “elementos de fusão
entre natureza e individuo”, uma simbiose entre “os elementos da natureza e seu
estado psíquico e emocional” (op. cit., p. 8586).
Em “The Fifty-Ninth Bear”, por exemplo, há “a ideia de sincronia entre o que vai
suceder e o meio onde transcorre a ação”, onde a escuridão é o cenário perfeito para
um acontecimento trágico que de fato acontece (op. cit., p. 86). É comum na prosa
plathiana, segundo Castillejos (2002), a ausência de luz prenunciando a morte: “a lua
52

é cúmplice e se esconde para garantir a ausência de luz no momento em que o osso


mata a protagonista do relato”71 (p. 86).
Também em “The Fifty-Ninth Bear”, há um recurso “diretamente relacionado”
com o inquietante de Freud (1919): “seres inertes recobram à vida”, no “mundo onírico
descrito por Plath”, onde os objetos cotidianos podem estar vivos e os animais têm
reações inesperadas, quase humanas (CASTILLEJOS, 2002, p. 87). Para Freud, esse
sentimento "sinistro", "lúgubre", “inquietante”, “o que incita medos atávicos”, relaciona-
se com o conceito do duplo, que são na realidade “um auspício de morte” e que
confundem o sujeito sobre qual é sua real identidade (op. cit., p. 87). Segundo a
autora, essa ideia do duplo aparece refletida nas estátuas do antigo Egito, que eram
feitas “com materiais imperecíveis” à morte de alguém importante e nascem “do
narcisismo primário” que caracteriza dentro da teoria freudiana a criança e o homem
primitivo (op. cit., p. 88).
Segundo Castillejos (2002), baseando-se em Freud (1919), os duplos são
“símbolo de imortalidade” e podem ser interpretados como uma imagem “da morte
inevitável” que espera cada um, de onde vem o sentimento “de medo, de estranheza”
que essa imagem provoca (p. 88). Relacionada a essa questão do duplo, a autora
observa que na prosa plathiana a natureza é enxergada como “um elemento sinistro,
inesperado”, que produz medo e insegurança, pois é no ambiente natural que o
narrador plathiano encontra duplos de si mesmo, “seres aos quais sua identidade se
funde” (CASTILLEJOS, 2002, p. 88). O fato que se relaciona com a teoria de Freud,
onde “o lado inquietante de uma realidade aparentemente afável” tem origem em
“traumas infantis e complexos que foram reprimidos” e acabam retornando (op. cit., p.
88).
A autora recorre a Vidler (1992) que observa, por sua vez: “o inquietante” em
sua dimensão estética é “a representação de um estado de projeção mental”, que
elimina precisamente “as fronteiras do real e do irreal” para provocar uma
ambiguidade, um deslizamento entre “vigília e sono” (VIDLER, 1992 apud
CASTILLEJOS, 2002, p. 88). Outro elemento “inquietante” observado pela autora,
dentro da prosa plathiana é a sombra: esta tem sido tradicionalmente associada com
“muitas culturas”, com “o símbolo da essência espiritual do sujeito” – a alma. Esta

71
La luna es cómplice y se esconde para garantizar la ausencia de luz en el momento en que
el oso mata al protagonista del relato. Em tradução livre.
53

representa, na ficção de Plath, “o que o sujeito podia ter sido e nunca foi”, a parte do
eu que foi aniquilada (CASTILLEJOS, 2002, p. 90). Segundo Axelrod (1990 apud
CASTILLEJOS, 2002, p. 90), a sombra indica o “o eu imaginativo” que poderia ter sido,
mas “foi proibido de ser”, que foi destruído e evoca “a dolorosa meia-vida” que vive “à
beira da aniquilação”.
Essa questão do inquietante, dentro da análise de Castillejos (2002), relaciona-
se com a questão do ambiente, como em “The Fifty-Ninth Bear”, “as montanhas e
outros acidentes terrestres” são imóveis e o narrador plathiano sente “necessidade de
mudança” (p. 92). Logo, “o desejo de Plath de fundir-se com o meio que a rodeia”
demonstra “a impossibilidade de tal fusão”, pois o elemento natural “se mostra hostil”
e ignora suas súplicas. Sendo assim, podemos interpretar como a resposta que “o
meio natural” dá ao ser humano por seu “abuso sistemático”: “a natureza” responde à
atitude do homem moderno, às vezes, “com indiferença e outras com aberta
hostilidade” (CASTILLEJOS, 2002, p. 92-93).

Figura 5 – Plath e a Fusão do Eu com a Natureza: Sylvia em seu quintal em Wellesley, entre 1954 e
1955

Fonte: Clark (2020, p. 832)

Em “Johnny Panic and the Bible of Dreams”, segundo a autora, o elemento


inquietante está relacionado ao cenário urbano. A cidade aparece borrada, como se
fosse apenas “produto de uma elucubração mental, irreal e intangível”, a cidade dos
sonhos, a ideia da cidade como “lugar irreal”, um “produto concebido
54

intelectualmente”, surgido da elucubração dos arquitetos como se eles fossem “todo


poderosos demiurgos que controlam os personagens que nela se movem”
(CASTILLEJOS, 2002, p. 93). Nesse sentido, há também a concepção de cidade
como lugar onde estão “os sonhos de seus locus”, a vida é um sonho e a cidade é “o
cenário ideal criado a sua medida”, o armazém desses sonhos (op. cit., p. 93).
A cidade em “Johnny Panic and the Bible of Dreams” também aparece “o
conceito de cidade como cenário” (CASTILLEJOS, 2002, p. 93). Porém, assim como
os ambientes não tocados pela mão do homem, a cidade na prosa plathiana pode ser
“agressiva” e “perigosa”, que “o ser humano desconhece o menospreza” (op. cit., p.
94). Novamente em “The Fifty-Ninth Bear”, esse viés do inquietante freudiano é mais
que evidente. De forma semelhante à análise de Petersen (2015), Castillejos (2002)
observa que o elemento familiar se volta de repente, pois se torna “alheio,
desconhecido” e se rebela contra os sujeitos quando eles menos esperam: no conto,
um dos ursos que costumava rondar “entre as tendas de campanha buscando comida”
e que costumava ser pacífico, enfrenta Norton e o mata inesperadamente (p. 94).
Esse movimento do inquietante, também está ligado à questão da fusão com a
natureza, da “simbiose dos personagens com o meio que lhes rodeia”, como já foi
mencionado. A identidade dos personagens é descrita em “toda sua fragilidade”, como
prestes a desaparecer, fundida com o meio, como acontece com Emily Russo em “The
Daughters of Blossom Street” (CASTILLEJOS, 2002, p. 94).
Por fim, a autora conclui que na prosa de Plath há “uma ausência de detalhes
paisagísticos” e que esses, por outro lado, vão adquirindo “uma natureza menos
realista e mais simbólica”, onde a natureza pode parecer simpatizar com os
personagens principais e transmitir “seus sentimentos, emoções e desejos”. Por outro
lado, o tempo atmosférico é muitas vezes narrado de acordo “com os acontecimentos
que este narra”. Eventos negativos ou a morte dos personagens geralmente ocorrem
em meio “a uma tormenta, a um forte vento” e essas mortes costumam estar
associadas “à ausência de luz, com sombras”, como em “The Daughters of Blossom
Street” (CASTILLEJOS, 2002, p. 94-5).
Portanto, esse último aspecto apontado por Castillejos (2002), relaciona-se
com a questão da fusão com a natureza, esta que se revela pouco a pouco na obra
plathiana “como não factível”. Além disso, em muitas das histórias de Plath a natureza
é descrita com “um carácter de imprevisão” que está ligado, por sua vez com o
55

inquietante de Freud (1919) que é considerada pela autora como “uma característica
muito definidora de toda a escritura de Sylvia Plath” (CASTILLEJOS, 2002, p. 95).

4 ANÁLISE DO INSÓLITO EM “AS FILHAS DE BLOSSOM STREET” E


“JOHNNY PANIC E A BÍBLIA DE SONHOS”72: “I FEEL LIKE LAZARUS […] BEING
DEAD, I ROSE UP AGAIN”73

4.1 ENTRE O MUNDO DOS MORTOS E O DOS VIVOS: “AS FILHAS DE BLOSSOM
STREET”

“Johnny Panic e a Bíblia de Sonhos” (PLATH, 2020) e “As Filhas de Blossom


Street” (PLATH, 2020), doravante “Johnny Panic” e “As Filhas”, são contos
ambientados em cenários semelhantes: a ala psiquiátrica de um hospital, não
nomeado. Há também uma conjunção de nome de personagens, e funções de
trabalho, na equipe que trabalha no hospital em ambas as histórias – Billy,
personagem chave do segundo conto, tem um homônimo seu citado no primeiro, com
uma “história de vida”, semelhante ao enredo de “As Filhas de Blossom Street'',
conforme se vê em:

não encontramos ninguém no lusco-fusco do corredor. Ninguém na escada


de pedra fria que leva aos corredores do porão onde Billy, o Menino da Sala
do Arquivo, certa noite rachou a cabeça saltando os degraus porque tinha
uma tarefa urgente. (PLATH, 2020, p. 36)

Além disso, ambos os contos são narrados em primeira pessoa, por uma jovem
secretária que trabalha naquele departamento.
Apesar das “coincidências” de enredo com a vida da escritora, analisamos
estes dois textos sob a categoria do insólito, da seguinte forma: “Johnny Panic”
apresenta elementos do insólito de forma mais evidente, com uma narrativa que pode

72
Os títulos da primeira edição em inglês são: “The Daughters of Blossom Street” [PLATH,
1959] e “Johnny Panic and The Bible of Dreams” [PLATH, 1958], publicados post-mortem no livro
Johnny Panic and the Bible of Dreams and Other Prose Writings, em 1977, editado por Ted Hughes.
No entanto, utilizamos a edição brasileira, em português, de 2020, conforme se vê em “Referências”.
73
In: PLATH, Sylvia. The Unabridged Journals of Sylvia Plath. New York: Anchor Books,
2000, p. 256. “Eu me sinto como Lázaro [...] ao morrer, renasço”, em tradução livre.
56

ser classificada como onírica; “As Filhas” pode ser considerado um exemplar da prosa
mais realista de Plath, em que o insólito pode ser enxergado nas "entrelinhas", no que
está aparentemente oculto.
Wagner-Martin (2003) classifica esses dois textos, e mais um punhado de
textos e poemas – a exemplo de “Tulips” (In: Ariel. PLATH, 1965); “All the Dead Dears”
(In: The Colossus and Other Poems. PLATH, 1960) – como Hospital Writing. Entre
dois partos, internações para tratar sua depressão, uma cirurgia, a reabilitação após
a primeira tentativa de suicídio e um emprego como secretária, “Plath usou suas
experiências no hospital nos seus escritos como uma fonte de conhecimento
interessante: um meio para sair de sua voz e vida míopes de garota de faculdade” 74
(WAGNER-MARTIN, 2003, p. 54).
Dentro dessa espécie de “universo compartilhado” apontado por Wagner-
Martin, ou um universo semelhante, está inscrito “As Filhas”. O conto foi originalmente
escrito em 1959, posteriormente ao conto “Johnny Panic” (1958). Ambos, remontam
às experiências de Plath trabalhando como secretária no Massachusetts General
Hospital, onde anteriormente havia se tratado após a sua primeira tentativa de
suicídio, (WAGNER-MARTIN, 2003, p. 54). Em “As Filhas”, a rotina regrada de um
time de secretárias é desestabilizada por dois eventos “inquietantes”: 1- a
aproximação de um furacão que obriga todos a mudarem seus planos costumeiros,
no trabalho e em suas vidas; 2- o estado de doença terminal de uma colega, Emily
Russo.
Logo no início do conto, mais precisamente na sentença de abertura do mesmo,
o ambiente hospitalar é caracterizado pela narradora, com certa burocracia: “Eis que
não preciso ouvir um alerta de furacão na previsão meteorológica das sete da manhã
para saber que hoje vai ser um dia ruim” (PLATH, 2020, p. 93). Aparentemente, os
“dias ruins” acontecem com certa regularidade na rotina da narradora,
independentemente da agitação meteorológica que se aproxima: ela encontra, como
em todos os dias de trabalho, “uma pilha de prontuários de pacientes” a estão
esperando “do lado de fora da porta, tão pontual quanto o jornal da manhã”, “uma
pilha pequena, e nossos dias são cheios”, (op. cit., p. 93).

74
Plath used her hospital experiences in her writing as a source of interesting knowledge, a
means of getting out of her myopic college-girl voice and life. Em tradução livre.
57

As previsões da narradora não parecem animadoras: “vou precisar passar mais


ou menos meia hora telefonando para todos os ramais da Sala do Arquivo para
encontrar os prontuários que faltam” (PLATH, 2020, p. 93). E logo cedo de manhã, a
sua “blusa branca de ilhós já está ficando amassada” e a narradora já observa que a
transpiração está visível nas axilas (op. cit., p. 93). Esse ambiente burocrático, está
sendo intimidado pela tensão que se espalha no ambiente: “o céu lá fora está baixo,
grosso e amarelo como molho hollandaise” e apesar da janela escancarada pela
narradora, “todas as coisas continuam imóveis, e mais pesadas que roupa lavada sem
torcer num porão escuro”, (op. cit., p. 93).
Ao contrário do que a narradora parece querer deixar transparecer, o ambiente
e o clima são descritos com desestabilização, conforme vemos em: “Ainda assim, com
o céu tão escuro e o furacão avançando pelo litoral com seu estrondo, chegando mais
perto a cada minuto” (PLATH, 2020, p. 94). Essa tensão contínua quando a narradora,
seguindo os passos da sua rotina diária, corta “o cordão que embrulha a pasta de
prontuários” e encontra “me encarando na capa do primeiro deles, estão os dizeres
em tinta vermelha: MORTA. MORTA. MORTA”, (PLATH, 2020, p. 93). Apesar de a
narradora não se caracterizar como “uma pessoa supersticiosa”, ela associa a tinta
“manchada” e de “cor enferrujada” com “sangue na capa do histórico clínico” (op. cit.,
p. 94).
Para Kristeva (1982), o sangue é um elemento abjeto, não por sua associação
com a morte, mas por ser um elemento ambíguo “indicando o impuro”, o animalesco,
ao mesmo tempo que é “um elemento vital”75 da nossa constituição corporal, humana
(p. 96). Nesse sentido, podemos observar, que a morte é um elemento inquietante,
que desestabiliza quem está narrando. Essa mesma morte que é inconveniente por
isso, porque atrapalha a lógica interna e burocrática desse ambiente de trabalho,
como algo fora do eixo: “isso só significa que Lillian Ulmer está Morta [...] o número
nove-um-sete-zero-seis, para sempre cancelado dos arquivos ativos da Sala do
Arquivo” (PLATH, 2020, p. 94).
A morte de Lillian Ulmer, da qual a narradora tenta afastar qualquer significado
maior, é ambígua ao lembrar a narradora que ela está viva e presa nesta rotina,
considerada sufocante por ela, e a morta por outro lado, conseguiu escapar de toda

75
[...] indicating the impure [...] a vital element. Em tradução livre.
58

essa burocracia: “sinto que Lillian Ulmer, que Deus a tenha, me fez começar o dia com
o pé esquerdo (PLATH, 2020, p. 94). O efeito inquietante, e sua relação com a morte,
também pode provir da associação com números, geralmente associado com a
repetição (FREUD, 1919, p. 199).
Em “As Filhas” o inquietante não provém da repetição, mas da aleatoriedade
desses números, que não se apresentam em uma ordem burocrática, palpável,
conforme se vê em: “o número nove-um-sete-zero-seis” da ficha de Lillian e os
números que são trocados de sua ordem certa, burocrática por Billy, mas [ele] não fez
por mal (PLATH, 2020, p. 94, grifos da autora).
No clímax do conto, pouco antes da notícia da morte do personagem Billy, em
sua prancheta, “Dotty coloca um nove vermelho sobre um dez preto” (PLATH, 2020,
p. 113). Aqui podemos observar que, unido ao inquietante dos números em ordem
aleatórias, as cores vermelho e preto também contribuem neste efeito simbólico e
inquietante. O vermelho que pode ser associado ao sangue abjeto de Kristeva (1982,
p. 96) e o preto, cor tão associada nas sociedades ocidentais com o luto e a morte.
Essa sobreposição de cores e números fomenta um efeito de incerteza, do
inquietante, a quebra da ordem burocrática, visto que o número nove e a cor vermelha
não desaparecem se sobrepostos ao número dez e a cor vermelha: o nove vermelho
é algo que deveria estar “oculto, mas apareceu” (FREUD, 1919, p. 191).
Em “As Filhas”, nesse sentido, podemos observar a relação entre a burocracia
do ambiente hospitalar e as forças que desestabilizam a ordem burocrática,
desestabilização essa que ocorre por diferentes eventos e em diferentes níveis. O
primeiro, é o nível mais relacionado ao mundo externo e às questões de ordem prática,
como a questão do furacão que se aproxima e muda toda rotina do hospital: os
funcionários que precisam garantir a integridade dos pacientes e estão presos dentro
daquele ambiente, que se reorganiza para abrigar essas pessoas que vão precisar
passar a noite ali durante a tormenta.
Uma das secretárias demonstra preocupação com a mãe: “eu não sei o que
fazer com minha mãe sozinha em casa” (PLATH, 2020, p. 110); outra se pergunta o
que vai acontecer com seu carro, pois “até uma brisa da praia molha aquele motor, o
carro não sai mais do lugar” (op. cit., p. 97), a transmissão de eletricidade é
interrompida. É o nível prático, no qual a narradora afirma não se sentir afetada. Outro
acontecimento que provoca mudanças no nível prático e interrompe a burocracia é a
59

situação da personagem Emily Russo: uma secretária aparentemente querida, que


está em um estágio de doença terminal.
Então, a equipe de secretárias está “com uma garota a menos” e está se
tornando “muito difícil fazer todos os processos”, infelizmente “ela está por um fio”
(PLATH, 2020, p. 100), mas a equipe médica e suas colegas de trabalho querem
poupá-la, escondendo o seu verdadeiro estado de saúde e aproximação com a morte
certa. Como não querem “contar a verdade nua e crua” (op. cit., p. 100), a vaga de
Emily não é preenchida, acarretando essa desestabilização no nível exterior. As
moças combinam de darem, em conjunto, um vaso de flores à enferma, juntando
dinheiro para comprá-las e passando “um cartão para todas assinarem” (op. cit., p.
102). Dorothy é encarregada dessa tarefa e, acompanhada pela narradora, largam
seus postos de trabalho para empreendê-la, e também entregar o presente à
remetente. Esse é outro abalo, talvez fugaz, na rotina burocrática do hospital.

Figura 6: Desenho feito por Sylvia Plath, em 1956, de flores-do-campo.

Fonte: PLATH (2014, p. 31)

No terreno do simbólico, o vaso de flores pode ser interpretado dentro deste


conto pela luz do inquietante de Freud (1919), relembrando que o elemento que
inquieta “remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar” (op. cit., p. 188),
e “que experimentou uma repressão e dela retornou” (op. cit., p. 204) na forma do
elemento não familiar. Nesse sentido, quando Mary Ellen sugere flores como
presente, a narradora observa a relação social existente as fases de transição e o ato
de presentear as pessoas com flores dentro do microcosmo social do hospital, de
acordo com o trecho a seguir:
60

Sempre que alguém da nossa equipe contrai alguma doença, ou há um


noivado, ou casamento, ou tem um bebê (embora isso seja muito mais raro)
ou ganha um prêmio pelo seu trabalho, nós fazemos uma vaquinha e
mandamos flores, ou um presente adequado, e um cartão. Esse é o primeiro
caso de doença terminal do qual participo, no entanto, e na minha opinião as
meninas foram uma verdadeira doçura. (PLATH, 2020, p. 101)

Então, podemos entender que as flores funcionam como elemento simbólico


daquilo que é familiar, que está presente na infância – estágio do narcisismo primário,
tal qual o nascimento de um bebê, um batizado. Segundo Freud (1919, p. 197), nas
celebrações sociais da vida humana, o sujeito é reprimido e retorna na forma
inquietante do elemento que não é familiar. Enquanto uma das secretárias sugere
“alguma coisa cor-de-rosa, bem alegre” (PLATH, 2020, p. 101), cor que remonta aos
estágios primitivos da vida humana, associada a tenra infância, uma cor “familiar”,
outra sugere “uma coroa cor-de-rosa bem grande, cravos, de repente” (op. cit., p. 102).
A coroa de flores é uma espécie de buquê presenteado em funerais, enterros
e demais cerimônias fúnebres – onde podemos relembrar o caráter “extremamente
inquietante” em “tudo o que se relaciona com a morte” (FREUD, 1919, p. 202). Dentro
do contexto de “As Filhas” a coroa de flores pode ser interpretada como um elemento
inquietante: as flores, o cor-de-rosa, elementos familiares, que retornam associadas à
morte, ao fúnebre, ao infamiliar. “Blossom Street”, a rua das flores, é um caminho
“familiar”, um eufemismo, por onde os cadáveres, o abjeto e “o mais doentio dos
desperdícios”, uma fronteira “que tem usurpado tudo”76, na visão de Kristeva (1982,
p. 03), o também não familiar, pode passar para o destino final.
Na situação envolvendo a possível volta de um médico morto para atender uma
paciente, “Mary Ellen do Sistema Nervoso cai na gargalhada, e seu corpanzil negro
chacoalha feito gelatina dentro do vestido florido” e “Minnie retesa os lábios, que ficam
parecendo uma florzinha rosada e rígida” (PLATH, 2020, p. 96). Os “formulários de
encaminhamento impressos em cor-de-rosa e amarelo” e Minnie faz suas perguntas
“mostrando um formulário rosa”, (op. cit., p. 96). As flores e as cores são novamente
associadas ao inquietante, desta vez ao do “retorno dos mortos” (FREUD, 1919, p.
201).

76
[...] the most sickening of wastes […] that has encroached upon everything. Em tradução livre.
61

Quando a narradora e Dotty vão comprar as ditas flores para presentear a


moribunda, que está no limiar entre a vida e a morte, “o florista da loja ao lado se
aproxima, esfregando as mãos com uma cara de quem está preparado para oferecer
tanto meus parabéns quanto meus pêsames” (PLATH, 2020, p. 104, grifos da autora).
Reforçando esse caráter intermediário e inquietante das flores, de algo pertencente
tanto à vida quanto à morte, percebemos um elemento familiar que retorna como não
familiar. Então, “Dotty lhe estende o vaso roxo de vidro soprado” e fala ao florista “um
pouco de tudo, amigão. Pode encher” (op. cit., p. 105). A cor roxa, por si só não parece
inquietante, até que mais à frente do conto essa cor está associada à uma história de
Billy “sobre uma mulher que chegou à Dermatologia toda roxa, inchada igual a um
elefante e de cadeira de rodas por conta de alguma doença tropical” (op. cit., p. 109).
Dessa forma, a cor roxa está associada ao abjeto, deformado e
metamorfoseado de Kristeva (1982, p. 207), a deformação dos corpos mortos, dos
cadáveres. Dotty pede um buquê sortido:

[...] um pouco de tudo [...] uma dúzia de rosas, ou talvez um pequeno buquê
de escovinha e mosquitinho com uma fita prateada [...] Rosa-chá, cravo,
aquele sei-lá-o-quê-íolo [...] um pouco desse aí, de várias cores. Vermelho,
laranja, amarelo, você sabe. E um pouco daquela flor-de-lis. (PLATH, 2020,
p. 105)

A mistura de cores oferece um efeito inquietante no conto em mais de um evento,


como o que ocorre com a destruição no prontuário da Sra. Tomolillo:

O livro está um desastre, e as anotações feitas com tinta vermelha, azul e


verde dos inúmeros médicos dos inúmeros setores que a Sra. Tomolillo
frequenta se fundiram num louco arco-íris que desprende pingos coloridos de
água e tinta quando o tiro de suas mãos. (PLATH, 2020, p. 111)

Essa multiplicidade de cores no buquê pode estar relacionada ao abalo da


ordem: um buquê como esse não segue a burocracia que está em tudo o que existe
no hospital, mas sim está em um padrão aleatório e sortido. O próprio ato de comprar
as flores vai contra a ordem, visto que as secretárias aproveitam a hora do cafezinho,
momento de pausa na burocracia diária para comprá-las. Nesse momento do dia,
quando “a reunião se dispersa, com todo mundo falando com todo mundo” e “as portas
vai-e-vem se abrem com um tranco e uma enfermeira entra na sala empurrando a
62

máquina de café num carrinho de metal” (PLATH, 2020, p. 103), as personagens


fogem para empreenderem tal tarefa.
Na entrega das flores, Dotty e a narradora encontram a senhorita Emily
completamente “fora de ordem”:

A Srta. Emily está afundada nos travesseiros, com os olhos abertos ocupando
quase o rosto inteiro e o cabelo espalhado como um leque cinza sobre o
travesseiro que lhe cerca a cabeça. Há toda sorte de frascos sobre a mesa
de cabeceira, debaixo da cama e nas prateleiras ao redor da cama. Tubos
finos de borracha saem de alguns frascos, e um deles desaparece debaixo
da cama enquanto outro sobe até entrar na narina esquerda da Srta. Emily.
(PLATH, 2020, p. 106)

A falta de ordem da Sra. Emily, “com os olhos abertos ocupando quase o rosto inteiro
e o cabelo espalhado” (PLATH, 2020, p. 106) se funde ao ambiente do quarto de
hospital e as colegas precisam afastar essa desordem para entrar com as flores. Elas
trazem “o enorme e multicolorido vaso cheio de flores de estufa” para “a mesa de
cabeceira” da senhorita Emily, mas “a mesa é tão pequena que antes, para abrir
espaço, ela tem que transferir todos os frascos e copos e jarras e colheres para a
prateleira de baixo” (op. cit., p. 106). Essas flores, o familiar que retorna, estão
relacionadas ao prenúncio e à tomada de consciência de Emily Russo em relação a
própria morte:

Os olhos da Srta. Emily flutuam até o monte de flores. Alguma coisa neles
fulgura. Sinto que estou observando duas velas no final de um longo corredor,
dois pontinhos flamejantes que se apagam e se reavivam num vento sombrio.
Do lado de fora da janela, o céu está mais preto que uma frigideira de ferro
fundido. (PLATH, 2020, p. 106)

Por outro lado, voltando à questão dos níveis de abalo/ruptura da ordem, outro
nível que podemos enxergar é o nível de mudanças internas nas personagens, de
abalos no psicológico destas: o furacão e a doença terminal de Emily também
provocam abalos nesse nível, a começar pelo primeiro: as garotas do time de
secretárias se sentem intimidadas pelas mudanças climáticas e atmosféricas
provocadas pela aproximação do furacão, “mas não estou gostando nada desse céu”
(PLATH, 2020, p. 97), externa uma delas, e esse sentimento influencia a
caracterização do ambiente pela narradora:
63

Eu também não estou gostando do céu. A sala foi ficando cada vez mais
escura desde que chegamos, até o ponto em que ficamos todas sentadas
numa espécie de penumbra, com a fumaça subindo dos nossos cigarros e
estendendo seu véu no ar já tão denso. Por um minuto ninguém diz nada.
Parece que Cora expressou em palavras o medo secreto de todas nós. (op.
cit., p. 97)

Voltaremos a abordar a questão entre espaço/ambiente e atmosfera no tópico


seguinte desta análise. Em relação à questão do abalo no nível interno, a doença
terminal de Emily provoca mudanças de comportamento e demonstração de
sentimentos por parte das secretárias: “Minnie comunica com um tom de respeito
fúnebre” o câncer terminal da colega e diz que “ela ainda pode receber visitas, já que
não tem mais nenhum parente vivo” (PLATH, 2020, p. 100). Nesse trecho, o uso dos
três pontos na fala da personagem é um recurso expressivo para indicar um tom de
empatia, verdadeira ou não, da personagem em relação à situação de Emily, e o “tom
de respeito fúnebre” utilizado pela narradora, indica a mudança de comportamento da
personagem, que deixou a algazarra do intervalo do trabalho de lado.
“Puxa vida, eu não sabia disso” reage outra secretária, “que pena”, numa
irônica simulação de empatia, em nome do bom comportamento social (PLATH, 2020,
p. 100). A voz da Sra. Rafferty, chefe da narradora, muda ao falar do assunto,
tornando-se “mais baixa e sóbria como a de um agente funerário” (op. cit., p. 101).
Outro evento que abala o nível psicológico do hospital, é a trágica morte da
personagem Billy Monihan: a começar por uma mudança de perspectiva – antes do
acidente que vitimou o rapaz, ele era enxergado como outsider, um corpo estranho
dentro do burocrático ambiente do hospital. Se todos “sabem que o Billy tem os
problemas dele", devem tratá-lo com condescendência, não devem ser “muito severas
com o menino”, observa Minnie (op. cit., p. 99).
Dotty, personagem considerada sensata pelo olhar da narradora, afirma com
convicção: “Não gosto desse menino” e o compara com “um verdadeiro abutre”
(PLATH, 2020, p. 108). Ele é considerado pela personagem, como alguém que não
imprime simpatia nas outras pessoas, apenas “se você simpatiza com vampiros” (op.
cit., p. 113). No entanto, após o trágico ocorrido com o garoto, até então considerado
esquisito, há uma mudança de sentimentos e perspectivas das personagens de forma
radical: “Todas ficam muito quietas de repente” ao saberem da morte do rapaz, “no
instante” que sabem da notícia, a narradora diz que “todo mundo esquece que o Billy
era minúsculo, e que na verdade era uma figura ridícula com aquela gagueira e aquela
64

pele horrível” e Cora, que é a portadora de tal terrível notícia, a comunica “com uma
voz tão chorosa que parece até que está falando do irmãozinho mais novo ou algo
assim” (op. cit., p. 114).
A morte, a memória, na perspectiva da narradora, “lança uma espécie de
auréola sobre ele”, morte essa que atinge ares heroicos e míticos: “Parecia até que
ele tinha morrido por todas nós, sentadas ali naquelas macas”, diz a narradora e outra
secretária afirma que “Ele não teria morrido [...] se não estivesse ajudando os outros”
(PLATH, 2020, p. 114). Uma das secretárias retira os dizeres maldosos que “disse
sobre ele outro dia”, enquanto “Só Dotty fica em silêncio” (op. cit., p. 114). Voltando
ao terreno do simbólico, também sua relação com o ambiente, a morte na obra
plathiana normalmente é associada com a ausência de luz e, em algumas exceções,
com a existência dela, segundo Castillejos (2002). A luz em sua totalidade é um
elemento familiar – um dia de sol, a luz diurna – mas a luz noturna, a parca iluminação
é inquietante: o familiar que retorna como não familiar.
Nesse sentido, podemos observar que “quando Cora vem voando pelo
corredor” para dar a notícia às colegas, as meninas estavam “tentando jogar paciência
à luz de uma lanterna de bolso que alguém arranjou” (op. cit., p. 113). E parcamente
iluminada “no círculo branco e luminoso projetado pela lanterna”, com os olhos “bem
abertos e um pouco úmidos”, Cora transmite a notícia:

— Ele estava subindo e descendo as escadas sem parar — Cora diz, com
uma voz tão chorosa que parece até que está falando do irmãozinho mais
novo ou algo assim. — Subindo e descendo, subindo e descendo com os
prontuários, e sem luz, e ele estava com tanta pressa que descia dois, três
degraus de uma vez. E ele caiu. Ele caiu um lance inteiro. (PLATH, 2020, p.
114).

Semelhante à análise de Castillejos (2002), sobre a morte da personagem


Norton em “The Fifty-Ninth Bear” (In: Johnny Panic and the Bible of Dreams and Other
Prose Writings. PLATH, 1977). A ausência de luz é a condição que possibilita e
culmina na morte de Billy: o rapaz caiu ao subir e descer às escadas no escuro, na
ausência de luz. O grupo de secretárias, em choque e com a ordem interior abalada
no ambiente, vai dormir, ou melhor, passar noite em macas improvisadas, no escuro,
sem luz: “Nessa hora Mary Ellen desliga a lanterna, e todas tiramos os vestidos no
escuro e nos deitamos” (PLATH, 2020, p. 115).
65

Mesmo a única aparição direta em vida de Billy no conto é associada pela


narradora à falta de luz: “No corredor escuro, as luzes elétricas dão a impressão de
que a noite chegou mais cedo” (PLATH, 2020, p. 107). E quando Dotty e a narradora
vão fazer a entrega das flores no quarto da senhorita Emily, também se deparam com
a ausência de luz: “Sob a luz insalubre da tempestade lá fora, a Srta. Emily parece
uma boneca de cera, exceto pelos olhos, que nos encaram fixamente. Quase os sinto
queimando minha pele, tamanha sua intensidade” (op. cit., p. 106). Esse brilho no
olhar da doente terminal pode ser interpretado como consciência da aproximação da
morte, instintiva, ainda que tentem esconder dela: “Agora ela sabe” (op. cit., p. 107).
Billy Monihan pode ter a sua carga do abjeto, do inquietante, a começar pela
descrição física da personagem e do seu comportamento, pela narradora:

Uma figura esguia e franzina está apoiada na parede do corredor vazio a


poucos metros da porta da Srta. Emily [...] quando nos aproximamos, a figura
se achata ainda mais contra a parede, como se por milagre pudesse se
misturar ao gesso pintado de verde e perder-se de vista. (PLATH, 2020, p.
107)

A descrição comportamental-física entra no terreno do abjeto, lembrando elementos


“heterogêneo, animal, metamorfoseado”77 (KRISTEVA, 1982, p. 207). Billy era
excluído, dentro do seu ambiente de trabalho, devido a sua aparência física e
comportamento: ser esguio e franzino permite a ele se esgueirar e se misturar ao
ambiente – sua descrição pode lembrar um camaleão. A narradora e a personagem
Dotty se assustam com a sua repentina aparição: “Billy Monihan!”, diz Dotty, entre o
assombro e a indignação, “Pelo amor de Deus, o que é que você está fazendo aqui?”
(op. cit., p. 107).
Essa criatura gagueja, “Billy chia com dificuldade [...] parece que está tentando
engolir a própria língua para se esquivar de qualquer tipo de comunicação [...] um
gorgolejo estranho e indecifrável escapa da garganta de Billy” (PLATH, 2020, p. 107-
8). Sendo assim, percebemos a dificuldade de Billy se expressar associada à sua
locomoção inquietante. Segundo Kristeva (1992), “infecção, doença” 78 lembram o
perigo para identidade que vem de fora, “o ego ameaçado pelo não-ego, a sociedade
ameaçada pelo seu externo”79 (p. 71). Em “seu rosto ganha um tom violento de

77
[...] heterogeneous, animal, metamorphosed. Em tradução livre.
78
[...] infection, disease. Em tradução livre.
79
[...] the ego threatened by the non-ego, society threatened by its outside. Em tradução livre.
66

vermelho por baixo da camada carmesim de espinhas e pústulas” (PLATH, 2020, p.


107), notamos novamente a cor vermelha remetendo ao inquietante, intensificada pelo
adjetivo “violento”. Além da associação a características físicas de Billy: “um rapaz
muito baixinho [...] extremamente magro, embora já tenha parado de crescer e não
tenha mais como melhorar nesse quesito” (op. cit., p. 107), características essas que
fazem alusão ao animalesco, como um lagarto, por exemplo.
No trecho: “seu cabelo preto comprido está alisado e puxado para trás com
algum tipo de gel de cheiro forte e ostenta os sulcos do pente que há pouco percorreu
a superfície brilhosa de couro envernizado” (PLATH, 2020, p. 107-8), o cabelo liso e
brilhante como “a superfície brilhosa de couro envernizado” (op. cit., p. p. 108) pode
ser uma descrição associada à pele de um animal de sangue frio como o lagarto. O
"cheiro forte” do gel pode ser considerado abjeto porque pode fazer ao sujeito lembrar
o ser dos fluidos do corpo humano, que também tem um odor forte, como “urina,
sangue, esperma, excremento” (KRISTEVA, 1982, p. 53).
Além da dificuldade na fala, Billy é um agente que vai contra a ordem, ele que
embaralha os números dos prontuários: “O Billy Foice, do Ramal Nove, trocou os
números de novo, mas não fez por mal” (PLATH, 2020, p. 94). E lhe são atribuídos
problemas psicológicos: “ele tem se consultado com o Dr. Resnik no nosso setor
[psiquiátrico]” e é comparado a um “abutre” e a um “vampiro”, por Dotty (PLATH, 2020,
p. 108). O garoto aparentemente tem um mórbido interesse pela morte e por isso “ele
fica rodeando aquela entrada da Ala de Emergência, parece até que o próprio Jesus
Cristo está pra entrar por aquela porta e anunciar o Juízo Final” (op. cit., p. 108).
Como em “Lady Lazarus” (In: Ariel. PLATH, 1965), Plath busca na Bíblia
sagrada uma referência que está localizada no limiar entre o mundo dos mortos e o
mundo dos vivos, o Messias que retorna para ressuscitar todos os mortos da
humanidade. Esse mórbido interesse da personagem pela morte, por sua vez pelo
abjeto, que inquieta, torna-se latente na descrição de “umas histórias” que
teoricamente Billy espalhou:

— Só sei que ele quase matou a Ida Kline de medo na semana passada, no
setor de Datilografia, porque ficou contando umas histórias sobre uma mulher
que chegou à Dermatologia toda roxa, inchada igual a um elefante e de
cadeira de rodas por conta de alguma doença tropical. A Ida não conseguiu
comer nada no almoço porque não parava de pensar naquilo. Tem um nome
para isso, para essas pessoas que ficam rodeando cadáveres e tudo mais.
67

Neco… necrófilos. Eles vão ficando cada vez piores e começam a desenterrar
os corpos do cemitério. (PLATH, 2020, p. 109, grifo da autora)

A aparência descrita da mulher inquieta pelo "animalesco", a semelhança com um


elefante, animal que inquieta pelo seu tamanho excessivo e remonta ao medo de
sermos “esmagados”. O corpo da mulher foi deformado, alterado pela morte, nas
proporções e na cor.
Esse abjeto interesse pelo corpo humano doente e deformado, inquieta, assim
como esse interesse não reprimido pela morte. Dotty, a personagem que critica Billy
e suas estranhas histórias, narra um episódio, sobre uma paciente, relacionado à fobia
da volta dos mortos: “[a paciente] não conseguiu aceitar que a filhinha morreu, não
parava de ver a filha andando por aí, na missa, no supermercado” e “Ia ao cemitério
todos os dias” e a mãe jurava que “um dia a menininha veio visitá-la, vestida de bata
branca de renda” e tentou confortar a mãe: “disse para ela não se preocupar, que ela
está no céu e está sendo bem cuidada, que está tudo bem” (PLATH, 2020, p. 109). O
morto muitas vezes pode representar “algo reprimido que retorna” (FREUD, 1919, p.
201).
O branco, cor familiar (presente em casamentos, batizados etc), assim como a
cor de rosa das flores, retorna como o elemento não-familiar, associado com o retorno
dos mortos. Por sua vez, tal fobia da morte é associada ao duplo (RANK apud FREUD,
1919): ele foi “uma garantia contra o desaparecimento do Eu”, uma forma dos
primitivos desafiarem a própria morte (p. 197). Nesse sentido, do duplo como a volta
daquilo que parecia “superado”, “reprimido” e volta, podemos enxergar a figura de Billy
como um duplo da narradora e espelho do inconsciente das demais personagens: ele
não reprime o seu interesse pela morte, enquanto a narradora e as personagens ao
seu redor o fazem.
“Eu fico pensando…”, pergunta-se Dotty, “Eu fico pensando se é possível curar
uma coisa assim” (PLATH, 2020, p. 113) e esse pensamento intimida a colega que
narra, porque talvez em seu inconsciente ela se identifique com o interesse pela morte
de Billy. A secretária-narradora é o completo oposto de Billy – centrada, responsável,
integrada socialmente no trabalho – mas inconscientemente pode se identificar com
algumas características de Billy, como o interesse pela morte: “O menino não é de
todo mau” diz ela sobre ele “apesar de saber o que sei sobre a Sra. Tomolillo, e Emily
Russo, e Ida Kline e a mulher elefante” (op. cit., p. 113).
68

O abjeto está presente em “As Filhas” nas descrições de “gente morta”,


“doentes” e violentos “acidentes” e “espancamentos”, e dentre elas, estão as
descrições relacionados à amputação:

Um homem de muleta, com uma perna da calça vazia e cuidadosamente


dobrada na altura do quadril, passa se sacudindo pela porta. Depois dele vem
uma assistente do Setor de Amputados arrastando uma perna artificial e meio
torso artificial. (PLATH, 2020, p. 111-2)

O pai de Sylvia Plath, Otto Plath, teve a perna amputada e morreu de uma embolia
devido a essa amputação, o que deixou uma impressão na filha, segundo Stevenson
(1992, p. 278). Freud (1919) argumenta que a fobia de perder os olhos ou outros
órgãos “é frequentemente um substituto para o medo da castração”, em que “ um
sentimento bastante forte e obscuro dirige-se precisamente contra a ameaça de
perder o membro sexual e de que apenas esse sentimento confere ressonância à ideia
da perda de outros órgãos” (p. 195). No entanto, o efeito inquietante da imagem, em
“As Filhas”, não provém apenas da amputação em si. Além do homem de muletas
com “uma perna da calça vazia” (PLATH, 2020, p. 111), há a presença de um rapaz
com “uma perna artificial e meio torso artificial” (op. cit., p. 112). Sendo assim,
percebemos a amputação e o prolongamento do humano com o artificial como sinais
do inquietante que anuncia e convive com a morte abjeta.
Segundo a teoria freudiana, “é extremamente inquietante quando coisas,
imagens, bonecas inanimadas adquirem vida” (FREUD, 1919, p. 205), especialmente
se máquinas ou objetos possuem a aparência à semelhança do ser humano. Portanto,
a imagem do homem com as próteses é inquietante porque ela está no limiar, entre a
imagem dos autômatos que adquirem vida e pensamento próprio (o inanimado na
forma do humano) e do ser humano “castrado”: o homem-máquina completado e, no
inconsciente, dominado pela máquina.
Voltando ao inquietante relacionado à morte em “As Filhas”, a tão falada
“Blossom Street” ou a “Rua das Flores”, em uma tradução do título, é uma espécie de
metonímia à morte, compartilhada entre os funcionários do hospital, um lugar “onde
eles colocam toda essa gente morta”:

— Numa sala que dá na Blossom Street, aquela rua, eu te mostro onde fica.
Os médicos nunca dizem que alguém morreu com essas palavras, sabe, para
não fazer os pacientes pensarem coisas ruins. Eles dizem: Quantos dos seus
69

foram para a Blossom Street esta semana? E a pessoa responde: Dois ou


Cinco. Ou quantos forem. Porque é pela saída da Blossom Street que os
corpos são enviados para as funerárias e preparados para o enterro. (PLATH,
2020, p. 95)

Como Freud (1919) observa, tudo aquilo “deveria permanecer secreto, oculto,
mas apareceu” é inquietante: ainda que tentem esconder dos pacientes o real
significado da expressão, a narradora e os outros funcionários do hospital, sabem o
que ir para Blossom Street significa e são “inquietados” por isso, algo que não deveria
aparecer, mas aparece. A própria Emily Russo, personagem chave no conto, apesar
da tentativa de esconderem seu estado terminal, ela acaba “intuindo” a sua morte
iminente: “— Ela sabe — Dotty me diz quando nos afastamos da cama da Srta. Emily.
— Agora ela sabe” (PLATH, 2020, p. 107). A morte em “As Filhas” é inquietante
também porque está relacionada ao “desaparecimento do Eu” em termos de Freud
(1919).
Nesse sentido, após a morte, viramos apenas um número cancelado em uma
planilha: “Lillian Ulmer está Morta, e o número nove-um sete-zero-seis, para sempre
cancelado dos arquivos ativos da Sala do Arquivo” (PLATH, 2020, p. 94). Quando
Minnie Dapkins “começa a entregar formulários de encaminhamento impressos em
cor-de-rosa e amarelo” – novamente o cor-de-rosa como elemento familiar que retorna
inquietante como elemento não-familiar – ela se esquece que um médico faleceu:

— Tem algum Dr. Crawford no Sistema Nervoso? — ela pergunta, mostrando


um formulário rosa. — Dr. Crawford! — Mary Ellen do Sistema Nervoso cai
na gargalhada, e seu corpanzil negro chacoalha feito gelatina dentro do
vestido florido. — Morreu há uns seis ou sete anos, quem procurou? Minnie
retesa os lábios, que ficam parecendo uma florzinha rosada e rígida. (PLATH,
2020, p. 96)

A morte significa esquecimento e esses mortos esquecidos podem retornar de


forma inquietante: “— Uma paciente disse que foi atendida pelo Dr. Crawford — ela
responde friamente. — Minnie não tolera que desrespeitem os mortos” (PLATH, 2020,
p. 96). Também há elementos abjetos relacionados à morte: “ver um monte de gente
morta todo dia”, como “todos os acidentes e espancamentos” que chegam ao pronto
socorro, a violência de uma cidade hostil ou o medo de se perder e adentrar “numa
sala cheia de pessoas estiradas ou abertas ao meio” (PLATH, 2020, p. 94). A partir
daí, podemos começar a enxergar o ambiente do hospital, de forma semelhante a
70

tudo aquilo que está no limiar – tal como a vacilação/incerteza do fantástico


todoroviano – “no entrecruzado, no meio termo” (TODOROV, 1981, p. 191).
Nesse sentido, o ambiente representado pelo hospital está entre outros
espaços físicos diferentes, a saber: o espaço exterior, fora do espaço físico hospitalar,
onde as pessoas entram saudáveis e são inseridas a uma “normalidade”; e o espaço
representado pela “sala que dá na Blossom Street”, a saída, por onde os cadáveres
são despejados em direção aos seus destinos finais (PLATH, 2020. p. 95). E esses
espaços podem ser interpretados com uma certa carga simbólica. Nesse caso,
relacionada à temática da morte, latente desde o primeiro parágrafo do texto: o mundo
exterior à entrada do hospital pode ser enxergado como o mundo dos vivos, enquanto
a saída em direção a Blossom Street pode ser interpretada como a passagem que
leva as pessoas em direção ao mundo dos mortos e o hospital pode funcionar como
um ambiente neutro: entre o mundo dos vivos e o dos mortos, um ambiente no limiar
de ambos.

Figura 7: Estampa de Sylvia Plath com a Deusa Ísis

Fonte: Stevenson (1992, p. 224)

Plath possui, em sua obra, símbolos recorrentes e referências que podem ser
relacionados a essa movimentação do entrecruzado entre mundos – do limiar – tal
como a figura de Lázaro em “Lady Lazarus”, o ressuscitado pertence ao mundo dos
71

mortos e ao mundo dos vivos: “Volte em dia cheio / Ao mesmo lugar, o mesmo rosto,
o mesmo bruto / Grito divertido: / Um milagre!”80 (“Lady Lazarus”. In: Ariel. PLATH,
1965, p. 62). Segundo Rollyson (2015), outra fonte de referências para Sylvia Plath foi
a mitologia, vez que a escritora se identificava com a Deusa egípcia Ísis e, em
companhia de Ted Hughes, seu marido, “como o Osíris perdido” (p. 146). Segundo
Santos (2003), Ísis e Osíris na mitologia do antigo Egito são os deuses que reinam
“num Outro Mundo, o mundo dos mortos" (p. 15).

Figura 8: Lázaro, no filme Sylvia (2003)

Fonte: Jeffs (2003)

Ambos, nesta mitologia, estão entre o limiar dos mundos: Osíris reinava no
Mundo dos Vivos, mas “a inveja de seu irmão Seth” provocou seu assassinato e a
destruição da ordem, “mas a persistência de sua esposa Ísis fez com que ele voltasse
à vida e fosse reinar” sobre os mortos (SANTOS, 2003, p.15). O casal se torna
responsável pelo “Julgamento dos Mortos”, momento em que o coração do morto era
pesado e se fosse leve o bastante, seu dono passaria para a vida eterna no mundo
de Osíris (op. cit., p. 62).
Na mitologia greco-romana, podemos associar à Ísis e ao Osíris às figuras de
Hades e Perséfone, um outro casal de soberanos no mundo dos mortos: Hades raptou
Perséfone de sua mãe – Deméter – e Zeus tenta trazê-la de volta, mas “quando
Perséfone retorna, descobre-se que ela ingeriu sementes de romã enquanto estava

80
Comeback in broad day / To the same place, the same face, the same brute / Amused shout:
/ A miracle! Em tradução livre.
72

em Hades” e desde então, “Perséfone deve passar um terço do ano em Hades e voltar
para sua mãe na primavera”, e esse mito da deusa está associado com as estações
do ano (MESQUITA, 2017, p. 01-2). Perséfone também vive no limiar dos dois
mundos.
Dessa forma, podemos interpretar o livro de prontuários em “As Filhas”, em um
caráter simbólico, como a espécie de um “Livro dos Mortos”, vez que para aqueles
que morreram e seguiram seu caminho pela “Blossom Street” têm seu número
cancelado numa contabilidade sinistra: “Lillian Ulmer está Morta e o número nove-um-
sete-zero-seis, para sempre cancelado dos arquivos ativos da Sala do Arquivo”
(PLATH, 2020, p. 94). O livro é representação física da ordem burocrática existente
no hospital, a qual todos os funcionários estão submetidos, mas que desmorona
naquela noite insólita. Próximo ao clímax do conto, com a morte de Billy, o homem-
lagarto, o “Livro dos Mortos” é destruído, aparentemente por uma paciente, “a velha
Sra. Tomolillo” (op. cit., p. 111).
Segundo a narradora, uma paciente, “a Sra. Tomolillo” apareceu “raivosa e
molhada feito uma bruxa”, vestida “com o vestido de lã preta que usava o ano inteiro,
chacoalhando uma pilha de papéis encharcados” (PLATH, 2020, p. 111). A senhora
parece estar com seu comportamento alterado, fora do seu temperamento normal,
“possuída”, “contorcendo os dedos de forma perturbadora”:

Eis que a pilha de papéis encharcados era o livro com os prontuários médicos
da própria Sra. Tomolillo, algo que paciente nenhum tem o direito de acessar
em nenhuma circunstância. O livro está um desastre, e as anotações feitas
com tinta vermelha, azul e verde dos inúmeros médicos dos inúmeros setores
que a Sra. Tomolillo frequenta se fundiram num louco arco-íris que desprende
pingos coloridos de água e tinta quando o tiro de suas mãos. (PLATH, 2020,
p. 111)

As cores que, separadas em sua solidez, podem representar elementos


“familiares”, fundem-se em sua liquidez gerando um elemento heterogêneo que pode
remeter ao inquietante. Em sua “possessão”, a Sra. Tomolillo desafía a ordem, a
hierarquia paciente/médico, “sibilando” que o que está escrito nas páginas do livro
“sagrado” é “Mentira atrás de mentira [...] Tudo mentira” (PLATH, 2020, p. 112). Com
a destruição do livro, mesmo que parcial, os mortos estão “libertos”, livres para
interromperem seu trajeto em direção ao mundo dos mortos e permanecerem no
limiar, no hospital, esse ambiente inquietante.
73

Outros pontos relevantes da caracterização da Sra. Tomolillo, é sua deficiência


auditiva – que inquieta a narradora, de forma semelhante à gagueira de Billy – “ela
tem a audição especialmente prejudicada, embora se recuse a usar um aparelho”
(PLATH, 2020, p. 111). Podemos associar tanto a própria recusa da personagem em
utilizar o aparelho com o inquietante em relação aos objetos inanimados, quanto à
impressão que a surdez da personagem deixa na narradora como a fobia inconsciente
da castração. Outro ponto é a comparação que é feita pela narradora entre a paciente
e uma figura da mitologia greco-romana: “Ela para na soleira da porta, negra e
agourenta como uma das moiras, atingida pela tempestade que ela mesma criou” (op.
cit., p. 112).
Na mitologia grega, segundo Abreu (2011), “três entidades primordiais eram
associadas ao destino, à Moira” (p. 34), cada uma delas tinha o poder de tecer “a vida
de cada mortal e ficava a cargo delas a extensão e o término do bordado” (op. cit., p.
34). As moiras estão também ligadas, tal como Ísis, Osíris e Perséfone, ao limiar do
mundo dos mortos entre o mundo dos vivos, pois definem quando o fim chegará para
todos. No entanto, a associação não acontece de forma positiva – a Sra. Tomolillo é
comparada a uma bruxa, com suas roupas pretas agourentas – e talvez sua descrição
se aproxime mais das três correspondentes shakespearianas das moiras, as bruxas
da peça Macbeth (SHAKEPEARE, 1607). A descrição da paciente também evidencia
o aspecto da fusão do eu com a natureza, o ambiente e o clima atmosférico,
mencionado por Castillejos (2002): ela foi “atingida pela tempestade que ela mesma
criou” (PLATH, 2020, p. 112).
Segundo Castillejos (2002), a natureza/clima na obra de Plath aparece também
como um elemento sinistro e inesperado, que produz “medo e insegurança”, que está
relacionado à existência dos duplos-plathianos no ambiente, onde há seres com os
quais a “identidade se funde” (p. 88). Nesse sentido, podemos enxergar essa questão
do ambiente/questão climática em “As Filhas” vinculada ao pensamento de que o
hospital na história funciona como uma casa mal-assombrada, uma “casa unheimlich”,
nas palavras de Freud (1919), em que “o inquietante está muito mesclado ao
horripilante” (p. 201)81.

81
É importante lembrar que não necessariamente, locais assombrados na literatura são apenas
residências, em The Shining (KING, 1977), por exemplo, há um hotel mal-assombrado.
74

Figura 9: Wuthering Heights Hoje, desenho feito por Sylvia Plath, em 1956

Fonte: Plath (2014, p. 20)

Em diversas obras na literatura, a natureza e/ou o clima atmosférico aparece


associado com assombrações sobrenaturais e/ou psicológicas de locais mal-
assombrados, onde a natureza responde com “aberta hostilidade” ao ser humano,
como na obra de Plath (CASTILLEJOS, 2002, p. 93). Em Wuthering Heights [O Morro
dos Ventos Uivantes] (BRONTË, 1847), Catherine Earnshaw assombra o Sr.
Lockwood durante uma hostil tempestade de neve: enquanto o personagem “ouvia
claramente a ventania e a neve açoitando o telhado”, tentou abrir a janela e seus
“dedos se fecharam sobre os de uma pequenina e gélida mão!” (BRONTË, 2016, p.
52). No conto “The Fall of the House of Usher” [A Queda da Casa de Usher] (POE,
1839), enquanto as “cortinas escuras e puídas” da casa “dançavam
espasmodicamente”, junto “com o sopro de uma tempestade iminente”, o sentimento
de temor toma conta do narrador: “um irreprimível tremor gradualmente invadiu meu
corpo” (POE, 2012, p. 235). Os estranhos eventos, psicológicos e sobrenaturais, que
acontecem na casa do conto de Edgar Allan Poe, estão diretamente relacionados à
hostilidade da tempestade:

A tempestade lá fora continuava em todo seu furor quando me vi


atravessando o velho tablado de madeira. De repente no caminho uma luz
fantástica brilhou, e virei para ver de onde um fulgor tão incomum podia provir;
pois apenas a vastidão da casa e suas sombras estavam atrás de mim. (POE,
2012, p. 241)
75

Figura 10: The Fall of the House of Usher, ilustração.

Fonte: Jodra (2016)

No referido conto de Sylvia Plath, a hostilidade da natureza em torno do


hospital, mais especificamente a aproximação do furacão, está associada à quebra
da ordem burocrática, como já comentamos anteriormente. No entanto, o efeito
inquietante da hostilidade do clima/natureza em “As Filhas” provém da “incerteza
intelectual” (FREUD, 1919, p. 188), semelhante à vacilação do fantástico de Todorov
(1981), em que o leitor vacila ao não conseguir distinguir se essa hostilidade tem uma
explicação “realista” ou “sobrenatural”. E “com o céu tão escuro e o furacão avançando
pelo litoral com seu estrondo, chegando mais perto a cada minuto” (PLATH, 2020, p.
94), o clima tanto atmosférico quanto climático, no hospital não é positivo:

Eu também não estou gostando do céu. A sala foi ficando cada vez mais
escura desde que chegamos, até o ponto em que ficamos todas sentadas
numa espécie de penumbra, com a fumaça subindo dos nossos cigarros e
estendendo seu véu no ar já tão denso. Por um minuto ninguém diz nada.
Parece que Cora expressou em palavras o medo secreto de todas nós.
(PLATH, 2020, p.97)

Neste trecho, podemos perceber que há a influência dos eventos climáticos no


exterior, que escurece o ambiente interior deixando todas as personagens “numa
espécie de penumbra”, acompanhada de uma neblina dos cigarros, que por sua vez,
influencia o psicológico gerando esse sentimento generalizado de temor, “Ora, ora, o
que é que está acontecendo com a gente, meninas? Parece que estamos num
enterro!” (PLATH, 2020, p. 97). As personagens tentam afastar esse clima ruim e
premonitório de forma artificial, iluminando o ambiente:
76

As lâmpadas dos quatro soquetes de cobre no teto se acendem de repente,


e como por mágica a sala se ilumina, mandando o céu tempestuoso para bem
longe, onde é seu lugar, inofensivo como um cenário de peça de teatro. (op.
cit., p. 97)

Mas apenas acender as luzes não soluciona o problema e a narradora, mais


de uma vez, compara esse clima pesado no ambiente a elementos do sobrenatural:
“na quietude que se instala, a sirene de uma ambulância que se aproxima eleva e
depois derruba seu grito de feiticeira, passando debaixo de nossas janelas,
enfraquecendo na esquina e enfim cessando na entrada da Ala de Emergência”
(PLATH, 2020, p. 102, grifo da autora). Neste trecho, a completa ausência de som é
inquietante até o irromper arbitrário de um barulho (o som da sirene), considerado
desagradável. Segundo Freud (1919), o inquietante relacionado ao silêncio, assim
como ao relacionado à solidão e à escuridão, está ligado a fatores relacionados à
“angústia infantil, que na maioria das pessoas nunca desaparece inteiramente” (p.
209). A falta de som também atinge o quarto de Emily quando a narradora e Dotty vão
lhe entregar as flores:

Não há ruído no quarto, a não ser o seco farfalhar da respiração da srta.


Emily, e não há movimento, a não ser a débil elevação do lençol sobre seu
peito e as bolhas de ar que impulsionam seus balões prateados rítmicos em
um desses frascos de líquido. (PLATH, 2020, p. 106)

Nesse sentido, a aproximação do furacão está tanto associada ao inquietante,


“coisa vai começar por volta do meio-dia”, exatamente o “meio”, o limiar vespertino,
segundo a previsão do “último boletim da Direção" (PLATH, 2020, p. 102). A fusão
entre o ambiente e as personagens e o abalo em ambos também está associado ao
evento que é a doença terminal de Emilly Russo. Por exemplo, quando a Sra. Rafferty
pede à Minnie que conte a situação na reunião das secretárias:

A Sra. Rafferty troca um olhar rápido com Minnie Dapkins. Minnie esfrega
suas mãos pálidas que parecem de papel uma na outra e lambe os lábios do
jeito que ela sempre faz, como se fosse uma coelha. Do lado de fora das
janelas abertas surge um ventinho repentino, e a julgar pelo barulho está
começando a chover, mas é mais provável que seja só o barulho dos papéis
que começaram a voar pela rua lá embaixo. (PLATH, 2020, p. 100)

Há um nítido paralelo entre o comportamento ansioso de Minne, conforme vemos:


“Minnie parece estar prestes a chorar”, nervosismo que contamina todas no ambiente,
77

“a situação foi de mal a pior depois que a Sra. Rafferty chegou, quando estávamos
todas de cabeça baixa, fumando ou descascando o esmalte das unhas” (PLATH,
2020, p. 101). Com o clima, a chuva que se inicia e o vento.
No entanto, a narradora preserva a incerteza necessária ao inquietante, ao dar
outra explicação ao barulho lá fora. Outro evento relacionado à fusão do eu com o
ambiente e a hostilidade da natureza na “casa mal-assombrada” é a "possessão" da
Sra. Tomolillo: “Como estava chovendo cobras e lagartos, e o vento era capaz de
destruir a cidade, nenhum paciente veio ao consultório a tarde toda. A não ser, é claro,
a velha Sra. Tomolillo” (op. cit., p. 111). E a aparição da paciente, num clima tão hostil,
é associada pela narradora com bruxaria: “a Sra. Tomolillo me apareceu, raivosa e
molhada feito uma bruxa” (op. cit., p. 111).
Enquanto a secretária-narradora tenta contornar a situação, procedendo com a
destruição do prontuário, a hostilidade da tempestade se torna latente e é associada
novamente a uma figura do sobrenatural, desta vez um gigante: “Atrás de mim a janela
estremece inteira, como se lá fora algum gigante de vento tentasse entrar à força para
ver a luz. A chuva começou a golpear o vidro com a violência de tiros de pistola”
(PLATH, 2020, p. 112). Logo, a natureza hostil, na perspectiva da narradora, funde-
se na “bruxa” que invadiu a ala psiquiátrica: “Ela para na soleira da porta, negra e
agourenta como uma das moiras, atingida pela tempestade que ela mesma criou” (op.
cit., p. 112).
Porém, da mesma forma que há associações que parecem explícitas a
aspectos sobrenaturais, permanece também o sentimento de dúvida. Como quando
uma paciente jura que foi atendida por um médico que já faleceu: “— Uma paciente
disse que foi atendida pelo dr. Crawford — ela responde friamente. — Minnie não
tolera que desrespeitem os mortos” (PLATH, 2020, p. 96). Mesmo que a personagem
inicialmente não duvide que a situação não passe apenas de uma brincadeira, um
trote, o leitor vacila ao se perguntar se não houve um retorno dos mortos para atender
os pacientes.
A Sra. Rafferty, personagem importante nessa passagem e responsável por
teoricamente manter a ordem entre as secretárias, ocupa um espaço no meio da
hierarquia do hospital, no entre-limiar da estrutura profissional daquele ambiente. As
secretárias estão na hierarquia, estão entre a Administração e os Médicos, “suas
manias estranhas, suas caligrafias ilegíveis” e a “infantil incapacidade de anexar as
78

receitas e prontuários na página correta dos livros de registros dos pacientes” (PLATH,
2020, p. 98) da Sra. Rafferty são elementos inquietantes dentro da própria ordem:

Na verdade, a Sra. Rafferty é nosso escudo. O escudo que fica entre nós e
as hierarquias da Administração, e também o escudo que nos separa dos
Médicos, sempre com suas manias estranhas, suas caligrafias ilegíveis (“Já
vi letra melhor até na pré-escola”, a Sra. Rafferty teria dito certa vez, segundo
as más-línguas), sua infantil incapacidade de anexar as receitas e prontuários
na página correta dos livros de registros dos pacientes, e daí por diante.
(PLATH, 2020, p. 98)

Voltando à questão da casa mal-assombrada, o clímax do conto, as mortes de Emily


e Billy, são inquietantes para o leitor devido à incerteza/vacilação no conto. Quando a
narradora e personagem Dotty, a primeira nota um brilho esquisito em Emily quando
ela vê as flores:

Os olhos da srta. Emily flutuam até o monte de flores. Alguma coisa neles
fulgura. Sinto que estou observando duas velas no final de um longo corredor,
dois pontinhos flamejantes que se apagam e se reavivam num vento sombrio.
Do lado de fora da janela, o céu está mais preto que uma frigideira de ferro
fundido. (PLATH, 2020, p. 106)

Neste trecho também podemos notar a questão da hostilidade da natureza, que


pode estar ligada ao sobrenatural, como elemento de presságio da morte da
personagem. Ao pôr os olhos nas flores, aparentemente toma consciência do seu
estado de doente terminal. Tal como Petersen (2015) nota em “The Fifty-Ninth Bear”,
o único elemento que pode apontar diretamente para o sobrenatural dentro dessa
passagem é o brilho que “fulgura” nos olhos da doente, mantendo junto com a fusão
com a natureza/clima, a dúvida. Quando a dupla sai do quarto de hospital, encontram
Billy esperando para entrar no quarto também: “— Billy Monihan! — Dotty exclama. —
Pelo amor de Deus, o que é que você está fazendo aqui?” (PLATH, 2020, p. 107). Billy
é a única pessoa que visita a moribunda com regularidade, apesar das más
características que são atribuídas ao rapaz: “Você nem conhece a Srta. Emily, nunca
a viu na vida, deixe ela em paz, ouviu?” (op. cit., p. 108).
Quando anuncia a morte de Emily Russo, a Sra. Rafferty é descrita como
narradora como “um veleiro branco de vento em popa, com seus brincos de
estetoscópio balançando dos dois lados de um rosto que só traz mau agouro” (PLATH,
2020, p. 110). Nesse sentido, Stevenson (1992) fala sobre a questão dos “escritos de
79

hospital” de Sylvia e da imagística do hospital: “na iconografia de Sylvia, o hospital”


funciona como “um estabelecimento religioso”, no qual são promovidas limpezas
espirituais, e onde os funcionários viram “membros de uma seita" e as flores são
usadas em rituais (p. 269). Em “Johnny Panic” essa visão do hospital como uma seita
religiosa é mais explícita, mas em “As Filhas” podemos interpretar a figura “agourenta”
da Sra. Rafferty como a chefe dessa ordem religiosa de “secretárias”, o que indica a
cor branca do seu vestido (a cor também associada ao retorno dos mortos).
“As Filhas” é um título que remete a esse caráter religioso que pode ser
atribuído ao grupo de secretárias: jovens sacerdotisas que são instruídas nos ritos
religiosos por superiores mais velhos, normalmente do sexo feminino, e oferecidas em
honra de alguma divindade. Segundo Rockenback (2017), havia no mediterrâneo o
culto à Deusa egípcia Ísis, com “esposas e filhas como sacerdotisas” (p. 107). O
sacerdócio feminino pode ser associado a um caráter premonitório: Cassandra,
personagem da Odisséia, de Homero (VII a.C), torna-se sacerdotisa ao Deus Apolo,
por ser “possuidora do dom da profecia” (OUTEIRO, 2018, p. 229).
Voltando à morte de Emily Russo, ela é acompanhada por Billy em seus
momentos finais: “Não. Ela não estava sozinha. O Billy Monihan estava com ela
quando ela se foi. A enfermeira de plantão disse que ele pareceu muito emocionado,
muito comovido com a senhorinha” (PLATH, 2020, p. 110). A incerteza continua, pois
podemos nos guiar pela percepção de Dotty e acreditar que Billy tem um motivo
esquivo para suas visitas à Emily, ou o contrário, imaginar que ele tinha motivos
nobres ao fazer uma companhia desinteressada a paciente, há elementos para as
duas interpretações no texto.
Semelhantemente, esse sentimento de incerteza se estende à morte do próprio
Billy. Quando ele corre pelos corredores escuros do hospital, a narradora observa
que “estrutura do hospital parece estar abalada:

O edifício das clínicas, apesar de ser muito grande, com sua fundação sólida
de concreto e a construção de tijolo e pedra, parece profundamente abalado
quando eu e Dotty atravessamos o corredor do primeiro andar e a passagem
que leva ao refeitório da ala principal para comer alguma coisa quente no
jantar. Conseguimos ouvir as sirenes, altas e fracas, que percorrem e rodeiam
a cidade — caminhões de bombeiros, ambulâncias, viaturas de polícia. O
estacionamento da Ala de Emergência está lotado de ambulâncias e carros
particulares que não param de chegar das cidades vizinhas — pessoas tendo
ataque cardíaco, pessoas com insuficiência pulmonar, pessoas com histeria
galopante. (PLATH, 2020, p. 112)
80

Há a oposição entre a solidez da construção “de tijolo e pedra” e o abalo


provocado pelo clima hostil. A cacofonia das sirenes e barulhos dos carros
complementa o abalo da ordem. E existe o elemento que resultará na tragédia, a
escuridão: “E para piorar houve uma queda de energia, então precisamos andar
tateando as paredes na semiescuridão” (PLATH, 2020, p. 112). E como se o mal
tempo e a hostilidade da natureza, tivessem piorado as doenças dos pacientes,
ocasionando esse pandemônio que o hospital se transformou, com médicos e
funcionários fora da sua burocracia costumeira:

Por toda parte, médicos e residentes esbravejam ordens, enfermeiras de


uniforme passam flutuando, brancas como fantasmas, e macas que levam
pessoas embrulhadas — grunhindo, ou chorando, ou imóveis — são
carregadas de um lado para o outro. No meio de tudo isso, um vulto
conhecido passa correndo por nós e desce no escuro o lance de degraus de
pedra que levam ao primeiro e ao segundo subsolos. (PLATH, 2020, p. 112).

Novamente, a cor branca é associada ao fantasmagórico e ao "agourento",


apontando para a interpretação relacionada ao sobrenatural: a previsão de um
desastre iminente. Junto ao som das sirenes de ambulâncias e carros de polícia, junta
o barulho do “sofrimento” dos pacientes. No meio dessa desordem, Billy faz pela
primeira vez. na visão das demais personagens, uma atividade útil, correndo no
escuro pelos “degraus de pedra” – elementos que deveriam ser sólidos e seguros,
mas que serão responsáveis por sua morte – ele está pela primeira vez do lado da
“ordem”, inserido naquele organismo, que por outro lado, está desregulado: os polos
se invertem. Dotty não consegue enxergar Billy no escuro, “Não consigo enxergar
nada nesse breu, acho que preciso de óculos”, mas grava o altruísmo da personagem
nessa desordem: “Toda ajuda é bem-vinda nesse sufoco” (PLATH, 2020, p. 112).
Como mencionado anteriormente, a morte de Billy ocorre na escuridão, e por
causa dela, é anunciada na parca luz por Cora:

Mary Ellen e Dotty estão sentadas de pernas cruzadas em uma das macas
do anexo do terceiro andar, tentando jogar paciência à luz de uma lanterna
de bolso que alguém arranjou, quando Cora vem voando pelo corredor até
nos alcançar sentadas das macas. (...) No círculo branco e luminoso
projetado pela lanterna, os olhos de Cora estão bem abertos e um pouco
úmidos. — Mas então — Mary Ellen se inclina em sua direção — você não
soube de nada ruim? Você está branca feito papel, Cora. (PLATH, 2020, p.
113-4)
81

Junto à parca luz, o branco está relacionado a esse mal agouro e a possível
interpretação sobrenatural dos eventos da história: “No círculo branco e luminoso
projetado pela lanterna” e “Você está branca feito papel, Cora” (PLATH, 2020, p. 114).
As secretárias estão sentadas sobre as macas, invertendo a ordem burocrática: quem
deveria ocupar as macas são os pacientes, os polos estão invertidos. Cora, o arauto
das más notícias, não consegue falar com sua mãe, pois “o telefone ficou mudo, não
consegui completar a ligação” (op. cit., p. 114). A impossibilidade de comunicação
exterior, a mudez da linha telefónica pode tanto ser interpretado como um
acontecimento natural devido ao mau tempo, quanto como algo sobrenatural: é
recorrente em histórias de casas mal-assombradas, acontecimentos sobrenaturais
desse naipe. Essa incerteza, junto ao inquietante da pouca luminosidade, está
presente na morte do rapaz:

— Ele estava subindo e descendo as escadas sem parar — Cora diz, com
uma voz tão chorosa que parece até que está falando do irmãozinho mais
novo ou algo assim. — Subindo e descendo, subindo e descendo com os
prontuários, e sem luz, e ele estava com tanta pressa que descia dois, três
degraus de uma vez. E ele caiu. Ele caiu um lance inteiro.
— Cadê ele? — Dotty pergunta, baixando devagar as cartas da mão.
— Onde ele está agora?
— Onde ele está? — A voz de Cora subiu uma oitava. — Ele está é morto,
isso sim. (PLATH, 2020, p. 114)

Assim, persiste a incerteza: se a morte de Billy foi um uma tragédia fatídica, um


acontecimento ocasional e aleatório da realidade, ou um acontecimento com uma
explicação sobrenatural, com o furacão e a tempestade podendo ser os "cúmplices"
na morte do garoto, possibilitando a ausência de luz que “mata” o rapaz, tal como
Castillejos (2002) enxerga a participação da lua na morte de Norton em “The Fifty-
Ninth Bear”.
Nesse sentido, recorremos ao conceito de Umberto Eco, em seu Obra Aberta
(1962). Segundo Lopes (2010), a Obra Aberta de Eco gira em torno da “ambigüidade
da mensagem estética e sua abertura para a iniciativa do leitor” (p. 02), ao passo que
este completa o sentido da obra. O filósofo italiano analisava a obra aberta na luz do
“problema da interpretação, tendo em vista suas liberdades e aberrações”, procurando
pelos fundamentos da “abertura interpretativa” que existe na Obra Aberta, buscando
um ponto de equilíbrio entre ser fiel à obra e à iniciativa do leitor (op. cit., p. 02). Na
82

teoria de Eco, as obras de arte teriam em seu cerne duas características: “a


ambigüidade e a auto-reflexibilidade”, em que mesmo que sejam “uma forma fechada
como um organismo equilibrado”, também possuem uma abertura, sendo passível de
interpretações diferentes, sem que ocorra uma alteração na obra em si (op. cit., p. 04).
O leitor/receptor na teoria de Eco, “ocupa um lugar privilegiado”, produzindo em
suas diferentes fruições, uma “interpretação” e uma “execução” diferentes, em que
cada fruição está revivendo a obra inserida em uma nova perspectiva original (LOPES,
2010, p. 04). Seria “uma abertura formal, que faz parte da própria obra”, uma abertura
para “a convivência de vários significados em um significante” que por sua vez “seria
um valor comum na construção artística” (op. cit., p. 04). Nessa perspectiva, o artista
moderno passa a “utilizar a possibilidade de abertura como caminho de construção
artística por meio da criação de obras que pudessem oferecer o máximo de
possibilidades de fruição” (op. cit., p. 05). Essa variedade de significados que pode
advir da abertura na obra, coloca-se a serviço da arte:

Com esta multiplicação de significados, a arte proporcionaria para quem a


interpreta um acréscimo de informação, uma espécie de epifania da estrutura
ausente que nos ensinaria algo sobre o mundo. A “abertura” seria mesmo
uma metáfora epistemológica, uma espécie de arquétipo que reflete as
mudanças na percepção do conhecimento advindas da descoberta das
lógicas de valores múltiplos, da teoria da relatividade, da física quântica etc.;
campos onde a indeterminação e incompletude tornam-se aceitáveis e
mesmo naturais. (LOPES, 2010, p. 05)

Logo, a obra aberta está localizada no meio “entre a abstrata categoria da


metodologia científica e a matéria viva de nossa sensibilidade”, como se fosse “uma
espécie de esquema transcendental que nos permite compreender novos aspectos
do mundo” (ECO, 2005, p. 158 apud LOPES, 2010, p. 05). Pela perspectiva de Eco,
segundo Lopes (2010), o papel do leitor é semelhante ao de um detetive: o segundo
deve “lançar mão de conjecturas, criar hipóteses para tentar desenvolver sua
investigação”, onde ele encontra “um problema para revolver” e há a necessidade de
“procurar o caminho mais coerente, a hipótese menos extraordinária ou mais provável
para seguir”, e a solução do problema “depende de que a hipótese imaginativa” a ser
desenvolvida pelo leitor “seja verificada experimentalmente, confrontada com a
realidade” (p. 10).
Já o leitor encontra texto “espaços em branco que devem ser preenchidos pelo
leitor” e, assim como o detetive, “deve fazer conjecturas e propor hipóteses para
83

preencher seu sentido” no mundo ficcional (LOPES, 2010, p. 12). A visão de Eco do
texto, é deste “como um mecanismo preguiçoso” que necessita da “atualização
cooperante do leitor para funcionar”: os textos precisam que o leitor/destinatário
forneça “certa competência para compreender o que comunica”, (op. cit., p. 12). Se o
leitor não possui o necessário para “decodificar determinada mensagem” as
interpretações produzidas são “aberrantes” (op. cit., p. 12).
Nesse sentido, Lopes (2010) apresenta o conceito de Eco chamado “o
processo de cooperação interpretativa”, em que o filósofo insere “as figuras de autor-
modelo e do leitor-modelo”, que por sua vez são “estratégias interpretativas que
surgem como polaridades internas à obra” (p. 12): uma interpretação de forma bem
sucedida ocorre entre essas duas estratégias discursivas, não entre dois sujeitos. Na
perspectiva de Eco, o leitor-modelo “não se detém a preencher os vazios do texto”,
indo mais além “o atualiza, analisando-o nas condições históricas em que foi criado e
o trazendo para o presente” (FERNANDES, 1999, p. 251 apud LOPES, 2010, p. 12).
Na realização desta atualização “é necessário que se leve em conta o autor-modelo”
que passa a surgir “como uma estratégia textual de leitura na tentativa de lidar com
as intenções virtualmente contidas no enunciado” (LOPES, 2010, p. 12). E há a
interação dos elementos chamados de “intenção de leitura” construindo a “ideia de
autor-modelo”: a construção/configuração do autor modelo depende de elementos
textuais (op. cit., p. 12-13).
As exigências do leitor-modelo são correspondentes ao leitor-empírico: “ele
consegue interpretar o texto de forma bem-sucedida, caso contrário, produz usos,
exercícios imaginativos que conduzem a semiose para além do universo do discurso”
(LOPES, 2010, p. 13). Para interpretar um texto devemos “devemos considerar que
ele fala de algo de determinada maneira e não de qualquer coisa de acordo com a
vontade do leitor”: no ato de “detectar/investigar o que o texto diz é preciso seguir
indícios que sejam verificáveis” (op. cit., p. 13). Logo, “o interesse do leitor não deve
se sobrepor ao que a obra permite inferir” e por isso Eco traça uma diferenciação entre
“uso e interpretação” funcionando “como uma maneira de separar o pensamento que
tem por fim compreender o texto gerando uma crença sobre ele e o que age de forma
fortuita, como deboche sem um fim em vista” (op. cit., p. 14).
Logo, com essas postulações, podemos considerar “As Filhas de Blossom
Street” como um exemplo da Obra aberta de Eco, visto que há espaços que precisam
84

ser preenchidos pelo leitor e persiste a incerteza necessária para o sentimento


inquietante de Freud (1919): o texto oferece elementos para interpretações distintas
em relação às mortes de Emily Russo e Billy Monihan, elas são eventos sobrenaturais
ou coincidências fortuitas? A luz nos olhos de Emily e a ausência de luz (queda de
energia elétrica) são elementos ambíguos, que podem apontar para o caráter
sobrenatural, mas podem também ser explicados racionalmente.
E essa incerteza persiste no foco narrativo, em primeira pessoa, uma narradora
que não é testemunha desses eventos e que pode não ser uma narradora totalmente
confiável: ela omite um incidente inquietante que aconteceu consigo mesma, a sua
melhor amiga Dotty: Por algum motivo, não consigo contar sobre a Sra. Tomolillo a
Dotty” (PLATH, 2020, p. 113). Cabe ao leitor, empreender a sua investigação, talvez
considerando a possibilidade de que a narradora possa estar escondendo alguma
informação do leitor. Segundo Lopes (2010), “a resposta do autor-empírico é de
nenhuma valia se não puder ser confirmada pela textualidade da obra” (p. 13). Dessa
forma, a interpretação válida de “As Filhas” fica a cargo do leitor-modelo.

4.2 ENTRE O MUNDO REAL E O INCONSCIENTE: “JOHNNY PANIC E A BÍLIA DOS


SONHOS”

Assim como “As Filhas”, “Johnny Panic” é um conto narrado em primeira


pessoa por uma secretária da ala psiquiátrica de um hospital. Dentro da burocracia
diária, essa secretária desafia as regras, ao registrar os sonhos dos pacientes que
frequentam aquele local. Nomes de personagens e locais são os mesmos do outro
conto e, assim como na história das secretárias na noite de um furacão, existe uma
fuga da ordem burocrática costumeira no hospital.
Em “Johnny Panic” há uma oposição entre o burocrático e o onírico e podemos
chamar esse conflito no conto de uma oposição entre o mundo real – sólido, com
regras nítidas a serem seguidas, com limites bem definidos; e o mundo dos sonhos –
o mundo do inconsciente, sem fronteiras ou regras bem definidas – semelhante à
relação ordem/desordem que apontamos em “As Filhas”.
85

Figura 11: Sylvia Plath datilografando, Heptonstall (1956)

Fonte: Clark (2020, p. 848)

Escrito um ano antes do conto sobre as secretárias e a Blossom Street, “Johnny


Panic” remete às mesmas experiências de Plath em uma curta passagem como
secretária no Massachusetts General Hospital – onde anteriormente havia sido
internada como paciente psiquiátrica – no qual “datilografava registros na clínica
psiquiátrica, atendia telefonemas e executava todo tipo de trabalho administrativo”. No
entanto, Sylvia já tinha experiência como datilógrafa, dos seus trabalhos e de Ted
Hughes (ROLLYSON, 2015, p. 175). A autora também tentara aprender estenografia
por influência de sua mãe, Aurelia Plath, mas abandonou a atividade porque a
considerava muito maçante, apesar de valorizar tais habilidades:

Originalmente, minha maior satisfação era que eu não teria que arranjar um
emprego neste verão e poderia sentar e escrever e aprender estenografia,
uma habilidade prática que eu não poderia pagar para aprender na escola e
que minha mãe poderia me ensinar no meu próprio quintal [...] que eu poderia
ter junto à datilografia e, assim, nunca ter que investir minha sagacidade na
procura de emprego depois da faculdade, ou após a pós-graduação. Eu quero
aprender estenografia e datilografia [...] meu poder de barganha será bem
melhor.82 (PLATH, 2000, p. 658)

82
Originally, my biggest satisfaction was that I would not have to get a job this summer and
could sit down and write and learn shorthand, a practical skill that I could not afford to go to school to
take, and that mother could teach me in my own backyard [...] that I could keep up along with typing and
thus never be at wit's end for a job. When I apply for jobs after college, or after graduate school, I will
want to know typing and shorthand [...] my bargaining power will be much better. Em tradução livre.
86

A datilografia é uma atividade que está associada à ordem burocrática na rotina


da narradora, como o uso da expressão "horário comercial”: “Todo dia em horário
comercial eu me sento à mesa de frente para a porta do consultório e escrevo à
máquina os sonhos dos outros” (PLATH, 2020, p. 19). Quando a perguntam onde a
narradora trabalha, ela diz que é apenas “secretária-assistente de um dos
departamentos ambulatoriais da ala clínica do hospital municipal” e observa “que
raramente querem saber mais sobre o que faço, e o que faço é só datilografar
prontuários” (op. cit., p. 20). A narradora reduz seu papel no hospital a uma função
burocrática e uma atividade simples e sem importância, datilografar os “problemas”
dos pacientes, toda a sorte de abalos do dia a dia na ordem:

Não só os sonhos. Meus chefes não julgariam conveniente. Também registro


as queixas diurnas das pessoas: problemas com a mãe, problemas com o
pai, problemas com a bebida, a cama, a dor de cabeça que abate e apaga o
mundo inteiro sem nenhum motivo claro. As pessoas só vêm ao nosso
consultório quando têm problemas. Problemas que não se pode determinar
apenas com testes de Wassermann ou Wechsler-Bellevue. (PLATH, 2020, p.
19)

O hospital é uma zona onde a ordem impera e onde esses problemas de


desordem deveriam ser resolvidos – problemas que vêm de fora: “as pessoas só vêm
ao nosso consultório quando têm problemas” (PLATH, 2020, p. 19): doenças,
problemas mentais e sociais. São problemas que o hospital não consegue resolver:
“Problemas que não se pode determinar apenas com testes de Wassermann ou
Wechsler-Bellevue” (op. cit., p. 19). No entanto, a narradora transgride a ordem ao
datilografar “os sonhos dos outros”, mas ela o faz apenas de forma oculta:

Por conta própria, no entanto, e sem que ninguém tome conhecimento, tenho
me dedicado a uma vocação que deixaria esses médicos de cabelo em pé.
Na privacidade do meu apartamento de um cômodo, me considero secretária
de ninguém menos que o próprio Johnny Panic. (PLATH, 2020, p. 20)

Logo, a transgressão oculta é claramente latente na expressão “deixaria esses


médicos de cabelo em pé” (PLATH, 2020, p. 20). Lembremos que o inquietante de
Freud (1919) está ligado ao que é “escondido, mantido oculto” (p. 119). Johnny Panic,
o “patrão” da narradora, não aparece diretamente no conto, a não ser no final como
uma luz fantasmagórica: “No momento em que penso estar mais perdida, o rosto de
87

Johnny Panic aparece numa auréola de lâmpadas a arco lá no teto” (op. cit., p. 39).
Na maior parte do enredo, Johnny Panic é uma presença que paira na história, mas
que não aparece diretamente:

Talvez um rato comece muito cedo a pensar que o mundo é governado por
esses pés enormes. Bem, daqui do meu lugar, concluí que o mundo é
governado por uma coisa e uma coisa só. O pânico com cara-de-cão, cara-
de-diabo, cara-de-bruxa, cara-de-puta, o pânico com letras maiúsculas que
nem cara tem — é sempre o mesmo Johnny Panic, seja acordado ou
adormecido. (PLATH, 2020, p. 19)

O mundo é governado pelo pânico, por uma força que paira ao redor do mundo,
o medo, e ele tem uma “face”: Johnny Panic. A narradora, que inicialmente aparenta
sanidade – uma agente da ordem, uma funcionária padrão do hospital – na verdade é
uma agente “dupla”, alguém oprimido pelo medo, mentalmente, e trabalha como serva
de Johnny Panic. O “reino” de Panic é o mundo onírico, dos sonhos inconscientes das
pessoas, os quais a narradora-secretária pretende estudar e se especializar neles:
“De sonho em sonho, estou estudando para me tornar aquela rara figura, mais rara,
na verdade, que qualquer membro do Instituto de Psicanálise: uma especialista em
sonhos” (PLATH, 2020, p. 20).
O trabalho de Johnny Panic e seus seguidores “loucos” é visto por quem está
narrando como superior ao da medicina tradicional: a “Psicanálise”, ela nega ser
“controladora-de-sonhos, ou uma relatora-de-sonhos”, e nem mesmo “uma
oportunista de sonhos numa busca mesquinha por saúde e satisfação” (PLATH, 2020,
p. 20), nem empregada desse tipo de médico. Ela é apenas “uma incorrupta
colecionadora de sonhos pelo que os sonhos são” e “uma amante dos sonhos em
nome de Johnny Panic, o Criador de todos eles” (op. cit., p. 20). “Colecionar” sonhos
é um ato de preservar o inconsciente, os sonhos, e se tornar são é apagá-los. Panic
é visto como uma divindade dentro do conto, o que podemos associar ao pensamento
de Stevenson (1992), que enxerga a imagética hospitalar de Plath relacionada à
questão religiosa (p. 269).
A narradora-secretária realiza sua “verdadeira vocação” oculta, à noite.
Segundo Castillejos (2002), a ausência de luz está ligada à morte na obra de Plath (p.
86). No entanto, neste em “Johnny Panic”, o escuro é um cúmplice da narradora, ao
permitir que suas atividades escusas como funcionária de Panic permaneçam
escondidas: “Certas noites entro no elevador e vou até a cobertura do prédio onde
88

moro. Certas noites, por volta das três da manhã” (PLATH, 2020, p. 20). Segundo
Corral (2014), o número três dentro da simbologia cristã “é considerado divino,
representando as três pessoas da Santíssima Trindade” (p. 149). No entanto, a
inversão acontece e o número pode ser associado ao sobrenatural, ao diabólico, como
em contos de fadas: “Os três cabelos de Ouro do Diabo” (GRIMM; GRIMM, 1812), por
exemplo.
Segundo Kosloski (2017), o horário das três horas da manhã é conhecido
popularmente como “a hora do diabo”: enquanto Cristo morreu às três da tarde, o
demônio se apropriou do horário proporcional, o meio da noite, “para si o horário das
três da madrugada, em zombaria direta de Deus” 83. Voltando aos contos infantis,
segundo Mesquita (2012), o número três aparece associado também ao medo, como
no conto de fadas resgatado pelos irmãos Grimm “João sem Medo” (GRIMM; GRIMM,
1812):

deparamo-nos com um jovem que afirma não ter medo de nada, daí que a
proposta recebida lhe pareça tentadora: se conseguir passar três noites
seguidas dentro do castelo assombrado, receberá a mão de uma bela
princesa. Decide, por isso, tentar a sua sorte. Na primeira noite, três gatos
ferozes tentam assustar o rapaz, mas sem quaisquer resultados. Nas duas
noites seguintes, nem o fantasma, nem o horrível gigante conseguem
amedrontá-lo. (MESQUITA, 2012, p. 08)

Em “Johnny Panic”, o número três não está “ligado ao amadurecimento do ser


humano” (FREUD, 1919, p. 190). ou à superação dos medos como no conto infantil.
O medo e o estado mental fora “da ordem” são vistos como algo desejável. Dentro
do conto o número é associado ao sobrenatural, ao demoníaco, reafirmando o caráter
de serva “do diabo” da narradora-colecionadora de sonhos. O número três é
inquietante dentro do conto, por remontar ao elemento “familiar, aconchegado, e do
que é escondido, mantido oculto” (FREUD, 1919, p. 191), e que retorna como o não-
familiar, o reprimido que apareceu. O familiar, que está relacionada à carga positiva
simbólica do número, e o não-familiar, o inquietante, a inversão dessa simbologia.
Essa espécie de “força sobrenatural”, paira no ambiente e são indícios indiretos
de Johnny Panic. Como em “As Filhas”, a oposição luz-escuro é indício do
sobrenatural, da influência de Panic: “Entre as árvores do outro lado do parque, o

83
Vide sítio eletrônico: < https://pt.aleteia.org/2017/10/23/sabe-por-que-3-da-manha-e-a-hora-
do-diabo/>. Acesso em: 18 abr. 2022.
89

lampejo da tocha da United Fund enfraquece e se restaura graças a uma força


sobrenatural invisível, e aqui e ali entre os blocos de pedra e tijolo eu vejo uma luz”
(PLATH, 2020, p. 20). Essa influência, de forma sútil, se entranha entre a ordem,
representada pelos “blocos de pedra e tijolo”, onde a luz de Panic se entranha (op.
cit., p. 20).

Figura 12: Ilustração do ambiente externo em “Johnny Panic and the Bible of Dreams”, na edição alemã
da coletânea (2011)

Fonte: Riegert (2011)

Há a fusão do ambiente com o eu-narrador, que sente essa influência pairar:


“Mais do que tudo, no entanto, sinto a cidade dormindo” (PLATH, 2020, p. 20). Dormir
é o estado de inconsciência, da fuga da ordem e da realidade: “dormindo do rio no
oeste ao mar no leste, como uma espécie de ilha sem raízes que nina a si mesma,
apoiada em absolutamente nada” (op. cit., p. 21). A cidade é o berço dos sonhos, que
“nina a si mesma”. O estado de espírito da narradora é fundido às mudanças
climáticas: “Posso estar tensa e retesada como a corda mais grave de um violino, mas
quando o céu começa a azular já estou pronta para dormir” (op. cit., p. 21).
No entanto, o sono não é enxergado pela narradora como descanso ou
momento de regeneração mental, mas o contrário, de confusão mental: “Pensar em
todos os sonhadores e naquilo que sonham me consome, e então durmo um sono
febril” (PLATH, 2020, p. 21). Não há, em “Johnny Panic”, uma diferenciação entre
sonho e pesadelo: sonhar é sempre lidar com o insólito, o inquietante, o assustador.
90

A atividade de colecionar sonhos, apesar de ser uma transgressão, é feita seguindo


uma ordem: “De segunda a sexta, não faço outra coisa senão datilografar esses
mesmos sonhos” (op. cit., p. 21). Essa oposição entre o mundo real, pragmático e
burocrático e o mundo dos sonhos, onírico e desafiador, traduz-se na forma que os
ambientes do hospital são escritos e na descrição dos sonhos, da narradora e dos
pacientes.
Nesse sentido, a descrição do espaço físico do setor psiquiátrico é pragmática
(grifos meus), sempre apertada e sufocante: “meus livros de admissões engordam e
pesam nas prateleiras do armário que ocupa o corredor estreito e paralelo ao salão
principal, o mesmo corredor para o qual se abrem as portas dos pequenos cubículos
em que todos os médicos fazem suas consultas” (PLATH, 2020, p. 21). O setor
responsável por fazer as pessoas retornarem à sanidade é localizado “naqueles
pequenos cubículos, cada um com sua mesa, suas duas cadeiras, sua janela e sua
porta com o retângulo de vidro opaco cravado na madeira” (op. cit., p. 24). As formas
geométricas, como o cubo e o retângulo, são representativas das fronteiras
“apertadas” do mundo real no hospital. Esses cubículos do setor onde a narradora
trabalha, mesmo apertados e sem espaço, são invadidos pelos outros setores:

Não consigo deixar de pensar que ser secretária-assistente do setor de


Psiquiatria Adulta é um grande privilégio. Meu orgulho é corroborado pelas
grosseiras invasões dos outros setores aos nossos cubículos em
determinados dias da semana, quando falta espaço nas outras áreas: nosso
edifício é muito antigo, e as instalações não acompanharam as exigências
cada vez maiores do tempo. (PLATH, 2020, p. 24)

Logo, a antiguidade do edifício também é um elemento desse conservadorismo,


que não acompanha “as exigências cada vez maiores do tempo” (PLATH, 2020, p.
23), desse engessamento do mundo real que não permite fugas. Dentro do hospital,
a narradora diferencia o setor psiquiátrico dos demais: “a rotina do nosso consultório
é muito diferente da rotina da Dermatologia, por exemplo, ou da Oncologia. Os outros
setores se assemelham muito uns aos outros; nenhum é como o nosso” (op. cit., p.
24). Ou seja, dentro do hospital observamos um espaço de ordem. Nos setores citados
no trecho acima, a ordem está num nível ainda mais rigoroso.
No entanto, a ordem, e a cura da insanidade, não são vistas como algo positivo
ou desejável, e a loucura não precisa de tratamento: “No nosso setor, não se
prescreve o tratamento. Ele é invisível. Acontece ali mesmo [no espaço físico do
91

mundo real]” (op. cit., p. 24). Mesmo o ato de invasão àquele setor, que naturalmente
poderia ser interpretado como um abalo à ordem, acontece “em determinados dias da
semana”, sempre "às terças e quintas pela manhã”, respeitando a ordem burocrática
que permeia a realidade (PLATH, 2020, p. 24).
Enquanto, por outro lado, na descrição dos sonhos, o mundo onírico é
reconhecido pela narradora sem nome, como elementos que agregam identidade, ela
conhece os pacientes pelos seus sonhos: “Tenho o curioso hábito de identificar as
pessoas que vêm aqui pelos sonhos que têm”, que são mais característicos que
nomes, o qual não conhecemos o seu próprio: “os sonhos as tornam mais únicas do
que qualquer nome de batismo” (op. cit., p. 21). Os sonhos dos pacientes, são
ambientes onde os sonhadores são “oprimidos”, como no sonho do homem que
“trabalha para uma indústria de rolamentos na cidade”; toda noite ele “sonha que está
deitado de barriga para cima com um grão de areia sobre o peito. Pouco a pouco esse
grão de areia vai crescendo até ficar do tamanho de uma casa, e ele não consegue
mais respirar” (PLATH, 2020, p. 20).
O grão, elemento simbólico trazido do meio natural, pode representar o caráter
“sinistro”, “inesperado” e “hostil” da natureza, como Castillejos (2002) aponta, na obra
de Plath: a natureza se virando contra o ser humano e o esmagando, como o grão de
areia faz com o homem-sonhador. No campo da simbologia, a carga simbólica da
areia, segundo Chevalier; Gheerbrant (2015) “vem da quantidade de seus grãos” (p.
79). Na mitologia cristã, “o número de grãos de areia e o número de pecados dos
quais nos desfazemos, dos anos de vida que solicitamos” (op. cit., p. 79). A areia, em
grande quantidade, é símbolo de conforto familiar:

Fácil de ser penetrada e plástica, a areia abraça as formas que a ela se


moldam; sob esse aspecto, é um símbolo de matriz, de útero. O prazer que
se experimenta ao andar na areia, deitar sobre ela, afundar-se em sua massa
fofa — manifesto nas praias — relaciona-se inconscientemente ao regressus
ad uterum dos psicanalistas. É efetivamente, como uma busca de repouso,
de segurança, de regeneração. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 79)

O efeito inquietante da areia no sonho do paciente contado pela narradora-


secretária pode estar na parca quantidade em que o elemento aparece: o elemento
que aponta ao familiar “primitivo” reprimido, da época em que estávamos no útero
materno, retorna em sua forma inquietante, apenas um grão de areia, que nos
esmaga. O inquietante continua no sonho de outro paciente, desta vez ligado à
92

repetição: “Soube de outro sujeito que tem o mesmo sonho desde que lhe deram éter
e lhe tiraram as amígdalas e adenoides quando era criança” (PLATH, 2020, p. 21).
Lembremos que Freud (1919) observa que “o fator da repetição não deliberada torna
inquietante o que ordinariamente é inofensivo e impõe-nos à ideia de algo fatal,
inelutável” (p. 199).
Essa fatalidade vinda da repetição, está transcrita no próprio sonho: “No sonho
ele está preso nas lâminas de um moinho de algodão, lutando para sobreviver”
(PLATH, 2020, p. 21). Segundo a narradora, os sonhos relacionados à sobrevivência
são comuns:

Mas, ah, ele não é o único, ao contrário do que pensa. Hoje em dia muitas
pessoas sonham que são esmagadas ou devoradas por máquinas. São
aquelas figuras desconfiadas que não andam de metrô nem de elevador.
Quando volto do meu horário de almoço no refeitório do hospital, muitas
vezes passo por elas, ofegantes, subindo as escadas encardidas para chegar
ao nosso consultório no quarto andar. Às vezes me pergunto que sonhos as
pessoas tinham antes de os rolamentos e os moinhos de algodão serem
inventados. (PLATH, 2020, p. 21)

O inquietante de Freud (1919) aponta para a fobia de que um objeto


aparentemente inanimado possa adquirir vida própria, como no caso das máquinas
que “esmagam” e “devoram”: é o temor que a criação domine o homem. Quando a
narradora observa que “que sonhos as pessoas tinham antes de os rolamentos e os
moinhos de algodão serem inventados”, está remontando ao estágio primitivo, anterior
à era das máquinas:

Parece que todos nós, em nossa evolução individual, passamos por uma fase
correspondente a esse animismo dos primitivos, que em nenhum de nós ela
transcorreu sem deixar vestígios e traços ainda capazes de manifestação, e
que tudo o que hoje nos parece inquietante preenche a condição de tocar
nesses restos de atividade psíquica animista e estimular sua manifestação.
(FREUD, 1919, p. 201, grifo do autor)

O algodão, elemento familiar que pode ser relacionado ao familiar, ao conforto


por sua textura macia e ao primitivo: simboliza “esperança, amor, brancura da neve,
brancura da nuvem, sonho, desejo” (TADLAOUI, 2021, p. 49). No conto, o algodão
familiar retorna associado ao temor do domínio do ser humano pela máquina, ao não
familiar, inquietante. Nesse sentido, o moinho de vento, além da fobia da dominação
do ser humano pela máquina, simboliza a perda da sanidade, à loucura associada ao
93

sonho/pensamento inconsciente. Podemos associar esse símbolo ao trecho do


romance Don Quijote de la Mancha (CERVANTES, 1605), em que o protagonista-
título confunde os moinhos de ventos com gigantes que raptaram Dulcinéia.

Figura 13: Dom Quixote enfrenta os moinhos de vento

Fonte: Doré (2020)

Além da narração dos sonhos dos pacientes, a narradora conta ao leitor um


sonho próprio: “Tenho um sonho que é meu. Meu único sonho. O sonho dos sonhos”
(PLATH, 2020, p. 22). No “sonho dos sonhos”, há a construção metonímica do espaço
simbólico, onírico, e a oposição desse espaço do “mundo dos sonhos” com o espaço
físico do “mundo real”: “Nesse sonho há um grande lago semitransparente que se
estende por todas as direções, grande demais para que eu veja suas margens, se é
que há margens, e estou suspensa sobre o lago, na barriga de vidro de um helicóptero,
olhando para baixo” (op. cit., p. 22). A semitransparência aponta para o inquietante:
aquilo “o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu” (FREUD, 1919, p.
191).
Ao passo que o lago é “semitransparente”, não é possível ver nitidamente o que
está “oculto” em suas águas, ao mesmo tempo que o que está no fundo não está
completamente escondido: é a ambiguidade necessária ao inquietante. Esse “grande
lago” representa o inconsciente da mente, turvo e vasto, “tão fundo que só posso intuir
pelas massas escuras que se movem e se elevam” (PLATH, 2020, p. 22). Nesse
94

sentido, a figura do helicóptero pode representar a fobia do inanimado dominar o ser


humano, a sua consciência, porque observa o ambiente do sonho “de fora”.
Dentro do lago, existem figuras que representam aquilo que nós reprimimos
para o inconsciente: “No fundo do lago [...] estão os verdadeiros dragões” (PLATH,
2020, p. 22). Esses dragões “reprimidos” remontam ao estágio da evolução humana,
chamado por Freud de animismo primitivo (FREUD, 1919): “Aqueles [dragões] que
existiam antes de os homens começarem a morar em cavernas, a cozinhar carne na
fogueira e a inventar a roda e o alfabeto” (PLATH, 2020, p. 22). Essa primitividade é
anterior às máquinas “monstruosas”, aos moinhos de ventos, metrôs e escadas
rolantes: o insólito existe dentro do inconsciente antes da burocracia do “mundo real”.
Esses dragões – elementos reprimidos pelo inconsciente que povoam o lago –
“enormes não é a palavra que os define; eles têm mais rugas que o próprio Johnny
Panic” (PLATH, 2020, p. 22). As “rugas” são elementos do abjeto, da deformação
corporal, associados a Panic, que paira sobre o seu reino: a inconsciência. Sonhar o
sonho da narradora traz sérias consequências:

Experimente sonhar com isso por muito tempo, que suas mãos e pés
começam a ficar gastos quando você os olha de perto. O sol encolhe e fica
do tamanho de uma laranja, só que mais frio, e você e você descobre que
mora em Roxbury desde a última era glacial. (op. cit., p. 22).

Essas inversões provocadas pelo “sonho” no tamanho e temperatura do sol,


apontam para interferência demoníaca: uma “brincadeira” de Panic, alterando o
ambiente inconsciente. E a referência “a última era glacial”, a figuras mitológicas como
os dragões ou com superpoderes como “o homem-aranha e o homem de teias no pé
que vieram de Marte” (PLATH, 2020, p. 23), apontam para o animismo primitivo. O ato
de sonhar novamente é associado à perda de sanidade, à loucura, com a imagem do
“quarto acolchoado” que remete à forma de tratamento de doenças mentais no século
XIX e início do século XX:

O único lugar para você é um quarto acolchoado como aquele primeiro quarto
que conheceu, onde você pode sonhar e flutuar, flutuar e sonhar, até que
enfim esteja mais uma vez entre aquelas criaturas primevas e não haja mais
motivo para sonhar. (PLATH, 2020, p. 22).
95

Por meio da loucura, que é vista como positiva pela narradora, podemos enxergar a
existência de uma busca por se reconectar com o primitivo, representado pelas
“criaturas primevas”, os dragões.
Nesse sentido, podemos enxergar aqui uma analogia com o suicídio, ao passo
que ao se reconectar com o primitivo, existe a sugestão de interromper o fluxo dos
sonhos, ao nosso ver pela morte: até que “não haja mais motivo para sonhar” (PLATH,
2020, p. 22). O lago dos sonhos, representa o local onde o inconsciente de todas as
pessoas do mundo se encontra em comunhão infinita: “É para esse lago que a mente
das pessoas corre à noite, riacho e calha de uma reserva compartilhada e infinita” (op.
cit., p. 22).
Aquilo que as pessoas reprimem em seu inconsciente é responsável pela
poluição desse lago, “em nada se assemelha às fontes de água potável e pura de um
azul cintilante” de um lago limpo. Na verdade “é a estação de tratamento de esgoto
da história do mundo [...] Agora a água desse lago se tornou fedorenta e fumegante,
é evidente, graças aos sonhos que ficaram abandonados ali, juntando água por tantos
séculos” (op. cit., p. 22).
Logo, podemos perceber que os dejetos que flutuam sobre o lago, são os
desejos reprimidos e esquecidos no inconsciente. A imagem desse lago, que
representa o inconsciente, é construída em oposição aos ambientes do mundo real:
“Em nada se assemelha às fontes de água potável e pura de um azul cintilante que
os subúrbios resguardam com mais avareza do que o diamante Hope, isolado no meio
da floresta com uma cerca de arame farpado” (PLATH, 2020, p. 22). É uma fonte de
água que não se parece com as do “mundo real”, que não está localizada, com um
espaço delimitado por uma cerca em um determinado local: é fluida, vaga,
indiscriminada.
No sonho da narradora, há também outro elemento considerado inquietante na
teoria freudiana: a repetição, ou multiplicação de números (FREUD, 1919). No conto
existe a multiplicidade matemática dos sonhadores no mundo, uma equação:

Se você parar para pensar no espaço que uma noite de acessórios de sonhos
ocupa para uma só pessoa em uma só cidade, e que essa cidade não passa
de um pontinho no mapa do mundo, e começar a multiplicar esse espaço pela
população do mundo, e esse espaço pelo número de noites que se passaram
desde que os macacos começaram a fazer machados de pedra e a perder os
pelos, dá pra ter uma ideia do que eu quero dizer. Não levo jeito para a
matemática: minha cabeça começa a latejar só de pensar no número de
96

sonhos que acontecem ao mesmo tempo durante uma só noite no estado de


Massachusetts. (PLATH, 2020, p. 22-3)

Essa ideia de infinidade pode causar um efeito inquietante porque remete ao


“desaparecimento do Eu” e ao “narcisismo primário” (FREUD, 1919, p. 197). Vale
salientar que somos apenas uns poucos entre milhares e que nossa morte não
impacta o mundo tanto quanto gostaríamos: o Eu não quer ser apenas “um pontinho
no mapa do mundo” (PLATH. 2020, p. 22-3). A cidade, espaço físico do mundo real,
aparece no sonho narrado como espaço de despersonalização, de perda da
identidade.
O narcisismo primário “domina tanto a vida psíquica da criança como a do
homem primitivo” (FREUD, 1919, p. 197). Nesse sentido, podemos observar que a
perda de identidade é ligada à “evolução” do ser humano e existe um sentimento de
nostalgia ao primitivo: “desde que os macacos começaram a fazer machados de pedra
e a perder os pelos” (PLATH, 2020, p. 23).
Além de elementos inquietantes, o sonho próprio narrado pela secretária
apresenta elementos do abjeto de Kristeva (1982), ligados à imagética médica de
Plath: os dejetos e cadáveres que “me mostram o que permanentemente eu jogo pro
lado para viver” (KRISTEVA, 1982, p. 03). Os cadáveres aparecem deformados: “a
essa altura já vejo a superfície do lago repleta de cobras, cadáveres inchados como
baiacus, embriões humanos boiando em frascos de laboratório, como tantas
mensagens inacabadas do grande Eu Sou” (PLATH, 2020, p. 23). Os “embriões
humanos" estão ligados aos fluidos expelidos pelo ser humano para a continuação da
vida humana, como o esperma. Os fetos estão em “frascos de laboratório”, a medicina
quer despersonalizar o eu na construção artificial de vida, representando uma fobia
parecida com o medo ligado às máquinas.
As “tantas mensagens inacabadas do grande Eu Sou” podem estar ligadas à
interpretação do desaparecimento do Eu e ao inquietante do que ficou pelo meio, do
que não foi acabado. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2015), os lagos na antiguidade
eram “considerados como palácios subterrâneos de diamante, de jóias, de cristal” (p.
533). Dessa forma, a imagética do lago dentro do sonho da narradora-secretária, além
de representar o próprio inconsciente, pode também representar o familiar reprimido
que retorna: a “água potável” e “cintilante” retorna poluída e inabitável, com dejetos
humanos flutuando. Segundo os autores, o símbolo-lago representa também “as
97

criações da imaginação exaltada” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 533). Logo,


planam no lago, esses frutos da imaginação “exaltada” em repressão.
Podemos observar “a superfície do lago repleta de cobras” (PLATH, 2020, p.
23). Segundo Chevalier; Gheerbrant (2015) na psicanálise, cobras e serpentes
representam “a psique inferior, o psiquismo obscuro”, além do que “é raro,
incompreensível, misterioso” (p. 314). O pensamento dos autores se encaixa
perfeitamente com a interpretação do lago no sonho como representação do
inconsciente, onde o obscuro e reprimido “flutuam”. No lago do inconsciente flutuam
símbolos ligados ao desenvolvimento humano, deixando o estágio primitivo de lado:
“Vejo armazéns de ferramentas completos: facas, cortadores de papel, êmbolos,
engrenagens e quebra-nozes” (PLATH, 2020, p. 23). O quebra-nozes é uma
representação humana em máquina e, assim como autômato e a boneca, está ligado
ao inquietante dos seres inanimados que podem ganhar vida (FREUD, 1919).
Esse efeito se aplica também aos “capôs de carro brilhosos que se elevam com
olhos vítreos e sorriso maligno” (PLATH, 2020, p. 23). Os “olhos vítreos e sorriso
maligno” projetados nos objetos inanimados remontam à forma como o sujeito projeta
no inquietante “uma secreta intenção de prejudicar” o outro (FREUD, 1919, p. 200-1).
A representação do humano transformado em inquietante no inconsciente continua
na “lúgubre imagem de um rosto humano que dá as costas eternamente, a despeito
das alianças e dos votos, para o último de todos os amantes” (PLATH, 2020, p. 23).
Aqui a quebra de promessas, os desejos não realizados que flutuam e se escondem
no inconsciente, representam os elementos que estão no limiar e foram reprimidos.
A última imagem do “sonho dos sonhos” resgata um símbolo de um dos sonhos
dos pacientes: o grão, mas não de areia, um grão de terra: “Uma das formas que mais
se vê nesse repuxo é tão lugar-comum que parece bobagem mencioná-la. É um grão
de terra” (PLATH, 2020, p. 23). E os grãos estão associados a outro elemento natural,
a água: “a água está repleta desses grãos. Eles se infiltram em todas as outras coisas
e giram sob um estranho poder que eles mesmos emanam, obscuros e ubíquos” (op.
cit., p. 23).
O grão, independente de que seja, é símbolo do limiar, do que está entre dois
mundos, do inquietante: pode significar “a alternância da vida e da morte, da vida no
mundo subterrâneo e da vida à luz do dia, do não manifestado à manifestação”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 477). Nesse caso, o grão de areia simboliza
98

a dicotomia entre o mundo do inconsciente de quem sonha e o mundo exterior, o


mundo real. Nesse sentido, a terra e a água são elementos opostos e heterogêneos
no campo do simbólico: “as águas representam o conjunto do que é indiferenciado, a
terra, os germes das diferenças” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, 879). O grão
de terra é palpável, finito, tem fronteiras como o “mundo real”; e a água, o infinito, o
oculto, não palpável, como o “mundo do inconsciente".
Por fim, a narradora, ao encerrar o relato do seu sonho, deixa a cargo do leitor
a nomeação do lago inquietante: “Podem chamar a água do que quiserem, Lago
Pesadelo, Brejo da Loucura” (PLATH, 2020, p. 23). No entanto, os nomes que ela
sugere estão ligados à perda de sanidade e à profundeza do inconsciente humano, o
que pode reforçar a interpretação que sugerimos. No lago do inconsciente, no “mundo
dos sonhos”, “as pessoas adormecidas se deitam e se reviram juntas em meio aos
acessórios de seus piores sonhos, numa grande irmandade" (PLATH, 2020, p. 23).
Em oposição ao que acontece no “mundo real”: “embora cada uma delas, quando
acordada, veja a si mesma como singular e completamente isolada” (op. cit., p. 23).
O “mundo real” é um local de separação, de regras rígidas e isolamento.
A narradora-secretária, embora pareça uma pessoa sã, rejeita a realidade e o
hospital, onde os pacientes são curados perdem o acesso ao mundo dos sonhos:
“Esse é o meu sonho. Ninguém vai vê-lo registrado em nenhum livro de casos clínicos”
(PLATH, 2020, p. 23). Essa narradora parece perder a sanidade, cada vez mais, aos
olhos do leitor. Ela sente “aversão” pelo ambiente e se distrai no exercício de suas
atividades burocráticas:

Se ocorre de a assistente de enfermagem deixar a porta do cubículo aberta,


como muitas vezes acontece, consigo entrever a borda da cama branca e os
pés descalços de sola amarelada e suja do paciente se projetando para fora
do lençol. Apesar da minha aversão a essa cena, não consigo tirar os olhos
dos pés descalços e me pego deixando de olhar para a máquina de escrever
de quando em quando para ver se ainda estão lá, se chegaram a mudar de
posição. (PLATH, 2020, p. 24)

Essa cena incomoda tanto a narradora quanto o leitor porque é inquietante e abjeta
pela imobilidade que associamos à morte: a descrição da “cama branca e os pés
descalços de sola amarelada e suja do paciente” que não muda de posição, pode ser
associada inconscientemente à imagem de corpos no necrotério. O elemento do
inquietante perturba a ordem no trabalho da secretária, que precisa repeti-las mais de
99

uma vez num círculo vicioso: “Não é difícil imaginar o quanto isso me distrai do
trabalho” (PLATH, 2020, p. 24) — a fuga da ordem; e em “Muitas vezes preciso reler
várias vezes o que acabei de datilografar, sob o pretexto de fazer uma revisão
cuidadosa, para conseguir memorizar os sonhos que acabei de passar a limpo,
ouvindo a voz do médico no audiógrafo” (op. cit., p. 24).
A "perturbação" que mais incomoda a narradora ocorre no “setor do Sistema
Nervoso”, “a faceta mais desagradável e pouco inspirada do nosso negócio”, na qual
“usamos as salas deles para sessões de terapia durante a tarde, já que só atendem
pela manhã” (PLATH, 2020, p. 24). Logo, a psiquiatria invade os outros para levar à
sanidade, o que é rechaçado pela narradora que enxerga a volta à sanidade como
algo negativo: “mas conviver com aquela gente chorando, ou cantando, ou
tagarelando alto em italiano ou chinês, como sempre acontece, por quatro horas a fio
sem intervalo toda manhã é no mínimo desconcertante” (op. cit., p. 24).
Outro fator que aponta para insanidade progressiva da narradora é o fato de
ela nos dizer que apenas datilografava os sonhos dos pacientes, no início da narrativa.
Porém, ao fim do seu relato, assume que trabalha recriando sonhos que sequer foram
registrados e, enquanto atrasa o seu trabalho “comum”, as atividades da rotina
burocrática, engorda a “bíblia” dos sonhos com facilidade:

A despeito de todas essas interrupções causadas pelos outros setores, meu


trabalho está progredindo a toda velocidade. Já faço muito mais do que
registrar apenas o que vem depois da fala do paciente: “Tive um sonho,
doutor”. Cheguei ao ponto de recriar sonhos que sequer foram registrados.
Sonhos que se prefiguram da maneira mais ambígua, mas estão escondidos,
como uma estátua debaixo do veludo vermelho logo antes da grande
revelação. (PLATH, 2020, p. 25)

O criar, e recriar sonhos, pode ser interpretado como uma associação ao “fazer
literário”, ao ato de imaginar, re-imaginar e escrever histórias. O material para “os
sonhos”, para a produção literária, é encontrado dentro do inconsciente, local do
ambíguo, do escondido. O “veludo vermelho” é a camada consciente que cobre a
camada mais profunda e inconsciente, a imaginação representada pela figura da
“estátua”. Então, a narradora cria sonhos para os pacientes a partir do material que
ela “colhe” no inconsciente dos pacientes. Ela dá um exemplo ao leitor: “Uma tal
mulher chegou à clínica com a língua inchada e tão esticada para fora da boca que
precisou abandonar a festa que estava dando para vinte amigos de sua sogra franco-
100

canadense e foi levada às pressas para nossa Ala de Emergência” (PLATH, 2020, p.
25).
Essa mulher ficou com a língua deformada (o abjeto relacionado à deformação
corporal), porque reprimiu o pensamento de aversão em relação à sua sogra e esse
sentimento retornou de forma inquietante: “Ela pensou que não queria ficar com a
língua para fora da boca, e para dizer a verdade aquela era uma situação muito
constrangedora, mas ela detestava aquela sogra franco-canadense mais que tudo, e
sua língua estava de acordo, embora mais nada na mulher estivesse” (PLATH, 2020,
p. 25). Embora a paciente não tenha reivindicado “sonho nenhum”, a narradora
somente tendo “os simples fatos mencionados acima como ponto de partida”, ela
consegue “detectar a intumescência e a promessa de um sonho” e se dedica “à tarefa
de desenraizar esse sonho de sua confortável posição debaixo da língua da mulher”
(op. cit., p. 25).
Ao “desenraizar” o sonho da mulher, a narradora está liberando o pensamento
inconsciente, o que é feito com muito esforço pela narradora-secretária: “Seja qual for
o sonho que desenterrar com meu esforço, um esforço exaustivo” (PLATH, 2020, p.
25). Esse trabalho é empreendido com “uma espécie de oração” para a figura diabólica
de Johnny Panic e, pela primeira vez, o “chefe” secreto da narradora é definido mais
diretamente:

[...] já sei que vou encontrar uma impressão digital num canto, um detalhe
zombeteiro mais à direita, um sorriso de Gato Risonho incorpóreo que levita,
o que evidencia que tudo isso foi trabalho do gênio de Johnny Panic, e de
ninguém mais. Ele é ardiloso, ele é arguto, ele é rápido como um raio, mas
se revela com mais frequência do que deveria. É que ele não resiste ao
melodrama. Melodrama da espécie mais antiga e mais óbvia. (PLATH, 2020,
p. 25)

Johnny Panic promove travessuras para que o pensamento inconsciente possa


vir à tona, para que a sanidade termine. A definição de Panic como “um sorriso de
Gato Risonho incorpóreo que levita” (PLATH, 2020, p. 25) pode ser associada a uma
personagem-símbolo da insanidade na literatura universal, o Gato de Cheshire ou
Gato Risonho, personagem do clássico de Lewis Carroll, Alice's Adventures in
Wonderland [As Aventuras de Alice no País das Maravilhas] (1865):

Mas eu não quero me meter com gente maluca, declarou Alice.


101

Mas isso é inevitável, disse o Gato. Somos todos malucos aqui. Eu sou
maluco. Você é maluca.
Por que diz que sou maluca?, indagou Alice.
Só pode ser, disse o Gato, ou não teria vindo parar aqui. (CARROLL, 2019,
p. 89).

Segundo Silva Junior; Carvalho (2015), o Gato e sua interação com a


protagonista título, ilustram “a inserção e a legitimidade” dos loucos e alienados
“facultadas pelo estatuto do inconsciente [...] Alice escuta seu próprio inconsciente e
por isso não segrega, dialoga com todas as inusitadas cenas e figuras que a ela são
propostas” (p. 39). Nesse sentido, podemos estender essa interpretação, ligada ao
inconsciente freudiano, à figura ausente de Johnny Panic: a espécie de divindade
diabólica é responsável por reconectar as pessoas, em especial os pacientes
psiquiátricos do hospital, com seu inconsciente, promovendo um diálogo entre elas
com seus os sonhos, povoados de imagens e situações nonsense.
O Gato de Carroll, dentro do “País das Maravilhas” possui a capacidade da
invisibilidade e pode aparecer e reaparecer no ambiente, a seu bel-prazer: “o Gato,
[...] dessa vez, começou a desaparecer aos poucos, começando com a pontinha da
cauda e terminando com o sorriso – que permaneceu alguns segundos, até sumir de
todo” (CARROLL, 2019, p. 91). Logo, podemos associar, o poder da invisibilidade do
Gato Risonho, com a presença invisível de Johnny Panic, que não está presente
fisicamente na narrativa do conto, mas paira sobre os eventos ali descritos: “um sorriso
de Gato Risonho incorpóreo que levita” (PLATH, 2020, p. 25). Ele é caracterizado
também como uma figura zombeteira: “Ele é ardiloso, ele é arguto, ele é rápido como
um raio”, mas que se entrega por puro exibicionismo, porque “revela com mais
frequência do que deveria” e “não resiste ao melodrama” (op. cit., p. 25). Panic é
contrário à ordem burocrática, capaz de abalar os alicerces da sanidade e abrir as
portas do inconsciente.

Figura 14: O Gato de Cheshire, ilustração de John Tenniel (1864)


102

Fonte: Carroll (2019, p. 91)

Seguindo a leitura do conto, a narradora apresenta um exemplo da influência


de Panic na vida dos pacientes ao abrir as portas da inconsciência: “Eu me lembro de
um cara, um sujeito atarracado de jaqueta preta de couro com rebites” que vivia “com
Johnny Panic em sua cola” (PLATH, 2020, p. 25-26). Esse paciente, vivia rodeado
pela ordem: “Esse cara, bom católico que era, jovem e direito e tudo o mais” (op. cit.,
p. 26). Mas possuía algumas fobias, entre elas “tinha um tremendo medo da morte [...]
na verdade, morria de medo de ir para o inferno” e “medo do escuro”, mesmo
trabalhando “numa fábrica de lâmpadas fluorescentes” (op. cit., p. 26). Esse “detalhe”
engraçado, é culpa da influência de Johnny Panic que “confere a esse trabalho um
elemento poético que não se encontra por aí” (op. cit., p. 26).
As fobias desse paciente se relacionam ao inquietante associado “à morte, com
cadáveres e com o retorno dos mortos” (FREUD, 1919, p. 201). O que, por sua vez,
se entende ao sonho “elaborado” pela narradora para ele:

Também me lembro com clareza do cenário do sonho que elaborei para esse
cara: um ambiente gótico no porão de um mosteiro qualquer que se estendia
até onde os olhos podiam ver, numa daquelas perspectivas infinitas entre dois
espelhos, e as colunas e paredes eram feitas apenas de crânios e ossos
humanos, e em cada reentrância havia um cadáver estirado, e era o Salão
do Tempo, com os corpos em primeiro plano ainda mornos, desbotando e
começando a apodrecer a meia distância, e os ossos surgindo na última
fileira, tinindo de tão limpos, com uma espécie de brilho branco futurista. Pelo
que me lembro, cuidei para que o cenário fosse iluminado, por uma questão
de rigor, não por velas, mas pela fluorescência de claridade gélida que faz a
pele parecer verde e todo rubor rosado e vermelho assumir uma cor preta-
arroxeada sem vida. (PLATH, 2020, p. 26)

Podemos observar que a forma como o ambiente simbólico do sonho – do


inconsciente – opõe-se à forma pragmática como o ambiente do hospital é construído:
103

enquanto o espaço físico do hospital é limitado a cubículos estreitos, o espaço


simbólico do sonho criado para o rapaz “se estendia até onde os olhos podiam ver,
numa daquelas perspectivas infinitas entre dois espelhos” (PLATH, 2020, p. 26) — e
essa imagem de duplicação do espelho é associada por Freud (1919), ao duplo e sua
relação contra o desaparecimento do eu. Essa infinidade e falta de fronteiras no
inconsciente vão contra a ordem do “mundo real” e provoca as fobias do sonhador,
num ambiente escuro relacionado com a culpa cristã: “um ambiente gótico no porão
de um mosteiro qualquer” (op. cit., p. 26).
Neste ambiente gótico do sonho, há elementos abjetos relacionados à morte:
“as colunas e paredes eram feitas apenas de crânios e ossos humanos [...] tinindo de
tão limpos, com uma espécie de brilho branco futurista” (PLATH, 2020, p. 26). Além
de elementos sobreviventes do estágio final de decomposição do corpo – e elementos
do estágio inicial: “em cada reentrância havia um cadáver estirado, e era o Salão do
Tempo, com os corpos em primeiro plano ainda mornos, desbotando e começando a
apodrecer a meia distância” (op. cit., p. 26). Esses elementos são o que a vida suporta
“dificilmente, por parte da morte” (KRISTEVA, 1982, p. 03).
Logicamente, enquanto os ossos representam a morte higienizada, os
cadáveres “ainda mornos” representam a morte nua e crua, que pode ser considerada
mais abjeta e inquietante. Esses elementos estão associados, como o nome “Salão
do Tempo” indica, a inevitabilidade do tempo e da morte, ao medo pelo
desaparecimento do Eu. Os ossos se tornam mais inquietantes por causa de sua
associação “com uma espécie de brilho branco futurista” (PLATH, 2020, p. 26).
Castillejos (2002) associa a luz com o anúncio da morte e o sobrenatural, em que
podemos enxergar a fonte do efeito inquietante da associação com ela no sonho do
rapaz: “cuidei para que o cenário fosse iluminado, por uma questão de rigor, não por
velas, mas pela fluorescência de claridade gélida que faz a pele parecer verde e todo
rubor rosado e vermelho assumir uma cor preta-arroxeada sem vida” (PLATH, 2020,
p. 26). Principalmente, é a parca iluminação que está relacionada ao inquietante, à luz
gélida, onde habitam as sombras e o indistinto. Como em “As Filhas”, a multiplicidade
de cores é um elemento simbólico relacionado ao abalo da ordem, em especial a cor
roxa associada à deformação abjeta do corpo após a morte.
Assim como Silva Junior; Carvalho (2015, p. 39) apontam em Alice no seu “País
das Maravilhas”, ou o “País da Loucura e do Inconsciente”, podemos observar que a
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narradora-secretária também escuta e crê em seu inconsciente, dialogando


instintivamente, com os sonhos nonsense que coleciona e elabora: “Você me pergunta
como eu sei que esse era o sonho do cara de jaqueta de couro preta. Eu não sei. Só
acredito que era o sonho dele, e me dedico à crença com mais energia e lágrimas e
súplicas do que dedico à recriação do sonho em si” (PLATH, 2020, p. 26).
Logo, o hospital é responsável por acabar com a legitimação do inconsciente,
trazendo a “sanidade” de volta, com o lago simbolizando esse acesso ao inconsciente
que precisa ser interrompido: “As pessoas que de fato saíram flutuando e desceram
até aquele lago pantanoso vêm até nós uma só vez” (PLATH, 2020. p. 26). No entanto,
a cura total não acontece na ala psiquiátrica. Os pacientes precisam ser enviados para
uma espécie de tratamento intensivo em outros locais, onde uma ordem mais rigorosa
impera: “depois são encaminhadas para um lugar mais permanente que nosso
consultório, que só atende o público em horário comercial de segunda a sexta” (op.
cit., p. 26-7). Mesmo no mundo real, impera a loucura – como no “País das Maravilhas”
– todos são loucos, ainda que aparentemente sãos:

Até as pessoas que ainda conseguem andar pela rua e continuar trabalhando,
que estão a só meio caminho do lago, são mandadas para o Departamento
Ambulatorial de outro hospital especializado em casos mais severos. Ou
podem passar um mês ou pouco mais na nossa Ala de Observação no
hospital central, que nunca cheguei a conhecer. (PLATH, 2020, p. 27)

No entanto, os “melhores sonhos” pertencem aos sonhadores que foram


levados para essa área de tratamento intensivo. Ou seja, a loucura total ou falta de
sanidade “grave” permitem o acesso ao inconsciente mais profundo, reduto da
imaginação mais original e única: “Muitos dos melhores sonhadores estão nos livros
antigos, os sonhadores que vêm até nós uma ou duas vezes para avaliações e depois
são mandados para algum outro lugar” (PLATH, 2020, p. 29).
Como nós apontamos em “As Filhas”, também em “Johnny Panic”, inclusive de
forma mais acentuada e explícita, o hospital funciona como uma seita religiosa,
definição de Stevenson (1992). Logo, a seita do hospital deste conto é responsável
por fechar as portas do inconsciente dos pacientes e promover a sanidade mental,
convertendo os discípulos “loucos” de Panic: “dia após dia, vejo esses médicos da
psique estudando para roubar os convertidos de Johnny Panic, sem medir esforços e
sem parar de falar, falar, falar” (PLATH, 2020, p. 31). A classe psiquiátrica, dentro da
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ordem da seita do hospital, é enxergada por um viés negativo, esses médicos são
caracterizados como oportunistas:

Esses colecionadores de sonhos de olhos fundos e barba cheia que vieram


antes de mim e seus herdeiros contemporâneos com capas brancas e
consultórios com lambris de madeira e sofás de couro faziam e ainda fazem
sua coleta de sonhos por motivos mundanos: saúde e dinheiro, dinheiro e
saúde. (PLATH, 2020, p. 31)

Em oposição à ordem religiosa do hospital, que se concentra na recuperação


da sanidade do sonhador, ao extirpar Johnny Panic do inconsciente dos pacientes
“com lavagens gástricas espirituais”, para se tornar “um membro genuíno da
congregação de Johnny Panic, é preciso se esquecer do sonhador e se lembrar do
sonho” (PLATH, 2020, p. 31). Dentro da seita rival que segue Panic, “o sonhador não
passa de um veículo débil para o grande Criador de Sonhos em pessoa” (op. cit., p.
31).
Uma das participantes mais notórias da seita hospitalar é a secretária da
inacessível Ala de Observação do hospital, a Srta. Milleravage, aversão particular da
narradora: “Alguma coisa em seus trejeitos ao fumar e tomar café no refeitório no
intervalo das dez horas me desagradou tanto que nunca mais me sentei ao lado dela”
(PLATH, 2020, p. 27). A desconcertante figura possui um nome considerado estranho
pela narradora: “Ela tem um nome peculiar de que não consigo me lembrar direito,
algo realmente muito estranho, como Srta. Milleravage” (op. cit., p. 27).
Este nome causa um efeito inquietante porque faz trocadilho, em inglês com a
palavra destruição: “Um desses nomes que se parecem mais um trocadilho com
Milltown e Ravage do que qualquer coisa que você pudesse encontrar na lista
telefônica”, (PLATH, 2020, p. 27, grifos da autora). Provavelmente, esse nome tem
um toque simbólico, pois representa a destruição do inconsciente que a personagem
empreenderá mais à frente no conto. Além de seu nome, sua descrição também traz
um efeito inquietante:

Enfim, essa tal Srta. Milleravage é uma mulher grande, não gorda, mas
bastante robusta e musculosa, e ainda por cima alta. Ela cobre o corpanzil
com um traje cinza que me lembra vagamente uma espécie de uniforme,
embora o corte do tecido não tenha nada de militar. Sua cara, robusta como
a de um boi, ostenta um número extraordinário de minúsculas manchas,
como se ela tivesse ficado debaixo d’água por um bom tempo e pequenas
algas tivessem se agarrado à sua pele, enxovalhando tudo de tons de
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marrom-tabaco e verde. Essas verrugas são ainda mais perceptíveis porque


a pele ao redor delas é muito pálida. Às vezes me pergunto se a Srta.
Milleravage já viu a salutar luz do dia alguma vez. Não me surpreenderia nem
um pouco se tivesse sido criada desde o berço apenas com iluminação
artificial. (PLATH, 2020, p. 27-8)

Logo, podemos observar que a descrição da personagem sugere sua função


como representante física da ordem, como indica a associação do modo como ela se
veste com o militarismo e antecipa seu papel no “tratamento” brutal que a narradora
será submetida ao final do conto. A palidez da personagem e as manchas na pele da
personagem também são significativas ao sugerir que a sanidade, quando alcançada
dentro do conto, não é sinônimo de bem-estar e saúde, mas é um efeito puramente
“artificial”. O efeito inquietante desta descrição física, pode vir principalmente do
contraste antes a grande altura e dimensões corpóreas da personagem e a forma
“apertada” e “compacta” com que o ambiente físico do hospital é descrito – além do
aspecto doentio que já mencionamos.
O efeito inquietante da Srta Milleravage é reforçado pela “sua voz grave
peculiar e canina” e seu comportamento ao comentar, com “um sorriso largo”, que
uma colega “deve ter desaparecido com a velha enfermeira-chefe nos escombros dos
bombardeios” (PLATH, 2020, p. 28). O sadismo da personagem é associado aos
elementos e comportamentos abjetos que existem no ambiente hospitalar, opostos ao
objetivo de cura e bem-estar que normalmente são associados à medicina, que por
sua vez é enxergada por uma luz negativa:

eu já vi estudantes de medicina dissecando cadáveres, quatro defuntos por


turma, que pareciam tão humanos quanto Moby Dick, e depois jogando bola
com o fígado dos mortos. Já ouvi homens fazendo piada sobre o fato de terem
costurado uma mulher do lado errado após um parto na Ala de Caridade da
Internação. Mas prefiro não saber o que a Srta. Milleravage considera a coisa
mais engraçada do mundo. Não, obrigada, não contem comigo. Se alguém
cutucar o olho daquela mulher com um alfinete, vai jurar que bateu numa
pedra de quartzo. (PLATH, 2020, p. 28)

Outra personagem inserida na “seita” daquele hospital, é a Srta. Taylor, “uma


mulher de meia-idade” que “é a secretária-chefe da clínica” e “sempre foi, desde que
a clínica foi inaugurada há trinta e três anos – no ano em que nasci, por incrível que
pareça” (PLATH. 2020, p. 28). Há novamente a associação com o número três,
associado ao diabólico, desta vez ligado diretamente à narradora. Voltando à Srta.
Taylor, ela é uma espécie de sacerdotisa chefe, responsável por comandar todas as
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outras secretárias-sacerdotisas e possibilitar o andamento regular da ordem dentro do


ambiente: “A Srta. Taylor conhece cada médico, cada paciente, cada prontuário
médico antiquado, cada guia de encaminhamento e procedimento de cobrança que o
hospital já usou ou cogitou usar” (op. cit., p. 29).
Existe quase uma simbiose da personagem com o ambiente, ela dedicaria a
própria vida ao hospital – “Ela lida com as estatísticas como eu lido com sonhos: se o
prédio pegasse fogo, ela ia arremessar aqueles livros de estatística um a um para os
bombeiros lá embaixo, preferindo colocar a própria vida em risco” (PLATH, 2020, p.
29). O desligamento da personagem da sua função no hospital, e o desligamento da
ordem, é sugerido pela narradora como algo semelhante à morte para a própria Srta.
Taylor: “Ela pretende continuar na clínica até o dia de colher os frutos dos cheques da
aposentadoria. Se existe uma mulher mais dedicada ao trabalho, eu nunca vi” (op. cit.,
p. 29).
Ainda que a Srta. Taylor seja alinhada com a ordem, “ela é tão correta com seu
trabalho que seria capaz de abrir mão de alguns minutos de sua meia hora de almoço
e ainda mais minutos da pausa para o café” (PLATH, 2020, p. 30), existe um elemento
inquietante na personagem, relacionado ao abjeto da deformação do corpo: “sua
perna esquerda aleijada” (op. cit., p. 30). Logo, a narradora tira proveito da deficiência
da Srta.Taylor, utilizando-a para ajudar a esconder sua tarefa secreta: “O ruído
característico dessa perna aleijada no corredor me alerta a tempo de esconder o livro
de registros que estou lendo na gaveta da minha mesa e fingir que acrescento os
últimos retoques a um recado telefônico ou arranjar algum álibi similar” (PLATH, 2020,
p. 30). Une-se à deformação corporal, o inquietante da repetição, nesse caso de um
“ruído característico”, enquanto a secretária rouba sonhos:

O único porém, no que diz respeito ao meu estado emocional, é que o setor
de Amputados fica no final do nosso corredor, na direção oposta ao setor do
Sistema Nervoso, e fui ficando inquieta graças aos muitos alarmes falsos,
situações em que confundi o passo claudicante de alguma perna de pau com
a própria srta. Taylor voltando mais cedo para o consultório. (PLATH, 2020,
p. 30)

Podemos perceber, que assim como “As Filhas”, o inquietante relacionados à


deformação do corpo se expande ao ambiente, uma ala do hospital: o “Setor de
Amputados”. Nesse caso, o efeito inquietante vem da incerteza, da confusão entre os
sons causados pelos pacientes desse setor vizinho e “o passo claudicante” da Srta.
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Taylor. Essa incerteza “atrapalha” os intentos secretos da narradora, que trabalha se


desviando da ordem o dia inteiro, demonstrando ao leitor o valor positivo na rebeldia
contra a burocracia, onde ela deveria manter a ordem:

Minhas circunstâncias não são nada adequadas para que eu me dedique


calmamente à minha arte. Há, é claro, certa intrepidez que se manifesta sob
tais condições arriscadas, mas anseio pela calma prazerosa do verdadeiro
especialista, que permite que suas narinas pairem sobre o copo de conhaque
por uma hora antes de esticar a língua para o primeiro gole. (PLATH, 2020,
p. 29)

Em sua tarefa de “agente duplo”, a narradora cogita a hipótese de roubar os


livros, para copiar os sonhos “na privacidade e conforto” do seu apartamento, a maior
rebeldia da personagem: “Ultimamente, me pego muitas vezes imaginando que alívio
seria levar uma pasta para o trabalho, uma pasta grande o suficiente para guardar um
daqueles livros de registros grossos, azuis, com capa de tecido e páginas cheias de
sonhos” (PLATH, 2020, p. 29-30). Mas ela hesita, com medo de ser “mandada
embora” e perder todo o seu “material de pesquisa” (op. cit., p. 30).
A rivalidade entre a influência de Johnny Panic e a seita do hospital é ilustrada
pelo caso de Harry Bilbo, um rapaz que “chegou ao nosso consultório com a mão de
Johnny Panic lhe pesando sobre o ombro como um caixão de chumbo” (PLATH, 2020,
p. 31). O paciente, segundo a percepção da narradora, apresentava “uma percepção
interessante da depravação que há no mundo” – potencial para o desvio da ordem –
e foi escalado por ela “para um papel de destaque na Bíblia de Sonhos de Johnny
Panic”, localizado entre elementos abjetos “Terceiro Livro do Medo, Capítulo Nove:
Sujeira, Doença e Ruína em Geral” (op. cit., p. 31). O paciente em questão,
apresentava uma espécie de comportamento neurótico porque costumava tocar “o
trompete do amigo” e “anos depois o amigo teve câncer e morreu”:

De repente Harry Bilbo não queria mais tocar trompete ou se sentar em


cadeiras ou dar apertos de mão, e nem com as orações de todos os cardeais
de Roma se convenceria do contrário, por medo de pegar câncer. Sua mãe
precisava apertar os botões da TV e abrir as torneiras e portas para ele.
(PLATH, 2020, p. 32)

Podemos observar que a “mania de limpeza” de Harry Bilbo se relaciona com


a aversão que temos muitas vezes ao abjeto, “estes fluidos corporais” que a vida
109

expele (KRISTEVA, 1982, p. 03), sentimento de Bilbo que parece ser compartilhado
pela narradora:

Não demorou para Harry deixar de ir ao trabalho por causa do cuspe e dos
cocôs de cachorro que ficavam pela rua. Primeiro essa porcaria gruda no seu
sapato, depois quando você tira o sapato ela gruda na sua mão, e depois
durante o jantar é um pulinho da mão pra boca, aí nem cem Ave-Marias
podem salvar você da contaminação em cadeia. (PLATH, 2020, p. 32)

À neurose de Bilbo, une-se a aversão ao abjeto dos fluídos do corpo, o abjetado e


deformado corpo humano, que o leva direto para os cuidados da ala psiquiátrica do
hospital: “A gota d’água foi o fato de Harry ter parado de levantar pesos no ginásio
público quando viu um aleijado se exercitando com os halteres. É impossível saber
que tipo de germes os aleijados têm atrás das orelhas e debaixo das unhas” (PLATH,
2020, p. 32). Na descrição da neurose da personagem a narradora utiliza sempre
símbolos religiosos, “os cardeais de Roma”, as “cem Ave-Marias”, apontando para a
relação pseudorreligiosa de Panic com os seguidores de sua seita: “Harry Bilbo vivia
dia e noite em sagrada adoração a Johnny Panic, devoto como um padre entre
incensórios e sacramentos. Era um caso de beleza única” (op. cit., p. 32).
Nesse sentido, a “cura” da neurose de Bilbo é enxergada pela narradora por
um prisma negativo, onde lhe é negada a liberdade da insanidade e as portas ao
mundo inconsciente lhe são fechadas, o paciente é despersonalizado e se torna um
“um novo homem [...] a pura luz do Pânico havia desaparecido de sua face. Ele saiu
do consultório condenado ao destino mesquinho que esses médicos chamam de
saúde e satisfação” (PLATH. 2020, p. 32-33). As neuroses de Harry Bilbo o faziam
“único”, diferentes de todas as pessoas “normais”, o que lhe foi tirado pelo
“oportunismo” dos médicos do hospital:

Bem, esses remendeiros de capa branca deram um jeito, todos eles, de


convencer Harry a ligar a TV sozinho, e a abrir as torneiras e portas de
armário, portas de casa, portas de bares. Antes de se darem por satisfeitos,
ele já conseguia se sentar em poltronas de cinema e bancos espalhados pelo
Jardim Municipal inteiro, e levantava pesos todos os dias da semana no
ginásio, embora outro aleijado tivesse começado a usar o aparelho de remo.
(PLATH, 2020, p. 32)

Inspirada pelo caso de Henry Bilbo, a narradora acalenta “uma nova ideia” que
lhe cutuca “o fundo do cérebro” e é “tão difícil de ignorar quanto aqueles pés descalços
110

que saem de baixo do lençol na sala de punção lombar”: ela decide passar “as noites
no edifício da ala clínica” (PLATH, 2020, p. 33). Enquanto o período diurno é associado
à ordem e à sanidade, o período noturno é o espaço temporal da desordem, da
inconsciência de Johnny Panic. Nossa narradora-intrusa se tranca no banheiro à
espera de que o hospital fique vazio. A Srta. Taylor, guardiã-mor do ambiente, é a
última a sair:

Cerca de vinte minutos depois, a porta do banheiro se abre e alguém entra


mancando como uma galinha coxa. É a srta. Taylor, sei disso por causa do
suspiro resignado que ela solta ao encarar o olhar bilioso do espelho do
banheiro. Ouço o clique-claque de vários produtos de maquiagem na pia, a
água esguichando, o assobio de um pente por entre cabelos ressecados, e
então a porta se fecha com o chiado lento das dobradiças. (PLATH, 2020, p.
33)

Logo, a narradora se sente segura e deixa o banheiro vendo quando “as luzes
do corredor estão apagadas e o quarto andar está vazio como uma igreja na segunda-
feira” (PLATH, 2020, p. 33). Logo, a narradora invade o setor psiquiátrico e podemos
observar como a parca luz num ambiente escuro – também comparada aos ambientes
lúgubres das igrejas – pode ser associada à atmosfera sobrenatural. No “escuro”, a
influência de Panic invade e se espalha pelo ambiente físico da ordem:

O armário que guarda os livros de registros fica no corredor sem janelas que
dá nos cubículos dos médicos, que têm janelas com vista para o pátio. Eu
verifico se todas as portas dos cubículos estão fechadas. Então acendo a luz
do corredor, uma coisinha amarelenta de vinte e cinco watts que já está
ficando preta na base. Mas nessa situação isso é mais útil do que um altar
cheio de velas. (PLATH, 2020, p. 34)

A narradora-secretária começa seu intento, de “forma sistemática”,


vasculhando “o livro mais antigo da prateleira de baixo” (PLATH, 2020, p. 34). Na
descrição física do objeto, observamos a deterioração dos sonhos e pensamentos
reprimidos no inconsciente, simbolizada pela perda de cor e deterioração do livro
esquecido nas prateleiras do hospital: Enquanto, “a capa que um dia foi azul-marinho
agora é de cor nenhuma [...] as páginas são cópias em papel-carbono borradas e
marcadas pelo manuseio, mas estou vibrando dos pés à cabeça: esse livro de sonhos
era novo em folha quando nasci” (op. cit., p. 34).
Essa narradora, que no início do conto pode parecer sã, mostra-se consciente
de sua insanidade ao leitor, planejando subterfúgios para enganar as pessoas no seu
111

ambiente de trabalho: “para que ninguém perceba a derrocada da minha aparência e


comece a suspeitar de casos amorosos infelizes, ou de filiação a grupos socialistas,
ou do meu trabalho com livros de sonhos na clínica quatro noites por semana” (op.
cit., p. 34-5). “Onze horas depois”, a narradora do conto é desmascarada pelos
seguidores da Seita Médica:

Um ar gelado toca minha nuca. De onde estou, sentada de pernas cruzadas


no chão, de frente para o armário, sentindo o peso do livro de registros no
colo, entrevejo que a porta do cubículo ao meu lado está deixando uma fresta
de luz azul entrar. Não só pelo piso, mas também pela lateral da porta. Isso
é estranho, já que a primeira coisa que fiz foi me certificar de que as portas
estivessem bem fechadas. A fresta de luz azul vai aumentando e meus olhos
se fixam em dois sapatos imóveis na soleira da porta, com as pontas viradas
para mim. (PLATH, 2020, p. 35)

Podemos observar que, em oposição às luzes amarelas no ambiente associadas à


influência de Panic, os seguidores-fanáticos da ordem são associados a “uma fresta
de luz azul” (PLATH, 2020, p. 35). A narradora é pega no flagra pelo diretor clínico do
hospital, sacerdote mor da ordem e figura superior dentro da “seita” à própria guardiã,
Srta. Taylor. Ela encarna, desde as suas roupas, a afetação que o conto critica, na
medicina dos anos 1960: “São sapatos de couro marrom de uma marca estrangeira,
com grossas solas de plataforma. Acima dos sapatos há meias pretas de seda que
deixam entrever uma carne lívida. Não me atrevo a ir além da barra da calça de risca
de giz” (op. cit., p. 35).
O diretor representa o altruísmo dos médicos que esconde interesses escusos
– ele fala com a narradora com “uma voz infinitamente delicada” e lhe ajuda a se
levantar: “Que posição desconfortável! Suas pernas já devem estar dormentes. Deixe
eu te ajudar a levantar. O sol já vai sair” (PLATH, 2020, p. 35). O sol é um elemento
sistematizador da ordem. A caracterização física da personagem pelo olhar da
narradora traz o inquietante relacionado ao animalesco e à deformação do corpo:
“uma visão do diretor clínico fica cauterizada no meu cérebro. Nem preciso olhar:
barriga de cerveja estufando o colete cinza de risca de giz, dentes de marmota
amarelos e saltados, olhos furta-cor rápidos como peixinhos atrás dos óculos de lentes
grossas” (op. cit., p. 35).
Então, a figura inquietante do diretor captura a narradora, colocando-a contra a
própria vontade em “um elevador que funciona a noite toda e é operado por um negro
que só tem um braço” rumo a um “andar indeterminado” (PLATH, 2020, p. 36-7). Os
112

ambientes onde a secretária vai receber o tratamento de recuperação da sua


“sanidade” é caracterizado pela pouca iluminação e portas e janelas fechadas e/ou
com telas de proteção, como uma prisão:

O diretor clínico me conduz por um corredor vazio, iluminado apenas em


alguns trechos por lâmpadas protegidas por pequenas caixas de arame no
teto. Portas trancadas com janelas teladas contornam os dois lados do
corredor. Pretendo me separar do diretor clínico à primeira placa vermelha de
Saída, mas não há nenhuma em nossa jornada. Estou em território
estrangeiro, com meu casaco no gancho do consultório, bolsa e dinheiro na
primeira gaveta da mesa, caderno na mão, e só Johnny Panic para me
aquecer e proteger da era glacial lá de fora. (PLATH, 2020, p. 37)

Nesse “território estrangeiro”, a narradora conta com a proteção de seu


padroeiro, Panic, para se salvar da recuperação artificial da sanidade mental.
Enquanto “à frente uma luz se intensifica e clareia” o diretor a faz entrar em “um
cômodo quadrado e muito iluminado” onde “Não há janelas” (PLATH, 2020, p. 37). Ali,
a personagem receberá o tratamento de choques, dolorido retorno à sanidade mental.
O clímax do conto acontece com um plot twist, em que o leitor descobre que a Seita
do Hospital também cultua Johnny Panic e não a ordem como parecia:

Em pequenas celas trancadas que contornam as laterais e fundos da sala,


vejo os sumos sacerdotes de Johnny Panic me encarando, com os braços
amarrados nas costas e as camisolas brancas da Ala, os olhos mais
vermelhos que brasa, pelando. Eles me recebem com estranhos coaxos e
grunhidos, como se tivessem a língua travada na mandíbula. Sem dúvida já
souberam do meu trabalho através dos passarinhos de Johnny Panic e
querem descobrir como vivem seus apóstolos. (PLATH, 2020, p. 37)

Podemos observar que o hospital na verdade não impinge sanidade aos


pacientes, mas os danifica, destrói seu inconsciente, deixando-os suscetíveis à
influência diabólica de Panic e a máquina de eletrochoques representa esse
significado. A Srta. Milleravage, Miss Destruição, trouxe “uma caixa de metal repleta
de mostradores e medidores”, a arma mortal da destruição mental: “A caixa parece
me observar de sua espiral de fios elétricos, feia como uma cobra de duas cabeças,
o último modelo de Assassina-de-Johnny-Panic” (PLATH, 2020, p. 38). A enfermeira-
brutamontes avança para a narradora, com seu “corpanzil”, com “seu sorriso” tendo
“o peso dos dias quentes de agosto” (op. cit., p. 38). A pobre insana-narradora é presa
em uma maca para receber o tratamento, mas não sem antes tentar fugir:
113

Por mais rápido que eu corra ao redor da maca branca, a Srta. Milleravage é
tão rápida que parece estar de patins. Ela agarra e acerta. Contra seu grande
corpanzil eu bato o punho, e contra seus imensos seios sem leite, até que
suas mãos nos meus pulsos se tornam argolas de ferro e seu hálito me nina
com um cheiro de amor mais podre que um porão de funerária. (PLATH,
2020, p. 38)

Nossa heroína, “andou se engraçando com o Johnny Panic de novo”, agora


receberá o pagamento do preço dessa transgressão, será sacrificada em oferenda à
divindade do “Medo”, como uma virgem é preparada para tal “cerimônia de significado
ritualístico”, como aponta Stevenson (1992, p. 269). “Com uma terrível delicadeza, a
Srta. Milleravage tira meu relógio do pulso, os anéis dos dedos, os grampos do cabelo.
Começa a me despir. Quando estou nua em pelo, sou ungida nas têmporas e vestida
com trajes tão virginais quanto a chegada da neve” (PLATH. 2020, p. 39). A narradora
é imobilizada e o ritual começa, com referências à ritualística cristã, a hóstia e coroa,
não de espinhos, mas de arame em referência à artificialidade da época:

Nesse momento, dos quatro cantos da sala e da porta chegam cinco falsos
sacerdotes com jalecos cirúrgicos brancos e máscaras cujo único objetivo é
destituir Johnny Panic de seu trono. Me fazem ficar de barriga para cima,
estendida na maca. A coroa de arame é colocada sobre a minha cabeça e a
hóstia do esquecimento sobre minha língua. Os sacerdotes mascarados se
colocam a postos e imobilizam: um, na minha perna esquerda, outro à direita,
um meu braço direito, outro o esquerdo. Um atrás da minha cabeça diante da
caixa de metal, onde não consigo ver. (PLATH, 2020, p. 39)

A quantidade de falsos sacerdotes, cinco médicos oportunistas, é a inversão


da simbologia positiva relacionada ao número, um efeito inquietante. Segundo
Chevalier; Gheerbrant (2015, p. 241), o cinco é “um símbolo de união”, ou seja, um
elemento familiar que retorna. Por outro lado, o número em questão também é um
elemento da indefinição, da incerteza, do limiar: pois está “no meio dos nove primeiros
números”, é o número do centro (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p. 241). No
inquietante limiar entre a loucura e a sanidade, entre o consciente e inconsciente, os
participantes da seita entoam seu “cântico final”, o lema de Panic: “A única coisa que
se pode amar é o próprio Medo / O amor ao Medo é o início da sabedoria / A única
coisa que se pode amar é o próprio Medo/Que o Medo e o Medo e o Medo estejam
por toda parte” (PLATH, 2020, p. 39).
Nesse sentido, o medo é enxergado por essa seita como necessário e
indispensável para o desenvolvimento dos problemas mentais: os médicos hipócritas
114

não querem trazer a cura, mas apenas enganar os pacientes, para que eles acreditem
que estão sãos. Porém, no mundo onírico de “Johnny Panic”, a verdadeira sanidade
não existe, ela é apenas um estado ilusório vendido para a população, assim como os
conceitos de “normalidade” e “saúde”. A máquina de eletrochoques é o tratamento
que aniquila os sonhos, o inconsciente, e para que ocorra a libertação final desse
suplício, a narradora-secretária opta pela morte e o suicídio. Pela primeira vez, Panic
aparece diretamente no conto durante o desfecho, mas tal como o Gato Risonho de
Carroll aparecendo aos poucos, sua aparição é incorpórea e indefinida, com a luz
fraca associada a sua condição sobrenatural:

No momento em que penso estar mais perdida, o rosto de Johnny Panic


aparece numa auréola de lâmpadas a arco lá no teto. Estremeço como uma
folha nos dentes da glória. A barba dele é relâmpago. O relâmpago está em
seu olho. A sua Palavra libera a descarga elétrica e ilumina o universo. O ar
crepita com seus anjos de língua azul e halo de raio. Seu amor é o salto de
vinte andares, a corda no pescoço, a faca no coração. Ele jamais esquece os
seus. (PLATH, 2020, p. 39)

As referências à morte e ao suicídio, a libertação final da narradora, são


associadas a Johnny Panic: ele pode ser o responsável pela sua desregulação
emocional e mental. O verdadeiro tratamento-de-choques, vêm dessa entidade
diabólica, em sua barba e olhos “de relâmpago”, símbolo relacionado ao “poder criador
e destruidor” de divindades mitológicas como Zeus (CHEVALIER; GHEERBRANT,
2015, p. 785).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da presente análise do corpus, podemos observar como o Insólito está


interligado com a categoria espaço em ambos os contos, em que a sobreposição de
espaços e sua relação com o eu-narrador têm um valor simbólico. Em “As Filhas”, o
espaço físico do hospital é o espaço intermediário entre o mundo exterior ao hospital
(Mundo dos Vivos) e a passagem para o estágio final da existência humana (Mundo
dos Mortos).
Por outro lado, em “Johnny Panic”, podemos observar uma oposição entre a
descrição burocrática do espaço físico hospitalar (Mundo da Ordem) e a descrição
115

espacial dos sonhos nonsense que a narradora-secretária copia/cria (Mundo do


Inconsciente).
Sendo assim, no primeiro conto, a tragédia climática, o furacão que se
aproxima, abala a ordem pragmática-emocional do microcosmo-hospital, numa
relação de influência do espaço com narrador e personagens, o abalo da ordem.
Semelhantemente, a aparente ordem do hospital no segundo conto é quebrada pela
atividade de copiar os sonhos, também um abalo da ordem, num prenúncio de
insanidade mental.
Nesse caso, também podemos observar uma oposição simbólica entre a
sanidade e o estado de loucura, o primeiro visto como algo artificial e ilusório e o
segundo como estado inescapável e de liberdade.
Logo, o insólito, dentro de ambos os contos, relaciona-se com os símbolos que
povoam o espaço – são elementos familiares, que reprimidos no inconsciente,
retornam trazendo o efeito inquietante: como as flores que Emily recebe em “As Filhas”
e os números desordenados nas fichas dos pacientes em “Johnny Panic”.
Por fim, há um sentimento de incerteza em ambos, o que se encaixa na
definição de Eco para Obra Aberta (1962), relacionado com o clímax dos contos: em
que o leitor se pergunta durante a leitura se os eventos envolvendo as mortes de Billy
e Emily no primeiro conto possuem uma explicação sobrenatural ou não; e no
segundo, onde há uma dúvida durante parte da história, se narradora está sã ou louca.
116

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