Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Garanhuns-PE
2022
JULIO HENRIQUE BALTAZAR DA SILVA
Garanhuns-PE
2022
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Universidade Federal do Agreste de Pernambuco
Sistema Integrado de Bibliotecas (SIB-UFAPE)
Inclui referências.
BANCA EXAMINADORA:
__________________________________
Profa. Dra. Monaliza Rios Silva
(Orientadora - UFAPE)
__________________________________
Prof. Dr. Pedro Felipe Martins Pone
(1º Examinador Externo – DLCH/UFERSA)
__________________________________
Prof. Me. Bruno Eduardo da Rocha Brito
(2º Examinador Externo - UFPE)
Dedico este trabalho à MARISTÂNIA BALTAZAR
DA SILVA, minha mãe, meu incondicional apoio nesta
jornada e na vida, responsável por plantar o amor da
literatura nela.
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, Maristânia Baltazar da Silva, que luta por mim todos os dias de sua
vida.
À minha irmã, Any Biatriz Baltazar da Silva, com a qual compartilho o amor pelos
livros e palavras.
À minha tia, Estela Baltazar da Silva, pelo suporte e carinho que dedica a mim e à
minha família.
Aos meus amigos e colegas, como Renata de Oliveira Almeida, Maria das Dores
Andrade de Lima e Rivaldo Alves.
Nos contos “Johnny Panic and the Bible of Dreams” e “The Daughters of Blossom
Street”, da escritora estadunidense Sylvia Plath (1965), pudemos observar a presença
do insólito. Portanto, o presente estudo pretende investigar como o insólito se
apresenta e é caracterizado nos contos supracitados. Nesse sentido, buscou-se
identificar, analisar e interpretar os elementos insólitos (inquietante/abjetos) na
narrativa dos contos que compõem o corpus de pesquisa, pelo viés metodológico da
Crítica Psicanalítica (EAGLETON, 2006). Para tanto, recorremos a uma pesquisa
bibliográfica: em primeiro lugar, coletando e interpretando dados sobre a autora, em
algumas biografias da estadunidense Sylvia Plath, a exemplo de Stevenson (1992) e
de Rollyson (2015); em segundo lugar, buscando em aportes teóricos de autores
como Todorov (1981), Freud (1919) e Kristeva (1982), a delimitação da presente
categoria de análise; e por último, buscando analisar o nosso corpus, à luz da
categoria do insólito, através do Fantástico, do inquietante e do abjeto. Assim,
pudemos observar que o insólito se apresenta relacionado ao espaço narrativo; aos
elementos simbólicos, tais como: sanidade/insanidade; ordem/desordem; morte/vida;
real/inconsciente; e à temática da incerteza, permeados nos contos em questão.
Palavras-chave: Sylvia Plath; Insólito; Johnny Panic and the Bible of Dreams; The
Daughters of Blossom Street.
ABSTRACT
In the short stories “Johnny Panic and the Bible of Dreams” and “The Daughters of
Blossom Street”, by the American writer Sylvia Plath (1965), we could observe the
presence of the weird fiction. Therefore, the present study intends to investigate how
the weird fiction presents itself and is characterized in the aforementioned short stories.
To do so, we sought to identify, analyze and interpret the weird fiction elements
(uncanning/abjection) in the narrative of the short stories that make up the research
corpus, through the methodological bias of Psychoanalytic Criticism (EAGLETON,
2006). In order to do so, we resorted to a bibliographic research: first, collecting and
interpreting data about the author, in some biographies of the American Sylvia Plath,
such as Stevenson (1992) and Rollyson (2015); secondly, seeking in theoretical
contributions from authors such as Freud (1919) and Kristeva (1982), the delimitation
of the present category of analysis; and finally, seeking to analyze our corpus, in the
light of the weird fiction category, through the uncanning and the abjection. Thus, we
could observe that the weird fiction is related to the plot; to symbolic elements, such
as: sanity/insanity; order/disorder; death/life; real/unconscious; and the theme of
uncertainty, permeated in the stories herein referred to.
Keywords: Sylvia Plath; Uncanning; Johnny Panic and the Bible of Dreams; The
Daughters of Blossom Street.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
1 INTRODUÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
2 VIDA E OBRA DE PLATH – “IT MIGHT BE ME, THAT SWEET WORD:
SUCCESS”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
REFERÊNCIAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
10
1 INTRODUÇÃO
teoriza sobre o Fantástico; Freud (1919), que fala sobre o Inquietante na literatura;
e Kristeva (1982) que argumenta sobre o Abjeto.
A nossa metodologia adotada segue o viés da Crítica Psicanalítica, como indica
grande parte do arcabouço teórico escolhido, buscando apoio na psicanálise para
construir “o que se poderia chamar de subtexto para a obra”, que por sua vez é “um
texto que está inserido nela, visível em certos pontos sintomáticos de ambigüidade,
evasão ou ênfase exagerada” e que nós como críticos, “somos capazes de escrever,
mesmo que o romance em si não o escreva” (EAGLETON, 2006, p. 268). Dentro da
variedade de subtextos que uma obra pode despertar, segundo Eagleton (2006), a
Crítica Psicanalítica concentra seu olhar no sentido "inconsciente da obra”: “As
introvisões da obra” que “estão profundamente relacionadas” com “aquilo que ela não
diz, e como não o diz”, o que “pode ser tão importante quanto o que diz” (p. 268).
Nesse sentido, “que parece estar ausente, ser marginal ou ambivalente a
respeito dela, pode constituir uma chave mestra para as suas significações”
(EAGLETON, 2006, p. 268). Na perspectiva de Eagleton (2006), a Crítica Psicanalítica
pode dizer “alguma coisa sobre a maneira pela qual os textos literários se formam”,
revelando “alguma coisa sobre o significado dessa formação” (p. 268).
Logo, nossa pesquisa é dividida em três seções: a primeira é dedicada a uma
explanação sobre a vida e obra de Sylvia Plath, em especial os contos que compõem
o nosso corpus. Na segunda, recorremos ao arcabouço teórico já mencionado para
investigar o insólito pelo viés da Crítica Psicanalítica. E por fim, na terceira seção,
procuramos empreender uma análise da obra em questão — os contos “The
Daughters of Blossom Street” e “Johnny Panic and the Bible of Dreams” — por meio
da investigação das categorias do insólito e do abjeto.
12
Sylvia Plath foi uma poeta e escritora estadunidense, cuja produção literária,
de forte cunho confessional, saiu da obscuridade após seu suicídio em 11 de fevereiro
de 1963 e sua figura ganhou ares míticos. Tal fenômeno é semelhante ao que
acontece com astros do rock, dadas as devidas proporções: seus cabelos coloridos
de louro e cortados rente aos ombros, seu rosto delicado e suas roupas estilo anos
1950 estampam objetos, camisetas e até mesmo artigos de papelaria (vide Imagem
1).
Sua obra mais conhecida, o romance autobiográfico publicado postumamente
em 1963, The Bell Jar [A Redoma de Vidro], tornou-se uma obra de grande fortuna
crítica, lido, relido e destrinchado em escolas e universidades ao redor do mundo. A
constante busca em vida pela aceitação e “fama” literárias da escritora, alcançadas
post mortem é assunto de biografias, como: Bitter Fame [Amarga Fama] (1989), de
Anne Stevenson; Red Comet: The Short Life and Blazing Art of Sylvia Plath (2020),
de Heather Clark (sem tradução no Brasil); e American Isis [Isis Americana] (2013),
de Carl Edmund Rollyson.
1
In: PLATH, Sylvia. The Unabridged Journals of Sylvia Plath, 1950-1962. New York: Anchor
Books, 2000, p. 276. “Deve ser eu, essa palavra doce: sucesso”, em tradução livre.
2
Montagem a partir de imagens coletadas de sites como www.reddit.com; www.shopee.com.br;
www.teepublic.com, em 2022.
13
De acordo com Carl Rollyson (2015), The Collosus and Other Poems foi a obra
de Plath mais aclamada em vida da autora, desmentindo a ideia de que Plath foi
apenas celebrada por seus pares postumamente:
3
[...] most reviewers didn’t know what to make of the burning, pulsating metaphors in poems
like Lady Lazarus or the chilly imagery of Edge. Em tradução livre.
4
[...] jet of flame from a literary dragon who in the last months of her life breathed a burning river
of bale across the literary landscape. Em tradução livre.
5
I should amass enough, what with my various prizes, might make me able to write a novel. Em
tradução livre.
15
publicações como esta me deixam apreensiva, uma vez que sugerem que
alguém escarafunchou gavetas de escrivaninha que a autora, se viva
16
Clark (2020) classifica o conto que dá título ao livro, como “a estória agora-
clássica”6 (op. cit, p. 466) e observa que tal conto foi rejeitado para publicação pela
revista Sewanee Review em 1961, “por um editor que parecia confuso pela prosa
experimental de Plath”7 e posteriormente publicado pela The Atlantic, em 1968
(CLARK, 2020, p. 466).
Segundo Clark (2020), o editor da primeira revista considerou que o narrador
de Johnny Panic “estava muito aquém do mundo normal”8 (p. 466, grifos da autora).
Segundo Paul Alexander (2009), as críticas imediatamente posteriores à publicação
do conto “seriam poucas – e misturadas”9 (p. 387). Por outro lado, Clark (2020) ainda
afirma que “The Daughters of Blossom Street” foi aceito por The London Magazine na
figura do editor John Lehmann, de primeira, após a recusa de outros contos e poemas
da autora (p. 498);
O primeiro fato relevante na biografia de Plath consiste no seu ingresso no
Smith College no ano de 1951, “acerca de noventa milhas” (ROLLYSON, 2015, p. 41),
longe de sua mãe, com quem possuía uma relação entre a dependência e o
ressentimento (que povoa grande parte de sua obra). O Smith College, segundo Anne
Stevenson (1992), “dedicava-se a cumprir uma obrigação moral mas não
revolucionariamente social para com as mulheres americanas” na formação de
esposas cultas com certa independência no campo civil, mas onde “ainda não se
esperava que assumissem um papel pouco feminino em assuntos de governo,
negócios artes e ciências” (p. 46). E neste ambiente, uma espécie de instituto
educacional feminino, Plath começou as suas primeiras tentativas literárias:
6
[...] the now-classic story”. Em tradução livre.
7
[...] by an editor who seemed confused by Plath’s experimental prose. Em tradução livre.
8
[...] was too removed from the normal world. Em tradução livre.
9
[...] would be few—and mixed. Em tradução livre.
17
10
[...] watching her toss clothes into the wind. Em tradução livre.
18
11
Ted Hughes was a Yorkshireman, a provincial who did not belong to the highborn set that still
filled Oxbridge in those days. Em tradução livre.
19
parecia o atrair. Pouco mais de quatro meses depois do primeiro encontro, Sylvia e
Ted se casaram em uma cerimônia secreta, com Aurelia Plath como único membro
das famílias de ambos. Segundo Rollyson (2015), Plath tinha receio em anunciar seu
casamento, porque “correria o risco de perder a bolsa da Fulbright, uma vez que
supunha que o subsídio se destinava a estudantes solteiros” (p.161). Plath se tornou
depende de seu marido, idealizando sua figura, preenchendo o vácuo deixado pela
orfandade paterna precoce de seu pai, Otto Plath:
Antes de dormir a cada noite, ela se ajoelhava diante da janela e enviava toda
sua força e amor à cama de Ted em Yorkshire. Eu não acredito que alguém
já amara desse jeito: ninguém amará assim. O ritual a fazia sentir mais
conectada com seu marido: minha vida inteira sendo, respirando, pensando,
dormindo e comendo fizeram, de alguma forma [...] me tornar
indissoluvelmente soldada a você.12 (CLARK, 2020, p. 403, grifos da autora)
Após uma lua de mel na Espanha, em 1957, o casal se muda para os Estados
Unidos, onde se empenhou em conseguir a fama literária para ambos: segundo
Rollyson (2015), Plath se dividia entre escrever, a sua produção literária e a
datilografar “o trabalho de Ted” e reunir poemas e contos de ambos “que pretendia
enviar para apreciação” de periódicos, muitas vezes apenas os poemas dele eram
aceitos (p. 175). Segundo Anne Stevenson (1992), Plath ajudou a corrigir as provas
do livro do marido, The Hawk in the Rain (HUGHES, 1957) [O Falcão na Chuva] (p.
149). Eles não eram apenas marido e esposa, mas também “colaboradores estéticos”,
segundo Clark (2020, p. 18). Plath tomara a iniciativa de enviar o manuscrito de Ted
para a editora Faber and Faber, na Inglaterra, após o livro vencer prêmio “New York
City Poetry Center/Harper’s” [Prêmio Nova Iorque de Poesia / Prêmio Harper], que lhe
trouxe notoriedade pela primeira vez: Hughes não sabia da iniciativa da esposa
(CLARK, 2020, p. 419).
12
Before bed each night, she knelt by the window and threw all her force and love toward Ted’s
bed in Yorkshire. I can’t believe anybody ever loved like this; nobody will again. The ritual made her feel
more connected to her husband: my whole life, being, breathing, thinking, sleeping, and eating, has
somehow [...] become indissolubly welded to you. Em tradução livre.
20
Após o fim da bolsa de Plath, nos EUA, o casal começou a lecionar para
sobreviver, Plath não se adaptou e achava a atividade de dar aulas cansativa
(STEVENSON, 1992, p. 163). Em 1958, Plath procurou um emprego que lhe
enervasse menos e lhe possibilitasse mais tempo para escrever: “encontrou um quase
imediatamente”, na ala psiquiátrica do “Massachusetts General Hospital”, em que
acumularia funções datilografando fichas dos pacientes e “trabalhando ao mesmo
tempo como secretária” (op. cit, 188).
Segundo Clark (2020) “o pagamento era baixo e as horas de serviço eram
maiores do que ela desejava”13 (p. 465), mas Plath não teria mais que levar trabalho
para casa. Era o hospital onde fora internada depois de sua tentativa de suicídio em
1953 (op. cit., p. 465). Imediatamente após abandonar o emprego, Plath utilizaria sua
experiência datilografando “registros na clínica psiquiátrica” (op. cit. p. 465),
atendendo telefonemas e executando todo tipo de trabalho administrativo. Nos seus
contos “Johnny Panic and the Bible of Dreams” (1958) e “The Daughters of Blossom
Street” (1959) essas lembranças seriam resgatadas (ROLLYSON, 2015, p. 227).
Em 1960, o casal Plath-Hughes volta para Londres/Inglaterra, e em 01 de abril
daquele ano, nascia Frieda Rebecca Hughes, a primeira dos filhos do casal e que
sanaria parte das dúvidas da mãe em relação à maternidade (ROLLYSON, 2015, p.
244). Em outubro daquele mesmo ano, The Colossus é publicado contendo os
poemas assombrados pelo “espírito” de Otto Plath e é aclamado (op. cit, p. 223).
Quase dois anos depois, nascia o primeiro filho, em 17 de janeiro de 1962, Nicholas
Hughes Plath.
13
[...] the pay was low and the hours longer than she wanted. Em tradução livre.
21
Logo após a expulsão de Hughes, Plath deixa Court Green e parte para umas
“férias” na Irlanda. Dali, entediada, decide se instalar em Londres e encontrou “a casa
dos seus sonhos: situada na Fitzroy Road, no. 23, em Primrose Hill” onde o poeta
Yeats havia morado (ROLLYSON, 2015, p. 292). No frio rigoroso britânico, gripada,
sozinha com duas crianças, Plath sentiu falta do conforto de casa, tendo que “arrastar
baldes de carvão e de cinzas” para se aquecer (op. cit, p. 296).
Durante a instalação no novo apartamento, Plath chamara “o clima de “nojento”,
também “um bom termo para descrever sua sensação poderosa de repulsa e tristeza”
(ROLLYSON, 2015, p. 304). A autora de “Lady Lazarus”, organizava o apartamento
novo com aparentemente euforia, mas sua mãe do outro lado do oceano “desconfiava
de que toda essa atividade frenética simplesmente disfarçava a depressão da filha”
22
(op. cit, p. 299). Enquanto falava com um advogado, pensando em um divórcio formal,
“as noites eram tão terríveis que Sylvia recorria a comprimidos para dormir, que a
levavam a algum lugar profundo, dizia” (op. cit, p. 278).
Durante a ressaca pós-separação, sozinha em um apartamento gelado com
duas crianças, Plath escreveu a maioria dos poemas que lhe trariam notoriedade após
a morte: “viveu um surto de inspiração e produziu duas dúzias de seus poemas mais
potentes. Os críticos ficaram maravilhados por sua intensidade e sua arte, mas não
fizeram justiça a seu humor mordaz” (ROLLYSON, 2015, p. 290). Em janeiro de 1963,
The Bell Jar [A Redoma de Vidro] é publicada na Inglaterra por meio de um
pseudônimo e recebe críticas mistas. No mês seguinte, “o confiável Dr. Horder”, que
tratava de Plath no Reino Unido, “concluiu que os remédios não estavam funcionando
e tomou providências para hospitalizá-la”, com sua crise de depressão se agravando,
Plath recorre a uma amiga “a escritora Jillian Becker, indagando se podia visitá-la com
as crianças” (op. cit, p. 310).
Sob vigilância de Jillian, Plath pega as crianças e se hospeda na casa da amiga.
Segundo Rollyson (2015), durante sua última semana de vida, Plath em sua crise
nervosa delirava durante a noite, relembrando em voz alta as suas questões com a
mãe, seu falecido pai e o ex-marido: “a morte do pai e a traição de Ted com Assia” (p.
311). Dormia à base de antidepressivos, mas durante o dia parecia melhor,
impressionando seus anfitriões com sua fome (op. cit, p. 311).
No sábado saiu “mas não contou aos Becker aonde foi e não os acordou ao
chegar em casa”, alegando ter se encontrado, talvez sem o saber, pela última vez com
Ted (op. cit, p. 311). No domingo, anunciou que voltaria para casa com as crianças e
não conseguiu ser dissuadida pelos amigos: Gerry, o marido de Jillian, deixou Plath
no apartamento da Fitzroy Road, no trajeto “ela começou a chorar”, o fazendo tentar
“insistentemente fazê-la desistir e voltar”, mas sem sucesso (op. cit., p. 313).
Já no apartamento, “próximo à meia noite” Plath desce até o apartamento de
seu vizinho idoso, Trevor Thomas com a desculpa de que precisava de selos
emprestados e pergunta “a que horas Trevor sairia para trabalhar no dia seguinte” –
ele estranha o comportamento e a pergunta de Plath e se oferece para chamar o
médico dela, o Dr. Horder – mas ela recusou a ajuda, falando que estava tendo “o
sonho mais maravilhoso do mundo” (ROLLYSON, 2015, p. 313). Anne Stevenson
(1992) levanta a hipótese de que Plath não queria morrer, mas sim se sentir tão
23
A coletânea Johnny Panic and the Bible of Dreams and Other Prose Writings
[Johnny Panic e a Bíblia dos Sonhos e Outros Textos em Prosa] é editada e publicada
em 1977, de forma póstuma por seu ex-companheiro. Ted foi responsável por alterar
e mutilar a obra de Plath: Hughes queimou o último dos diários da ex-companheira,
mexeu na ordem dos poemas nas coletâneas de poesia e omitiu alguns “porque eles
magoariam pessoas vivas, outros por serem mais fracos do que os que acrescentara
ao arranjo original de Plath” (ROLLYSON, 2015, p. 361) e editou os diários
sobreviventes, cortando “as referências à sua falta de educação e as críticas a Aurelia
Plath (op. cit, p. 340, grifo do autor).
3 O INSÓLITO: DO FANTÁSTICO AO INQUIETANTE E ABJETO – “THE
HORROR IS THE SUDDEN FOLDING UP AND AWAY OF THE PHENOMENAL
WORLD”14
14
In: PLATH, Sylvia. The Unabridged Journals of Sylvia Plath, 1950-1962. New York:
Anchor Books, 2000, p. 263. “O horror é um repentino dobrar-se e distanciar-se do mundo fenomenal”,
em tradução livre.
24
impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar” (p. 15), um
acontecimento sobrenatural. Em quem o percebe, persiste a dúvida: “ou se trata de
uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem
sendo o que são” ou o contrário, tal acontecimento realmente aconteceu e “é parte
integrante da realidade, e então esta realidade está regida por leis que
desconhecemos” (op. cit, p. 15). A esse fenômeno da “incerteza”, o autor dá o nome
de “vacilação”: “O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece
mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural”
(TODOROV, 1981, p. 16).
Segundo o pensamento todoroviano “tanto a incredulidade total como a fé
absoluta nos levariam fora do fantástico: o que lhe dá vida é a vacilação” (TODOROV,
1981, p. 18). Mas a quem pertence essa “vacilação”? Pode ser o personagem,
segundo o ponto de vista do autor “é ele quem, ao longo da intriga”, da trama, do
enredo, “terá que optar entre duas interpretações” [a sobrenatural ou a cética, a real
ou a imaginária] (op. cit., p. 18). No entanto, o efeito do texto fantástico depende
principalmente da vacilação do leitor – “a primeira condição do fantástico” – porque
mesmo que o personagem da história esteja vacilando, o efeito se perde se o leitor
souber quais são os “dois sentidos” (TODOROV, 1981, p. 19). Desse modo, “o
fantástico implica, pois, uma integração do leitor com o mundo dos personagens” e
pode ser definido “pela percepção ambígua que o próprio leitor tem dos
acontecimentos relatados” (op. cit., p.19). A função do leitor, e não “o leitor real”, está
"implícita" no texto, assim como “a função do narrador” (op. cit., p. 19).
Por essa perspectiva do fantástico todoroviano, não necessariamente a
vacilação estará “representada” dentro da obra, ainda que na maioria dos textos
fantásticos esteja: há exceções em que os personagens creem “fielmente” na vida do
real ou do sobrenatural (TODOROV, 1981, p.19). Segundo o autor, não ocorre nesses
casos, o processo cunhado por ele como “identificação”, vez que a integração entre
leitor/personagem já mencionada aqui é “uma condição facultativa do fantástico” (op.
cit., p. 19).
A definição do fantástico de Todorov, desse modo, perpassa o cumprimento de
três condições: a primeira, na qual há a necessidade do texto de obrigar o leitor “a
considerar o mundo dos personagens como um mundo de pessoas reais” e
consequentemente “a vacilar entre uma explicação natural e uma explicação
25
E por outro lado, também remete ao “aspecto semântico”, visto que trata de um
“tema representado”, é a percepção (Todorov, 1981 p. 20). E a terceira condição “tem
um caráter mais geral” e vai além da divisão em três aspectos por se tratar “de uma
eleição entre vários modos (e níveis) de leitura” (op. cit., p. 20).
Além dessas três condições, o fantástico todoroviano não se caracteriza
necessariamente pelo elemento sobrenatural, por este ser muito amplo (TODOROV,
1981, p. 20); e nem pela mera existência de “uma sensação de medo nos
personagens” (op. cit., p. 20) – o medo se relaciona comumente ao fantástico, mas
não é uma das suas condições. Além disso, “não é possível definir o fantástico como
oposto à reprodução fiel da realidade, ao naturalismo” (op. cit., p. 20). Desse modo,
segundo Todorov (1981), o que caracteriza o fantástico é a “vacilação” – seja entre o
real e o ilusório – posto que há dúvidas “não de que os acontecimentos tivessem
acontecido, mas sim de que nossa maneira de compreendê-los tivesse sido exata”
(op. cit., p. 21); seja entre o real e o imaginário – em que “perguntamo-nos se o que
se acredita perceber não é, de fato, produto da imaginação” (TODOROV, 1981, p. 21).
persiste o efeito emocional, sem que quem lê o texto literário seja instigado a uma
investigação (vez que tal efeito seria perdido) (FREUD, 1919, p. 192). Tal incerteza,
inicia-se na construção da atmosfera do texto, “não nos permitindo saber, claro que
deliberadamente, se está nos levando ao mundo real ou a um mundo fantástico
qualquer” (op, cit., p. 194).
Ao final, “o leitor” pode ser “informado dos pressupostos da ação, que até então
lhe foram ocultados”, gerando nele um sentimento de “total perplexidade” e não de
“esclarecimento” do inquietante (FREUD, 1919, p. 196). Exemplos do inquietante na
ficção e na vida real são citados por Freud (1919), como objetos ou seres inanimados
que podem adquirir vida, são exemplos de situações inquietantes, pela “suspeita de
que processos automáticos – mecânicos – podem se esconder por trás da imagem
habitual que temos do ser vivo” (p. 192). Nesses casos, o inquietante pode vir também
da semelhança de algo “inanimado com o vivo”, como a fobia que muitos mantêm em
relação a bonecas, que o autor relaciona a “um desejo infantil ou tão somente uma
crença infantil” (FREUD, 1919, p. 194-196).
Há também o resgate do “tema do duplo” (grifo do autor): segundo a teoria de
Rank, mencionada por Freud (1919), “o duplo foi originalmente uma garantia contra o
desaparecimento do Eu”, um desafio contra a finitude da vida perante a morte: a alma
com sua imortalidade “foi provavelmente o primeiro duplo do corpo” (p. 197). Nesse
sentido, Freud (1919) observa que o duplo nasce em um estágio que ele nomeia como
“narcisismo primário”, mas ultrapassa tal fase (p. 197). Na fase posterior ao narcisismo
inicial – “a ideia do duplo” – existe a possibilidade do Eu “adquirir novo teor dos
estágios de desenvolvimento posteriores da libido”:
Outro exemplo do inquietante trazido por Freud (1919), que também se encaixa
na questão de um sentimento reprimido inconscientemente que retorna, assim como
o duplo e a fobia de objetos inanimados ganharem vida, é o temor do “mau-olhado”:
quem possui “algo valioso” e teme receber a inveja dos outros, na verdade, receia “a
inveja que sentiria no caso inverso” (p. 200). Dentro da teoria freudiana, esses
exemplos se relacionam ao termo cunhado como “onipotência do pensamento” e a
fase do “animismo” no desenvolvimento humano: o segundo se caracteriza pela
29
Segundo a teoria freudiana “nosso inconsciente não tem lugar para a ideia da
própria mortalidade” e por isso “o primitivo medo dos mortos”, ou do “retorno dos
mortos”, ainda está “tão forte dentro de nós”, levando a “manifestar-se quando há
alguma solicitação'' (FREUD, 1919, p. 202). Dentro do espectro dessa fobia, está
também “tudo o que se relaciona com a morte, com cadáveres”, como uma “casa mal-
assombrada”:
casos muito menos numerosos”, nesse caso “ele se enquadra plenamente em nossa
tentativa de solução, que sempre remonta a algo reprimido, há muito tempo
conhecido” (FREUD, 1919, p. 206).
Aquilo que superamos, permanece no nosso inconsciente: “as velhas”
convicções ainda subsistem dentro de nós, à espreita de confirmação” (FREUD, 1919,
p. 206). Mas “quando acontece algo em nossa vida que parece trazer alguma
confirmação às velhas convicções abandonadas” enquanto “não nos sentimos
inteiramente seguros” das novas, “temos a sensação do inquietante” (op. cit., p. 206).
Por outro lado, “o contraste entre reprimido e superado” não se aplica da mesma forma
“o inquietante da literatura” da mesma forma, porque os universos ficcionais têm
“como premissa de sua validade, o fato de seu conteúdo não estar sujeito à prova da
realidade” (op. cit., p. 207).
Desse modo, a ambientação do texto ficcional está ligada à liberdade do fazer
literário:
Entre as muitas liberdades do criador literário está a de escolher a seu bel-
prazer o mundo que apresenta, de modo que este coincida com a realidade
que nos é familiar ou dela se distancie de alguma forma. O fantástico ou
sobrenatural não podem ter influência inquietante dentro do texto literário,
porque para que surja o sentimento inquietante é necessário [...] um conflito
de julgamento sobre a possibilidade de aquilo superado e não mais digno de
fé ser mesmo real, o que não existe em alguns textos de ficção, como as
fábulas. Sendo assim, no reino da ficção deixa de ser inquietante muita coisa
que o seria se ocorresse na vida, se o escritor conseguir manter os
pressupostos dessa realidade poética. (FREUD, 1919, p. 207-8, grifos do
autor)
Para evitar esse efeito indesejado, o autor pode usar “um meio” para escapar
ao “protesto” do leitor e “melhorar as condições para atingir seu propósito”:
Consiste em não nos deixar perceber, durante muito tempo, que premissas
escolheu para o mundo por ele suposto, ou em retardar até o fim, com astúcia
e engenho, tal esclarecimento decisivo. No geral, porém, cumpre-se aí o que
enunciamos: a ficção cria possibilidades de sensação inquietante, que não se
acham na vida. (FREUD, 1919, p. 208)
15
[...] a definable object. Em tradução livre.
16
[...] within the fragile texture of a desire for meaning [...] ceaselessly and infinitely. Em tradução
livre.
17
[...] excluded [...] where meaning colapses. Em tradução livre.
18
[...] a certain ego that merged with its master, a superego. Em tradução livre.
33
19
[...] banishment [...} master [...] a discharge, a convulsion, a crying out. Em tradução livre.
20
[...] massive and sudden […] uncanniness […] radically separate […] a something that I do
not recognize as a thing. Em tradução livre.
21
[...] food loathing is perhaps the most elementary and most archaic form of abjection. Em
tradução livre.
22
from the mother and father who proffer it. Em tradução livre.
23
the same motion. Em tradução livre.
24
[...] symbolic system [...] to become integrated in order to answer to it, it reacts [...] It abjects.
Em tradução livre.
25
[...] irremediably come a cropper, is cesspool, and death. Em tradução livre.
26
[...] as fragile and fallacious chance. Em tradução livre.
27
[...] signified death. Em tradução livre.
34
humano “como um ser vivo” 28 (KRISTEVA, 1982, p. 03). Esses dejetos são expelidos
para que o sujeito possa continuar a viver até que “nada mais reste” no corpo e “caia
além do limite – cadere, cadáver”29 (op. cit., p. 03).
O “eu” se torna o cadáver, que não repele, mas é repelido: “a borda se tornou
um objeto”30 (op. cit., p. 03-4). Como o sujeito pode “ser” sem fronteiras, sem limite?
O sujeito torna-se “abjetado” em seu próprio mundo, e “privado do mundo”31; o “eu”
perde a consciência (op. cit., p. 04). Essa "perda de consciência" do eu, é “a quebra
do mundo que eliminou as bordas” 32, na perspectiva de Kristeva (1982, p. 04).
Pela perspectiva de Kristeva (1982), a abjeção não é causada meramente pela
“falta de limpeza ou de saúde”, mas sim aquilo que perturba “a identidade, o sistema,
a ordem” e não respeita “fronteiras, posições, regras” e o que está no limiar: “o limiar,
a ambíguo, o composto”33 (p. 04). Por outro lado, segundo a autora, aquele que
apenas nega a “moralidade” não é abjeto, porque pode existir “grandeza na
amoralidade”34 (op. cit., p. 04).
Enquanto, pelo contrário, a abjeção é “imoral, sinistra, calculista, obscura”35,
um terror que “dissimula” (KRISTEVA, 1982, p. 04). Logo, sobre o abjeto em si, a
autora observa que ele “simultaneamente procura e pulveriza” o sujeito e encontra
sua maior força quando o sujeito, cansado de suas tentativas infrutíferas de se
identificar com “algo do lado de fora”36 e descobre o “impossível” dentro de si mesmo
e percebe que não é o outro o “abjeto” (op. cit., p. 05).
Nesse sentido, o abjeto do eu seria a forma culminante dessa experiência, na
qual todos os objetos do sujeito são meramente baseados em “the inaugural loss”
[perda inaugural] que funda seu próprio ser (KRISTEVA, 1982, p. 05). Logo, a abjeção
de si mesma, mostra que toda abjeção é o reconhecimento de que o desejo em
qualquer ser é fundado. Por essa perspectiva, a psicanálise retém o produto nomeado
como o objeto de desejo, o qual é mais ou menos fetichizado (op. cit., p. 05). No
28
[...] refuse and corpses [...] as a living being. Em tradução livre.
29
[...] nothing remains [...] falls beyond the limit–cadere, cadáver. Em tradução livre.
30
[...] the border has become an object. Em tradução livre.
31
[...] abjected [...] deprived of world. Em tradução livre.
32
[...] the breaking down of a world that has erased its borders. Em tradução livre.
33
[...] lack of cleanliness or health. […] identity, system, order […] borders, positions, rules […]
the in-between, the ambiguous, the composite. Em tradução livre.
34
[...] morality [...] grandeur in amorality. Em tradução livre.
35
[...] immoral, sinister, scheming, and shady. Em tradução livre.
36
[...] simultaneously beseeches and pulverizes [...] something on the outside. Em tradução
livre.
35
37
[...]turning away from perverse dodges, presents himself with his own body and ego as the
most precious non-objects. Em tradução livre.
38
[...] the shadow of a memory. Em tradução livre.
39
[...] a child who has swallowed up his parents too soon. Em tradução livre.
40
[…] constitutes his own territory, edged by the abject. Em tradução livre.
41
Fear cements his compound, conjoined to another world, thrown up, driven out, forfeited. Em
tradução livre.
42
[...] sooner has it cropped up than it shades off like a miragem. Em tradução livre.
43
[...] all words of the language with nonexistence. Em tradução livre.
44
[…] only if it ceaselessly confront that otherness […] a deep well of memory that is
unapproachable and intimate. Em tradução livre.
36
45
The theory of the unconscious, as is well known, presupposes a repression of contents
(affects and presentations) that, thereby, do not have access to consciousness but effect within the
subject modifications, either of speech (parapraxes, etc.), or of the body (symptoms), or both
(hallucinations, etc.). As correlative to the notion of repression, Freud put forward that of denial as a
means of figuring out neurosis, that of rejection (repudiation) as a means of situating psychosis. Em
tradução livre.
46
[...] denial's bearing on the object whereas repudiation affects desire itself. Em tradução livre.
47
[...] those articulations of negativity germane to the unconscious. Em tradução livre.
48
{...] not radically enough to allow for a secure differentiation [...] clearly enough for a defensive
position to be established. Em traduções livres.
49
[...] strays instead of getting his bearings, desiring, belonging, or refusing. Em tradução livre.
50
[...] that jouissance alone causes the abject to exist as such. Em tradução livre
51
[...] so many victims of the abject are its fascinated victims. Em tradução livre.
37
52
[...] of judgment and affect, of condemnation and yearning, of signs and drives [...] in the
immemorial violence with which a body becomes separated from another body in order to be [...] in
which the outline of the signified thing vanishes and where only the imponderable affect is carried out.
Em tradução livre.
53
[…] laws, connections, and even structures of meaning. Em tradução livre.
54
I experience abjection only if an Other has settled in place and stead of what will be "me." Not
at all an other with whom I identify and incorporate, but an Other who precedes and possesses me,
and_through such possession causes me to be. A possession previous to my advent: a being-there of
the symbolic that a father might or might not embody. Significance is indeed inherent in the human body.
Em tradução livre.
38
humano”55 (op. cit., p. 11). Nesse estágio, o inconsciente ainda não existe e é
elaborado “quando representações e afetos (amarrados ou não a representações)
moldam uma lógica"56, pois não estamos mais na esfera do inconsciente, mas no limite
da repressão primordial (op. cit., p. 11).
Nesse caso, o abjeto é um esboço de um “um sinal para um não-objeto”, nos
limites da “repressão primária”, podemos compreender que ele se aproxima por um
lado do “sintoma somático” e pelo outro da “sublimação no outro” (KRISTEVA, 1982,
p. 11). De um lado, o sintoma é uma linguagem que desiste, é “uma estrutura dentro
do corpo, um aliem não assimilável, um monstro, um tumor, um câncer” e não é
escutado pelos “mecanismos de escuta do inconsciente”57 (KRISTEVA, 1982, p. 11).
De outro, pelo contrário, a sublimação nada mais é do que “a possibilidade de nomear
o prenominal, o pré-objeto”, que na verdade é apenas “trans nominal, um trans
objeto”58 (op. cit., p. 11).
Por essa perspectiva, o abjeto é cercado pelo sublime, este não “no mesmo
momento da jornada”, mas é “o mesmo sujeito e fala os trazendo à existência”
(KRISTEVA, 1982, p. 11). O sublime, desse modo, não tem objeto como o abjeto,
porque o objeto do sublime se dissolve nas rupturas de “uma memória sem fundo”
(op. cit., p. 12). Então o sublime desencadeia, como sempre o fez, um jato de
“percepções de palavras” que expande a memória sem limites e o sublime é “um algo
adicionado” que expande o sujeito (op. cit., p. 12). Kristeva (1982) observa que o
abjeto pode aparecer como uma sublimação mais frágil e mais arcaica, de “um objeto
ainda inseparável” de um impulso: o abjeto é o pseudo objeto que se constitui antes,
mas que aparece apenas antes nas brechas da “repressão secundária” (p. 12).
Logo, o abjeto será o objeto da repressão original, este sendo “uma habilidade
de falar sobre o ser, sempre já prescrutado pelo Outro, para dividir, rejeitar, repetir”59
(KRISTEVA, 1982, p. 12). O abjeto confronta de um lado, naqueles estados frágeis
55
[...] on an enigmatic foundation that has already been marked off [...] and in more imaginary
fashion in the shape of abjection, notifies us of the limits of the human universe. Em tradução livre.
56
[...] when representations and affects (whether or not tied to representations) shape a logic.
Em tradução livre.
57
[...] a structure within the body, a nonassimilable alien, a monster, a tumor, a câncer. [...] the
listening devices of the unconscious. Em tradução livre.
58
[...] the possibility of naming the prenominal, the pre-objectal [...] trans-nominal, a trans-
objectal. Em tradução livre.
59
[...] the ability of the speaking being, always already haunted by the Other, to divide, reject,
repeat. Em tradução livre.
39
onde o homem “vagueia nos territórios do animal” e, por outro, dentro da nossa
“arqueologia pessoal”, nas nossas tentativas de se separar da entidade maternal (op.
cit., p. 12-13). Num sentido mais ampliado, “diacronia subjetiva” é uma pré-condição
do narcisismo, coexistindo e se fragilizando de forma permanente (op. cit., p. 13).
Dentro desse domínio, entra o conceito de Freud sobre a repressão ordinária:
na qual o que reprime “não pode manter-se pressionado” e onde o que reprime sempre
“empresta sua força e autoridade” do que aparentemente é muito secundário, a
linguagem (KRISTEVA, 1982, p. 13). Nesse sentido, a autora fala da instabilidade da
função simbólica da linguagem, na qual o aspecto da “proibição colocada no corpo
maternal” é o mais significativo, onde se constitui “um espaço estranho”, um khóra
(op. cit., p. 13). Em benefício do “Ego”, ou em detrimento do mesmo, o impulso serve
para relacionar o ainda “não-ego” com um “objeto” para constituir ambos, esse
movimento, em sua dicotomia (“dentro/fora, ego/não ego”), visa colocar o ego “um
centro no sistema solar dos objetos” (op. cit., p. 14).
No entanto, o signo reprime o khóra e seu “eterno retorno”, apenas com o
desejo como testemunha dessa pulsação primária, o qual, por sua vez, expatria o Ego
para outro sujeito e enxerga “a exatidão do Ego apenas como narcisista” (KRISTEVA,
1982, p. 14). O narcisismo aparece nesta teoria como “uma regressão para aposição
retardatária” do outro, “um retorno ao refúgio autocontemplativo, conservador e
autossuficiente”, (op. cit., p. 14). Nesse sentido, Julia Kristeva (1982) vê o abjeto como
uma espécie de “crise narcisista”, uma testemunha do “aspecto efêmero do estado”,
conhecido como narcisismo com “ciúme reprovador” (op. cit., p. 14). E em retorno, o
abjeto dá ao narcisismo sua classificação como “aparência” (op. cit., p. 14).
Por essa perspectiva, é na crise narcisista que a visão do abjeto é trazida à
tona: quando o superego interrompe o desejo que iria em direção ao outro ou o outro
“como seu papel demanda, não o preenche”, fazendo o desejo e seus significantes
“voltar ao mesmo”, perturbando “as águas de Narciso” (KRISTEVA, 1982, p. 14-15).
Nesse momento, há uma transferência para a repressão secundária, com sua
carga de “significados simbólicos”, os recursos da repressão primitiva, o abjeto. Nesse
sentido, é o luto por um objeto já perdido para sempre: ele quebra “a parede da
repressão” e seus julgamentos, traz o Ego de volta a sua fonte nos limites abomináveis
“do qual, para existir, o Ego se quebra”, atribui a ele "uma fonte do não-ego, trajeto e
morte” (op. cit., p. 15). Portanto, o abjeto é uma ressurreição “que passou pela morte”
40
do Ego, em uma alquimia que transforma com um novo significado de “morte que leva
ao começo da vida” (op. cit., p. 15).
Por sua vez, o abjeto está ligado à “perversão”, correlacionado ao superego: o
abjeto é perverso porque não abre mão ou assume “uma proibição, uma regra ou uma
lei”, mas as distorce e as corrompe (KRISTEVA, 1982, p. 15). Logo, a corrupção é
considerada nessa teoria como “a aparência socializada do abjeto” (op. cit., p. 16). A
aderência à moral e à lei é necessária porque o perverso se encontra no “inter espaço
do abjeto”, no meio, no limiar, no interdito, e a literatura parece ser escrita “fora dos
aspectos insustentáveis do perverso ou das posições do superego” (op. cit., p. 16).
Então, segundo Kristeva (1982), o escritor fascinado pelo abjeto, imaginando sua
lógica “se projeta nele, introjeta-o e, como consequência, perverte a linguagem”, o
estilo e o conteúdo (p. 16).
Porém, por outro lado, como sentido do abjeto, a literatura funciona como “juiz
e comparsa” do abjeto, o que também se aplica à literatura que o confronta
(KRISTEVA, 1982, p. 16). Essa escrita, para um sujeito “firmemente estabelecido” em
seu superego, necessariamente se encontra no intermediário, no inter espaço que
caracteriza a perversão e, por sua vez, provoca o abjeto (op. cit., p. 16). E esses
escritos apelam para “uma suavização do superego” e quem os escreve, implica “na
habilidade para imaginar o abjeto”, uma capacidade de se ver em seu lugar e colocá-
lo de lado “apenas por meio de deslocamento de jogo verbal” (op. cit., p. 16). Somente
após a “morte”, o escritor conseguirá escapar do abjeto, purificando o leitor do abjeto,
através da literatura (op. cit., p. 16).
Por outro lado, o abjeto está conectado ao sagrado porque acompanha “todas
as estruturas religiosas” e ela aparece para ser elaborada de uma nova maneira “no
momento do seu colapso” (KRISTEVA, 1982, p. 17). Segundo Kristeva (1982),
podemos distinguir diversas estruturas da abjeção, cada uma determinando “uma
forma específica do sagrado”: o abjeto tem o seu aspecto de exclusão, que coincide
com “o sagrado, vez que o constitui” (p. 17). O abjeto persiste como tabu em regiões
monoteístas, porém derivando para formas mais secundárias, como a transgressão
da lei e encontrando o pecado cristão ao final, ao se integrar “como uma ameaça à
alteridade, mas sempre nomeável, sempre totalizante” (op. cit., p. 17).
Então, a purificação, em seus vários meios, compõe a história das religiões e
termina com a “catarse par excellence” chamada arte, distante e próxima da religião
41
ao mesmo tempo (op. cit., p. 17). Fora do sagrado, o abjeto encontrou ressonâncias
mais arcaicas “que são culturalmente anteriores ao pecado” nas sociedades
primitivas. Em um mundo em que o Outro entrou em colapso, “a tarefa estética”
consiste em retraçar “os limites frágeis da fala” sendo mais próximo da sua aurora
para “a primazia inferior constituída pela repressão primária” (KRISTEVA, 1982, p. 17,
grifo da autora).
A familiaridade da mulher para com o urso que mata seu marido é o ponto
auge do estranhamento na narrativa; ela anseia por ele, por vencer a aposta,
e, como que respondendo a seu chamado, o animal volta juntamente a todo
o ressentimento recalcado por Sadie. Não vemos a percepção que a mulher
tem do marido, mas sabemos o quão frágil e dependente ele a imagina; aquilo
que parece não abalar Sadie, por fim, retorna para então matá-lo.
(PETERSEN, 2015, p. 160)
60
[...] her desire to gain access to the patients’notes [...] in the act of memorising Dreams [...] to
the electroshock room and undergoes electro-convulsive treatment. Em tradução livre.
45
61
[...] shares with the patients a route into their unconscious, where the point of entry is the
dream. Em tradução livre.
62
[...] a sprawling, spiralling narrative that is an endless shadow dance of displacement and
deferral. Em tradução livre.
63
[...] a polluted, primordial body of water, described as Lake Nightmare or Bog of madness into
which people’s minds run at night. Em tradução livre.
46
64
[...] where the soon-to-beabjected maternal authority holds sway over the child’s oral desires
and anal expulsions. This semiotic, which is reanimated in Sally’s dream lake, ensures, in Julia
Kristeva’s terminology, a revival of archaic pre-oedipal modes of operation. According to Kristeva, before
a child enters the linguistic realm of the Symbolic, s/he exists in a pre-Oedipal psychic space, what she
terms the semiotic chora, which is a nonexpressive totality formed by the drives and their stases in a
motility that is as full as it is regulated. Em tradução livre.
47
65
[...] when the child has yet to succumb to the injunctions that will be imposed upon it once the
paternal word and law-of-the-father. Em tradução livre.
48
Nós sabemos que houve um tempo antes dos decretos sociais; antes dos
guardiães autocráticos do mundo do pai julgando que a figura da mãe deve
ser abjetada se o apropriado e limpo eu tiver que existir. E Sally tem a
habilidade de examinar as profundezas quase insondáveis de sua
inconsciência e sonhar-se de volta ao tempo pré-verbal, que é então
acessado através do sonho lúcido da imaginação66. (WELBY, 2012, p. 135,
grifos da autora)
66
[...] we learn that there was a time before societal edicts; before the autocratic keepers of the
paternal world deemed that the maternal figure must be abjected if the clean and proper self is to be.
And Sally has the ability to plumb the almost unfathomable depths of her unconscious and dream herself
back to a pre-verbal time, which is then accessed through the dream-life of the imagination. Em tradução
livre.
67
Sally imagines a dream in which he is incarcerated in a Gothic monastery cellar surrounded
by an endless vista of skulls and bones augmented to infinity by a series of mirrors. Em tradução livre.
49
68
[...] as a spectacular, fiery, powerful alternative to the father-of-the-law [...] his jumbled, hazy
non-linear Word [...] the Symbolic order, in Sally’s interpretation of the world. Em tradução livre.
50
imaginação como fazedora da alteridade e, assim, definida pela loucura”69 (op. cit., p.
137).
Dentro desse “o universo fictício de Plath de poder e terror” pode ser ouvido um
“lamento queixoso de luto múltiplo” causado pela perda da “metáfora materna” e pela
“irremediável impossibilidade de reescrever a narrativa da figura materna abjetada”
(WELBY, 2012, p. 137). E luto também pela perda de “uma força feminina nutriente e
criativa” que só pode ser recuperada no “sonho lúcido da imaginação”. Na ficção de
Plath, o maternal feminino é “sinônimo da representação medicada da histeria” (op.
cit., p. 137).
Castillejos (2002) analisa a questão do espaço nos textos de Sylvia Plath em
“Johnny Panic and the Bible of Dreams”, inicialmente dividindo a produção da autora
entre as primeiras histórias escritas por Plath como “descrições mais realistas” e os
escritos posteriores como “o cenário que rodeia as personagens aparece desenhado
com pinceladas descritivas e de forma mais abstrata e simbólica”70, com uma ênfase
na descrição psicológica e nas relações interpessoais das personagens (p. 81).
“Johnny Panic and the Bible of Dreams” e “The Daughters of Blossom Street” se
encontram no segundo grupo, segundo a autora. Nesses contos “há apenas detalhes
do marco de referência onde transcorrem a ação”. No primeiro conto, que dá nome à
coletânea, o leitor apenas fica sabendo que a história se passa numa clínica “onde a
protagonista se dedica a tomar nota dos sonhos dos pacientes para sua análise
posterior” (CASTILLEJOS, 2002, p. 82).
De forma semelhante, no segundo conto, “The Daughters of Blossom Street”,
o cenário é um hospital, onde começam a aparecer “lampejos de realismo imaginário
que não havíamos visto antes” e os cenários são descritos explicitamente “em
consonância com os acontecimentos” como se estivessem se adaptando a eles para
destacá-los (CASTILLEJOS, 2002, p. 83). Nesse sentido, Castillejos (2002) observa
que as flores que a personagem Emily Russo recebe das suas colegas de trabalho,
“já em seu leito de morte”, parecem se mesclar com sua identidade e estar à beira de
um colapso, assim como a própria personagem (p. 83). Dentro dessa dinâmica
espacial, a morte de Emily está associada à “ausência de luz” (op. cit., p. 83).
69
[...] who characterise the free life of the imagination as markers of alterity and thus defined by
madness. Em tradução livre.
70
[...] el escenario que rodea a los personajes aparece dibujado con brochazos descriptivos y
de forma más abstracta y simbólica. Em tradução livre.
51
71
La luna es cómplice y se esconde para garantizar la ausencia de luz en el momento en que
el oso mata al protagonista del relato. Em tradução livre.
53
representa, na ficção de Plath, “o que o sujeito podia ter sido e nunca foi”, a parte do
eu que foi aniquilada (CASTILLEJOS, 2002, p. 90). Segundo Axelrod (1990 apud
CASTILLEJOS, 2002, p. 90), a sombra indica o “o eu imaginativo” que poderia ter sido,
mas “foi proibido de ser”, que foi destruído e evoca “a dolorosa meia-vida” que vive “à
beira da aniquilação”.
Essa questão do inquietante, dentro da análise de Castillejos (2002), relaciona-
se com a questão do ambiente, como em “The Fifty-Ninth Bear”, “as montanhas e
outros acidentes terrestres” são imóveis e o narrador plathiano sente “necessidade de
mudança” (p. 92). Logo, “o desejo de Plath de fundir-se com o meio que a rodeia”
demonstra “a impossibilidade de tal fusão”, pois o elemento natural “se mostra hostil”
e ignora suas súplicas. Sendo assim, podemos interpretar como a resposta que “o
meio natural” dá ao ser humano por seu “abuso sistemático”: “a natureza” responde à
atitude do homem moderno, às vezes, “com indiferença e outras com aberta
hostilidade” (CASTILLEJOS, 2002, p. 92-93).
Figura 5 – Plath e a Fusão do Eu com a Natureza: Sylvia em seu quintal em Wellesley, entre 1954 e
1955
inquietante de Freud (1919) que é considerada pela autora como “uma característica
muito definidora de toda a escritura de Sylvia Plath” (CASTILLEJOS, 2002, p. 95).
4.1 ENTRE O MUNDO DOS MORTOS E O DOS VIVOS: “AS FILHAS DE BLOSSOM
STREET”
Além disso, ambos os contos são narrados em primeira pessoa, por uma jovem
secretária que trabalha naquele departamento.
Apesar das “coincidências” de enredo com a vida da escritora, analisamos
estes dois textos sob a categoria do insólito, da seguinte forma: “Johnny Panic”
apresenta elementos do insólito de forma mais evidente, com uma narrativa que pode
72
Os títulos da primeira edição em inglês são: “The Daughters of Blossom Street” [PLATH,
1959] e “Johnny Panic and The Bible of Dreams” [PLATH, 1958], publicados post-mortem no livro
Johnny Panic and the Bible of Dreams and Other Prose Writings, em 1977, editado por Ted Hughes.
No entanto, utilizamos a edição brasileira, em português, de 2020, conforme se vê em “Referências”.
73
In: PLATH, Sylvia. The Unabridged Journals of Sylvia Plath. New York: Anchor Books,
2000, p. 256. “Eu me sinto como Lázaro [...] ao morrer, renasço”, em tradução livre.
56
ser classificada como onírica; “As Filhas” pode ser considerado um exemplar da prosa
mais realista de Plath, em que o insólito pode ser enxergado nas "entrelinhas", no que
está aparentemente oculto.
Wagner-Martin (2003) classifica esses dois textos, e mais um punhado de
textos e poemas – a exemplo de “Tulips” (In: Ariel. PLATH, 1965); “All the Dead Dears”
(In: The Colossus and Other Poems. PLATH, 1960) – como Hospital Writing. Entre
dois partos, internações para tratar sua depressão, uma cirurgia, a reabilitação após
a primeira tentativa de suicídio e um emprego como secretária, “Plath usou suas
experiências no hospital nos seus escritos como uma fonte de conhecimento
interessante: um meio para sair de sua voz e vida míopes de garota de faculdade” 74
(WAGNER-MARTIN, 2003, p. 54).
Dentro dessa espécie de “universo compartilhado” apontado por Wagner-
Martin, ou um universo semelhante, está inscrito “As Filhas”. O conto foi originalmente
escrito em 1959, posteriormente ao conto “Johnny Panic” (1958). Ambos, remontam
às experiências de Plath trabalhando como secretária no Massachusetts General
Hospital, onde anteriormente havia se tratado após a sua primeira tentativa de
suicídio, (WAGNER-MARTIN, 2003, p. 54). Em “As Filhas”, a rotina regrada de um
time de secretárias é desestabilizada por dois eventos “inquietantes”: 1- a
aproximação de um furacão que obriga todos a mudarem seus planos costumeiros,
no trabalho e em suas vidas; 2- o estado de doença terminal de uma colega, Emily
Russo.
Logo no início do conto, mais precisamente na sentença de abertura do mesmo,
o ambiente hospitalar é caracterizado pela narradora, com certa burocracia: “Eis que
não preciso ouvir um alerta de furacão na previsão meteorológica das sete da manhã
para saber que hoje vai ser um dia ruim” (PLATH, 2020, p. 93). Aparentemente, os
“dias ruins” acontecem com certa regularidade na rotina da narradora,
independentemente da agitação meteorológica que se aproxima: ela encontra, como
em todos os dias de trabalho, “uma pilha de prontuários de pacientes” a estão
esperando “do lado de fora da porta, tão pontual quanto o jornal da manhã”, “uma
pilha pequena, e nossos dias são cheios”, (op. cit., p. 93).
74
Plath used her hospital experiences in her writing as a source of interesting knowledge, a
means of getting out of her myopic college-girl voice and life. Em tradução livre.
57
75
[...] indicating the impure [...] a vital element. Em tradução livre.
58
essa burocracia: “sinto que Lillian Ulmer, que Deus a tenha, me fez começar o dia com
o pé esquerdo (PLATH, 2020, p. 94). O efeito inquietante, e sua relação com a morte,
também pode provir da associação com números, geralmente associado com a
repetição (FREUD, 1919, p. 199).
Em “As Filhas” o inquietante não provém da repetição, mas da aleatoriedade
desses números, que não se apresentam em uma ordem burocrática, palpável,
conforme se vê em: “o número nove-um-sete-zero-seis” da ficha de Lillian e os
números que são trocados de sua ordem certa, burocrática por Billy, mas [ele] não fez
por mal (PLATH, 2020, p. 94, grifos da autora).
No clímax do conto, pouco antes da notícia da morte do personagem Billy, em
sua prancheta, “Dotty coloca um nove vermelho sobre um dez preto” (PLATH, 2020,
p. 113). Aqui podemos observar que, unido ao inquietante dos números em ordem
aleatórias, as cores vermelho e preto também contribuem neste efeito simbólico e
inquietante. O vermelho que pode ser associado ao sangue abjeto de Kristeva (1982,
p. 96) e o preto, cor tão associada nas sociedades ocidentais com o luto e a morte.
Essa sobreposição de cores e números fomenta um efeito de incerteza, do
inquietante, a quebra da ordem burocrática, visto que o número nove e a cor vermelha
não desaparecem se sobrepostos ao número dez e a cor vermelha: o nove vermelho
é algo que deveria estar “oculto, mas apareceu” (FREUD, 1919, p. 191).
Em “As Filhas”, nesse sentido, podemos observar a relação entre a burocracia
do ambiente hospitalar e as forças que desestabilizam a ordem burocrática,
desestabilização essa que ocorre por diferentes eventos e em diferentes níveis. O
primeiro, é o nível mais relacionado ao mundo externo e às questões de ordem prática,
como a questão do furacão que se aproxima e muda toda rotina do hospital: os
funcionários que precisam garantir a integridade dos pacientes e estão presos dentro
daquele ambiente, que se reorganiza para abrigar essas pessoas que vão precisar
passar a noite ali durante a tormenta.
Uma das secretárias demonstra preocupação com a mãe: “eu não sei o que
fazer com minha mãe sozinha em casa” (PLATH, 2020, p. 110); outra se pergunta o
que vai acontecer com seu carro, pois “até uma brisa da praia molha aquele motor, o
carro não sai mais do lugar” (op. cit., p. 97), a transmissão de eletricidade é
interrompida. É o nível prático, no qual a narradora afirma não se sentir afetada. Outro
acontecimento que provoca mudanças no nível prático e interrompe a burocracia é a
59
76
[...] the most sickening of wastes […] that has encroached upon everything. Em tradução livre.
61
[...] um pouco de tudo [...] uma dúzia de rosas, ou talvez um pequeno buquê
de escovinha e mosquitinho com uma fita prateada [...] Rosa-chá, cravo,
aquele sei-lá-o-quê-íolo [...] um pouco desse aí, de várias cores. Vermelho,
laranja, amarelo, você sabe. E um pouco daquela flor-de-lis. (PLATH, 2020,
p. 105)
A Srta. Emily está afundada nos travesseiros, com os olhos abertos ocupando
quase o rosto inteiro e o cabelo espalhado como um leque cinza sobre o
travesseiro que lhe cerca a cabeça. Há toda sorte de frascos sobre a mesa
de cabeceira, debaixo da cama e nas prateleiras ao redor da cama. Tubos
finos de borracha saem de alguns frascos, e um deles desaparece debaixo
da cama enquanto outro sobe até entrar na narina esquerda da Srta. Emily.
(PLATH, 2020, p. 106)
A falta de ordem da Sra. Emily, “com os olhos abertos ocupando quase o rosto inteiro
e o cabelo espalhado” (PLATH, 2020, p. 106) se funde ao ambiente do quarto de
hospital e as colegas precisam afastar essa desordem para entrar com as flores. Elas
trazem “o enorme e multicolorido vaso cheio de flores de estufa” para “a mesa de
cabeceira” da senhorita Emily, mas “a mesa é tão pequena que antes, para abrir
espaço, ela tem que transferir todos os frascos e copos e jarras e colheres para a
prateleira de baixo” (op. cit., p. 106). Essas flores, o familiar que retorna, estão
relacionadas ao prenúncio e à tomada de consciência de Emily Russo em relação a
própria morte:
Os olhos da Srta. Emily flutuam até o monte de flores. Alguma coisa neles
fulgura. Sinto que estou observando duas velas no final de um longo corredor,
dois pontinhos flamejantes que se apagam e se reavivam num vento sombrio.
Do lado de fora da janela, o céu está mais preto que uma frigideira de ferro
fundido. (PLATH, 2020, p. 106)
Por outro lado, voltando à questão dos níveis de abalo/ruptura da ordem, outro
nível que podemos enxergar é o nível de mudanças internas nas personagens, de
abalos no psicológico destas: o furacão e a doença terminal de Emily também
provocam abalos nesse nível, a começar pelo primeiro: as garotas do time de
secretárias se sentem intimidadas pelas mudanças climáticas e atmosféricas
provocadas pela aproximação do furacão, “mas não estou gostando nada desse céu”
(PLATH, 2020, p. 97), externa uma delas, e esse sentimento influencia a
caracterização do ambiente pela narradora:
63
Eu também não estou gostando do céu. A sala foi ficando cada vez mais
escura desde que chegamos, até o ponto em que ficamos todas sentadas
numa espécie de penumbra, com a fumaça subindo dos nossos cigarros e
estendendo seu véu no ar já tão denso. Por um minuto ninguém diz nada.
Parece que Cora expressou em palavras o medo secreto de todas nós. (op.
cit., p. 97)
pele horrível” e Cora, que é a portadora de tal terrível notícia, a comunica “com uma
voz tão chorosa que parece até que está falando do irmãozinho mais novo ou algo
assim” (op. cit., p. 114).
A morte, a memória, na perspectiva da narradora, “lança uma espécie de
auréola sobre ele”, morte essa que atinge ares heroicos e míticos: “Parecia até que
ele tinha morrido por todas nós, sentadas ali naquelas macas”, diz a narradora e outra
secretária afirma que “Ele não teria morrido [...] se não estivesse ajudando os outros”
(PLATH, 2020, p. 114). Uma das secretárias retira os dizeres maldosos que “disse
sobre ele outro dia”, enquanto “Só Dotty fica em silêncio” (op. cit., p. 114). Voltando
ao terreno do simbólico, também sua relação com o ambiente, a morte na obra
plathiana normalmente é associada com a ausência de luz e, em algumas exceções,
com a existência dela, segundo Castillejos (2002). A luz em sua totalidade é um
elemento familiar – um dia de sol, a luz diurna – mas a luz noturna, a parca iluminação
é inquietante: o familiar que retorna como não familiar.
Nesse sentido, podemos observar que “quando Cora vem voando pelo
corredor” para dar a notícia às colegas, as meninas estavam “tentando jogar paciência
à luz de uma lanterna de bolso que alguém arranjou” (op. cit., p. 113). E parcamente
iluminada “no círculo branco e luminoso projetado pela lanterna”, com os olhos “bem
abertos e um pouco úmidos”, Cora transmite a notícia:
— Ele estava subindo e descendo as escadas sem parar — Cora diz, com
uma voz tão chorosa que parece até que está falando do irmãozinho mais
novo ou algo assim. — Subindo e descendo, subindo e descendo com os
prontuários, e sem luz, e ele estava com tanta pressa que descia dois, três
degraus de uma vez. E ele caiu. Ele caiu um lance inteiro. (PLATH, 2020, p.
114).
77
[...] heterogeneous, animal, metamorphosed. Em tradução livre.
78
[...] infection, disease. Em tradução livre.
79
[...] the ego threatened by the non-ego, society threatened by its outside. Em tradução livre.
66
— Só sei que ele quase matou a Ida Kline de medo na semana passada, no
setor de Datilografia, porque ficou contando umas histórias sobre uma mulher
que chegou à Dermatologia toda roxa, inchada igual a um elefante e de
cadeira de rodas por conta de alguma doença tropical. A Ida não conseguiu
comer nada no almoço porque não parava de pensar naquilo. Tem um nome
para isso, para essas pessoas que ficam rodeando cadáveres e tudo mais.
67
Neco… necrófilos. Eles vão ficando cada vez piores e começam a desenterrar
os corpos do cemitério. (PLATH, 2020, p. 109, grifo da autora)
O pai de Sylvia Plath, Otto Plath, teve a perna amputada e morreu de uma embolia
devido a essa amputação, o que deixou uma impressão na filha, segundo Stevenson
(1992, p. 278). Freud (1919) argumenta que a fobia de perder os olhos ou outros
órgãos “é frequentemente um substituto para o medo da castração”, em que “ um
sentimento bastante forte e obscuro dirige-se precisamente contra a ameaça de
perder o membro sexual e de que apenas esse sentimento confere ressonância à ideia
da perda de outros órgãos” (p. 195). No entanto, o efeito inquietante da imagem, em
“As Filhas”, não provém apenas da amputação em si. Além do homem de muletas
com “uma perna da calça vazia” (PLATH, 2020, p. 111), há a presença de um rapaz
com “uma perna artificial e meio torso artificial” (op. cit., p. 112). Sendo assim,
percebemos a amputação e o prolongamento do humano com o artificial como sinais
do inquietante que anuncia e convive com a morte abjeta.
Segundo a teoria freudiana, “é extremamente inquietante quando coisas,
imagens, bonecas inanimadas adquirem vida” (FREUD, 1919, p. 205), especialmente
se máquinas ou objetos possuem a aparência à semelhança do ser humano. Portanto,
a imagem do homem com as próteses é inquietante porque ela está no limiar, entre a
imagem dos autômatos que adquirem vida e pensamento próprio (o inanimado na
forma do humano) e do ser humano “castrado”: o homem-máquina completado e, no
inconsciente, dominado pela máquina.
Voltando ao inquietante relacionado à morte em “As Filhas”, a tão falada
“Blossom Street” ou a “Rua das Flores”, em uma tradução do título, é uma espécie de
metonímia à morte, compartilhada entre os funcionários do hospital, um lugar “onde
eles colocam toda essa gente morta”:
— Numa sala que dá na Blossom Street, aquela rua, eu te mostro onde fica.
Os médicos nunca dizem que alguém morreu com essas palavras, sabe, para
não fazer os pacientes pensarem coisas ruins. Eles dizem: Quantos dos seus
69
Como Freud (1919) observa, tudo aquilo “deveria permanecer secreto, oculto,
mas apareceu” é inquietante: ainda que tentem esconder dos pacientes o real
significado da expressão, a narradora e os outros funcionários do hospital, sabem o
que ir para Blossom Street significa e são “inquietados” por isso, algo que não deveria
aparecer, mas aparece. A própria Emily Russo, personagem chave no conto, apesar
da tentativa de esconderem seu estado terminal, ela acaba “intuindo” a sua morte
iminente: “— Ela sabe — Dotty me diz quando nos afastamos da cama da Srta. Emily.
— Agora ela sabe” (PLATH, 2020, p. 107). A morte em “As Filhas” é inquietante
também porque está relacionada ao “desaparecimento do Eu” em termos de Freud
(1919).
Nesse sentido, após a morte, viramos apenas um número cancelado em uma
planilha: “Lillian Ulmer está Morta, e o número nove-um sete-zero-seis, para sempre
cancelado dos arquivos ativos da Sala do Arquivo” (PLATH, 2020, p. 94). Quando
Minnie Dapkins “começa a entregar formulários de encaminhamento impressos em
cor-de-rosa e amarelo” – novamente o cor-de-rosa como elemento familiar que retorna
inquietante como elemento não-familiar – ela se esquece que um médico faleceu:
Plath possui, em sua obra, símbolos recorrentes e referências que podem ser
relacionados a essa movimentação do entrecruzado entre mundos – do limiar – tal
como a figura de Lázaro em “Lady Lazarus”, o ressuscitado pertence ao mundo dos
71
mortos e ao mundo dos vivos: “Volte em dia cheio / Ao mesmo lugar, o mesmo rosto,
o mesmo bruto / Grito divertido: / Um milagre!”80 (“Lady Lazarus”. In: Ariel. PLATH,
1965, p. 62). Segundo Rollyson (2015), outra fonte de referências para Sylvia Plath foi
a mitologia, vez que a escritora se identificava com a Deusa egípcia Ísis e, em
companhia de Ted Hughes, seu marido, “como o Osíris perdido” (p. 146). Segundo
Santos (2003), Ísis e Osíris na mitologia do antigo Egito são os deuses que reinam
“num Outro Mundo, o mundo dos mortos" (p. 15).
Ambos, nesta mitologia, estão entre o limiar dos mundos: Osíris reinava no
Mundo dos Vivos, mas “a inveja de seu irmão Seth” provocou seu assassinato e a
destruição da ordem, “mas a persistência de sua esposa Ísis fez com que ele voltasse
à vida e fosse reinar” sobre os mortos (SANTOS, 2003, p.15). O casal se torna
responsável pelo “Julgamento dos Mortos”, momento em que o coração do morto era
pesado e se fosse leve o bastante, seu dono passaria para a vida eterna no mundo
de Osíris (op. cit., p. 62).
Na mitologia greco-romana, podemos associar à Ísis e ao Osíris às figuras de
Hades e Perséfone, um outro casal de soberanos no mundo dos mortos: Hades raptou
Perséfone de sua mãe – Deméter – e Zeus tenta trazê-la de volta, mas “quando
Perséfone retorna, descobre-se que ela ingeriu sementes de romã enquanto estava
80
Comeback in broad day / To the same place, the same face, the same brute / Amused shout:
/ A miracle! Em tradução livre.
72
em Hades” e desde então, “Perséfone deve passar um terço do ano em Hades e voltar
para sua mãe na primavera”, e esse mito da deusa está associado com as estações
do ano (MESQUITA, 2017, p. 01-2). Perséfone também vive no limiar dos dois
mundos.
Dessa forma, podemos interpretar o livro de prontuários em “As Filhas”, em um
caráter simbólico, como a espécie de um “Livro dos Mortos”, vez que para aqueles
que morreram e seguiram seu caminho pela “Blossom Street” têm seu número
cancelado numa contabilidade sinistra: “Lillian Ulmer está Morta e o número nove-um-
sete-zero-seis, para sempre cancelado dos arquivos ativos da Sala do Arquivo”
(PLATH, 2020, p. 94). O livro é representação física da ordem burocrática existente
no hospital, a qual todos os funcionários estão submetidos, mas que desmorona
naquela noite insólita. Próximo ao clímax do conto, com a morte de Billy, o homem-
lagarto, o “Livro dos Mortos” é destruído, aparentemente por uma paciente, “a velha
Sra. Tomolillo” (op. cit., p. 111).
Segundo a narradora, uma paciente, “a Sra. Tomolillo” apareceu “raivosa e
molhada feito uma bruxa”, vestida “com o vestido de lã preta que usava o ano inteiro,
chacoalhando uma pilha de papéis encharcados” (PLATH, 2020, p. 111). A senhora
parece estar com seu comportamento alterado, fora do seu temperamento normal,
“possuída”, “contorcendo os dedos de forma perturbadora”:
Eis que a pilha de papéis encharcados era o livro com os prontuários médicos
da própria Sra. Tomolillo, algo que paciente nenhum tem o direito de acessar
em nenhuma circunstância. O livro está um desastre, e as anotações feitas
com tinta vermelha, azul e verde dos inúmeros médicos dos inúmeros setores
que a Sra. Tomolillo frequenta se fundiram num louco arco-íris que desprende
pingos coloridos de água e tinta quando o tiro de suas mãos. (PLATH, 2020,
p. 111)
81
É importante lembrar que não necessariamente, locais assombrados na literatura são apenas
residências, em The Shining (KING, 1977), por exemplo, há um hotel mal-assombrado.
74
Figura 9: Wuthering Heights Hoje, desenho feito por Sylvia Plath, em 1956
Eu também não estou gostando do céu. A sala foi ficando cada vez mais
escura desde que chegamos, até o ponto em que ficamos todas sentadas
numa espécie de penumbra, com a fumaça subindo dos nossos cigarros e
estendendo seu véu no ar já tão denso. Por um minuto ninguém diz nada.
Parece que Cora expressou em palavras o medo secreto de todas nós.
(PLATH, 2020, p.97)
A Sra. Rafferty troca um olhar rápido com Minnie Dapkins. Minnie esfrega
suas mãos pálidas que parecem de papel uma na outra e lambe os lábios do
jeito que ela sempre faz, como se fosse uma coelha. Do lado de fora das
janelas abertas surge um ventinho repentino, e a julgar pelo barulho está
começando a chover, mas é mais provável que seja só o barulho dos papéis
que começaram a voar pela rua lá embaixo. (PLATH, 2020, p. 100)
“a situação foi de mal a pior depois que a Sra. Rafferty chegou, quando estávamos
todas de cabeça baixa, fumando ou descascando o esmalte das unhas” (PLATH,
2020, p. 101). Com o clima, a chuva que se inicia e o vento.
No entanto, a narradora preserva a incerteza necessária ao inquietante, ao dar
outra explicação ao barulho lá fora. Outro evento relacionado à fusão do eu com o
ambiente e a hostilidade da natureza na “casa mal-assombrada” é a "possessão" da
Sra. Tomolillo: “Como estava chovendo cobras e lagartos, e o vento era capaz de
destruir a cidade, nenhum paciente veio ao consultório a tarde toda. A não ser, é claro,
a velha Sra. Tomolillo” (op. cit., p. 111). E a aparição da paciente, num clima tão hostil,
é associada pela narradora com bruxaria: “a Sra. Tomolillo me apareceu, raivosa e
molhada feito uma bruxa” (op. cit., p. 111).
Enquanto a secretária-narradora tenta contornar a situação, procedendo com a
destruição do prontuário, a hostilidade da tempestade se torna latente e é associada
novamente a uma figura do sobrenatural, desta vez um gigante: “Atrás de mim a janela
estremece inteira, como se lá fora algum gigante de vento tentasse entrar à força para
ver a luz. A chuva começou a golpear o vidro com a violência de tiros de pistola”
(PLATH, 2020, p. 112). Logo, a natureza hostil, na perspectiva da narradora, funde-
se na “bruxa” que invadiu a ala psiquiátrica: “Ela para na soleira da porta, negra e
agourenta como uma das moiras, atingida pela tempestade que ela mesma criou” (op.
cit., p. 112).
Porém, da mesma forma que há associações que parecem explícitas a
aspectos sobrenaturais, permanece também o sentimento de dúvida. Como quando
uma paciente jura que foi atendida por um médico que já faleceu: “— Uma paciente
disse que foi atendida pelo dr. Crawford — ela responde friamente. — Minnie não
tolera que desrespeitem os mortos” (PLATH, 2020, p. 96). Mesmo que a personagem
inicialmente não duvide que a situação não passe apenas de uma brincadeira, um
trote, o leitor vacila ao se perguntar se não houve um retorno dos mortos para atender
os pacientes.
A Sra. Rafferty, personagem importante nessa passagem e responsável por
teoricamente manter a ordem entre as secretárias, ocupa um espaço no meio da
hierarquia do hospital, no entre-limiar da estrutura profissional daquele ambiente. As
secretárias estão na hierarquia, estão entre a Administração e os Médicos, “suas
manias estranhas, suas caligrafias ilegíveis” e a “infantil incapacidade de anexar as
78
receitas e prontuários na página correta dos livros de registros dos pacientes” (PLATH,
2020, p. 98) da Sra. Rafferty são elementos inquietantes dentro da própria ordem:
Na verdade, a Sra. Rafferty é nosso escudo. O escudo que fica entre nós e
as hierarquias da Administração, e também o escudo que nos separa dos
Médicos, sempre com suas manias estranhas, suas caligrafias ilegíveis (“Já
vi letra melhor até na pré-escola”, a Sra. Rafferty teria dito certa vez, segundo
as más-línguas), sua infantil incapacidade de anexar as receitas e prontuários
na página correta dos livros de registros dos pacientes, e daí por diante.
(PLATH, 2020, p. 98)
Os olhos da srta. Emily flutuam até o monte de flores. Alguma coisa neles
fulgura. Sinto que estou observando duas velas no final de um longo corredor,
dois pontinhos flamejantes que se apagam e se reavivam num vento sombrio.
Do lado de fora da janela, o céu está mais preto que uma frigideira de ferro
fundido. (PLATH, 2020, p. 106)
O edifício das clínicas, apesar de ser muito grande, com sua fundação sólida
de concreto e a construção de tijolo e pedra, parece profundamente abalado
quando eu e Dotty atravessamos o corredor do primeiro andar e a passagem
que leva ao refeitório da ala principal para comer alguma coisa quente no
jantar. Conseguimos ouvir as sirenes, altas e fracas, que percorrem e rodeiam
a cidade — caminhões de bombeiros, ambulâncias, viaturas de polícia. O
estacionamento da Ala de Emergência está lotado de ambulâncias e carros
particulares que não param de chegar das cidades vizinhas — pessoas tendo
ataque cardíaco, pessoas com insuficiência pulmonar, pessoas com histeria
galopante. (PLATH, 2020, p. 112)
80
Mary Ellen e Dotty estão sentadas de pernas cruzadas em uma das macas
do anexo do terceiro andar, tentando jogar paciência à luz de uma lanterna
de bolso que alguém arranjou, quando Cora vem voando pelo corredor até
nos alcançar sentadas das macas. (...) No círculo branco e luminoso
projetado pela lanterna, os olhos de Cora estão bem abertos e um pouco
úmidos. — Mas então — Mary Ellen se inclina em sua direção — você não
soube de nada ruim? Você está branca feito papel, Cora. (PLATH, 2020, p.
113-4)
81
Junto à parca luz, o branco está relacionado a esse mal agouro e a possível
interpretação sobrenatural dos eventos da história: “No círculo branco e luminoso
projetado pela lanterna” e “Você está branca feito papel, Cora” (PLATH, 2020, p. 114).
As secretárias estão sentadas sobre as macas, invertendo a ordem burocrática: quem
deveria ocupar as macas são os pacientes, os polos estão invertidos. Cora, o arauto
das más notícias, não consegue falar com sua mãe, pois “o telefone ficou mudo, não
consegui completar a ligação” (op. cit., p. 114). A impossibilidade de comunicação
exterior, a mudez da linha telefónica pode tanto ser interpretado como um
acontecimento natural devido ao mau tempo, quanto como algo sobrenatural: é
recorrente em histórias de casas mal-assombradas, acontecimentos sobrenaturais
desse naipe. Essa incerteza, junto ao inquietante da pouca luminosidade, está
presente na morte do rapaz:
— Ele estava subindo e descendo as escadas sem parar — Cora diz, com
uma voz tão chorosa que parece até que está falando do irmãozinho mais
novo ou algo assim. — Subindo e descendo, subindo e descendo com os
prontuários, e sem luz, e ele estava com tanta pressa que descia dois, três
degraus de uma vez. E ele caiu. Ele caiu um lance inteiro.
— Cadê ele? — Dotty pergunta, baixando devagar as cartas da mão.
— Onde ele está agora?
— Onde ele está? — A voz de Cora subiu uma oitava. — Ele está é morto,
isso sim. (PLATH, 2020, p. 114)
preencher seu sentido” no mundo ficcional (LOPES, 2010, p. 12). A visão de Eco do
texto, é deste “como um mecanismo preguiçoso” que necessita da “atualização
cooperante do leitor para funcionar”: os textos precisam que o leitor/destinatário
forneça “certa competência para compreender o que comunica”, (op. cit., p. 12). Se o
leitor não possui o necessário para “decodificar determinada mensagem” as
interpretações produzidas são “aberrantes” (op. cit., p. 12).
Nesse sentido, Lopes (2010) apresenta o conceito de Eco chamado “o
processo de cooperação interpretativa”, em que o filósofo insere “as figuras de autor-
modelo e do leitor-modelo”, que por sua vez são “estratégias interpretativas que
surgem como polaridades internas à obra” (p. 12): uma interpretação de forma bem
sucedida ocorre entre essas duas estratégias discursivas, não entre dois sujeitos. Na
perspectiva de Eco, o leitor-modelo “não se detém a preencher os vazios do texto”,
indo mais além “o atualiza, analisando-o nas condições históricas em que foi criado e
o trazendo para o presente” (FERNANDES, 1999, p. 251 apud LOPES, 2010, p. 12).
Na realização desta atualização “é necessário que se leve em conta o autor-modelo”
que passa a surgir “como uma estratégia textual de leitura na tentativa de lidar com
as intenções virtualmente contidas no enunciado” (LOPES, 2010, p. 12). E há a
interação dos elementos chamados de “intenção de leitura” construindo a “ideia de
autor-modelo”: a construção/configuração do autor modelo depende de elementos
textuais (op. cit., p. 12-13).
As exigências do leitor-modelo são correspondentes ao leitor-empírico: “ele
consegue interpretar o texto de forma bem-sucedida, caso contrário, produz usos,
exercícios imaginativos que conduzem a semiose para além do universo do discurso”
(LOPES, 2010, p. 13). Para interpretar um texto devemos “devemos considerar que
ele fala de algo de determinada maneira e não de qualquer coisa de acordo com a
vontade do leitor”: no ato de “detectar/investigar o que o texto diz é preciso seguir
indícios que sejam verificáveis” (op. cit., p. 13). Logo, “o interesse do leitor não deve
se sobrepor ao que a obra permite inferir” e por isso Eco traça uma diferenciação entre
“uso e interpretação” funcionando “como uma maneira de separar o pensamento que
tem por fim compreender o texto gerando uma crença sobre ele e o que age de forma
fortuita, como deboche sem um fim em vista” (op. cit., p. 14).
Logo, com essas postulações, podemos considerar “As Filhas de Blossom
Street” como um exemplo da Obra aberta de Eco, visto que há espaços que precisam
84
Originalmente, minha maior satisfação era que eu não teria que arranjar um
emprego neste verão e poderia sentar e escrever e aprender estenografia,
uma habilidade prática que eu não poderia pagar para aprender na escola e
que minha mãe poderia me ensinar no meu próprio quintal [...] que eu poderia
ter junto à datilografia e, assim, nunca ter que investir minha sagacidade na
procura de emprego depois da faculdade, ou após a pós-graduação. Eu quero
aprender estenografia e datilografia [...] meu poder de barganha será bem
melhor.82 (PLATH, 2000, p. 658)
82
Originally, my biggest satisfaction was that I would not have to get a job this summer and
could sit down and write and learn shorthand, a practical skill that I could not afford to go to school to
take, and that mother could teach me in my own backyard [...] that I could keep up along with typing and
thus never be at wit's end for a job. When I apply for jobs after college, or after graduate school, I will
want to know typing and shorthand [...] my bargaining power will be much better. Em tradução livre.
86
Por conta própria, no entanto, e sem que ninguém tome conhecimento, tenho
me dedicado a uma vocação que deixaria esses médicos de cabelo em pé.
Na privacidade do meu apartamento de um cômodo, me considero secretária
de ninguém menos que o próprio Johnny Panic. (PLATH, 2020, p. 20)
Johnny Panic aparece numa auréola de lâmpadas a arco lá no teto” (op. cit., p. 39).
Na maior parte do enredo, Johnny Panic é uma presença que paira na história, mas
que não aparece diretamente:
Talvez um rato comece muito cedo a pensar que o mundo é governado por
esses pés enormes. Bem, daqui do meu lugar, concluí que o mundo é
governado por uma coisa e uma coisa só. O pânico com cara-de-cão, cara-
de-diabo, cara-de-bruxa, cara-de-puta, o pânico com letras maiúsculas que
nem cara tem — é sempre o mesmo Johnny Panic, seja acordado ou
adormecido. (PLATH, 2020, p. 19)
O mundo é governado pelo pânico, por uma força que paira ao redor do mundo,
o medo, e ele tem uma “face”: Johnny Panic. A narradora, que inicialmente aparenta
sanidade – uma agente da ordem, uma funcionária padrão do hospital – na verdade é
uma agente “dupla”, alguém oprimido pelo medo, mentalmente, e trabalha como serva
de Johnny Panic. O “reino” de Panic é o mundo onírico, dos sonhos inconscientes das
pessoas, os quais a narradora-secretária pretende estudar e se especializar neles:
“De sonho em sonho, estou estudando para me tornar aquela rara figura, mais rara,
na verdade, que qualquer membro do Instituto de Psicanálise: uma especialista em
sonhos” (PLATH, 2020, p. 20).
O trabalho de Johnny Panic e seus seguidores “loucos” é visto por quem está
narrando como superior ao da medicina tradicional: a “Psicanálise”, ela nega ser
“controladora-de-sonhos, ou uma relatora-de-sonhos”, e nem mesmo “uma
oportunista de sonhos numa busca mesquinha por saúde e satisfação” (PLATH, 2020,
p. 20), nem empregada desse tipo de médico. Ela é apenas “uma incorrupta
colecionadora de sonhos pelo que os sonhos são” e “uma amante dos sonhos em
nome de Johnny Panic, o Criador de todos eles” (op. cit., p. 20). “Colecionar” sonhos
é um ato de preservar o inconsciente, os sonhos, e se tornar são é apagá-los. Panic
é visto como uma divindade dentro do conto, o que podemos associar ao pensamento
de Stevenson (1992), que enxerga a imagética hospitalar de Plath relacionada à
questão religiosa (p. 269).
A narradora-secretária realiza sua “verdadeira vocação” oculta, à noite.
Segundo Castillejos (2002), a ausência de luz está ligada à morte na obra de Plath (p.
86). No entanto, neste em “Johnny Panic”, o escuro é um cúmplice da narradora, ao
permitir que suas atividades escusas como funcionária de Panic permaneçam
escondidas: “Certas noites entro no elevador e vou até a cobertura do prédio onde
88
moro. Certas noites, por volta das três da manhã” (PLATH, 2020, p. 20). Segundo
Corral (2014), o número três dentro da simbologia cristã “é considerado divino,
representando as três pessoas da Santíssima Trindade” (p. 149). No entanto, a
inversão acontece e o número pode ser associado ao sobrenatural, ao diabólico, como
em contos de fadas: “Os três cabelos de Ouro do Diabo” (GRIMM; GRIMM, 1812), por
exemplo.
Segundo Kosloski (2017), o horário das três horas da manhã é conhecido
popularmente como “a hora do diabo”: enquanto Cristo morreu às três da tarde, o
demônio se apropriou do horário proporcional, o meio da noite, “para si o horário das
três da madrugada, em zombaria direta de Deus” 83. Voltando aos contos infantis,
segundo Mesquita (2012), o número três aparece associado também ao medo, como
no conto de fadas resgatado pelos irmãos Grimm “João sem Medo” (GRIMM; GRIMM,
1812):
deparamo-nos com um jovem que afirma não ter medo de nada, daí que a
proposta recebida lhe pareça tentadora: se conseguir passar três noites
seguidas dentro do castelo assombrado, receberá a mão de uma bela
princesa. Decide, por isso, tentar a sua sorte. Na primeira noite, três gatos
ferozes tentam assustar o rapaz, mas sem quaisquer resultados. Nas duas
noites seguintes, nem o fantasma, nem o horrível gigante conseguem
amedrontá-lo. (MESQUITA, 2012, p. 08)
83
Vide sítio eletrônico: < https://pt.aleteia.org/2017/10/23/sabe-por-que-3-da-manha-e-a-hora-
do-diabo/>. Acesso em: 18 abr. 2022.
89
Figura 12: Ilustração do ambiente externo em “Johnny Panic and the Bible of Dreams”, na edição alemã
da coletânea (2011)
mundo real]” (op. cit., p. 24). Mesmo o ato de invasão àquele setor, que naturalmente
poderia ser interpretado como um abalo à ordem, acontece “em determinados dias da
semana”, sempre "às terças e quintas pela manhã”, respeitando a ordem burocrática
que permeia a realidade (PLATH, 2020, p. 24).
Enquanto, por outro lado, na descrição dos sonhos, o mundo onírico é
reconhecido pela narradora sem nome, como elementos que agregam identidade, ela
conhece os pacientes pelos seus sonhos: “Tenho o curioso hábito de identificar as
pessoas que vêm aqui pelos sonhos que têm”, que são mais característicos que
nomes, o qual não conhecemos o seu próprio: “os sonhos as tornam mais únicas do
que qualquer nome de batismo” (op. cit., p. 21). Os sonhos dos pacientes, são
ambientes onde os sonhadores são “oprimidos”, como no sonho do homem que
“trabalha para uma indústria de rolamentos na cidade”; toda noite ele “sonha que está
deitado de barriga para cima com um grão de areia sobre o peito. Pouco a pouco esse
grão de areia vai crescendo até ficar do tamanho de uma casa, e ele não consegue
mais respirar” (PLATH, 2020, p. 20).
O grão, elemento simbólico trazido do meio natural, pode representar o caráter
“sinistro”, “inesperado” e “hostil” da natureza, como Castillejos (2002) aponta, na obra
de Plath: a natureza se virando contra o ser humano e o esmagando, como o grão de
areia faz com o homem-sonhador. No campo da simbologia, a carga simbólica da
areia, segundo Chevalier; Gheerbrant (2015) “vem da quantidade de seus grãos” (p.
79). Na mitologia cristã, “o número de grãos de areia e o número de pecados dos
quais nos desfazemos, dos anos de vida que solicitamos” (op. cit., p. 79). A areia, em
grande quantidade, é símbolo de conforto familiar:
repetição: “Soube de outro sujeito que tem o mesmo sonho desde que lhe deram éter
e lhe tiraram as amígdalas e adenoides quando era criança” (PLATH, 2020, p. 21).
Lembremos que Freud (1919) observa que “o fator da repetição não deliberada torna
inquietante o que ordinariamente é inofensivo e impõe-nos à ideia de algo fatal,
inelutável” (p. 199).
Essa fatalidade vinda da repetição, está transcrita no próprio sonho: “No sonho
ele está preso nas lâminas de um moinho de algodão, lutando para sobreviver”
(PLATH, 2020, p. 21). Segundo a narradora, os sonhos relacionados à sobrevivência
são comuns:
Mas, ah, ele não é o único, ao contrário do que pensa. Hoje em dia muitas
pessoas sonham que são esmagadas ou devoradas por máquinas. São
aquelas figuras desconfiadas que não andam de metrô nem de elevador.
Quando volto do meu horário de almoço no refeitório do hospital, muitas
vezes passo por elas, ofegantes, subindo as escadas encardidas para chegar
ao nosso consultório no quarto andar. Às vezes me pergunto que sonhos as
pessoas tinham antes de os rolamentos e os moinhos de algodão serem
inventados. (PLATH, 2020, p. 21)
Parece que todos nós, em nossa evolução individual, passamos por uma fase
correspondente a esse animismo dos primitivos, que em nenhum de nós ela
transcorreu sem deixar vestígios e traços ainda capazes de manifestação, e
que tudo o que hoje nos parece inquietante preenche a condição de tocar
nesses restos de atividade psíquica animista e estimular sua manifestação.
(FREUD, 1919, p. 201, grifo do autor)
Experimente sonhar com isso por muito tempo, que suas mãos e pés
começam a ficar gastos quando você os olha de perto. O sol encolhe e fica
do tamanho de uma laranja, só que mais frio, e você e você descobre que
mora em Roxbury desde a última era glacial. (op. cit., p. 22).
O único lugar para você é um quarto acolchoado como aquele primeiro quarto
que conheceu, onde você pode sonhar e flutuar, flutuar e sonhar, até que
enfim esteja mais uma vez entre aquelas criaturas primevas e não haja mais
motivo para sonhar. (PLATH, 2020, p. 22).
95
Por meio da loucura, que é vista como positiva pela narradora, podemos enxergar a
existência de uma busca por se reconectar com o primitivo, representado pelas
“criaturas primevas”, os dragões.
Nesse sentido, podemos enxergar aqui uma analogia com o suicídio, ao passo
que ao se reconectar com o primitivo, existe a sugestão de interromper o fluxo dos
sonhos, ao nosso ver pela morte: até que “não haja mais motivo para sonhar” (PLATH,
2020, p. 22). O lago dos sonhos, representa o local onde o inconsciente de todas as
pessoas do mundo se encontra em comunhão infinita: “É para esse lago que a mente
das pessoas corre à noite, riacho e calha de uma reserva compartilhada e infinita” (op.
cit., p. 22).
Aquilo que as pessoas reprimem em seu inconsciente é responsável pela
poluição desse lago, “em nada se assemelha às fontes de água potável e pura de um
azul cintilante” de um lago limpo. Na verdade “é a estação de tratamento de esgoto
da história do mundo [...] Agora a água desse lago se tornou fedorenta e fumegante,
é evidente, graças aos sonhos que ficaram abandonados ali, juntando água por tantos
séculos” (op. cit., p. 22).
Logo, podemos perceber que os dejetos que flutuam sobre o lago, são os
desejos reprimidos e esquecidos no inconsciente. A imagem desse lago, que
representa o inconsciente, é construída em oposição aos ambientes do mundo real:
“Em nada se assemelha às fontes de água potável e pura de um azul cintilante que
os subúrbios resguardam com mais avareza do que o diamante Hope, isolado no meio
da floresta com uma cerca de arame farpado” (PLATH, 2020, p. 22). É uma fonte de
água que não se parece com as do “mundo real”, que não está localizada, com um
espaço delimitado por uma cerca em um determinado local: é fluida, vaga,
indiscriminada.
No sonho da narradora, há também outro elemento considerado inquietante na
teoria freudiana: a repetição, ou multiplicação de números (FREUD, 1919). No conto
existe a multiplicidade matemática dos sonhadores no mundo, uma equação:
Se você parar para pensar no espaço que uma noite de acessórios de sonhos
ocupa para uma só pessoa em uma só cidade, e que essa cidade não passa
de um pontinho no mapa do mundo, e começar a multiplicar esse espaço pela
população do mundo, e esse espaço pelo número de noites que se passaram
desde que os macacos começaram a fazer machados de pedra e a perder os
pelos, dá pra ter uma ideia do que eu quero dizer. Não levo jeito para a
matemática: minha cabeça começa a latejar só de pensar no número de
96
Essa cena incomoda tanto a narradora quanto o leitor porque é inquietante e abjeta
pela imobilidade que associamos à morte: a descrição da “cama branca e os pés
descalços de sola amarelada e suja do paciente” que não muda de posição, pode ser
associada inconscientemente à imagem de corpos no necrotério. O elemento do
inquietante perturba a ordem no trabalho da secretária, que precisa repeti-las mais de
99
uma vez num círculo vicioso: “Não é difícil imaginar o quanto isso me distrai do
trabalho” (PLATH, 2020, p. 24) — a fuga da ordem; e em “Muitas vezes preciso reler
várias vezes o que acabei de datilografar, sob o pretexto de fazer uma revisão
cuidadosa, para conseguir memorizar os sonhos que acabei de passar a limpo,
ouvindo a voz do médico no audiógrafo” (op. cit., p. 24).
A "perturbação" que mais incomoda a narradora ocorre no “setor do Sistema
Nervoso”, “a faceta mais desagradável e pouco inspirada do nosso negócio”, na qual
“usamos as salas deles para sessões de terapia durante a tarde, já que só atendem
pela manhã” (PLATH, 2020, p. 24). Logo, a psiquiatria invade os outros para levar à
sanidade, o que é rechaçado pela narradora que enxerga a volta à sanidade como
algo negativo: “mas conviver com aquela gente chorando, ou cantando, ou
tagarelando alto em italiano ou chinês, como sempre acontece, por quatro horas a fio
sem intervalo toda manhã é no mínimo desconcertante” (op. cit., p. 24).
Outro fator que aponta para insanidade progressiva da narradora é o fato de
ela nos dizer que apenas datilografava os sonhos dos pacientes, no início da narrativa.
Porém, ao fim do seu relato, assume que trabalha recriando sonhos que sequer foram
registrados e, enquanto atrasa o seu trabalho “comum”, as atividades da rotina
burocrática, engorda a “bíblia” dos sonhos com facilidade:
O criar, e recriar sonhos, pode ser interpretado como uma associação ao “fazer
literário”, ao ato de imaginar, re-imaginar e escrever histórias. O material para “os
sonhos”, para a produção literária, é encontrado dentro do inconsciente, local do
ambíguo, do escondido. O “veludo vermelho” é a camada consciente que cobre a
camada mais profunda e inconsciente, a imaginação representada pela figura da
“estátua”. Então, a narradora cria sonhos para os pacientes a partir do material que
ela “colhe” no inconsciente dos pacientes. Ela dá um exemplo ao leitor: “Uma tal
mulher chegou à clínica com a língua inchada e tão esticada para fora da boca que
precisou abandonar a festa que estava dando para vinte amigos de sua sogra franco-
100
canadense e foi levada às pressas para nossa Ala de Emergência” (PLATH, 2020, p.
25).
Essa mulher ficou com a língua deformada (o abjeto relacionado à deformação
corporal), porque reprimiu o pensamento de aversão em relação à sua sogra e esse
sentimento retornou de forma inquietante: “Ela pensou que não queria ficar com a
língua para fora da boca, e para dizer a verdade aquela era uma situação muito
constrangedora, mas ela detestava aquela sogra franco-canadense mais que tudo, e
sua língua estava de acordo, embora mais nada na mulher estivesse” (PLATH, 2020,
p. 25). Embora a paciente não tenha reivindicado “sonho nenhum”, a narradora
somente tendo “os simples fatos mencionados acima como ponto de partida”, ela
consegue “detectar a intumescência e a promessa de um sonho” e se dedica “à tarefa
de desenraizar esse sonho de sua confortável posição debaixo da língua da mulher”
(op. cit., p. 25).
Ao “desenraizar” o sonho da mulher, a narradora está liberando o pensamento
inconsciente, o que é feito com muito esforço pela narradora-secretária: “Seja qual for
o sonho que desenterrar com meu esforço, um esforço exaustivo” (PLATH, 2020, p.
25). Esse trabalho é empreendido com “uma espécie de oração” para a figura diabólica
de Johnny Panic e, pela primeira vez, o “chefe” secreto da narradora é definido mais
diretamente:
[...] já sei que vou encontrar uma impressão digital num canto, um detalhe
zombeteiro mais à direita, um sorriso de Gato Risonho incorpóreo que levita,
o que evidencia que tudo isso foi trabalho do gênio de Johnny Panic, e de
ninguém mais. Ele é ardiloso, ele é arguto, ele é rápido como um raio, mas
se revela com mais frequência do que deveria. É que ele não resiste ao
melodrama. Melodrama da espécie mais antiga e mais óbvia. (PLATH, 2020,
p. 25)
Mas isso é inevitável, disse o Gato. Somos todos malucos aqui. Eu sou
maluco. Você é maluca.
Por que diz que sou maluca?, indagou Alice.
Só pode ser, disse o Gato, ou não teria vindo parar aqui. (CARROLL, 2019,
p. 89).
Também me lembro com clareza do cenário do sonho que elaborei para esse
cara: um ambiente gótico no porão de um mosteiro qualquer que se estendia
até onde os olhos podiam ver, numa daquelas perspectivas infinitas entre dois
espelhos, e as colunas e paredes eram feitas apenas de crânios e ossos
humanos, e em cada reentrância havia um cadáver estirado, e era o Salão
do Tempo, com os corpos em primeiro plano ainda mornos, desbotando e
começando a apodrecer a meia distância, e os ossos surgindo na última
fileira, tinindo de tão limpos, com uma espécie de brilho branco futurista. Pelo
que me lembro, cuidei para que o cenário fosse iluminado, por uma questão
de rigor, não por velas, mas pela fluorescência de claridade gélida que faz a
pele parecer verde e todo rubor rosado e vermelho assumir uma cor preta-
arroxeada sem vida. (PLATH, 2020, p. 26)
Até as pessoas que ainda conseguem andar pela rua e continuar trabalhando,
que estão a só meio caminho do lago, são mandadas para o Departamento
Ambulatorial de outro hospital especializado em casos mais severos. Ou
podem passar um mês ou pouco mais na nossa Ala de Observação no
hospital central, que nunca cheguei a conhecer. (PLATH, 2020, p. 27)
ordem da seita do hospital, é enxergada por um viés negativo, esses médicos são
caracterizados como oportunistas:
Enfim, essa tal Srta. Milleravage é uma mulher grande, não gorda, mas
bastante robusta e musculosa, e ainda por cima alta. Ela cobre o corpanzil
com um traje cinza que me lembra vagamente uma espécie de uniforme,
embora o corte do tecido não tenha nada de militar. Sua cara, robusta como
a de um boi, ostenta um número extraordinário de minúsculas manchas,
como se ela tivesse ficado debaixo d’água por um bom tempo e pequenas
algas tivessem se agarrado à sua pele, enxovalhando tudo de tons de
106
O único porém, no que diz respeito ao meu estado emocional, é que o setor
de Amputados fica no final do nosso corredor, na direção oposta ao setor do
Sistema Nervoso, e fui ficando inquieta graças aos muitos alarmes falsos,
situações em que confundi o passo claudicante de alguma perna de pau com
a própria srta. Taylor voltando mais cedo para o consultório. (PLATH, 2020,
p. 30)
expele (KRISTEVA, 1982, p. 03), sentimento de Bilbo que parece ser compartilhado
pela narradora:
Não demorou para Harry deixar de ir ao trabalho por causa do cuspe e dos
cocôs de cachorro que ficavam pela rua. Primeiro essa porcaria gruda no seu
sapato, depois quando você tira o sapato ela gruda na sua mão, e depois
durante o jantar é um pulinho da mão pra boca, aí nem cem Ave-Marias
podem salvar você da contaminação em cadeia. (PLATH, 2020, p. 32)
Inspirada pelo caso de Henry Bilbo, a narradora acalenta “uma nova ideia” que
lhe cutuca “o fundo do cérebro” e é “tão difícil de ignorar quanto aqueles pés descalços
110
que saem de baixo do lençol na sala de punção lombar”: ela decide passar “as noites
no edifício da ala clínica” (PLATH, 2020, p. 33). Enquanto o período diurno é associado
à ordem e à sanidade, o período noturno é o espaço temporal da desordem, da
inconsciência de Johnny Panic. Nossa narradora-intrusa se tranca no banheiro à
espera de que o hospital fique vazio. A Srta. Taylor, guardiã-mor do ambiente, é a
última a sair:
Logo, a narradora se sente segura e deixa o banheiro vendo quando “as luzes
do corredor estão apagadas e o quarto andar está vazio como uma igreja na segunda-
feira” (PLATH, 2020, p. 33). Logo, a narradora invade o setor psiquiátrico e podemos
observar como a parca luz num ambiente escuro – também comparada aos ambientes
lúgubres das igrejas – pode ser associada à atmosfera sobrenatural. No “escuro”, a
influência de Panic invade e se espalha pelo ambiente físico da ordem:
O armário que guarda os livros de registros fica no corredor sem janelas que
dá nos cubículos dos médicos, que têm janelas com vista para o pátio. Eu
verifico se todas as portas dos cubículos estão fechadas. Então acendo a luz
do corredor, uma coisinha amarelenta de vinte e cinco watts que já está
ficando preta na base. Mas nessa situação isso é mais útil do que um altar
cheio de velas. (PLATH, 2020, p. 34)
Por mais rápido que eu corra ao redor da maca branca, a Srta. Milleravage é
tão rápida que parece estar de patins. Ela agarra e acerta. Contra seu grande
corpanzil eu bato o punho, e contra seus imensos seios sem leite, até que
suas mãos nos meus pulsos se tornam argolas de ferro e seu hálito me nina
com um cheiro de amor mais podre que um porão de funerária. (PLATH,
2020, p. 38)
Nesse momento, dos quatro cantos da sala e da porta chegam cinco falsos
sacerdotes com jalecos cirúrgicos brancos e máscaras cujo único objetivo é
destituir Johnny Panic de seu trono. Me fazem ficar de barriga para cima,
estendida na maca. A coroa de arame é colocada sobre a minha cabeça e a
hóstia do esquecimento sobre minha língua. Os sacerdotes mascarados se
colocam a postos e imobilizam: um, na minha perna esquerda, outro à direita,
um meu braço direito, outro o esquerdo. Um atrás da minha cabeça diante da
caixa de metal, onde não consigo ver. (PLATH, 2020, p. 39)
não querem trazer a cura, mas apenas enganar os pacientes, para que eles acreditem
que estão sãos. Porém, no mundo onírico de “Johnny Panic”, a verdadeira sanidade
não existe, ela é apenas um estado ilusório vendido para a população, assim como os
conceitos de “normalidade” e “saúde”. A máquina de eletrochoques é o tratamento
que aniquila os sonhos, o inconsciente, e para que ocorra a libertação final desse
suplício, a narradora-secretária opta pela morte e o suicídio. Pela primeira vez, Panic
aparece diretamente no conto durante o desfecho, mas tal como o Gato Risonho de
Carroll aparecendo aos poucos, sua aparição é incorpórea e indefinida, com a luz
fraca associada a sua condição sobrenatural:
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ATWOOD, Margaret [1979]. Prosa de Poeta. In: PLATH, Sylvia. Johnny Panic e a
Bíblia dos Sonhos e Outros Textos em Prosa. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2020,
p. 13-16.
BRONTË, Emily. O Morro dos Ventos Uivantes: edição comentada. Rio de Janeiro:
Zahar, 2016.
CARROLL, Lewis [1865]. Alice no País das Maravilhas. Rio de Janeiro: Darkside
Books, 2019.
CASTILLEJOS, Ana M. Martín. Johnny Panic and the Bible of Dreams: Paisaje y
simbolismos en los ensayos y relatos de Sylvia Plath. In: Babel–AFIAL: Aspectos de
Filologia Inglesa e Alemã. n. 11, 2002, p. 19-40.
CLARK, Heather. Red Comet: the short life and blazing art of Sylvia Plath. New York:
Knopf, 2020.
ECO, Umberto [1962]. Obra Aberta. 8 ed. Série Debates 4. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1991.
HOMERO [VII aC]. Odisséia. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2003.
KOSLOSKI, Philip. Sabe por que 3 da manhã é a “hora do diabo”? In: Aleteia, 2017.
Disponível em: <https://pt.aleteia.org/2017/10/23/sabe-por-que-3-da-manha-e-a-
hora-do-diabo/>. Acesso em 18 abr. 2021.
LOPES, Marcos Carvalho. Umberto Eco: da “Obra Aberta” para “Os Limites da
Interpretação”. In: Redescrições – Revista do GT Pragmatismo e Filosofia
Americana, v. 1, n. 4, 2010, p. 02-17.
PETERSEN, Mariana Chaves. O insólito em “The fifth-ninth bear”, de Sylvia Plath. In:
O insólito nas literaturas de língua inglesa. Rio de Janeiro: Dialogarts p. 154-170,
2015.
PLATH, Sylvia. Ariel - a series of poems by Sylvia Plath. New York: Harper Perennial,
1965.
PLATH, Sylvia. The Colossus and Other Poems. London: Heinemann, 1960.
PLATH, Sylvia. The Unabridged Journals of Sylvia Plath, 1950-1962. New York:
Anchor Books, 2000.
PLATH, Sylvia. Desenhos. Trad. Matilde Campilho. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul,
2014.
PLATH, Sylvia. Johnny Panic e a Bíblia de Sonhos. In___: Johnny Panic e a Bíblia
dos Sonhos e Outros Textos em Prosa. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2020, p.
13-40.
PLATH, Sylvia. As Filhas da Blossom Street. In___: Johnny Panic e a Bíblia dos
Sonhos e Outros Textos em Prosa. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2020, p. 93-115.
ROLLYSON, Carl. Ísis Americana: vida e arte de Sylvia Plath. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2015.
SILVA JUNIOR, Augusto Rodrigues da; CARVALHO, Maura Cristina de. Loucura e
Morte em Alice no País das Maravilhas: alteridade e revolução na escrita de Carrol e
no inconsciente freudiano. In: interFACES, v. 23, n. 1, 2015, p. 32-43.
STEVENSON, Anne. Amarga Fama: uma biografia de Sylvia Plath. Rio de Janeiro:
Rocco, 1992.
SYLVIA. Direção: Christine Jeffs. Produção: BBC Films; UK Film Council; Capitol
Films; Ruby Films. Intérpretes: Gwyneth Paltrow; Daniel Craig; Jared Harris; Michael
Gambon; Blythe Danner. Roteiro: John Brownlow. Estados Unidos; Reino Unido: Icon
Film Distribution (Reino Unido); Focus Features (Estados Unidos), 2003. 1 DVD
(110min.).
WELBY, Lizzy. Shocked into Submission: fear of the irrational mind in Sylvia Plath’s
Johnny Panic and the Bible of Dreams. In: Symmetries, 2012, p. 131-139.