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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

ELIAS DE OLIVEIRA PINTANEL

DO CORPO-COURAÇA À FLUÊNCIA EXPRESSIVA: CONTRIBUIÇÕES DA


BIOENERGÉTICA NA PREPARAÇÃO DE ATORES

THE BODY-SHIELD TO STREAMNIG EXPRESSIVE : BIOENERGETIC


CONTRIBUTIONS IN ACTORS PREPARATION

CAMPINAS

2017
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ELIAS DE OLIVEIRA PINTANEL

DO CORPO-COURAÇA À FLUÊNCIA EXPRESSIVA: CONTRIBUIÇÕES DA


BIOENERGÉTICA NA PREPARAÇÃO DE ATORES

THE BODY-SHIELD TO STREAMNIG EXPRESSIVE: BIOENERGETIC


CONTRIBUTIONS IN ACTORS PREPARATION

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade


Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a
obtenção do título de mestre em Artes da Cena. Área de
concentração: Teatro, Dança e Performance.

Dissertation presented to the Faculty/Institute of the University of


Campinas in partial fulfillment of the requirements for the degree of
master in Perfoming Arts. Field Study: Theatre, Dance and
Performance.

ORIENTADOR: MARISA MARTINS LAMBERT

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO


FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO
ALUNO ELIAS DE OLIVEIRA PINTANEL E ORIENTADO PELA
PROFA. DRA. MARISA MARTINS LAMBERT.

CAMPINAS

2017
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Atuo como se fosse um nômade.


Mas de uma qualidade diferente. Não me insiro na qualidade de um nômade que
relaciona-se com uma geografia específica.
Procuro um lugar utópico no tempo: um espaço-tempo unido que rasga a
mortalidade.
Procuro a experiência da continuidade aos moldes de Bataille.
Atuo tendo consciência de que isso talvez não se encaixe mais na realidade de
nossos tempos. É uma espécie de eterno desafio.
No entanto, acredito que há outros como eu por aí:
firmes na caminhada.

À sua procura e ao seu encontro que ajo.


6

AGRADECIMENTOS

Agradeço, neste momento, as pessoas que foram cruciais durante todo este
processo:

Primeiramente ao meu filho, Leon. Que nasceu durante os últimos meses deste
trabalho e que já se mostra generoso ao me ajudar nos caminhos dessa vida.

Meus pais, Ceires de Oliveira e Carlos Augusto Pintanel, por todo apoio
imensurável. Minha irmã, Luana, por encurtar sempre as distâncias físicas que existe
entre a minha pessoa e minha família.

A Giovanna Hernandes por todas as conversas e por dividir comigo pensamentos de


amor ao teatro.

“Os Barulhentos”, grupo do qual faço parte e que me ajuda a pensar o ator sempre
no coletivo, sempre na relação e nunca na solidão. São eles: Cadu Cardoso,
Domitila Gonzalez, Clara Rocha, Gustavo Pompiani, Lia Maria, Lucas Horita, Lucas
Paranhos, Murilo Zimbetti, Marina Campanatti e Thalita Trevisani. E ao diretor do
grupo, Rodrigo Spina, que sempre me ajudou a ampliar os meus olhares e que tem
grande parcela neste trabalho.

Aos meus amigos Adriano Moraes e Marcelo Silva: minha trajetória jamais será
sozinha depois de nossos encontros.

As professoras Marisa Lambert, Silvia Geraldi, Ana Terra, e todos os pesquisadores


que participaram do Grupo de Pesquisa "Prática como pesquisa: processos de
produção da cena contemporânea". Os aprendizados nesse grupo e as trocas que
aconteceram foram muito importantes. Lembrarei sempre com muito carinho.

Minha orientadora, Marisa Lambert, por toda dedicação e ajuda, principalmente na


reta final do trabalho. Muito obrigado pela generosidade!
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RESUMO

A presente pesquisa de mestrado investigou conceitos da bioenergética como


ferramenta no trabalho de preparação corporal e criação do ator. Bioenergética é
uma maneira de entender a personalidade em termos do corpo e de seus processos
energéticos (LOWEN, 1982). O projeto parte do estudo do conceito de caráter do
psicólogo Wilhelm Reich (1975), para operar os elementos da bioenergética na
proposição da ideia de corpo-couraça e sua possibilidade de fluxo. Os personagens
da peça "O Arquiteto e o Imperador da Assíria" de Fernando Arrabal, serviram para a
criação de um experimento poético, parte integrante da pesquisa, e como campo de
reflexão sobre o corpo, ora couraça ora fluido, onde se relacionam o poder pelos
impulsos (Arquiteto) e o poder pela razão (Imperador). Além da bioenergética, utilizo
como apoio teatral o método de ações físicas de Constantin Stanislavski (1979) e os
escritos de Antonin Artaud (2006). O alargamento/descondicionamento da
percepção dessas duas polaridades expressivas do corpo pode permitir ao ator
obter um estado mais flexível de presença física. Pela bioenergética esse caminho
se dá através do aprofundamento da respiração e pelo grounding. A hipótese
levantada é que a bioenergética, como referência para a preparação corporal do
artista, pode estimular a autonomia de ator, manter a sua vitalidade e a vibração
energética do corpo - pontuando sua presença no aqui/agora. Não visando um
estado de "ser" mas de "pertencer", de "fazer parte" a partir de uma necessidade,
neste caso, teatral.

PALAVRAS-CHAVE: Atores - formação; bioenergética; atores - estudo e ensino;


corpo - representação teatral; respiração.
8

ABSTRACT

A research gift in bioenergetics concepts research as body preparation and creation


work. Bioenergetics is a way of understanding a personality in terms of the body and
its energetic processes (LOWEN, 1982). The project starts from the study of the
concept of character of the psychologist Wilhelm Reich (1975), to operate the
elements of bioenergetics in the proposition of the body-armor idea and its possibility
of access. The characters of the play "The Architect and the Emperor of Assyria" by
Fernando Arrabal, served as a setting for a poetic experiment, an integral part of the
research, as a field of reflection on the body, either a breastplate or a fluid. Impulses
(Architect) and power by reason (Emperor). In addition to bioenergetics, I use as a
theatrical support the Constantin Stanislavski Method of Physical Actions (1979) and
the writings of Antonin Artaud (2006). The enlargement / deconditioning of the
perception of the two expressive polarities of the body can allow the actor to obtain a
more flexible state of physical presence. By bioenergetics this way is through the
deepening of the breath and the hair. A raised hypothesis is a bioenergetic, as a
reference for a physical body, it can stimulate an actor's autonomy, maintain his
vitality and an energetic vibration of the body - punctuating his presence in the here /
now. Not aiming at a state of "being" but of "belonging", of "being part" from a need,
in this case, theatrical.

Key words: Actors training; Bioenergetics; Actors - Study and teaching; Body -
theatrical representation; breath.
9

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Diagrama da unidade energética do corpo a partir de Reich. ............................ 41


Figura 2 - Diagrama do mecanismo de antiprazer e prazer final ....................................... 47
Figura 3 - Manequim de Barcelona - Salvador Dalí - 1927 ............................................... 57
Figura 4 - Desintegração Rinoncerótica dos Illisios - Salvador Dalí - 1954 ........................ 59
Figura 5 - Vibrando inclinado para frente........................................................................ 66
Figura 6 - Exercício de respiração ................................................................................. 81
Figura 7 - Reflexo do orgasmo ...................................................................................... 81
Figura 8 - Exercício do arco .......................................................................................... 84
Figura 9 - A tumba dos lutadores - René Magritte - 1961 .............................................. 115
Figura 10 - O aniversário - René Magritte - 1959 .......................................................... 145
10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: Manifesto de Abertura ................................................................... 11

Ação 1 - Corpo-couraça e as potencialidades afetivas do ator ...................................... 27


Princípios básicos para o trabalho atoral em Bioenergética ................................................. 29
Diretrizes Artísticas ....................................................................................................31
Wilhelm Reich e a análise de caráter ................................................................................... 37
A função do orgasmo e a economia sexual ......................................................................... 45
A bioenergética de Alexander Lowen ................................................................................... 50
Corpo-couraça ..................................................................................................................... 57
Corpo fluido ......................................................................................................................... 59

Ação 2 - A respiração e o grounding ................................................................................ 62


Início de trabalho ................................................................................................................. 64
A respiração bioenergética .................................................................................................. 70
Grounding ............................................................................................................................ 83

Ação 3 - Entre o poder dos impulsos e o poder da razão ............................................... 90


Relato 1: .............................................................................................................................. 92
Sobre os respeitáveis enganadores e sua sociedade ........................................................ 101
Relato 2: ............................................................................................................................ 106
O prazer e a criação .......................................................................................................... 114
Relato 3: ............................................................................................................................ 128
Entre o Arquiteto e o Imperador da Assíria ........................................................................ 136

Últimas palavras: o ator em chamas .............................................................................. 148

Referências Bibliográficas .............................................................................................. 153


11

Introdução:

Manifesto de Abertura

O que se segue é acima de tudo um ato de liberdade. Configurou-se


a partir de uma trajetória permeada por um forte desejo de contato com o
outro através do teatro. Uma necessidade, de fato. Embora entenda ser
pertinente a existência de normas e regras, a arte para mim sempre teve um
lugar de suspensão da ordem e do afrontamento a direcionamentos pré-
estabelecidos, sejam eles acadêmicos ou estéticos, aproximação que sempre
me possibilitou interessantes movimentos. É com esse pensamento que
minha fala age. Essa postura não é de confronto sem objetivo: leio o risco
como potencialidade, impulso para a criação de saberes. A vivência dinâmica
do processo criativo, fenômeno integrante da experiência teatral, insere-se
aqui como parte do trajeto e não como um produto final e acabado.
Ambiente de exercício, crescimento e alteridade.
Sigo uma tendência da cena contemporânea em que as pedagogias
do ator direcionam-se para práticas/saberes que propõem a desconstrução
de hábitos ou padronizações expressivas como base da criação artística. 1
Essas práticas são conhecidas, em sua grande maioria, como proposições
estruturadas de treinamento do ator. Ultimamente acostumei-me a pensar
diretamente na criação cênica como eixo principal do trabalho de ator e esse
é o foco de todo meu trabalho. A proposição aqui se detém no trabalho de
formação atoral visando ao alargar das percepções do ator e à sua relação
com o outro (espaço, colega de cena, espectador, textos, etc). Buscando um
desabrochar das potencialidades humanas a partir do descondicionamento
de automatismos do corpo e da valorização do espaço para o argumento
expressivo próprio. Minha fala se direciona a esses atores.
Longe de ter o objetivo de criar enquadramentos para uma criação
artística, é a aproximação do impulso de criação, do movimento ou

1
Esse modo de fazer está presente, por exemplo, na prática de grupos como: Grupo de Teatro Ói
nóiz aqui traveiz (RS), Teatro da Vertigem (SP), Lume Teatro (SP), Odin Theater (Dinamarca), entre
outros.
12

deslocamento de desconstrução/construção estético-artística, durante todo o


processo do fazer teatral que pretendo evidenciar. Por esse motivo falo em
modo de Manifesto e de Ações2. Há uma preparação consciente, um início
demarcado pelo contato com as potencialidades e os desejos do artista.
Porém, o ATO é que funda o verbo. Aonde então ele pode me levar?
Um manifesto é uma necessidade intensa de expressar algo, algo que não
está sendo escutado, uma fala que precisa encontrar espaço. Meu Manifesto
se produz no corpo e resulta num encadeamento de impulsos e ações. Ele é a
expressão de meu ser, da chama que me toma no momento da escrita e da
cena. Embora tenha o objetivo de permanecer durante muito tempo na forma
de escrita, a sua produção é feita a partir da experiência do efêmero, de uma
arte móvel que não se fixa. A bioenergética3, tema que se insere no cerne
desta investigação, é o que impulsionará essa energia. Abrir-se é o desejo
contínuo, nem que seja através do grito.

Aquilo que me toca, aquilo que me move

No ponto de desgaste a que chegou nossa sensibilidade, certamente


precisamos antes de mais nada de um teatro que nos desperte:
nervos e coração.
"O Teatro e seu Duplo", Antonin Artaud

Vivemos num mundo de avanços tecnológicos. Através desse


mundo da cyber cultura, tempo de hiperlinks e de ataques cibernéticos, onde
informações e conteúdos são distribuídos ao redor do mundo em frações de

2
Um manifesto normalmente é composto por um programa artístico. Porém, o meu manifesto de
Abertura não pretende criar um programa artístico. A sua efetividade está em apresentar um impulso
que me move e que levará essa prática atoral a cena. Indicando de maneira sutil que o manifesto
aqui só tem valor se ele tornar-se ação. Nesse sentido, há uma distância entre a escrita e a ação.
Mantenho a escrita do manifesto por ela evidenciar algo que está escondido, algo que não foi
desvelado e que precisa tornar-se linguagem. A dificuldade que tive foi de transparecer através deste
texto o que só pode ser visto na sala de trabalho e em cena.
3
Como será visto mais adiante, “bioenergética” é o que a própria palavra diz: energia do organismo
vivo. Aqui, neste texto, uso a bioenergética tendo como referência a “análise bioenergética” de
Alexander Lowen (1910-2008), psicanalista norte-americano. A análise bioenergética é um conjunto
de técnicas e exercícios corporais que visam a aumentar a vitalidade da pessoa, aprofundando sua
respiração, sua relação com a realidade que o cerca, aumentando, assim, sua auto-percepção e
expressão. A análise bioenergética procede junto ao trabalho analítico, que será mencionado no
contexto desta pesquisa apenas para entendermos melhor as proposições orgânicas relatadas aqui
com o propósito artístico.
13

segundo, uma época informacionista4, onde o espetacular é valorizado.


Diante desse cenário, que pode sim conter outras interpretações, acredito
que uma das ações que o teatro pode apresentar hoje é ser o lugar do
exercício da "solidão em público", como encontramos nos textos do diretor
russo Constantin Stanislavski5. Essa "solidão em público" é o estado de
atuação do ator. Não tem relação com o estar ensimesmado. Há a plateia o
observando, mas a atuação dele está vinculada a uma atenção conduzida e
trabalhada. Stanislavski fala de círculos de atenção para falar dessa "solidão
em público" (1979, p.109). Somo aqui a ideia de o ator conduzir também a
atenção do espectador. Um tempo criado a partir desse encontro.
No campo artístico, essa profusão de informações e de tecnologias
acontece de uma maneira que faz surgirem novos modos de produção e
fluição artística: as obras do Teatro Oficina (SP), com suas câmeras dentro da
cena e transmitindo suas obras ao vivo pela internet; as projeções feitas em
cena na obra "Os Náufragos da Louca Esperança" do grupo francês Théâtre
du Soleil, dando um "ar de cinema mudo" e de "filme legendado" a cena onde
os atores não emitem som nenhum; a obra "Senhorita Júlia" de A Schaubühne
Am Lehniner Platz, espetáculo que mistura performance, múltimidia e
filmagem ao vivo, numa releitura do clássico de Strindberg; ou obras como
"Stifters Dinge" do suíço Heiner Goebbels, uma obra de teatro sem atores,
uma performance sem performers, se utilizando de cinco pianos (sem
pianistas), levando a experimentações artísticas para outras fronteiras. 6 Esses
são alguns exemplos de como os diálogos da arte com a tecnologia criam

4
Me refiro à velocidade em que as informações são distribuídas no mundo de hoje através dos meios
de comunicação. Informacionista no sentido de que os conteúdos ficam em segundo plano.
5
Diretor russo da virada do século XIX para o XX Fundador do Teatro de Arte de Moscou, foi
responsável pelo mesmo no período de 1898 a 1938. Stanislavski pesquisou a fundo o trabalho de
criação do ator. Suas pesquisas e montagens influenciaram quase a totalidade das escolas teatrais
no ocidente.
6
Cabe ressaltar que tive a oportunidade de ver todas essas obras nos últimos anos. O Teatro Oficina
de São Paulo está a cada ano em cartaz, seja com espetáculos novos ou de repertório. Théâtre du
Soliel tive a oportunidade de ver quando estavam de temporada no Brasil. Os outros espetáculos
vieram pela Mostra Internacional de Teatro de São Paulo no ano de 2015. Foquei nessa minha fala
nos artistas de teatro ou da fronteira dele. Mas outros artistas contemporâneos também se utilizam
das tecnologias de nosso tempo em suas obras. Destaco os vídeos artes do norte-americano Bill
Viola e o italiano Romeo Castelucci, com suas obras que misturam teatro, performance, vídeos e
outras mídias e experimentações.
14

novas maneiras de se fazer arte e de como essas ações ampliam as fronteiras


das artes.
Se compararmos ao século passado, a quantidade de cursos e
escolas de teatro que surgiram em nosso país aumentou consideravelmente.
Com isso, os estudos que abordam o teatro, a teatralidade, a dança, a
performance, a recepção, etc, atravessam a cena: iniciando pelas próprias
reflexões e ações a respeito da recepção da obra até o trabalho do ator. O
contexto de minha fala tem como apoio principal do trabalho atoral e
artístico a ação do ator. Levando em conta os pressupostos estéticos da
virada do século XIX para o século XX, a cena não é apenas o lugar da
representação, da exposição de uma situação ou apenas da ação concreta do
ator. O teatro de hoje é flexível. Desde as suas abordagens pedagógicas de
formação atoral até as escolhas estéticas da cena. No entanto me insiro nos
estudos e nas práticas atorais onde a ação toma lugar de destaque
(CORNAGO, 2016).
Antes da modernidade do teatro, o texto e as grandes personagens
eram os principais elementos da cena, tratando-se aqui do teatro ocidental.
No entanto, o corpo era disciplinado, doutrinado e até mesmo moldado para
uma representação com códigos, gestos e posturas específicas. O corpo do
ator não era abordado como um elemento a ser estudado dentro da fruição
do teatro dramático, o que interessava eram as figuras e as personagens
textuais.
Chegando ao século XX a performance potencializou o corpo
humano como sujeito e força motriz do ritual e da arte. Da década de 1960
até hoje, das obras de Jackson Pollock, Jonh Cage, Yves Klein, passando por
Kaprow, Beuys, ou os contemporâneos Marina Abramovich, Bill Viola, a
performance criou diferentes possibilidades do corpo do artista na relação
entre obra/público, arte/vida: potencializando a Ação no aqui/agora do
artista.
O corpo se tornou o lugar da ação e o elemento principal do
processo artístico. Na cena contemporânea cada vez mais híbrida em termos
de linguagem, o corpo do artista foi pintado, cortado, jogado ao chão,
exposto a dores, furado, foi 'transformado' em objeto, foi tatuado, dividiu a
15

cena com animais como no teatro do chileno Jodorowski, dançou e cantou nu


nas obras de Zé Celso, mesclou-se com bonecos nas obras do argentino
Daniel Veronese, misturou-se com as pessoas na rua com o Teatro Invisível
de Boal. Também foi exposto como corpo esportivo, corpo atlético, corpo
com dor e no perigo, e ao mesmo tempo é levado à atuações de um teatro
hipernaturalista, de vertiginosas e exigentes acrobacias no circo
contemporâneo. Novos corpos e novas ideologias ganham e tomam a cena7.

O desenvolvimento de uma ação com o corpo, na arte,


demanda, por um lado, uma perspectiva multidisciplinar e uma
concepção de retórica que é totalmente diferente da
tradicional: uma retórica da ação e do movimento. [...] Se o
objeto da arte é a criação, e se o ato criativo é por essência
único, há que se discriminar, entre as diversas linguagens, o
caso da performance: a retórica do movimento, a retórica do
estático, a retórica dos programas comportamentais
complexos, uma retórica da gestualidade e de sua relação com
as extremidades do corpo e assim por diante. (GLUSBERG,
2009, p. 64-65)

O corpo virou uma das possibilidades de contato com as fronteiras


artísticas. A ação performática age diretamente na realidade, numa
conjuntura que deve levar em conta quem está fazendo a performance, o
local e o contexto social da ação etc. A performance leva em conta não só os
signos e os códigos que produz, mas aqueles com que dialoga pela
perspectiva do público. É por esse motivo que minha aposta se concentra na
bioenergética como possibilidade de trabalho atoral, não vinculando a uma
estética específica do teatro, mas abrindo para uma nova forma de se
relacionar com o mundo e de se expressar artisticamente. Essas abordagens,
esses hibridismos os quais elenquei são vistos por mim por bons olhos e com
muito interesse.
Assim, nas últimas décadas esses novos paradigmas apontam
outras direções de ação. Se antes da virada do século XIX para o século XX,
na arte dramática o que importava eram as figuras e personagens textuais8,

7
O livro "O Teatro Pós-Dramático" (2007) de Lehmann e "A arte da performance" (2009) de Glusberg
analisam várias obras e é uma fonte confiável da pluralidade da cena contemporânea.
8
Isso é uma das leituras possíveis daquela época. O que quero ressaltar aqui é que antigamente, na
Europa especificamente, os atores estavam a serviço de um texto dramático (como nas obras de
16

hoje acrescenta-se a isso a mudança da função de abstração desse corpo


dramático para o de atração, tornando-se uma das características do corpo
pós-dramático (LEHMANN, 2007, p.332). Centralizado na ótica da
corporeidade no teatro contemporâneo de hoje, o ator não está somente
representando um papel. Ele está se expondo, evidenciando quem ele é
carnalmente9.
A vida apresenta-se e dissolve-se em qualquer canto, evidenciando
os nossos olhares televisivos ou smartphonados. Poderíamos ler esse cenário
como uma acentuada degradação moral e social? Na verdade, essa crise não é
de hoje. Antonin Artaud10 escreveu, já em meados dos anos 1930 na França,
sobre essa crise e o teatro. A atualidade de suas palavras tomam-me e se
tornam porta-bandeira de minha fala:

O teatro deve igualar-se à vida, não à vida individual, ao


aspecto individual da vida em que triunfam as
PERSONALIDADES, mas uma espécie de vida liberada, que
varre a individualidade humana e em que o homem nada mais
é que um reflexo. Criar Mitos, esse é o verdadeiro objetivo do
teatro, traduzir a vida sob seu aspecto universal, imenso, e
extrair dessa vida imagens em que gostaríamos de nos
reencontrar. (ARTAUD, 2006, p. 136-137)

Artaud é, para mim, um grande provocador. Estar em contato com


seus textos faz-me entrar em movimento e contribuir para meu trabalho.
Reflito e ouso, como irei ousar ao longo de minha fala, dizer que, nessa
perspectiva que apresento, o fazer teatral de hoje possui dois horizontes11.

Racine, Molière, Shakespeare, etc). É com o surgimento da figura do diretor e das pedagogias de
formação do ator que o próprio trabalho corporal dos atores cria novas relações entre: técnica,
poética e composição cênica.
9
Ver um ator como Zé Celso Martinez Corrêa em cena no Teatro Oficina em São Paulo, como na
obra Bacantes, não é apenas ver o personagem Tirésias. Mas também ver um homem de mais de 70
anos em cena, com 50 anos de teatro. De cabelos brancos, pele enrugada e flácida por causa da
idade. Relacionam-se em Zé Celso: o personagem da peça, a figura pública dele e a sua fisicalidade.
10
Antonin Artaud, nascido em Marseille, França, no dia 14 de setembro de 1896. Ator, escritor e
encenador francês. Suas ideias sobre teatro são polêmicas, mas influenciaram e influenciam o teatro
até hoje. O tema "teatro ritual" é muito associado aos escritos de Artaud. O principal livro publicado no
Brasil que reúne alguns de seus textos é "O Teatro e seu Duplo" (2006) publicado pela Martins
Fontes e utilizado como referência neste trabalho.
11
Essas ideias me acompanham desde a época em que participei do projeto de extensão Núcleo de
Teatro da UFPel (2008-2013), cuja direção era de Adriano Moraes de Oliveira. Minha formação
teatral, filosófica, acadêmica se deu nesse lugar e com a parceria que se iniciou com Oliveira. Sou
mais do que grato e agradecido por isso. No entanto, devo ressaltar aqui que essas duas
17

Em primeiro vem esse ator inserido no mundo da sociedade do espetáculo. 12


Podemos vê-lo principalmente no jogo da indústria, no qual ele se torna
produto a ser consumido e com isso criador de padrões de beleza, de
comportamentos e de posturas. O segundo caminho é aquele que mantém
como foco a efemeridade do teatro e aquilo que ela tem de mais sagrado: a
atuação sincera diante dos espectadores. O ator como porta-voz de uma
ancestralidade, como um desbravador, um homem que aponta o novo, antevê
o futuro no presente vivo. Que experimenta isso em sua carne. Um homem
que abre espaços para acessar o inconsciente coletivo, atualizando os nossos
mais antigos conflitos através dos mitos primitivos, dos antigos rituais e das
formas tradicionais de manifestações culturais que são vistas com a
humildade e o respeito devidos. São lugares de acesso, como uma porta,
"uma porta que não está lá para ser observada e sim experimentada"
(BROOK, 2010, p. 74). O teatro é um desses lugares13.
Escolho focar o meu trabalho no segundo cenário, pois estou
associado ao afeto: aquilo que depois de ser projetado, de ser lançado ao
espaço a partir de uma ação, de um fazer, a partir de uma atitude, de uma
postura e de uma posição. Afeto, afeição, afetar. O ator não designa, desse
modo, uma qualidade de experiência apenas, "mas um poder, o "poder de
afetar", uma força que atua no e através do ator, e depois em relação ao
espectador" (QUILICI, 2004, p.138)
Desencadear a afetividade potencial do ator através do
conhecimento e contato consigo, seu universo próprio – densidade interior,
volume do sentimento, apossamento orgânico (ARTAUD, 2006, p.158). Para
isso, o trabalho do ator passa por sua memória pessoal, por sua
sensibilidade, por suas experiências e coloca o corpo no centro da sua arte.
Alimento-me do que Artaud instaura como nova relação do ator e seu fazer

perspectivas de trabalho atoral são um dos modos de ver a ação do ator na nossa sociedade. Servem
apenas para expor um ponto de vista e para desenrolar os pensamentos de meu discurso.
12
"Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta
como uma imensa acumulação de espetáculos.Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma
representação" (DEBORD, 1997, p.13).
13
O teatro é inúmeros lugares. Como minha formação é em licenciatura tenho plena consciência de
que o artista ou o professor de teatro, possui um ramo enorme de ações diante da sociedade e das
necessidades artísticas. A divisão aqui em duas formas de lidar com o fazer teatral serve apenas para
evidenciar um pouco mais o que levantei sobre a relação entre o mundo e a arte contemporânea.
18

artístico: a necessidade de se ter uma prática física, mental e espiritual que o


levasse a um atletismo afetivo (2006). O ator não deve prezar por um corpo
atlético no sentido militar e esportivo, mas direcionar a sua energia na
criação e na atuação cênica. O desejo é ser capaz de afetar o espectador e ser
afetado pela obra.
A ação deixa de ser dramática. Não há continuidade neste tipo de
teatro. O ator opera então na chave do ESTOU. A especificidade do teatro ser
a arte do presente é pontuada. Na sociedade em que vivemos, talvez de
matrizes culturais rígidas que nos ensinaram a dizer "sou" (ou priorizar a
superficialidade do "tenho" ou "aparento ter"), este teatro é uma pequena vela
em um campo escuro: não porque o mundo é horrível, mas porque nos
escondemos diariamente. O ESTOU é o desnudamento do ator.
O caminho que sigo é este, por mais insano que possa ser. A
natureza dele aproxima a arte da vida e vice-versa. Embora não saiba a que
lugar chegarei, sei que o caminho é construído pedra por pedra ou a cada
passo. Para isso, sei que o ator deve trabalhar na frequência da prudência
artística. Trabalhar essa expansão nos livra dessas necessidades primeiras de
nosso ego. Acessamos, assim, um outro lugar teatral, um lugar inserido em
um fazer coletivo dentro de uma sociedade. O teatro como ato social, de
vida.

Meus apoios
Amor, trabalho e conhecimento são as fontes da vida.
Deveriam também governá-la.
Wilhelm Reich

Os textos, a obra, a vida de Wilhelm Reich14 levaram-me a novos


fluxos. Influenciaram minha vida em diversas camadas sociais e artísticas.
Reich é uma figura polêmica em vários campos do saber, em vários governos,
em várias épocas. Nasceu no final do século XIX, no Império Austro-Húngaro,
foi aluno e discípulo de Sigmund Freud e defendeu durante toda a sua vida a
14
Aos dezessete anos ele já era órfão de pai e mãe. Após a Primeira Guerra Mundial, onde lutou
como soldado das forças prussianas, foi cursar Medicina. É neste período que entra em contato com
os escritos de Freud. Os temas que mais lhe chamam atenção estão relacionados à psiquiatria e à
sexologia. Em 1920, torna-se membro da Sociedade Psicanalítica de Viena e preside os Seminários
sobre a Técnica Psicanalítica de 1924 até 1930, quando se muda para Berlim.
19

sexualidade vivida livremente. Por causa disso, foi contra todo o tipo de
restrição, de moral e de tabu impostos pela sociedade ao homem.
Por sua obra ser extensa e abarcar várias áreas de saberes,
concentro-me em seus escritos que abrangem questões psicanalíticas e
político-sociais.15 Seu conceito de caráter que trago para pensar o trabalho do
ator torna-se aqui crucial. Pode-se ler “caráter” como “couraça”. Para Reich,
havia dois tipos principais de caráter: o genital (saudável) e o neurótico
(doente). Caráter é o "indicativo da atitude do ser frente ao mundo,
atravessado por relações estabelecidas nos encontros que não cessam de
ocorrer enquanto houver vida" (SOARES, 2003, p.15).
Tentarei, digo abertamente, atualizar alguns escritos de Reich. Seus
estudos estavam vinculados ao início do campo da psicologia. Como suas
ideias eram muito polêmicas para aquela época, e diria que até hoje em
certos pontos, os seus escritos e suas falas tendem a ser muito duras, no
sentido cientificista e numa tentativa de defesa de seus pontos de vista: além
de partir do pressuposto que todos entendem as teorias de Freud, há um alto
grau de relatos de análise de pacientes e de dados de laboratório, onde o
vocabulário se torna de difícil acesso. Por isso que muitas vezes podemos ler
Reich e interpretar suas falas como sendo muito impositivas. Considero
frutos de seu tempo esse "temperamento".
A noção de caráter de Wilhelm Reich é a palavra-guia para
podermos nos aproximar de sua obra e entender, dentro deste contexto que
exponho, os mecanismos orgânicos que bloqueiam a livre circulação de
energia no corpo (REICH, 1975). Couraça refere-se às estruturas rígidas que
existem em nós e que diminuem a nossa flexibilidade, vista aqui como a
capacidade do ator de se deslocar para se relacionar com o outro
(STANISLAVSKI, 1979).
A proposição do norte-americano Alexander Lowen (1910-2008),
que estudou e se formou com Reich, seria a atualização e a continuação da

15
Divido aqui a vida de Reich em quatro momentos: 1918-1930, quando vive em Viena (encontro e
desencontro com Freud); 1930-1933, quando vive em Berlim (onde os estudos e atividade como
combatente social são mais explícitos); 1933-1939, período de seguidos exílios (vive na Dinamarca,
Suécia e Noruega); 1939-1957, período em que vive e morre nos Estados Unidos. Reich revisitou ao
longo de sua vida toda seus escritos e por causa disso não me focarei em uma fase específica de sua
obra.
20

pesquisa reichiana, denominada por ele de análise bioenergética. A


bioenergética é uma maneira de entender o corpo a partir da sua
personalidade e de seus processos energéticos (LOWEN, 1983). A respiração e
o grounding são elementos cruciais nesta abordagem e tomadas em igual
importância no exercício atoral. A intenção de trabalhar estes elementos
aproxima o contexto artístico da visão de corpo fluído e vivo que há na
literatura de Reich e Lowen. O estado do ESTOU, conforme apresentado. Para
isso, é fundamental religar-se consigo e perceber-se perante o mundo:
autopercepção e sensação.

É um axioma da análise bioenergética que aquilo que uma


pessoa realmente sente é o seu corpo. Ela não sente o ambiente
a não ser através da ação que ele exerce sobre seu corpo. Sente
como seu corpo reage a estímulos vindos do ambiente e, então,
projeta essas sensações no estímulo. Assim, quando sinto que
sua mão está quente e pousada em meu braço, o que estou
sentindo é o calor produzido no meu braço por sua mão.
Todas as sensações são percepções corporais. Se o corpo de
uma pessoa não reage ao ambiente, ela não sente nada.
(LOWEN, 1970, p.49)

Nessa citação, já podemos levantar duas perspectivas de trabalho:


uma pessoal, sobre si (a partir do estudo da cultura e modos de ser), e a
outra de relação com o entorno (não só com o ambiente, mas com materiais
de criação artística). Aqui se imbrica minha investigação, tema que atravessa
o trabalho de grandes ensaiadores: conquistar a fluência de uma
expressividade corporal, na qual o trânsito entre o impulso interior e a
reação exterior não seja interrompida (GROTOWSKI, 1987)16. Será por este
caminho que o trabalho prático do ator se direcionará e será testado nesta
pesquisa, no reconhecimento e afrouxamento da couraça.
Na bioenergética de Lowen, essa couraça, essas tensões, devem se
tornar conscientes para a pessoa. Através de exercícios de respiração e de

16
Jerzy Grotowski, diretor polonês que institui a noção de teatro-laboratório. Seguidor do trabalho de
Stanislavski, seu percurso que teve como início nos anos de 1950 e se estendeu até a sua morte na
década de 1990, tem grande influência no trabalho teatral da atualidade. Sua ideia de via negativa é
levada em conta neste trabalho: “A „via negativa‟ é um modo de trabalho de ator em que a ação
percebida pelo espectador é resultado de eliminação. O ator elimina tudo aquilo que é supérfluo:
todas as convenções, todos os maneirismos, todo o aprendizado formal do teatro anterior para
encontrar aquilo que lhe é próprio: ele mesmo.” (OLIVEIRA, 2011, p.74)
21

movimentos expressivos (que propõem a liberação das estruturas rígidas),


criam-se caminhos para que a energia 'presa', 'parada', possa circular
novamente (LOWEN, 1983).
A hipótese resulta na seguinte formulação: o
alargar/descondicionar da percepção dessa couraça permitirá ao ator obter
um estado de presença física em que os impulsos de cada ação sejam mais
fluidos. O teor do trabalho está na manutenção ou prolongamento do
interesse pela ação que o ator realiza a partir, prioritariamente, do
desencadear de sua afetividade. Estando em relação com o espectador, o
teatro viria a ser uma espécie de "desencouraçamento" social. O jogo aqui é
evidenciar a partir do corpo-couraça toda uma rede de sensibilidades que o
ator possui ou que se relaciona com o meio e com a cultura em que vive. Não
é a busca de um corpo específico ou um estado ideal de atuação. Mas a
evidenciação, através da experiência teatral, o nosso processo de vida, nossa
construção diária. É o processual e não o produto final.
O foco de Wilhelm Reich e Alexander Lowen está na vida saudável e
não nos aspectos expressivos necessários ao teatro. Por essa razão, a
poética17 de Stanislavski também atravessa a pesquisa. A construção
consciente da cena teatral permite não só um afastamento de uma ideia de
exercícios executados "automaticamente" ou com fins "curativos", como
instaura no ator uma necessidade artística para toda a prática.

Construindo a cena com a obra de Fernando Arrabal18

17
Os procedimentos organizados por Stanislavski (1863-1938) para possibilitar aos atores uma
criação mais verossímil para sua época servem como referência principal. Para Stanislavski, nós
somos incapazes de fixar as emoções, mas temos a capacidade de fixar um percurso de ações
físicas. A apropriação dessa linha de ações físicas, tendo a capacidade de repeti-la com precisão em
cada apresentação, poderá criar a possibilidade de crença do espectador pela personagem criada.
Os principais procedimentos são: o “se” mágico; as circunstâncias dadas; círculos de concentração
de atenção; a linha contínua de ações; divisão do texto dramático em unidades e objetivos.
18
Fernando Arrabal (1932-) dramaturgo e roterista espanhol, Alejandro Jodorowski (1929-) diretor de
teatro e cinema chileno e Roland Torpor (1938-1997) desenhista e pintor francês, foram os três
principais nomes do "Movimento Pânico", filhos do surrealismo, buscavam a criação artística a partir
de uma irrupção dos impulsos, tanto aqueles criativos como os destrutivos do ser humano. Tradições,
costumes, normas, leis, tudo isso deveria ser ultrapassado para que surgisse uma nova arte. O teatro
pânico se aproxima do dito "teatro do absurdo", porém se encontra muito distante pela sua principal
característica: o happening.
22

A obra "O Arquiteto e o Imperador da Assíria" de Fernando Arrabal,


texto utilizado no laboratório de criação cênica – parte integrante dessa
pesquisa -, serviu, em primeiro lugar, como base para se discutir a
potencialidade de criação atoral, devido à sua estrutura dramática. E,
segundamente, como fonte de reflexão sobre o dialogismo entre o artista
cênico e sua contemporaneidade. É neste ponto que os diálogos com Reich,
Lowen, Bertherat19, Foucault20, Cioran21 se estabelecem. Os personagens da
peça serviram como óculos teatrais para olhar a bioenergética no trabalho do
ator. Uma relação estabelecida entre ação estruturante e estruturada.
As ações criadas foram elaboradas com base no trabalho
bioenergético que resultou em um experimento cênico. Mesmo tendo o
processo um aspecto subjetivo em sua construção, o intuito foi dar ênfase a
uma criação partindo do texto dramático de Fernando Arrabal. Este texto se
tornou uma forte intimação neste trajeto. Além de evidenciar a efemeridade
do jogo teatral, ele realiza uma crítica ao homem moderno e sua sociedade.
Quero dizer que não o escolhi, mas fui arrebatado por ele.
Seus personagens, Arquiteto e Imperador são respectivamente, pelo
olhar aqui proposto, o caráter genital e o caráter neurótico da teoria
reichiana. É o homem menos encouraçado, mais perto da natureza de seu
corpo, relacionando-se com o homem encouraçado, civilizado, reprimido pela
sociedade. É o poder dos impulsos (REICH, 1975) versus o poder pela razão
(FOUCAULT, 2014). A liberdade/caráter genital e a prisão/caráter neurótico.

Escapar de uma armadilha é possível. Mas, para alguém sair de


uma prisão, primeiro precisa reconhecer que está numa prisão
de caráter. A armadilha é a estrutura emocional do homem,

19
Therese Bertherat (1931-2014), francesa, fisioterapueta e criadora da antiginástica. A partir de seu
encontro com Françoise Mézières, Bertherat estuda formas de trabalhar a aridez e rigides muscular.
Seu trabalho leva em conta os pensamentos, emoções e afetos, de acordo com a pessoalidade de
cada um. O foco principal de seu trabalho está com o encurtamento da muscular posterior do corpo.
20
Michel Foucault (1926-1984) filósofo francês muito importante para a contemporaneidade. Seus
principais estudos estão voltados para a relação entre o poder e o conhecimento, e como estes são
usados para o controle social através das instituições. Seus textos sobre sociedade disciplinar,
sociedade de controle, "filosofia dos dispositivos”, tecnologias de si, história de sexualidade, etc,
influenciaram e influenciam e muito os estudos do teatro contemporâneo.
21
Emil Cioran (1911-1995), nascido na Romênia, foi escritor e filósofo, sua principal obra se chama
"O breviário da decomposição". Cioran é considerado um dos grandes filósofos niilistas do século XX.
23

sua estrutura de caráter. Pouco adianta elaborar sistema de


pensamento sobre a natureza da armadilha, quando a única
coisa para sair da armadilha é conhecê-la e encontrar a saída.
(REICH, 1999, p. 4)22

O homem virou mecanismo de poder (FOUCAULT, 2014). Foi


disciplinado, algemado, doutrinado, rotulado, virou objeto, máquina, arma,
coisa - e Reich observou isso também. A couraça não é somente uma
característica dos homens, ela se encontra na estrutura social e é necessário
achar pontos de fuga, senão acaba-se ficando inerte, dependente, sem vida,
como o personagem Imperador da Assíria.

[...] el Emperador simboliza al hombre moderno, producto de


un mundo mecanizado y alienante, paraíso de distracciones y
valores transitorios tipificados en "la Televisión, la Coca-cola,
los tanques". Atormentado por una aguda autoconciencia, se
define a sí mismo por su interacción con los que le rodean. El
sentido de su valía personal depende del reconocimiento de los
demás. (TAYLOR, 1984, p. 38)

A obra de Arrabal permitiu movimentar-me mais ainda em direção


ao aprimoramento da linguagem teatral, pois o teatro, para mim, sempre foi
um lugar de desafio, um fazer onde o aprendizado acontece na experiência.
Embora não acredite que a vida, o homem, viva nessa dicotomia entre
encouraçado ou não, movido pelo poder ou só pelos impulsos, essa diferença
é colocada em extremos para que possamos perceber melhor nossas ações. A
vida é dinâmica e possui inúmeras maneiras de ser vista, maneira de
relacionar-se com os acontecimentos que surgem e se estabelecem. A
dificuldade de apreendê-la fez com que eu tomasse a escolha dessa divisão
polar, que repito, tem o intuito, pela oposição, de facilitar certos
entendimentos e reflexões.
No começo, eu pensava que não havia quase nada de permanência
dos encontros teatrais dos quais participei durante minha vida. Depois
percebi que sim. Ficavam cicatrizes, memórias, marcas, sensações, gostos,
olhares. Era como se eu saísse ferido daquele duelo de máscaras a que eu me
propunha em cena. O teatro passou a ser visto por mim como um lugar de

22
Os grifos são próprios do autor.
24

onde alguém deve sair ferido, isto é, tocado de forma direta: o ator e/ou o
espectador. Ferido no sentido de ser modificado, de haver algo que penetra
no ser, que deixa marcas. São essas marcas adquiridas durante meu trajeto
que constituíram o meu imaginário e o meu fazer teatral. São estes duelos e
seus encontros futuros que me fazem continuar.
Por ter uma formação em teatro licenciatura, há um lado
pedagógico que me atrai dentro de minha investigação. Lembro-me agora da
ideia da "Arte como Veículo" de Grotowski para expor essa relação
teatro/ensino. A arte aqui não é vista como um produto, mas processual e
isso não exclui a produção de um espetáculo ou a ideia deste. O que venho
frisar é que o caminho, para ser íntegro, aqui pode levar uma vida inteira.
Mas é justamente o conhecimento desse fato, a atenção que nos envolve para
esse trajeto que se torna crucial. Essa questão me leva a dizer que não estou
propondo uma fórmula ou um método específico de fazer teatral. Estou
justamente baseando-me em práticas pedagógicas já conhecidas do campo,
unidas à uma perspectiva de prática que chegou a mim durante o meu trajeto
pessoal: a bioenergética.
Neste sentido, abordo primeiramente a prática como pesquisa no
texto a seguir. Parto da premissa de que o teatro possui um potencial
riquíssimo de formação do sujeito (interação entre aprendizagem e ensino).
Aproximamo-nos de uma linguagem artística em que tornar a experiência em
linguagem é a principal ação. Estou falando de um crescimento de si dentro
da experiência teatral. "O ator reina no perecível", dizia Albert Camus em "O
mito de Sísifo" (2010, p.82). Assim, não temos como agarrar nas mãos ou
aprisionar o fenômeno teatral, ele é irrepetível. É o exercício de percepção e
atenção que deve ser explorado ao máximo aqui: tudo para poder reviver o
caminho trilhado como se fosse sempre a primeira vez. Não o produto, mas o
processo.
No entanto, somos feitos de automatismos. Não só concernentes
aos músculos, mas às percepções, ideias, concepções e lógicas. O processo de
25

conscientização de nossas couraças23 permite não só localizá-las, como


também achar maneiras de se relacionar positivamente com elas. Entende-se
que é necessário ir além da simples eliminação da couraça para a conquista
de fluência expressiva. Nossa couraça não deve ser eliminada, pois é ela que
nos constitui! Mas ter claro sua existência e maleabilizar sua rigidez permite,
dentro de um processo de formação/criação atoral, uma outra qualidade de
atuação. Essa qualidade estaria voltada para a outra direção onde se
encontram os estereótipos teatrais e da própria vida. A consequência inicial é
a própria redimensão que se tem da noção de corpo e da corporeidade na
cena teatral contemporânea.

[ Nota introdutória ]

As ações a seguir têm como objetivo aprofundar os temas levantados. A


primeira nos fará entrar nos conceitos fundamentais de Reich sobre couraça
(caráter): como ela se forma e como ela nos constitui. Além das primeiras
aproximações com o teatro, a bioenergética de Lowen aparece como a atualização
das práticas de Reich e a relação dela com o homem moderno.
A segunda ação tem como foco os exercícios e os conceitos ligados à
respiração e ao grounding, a partir de Lowen. A bioenergética está ligada ao ato da
experiência pessoal. Fazer os exercícios por ela propostos, seguir as suas ideias, é
aproximar ainda mais a prática teatral de um lugar que visa desestabilizar

23
Pela ótica reichiana não existe couraças e sim a couraça. Coloco nossas couraças aqui como que
ampliando o olhar não só para o indivíduo, mas também as próprias estruturas sociais, acadêmicas,
poéticas, em que estamos inseridos.
26

pressupostos pessoais de teorias relacionados ao corpo e a cultura. Empenho-me


em estreitar o caminho entre a bioenergética e a formação atoral nesse momento.
Stanislavski e Artaud são as pessoas de teatro que auxiliam nesse objetivo. Therese
Bertherat e José Gaiarsa24, pelo campo somático, auxiliam na ampliação desse
pensar a partir do corpo.
Por último, temos a pesquisa de campo e a análise dos personagens da
obra de Fernando Arrabal como crítica ao homem moderno e à sua sociedade. A
obra "O Arquiteto e o Imperador da Assíria" se insere como laboratório para o
exercício da bioenergética no campo das artes.
Em "Últimas palavras: o ator em chamas" encerra o texto, abrindo para
uma reflexão sobre esse ator "bioenergético": um artista que valoriza os impulsos
interiores, as suas emoções, suas energias, seu pulsar. Através do desencadear da
afetividade o ator poderá se permitir iluminar, de doar-se ao ato teatral e,
consequentemente, ao outro. Esse "ator em chamas" seria a imagem da
possibilidade da presentificação da Vida ou o próprio reconhecimento de sua morte,
de sua precariedade.

24
José Angelo Gaiarsa (1920-2010), natural de Santo André, é um psiquiatra brasileiro. Seu trabalho
tem como foco a terapia somática. Seus livros falam sobre o exercícios de propriocepção como
caminho de saúde física e psicológica: o que pra ele não havia distinção. Sua principal influência era
Wilhelm Reich, que foi um psicólogo e cientista cuja ênfase de seus estudos e práticas era o corpo
humano e a energia cósmica orgone.
27

Ação 1 - Corpo-couraça e as potencialidades afetivas do ator


28

"Sabe como é que eu imagino a felicidade? Acho que, quando a gente é feliz, a gente está
junto de alguém que tem a pele muito fina e depois a beijamos nos lábios e tudo se encobre
de uma névoa rósea e o corpo da pessoa se transforma numa multidão de espelhinhos e
quando olhamos para ela somos refletidos milhões de vezes, e passeamos com ela
montados nas zebras e nas panteras em volta de um lago e ela nos puxa por uma corda e
quando olhamos para ela chovem penas de pombos, que, caindo no chão, relincham como
potros jovens e entramos depois num quarto e começamos a passear de mãos dadas pelo
teto... (fala precipitadamente)... e as cabeças se cobrem de serpentes que nos acariciam, e
as serpentes se cobrem de ouriços que nos fazem cócegas e os ouriços se cobrem de ouro,
cheios de presentes, e escaravelhos de ouro..."

Arquiteto em "O arquiteto e o Imperador da Assíria" de Fernando Arrabal


29

O objetivo da "Ação 1" é discorrer sobre o caminho que me levou a essa


imagem que me acompanha para pensar o trabalho atoral: o corpo-couraça. Esse
corpo possui inúmeras camadas, escritas, imagens, afetos, sentimentos, intimações.
Uma espécie de palimpsesto vivo. Acessar essas camadas do corpo-couraça seria
um dos objetivos do trabalho do ator com a bioenergética.
Para isso creio ser fundamental elucidar o conceito de caráter de Wilhelm
Reich, importante para a compreensão subsequente da bioenergética e para a
presente pesquisa: um fenômeno de transgressão e/ou resignificação do corpo, das
ações do artista. Característica que toma a cena teatral contemporânea.
Isso passa por uma necessidade outra que aquela de se construir
partituras cênicas somente a partir de materiais como os textos dramáticos, mas,
principalmente, pela valorização de materiais abstratos e subjetivos como imagens,
sensações e sentimentos.25
A "Ação 1", assim, se configura da seguinte maneira: princípios
norteadores; reflexão sobre caminhos da formação do ator no teatro contemporâneo;
elucidação do conceito de caráter de Reich (sua relação com a psicanálise e as
fases do desenvolvimento sexual); a bioenergética de Lowen e o corpo-couraça.

Princípios básicos para o trabalho atoral em Bioenergética

A primeira versão desses princípios ocorreu no ano de 2013, junto ao


meu diretor da época, o Prof. Dr. Adriano Moraes. Aqui, ela foi atualizada de acordo
com o avançar de minha pesquisa dentro da bioenergética. Trago esta lista como
necessidade de me vincular ao meu passado, ao meu corpo, às minhas
experiências. O objetivo desses princípios é direcionar a criação cênica no âmbito de
uma pesquisa teatral - seja ela individual ou coletiva. Acredito que ela seja
importante, pois nos aproxima da sala de trabalho, do estar disponível, e da vontade
de estar em ação, em criação. Que essas imagens não nos abandone no decorrer
do texto. Afinal, é a apresentação, o encontro com os espectadores nosso objetivo
maior.
São eles:

25
Sugiro como leitura sobre o tema: ASLAN, Odette. O ator no século XX: Evolução da
técnica/problema da ética. São Paulo: Perspectiva, 1994, e: ROUBINE, Jean-Jacques. A arte do
ator. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
30

1º - Vestir uma roupa confortável para o trabalho, que seja um


contraponto às peças utilizadas no cotidiano, talvez muito justas, de tecidos mais
estruturados, com zíperes ou botões. Deve-se utilizar o mínimo de roupa,
dependendo da situação climática ou de outros objetivos específicos.
2º - É livre a utilização de objetos, adereços e figurinos que venham a
contribuir para a pesquisa.
3º - Despertar o corpo de uma noite bem dormida. Como você gosta de
despertar depois de uma boa noite de sono?
4º - O alongamento e o aquecimento devem ter o ritmo da vida:
MOVIMENTO PLASMÁTICO26, conforme proposto pela bioenergética.
5º - Todo deslocamento deve almejar a precisão, inclusive nos momentos
nos quais os movimentos operem com relações imprevisíveis.
6º - Os exercícios devem ser feitos com a alteração de energia, de fluxo,
de peso, de direção, exercitando o espectro de possibilidades entre as dimensões
polares: forte/fraco, rápido/lento, angústia/prazer, tensão/relaxamento, nível
baixo/nível alto, reta/curva, entre outros.
7º - Não resistir.
8º - Não estancar/impedir a respiração no processo de criação. Deixá-la
fluir. Prender a expiração é prender energia, emoções. Exalar e não segurar! Verbos
que auxiliam nessa imagem: deixar escapar, soltar, liberar, permitir, manifestar,
dançar, ressoar, dissolver etc.
9º - O grounding deve ser trabalhado como necessidade de afirmação e
exploração energética. O ator é aquele que faz. Ele deve estar seguro e disposto
para ação - estou em pé, aqui no chão que me sustenta.
10º - As proposições feitas pelo diretor ou pelo colega de trabalho devem
ser experimentadas e, depois, avaliadas em grupo. Atitude de acolhimento e
exploração.
11º - Eleger aspectos técnicos para serem experimentados e executados
em cada dia ou período do treinamento – especificar focos e objetivos.

26
O movimento plasmático é a antítese principal da vida vegetativa. Ela existe em todos os seres
vivos: desde os mais simples, como as amebas, até os mais complexos como o homem (do nível
celular até o organismo como um todo). A antítese é formada pelo acúmulo e dispêndio de energia.
Em Reich (1975) essa função biológica compreende tanto ao campo psíquico como ao somático. O
ritmo da vida aqui tem a seguinte antítese: prazer (expansão) e angústia (contração). É o fluxo
contínuo entre esses extremos que deve ser buscado.
31

12º - Descrever e analisar os exercícios feitos com os seus respectivos


objetivos e execuções.
13o - Lançar-se na criação de forma viva, íntegra, com a escuta desperta
e o coração pulsante.
14º- Escrever um relato para cada dia de trabalho.

Diretrizes artísticas

Ao educar o ator, Stanislavski não apenas provia-o de uma técnica profissional,


mas ajudava-o a desenvolver-se espiritualmente de muitas maneiras, mostrando como
poderia colocar sua arte a serviço da sociedade.
Vassíli Toporkov

No campo do teatro, o ator deve ordenar elementos e estruturá-los de


acordo com a poética que se modula em seu processo de criação. Para isso, é
necessário ao ator entender e manter a continuidade no estudo dos elementos que
constituem a linguagem teatral. Esse processo individual ou coletivo não faz parte
daquilo a que o espectador tem acesso. Faz parte do lado não visto desse ofício, ou
digamos, a parte submersa do iceberg.
Esse lado exige que o ator se mantenha sempre em estudo. Em contato
consigo, com o seu corpo, sua voz, com a sua cultura, com a própria linguagem
teatral. Essas divisões não são meramente pedagógicas, elas constituem as várias
faces do ator. Manter esse desenvolvimento, esse estudo artístico diário e esse
comprometimento com a arte é fundamental. Por isso iniciamos com a lista de
princípios, para que sigam presentes na mente do leitor dando vida aos conceitos e
discussões que encaminharemos.
Esses princípios foram e são desenvolvidos tendo em mente uma
abertura onde todos possam aprender e fazer teatro. Assim como a aprendizagem
de uma língua estrangeira, é pelo contato com a 'gramática' teatral que se aprende o
fazer teatral. É na relação com os elementos dessa linguagem que exercitamos
maior amplitude expressiva e nos tornamos capazes de perceber que a nossa voz e
os nossos movimentos, em geral, se mantêm na frequência das comunicações
cotidianas, podendo ser também investigados em outras extensões. Como diz
Stanislavski no livro "A preparação do ator" (1979):
32

O motivo é fácil de descobrir: a vida no palco é mostrada dentro de


um ângulo reduzido, como na lente de uma câmera. As pessoas
olham-na de binóculos, como quem examina uma miniatura com uma
lente de aumento. Por isso nenhum detalhe escapa ao público, nem
o mais ínfimo. Esses braços tesos podem ser meio suportáveis na
vida real, mas em cena são simplesmente intoleráveis. Fazem o
corpo humano parecer de pau, semelhante a um manequim. Resulta
a impressão de que, provavelmente, a alma do ator é tão
empertigada quanto os seus braços. Se acrescentarmos a isto umas
costas inflexíveis, que só se dobram pela cintura e em ângulos retos,
teremos o retrato de uma bengala. Que emoções poderia essa
bengala refletir? (STANISLAVSKI, 1979, p.133)

Estou aqui falando a partir do reconhecimento da elasticidade qualitativa


da linguagem teatral. O corpo por si só já é expressivo, mas entra-se aqui na
normatividade de uma outra necessidade expressiva do corpo, de modo a oferecer
abrangência à natureza cênica. Ressalto essa necessidade de um estudo
expressivo versátil, mesmo sabendo que é grande o número de diretores e grupos
teatrais que hoje em dia convidam não-atores para estarem em cena, para se
apresentarem. A expressividade cotidiana e a presença em si dessas pessoas são,
podemos dizer, o atrativo buscado na construção de algumas poéticas cênicas. Por
isso podemos afirmar que a linguagem teatral não prescreve padrões de jeitos
certos ou errados de fazer teatro.
Outro exemplo possível que contrasta ou traz diversidade ao que aqui vou
defender seria a construção da obra "4'33"" de John Cage, em que os músicos ficam
quatro minutos e trinta e três segundos em silêncio, sem tocar os instrumentos. O
interessante aqui é pensar que são pessoas que sabem tocar os instrumentos, mas
que seguem uma partitura na qual só há menção ao silêncio. Isso é diferente de não
saber tocar um oboé, por exemplo, e ficar o mesmo tempo sem tocar. É neste
sentido que me enveredo no estudo da linguagem teatral, embora saiba que na cena
contemporânea há caminhos inversos ou plurais também possíveis. Embora o
processo de criação seja sempre livre, as diretrizes de meu trabalho aqui
apresentam um direcionamento mais formativo: um crescimento dentro da
linguagem teatral. Um conhecimento que passa pelo entendimento do ser humano
33

como um todo orgânico integrado, sem a normativa clássica que separa o corpo e a
mente27.
Encaro as manifestações físicas e psíquicas como expressão da energia
vital do ser humano: a capacidade artística entrelaçaria essas e outras
manifestações, criando diálogos, imagens simbólicas, expressões próprias e novas
concepções artísticas. Aproximo-me, então, da escola de Stanislavski, na qual o ator
deve trabalhar sua flexibilidade na potencialidade de deslocamento para realizar o
outro (personagem, tipo, figura, etc). O ator se coloca no lugar do outro para
encontrar em si a ação artística adequada. A dimensão de possibilidades, nesse
meu ver, é pessoal. Não há uma referência objetiva de leitura ou código de
linguagem, como nas escolas gramaticais do ballet, no Mimo Corporal, no teatro Nô
etc. Os princípios que enumerei no começo dessa Ação são uma das possibilidades
de aproximação com essa escola de pensamento stanislavskiano: o ator como
sujeito de pesquisa de si mesmo.
Deve-se levar em conta as mudanças nos trabalhos corporais no início do
século do XX, tanto na dança como no teatro. O corpo foi tomando aos poucos um
poder de significação, de comunicação, abrindo espaço para receber teor de
fascínio: nenhuma outra arte possui o corpo como ocupação central de seu evento
como as artes da cena – o teatro, a dança e a performance. O espectador está
diante de um artista que trabalha seu corpo, suas possibilidades, além das próprias
"figuras" da obra artística: "é estreita a via pela qual o teatro pode valorizar o corpo,
entre a significação destituída de sensualidade e uma corporeidade como signo"
(LEHMANN, 2007, p. 334). Não no sentido da exibição do corpo por si, mas -
influenciado pelos campos da psicologia, da antropologia, de semiótica, das
somáticas - o corpo passou a ser um lugar de registro de memórias, construção de
nexos, vivência de sentidos e significados. Como mencionado na abertura, a
supremacia do texto dramático e da representação começa a entrar em crise28.

27
Aconselho a leitura do livro de Christine Greiner "O corpo: pistas para estudos indisciplinares"
(2005) que possibilita um panorama dos estudos sobre o corpo. O seu livro toca em temas como:
estética, política do corpo e experiências artísticas.
28
Cornago (2016) evidencia essa cena do século XX em que a representação entra em crise e a
ação ganha o protagonismo. Os exemplos desse caminho vão desde os Simbolistas, evocando em
suas peças objetos e coisas em vez de personagens reais, passa pelo teatro de Meyerhold, que
exige um "movimento" do espectador para completar a ação da cena, e chega até mesmo a textos
dramáticos como "Fim de Partida" de Samuel Beckett em que um dos personagens fala: "Corremos o
risco de estar representando algo?" Como já dito antes, a representação no teatro é problematizada e
a ação toma lugar de destaque.
34

É ao longo do século XX que a corporeidade do ator ganha ênfase na


cena como campo de testagem de novas inquietações e produção de dizeres, não
somente como aparição de uma figura dramática, mas como limite da
representação.

A consequência imediata da igualdade de direitos dos dois aspectos


de significação do corpo teatral - personagem incorporado e
graciosidade livre de sentido do corpo incorporador - é que,
teoricamente, o segundo reivindica validade própria por si só, de
modo que a graciosidade também possa existir no teatro sem a
incorporação de sentido. A superação do corpo semântico
proporciona novas forças ao teatro moderno e ao teatro pós-
dramático. (LEHMANN, 2007, p.334)

A alternância ou não dessas possibilidades de teatro, representacional e


“apresentacional”29, revela uma das facetas determinantes do teatro contemporâneo.
Elas se vinculam, ao meu ver, com a formação dos atores também. Já que é
necessário se pensar que a cena teatral contemporânea implica na criação de
diálogos entre diferentes campos de conhecimento. Não só para se aproximar de
nossa contemporaneidade como rever as próprias tradições artísticas e culturais que
estamos inseridos:

Inicialmente, é preciso reconhecer que, mesmo nos métodos de ator


mais consolidados, sempre existiu espaço para o questionamento
das técnicas como mero processo de adestramento de uma
linguagem. Todos os grandes artistas pedagogos do século XX
(Stanislavski, Meyerhold, Brecht, Grotowski, etc.) entendiam a
formação do artista do palco como um caminho que implica
transformações mais amplas do sujeito, envolvendo a dimensão
ética, política, existencial, corporal ou mesmo espiritual. (QUILICI,
2015, p. 174)

Minha formação está relacionada ao estudo das poéticas de Stanislavski e


Grotowski. Durante muito tempo realizei treinamento físico de ator tendo duas
premissas básicas: o trabalho sobre si mesmo de Stanislavski e a noção de via

29
Se analisarmos a história recente do teatro, perceberemos uma nova maneira de transgredir e/ou
ressignificar o corpo em cena. O representacional estaria ligado à representação dramática do ator e
o “apresentacional” enfatiza a ação do ator em primeiro lugar. "Neste sentido, é frequente que
performers elejam a atitude teatral convencional como uma espécie de inimigo, um obstáculo a ser
superado. A ação performática seria distinta e até oposta à atuação teatral porque não se construiria
como representação: não simula, não "está no lugar de" outra coisa, mas é capaz de produzir um
acontecimento singular, sem um referente preciso" (QUILICI, 2015, p.107-108).
35

negativa de Grotowski. Naquele momento que percebi que a entrega do ator para os
exercícios se relacionavam com a entrega da ação feita na cena teatral. O que quero
afirmar aqui é que estas práticas iniciais que tive, me fizeram relacionar sempre o
treinamento com a cena teatral de forma orgânica.
Pautado nesse alicerce, minha busca por tentar ultrapassar as tensões
musculares e as “resistências do organismo”, com o objetivo de conhecer/acessar o
corpo e atingir o sujeito criador em sua abrangência e integridade, fez com que me
deparasse com meus próprios limites físicos para o trabalho cênico. No processo de
autodescoberta, algumas vezes ultrapassei meus limites corporais ao ponto de me
machucar, o que, ao invés de me potencializar, afastou-me da prática artística por
um curto período. Apesar de naquele momento acreditar na necessidade de romper
algumas resistências físicas do corpo visando o encontro de uma expressão mais
ampla e versátil, percebi que em meu treinamento não estava respeitando meu
organismo e acabei por me questionar sobre os exercícios que fazia, sobre qual era
o meu ideal de corpo para a cena.
Orientado na época pelo prof. Oliveira entrei em contato com os textos de
Therese Bertherat (1931-2014). Foi com Bertherat que iniciei os meus estudos
somáticos e passei a compreender o corpo e a mente como algo uno; predispus-me
a rever minhas experiências como local de construção de conhecimento. Nos
momentos em que me machuquei foi justamente porque o modelo ideal de corpo ou
aquilo que eu imaginava ser a forma "certa" de atuar (que hoje associo a uma noção
pré-concebida de corpo, provinda de uma dimensão externa), se apresentava para
mim como principal preocupação.
O que passou a me guiar para pensar a preparação do ator, no seu
processo de relaxamento e flexibilização, foi o conceito de via negativa de
Grotowski:

Não educamos um ator, em nosso teatro, ensinando-lhe alguma


coisa: tentamos eliminar a resistência de seu organismo a este
processo psíquico. O resultado é a eliminação do lapso de tempo
entre o impulso interior e a reação exterior, de modo que o impulso
se torna já uma reação exterior. Impulso e ação são concomitantes: o
corpo se desvanece , queima, e o espectador assiste a uma série de
impulsos visíveis. Nosso caminho é uma via negativa, não uma
coleção de técnicas, e sim erradicação de bloqueios (GROTOWSKI,
1987, p.14).
36

No transcorrer da pesquisa, paralelamente a noção da via negativa de


Grotowski, tornava-se mais basilar para mim realizar um trabalho para lidar com as
tensões musculares, que com o estudo de Bertherat, me levou a uma nova maneira
de interpretar os escritos de Stanislavski e do próprio Grotowski.
O que a via negativa propõe sobre impulso e ação agindo
concomitantemente se tornou um dos meus núcleos de sentido para se pensar a
preparação de atores. No decorrer do estudo dos escritos de Bertherat percebi que
sua principal referência eram os postulados da bioenergética de Alexander Lowen
(1910-2008). E tanto as práticas de Bertherat como Lowen derivam dos escritos de
Wilhelm Reich (1897-1957). Foi a aproximação com os textos de Lowen e de Reich
que percebi que poderia realizar um outro caminho para a via negativa.
Ao deparar-me pela primeira vez com os escritos de Wilhelm Reich, fui
tomado por uma necessidade de compreensão do ritmo e do fluxo que minha vida
artística tomava. Foi um encontro inicial com a minha singularidade. Aquele
momento mostrou-se importante para o enfrentamento com os meus mitos teatrais,
formados principalmente por ideias e concepções de uma maneira “certa” de fazer
teatro, de atuar, de não tratar o corpo como um objeto a ser moldado e assim ser
uma outra pessoa ou ator etc. Dessa maneira, fui fazendo relações, tessituras,
diálogos entre o que Reich falava e entre aquilo que eu buscava no teatro e no
trabalho atoral, o que certamente ampliou minha percepção para o ofício do ator.
No início, eu não tinha certeza sobre as correlações que fazia, mas, aos
poucos, fui ligando pontos – o que ainda continuo a fazer. Eu era afetado pelos
escritos de Reich, mas parecia haver ali algo de mim. Surgia o reflexo de um
encontro com alguém que compartilhava de algumas sensações minhas, mas que
me ensinava e me indicava caminhos dos quais até hoje tento compreender.
É por esse motivo que minha aposta concentra-se na bioenergética como
possibilidade de trabalho atoral, não vinculando a uma estética específica do teatro,
mas abrindo uma nova forma de se relacionar com o mundo e de se expressar
artisticamente. Algo que se vincula a um desabrochar das potencialidades afetivas
do ator.
Portanto, mergulhando agora na temática central dessa ação, Alexander
Lowen (1910-2008), estadunidense, foi estudante de Wilhelm Reich entre as
décadas de 1940 e 1950 e desenvolveu a análise bioenergética: prática terapêutica
que visa à saúde emocional da pessoa. O propósito da bioenergética é curar a cisão
37

mente-corpo (LOWEN, 2010)30. Lowen compara a bioenergética a práticas corporais


orientais, em especial a ioga, por ter como ênfase a respiração. Contudo, essas
duas escolas de pensamento voltam-se para direções opostas: a ioga enfatiza o
interno, em busca de um processo de desenvolvimento espiritual e a terapia
reichiana o diálogo com o fora, tendo como fim a criatividade e o prazer. Lowen
acredita que a bioenergética, nascida no ocidente e pensada nos problemas do
homem moderno e ocidental, seria uma prática para a reconciliação desses dois
caminhos (LOWEN, 1982, p.62).
Porém, para desenvolvermos o pensamento da bioenergética torna-se
necessário explicar o conceito de caráter de Wilhelm Reich, pois é este caráter que
ela flexibiliza, permitindo a fluência dos impulsos e a circulação da energia vital. Na
sensibilidade, no exercício de autoconhecimento e expressão podemos encontrar
uma base criativa para o ator. Podemos acessar e dar voz a suas potencialidades
reprimidas ou adormecidas.

Wilhelm Reich e a análise de caráter

Reich morreu em 1957 em uma prisão nos Estados Unidos, assassinado


pelas forças reacionárias da época. Tentaram silenciar suas obras e suas ideias
mandando queimar seus livros e seus registros de laboratório através de ordem
jurídica do governo norte-americano. Foi chamado de comunista e expulso de
partidos comunistas, foi também perseguido pelos nazistas, por policiais de outros
países e chamado de charlatão, louco e pornográfico31, tendo sofrido exílio mais de
uma vez. De composição eclética e revolucionária, a vida de Reich foi uma diáspora.
Entremeado a isso, Reich foi um pesquisador desenfreado, inquieto, curioso,
meticuloso, científico, defensor da vida. Sua obra não possui limites para os campos

30
Aqui, as palavras "terapêuticas" como "cura" podem causar não só um estranhamento como um
desvio ao foco desse trabalho. Todavia, estou dialogando com o campo da psicologia, a literatura é
diferente da teatral. Buscarei com todo o esforço falas de Reich, Lowen ou de qualquer outro
psicólogo, que se aproximem não só do nosso trabalho, como possibilite uma melhor compreensão
de seus enunciados, sem querer desmerecer de forma alguma o rico atravessamento terapêutico
presente nas artes.
31
Destaco, para se ter uma ideia das polêmicas e atitudes de Reich, o seu projeto social SEXPOL
(1929-1934): "O movimento Sexpol é uma importante organização que para além da difusão de
higiene sexual (métodos anticoncepcionais, aborto livre, etc...) empreendeu reivindicações mais
gerais como o direito ao alojamento e à crítica da moral burguesa, dos valores tradicionais do
casamento e da virgindade. Reich marca aqui a ruptura com a prática política dos partidos
tradicionais" (RODRIGUES, 1981, p.15). Apesar da adesão de militantes e operários da época, as
ações de Reich não eram bem vistas pela igreja e pelo governo.
38

do saber: psicanálise, biologia, sociologia e, no final de sua vida, astrologia. Thomas


Hanna32 (1976), ao falar de Wilhelm Reich, se dirige a ele como um dos últimos
cientistas universais.
Concentro-me em sua produção em psicologia, na qual o conceito de
caráter é importante para entendermos o que quero dizer sobre couraça e o caminho
para o fluxo de energia e criação. Em 1929, Reich lança o livro "Análise de
Caráter"33, cujo foco estava na investigação clínica sobre como os processos
psíquicos estavam interligados aos processos corporais. Reich havia mudado a
forma de se relacionar com o paciente: ele o olhava de frente. Ao contrário do divã
freudiano onde o paciente deitava e ficava falando para "ninguém", sem o contato
visual com o terapeuta - este ficava sentado atrás do divã-, Reich instaura o olhar no
outro e o deixar ser visto.
É importante contextualizar o momento histórico em que Reich e o campo
da psicanálise se encontravam. No princípio da psicanálise, não era tão clara a
importância da leitura/interpretação da expressão corporal dos pacientes. Para
Reich, “psique” e “soma” eram uma coisa só. A partir de uma leitura corporal, seria
possível perceber o que a pessoa estaria sentindo/vivendo. Isso importava muito
mais para Reich do que o dito pelo paciente nas sessões. Embora a técnica de "livre
associação"34 fosse na época uma regra básica da psicanálise, Reich encontrava
dificuldades clínicas com ela. Alguns pacientes "resistiam" a esse tipo de prática e
não avançavam no tratamento. Procurando, então, uma maneira de lidar com essas
resistências, Reich viria a desenvolver uma técnica de análise: a teoria da análise do
caráter.
A formação do caráter está vinculada às diferentes fases do
desenvolvimento libidinal e às experiências vividas pela pessoa (na visão de Reich,
os traumas), por isso, ele usou a teoria da libido de Freud como base para seus

32
Thomas Hanna (1928-1990) foi um filósofo norte-americano. Além de ter sido uma das primeiras
pessoas a falar sobre educação somática, ele passou a sua vida pesquisando autores e práticas que
possibilitassem aos seres humanos serem livers fisicamente e intelectualmente. Sua principal obra,
utilizada aqui nesse trabalho, se chama: "Corpo em Revolta: a evolução-revolução do homem no
século XX em direção a Cultura Somática do século XXI" (1976).
33
Com o passar dos anos, Reich foi revendo a sua própria obra. Isso resultou na transformação de
concepções de vários conceitos deles. A última revisão e atualização de Wilhlem Reich da obra
"Análise do Caráter" data de 1948.
34
Método de terapia inventado por Sigmund Freud. Em seu início, tinha o objetivo de ser usado no
lugar de outras técnicas usadas na época, principalmente o hipnotismo. O método de livre associação
permite que aquilo que vem à mente seja dito, havendo liberdade para se fazer as associações que
surgirem. Com essa prática, Freud, a partir da interpretação dos sonhos, poderia acessar o
inconsciente de seus pacientes.
39

estudos. Não tenho formação em psicanálise ou condição de me aprofundar em


algum de seus termos. Contudo, encaro o risco de tentar explicar os caminhos de
Reich vinculados a alguns conceitos da psicologia. Considero importante que
tenhamos noções básicas para entendermos o que Reich fala sobre caráter e
couraça. A teoria da libido é fundamental para essa compreensão. Uso do texto
"Ritmo e conexões: dançando com Reich, Deleuze e Guattari " (2003) de Lorene
Soares35, para nos aproximarmos dessas teorias e conceitos:

A libido sempre teve em Freud a conotação de uma energia sexual,


ou seja, sempre esteve ligada às pulsões sexuais. E como energia,
buscando um fluxo, um caminho de resolução. Freud define a pulsão
como um fluxo contínuo; é uma força constante interna ao
organismo, da qual não se pode escapar. Reich segue esse mesmo
caminho. Há de se levar em conta que o conceito de pulsão na
psicanálise passa por muitas fases e é desenvolvido em vários
momentos, sendo mesmo um conceito difícil de ser apreendido no
todo da obra psicanalítica. (SOARES, 2003, p.20)

As fases do desenvolvimento psicossexual, para a psicanálise, seriam


quatro: oral, anal, fálica e genital. O desenvolvimento estaria ligado ao jogo de maior
ou menor gratificação dos impulsos em cada uma dessas fases. Há, assim, um jogo
relacional entre o sujeito e o objeto. Exemplo simples é o do bebê que chora
querendo atenção. Se a atenção não lhe for dada, poderá criar-se um estado de
tristeza, de abandono no bebê, mas se ele obtém atenção todo o momento, tenderá
talvez ao não desenvolvimento de sua independência.
Para Reich, as origens das dificuldades no nosso desenvolvimento estão
relacionadas às primeiras repressões culturais que sofremos: as figuras do pai e da
mãe seriam seus primeiros representantes. Enquanto que, para Freud, o complexo
de Édipo36 estrutura o nosso psiquismo, para Reich isso vai além: ele tem papel na
estruturação de nosso desejo (SOARES, 2003).

35
É importante ressaltar que o diálogo entre campos de saberes é algo que se tornou mais possível e
acessível em nossos dias do que na época de Wilhelm Reich. Um exemplo é a própria Lorene Soares
que é uma psicóloga brasileira que trabalha com análise bioenergética e dança tango. Sua obra traça
diálogos e conexões entre esses campos de maneira muito enriquecedora ao ponto de ter se tornado
uma de minhas referências nesse trabalho. A diferença aqui é que sua formação é de psicologia e a
minha em teatro. Esses diferentes pontos de partida são interessantes de serem notados nas escritas
que fazemos. O que ressalto é a riqueza da transdisciplinaridade de nossos tempos. Darei mais
exemplos ao longo do texto.
36
Transcrevo aqui uma explicação de Lowen, no livro "Medo da Vida" (1986) sobre o Complexo de
Édipo. Acredito que ela seja clara e resumida: "Freud foi atraído para a história do Édipo [mitologia
grega] porque acreditava que os dois crimes deste personagem, matar o pai e casar-se com a mãe,
40

Outra diferença entre Freud e Reich é que o segundo vê a repressão da


libido como algo cultural: os pais não sabem lidar com o desenvolvimento
psicossexual de seus filhos, isso é cultural. Para a "sociedade", as primeiras fases
do desenvolvimento não são vistas como sexuais, por isso o problema vem à tona
na fase fálica quando o prazer está voltado para os genitais. Neste momento, a
repressão sexual inicia-se de maneira mais evidente. Então, a sua energia e seu
impulso, que buscam um fluxo, um caminho para uma resolução, acabam
encontrando uma repressão. Esse conflito produz mecanismos de defesa, de
caráter37.
A partir dos escritos de Reich, podemos concluir que a base da formação
do caráter da pessoa se encontra na forma como esta lida com a resolução das
situações que enfrenta. As neuroses teriam três fatores em sua etiologia:
- frustração: o desejo ligado a um fator externo (há um objeto de desejo e
uma forma de gratificação);
- fixação da libido que busca um caminho de escoamento: esta se refere a
um desejo de fator interno (ocorre em qualquer fase do desenvolvimento libidinal).
Fixação de um trauma por não ter sido completamente superado (SOARES, 2003,
p.25).
- tendência do conflito entre as forças do ego e a energia libidinal.
A forma como o sujeito encontra a resolução para essas situações está
predominante na base da formação de seu caráter. A imagem da couraça, do
encouraçamento, surge por causa desta restrição psíquica e orgânica que se forma
no homem: uma espécie de armadura. O homem em estado de defesa, rígido e sem
respiração, é um homem encouraçado, no qual os fluxos vitais não são
espontâneos. Esses mecanismos de defesa são respostas somáticas que o
organismo dá, por isso Reich observou que a forma como o sujeito senta, respira,
fala, cruza as pernas, usa ou não as mãos para falar, a maneira como direciona seu

coincidem com os "dois desejos primais das crianças que, insuficientemente reprimidos ou então
realimentados, formam, talvez, o núcleo de toda psiconeurose". Esse núcleo tornou-se conhecido
como complexo de Édipo. Anteriormente, Freud tinha escrito "Pode ser que estejamos todos fadados
a dirigir nossos primeiros impulsos sexuais para nossas mães e nossos primeiros impulsos de ódio e
violência contra nossos pais; nossos sonhos convencem-nos de que isso é verdade." (LOWEN, 1986,
p.12-13)
37
Quero ressaltar aqui que na literatura de Reich é possível encontrar os tipos de caráter para cada
fase do desenvolvimento. Não é o intuito de meu trabalho detalhar esses por menores, mas sugiro
como leitura o próprio livro sobre análise de caráter já mencionado anteriormente.
41

olhar, etc. são indicativos de como a pessoa é: de suas experiências vividas, a


maneira como se relaciona com o presente e o que projeta para o futuro.

38
Figura 1 - Diagrama da unidade energética do corpo a partir de Reich (LOWEN, 1982, p.124).

Outro aspecto deste problema é o custo em termos de energia dispendida


no desempenho de papéis ou na manutenção de uma imagem pessoal. A energia
exigida para sustentar um papel ou um disfarce é alta, por isso pouco resta para o
prazer e para a criatividade. Um exemplo é o menino que, para ser aceito por seu
pai, veste desde criança a imagem do "homem forte que não chora". Quanto maior a
negação do pai, maior é o esforço da criança para se manter assim. Com o passar
dos anos, essa postura acaba se tornando "natural", no entanto, a energia gasta
para se manter assim é enorme. Infelizmente, a maioria das pessoas não sente o
esforço ou a carga energética do papel que desempenham (LOWEN, 1986, p.76).
Esse esforço torna-se um hábito construído. Nessa fala de Alexander Lowen,
discípulo de Reich e criador da análise bioenergética, evidencia-se como nós
podemos ficar arraigados às nossas máscaras, aos papéis que desempenhamos no
dia a dia.
Entendemos até aqui como a couraça se forma, mas o que ela defende?
A resposta é o ego39. A couraça é formada em torno daquele que tenta proteger-se

38
Os processos biológicos são vistos na bioenergética tanto pelas suas antíteses como por sua
unidade. O caráter, a couraça, seria a interrupção desse fluxo de energia, visto como um todo. Esse
diagrama serve apenas como uma ilustração do impulso sexual.
39
"O ego é o processo psíquico encarregado da realidade e cuja função é satisfazer as necessidades
do organismo de qualquer forma que pareça melhor naquele meio ambiente específico. Funciona
42

das pulsões sexuais. Quando os mecanismos que o ego produz surtem bons efeitos,
eles "defendem" ou acham uma "boa" resolução para estes impulsos, produzindo o
enrijecimento. O medo de causar angústia semelhante em outras situações provoca
a reação de repetição de comportamentos diante de situações mesmo que
diferentes do trauma inicial.
Por causa dessas situações, do meio em que se encontra, o homem
acaba por fazer um investimento energético em seus mecanismos de defesa, não
para obter prazer, mas uma "segurança" diante das situações em que se encontra.
Muitas dessas condições, para Reich, são oriundas da ordem social e da maneira
como a estrutura econômica atua na vida das pessoas.
Os pais ou as pessoas responsáveis pela educação seriam os principais
responsáveis pela formação do caráter por "apresentarem" à criança a maneira em
que a educação da sociedade é baseada. No caso de nossa sociedade: uma
educação, em geral, repressora e autoritária. Isso acontece porque executam o
conjunto de normativas que a sociedade aprova. Esses mandamentos estão
atrelados à própria couraça: não só dos educadores, mas da própria sociedade.

Os fluxos vitais espontâneos se detêm diante da rigidez da couraça.


[Reich] Observou que assim como há um enrijecimento no
psiquismo, também lhe corresponde um enrijecimento no corpo. Ou
seja, as tensões que objetivam defender o corpo das vicissitudes da
vida, se cronificam. E, assim, o corpo não perde a estrutura
defensiva, mesmo que não esteja ameaçado. As tensões crônicas
enrijecem o corpo que, da mesma forma está defendido de ser
atacado, também está defendido de receber sensações prazerosas.
A couraça limita a mobilidade e diminui a amplitude das sensações.
Tende a respostas automáticas e percepção reduzida. (SOARES,
2003, p. 28)

Reich não trabalhava na dissolução da couraça. Muito pelo contrário: a


couraça nos forma, somos essa formulação estrutural/emocional. Sem couraça não
teríamos retenção de energia e nem estrutura psíquica para suportar o contato e
trocas com o mundo. Desenvolveríamos provavelmente problemas de saúde bem
sérios. O objetivo então se concentra em tomar consciência da couraça e assim

também para perceber e avaliar o self (si mesmo). Sofre pressões tanto do meio quanto dos métodos
de condicionamento educativos. Estas restrições poderão ser vantajosas e necessárias do ponto de
vista da sobrevivência ou então mutiladoras, se relacionadas a medos neuróticos. [...] O
funcionamento do ego depende em grande extensão, contudo, da capacidade do organismo de
funcionar como um todo, ou seja, depende do grau do e do tipo de couraça." (BAKER, 1980, p.52)
43

investir em torná-la mais flexível. Reich observou em seus estudos de laboratório


que todos os organismos vivos, dos mais simples até os mais complexos, realizam
movimento de contração e expansão. Este movimento está ligado à sensação de
prazer (expansão) e de desprazer (contração): movimento plasmático.
O movimento plasmático é fluído. O processo de respiração é um
exemplo: na exalação o corpo se expande, e na inalação ele se contrai. No primeiro
movimento

[...] o sistema nervoso parassimpático opera na direção da expansão


"para fora do eu, em direção ao mundo", do prazer e da alegria; ao
contrário, o sistema nervoso simpático opera na direção da contração
"para longe do mundo, para dentro do eu", da tristeza e do
desprazer. O processo vital consiste em uma contínua alternância
entre expansão e contração. (REICH, 1975, p.245-246)

Nesses termos, quanto mais contraída, rígida e encouraçada for a


pessoa, mais neurótica ela é. Quanto mais flexível e expansiva a pessoa for, mais
contato com a realidade ela terá, mais fluidos serão seus movimentos. A dinâmica
da vida faz com que vivenciemos todas as possibilidades que existem entre esses
dois polos. De um modo que não há uma pessoa totalmente expansiva ou contraída.
É possível, nesses termos, trabalhar sobre aquilo que vai do movimento automático
para o deliberado, apreender em certa medida sobre nossos esquemas motores,
aperfeiçoar as nossas estruturas e se preparar para as exigências ou possibilidades
do aqui-agora. Como falava o brasileiro e reichiano José Gaiarsa:

"Trabalhar com a couraça" é isso. É trabalhar com os


comportamentos emocionais. É responder à pergunta: COMO se
move o corpo, que figura, estátua ou dança ele dança, posa ou SE
desenha, quando EMOCIONADO (literalmente, movido, impelido,
movimentado) ou CO-MOVIDO (movendo-se JUNTO - com o afeto,
com o outro, com o momento)? COMO a fluência viva, ou a parada
dura - ou a parada morta? COMO é o desenho, qual a figura que a
vida compõe agora, na sua dança que não se repete? Cada
sequência automática (cada comportamento), congrega em torno de
si um número cada vez maior de estímulos condicionados - como os
caracteres chineses (como a origem da palavra "pedra"). Vão
surgindo assim constelações significativas de palavras, de cenas, de
objetos e personagens - todos centrados na resposta - no
comportamento que responde às circunstâncias. (GAIARSA, 1984,
p.21-22)40

40
Os grifos são do autor citado.
44

Gaiarsa, além de ser brasileiro, é mais humorado que Reich. Os textos de


Reich são muitas vezes extremamente científicos e meticulosos, e durante esses
últimos meses, o encontro com os textos de Gaiarsa fez-me sentir o que seria uma
escrita mais solta, mais “rebolada”, mais orgástica sobre o mesmo assunto: sua
escrita insinua malícia dentro das frases, aparenta um jeito gostoso de levar a vida e
instiga abertura para aprender com ela. Em sua fala, percebemos que o caráter, ao
mesmo tempo em que nos dá uma identidade, permite que o outro nos reconheça.
No entanto, é justamente a capacidade de mudar, de dançar, que permite que nos
"estruturemos" de outra maneira, que nos apresentemos com outro papel: estamos
fazendo teatro nesse raciocínio.
Somos seres curiosos, o que está ao redor desperta-nos interesse. E é a
partir desse lugar que nos dirigimos a qualquer elemento externo a nós, que, à
primeira vista, possa parecer que não nos pertence. Há um dado humano, aqui, a se
pensar: não somos seres fixos, parados, estáticos, monótonos. Somos atraídos por
uma pessoa, por uma música, um lugar, um livro, um objeto, etc. Queremos criar
relações com esses elementos: tocar, sentir o cheiro, brincar com, experimentar
ações, fazer de conta. Criamos, com isso, possibilidades, alternativas. A liberdade
de criação se instala como lugar de possibilidades, como espaço livre para a
curiosidade, para a experimentação, para o erro e equívocos, e são essas surpresas
e peripécias que causam brechas e rupturas no nosso automatismo. Temos certa
naturalidade ou inclinação a enquadrar e fixar nossas "certezas". Novamente: elas
são importantes, mas no ato criativo elas podem nos sabotar. No trabalho de
preparação e de criação, o objetivo é justamente o contrário: sabotar o que é fixo,
automático, esperado, padronizado, esquematizado. E isso vale até para
procedimentos teatrais. Stanislavski falou isso para dois atores norte-americanos
que foram acompanhar alguns de seus ensaios:

Vocês estão aqui para observar e não para copiar. Os artistas têm de
aprender a pensar e sentir por si mesmos e a descobrir novas
formas. Nunca devem contentar-se com o que um outro já fez. [...]
Vocês dois podem ficar sentados aí nessas cadeiras assistindo ao
nosso ensaio. Talvez encontrem nele algumas coisas aplicáveis à
sua maneira de pensar. Se alguma coisa excitá-los, usem-na,
apliquem-na a vocês mesmos, mas adaptando-a. Não tentem copiá-
la. Deixem que ela os faça pensar e ir avante. (STANISLAVSKI,
2010, p.17)
45

Quando a energia retida pelo caráter é muita, ela funciona como uma
represa: uma espécie de coordenador, de distribuidor de energia, transformando-a
em trabalho, em processos criativos do homem. Se essa energia fica estagnada,
acaba-se acumulando-a em excesso, podendo haver uma sensação de pânico, de
desorganização e de angústia, como se fosse explodir.
Para Reich (1975) a autorregulagem da energia corporal seria um dos
fatores que contribuiriam para a vida saudável, para a flexibilização dessa couraça.
O oposto a isso seria a regulagem moralista, que teria sua prática voltada ao sentido
da obrigação por causa de costumes, de tradições e, em sua maioria, de vontades
externas a sua pessoa. Obviamente, para ele, a análise de caráter seria uma das
principais ações a serem feitas. No entanto, foco meu olhar para as bases orgânicas
de suas falas: a fluência da energia, o impulso vital, que são o que mais me chamam
a atenção. Falarei brevemente agora da função do orgasmo, entrando ainda mais
nessa aproximação da bioenergética com o potencial criativo do ator.

A função do orgasmo e a economia sexual

A energia sexual não é somente aquela que é gerada e que acontece no


ato sexual, mas em todas as situações em que nós nos expressamos. A
renovação/liberação da energia vital é fundamental para a nossa saúde psicofísica.
Essa renovação/liberação se dá através do orgasmo. A fórmula da curva orgástica é
dividida em quatro tempos: 1. tensão mecânica; 2. carga bioelétrica; 3. descarga
bioelétrica; 4. relaxamento (REICH, 1975, p.232-244). Esse processo é feito por
todas as células dos seres vivos - bactérias, plantas, animais, etc. - através do
movimento plasmático: de contração e expansão do organismo.

O processo biológico de expansão, ilustrado pela ereção de um


órgão ou pela extensão do pseudópode na ameba, é a manifestação
exterior de um movimento de energia bioelétrica do centro para a
periferia do organismo. O que se move aqui, no sentido psíquico
tanto como no somático, é a própria carga bioelétrica. (REICH, 1975,
p.312)

São as sensações de prazer que se expandem no corpo até chegar à sua


superfície, produzidas pelo próprio organismo. Faça um exercício simples: respire
vigorosamente umas vinte vezes seguidas. Inspire pelo nariz e solte o ar pela boca,
46

pode emitir o som da vogal "a" para ajudar. Pode exagerar no movimento. Perceba
que você provoca mecanicamente uma excitação em seu corpo. Seu olhar dilata e
até mesmo a sua respiração fica mais fluida. Você poderá sentir um leve
formigamento no rosto e nas mãos, por exemplo. Tudo dentro do normal: é a
excitação que chega na perifeira do corpo.
O corpo é vida e nós a procuramos. Buscamos meios para a energia
vazar, passar, fundir com o outro. As dinâmicas que o caráter estabelece para que a
carga ou a descarga do prazer aconteça diferem-se em duas estruturas possíveis: a
neurótica e a genital.
O caráter genital é capaz de alternar as tensões (cargas) e as satisfações
de suas pulsões energéticas (descargas). O caráter neurótico seria aquele em que
há um crescente na estase da libido (tensão crônica) e consequente dificuldade de
satisfação das pulsões energéticas. Suas necessidades pulsionais não são
atendidas e funcionam de acordo com princípios moralizantes.

Mente e corpo constituem uma unidade funcional, tendo ao mesmo


tempo uma relação antitética. Ambos funcionam segundo leis
biológicas. A modificação dessas leis é resultado de influências
sociais. A estrutura psicossomática é o resultado de um choque entre
as funções sociais e biológicas. A função do orgasmo é a medida do
funcionamento psicofísico, porque é nela que se expressa a função
da energia biológica. (REICH, 1975, p.312-313)

A angústia seria o lado oposto da excitação, ela retém energia no centro


do organismo. Não fluindo, a energia é incapaz de chegar à periferia do corpo. Cria-
se, então, a sensação subjetiva de constrição. A função do orgasmo estaria ligada à
maneira pela qual a energia do corpo, bioelétrica, é regulada. A satisfação
energética estaria ligada na relação entre o nível de energia descarregada ser o
mesmo que a tensão que a acumulou, o que na literatura de Reich é chamado de
economia sexual: regulagem da energia sexual de uma pessoa.
47

Figura 2 - Diagrama do mecanismo de antiprazer e prazer final (REICH, 1975, p.56)

Reich nos explica de maneira bastante sucinta e elucidativa o diagrama


acima:

A figura 1 mostra também a estase sexual, que surge quando não


ocorre a satisfação, e que é a causa de diversas perturbações do
equilíbrio psíquico e vegetativo [a satisfação aqui é menor que a
tensão, que continua aumentando]. A figura 2 mostra a potência
orgástica, que garante o equilíbrio da energia [a descarga é igual à
tensão acumulada]. (REICH, 1975, p. 56)

A capacidade de se entregar ao prazer, de experimentar uma descarga


genital eficiente era e foi percebida em seus pacientes, como um meio eficaz de o
caráter neurótico da pessoa ceder. A dificuldade que Reich teve em sua clínica era
que "o caráter genital parecia funcionar segundo leis diferentes até então
conhecidas" (REICH, 1975, p.154), exigindo do outro um novo tipo de
postura/atitude no sentido de lidar com pessoas cujo o impulso vital fluía. Essas
"novas leis" seriam as mudanças das posturas, das atitudes que as pessoas
demonstravam com a vida. A espontaneidade que surgia nas pessoas era
totalmente oposta às normas morais que regiam seu entorno. Aquilo que antes
soava como verdade absoluta ou como normativa sagrada de sua religião, por
exemplo, virava uma questão obsoleta e grotesca diante da pulsão de vida que as
pessoas sentiam. Reich percebeu que a própria relação dos pacientes com o
trabalho mudava. Não realizavam mais o trabalho mecanicamente, se interessavam
por ele, ou procuravam um que se adequassem às suas vontades. Se o paciente se
via como um funcionário medíocre, dentro de um escritório, um homem de negócio,
isso se tornava um fardo para continuar no emprego.
48

Nesses casos, sofri para vencer as dificuldades que surgiram. O


mundo não estava sintonizado com o aspecto humano do trabalho.
Professores, que haviam sido liberais embora não analisassem na
essência os métodos educacionais, começaram a sentir crescente
má-vontade e intolerância para com a maneira habitual de lidar com
as crianças. Em suma, a sublimação das forças instintivas do
trabalho de cada um assumiu formas diferentes de acordo com a
natureza do trabalho e as condições sociais. (REICH, 1975, p.155)

Ler Reich, para mim, sempre foi pensar o teatro na terceira pessoa do
plural. Estamos inseridos em um espaço de criação que muitas vezes é
ultrapassado por outras necessidades ou princípios que não são artísticos. A
princípio, a pessoa de teatro trabalha já na contramão do sistema econômico e
social, pois não é o lugar para se enriquecer financeiramente ou tornar-se o mais
apto dos políticos, nem mesmo o rosto mais bonito da televisão, pensando no que
conversamos até agora. No meu ver, o ator opera na chave do prazer. A sua
profissão, em si, é um exercício em público de sublimação.
A quantidade de imagens construídas colocando o teatro como um ato
sexual, uma explosão de sentimentos, uma catarse etc, daria uma boa conversa.
Mas tudo isso tem a sua razão. O teatro é uma espécie de processo de
“desencouraçamento” social. Não só para o ator ou para a atriz, mas principalmente
para o espectador. É o lugar dos fantasmas, dos medos, daquilo que é revelado.
Representamos a nossa morte e nossa própria crucificação no palco. A sociedade
sofre de uma “peste emocional” (REICH, 1975), ela é encouraçada. O teatro
proposto, pensado e analisado aqui, por esse viés reichiano, seria o local onde a
materialização da fatalidade de nossa vida, de nossos tempos, se torna carne.
Aquilo que Artaud chama de flagelo.

Sob a ação do flagelo, liquefazem-se os quadros da sociedade. A


ordem sucumbe. Ele assiste a todas as ruínas da moral, a todas as
derrocadas da psicologia, ouve dentro de si o murmúrio dos humores
dilacerados em plena derrota e que em vertiginosa perda de matéria
ficam pesados e aos poucos se transformam em carvão. Será tarde
demais para conjurar o flagelo? (ARTAUD, 1988, p.23)

Conectar-se a aquilo que é vivo e arquetípico não é fácil. O caminho é


tortuoso. Torna-se crucial ser persistente e aberto a novos modos de ser. Por isso,
sigo o impulso de querer fazer teatro e acreditar em sua força e potência de inversão
49

de perspectivas, de sua capacidade de descentralizar o olhar, de sua ação corrosiva


e silenciosa, esse despertar da morte que ela nos convida a presenciar.
Estou inserido nas pesquisas somáticas que ampliam não só nossa
consciência sobre os possíveis sistemas de signos não verbais, como também
expandem horizontes para novas maneiras de se fazer teatro e se relacionar com o
espectador. Nesse sentido que aproximo a bioenergética como possível potencial
transformador para a preparação, em oposição a uma pedagogia do ator pautada
em modelos de atuação ou formas pré-fixadas de se fazer teatro. A bioenergética,
estando dentro do campo da educação somática, distancia-se de um corpo virtuoso
ou ligado a um ideal de atuação, como dito, imposto de fora para dentro. Aproxima-
se, ao contrário, de um lugar onde se valoriza o sentir, a fluidez, a passividade
criativa (ou impulso autêntico).

As práticas somáticas estão precisamente no interstício entre dois


paradigmas cognitivos, duas modalidades do conhecimento,
sabidamente opostas: uma é a que "faz conhecer" verdades estáveis
e repetíveis: a ciência. A outra é aquela do saber sensível, do
conhecimento empírico, singular, infinitamente variável, que derrota
todas as medições visto que, precisamente, só se compara a si
mesmo (GINOT, 2010, p.12).

Quando pensamos nos caminhos que o ator contemporâneo brasileiro


trilha, observamos a busca de novos modos de trabalho corporal, apoiados nas
necessidades pessoais de cada ator e seus respectivos contextos. Olhando para a
história recente do teatro contemporâneo, percebemos que inúmeros grupos de
teatro abrem mão da utilização de textos como base de seus trabalhos ou da
ilustração de situações e circunstâncias - de histórias narradas com começo, meio e
fim - e enveredam por outros caminhos para a criação cênica. Na área da dança
observamos artistas que concretizaram nos seus percursos metodologias de
preparação e criação tendo como princípio o corpo: Laban, com a sua análise do
movimento; Bartenieff e os Funtamentals; o Body-Mind Centering de Bonnie
Bainbridge Ochen; e os brasileiros Klaus Vianna e João Lima. Eles se inserem na
trajetória da educação somática nas artes cênicas como "reformadores do
movimento" (STRAZZACAPPA, 2012). Há inúmeros exemplos de outros artistas,
como Grotowski, Barba, Pina Bausch, Teatro de Los Andes, Ói nóiz aqui traveiz etc,
50

"que ultrapassariam a ilustração de situações e circunstâncias, para colocar em


evidência a corporeidade e suas qualidades expressivas" (BONFITTO, 2006, p.44).
A bioenergética foi se inserindo em minha vida como essa possibilidade
de rever aquilo que sou, dos modos de olhar a arte e de me posicionar perante a
vida. Falarei agora dela e em seguida de algumas imagens sobre corpo e trabalho
atoral que me surgiram ao longo desta pesquisa.
.
A bioenergética de Alexander Lowen

A bioenergética representa uma integração entre as atitudes de tradições


orientais e ocidentais. Os exercícios da bioenergética pretendem não só promover a
autoexpressão e a sexualidade das pessoas, como possibilitar um lugar de
exploração da vida interna do corpo. Essa prática que amplia a visão da vida no
mundo permite que as pessoas entrem em contato com as tensões, com as
repressões de sua couraça que inibem a expressão da vida. "À semelhança das
práticas orientais, contudo, funcionarão se tornarem-se uma disciplina, isentas da
prática mecânica e compulsiva, dotadas de sentimento de prazer e senso de sua
significação" (LOWEN, 1982, p.63).
No entanto, vivemos no ocidente e ainda possuímos algumas
características básicas de nossa civilização. Pelo viés psicológico, uma delas é o
medo da vida. As neuroses das pessoas, grosseiramente falando, giram em torno da
dificuldade de abrir-se para o amor, para pedir ajuda ou até mesmo para agredir.
Tememos em aceitar nós mesmos. O medo da vida giraria em torno do fato de a
pessoa não assumir ser quem ela é plenamente.
Para avançar no entendimento da bioenergética, gostaria de falar
rapidamente sobre a relação entre destino e caráter. Introduzo este tema por meio
da lenda de Édipo, abrindo espaço para um cruzamento poético.
Édipo é um personagem da mitologia grega, um príncipe. Seu pai, Laio,
era rei de Tebas. Quando Édipo nasceu, Laio foi consultar o oráculo de Delfos para
saber o futuro de seu filho. O oráculo afirmou que o menino, ao crescer, mataria seu
pai e se casaria com a sua mãe. Laio, então, decidiu amarrá-lo em uma estaca em
um campo para morrer à míngua, a fim de evitar tal destino.
Édipo acabou sendo salvo por um pastor que o levou para Corinto, onde
foi adotado pelo rei da cidade: Políbio. Ele cresceu e quando já era homem feito
51

resolveu consultar o oráculo de Delfos para saber o seu destino. O oráculo previu
que ele iria matar seu pai e casar-se com sua mãe. Édipo acreditava que Políbio era
o seu pai, já que o havia criado desde tenra idade. Para evitar esse destino, Édipo
partiu de Corinto. No caminho para Beócia, foi abordado por um viajante que o
mandou sair de sua frente. Em meio à discussão que se desdobra em briga, Édipo
mata, com seu cajado, o viajante desconhecido.
Depois de assassinar o viajante, seguiu até Tebas, que estava sendo
aterrorizada pela Esfinge - um monstro com cara de mulher, corpo de leão e asas de
pássaros. A Esfinge apresentava uma charada para qualquer viajante que passasse
por ela e todos aqueles que respondiam errado à sua pergunta eram devorados.
Creonte, que assumiu o trono de Tebas após a morte de seu irmão Laio, prometeu
que aquele que livrasse a cidade das investidas da Esfinge, não só receberia a
coroa da cidade, como se casaria com a rainha viúva, Jocasta. A pergunta da
Esfinge era: "que animal anda de quatro patas de manhã, duas ao meio-dia, e três à
noite?" Édipo acertou a charada respondendo: "o homem!" Quando a Esfinge
escutou a resposta, lançou-se no mar morrendo afogada.
Édipo, então, passou a ser tratado como herói por ter matado a Esfinge:
virou rei de Tebas, casou-se com a rainha e governou a cidade por mais de vinte
anos. Teve quatro filhos: Eteócles, Polinices, Ismênia e Antígona.
As Erínias, como se chamava o destino, lançaram uma praga terrível
sobre a cidade de Tebas, assolando-a com seca e fome. Consultando o oráculo
novamente, Édipo soube que, enquanto o assassino de Laio não fosse descoberto e
expulso da cidade, Tebas permaneceria naquela situação. Em sua investigação,
então, ele descobriu que foi ele quem havia matado seu pai, involuntariamente,
naquela estrada para Beócia, e que havia se casado com sua mãe. Por vergonha,
Jocasta se enforcou e Édipo cegou a si próprio. Acompanhado por sua filha
Antígona ele abandonou a cidade tornando-se um andarilho. Depois de longos anos,
achou um refúgio em Colonus, cidade que se tornou sagrada por ser o último asilo
de Édipo.
Em um determinado momento, Lowen, ao rever novamente a lenda de
Édipo se pergunta: "Teria acontecido só porque eles tentaram evitar seu destino?" A
força dessa pergunta surgiu justamente porque as pessoas neuróticas são
incapazes de aceitarem a si mesmas. A luta que travam para evitar seu destino
52

resulta em um desenrolar similar ao traçado pelo percurso de Édipo: o destino se


cumpre.
E se Laio tivesse aceitado o destino do oráculo? Por criar o seu filho
Édipo não o 'confundiria' com um viajante qualquer. Se Édipo tivesse aceitado o
destino e permanecido em Corinto, provavelmente não se casaria com sua mãe. "Os
"ses" podem mudar uma história, mas é justamente pelo modo como as coisas
aconteceram que temos uma história significativa da experiência humana" (LOWEN,
1986, p. 44).
Pensando sobre a ideia de destino, Lowen afirma que as defesas que
criamos para nos proteger, acabam por criar a condição mesma do que tentamos
evitar.

Por exemplo, a pessoa que, movida pelo medo da rejeição, defende-


se não se abrindo nem indo ao encontro das pessoas, isola-se e
assegura, por meio desta manobra, que sempre venha a se sentir
rejeitada. Ninguém que esteja constrangido a uma posição defensiva
está livre. Isto é válido para o caráter neurótico que ergue paredes e
barreiras psicológicas, defendendo-se dentro de uma couraça
muscular, como proteção contra possíveis mágoas, somente para
descobrir que a tão temida dor está enterrada junto com ele, por este
próprio processo. (LOWEN, 1986, p.45)

Aonde chegamos com isso? O caráter, a couraça, determina o destino da


pessoa. A couraça, sendo uma estrutura, tende a ser passível de leitura. Podemos
afirmar que, ao contrário de Édipo, não temos consciência de nosso caráter, já que
ele se tornou nossa "segunda natureza" (LOWEN, 1986, p. 52).
Falei brevemente sobre o mito de Édipo e a leitura de Lowen sobre o
destino para pensarmos que a couraça nos enrijece de tal maneira que as máscaras
que podemos estar vestindo hoje ou que nos impõem, por mais que nos definam
hoje, podem nos aprisionar amanhã. O que Lowen indica é para não negar aquilo
que somos. A cidade onde fomos criados, a nossa relação com os nossos pais, os
primeiros amores, as brigas com amigos etc. o nosso passado é o que nos define e
nos prepara para o futuro. O passado para Lowen está inscrito no nosso corpo. Lidar
com o passado é quase o espelho de nosso presente e a perspectiva do futuro.
Porque aumentar o nível de energia no corpo da pessoa é importante na
bioenergética? Por que é vida, é dinâmica. Uma pessoa que está doente, por
exemplo, com a saúde debilitada, não possui energia para fazer atividades, para se
53

mover. Ela até pode querer fazer isso ou aquilo, mas não consegue, não tem
controle sobre isso. Obviamente, se estivesse doente, com pneumonia, por exemplo,
deveria fazer repouso justamente para que a sua energia seja devidamente
direcionada para que melhore. Agora, pensemos no oposto: uma pessoa que está
excitada de alegria porque é seu aniversário e todos os seus amigos estão vindo.
Essa excitação a faz ter vontade e disposição para arrumar isso, preparar aquilo,
recepcionar as pessoas, dançar, cantar etc.
No teatro é necessário estar disposto. É preciso um estado de presença
do ator em que nada o impeça de agir. Isso pode ser difícil, principalmente para
aqueles que já entraram sozinhos dentro de uma sala de trabalho. Sempre há um
motivo para não fazer isso, não gastar energia, de se privar por motivo externo ao
trabalho etc. O estado de disposição amplia o nível de energia. O ator que tem
energia e atitude modifica o meio em que se encontra. É algo físico, que vai contra a
lei da entropia. Segue o ritmo do desenvolvimento da vida: dinâmica e organizada.
O corpo energético é luminoso. A pessoa possui um brilho, "está radiante"
dizemos no dia a dia, resplandece de alegria. Não estou falando de sermos atores
felizes, com o sorriso largo o tempo todo. Estou falando de energia que é emitida
para o espaço e que é percebida pelo outro. E quando pratico os exercícios da
bioenergética e vou criando vínculos com o fazer teatral, a partir do meu
conhecimento da linguagem e de procedimentos de criação, percebo que é sim
possível movimentar essa energia dentro de nós, essa capacidade de estar apto ao
trabalho artístico.
Assim, para mim, tornou-se foco de pesquisa para a preparação de atores
os estudos da bioenergética que, para Lowen, são definidos da seguinte maneira:

Posto que carga e descarga funcionam como uma unidade, a


bioenergética trabalha com ambos os lados da equação
simultaneamente, de forma a aumentar o nível de energia do
indivíduo, do seu corpo. Consequentemente, a ênfase é dada
sempre à respiração, ao sentimento e ao movimento, aliada à
tentativa de relacionar o funcionamento energético atual do indivíduo
com a história de sua vida. Esse procedimento vai aos poucos
descobrindo forças internas (conflitos) que fazem com que o
indivíduo não funcione em seu potencial energético total. Cada vez
que um desses conflitos internos é resolvido, aumenta o nível de
energia. Isso significa que a pessoa absorve e descarrega mais
energia em atividades criativas que conduzem ao prazer e à
satisfação. (LOWEN, 1982, p.44)
54

Não podemos, entretanto, misturar o trabalho bioenergético, realizado em


laboratório cênico, com a vida pessoal do ator. Na "Declaração de Princípios" de
Grotowski (1987) podemos ver que devemos olhar com atenção e cuidado essa
relação do trabalho atoral e a vida particular. O trabalho aqui é teatral e não
terapêutico, é um trabalho transdisciplinar que tem como foco o evento teatral. A
energia gerada e liberada se dirige ao público através de ações físicas orgânicas.
Esse é o ato primordial.
Há inúmeras relações que se pode criar entre o trabalho sobre si mesmo
(STANISLAVSKI, 1979) e a via negativa (GROTOWSKI, 1987) com a bioenergética.
Enquanto a prática do treinamento tinha para Grotowski, entre tantos objetivos, a
pretensão de criar um estado de disposição física para a criação atoral, na
bioenergética se vê o trabalho sobre o corpo com o objetivo de ter uma disposição
física para viver graciosamente, com impulsos energéticos livres.
Para Lowen (1982), é no nosso corpo que se encontram todas as nossas
experiências passadas, nossas técnicas, todas as nossas ações realizadas e todo o
nosso potencial para o futuro. Nessa perspectiva, o ator é o seu próprio sujeito e
objeto de pesquisa. É uma experimentação que se insere no corpo-memória
(GROTOWSKI, 2007, p.173)41, no impulso das ações.
No teatro, há uma busca pela organicidade das ações do ator no ato ou
evento teatral. Um dos procedimentos para se realizar isso na bioenergética é a
partir da excitação do corpo, de forma que o corpo se "acenda" ao ponto de ampliar
seu "campo de força", como fala Lowen no livro "Prazer: uma abordagem criativa da
vida" (1970, p.60). Esse "campo de força" envolve o corpo. Quando o corpo "vibra"
energeticamente ele fica "luminoso", radiante, ocupa mais espaço; ele cresce. Para
chegar a este estado cinco elementos são fundamentais na bioenergética: o
aumento do estado vibratório do corpo, o grounding das pernas e do corpo, o

41
O corpo não tem memória, ele é memória. O que devem fazer é desbloquear o "corpo-memória".
Se começam a usar os detalhes precisos nos exercícios "plásticos" e dão o comando a vocês: agora
devo mudar o ritmo, agora devo mudar a sequência dos detalhes etc., não liberarão o corpo-memória.
Justamente porque é um comando. Portanto é a mente que age. Mas se vocês mantém os detalhes
precisos e deixam que o corpo determine os diferentes ritmos, mudando continuamente o ritmo,
mudando a ordem, quase como pegando os detalhes do ar, então quem dá os comandos? Não é a
mente nem acontece por acaso, isso está em relação com a nossa vida. Não sabemos nem mesmo
como acontece, mas é o "corpo-memória", ou mesmo o "corpo-vida", porque vai além da memória. O
"corpo-vida" ou "corpo-memória" determina o que fazer em relação a certas experiências ou ciclos de
experiências de nossa vida. Então qual é a possibilidade? É um pequeno passo ruma à encarnação
de nossa vida no impulso. (GROTOWSKI&FLASZEN, 2007, p.173)
55

aprofundamento da respiração, o exercício da autoconsciência e a ampliação da


autoexpressão (LOWEN, 1985, p.14).
Direciono meu trabalho a um movimento relacional entre aquilo que está
no centro do corpo (no que podemos imaginar de mais profundo, latente e vivo) com
o externo, o outro, o espaço. No entanto, estou consciente de que muito do que será
referenciado aqui, vem de um lugar que tem como objetivo a saúde psicossomática
dos seres humanos. A minha atenção aqui e meus objetivos com este trabalho se
convergem para a criação do ator para a cena teatral42.
Quando penso na bioenergética no trabalho do ator, penso num teatro
que transita entre formas, entre qualidades distintas, até mesmo opostas. Se
trabalhamos com o corpo e aquilo tudo que o constitui, então nos aproximamos
daquilo que é humano: seja ela da esfera de algo que é puro, genuíno, claro, como o
do impuro, do maquinal, do precário. Estamos no lugar do teatro como ponta de
toque ou elo entre os nossos sonhos mais altos e nossas fraquezas mais baixas,
"mundanas". O ator é o homem que expõe esses mistérios através de sua ação, de
sua carne.
A bioenergética nos coloca questões como: quanto tempo dura uma
forma, uma máscara? Esse embate com as próprias máscaras, esse abrir-se, essa
autopenetração (GROTOWSKI, 1987) está presente em nossas experiências mais
autênticas. Essas experiências surgidas numa sala de trabalho ou num processo de
criação, transformadas em linguagem teatral poderão ter uma potencialidade de
captar, na mesma ação, o homem contemporâneo, de agora, concreto, e esse
homem mítico, extemporâneo43.
Aviso desde já que não haverá, na continuação desse texto, manual
algum, nenhuma fórmula ou receita a seguir, nada disso. Procuro inserir-me na
dinâmica da vida, ajustando-me aos seus contextos e impulsos, principalmente,
através dos encontros que acontecem.
Retomando, a bioenergética auxilia-me no desejo de retirar as travas que
impedem o artista de ver, de escutar, de ponderar e de escolher. Para as
42
Quando falo em criação teatral refiro-me a todas as atividades que o ator faz para a criação
artística. Inserem-se aqui: estudos de mesa, exercícios de alongamento e aquecimento, passagem de
texto com colega, a descoberta de ações em observações feitas na rua, ensaios e apresentações,
etc. O ator em estado de criação é poroso. Esse estado é que me interessa e não a divisão do
processo de criação em etapas e atividades.
43
Sugiro a leitura do texto: "O "Contemporâneo" e as experiências do tempo" de Cassiano Quilici, no
livro que uso nessa dissertação chamado "O ator-performer e as poéticas de transformação de si"
(2015), publicado pela Editora Annablume.
56

potencialidades do teatro, nesse hibridismo contemporâneo tão complexo que se


denota nas estéticas da atualidade, escolhi como referências principais o diretor
russo Constantin Stanislavski, o polonês Jerzy Grotowski e o ator e escritor francês
Antonin Artaud porque não falo aqui apenas de uma aquisição de técnicas para a
criação de espetáculos. Essa energia extrapola a sala de trabalho do ator e invade a
vida cotidiana. O que faço aqui é permitir que aquilo que tomamos como
"compromisso silencioso" individual de fazer arte possa ser trabalhado de maneira a
interferir em um processo de desenvolvimento artístico.
Esse "compromisso" não está vinculado a nenhuma demanda da
sociedade do espetáculo, nem para agradar gostos ou modismos. É um ato
individual que se une a necessidades coletivas, que aqui é teatral. Estou falando
sobre o que está na margem, na fronteira. Não me interessa em nenhum momento
dizer sobre o que está posto, gosto desse desafio de falar sobre o que está na
"borda" e além dela.
Criei a partir dessa minha trajetória duas imagens que me auxiliam na
reflexão sobre a preparação de ator e na minha própria carreira: o corpo-couraça e o
corpo fluído. As transcrevo aqui porque como os princípios de trabalho da
bioenergética, que abriram essa Ação 1, essas imagens iram permear todo o
restante de minha escrita. São imagens poderosas que me intimam ao fazer teatral e
ao conhecimento.
57

Corpo-couraça

44
Figura 3 - Manequim de Barcelona - Salvador Dalí - 1927

Utilizo essa pintura de Dalí para nos auxiliar a entender melhor sobre a
couraça muscular de caráter conforme apresentada por Reich. Longe de ter feito
uma abordagem mecanicista do corpo, como na medicina moderna, Reich foi
pesquisando, durante as décadas de seu trabalho, vários procedimentos de análise
de caráter somados a uma série de exercícios de respiração, exercícios expressivos
e manipulações diretas de tensões musculares para liberar essas couraças (REICH,
1975).
No início da Ação falei sobre a imagem do palimpsesto. Essa imagem
possui um quê disso. Um corpo que tem um centro, um olho, camadas e mais
camadas, cores, texturas, relevos. De quantas intimações somos feitos? E nossas
identificações? Nossos papéis sociais na vida nos fazem múltiplos. Não somos um
44
Os quadros que apareceram nesse trabalho foram descobertos em leituras de textos do Gaiarsa
(1982). É muito comum em livros de psicologia o uso de histórias de mitologia, de teatro, de literatura,
de obras visuais, etc. Utilizo de quadros aqui que me tocam com poder de síntese de meus
pensamento e de pulsão para seguir trabalhando.
58

só! Somos milhares e ao mesmo tempo, quando mais longe do centro do desenho
mais vago são os contornos, menos humano é a figura. Mais escura, mais quadrada,
mais dura.
Para além de uma analogia sobre termos um cerne, gosto de pensar que
quanto mais fundo vamos em nós, mais nos aproximamos das imagens e
características que nos tornam humanos. As grandes obras de arte possuem esse
poder de acesso. Nesse sentido, olhando o grande olho da figura vejo a pluralidade
que somos. A nossa capacidade intrínseca de metamorfose em cada momento de
nossas vidas.
O reflexo do orgasmo, da fluência livre e regular da energia corporal
ajudaria essa liberação de tensões. O psicólogo brasileiro Marcus Vinícius Câmara
(1997) observou que, ao privilegiar na clínica as funções energéticas (carga-
descarga) e biológica (tensões musculares), Reich não abarca um corpo que é
produto e produtor de uma rede de saberes/poderes (CÂMARA, 1997). Essa
perspectiva é influenciada pela noção de corpo dócil de Foucault (2014). Na pintura
"Manequim de Barcelona" de Dali, por exemplo, os blocos na volta do corpo podem
ser lidos como os conflitos e as repressões externas aos aspectos biológicos do
homem.
O corpo-couraça não se limita a ser somente esse corpo reprimido
sexualmente, com a energia presa ou não fluida. É um corpo em mutação, produto e
produtor de suas interações. Não podemos, assim, ver o corpo apenas pelo campo
energético, psíquico, somático, mas também pelas redes de saberes e poderes.

Para Foucault, a exaltação dos corpos não deixa de ser um


mecanismo de controle, na medida que o corpo produz e consome
sexualidade em conformidade às relações de poder/saber. A partir
desse ponto, surge uma diferença fundamental entre Reich e
Foucault. De acordo com o último, o trabalho sobre o corpo, em
função da instauração do capitalismo, longe de se configurar como
uma repressão sexual (ponto de vista reichiano), é marcado como
uma forma de produção de sexualidades diversificadas. (CÂMARA,
1997, p.11)

O corpo, nesta perspectiva, estaria sendo moldado não só fisicamente. A


partir do século XIX, essas investidas de nossa sociedade sobre o corpo visam
muito mais a um modelo de vigilância e disciplina até então não visto em outro
momento da história (FOUCAULT, 2014). A cultura somática surge como uma
59

revolução em nome dos desejos e da busca do prazer: os corpos em revolta


(HANNA, 1976).

Neste sentido, nós podemos indagar se deve ser a fluidez da energia


orgônica, contida nos corpos, a resposta efetiva ao controle e à
disciplina sobre os corpos - como na proposta reichiana - ou se a
libertação dos corpos, para fazer frente à normatização, é
proporcionada pela maior democratização do saberes/poderes, como
sugere Foucault, e a procura dos desejos inconscientes, como
propõe a psicanálise. (CÂMARA, 1997, p. 13)

O trabalho energético do corpo visa a uma criação cênica mais livre e


expressiva, o que torna inevitável o encontro com o aparecimento de emoções e
energias que foram reprimidas durante a nossa vida. Temos um histórico muito
grande de "não pode falar isso", "é preciso manter um bom tom", "fecha boca",
"homem não chora", "menina direita não senta com a perna aberta" etc. Essas
restrições não só nos mantêm em uma certa postura e maneira de pensar sobre o
mundo, como nos fecham portas para uma percepção mais sutil do ambiente. Por
isso, as questões de percepção e atenção (QUILICI, 2015) tornam-se importantes
para o trabalho criativo no teatro.

Corpo fluido

Figura 4 - Desintegração Rinoncerótica dos Illisios - Salvador Dalí - 1954


60

O corpo que se desintegra ou o corpo que se monta? Nesta outra obra de


Dalí, podemos interpretar o processo fluido acontecendo no corpo naturalmente.
Veja que não são blocos escuros que envolvem a figura, como no "Manequim de
Barcelona", mas sim o mar e a imensidão do céu. A estrutura torácica está livre para
respirar, movimento crucial dentro da bioenergética. O reflexo do orgasmo seria
essa sensação de derretimento (REICH, 1975) que o corpo produz. É um caminho
para a permeabilidade e, em última instância, a fluência cênica.
Cabe ressaltar que essa relação do teatro com a psicologia não é nova e
nem que os cuidados a se tomar nesse diálogo são esquecidos45. Utilizo como
exemplo o trabalho do diretor Grotowski com textos da área da psicologia. No livro
"Palavras praticadas: o percurso artístico de Jerzy Grotowski, 1959-1974" (LIMA,
2012), o autor dedica uma parte de seu estudo à possíveis imbricações entre a
prática do Teatro-Laboratório de Grotowski com os escritos sobre o Treinamento
Autógeno de Schultz (2012, p.125-154). As relações com os textos de Reich
também são levemente supostas (2012, p.143), como o arco orgástico e os nós de
expressividade. Entretanto, não há, de fato, uma prova totalmente eficaz na prática
de Grotowski na fase do seu Teatro como Representação46, apenas a certeza de
sua busca no que diz respeito à investigação e ao aprofundamento da prática do
ator.
O reconhecido livro que me apontou para a bioenergética, "O corpo tem
suas razões" (BERTHERAT, 1987), possibilitou ampliar a leitura que eu tinha do
trabalho do ator. O trabalho inicia pela consciência dos movimentos do corpo
(propriocepção) e dos hábitos que nós temos e mantemos no dia a dia. É através
desse exercício que, pela ótica da poética stanislavskiana, podemos dizer que
desenvolvemos a consciência dos estereótipos do teatro. Pela ótica de Grotowski,

45
Faço a citação de um livro que indica também outras relação entre arte e psicologia. O livro em
questão é de Vera Lucia Paes de Almeida intitulado "Corpo Poético: O movimento expressivo em C.
G. Jung e R. Laban" (2009), publicado pela Editora Paulus. Como está escrito em sua introdução: "A
minha proposta busca uma integração das duas linhas de pensamento - JUNG e LABAN - com
ênfase nos aspectos psicológicos criativos, derivados do contato com a dimensão arquetípica da
dança. Para isso, me utilizo da linguagem simbólica da alquimia, segundo a visão junguiana, para
situar o movimento e suas qualidades dentro de um referencial poético: os quatro elementos [terra,
água, fogo e ar]" (2009, p.12).
46
O trajeto de Grotowski dentro do teatro é dividido em fases. Marco de Marinis, por exemplo, dividi
em cinco fases (DE MARINIS, 2004: teatro como representação. Parateatro, Teatro das Fontes,
Dramacomo Objetivo e Arte com Veículo. Apenas quero deixar claro que minha pesquisa é em cima
da fase onde Grotowski realiza apresentações perante espectadores,Teatro como Representação, do
período que vai de 1957 à 1969.
61

seria a consciência dos estereótipos da vida. O exercício de consciência de si,


proposto por Bertherat, permite a exploração de ambas as ordens.

Você poderá deixar cair máscaras, disfarces, poses, o "faz-de-conta"


e passar a ser, a ter coragem de ser autêntico. [...] Você pode
desaprender os maus hábitos que o levam a favorecer e, por
conseguinte, a hiperdesenvolver e deformar certos músculos; romper
os automatismos do seu corpo e descobrir-lhe a eficácia e
espontaneidade. (BERTHERAT, 1987, p.16)

Relaciono os textos de Bertherat, a noção da via negativa de Grotowski à


ideia de desaprendizagem. Para fazer um movimento, para me relacionar com o
texto dramático, para estar em contato com o meu colega de cena, eu deveria
desaprender fazeres/saberes padronizados em mim - sejam eles vinculados ao meu
imaginário de teatro ou de ordem do comportamento social. Guardando as
proporções e singularidades de cada processo, esse imaginário47 é trabalhado sobre
o sensível48. Estes, por sua vez, são revelados através da corporeidade das ações
realizadas no teatro.
Passo dessa maneira para a próxima Ação de meu trabalho.
Aprofundaremos agora dois conceitos cruciais da bioenergética: a respiração e o
grounding.

47
"O imaginário concentra-se na análise de conjuntos de imagens que estruturam o pensamento e a
vida humana desde sempre. São essas imagens, como um grande reservatório da humanidade, que
nutrem as pesquisas desse campo tão vasto; o campo do imaginário opera com métodos em que o
imponderável, o imensurável, o caos, entre outras formas típicas do movimento humano, são
considerados também como elementos constitutivos dos trajetos da humanidade" (OLIVEIRA, 2011,
p.135).
48
"O sensível opera no entremeio do conhecimento direto e indireto. Não é apenas um fazer, isto é,
um agir, mas um deixar-se agir. Reeducar-se é ter a coragem de olhar-se desnudado" (OLIVEIRA,
2011, p.139).
62

Ação 2 - A respiração e o grounding


63

IMPERADOR - Diga-me uma coisa, quantos anos você tem?


ARQUITETO - Não sei. Mil e quinhentos - dois mil. Não sei ao certo.1

“O Arquiteto e o Imperador da Assíria”, Fernando Arrabal

1
ARRABAL, 1977, p.74-75. (?)
64

Nessa Ação pretendo aproximar os exercícios e postulados da


bioenergética da prática atoral. Tomo como foco os exercícios de respiração e de
grounding, por acreditar que ambos são pontos nevrálgicos para os modos de
preparação atoral inicio com três exercícios2 para nos conectarmos com a sala de
trabalho, que se baseiam nesses princípios que abrirei em exposição.
Após essa abordagem, abro discussão para outras possibilidades de
desatar os nós da expressividade. Penso que aquilo que funciona comigo poderá
não funcionar com você e vice-versa. Por isso essa necessidade de criar horizontes,
pois mesmo que caminhemos por trajetos e passemos por lugares diferentes, as
nossas experiências podem dialogar e contribuir mutuamente.
Fecho a "Ação 2" com o delicado tema das novas categorias do ser. Esse
assunto me vem sempre quando entro em contato com autores e artistas que se
aprofundam em propostas e processos criativos fortes, ao ponto de nos levarem a
outros modos de ver a vida, a morte, a arte. A expressão "delicado" refere-se ao
campo dos sonhos, das utopias. Imagens que podem nos estimular a seguir e a
buscar uma ação artística sincera diante do espectador e que são acessadas
quando trabalhamos com a bioenergética.

Início de trabalho

1) Usando roupas leves que não apertam o corpo, deite-se no chão.


Braços ao longo do corpo, as palmas das mãos ficam voltadas para cima, as pernas
esticadas e os pés tranquilos e relaxados em suas extremidades. Respire. Pode
fechar os olhos, isso ajuda na percepção. Tente perceber o silêncio que está à sua
volta. Respire novamente com atenção. Não mude nada. Observe. Quais as partes
de seu corpo que tocam o chão? Quais não tocam? Tente reconhecer esses
espaços. Algumas tensões no corpo? Onde? Compare um lado do corpo com o
outro – direita e esquerda: às vezes um ombro pode tocar o chão com mais
facilidade e o outro não, por exemplo. Perceba e registre este estado de seu corpo.

2
Esses exercícios podem ser encontrados na bioenergética e em outras práticas somáticas, assim
como em aulas de dança e de teatro. Nos últimos anos, podemos perceber o aumento de artistas que
se utilizam de outras técnicas corporais para trabalhos de preparação e de criação nas artes da cena.
Os exemplos mais claro que dou são justamente o corpo docente do Programa de Pós-Graduação
em Artes da Cena da UNICAMP. Onde podemos ver professoras que trabalham o método
Feldenkrais como a profª Dra. Sílvia Geraldi e o sistema Laban/Bartenieff pela profª Dra. Marisa
Lambert.
65

Inspire e expire amplamente. Ceda ao chão. Sinta seu corpo tocar o chão.
Depois sinta o chão tocar o seu corpo. Abra os olhos. O que mudou agora? Você
ainda está conectado à aquelas sensações e ao chão? Por último, perceba se seu
maxilar está rígido, tenso ou relaxado, solto. Tente relaxar essa região colocando a
língua para fora, abrindo a boca, fazendo umas caretas.
Dessa maneira começamos a nos aproximar de nosso momento
presente, como estamos aqui e agora, para então continuarmos.

2) Deitado no chão com as pernas flexionadas (LOWEN, 1985, p.35) 3.


Pés bem apoiados, nenhuma tensão nas pernas, levemente afastadas. Coloque as
mãos na região das baixas costelas suavemente. Evite apertar as mãos no corpo,
sinta apenas o movimento da sua respiração nessa região. Inspire e expire, mas
sem forçar. Tente respirar nessa região. Suas mãos devem sentir esse movimento.
Inspire e expire expansivamente. Puxe levemente a pele na região onde ficam as
costelas. Imagine que você está deixando a região mais solta, como se abrisse
espaço para a respiração. Recoloque as mãos no mesmo lugar do começo do
exercício e perceba como está a sua respiração agora. Mude as mãos para a região
da barriga, do estômago, do coração e da região bem em cima do peito, perto dos
ombros. Tente movimentar cada lugar com o movimento da respiração. Estamos
ampliando nossa capacidade respiratória. Estamos buscando nosso ritmo próprio
respiratório.

3) Agora em pé. Com os pés afastados, pouco mais que a largura dos
quadris, com os artelhos levemente voltados para dentro. Incline-se para frente
tocando o chão com as pontas dos dedos (LOWEN, 1985, p.15). Você não estará
apoiando o seu peso nas mãos. Elas servem apenas para manter o equilíbrio. O
peso do corpo está nos pés. Os joelhos estão levemente dobrados, a cabeça está
solta e a respiração é livre. Respire. Aos poucos, vá transferindo o peso de seu
corpo para o peito dos pés. Erga um pouco os calcanhares. Respire sempre.
Perceba a respiração. Estique os joelhos aos poucos, não é para deixá-los

3
A referência aqui do livro do Lowen se dirige diretamente a um capítulo de exercícios sobre
respiração. No entanto, o que proponho aqui é uma somatória de exercícios de bioenergética e de
teatro. Seria muito desrespeito meu com tudo o que aprendi até hoje copiar um exercício diretamente
de um livro para tentar manter um "purismo". O objetivo aqui é elencar elementos que estimulem o
trabalho corporal, a percepção proprioceptiva, relação com o espaço, etc.
66

totalmente esticados, rígidos ou trancados, isso tranca a circulação de energia. Você


consegue respirar com facilidade? As pernas estão vibrando? Não estão vibrando?
Observe que se você trancar a respiração elas não vibrarão. Fique nessa posição
por mais de um minuto. Consegue perceber se as vibrações são sutis ou intensas?

Figura 5 - Vibrando inclinado para frente (LOWEN, 1985, p. 20)

Esse último exercício é um dos mais fundamentais da bioenergética. Com


ele, podemos iniciar um trabalho de vibração das pernas, que é, na verdade, a
consequência de uma expansão da respiração e da circulação de energia vital. Este
é um exercício básico de grounding que, na bioenergética, significa estar em contato
com o chão. Corpo embasado.
No entanto, estar nessa posição e praticá-la diariamente nos ajuda a
estreitar a relação com o chão. A região da pelve, o centro de equilíbrio do corpo, o
hara (como referido nas técnicas corporais orientais), fica energeticamente mais
carregado e a circulação de energia pelo corpo, sua excitação ou corrente
energética, fica mais fluída. Como nos afirma Alexander Lowen:

Os processos energéticos do corpo estão relacionados ao estado de


vitalidade do corpo. Quanto mais vigorosa a pessoa está, mais
energia ela tem, e vice-versa. Rigidez ou tensão crônica diminuem a
vitalidade da pessoa e rebaixam sua energia. Ao nascer, o
organismo está em seu estado de maior vitalidade e fluidez; ao
morrer, a rigidez é total, rigor mortis. Nós não podemos evitar a
67

rigidez que vem com a idade. O que podemos evitar é a rigidez


devido a tensões musculares crônicas, resultantes de conflitos
emocionais não resolvidos. (LOWEN, 1985, p.12)

A vitalidade do corpo está totalmente ligada à nossa capacidade de


executar ações, de realizar os nossos desejos e de ampliar nossa autoexpressão.
Uma das características básicas do trabalho do ator é realizar fisicamente aquilo que
ele quer expressar. É comum ver atores que estão iniciando a sua trajetória
construírem uma cena e não serem "entendidos" pelo espectador. Há uma distância
entre aquilo que eles imaginam e pensam, e aquilo que executam4.
Claro que há o dado de a pessoa estar iniciando seu contato com a
linguagem teatral, mas teatro é jogo, envolvimento, disposição e exposição.
Justamente por causa dessa última característica que o ator deve ter domínio de seu
corpo, de seu aparato físico, como dizia Stanislavski (1979). O ator deve apresentar
domínio do seu potencial expressivo, saber manusear intensidades muitas vezes
mais fortes ou dinâmicas do que aquelas comumente experimentadas nas atividades
cotidianas. A qualidade expressiva, o nível energético e a diferença entre aquilo que
se quer expressar e o que se expressa, são discrepâncias comuns vistas nos atores
em formação, justamente por não terem ainda tanto domínio do que acabo de
afirmar.
Um primeiro movimento possível para se pensar sobre isso é o modo
como vivemos nossa vida no cotidiano. Tomamos banho, caminhamos, esperamos o
ônibus, conversamos com nossos amigos, falamos etc – fazemos essas ações e
tantas outras como se estivéssemos no automático. Não somos estimulados a ter
um exercício de percepção sobre aquilo que estamos fazendo ou nos relacionando.
Entramos num modo operante em que aquilo que é repetido, aquilo que acontece de
habitual em nosso dia a dia, deixa de ser percebido. No teatro, a lógica é oposta:
devemos perceber o que está acontecendo. Deixar de escutar um colega de cena
levará a ação teatral à ruína.

4
Essas e outras opiniões sobre o ator em formação e algumas de suas dificuldades advêm de
minhas experiências como professor de teatro no período em que estive na graduação em Teatro
Licenciatura pela UFPEL (2008-2014), e como estagiário no Programa de Estágio Docente que
realizei no semestre 2016/2 na disciplina Ateliê em Prática de Dança II, ministrada pela Profa. Dra.
Marisa Martins Lambert, e, principalmente, no semestre de 2017/1 na disciplina Improvisação Teatral
I, ministrada pelo prof. Dr. Marcelo Lazzaratto. Esta última experiência foi crucial, pois além de ter
acontecido durante o processo de escrita da dissertação, me permitiu observar alunos de teatro
iniciando sua relação com a linguagem teatral e as dificuldades que se apresentam no início desta
trajetória.
68

Os exercícios iniciais deste capítulo podem ser um exemplo de começo


de trabalho para essas percepções mais finas, sutis, de como estamos respirando,
de nossa postura etc. Uma tomada de consciência e de atenção sobre o que
estamos fazendo e como. Utilizo-me da concepção de Gaiarsa para pensar sobre
isso:

Inconsciente é igual a: rotineiro, habitual, automático, maquinal,


repetitivo, monótono, invariável, constante. É o único sentido claro da
palavra. É do inconsciente - assim conceituado - que emerge a
sensação que, a um primeiro exame, se diria de segurança.
(GAIARSA, 1985, p. 18)5

Há certas situações no nosso cotidiano que nos empurram para uma


"tomada de consciência" ou um "dar-se conta" do que estamos pensando, do que
estamos sentindo ou realizando. Nessas situações, não fazemos nada de qualquer
jeito. Normalmente, nessas situações, há o eu e mais um. Ou seja: estou em
relação. A percepção ganha um destaque primoroso neste momento. Imaginemos
uma situação bem delicada e limite: a sua amiga acaba de perder a mãe, por
exemplo. Ao ir falar com ela, você não falará da mesma forma que no dia a dia; não
irá olhar-lhe como olha nos outros dias. Você escutará o contexto e pensará um
pouco sobre o que fazer, eu diria que você conduziria (estaria mais atento) as suas
ações, a sua forma de falar, de olhar para ela, de sentar-se. Este conduzir não está
vinculado em ter controle das ações, dos sentimentos e sensações. Penso como se
déssemos direção aos objetivos, indo junto, dando acesso ao que nos move 6.
No teatro, é a mesma coisa. Os exercícios teatrais, na maioria das
escolas, buscam oferecer aos atores meios através dos quais eles possam trabalhar
seus sentimentos, seus pensamentos e seus corpos, tendo como objetivo máximo a
criação cênica. Isso pressupõe a capacidade do ator criar ações que tenham o poder
de síntese. A fala do diretor inglês Peter Brook vai de encontro ao que estou
pensando:

5
Chamo a atenção que o excesso de consciência também pode ser um problema. O ator pode não
permitir-se realizar ações ou jogar-se mais livremente por tentar ter o controle total da cena e do que
está realizando. Numa outra interpretação podemos ver atores que não realizam certa ação por não
pertencer a sua lógica de raciocínio, sua ideologia, sua moralidade, etc. O deslocamento desse tipo
de atitude para um outra pode ser bem dificultoso. Temos que ver isso não é uma regra.
6
"Conduzir. [...] 1. Ir na companhia de, guiando, orientando, e/ou em sinal de respeito, ou de cortesia;
levar. [...] 2. Guiar, dirigir, governar. [...] 3. Comandar, governar. [...] 4. Transportar, carregar. [...] 5.
Ter capacidade para transportar." (FERREIRA, 2009, p, 520)
69

Para que as intenções do ator fiquem totalmente claras, com


vivacidade intelectual, emoção verdadeira, um corpo equilibrado e
disponível, os três elementos - pensamento, sentimento e corpo -
devem estar em perfeita harmonia. Só então ele cumprirá o requisito
de ser mais intenso, em curto espaço de tempo, do que é em sua
casa. (BROOK, 2010, p.14)

A boa notícia é que há a possibilidade disso acontecer já que o teatro é


feito por pessoas e estas possuem estruturas pessoais7. Os estilos de vida que cada
pessoa apresenta e suas influências culturais mudam, é claro, de um para outro.
Nossas diferenças são bônus para o teatro. Temos que levar em conta também o
nosso próprio biotipo: se sou alto, baixo, muito magro, gordo, se tenho muita barba,
se tenho um olhar assustado, muita energia, uma voz aguda, etc. Digo isso porque
não me interessa aqui dizer que há um corpo ideal para atores, nada disso. A
diferença no teatro é maravilhosa. O teatro mostra a vida, interna e externa, em sua
multiplicidade!
Bertherat nos auxilia reforçando mais uma vez que somos o nosso corpo.
O que parecemos ser é o nosso modo de ser. Desde pequenos somos acostumados
a passar para os outros a responsabilidade de nossa vida: nossos pais, os médicos,
os professores, psiquiatras, o professor de teatro, de dança, as instituições e assim
por diante. Tudo com o objetivo de nos tranquilizar, de que tudo vai dar certo, sendo
que o resultado, na maior parte das vezes, é outro: nos deixamos inconscientemente
reprimir. Criamos, muitas vezes, imagens de nós mesmos distantes daquilo que
realmente somos. Nossa autonomia escapa antes de termos uma ideia de suas
características ou diferenciais, por isso, é importante olhar para si: exercitar a
diferença entre o visível (o que corresponde ao que sou) e o superficial (aquilo que
aparenta ser, mas que não é), já que são duas coisas diferentes.

Nosso corpo somos nós. É nossa única realidade perceptível. Não se


opõe à nossa inteligência, sentimentos, alma. Ele os inclui e dá-lhes
abrigo. Por isso tomar consciência do próprio corpo é ter acesso ao
ser inteiro... pois corpo e espírito, psíquico e físico, e até a força e
fraqueza, representam não a dualidade do ser, mas sua unidade.
(BERTHERAT, 1987, p. 14)

Discorri um pouco sobre essa unidade na Ação 1. O que falarei aqui é


sobre esse exercício que visa a usar a quantidade de energia certa para cada gesto.

7
Aqui pensando na estrutura de caráter, como mencionado na Ação 1.
70

Isso passa por um olhar mais atento sobre a respiração e grounding através da
bioenergética. Um caminho que aprendo com Bertherat é sobre a importância do
trabalho contínuo, que perpassa o reconhecimento do meu espaço próprio, meu
corpo, minha casa. Desse lugar eu partirei para o encontro, na relação com este
lugar acolhedor, não só para mim, mas para os outros. Ao meu ver, essa abertura é
a arte, esse lugar que nos preenche o vazio, que nos faz estar conectados. Um
encontro, como a vida deve ser: uma sucessão de encontros.
Aviso que, ao trabalhar a respiração, o grounding, entro em contato com
fluxos de energia, de imagens, de desejos e de impulsos. As formas estruturam-se e
se reestruturam, abrem novos caminhos. Quando estamos conectados à vida, a
tônica é a dinâmica da contínua mudança. Assim, entramos agora a respiração e
grounding na bioenergética como lugar de aprendizado proprioceptivo, de
autoconhecimento e de autoexpressão.

A respiração bioenergética

Um indivíduo saudável não possui limites, e sua energia não fica confinada na
couraça muscular. Toda sua energia está consequentemente disponível para o prazer
sexual ou para qualquer outro tipo de expressão criativa.
“Bioenergética” de Alexander Lowen

A chama de uma vela não é o seu pavio ou a cera. É a relação ou o


processo que acontece com o ar. Assim como a respiração, que mantém acesa a
centelha da vida. À semelhança da vela, cada pessoa, cada obra cênica possui uma
respiração, uma chama. Em termos artísticos: como manter essa centelha de vida?
Como criá-la? Como ela se forma? Como mantê-la na atuação?
Há dias, e para algumas pessoas são muitos dos dias de suas vidas, em
que acordamos com uma sensação de estarmos sufocados. Respiramos mal,
queremos falar sobre uma coisa, mas ela não sai, não pode sair. Nós sufocamos
muito daquilo que queremos dizer. Reprimimos a nós mesmos. Re-primir,
pressionar, fazer com que fique estreito, estreitar, manter oculto, conter, dominar-se.
Se o ar não sai, imagina a voz! Verbos como: comprimir, oprimir, suprimir, deprimir,
todos podem ser aplicados ao ato de fazer pressão a gases (GAIARSA, 1987).
71

Freud focou seus estudos no que se referia à fala, ao gás (ar) que sai em
vibração de dentro de nós8. Na voz, pode-se perceber muito sobre os impulsos, os
afetos, os instintos, desejos da pessoa, sobre a sua carga energética e sua
disposição para a vida. Por outro lado, falar sobre a respiração, sobre ar, sugere-nos
imagens, muitas vezes matriciais, de concepções religiosas, podendo ser até
mesmo um meio de conceber o espírito. Na tradição judaico-cristã, tudo que está "lá
no alto", perto do "céu", na atmosfera, é relacionado a seres superiores, perto da
imagem do paraíso. Na mitologia grega acontece o mesmo. Os deuses, com suas
forças invisíveis como o ar, vivem lá no alto, interferindo nas nuvens, no vento, na
tempestade, na seca.
O ar encontra-se por todos os lados e dentro de nós. É como se
fizéssemos parte de um todo. Enquanto ele estiver nos enchendo, estaremos vivos,
o contrário é a morte, nosso último suspiro. A história bíblica de Adão faz parte de
nosso imaginário justamente por isso. Deus criou o homem a partir do barro da terra
e a seguir insuflou-lhe ar nas narinas e ele viveu.

Esta noção de que o ar entra em nós por força própria existe no


relato bíblico e, implicitamente, na mente das crianças e das pessoas
que nunca se detiveram para perceber com cuidado a própria
respiração. A maioria dos homens não percebe que faz algum
esforço para aspirar o ar que respira. [...] A respiração é nosso
automatismo mais antigo e o mais frequente, por isso ela é nossa
ação mais inconsciente, mesmo quando esteja SEMPRE ocorrendo.
(GAIARSA, 1987, p.17)9

O ar é vida. Podemos supor aqui que o Espírito nasce com a ideia de que
somos tomados, como a ideia de inspiração, por algo que não vemos: ar. Gaiarsa
então pensa: seria por isso que falamos sobre o "vazio" dentro do pulmão? Um vazio
criador? O ar entra neste espaço, preenchendo-o de vida. A prática do pranaiama
dos hindus tem como objetivo refinar a percepção e o controle da respiração,
desenvolvendo a relação com o ar - atmosfera (GAIARSA, 1987). Esse exercício de
consciência, de meditação, tem relação com esse "vazio criador", com a percepção
do Divino10 em mim.

8
Refiro-me aqui a "Técnica de Associação Livre" já descrita anteriormente.
9
Os grifos são do autor.
10
O Divino aqui está associado a essa ideia de que o ar está em todos os lugares, Onipresente; que
a atmosfera é Infinita; que o ar é transparente e luminoso, Luz; as palavras não só existem como
caminham pelo ar, logo o ar contém todas as palavras, Onisciente. Essas ideias podem ser
72

A respiração permite que entremos em contato com o nosso "eu". Quando


nascemos, nossa primeira inspiração fora do útero é o nosso primeiro ato de
independência. O choro seria nossa primeira ação “não-respiratória”. É uma forma
que achamos para nos comunicar. No entanto, quantas vezes "desprezamos" a
forma que estamos respirando? Quantas vezes um bebê "perde o fôlego" de tanto
chorar? Ou o oposto, quantas vezes uma criança "segura" o choro e a respiração,
porque não pode demonstrar certa emoção?
Voltando no tempo, para Reich uma das maiores inibições corporais é
justamente a respiração. Quando pensamos nas práticas orientais, como as dos
hindus, por exemplo, a consciência e o controle da respiração são exercícios que
pretendem cultivar a concentração e o equilíbrio interior (GAIARSA, 1987). Reich,
por essa perspectiva, falava que essas práticas que tinham como foco o controle da
respiração (a partir de exercícios mecânicos) são necessárias no começo de um
trabalho corporal para dar-se conta do modo como respiramos e qual é a melhor
forma de ampliar a respiração. O objetivo final não estaria ligado a um controle da
respiração ou dos sistemas orgânicos de nosso corpo, mas ao contrário: deveríamos
chegar a uma respiração livre, sem controle, no impulso da própria vida. Assim
afirma Lowen:

Esse "sem controle" vincula-se aqui à capacidade de entregar-se.


Embora no início desse processo seja necessária uma condução
mecânica da respiração, seria a entrega a esse fluxo que poderá
resultar num processo respiratório mais pleno e profundo. Isso
produz um "movimento de ondulação do corpo chamado, por Reich,
de reflexo do orgasmo" (LOWEN, 1982, p.20).

Quando realizamos um exercício de bioenergética ou qualquer outra


prática na qual uma parte de nosso corpo vibra, por exemplo, um alongamento das
pernas, essa vibração é um reflexo da circulação de energia pelo nosso corpo ou por

associadas à imagem de Deus. A palavra 'Spiritus' do latim significa "que sopra”. A 'alma' em
hebraico significa sopro, hálito. "As ideias relativas às coisas concretas era alguma coisa invisível,
mas muito atuante; uma operação potencialmente formativa, capaz de gerar e definir os objetos ao
modo como a laringe e a boca "formam" as palavras. Todas as coisas tinham uma essência ou um
espírito capaz de "explicá-las", isto é, todas as coisas tinham um nome! Todas as coisas eram
"pensamento divino" - palavras de Deus" O UNI-VERSO (por que UNI?) É UM POEMA! E UMA
DANÇA" (GAIARSA, 1987, p.18). Essa fala de Gaiarsa me atraie, pois, através dos mitos religiosos,
aproxima-se de uma maneira mais clara do que Reich observou durante a sua trajetória: a energia
que há dentro de nós é a mesma dos cosmos. Que a energia orgone é cósmica e está presente em
todos os seres vivos (REICH, 2003).
73

uma região específica do corpo. Um dos objetivos dos exercícios da bioenergética é


justamente fazer circular essa energia que estava parada, em estase.
Pode parecer ilógico, mas muitas pessoas têm medo das sensações que
sentem ou que irão sentir. Estamos acostumados a segurar as emoções, nossos
impulsos, o choro, a raiva, enfim, os modos de reagir a certas situações. No entanto,
somos aquilo que sentimos. Criamos a couraça e tensões para nos proteger, como
foi dito antes, mas o lado ruim é que isso reduz nossa respiração, nossa vibração,
nosso pulso. Neste sentido, a bioenergética auxilia a trabalhar o que seria uma base
sutil do impulso da vida e, justapostamente, de uma ação teatral: sua pulsação.

A vibração é uma manifestação da vida; o corpo vivo pulsa. A


vibração é um aspecto da propriedade pulsátil do tecido vivo. Se a
pessoa tem medo da falta de controle, a vibração pode-se tornar uma
bem-vinda libertação da característica rígida da neurose. [...] Em
alguns indivíduos, sensações fortes causam medo; a pessoa
saudável, entretanto, não teme as próprias sensações. Ter receio
das sensações é a marca da personalidade neurótica. Somos o que
sentimos. (LOWEN, 2007, p.189)

O aumento da energia no corpo amplia a respiração, a clareza de nossas


expressões, qualidades de movimentos e de emoções. Eu permito, através da
expiração, que a raiva ou alegria de meu personagem seja expressada na intenção
necessária em tal cena, consigo abrir o corpo para uma alegria que será vivida em
outra, e assim por diante. Nesta maneira de olhar, podemos dizer que somos um
palimpsesto capaz de acessar não só as memórias individuais, mas também a da
própria cultura em que estamos inseridos. A força que é gerada nesse tipo de olhar
ao trabalho do ator pressupõe uma prudência atoral enorme11.
Neste ponto, é fundamental trazer Artaud para a reflexão. O teatro se
estabelece ou é visto por um ponto de vista que está além do ator. Ele passa pelo
ator, por sua materialidade, em nome de uma força que é maior que ele. Por isso, o
ator deve ter prudência. A linguagem teatral seria como a margem de um rio, a água
seria os nossos sentimentos e temperamentos. Enfim, aquilo que é pertencente ao
homem independente de sua cultura, do tempo em que vive.

11
Chamo a atenção que não se trata de se jogar simplesmente para os impulsos, emoções e ações.
O ator deve ter consciência do que está fazendo na hora de uma criação teatral, para poder repetir o
caminho construído e se aproximar da experiência gerada.
74

Uma vez lançado na sua fúria, para não cometer um crime, o ator
precisa infinitamente de mais virtude do que o assassino de coragem
para conseguir executar o seu; e, neste ponto, pelo seu gratuito é
que a ação de um sentimento no teatro surge como qualquer coisa
infinitamente mais válida do que um sentimento realizado (ARTAUD,
1988, p.33).

O ator tem a capacidade de canalizar a energia em uma ação, em um


vetor. Supomos a criação de uma cena: durante uma improvisação, o ator ou a atriz
consegue realizar, por um curto momento, uma ação em que a energia, o
pensamento e as intenções estão todas bem direcionadas. Elas se encaixam ao
ponto de aquela ação ter tamanha força cênica que o diretor a define como
necessária à estrutura da cena. O ator/atriz deverá, a partir de um trabalho de
repetição, entender como se opera aquela ação e procurar repetir (no sentido de
reviver conscientemente em um novo presente) o caminho trilhado pela primeira vez.
O trajeto que o ator refaz é o das ações que o levaram a aquela experiência. Pode
parecer paradoxal, mas o trabalho do ator, nessa parte do processo, é ao mesmo
tempo sensível e mecânico: repetir as ações até que se tornem orgânicas dentro da
linguagem.
Partimos, então, da percepção da respiração como porta de acesso às
nossas resistências. Em um primeiro momento, a respiração pode indicar o humor
da pessoa, o temperamento, seu estado de saúde, etc. A projeção da voz, o tom em
que ela sai, a altura, todas essas características, e outras, configuram o biorritmo de
cada um de nós pautado na respiração: motor do movimento plasmático.
Uma obra teatral também possui uma respiração própria, devemos nos
lembrar. O ator durante o processo de criação e maturação da obra deve entender o
ritmo da peça, as necessidades energéticas e plásticas que ela exige. A respiração
entra como uma maneira de auxiliar o ator a estar nesse biorritmo (que não é o seu).
Em minha trajetória de ator, houveram alguns trabalhos em que minha respiração se
mantinha pesada em toda peça, deixando meus movimentos também mais pesados
e lentos. Em outras parecia que o ar faltava de tanta energia e agilidade que a obra
exigia. As dinâmicas de uma peça teatral são tão grandes e exigentes, que podemos
falar de um primeiro momento da necessidade de uma partitura de respiração. Cada
obra exige uma energia, um pulso. Uma entrega específica.
Para Reich, o modo como o indivíduo respira é definidor para sua
capacidade de se entregar. A capacidade respiratória diminui, na ótica reichiana,
75

pelos processos de autocontrole que desenvolvemos ao longo de nossa vida em


contato com a civilização. As couraças surgiriam como uma demanda do corpo para
se proteger ou satisfazer certas demandas sociais. Por exemplo:

Certas expressões, habituais na educação pela boca dos pais e


mestres, retratam com exatidão o que descrevi como técnica
muscular de encouraçamento. Uma das peças centrais da educação
atual [1930] é o aprendizado do autocontrole. "Quem quer ser
homem deve dominar-se". "Não se deve deixar levar". "Não se deve
demonstrar medo". "Cólera é falta de educação". "Uma criança
decente senta-se quieta". "Não se deve demonstrar o que se sente".
"Deve-se cerrar os dentes". Essas frases, características da
educação, inicialmente são repelidas pelas crianças, depois aceitas
com relutância, laboradas e, por fim, exercitadas. Entortam-lhes - via
de regra - a espinha da alma, quebram-lhes a vontade, destroem-
lhes a vida interior, fazem delas bonecos bem-educados. (REICH,
1975, p. 297)

No exercício de aprofundamento da respiração, a direção está em ampliar


a exalação do ar em vez da inalação, esta última está associada ao autocontrole do
ar que entra em nossos pulmões. Esse processo polariza a manutenção de reserva
de ar. Situações tensas, de perigo, de risco, etc. fazem-nos segurar o ar que
respiramos. Devemos segurar a respiração somente em momentos de defesa. Reich
adverte que tendemos a manter o ar preso enquanto deveríamos deixá-lo fluir pelos
pulmões.
Como exemplo, um exercício interessante a se fazer é respirar fortemente
durante vinte minutos12. A melhor posição é a deitada. Coloque as mãos sobre a
barriga para perceber se sua inspiração a faz inflar. Quando isso acontece, sua
respiração é diafragmática. Isso é um bom sinal. Inspire o máximo que conseguir
com o nariz e solte o ar pela boca, podendo deixar o som sair aos poucos. Inspire
com vigor e solte o ar na mesma intencionalidade. É importante usar a voz na hora
da expiração. A voz é vibração e ajuda a abrir espaços no corpo. Conforme a
necessidade de deixar a voz sair, poderá haver vontade de gritar ou de chorar,
enfim, escute seu corpo e entregue-se. Ressalto a posição deitada do corpo e da
respiração contínua. Embora o ritmo possa variar, devemos sempre usar uma
energia que não seja cotidiana para esse exercício. É preciso estar engajado nele e

12
Esse exercício eu realizei pela primeira vez num curso de Terapia Corporal Reichiana, ministrada
pelo psicólogo Dimas Calegari, no ano de 2016. Comecei a usar esse exercício no trabalho atoral por
trabalhar com o processo de expiração, aprofundamento da respiração e circulação de energia.
76

não ser feito de qualquer maneira. Conforme o passar do tempo, a expiração vai
ganhando mais continuidade e o uso da voz torna-se cada vez mais necessário e
crucial. A voz ajuda as outras partes do corpo a se conectarem e a vibração é uma
das respostas físicas. Ao terminar o exercício, tente responder as seguintes
perguntas:

- Você se entregou ao exercício? Seu foco estava em manter o vigor da


respiração ou no resultado que isso teria? Ou seja, você viveu a experiência ou se
preocupou com conceitos e resultados?
- Qual parte do corpo vibrou? Sentiu alguma dor? Medo? Houve
dificuldade em se entregar para as emoções que surgiram? Você sentiu os
movimentos respiratórios em sua pelve? Você escutou o corpo? Digo, se teve
vontade de bater com punhos no chão, de esticar a cabeça para trás, de apoiar os
pés no chão para ter mais apoio, se deu vontade de subir o quadril, etc.? Quais
foram as vontades e as necessidades que surgiram? Essa, talvez, seja a parte mais
difícil durante o exercício: se abrir para essas respostas, essas reações que surgem.
- Após o exercício, como você se sentiu? Que sensação ficou? Você se
sentiu embaraçado por fazer o exercício? Quais imagens surgiram? Que sentimento
ficou? Escrever sobre a experiência é sempre um ótimo exercício.

Esse exercício nos permite afinar nossas percepções. Uma espécie de


reação física. Não só uma proposição de ação, embora tenha a atividade consciente
e, de certa forma, mecânica num primeiro momento. Depois percebemos que essa
condução começa a se modificar para um estado de ser conduzido por. Outro
objetivo desse exercício é que a energia circule pelo corpo e se expanda pelo
espaço. Lembrem-se dos "Princípios básicos para o trabalho atoral em
Bioenergética" lá do início da Ação 1. No início desta Ação – Ação 2 – falei sobre a
vela e o ar, procurando deixar mais perceptível que circular o ar pelo corpo é
oxigená-lo, é produzir energia, que ao meu ver é o fogo do ator. O corpo fica
luminoso, cria-se um "campo de força" (LOWEN, 1970, p.60). Em vez de ficarmos
estagnados ou com a sensação de que não podemos criar, produzir, temos a
necessidade de fazer ações, de permitir que as reações tomem corpo, forma,
direcionamento. Esse campo energético não só cresce, dando aquela sensação de
"estar mais vivo", "mais acordado", "mais disposto", como gera impulsos de
77

atividades e de ações/reações pela pulsação que está mais viva. O exercício


anterior permite-nos ter uma experiência e exercitar os movimentos vibratórios
involuntários do corpo, partindo de uma ampliação da respiração e de um exercício
sutil de escuta de si.
Quando pensamos em pessoas em estados depressivos, é notório que
sua mobilidade, espontaneidade, sua presença física, seu "campo de força" é
extremamente reduzido. A relação com o mundo externo, nesse caso, é limitada ou
quase nula.

A mente pode dirigir a atenção do indivíduo tanto para o corpo


quanto para os objetos externos. De fato, podemos concentrar nossa
energia tanto em nós mesmos quanto no mundo externo. Uma
pessoa saudável pode alternar tais pontos de concentração fácil e
rapidamente, de forma que quase ao mesmo tempo tenha
consciência do seu corpo e do mundo que a envolve. Tal pessoa
pode, assim, ter consciência ao mesmo tempo do que acontece
consigo e com as outras pessoas. Porém, nem todos têm essa
capacidade. Algumas pessoas tornam-se tão conscientes de si
próprias que desenvolvem uma constrangedora autoconsciência.
Outras ficam tão conscientes do que acontece ao seu redor que
perdem a noção de si. Isso se dá, frequentemente, com indivíduos
hipersensíveis. (LOWEN, 1982, p. 56)

Perceba que Lowen fala de "pessoa saudável". Ler os textos da


bioenergética é fazer um exercício de transposição de sentidos e de necessidades
para o teatro. Essa fala de Lowen me lembra o capítulo "Concentração de Atenção"
de Stanislavski (1979, p.99-120). Primeiro pelo fato de o diretor russo ser claro ao
afirmar que o trabalho do ator lhe requer toda a sua natureza (corpo, espírito,
imaginação, intelecto, etc.) engajada à ação teatral. Ao falar de procedimentos de
trabalho do ator, nesse capítulo Stanislavski fala que o foco de atenção e ação que o
ator estabelece em cena não só amplia a sua qualidade de atuação como possibilita
uma condução da atenção do espectador.
A couraça muscular acaba separando o corpo de suas relações e
atenções; atenções estas referidas por Stanislavski. A integridade da pessoa, que
podemos explicar por aquela sensação de "inteireza" ou engajamento no presente,
necessita ser exercitada constantemente. No teatro, essa condição também se
mostra importante. O espectador, ao olhar uma cena teatral deverá ter a sensação
78

do envolvimento do ator com a sua ação, com o objeto de cena, com o colega 13.
Quando um ator tem o olhar vago em cena, quando uma ação dele não possui uma
objetividade clara ou quando o engajamento não é pleno, é bem possível que a
atenção do espectador acabe se perdendo. O envolvimento do ator na sua ação
estabelece uma qualidade básica ao teatro, independente da estética teatral.
Ao meu ver, esse engajamento, envolvimento do ator é uma premissa
básica para o trabalho. É uma atitude ética, uma necessidade artística e existencial.
Isso pode ser aprendido e cultivado, mas o impulso de fazer, esse "sangue nos
olhos" para criar e se encontrar com o outro, depende da pessoa, do ator. Alguns
exercícios da bioenergética nos auxiliam a estar mais perceptíveis a estes impulsos,
a estes quereres que projetam não só ações no espaço, no mundo, nas imagens,
mas também possibilidades de atuação e relação.
Stanislavski fala em 'Círculos de Atenção' (1979) para explicar
tecnicamente o que o ator pode fazer para conduzir a sua atenção e deixá-la clara
para o espectador. O “pequeno círculo de atenção” seria o próprio ator: sua cabeça,
braços, mãos, roupa que veste, a cadeira que está sentado ou não, etc. Neste
círculo, os detalhes podem ser vistos mais minuciosamente, e "também exercer
atividades mais complicadas, como, por exemplo: definir matrizes de sentimento e
de pensamento" (STANISLAVSKI, 1979, p.109). O “círculo médio” aumenta a área
de abrangência da atenção. Pensemos no palco inteiro: o cenário, o chão, os
colegas de cena, etc. Com uma área maior, o nosso olhar precisa de mais tempo
para notar tudo e de mais clareza para o espectador acompanhar as ações do ator.
O “grande círculo” englobaria a plateia e também o espaço imaginário, algo que está
além das paredes do teatro ou do espaço de apresentação.
Embora compreenda que Stanislavski em muitas vezes faz referência ao
trabalho do ator com o texto dramático, o leio sempre como um grande mestre que
me permite pensar sobre o meu fazer teatral. Independente da estética teatral na

13
O capítulo "Fé e Sentimento da Verdade" (1979) de Stanislavski coloca um dado interessante.
Aquilo que acontece em cena deve ser convincente para o ator, para seus colegas e para os
espectadores. A fé e o sentimento da verdade estariam ligados à crença do ator em sua ação e na
emoção sentida, enfim, numa situação dramática que, em muitos casos, é análoga ao nosso
cotidiano. No entanto, até essa verdade possui um limite que é próprio do teatro. "Você não deve
exagerar sua preferência pela verdade e a sua aversão pelas mentiras, porque isso o leva a exagerar
sua atuação da verdade, apenas pela verdade, e isto, por si só, já é a pior das mentiras. Procure,
portanto, ser fio e imparcial. Precisamos da verdade no teatro até o ponto em que podemos acreditar
nela" (1979, p.154). Isso amplia sua interpretação quando pensamos nas várias formas de se fazer
teatro: tragédia grega, teatro de rua, palco italiano, etc.
79

qual estou envolvido. O exercício de respiração da bioenergética nos aproxima


desse "pequeno círculo de atenção" de Stanislavski. Aprofunda-se em círculo
menores ainda e mais profundos. Conforme esse processo vai se configurando cada
vez mais repleto de consciência corporal, sensorial, as projeções de imagens para o
espaço - qualidades plásticas do movimento e direcionamento energético nas ações
do ator - são mais claras e delineadas. Nos tornamos criadores.
A “solidão em público” (STANISLAVSKI, 1979, p.109) é uma imagem que
me é muito cara para se pensar sobre o trabalho do ator. O meu envolvimento é tal
na ação teatral que, ao mesmo tempo em que tenho a atenção no meu círculo
menor, em mim e nas minhas ações, eu não perco a relação com os outros círculos,
que mudam durante minha ação. Ao mesmo tempo, há o público, pois é diante dele
que eu realizo essas ações, não para eles, mas na presença deles (GROTOWSKI,
1987).
O trabalho com o aprofundamento da respiração através da bioenergética
possibilita ao ator manter a atenção e a integridade, uma espécie de
prudência/coerência cênica, não só em sua ação, mas também nessa relação dos
círculos de atenção. Aqui penso que a respiração é o lugar de observação dessas
relações. Retorno, então, a Artaud em seu texto "O Atletismo Afetivo" no qual ele
argumenta que "o corpo do ator é apoiado pela respiração" (2006). Trago uma fala
de Lowen pontuando o trabalho da bioenergética com a respiração com os objetivos
teatrais:

As ondas respiratórias associadas aos movimentos da respiração


são as ondas pulsantes básicas do corpo. Quando essas ondas
passam pelo corpo, ativam todo o sistema muscular. Sua livre
movimentação garante a espontaneidade dos sentimentos e sua
expressão. Isso significa que, enquanto a respiração for plena e
completa, não haverá bloqueios para o fluxo de sentimentos. A
respiração leva ao movimento, que é o veículo para a expressão do
sentimento. (LOWEN, 1970, p.43)

Em direção semelhante a de Lowen, Artaud, afirma que a respiração é o


caminho para o ator se tornar o atleta afetivo, do coração, cuja substância de ser, de
agir, é "fluídica": "Pois se o conhecimento da respiração ilumina a cor da alma, com
maior razão pode provocar a alma, facilitar o seu desenvolvimento" (2006, p.155).
Leio isso como uma direção para o desabrochar das potencialidades do homem e
suas investidas na criação artística. Com essa perspectiva, o trabalho de
80

aprofundamento da respiração permite com a energia corporal se amplie e com isso


um aumento da expressividade corporal:

Tomar a iniciativa de despertar as experiências arcaicas mais


dolorosas e as zonas mortas que as exprimem... tomar a
responsabilidade do estado do corpo... "Tomar", sim. Mas, e depois?
Depois de tomar, não será o caso de oferecer? Depois do "por quê"
da tomada de consciência do corpo, não será útil procurar o "para
quem"? (BERTHERAT, 1987, p.187)

Esse trabalho faz o ator se deparar com ações fortemente enraizadas em


si. O bloqueio de nossa respiração está intimamente ligado à estrutura de nossa
couraça. Em muitas pessoas ela é muito rígida. São anos de uma estruturação
profunda dentro do ser. Por isso que Reich, Lowen e, até mesmo, Gaiarsa são
unânimes ao dizer que é muito raro uma pessoa possuir libertação orgástica plena:
onde a respiração seria fluída no seu estado "perfeito". Entregar-se, render-se e
doar-se são os movimentos necessários para seguir nesse caminho de respiração
mais plena (os caminhos variam de pessoa para pessoa). Muitos exercícios teatrais
trabalham justamente de forma para que o ator e a atriz alcancem outros níveis de
expressão e de qualidades de temperamento.
Ao trabalhar com a percepção da respiração, estamos nos aproximando
do confronto com o medo que temos de nossos sentimentos de prazer. Exponho
agora um exercício simples que pode nos fazer ter uma ideia de qual movimento o
corpo faz ao se aproximar desse fluxo de energia:

Deite-se, com os joelhos fletidos e com a planta dos pés tocando o chão.
Tente ficar o mais confortável possível nessa posição. Aproveite para relaxar e
deixar a força da gravidade agir. Sinta o seu corpo cedendo ao chão. Repare se a
sua respiração está leve e profunda e se não há tensões musculares que bloqueiem
o fluxo respiratório pelo seu corpo.
A pelve se moverá naturalmente em cada respiração subirá na expiração
e descerá na inspiração. Também a garganta se move para frente na expiração.
Utilizo aqui os desenhos de Lowen que mostram esse movimento:
81

Figura 6 - Exercício de respiração (LOWEN, 1982, p. 217)

Figura 7 - Reflexo do orgasmo (LOWEN, 1982, p. 217)

O reflexo do orgasmo é visto como o movimento em que "as duas


extremidades do corpo se aproximam. A cabeça, contudo, não faz parte desse
movimento de aproximação, pendendo para trás" (LOWEN, 1982, p.216). Os braços
acompanhariam esse movimento do corpo, indo para frente ao alto. Reich observou
essa manifestação física em outros seres vivos, chegando à conclusão de que esse
movimento é mais primitivo que nossa ação de sucção, concentrada na região da
cabeça. Ele é chamado de reflexo do orgasmo porque envolve todo o corpo, mas
não é um orgasmo, pois são coisas distintas. O exercício mencionado acima
82

acontece em um nível de excitação corporal muito baixo e sua amplitude do


movimento corporal é muito pequena, no entanto, há nele um dado importante: ele
permite que a pessoa experimente o ato de ceder. Num relacionamento sexual, por
exemplo, o grau de excitação é muito alto e o ato de ceder é muito mais complexo 14.
Quanto maior é a rigidez da couraça, maior é a tensão e ansiedade por parte da
pessoa. Lidar, portanto, com essa ansiedade e tensão torna-se um objetivo primário.
Coloco aqui uma fala de Lowen sobre isso:

Por este motivo, a terapia bioenergética não coloca tanta importância


no reflexo do orgasmo, como Reich o fazia. Não que não seja
importante, ou que a terapia não busque seu desenvolvimento, mas
coloca-se uma ênfase igual na capacidade do paciente de enfrentar a
tensão de modo que o reflexo funcione na situação sexual. Isto se
consegue fazendo com que a carga flua para as pernas onde o
reflexo assume uma qualidade diferente (LOWEN, 1986, p. 218).

A carga energética que sobe do chão para a pelve revela um elemento


agressivo na pessoa. Essa agressividade não está associada a um ato de violência
ou sadismo, mas à personalidade: capacidade de ir em busca do que se deseja. Em
vez de manter-se passivo em relação ao mundo e a si mesmo, esperando que
alguém satisfaça minhas necessidades ou desejos, a pessoa tornar-se capaz de me
mover. Assim podemos nos aproximar não só da imagem da autonomia, como
também da integridade. Estar relacionado com o chão significa que minha energia
corporal está fluindo pelo meu corpo. Isso em cena é primordial para o ator por
deixá-lo em estado de prontidão para a ação.
Essas ações e esse modo de ver o corpo permitem pensar em uma forma
de fazer teatro que vai além das normativas que nos reprimem, confrontando-as no
trabalho diário. Isso não é fácil. Chegaremos, inúmeras vezes, a camadas, distintas
entre si, de conflitos e mais conflitos. Estas, primeiramente, estão na base de nossa
individualidade, mas, com o passar do tempo, ampliam-se para outros campos de
vivência e de saber. Trabalhar a respiração e a circulação da energia corporal é
revelar, agir com ímpeto e externar essa crueldade da qual Artaud fala. Uma

14
Refiro-me a um aspecto geral de nossa cultura. Não somos estimulados a nos entregar aos nossos
desejos e as emoções que vivemos. Algo que já foi falado várias vezes durante o texto, mas que aqui
reitero para não pensar que todas as pessoas são assim e que aqui me refiro ao ato de ceder em
diversos contextos e impulsos. Em processos criativos de teatro a multiplicidade de circunstâncias
dramáticas, performáticas e de relação são inúmeras. Para esses momentos, muitas vezes
desconhecidos, que o ator deve se preparar para encontrar e se entregar.
83

crueldade que não é só individual, não só de um povo, mas que pertence ao espírito
humano.

Pode, agora, dizer-se que toda verdadeira liberdade é negra e se


confunde infalivelmente com a liberdade do sexo, que também é
negra, sem que saibamos muito bem porquê. Pois há muito tempo o
Eros platônico, o sentido sexual, a liberdade da vida, desapareceu
sob o revestimento escuro da Libido, que se identifica com tudo o
que há de sujo, de abjeto, de infame no fato de viver, de se precipitar
com um vigor natural e impuro, com uma força sempre renovada, na
direção da vida. (ARTAUD, 2006, p.27-28)

Não é um caminho fácil, visto que entraremos em contato com aquilo que
nos reprime. A violência que virá à tona será a mesma ou em maior grau que a
repressão. É preciso ter coragem. "Deve-se entrar em si mesmo armado até os
dentes" (VALÉRY,1997, p. 117). Não é à toa que Artaud utiliza-se de tantas imagens
violentas como carnificina, peste, tortura, sangue invertido, espíritos hostis etc., em
seus textos para referir a essas imagens as quais devemos enfrentar, atravessar,
dialogar, se relacionar.
O que quero aqui é acreditar na possível abertura do ser. Isso não é
pretensão de um novo homem, um novo ator ou um novo teatro. Como fala Valéry:
"Não estou virado para o lado do mundo. Tenho o rosto virado para o MURO. Não
há um trecho da superfície do muro que me seja desconhecido" (VALÉRY, 1997, p.
124). Esse talvez seja um dos meus impulsos mais fortes: de romper esses muros
que nos abafam. Como Artaud (2006, p.167), meu objetivo visa a esvaziar-me para
emitir esse grito: que eu abra espaço para as palavras certas, que a energia se
concentre e que a emoção saia no temperamento preciso. Assim penso: "Espero
que você esteja lá quando isso acontecer. Estou atento se vier o seu grito também".
Tenho os pés ligados à terra. Estou ciente de nossa realidade e do
caminho que quero percorrer. Vamos voltar a esse caminho. Agora me dirijo ao
grounding: o exercício de estar conectado ao real, ao presente, ao chão.

Grounding

A terra é, literalmente, a fonte e a sustentação de nosso ser.


Por essa razão, chamamos nosso globo de Mãe Terra.
Somos suas criaturas.
Alexander Lowen
84

Vamos começar com um exercício. Ele parece um pouco com o exercício


3 do início desta Ação. O "Arco" é uma postura que exerce pressão (stress) no
corpo, ampliando a respiração e a força nas pernas15.

Fique em pé e mantenha os pés separados, um pouco mais que a largura


do quadril. Os artelhos ficam levemente voltados para dentro. Coloque os dois
punhos fechados, polegares voltados para cima, na linha da cintura. Dobre os
joelhos ao máximo que conseguir sem levantar os calcanhares. Tente manter os pés
em contato com o chão. Arquei-se para trás, os punhos irão dobrar-se um pouco.
Lembre-se: o peso do corpo continua sobre os pés. Respire profundamente pelo
abdômen.

16
Figura 8 - Exercício do arco (LOWEN, 1982, p.64)

- Se você sentir uma pressão na lombar, a mínima que seja, significa que
você tem uma tensão nesta parte do corpo. Sugiro que você comece a arquear-se
15
"Um exercício similar é feito pelos praticantes de Tai Chi. Tai chi é um programa de exercícios
chineses que vem sendo praticados há séculos na China. Almejam ao grounding da pessoa e
fornecer-lhe um senso de harmonia com o universo. Há semelhança entre esses exercícios e os da
bioenergética. Estes últimos tem um enfoque mais específico para aliviar determinados
problemas."(LOWEN, 1985, p.31)
16
A ilustração seria uma referência (e não um modelo) para o desenho de arco com o corpo.
85

lentamente e em um ângulo que não force tanto essa região. Vá devagar e no seu
tempo. É comum o corpo tremer (vibrar) nesta posição.
- Respire profundamente e procure relaxar as tensões do corpo que são
desnecessárias para se fazer o exercício. Não é necessário fazer força com as
pernas ou nas costas. O único esforço será nos tornozelos e nos pés que sustentam
o corpo, e mesmo assim será pequeno.
- Você consegue manter um arco perfeito? Se as suas nádegas estão
empinadas para trás ou empurradas para frente, você interrompeu o arco e a
energia não fluirá até os pés.

Assim como o arco da flecha, esse exercício é uma posição de tensão. A


figura acima expõe um arco bem desenhando, sem pontas, nem torto. As partes do
corpo estão em equilíbrio: os pés bem encaixados, conectados ao chão, e a cabeça
no ar. Há uma total integração que permite que a energia flua pelo corpo e produza
uma vibração nas pernas. Esta é uma posição que nos permite sentir a relação que
o grounding gera: a pelve e as pernas conectadas ao chão, energeticamente
carregadas, e a cabeça levantada (ao ar, ao horizonte). Por outro lado, esta posição
indica quando a pessoa não está integrada (isso é percebido através das tensões e
inflexibilidade de algumas partes do corpo).
Já percebemos que o aumento do estado vibratório do corpo é um
indicativo inicial da fluência da energia vital. A partir desta atividade vibratória que se
manifestam a motilidade do organismo, as ações espontâneas e a expressão de
emoções consonantes com as sensações internas.

A qualidade de vibração de um carro ou de um corpo humano nos diz


em que condições está. Quando um carro balança ou as vibrações
são violentas, sentimos que algo está errado. Num corpo, vibrações
abruptas são sinal de que a excitação ou carga não está fluindo
livremente. Assim como as corredeiras de um rio denotam que
pedras ou outros obstáculos impedem o que, em outras
circunstâncias, seria um suave curso, também vibrações abruptas
denotam que a corrente de excitação está fluindo através dos
músculos espásticos ou cronicamente tensos. Quando as tensões
são aliviadas ou o músculo relaxa, as vibrações tornam-se mais
sutis, dificilmente perceptíveis na superfície e são então
experienciadas como um delicioso ronronar. (LOWEN, 1985, p16)
86

Além de aprofundar a respiração, o grounding aumenta a carga


energética do corpo. Tomando a minha própria prática como exemplo, ao fazer
esses exercícios, sinto uma sensação de coragem, de firmeza em minhas pernas,
de segurança: estou enraizado. Esse aspecto é físico e não psicológico, pois a
energia flui pelo meu corpo e eu sinto que sou capaz de ir em direção ao meu
desejo.
O grounding permite que se tenha mais percepção das ações e,
consequentemente, ter a capacidade de dizer qual o caminho percorrido e sua
resultante, qual construção está inserida na cena. O reconhecimento de uma
sensação será visto aqui como ação física orgânica, nos moldes stanislavskianos - e
até mesmo uma “reação” física orgânica. Isso acontece por haver um objetivo
externo e interno coerentes com a obra teatral. Não podendo ter controle de suas
emoções, escolher estar com raiva ou triste, então o exercício para o ator é apegar-
se e aprofundar-se nas ações que realizou e realiza.
Devemos ter em mente essa busca pelo que há de melhor na arte e
buscar entendê-la (STANISLAVSKI, 1979). Esse exercício manter-nos-á atentos,
conscientes de nossos movimentos dentro do percurso criativo e permitindo maiores
momentos de inspiração. "Representar verdadeiramente significa estar certo, ser
lógico, coerente, pensar, lutar, sentir e agir uníssono com o papel" (1979, p.43).
Podemos ler ”viver o papel” como estar apto a conduzir os processos internos
(subjetividade, intenções, impulsos) e externos (postura corporal, movimentação,
entonações vocais, tônus) dentro de uma coerência artística.

Bioenergeticamente falando, grounding serve para o sistema


energético do organismo da mesma forma que para um circuito
elétrico de alta tensão e é constituído de uma válvula de segurança
para a descarga de excessos de excitação. Num sistema elétrico, o
acúmulo súbito de carga pode queimar uma parte da instalação ou
provocar um incêndio. (LOWEN, 1982, p.171)

A pessoa fica mais “sólida”: consegue lidar com as suas emoções e


percebe o corpo sem fragmentação. Para o ator isso é fundamental, pois torna mais
clara percepção do lugar onde se está e como se portar. Assim, suporta uma carga
maior de energia do que a do dia a dia e, com maior carga energética, os
sentimentos são mais claros e sinceros quando revelados. O ator deve exercitar
esse “adentrar ao ventre” em direção às pernas, pés e chão. Por isso que muitas
87

pessoas se assustam com certos exercícios teatrais, justamente por causa desse
caminho que é inverso ao da ascensão. O aterrar ou o cair nos faz entrar em contato
com nossas emoções mais basilares.
Para Lowen, um dos primeiros sentimentos que surgem quando nos
deixamos "cair" é a tristeza. Ceder e chorar. "Romper" em lágrimas, como dizemos
no dia a dia. "Caindo que se aprende" é uma expressão que sempre escutamos,
mas, com o passar dos anos, não nos permitimos a isso. Entramos cada vez mais
nas normas da sociedade moderna e temos pouco tempo para tanta coisa a fazer.
Não nos permitimos cair depois de certa idade.
Enquanto Reich trabalha a partir do segmento ocular em direção à pélvis,
Lowen organizou seu trabalho na relação do corpo com o chão. Desenvolver o
grounding é nos tornarmos uma espécie de "antena de recepção", como afirma
Lazzaratto em seu livro "Campo de Visão: Exercício e linguagem cênica":

Recepção não apenas dos estímulos externos captados pelos


sentidos, mas também recepção dos estímulos internos, advindos
das sombras arquetípicas, veiculados pela intuição. Aos sentidos e à
intuição soma-se a imaginação. É por ela que o ator acessa a
irrealidade que dinamiza suas forças criativas. A coisa imaginada, a
bela imagem, a imagem ideal, nos mobiliza e também instiga os
sentidos. A imaginação nos sensibiliza. Por ser um produto da
mente, ela é pura criação. E não há quem afirme que ela não seja
verdadeira. Nela acreditamos, por ela transitamos e encontramos
transcendência. O ator age na ação da imagem. Ela o sensualiza,
retira-o do lugar-comum, de seus maneirismo e caprichos. Instaura e
instala novos ambientes, novas atmosferas, novas possibilidades de
ação. (LAZARRATTO, 2011, p. 46)

Assim, o ator, ao trabalhar o grounding, não está apenas se afirmando e


nem indo em direção a um individualismo. Estar ligado à terra é estar conectado aos
outros, desta forma, o ator se aproxima cada vez mais da experiência e do objetivo
coletivo que o teatro sempre foi. O grounding possibilita esse reconectar-se aos seus
semelhantes. É uma prática de "reeducação do sensível" que nos faz entrar em
contato com os mais variados tipos de resistências que possuímos. São elas que
impedem a ampliação da autoexpressão. Ao invés de termos uma relação
anestésica com o mundo, temos que partir para o caminho de seu oposto: a estesia
(OLIVEIRA, 2014).
Devido a isso, podemos ver algumas pedagogias teatrais se aproximarem
de práticas somáticas: na busca de um novo modo do ator relacionar-se consigo e
88

com o mundo. Aspecto que Artaud já mencionava quase um século atrás, dizendo
que nossos padrões de percepção e de representação estavam cada vez mais
cristalizados. Até mesmo o teatro entraria nesse lugar como "espetáculo para os
olhos" (QUILICI, 2004, p.46). Artaud queria que o teatro voltasse a ser o jogo com os
nossos medos.
Do livro "Teatro da Crueldade", de Antonin Artaud (2006), destaco, entre
tantas características e perspectivas de olhares em sua obra, a valorização da ação
dramática no e a partir do corpo do ator. O corpo, para o artista francês, afeta o
espectador como agente direto de comunicação, muito mais do que um mero
informante de signos. Isso possibilitaria uma participação do espectador na cena
através dos sentidos, da percepção - que seria muito mais significativa que uma
compreensão racional da obra artística:

O domínio do teatro, é preciso que se diga, não é psicológico, mas


plástico e físico. E não se trata de saber se a linguagem física do
teatro é capaz de chegar às mesmas resoluções psicológicas que a
linguagem das palavras, se consegue expressar sentimentos e
paixões tão bem quanto as palavras, mas de saber se não existe no
domínio do pensamento e da inteligência atitudes que as palavras
sejam incapazes de tomar e que os gestos e tudo o que participa da
linguagem no espaço atingem com mais precisão do que elas.
(ARTAUD, 2006, p.78)

Para Artaud, não é somente o corpo que estabelece essa relação e sim o
espaço como um todo. A concepção de corpo aqui é pressuposto para se falar do
acontecimento teatral. Mas, para isso, a energia criativa deve ser canalizada e
ultrapassar o corpo cotidiano, visto por Artaud como rude, pesado, que interpreta
papéis sociais, que representa e que reprime os seus impulsos e suas intensidades.
O que quero pontuar é que Artaud instaura uma nova relação com o
corpo e uma necessidade de o ator ter uma prática física, mental e espiritual que o
leve a um atletismo afetivo (2006). O ator não deve prezar por um corpo atlético, no
sentido militar e esportivo, mas direcionar a sua energia para a preparação e a
atuação. O desejo é ser capaz de afetar o espectador e ser afetado pela obra.
Sobre essa "nova cultura do corpo" e, respectivamente, de teatro que
Artaud propõem, Quilici nos aponta:

A eficácia da ação teatral se expressa, em primeiro lugar, na sua


incidência sobre a ordem orgânica. Não se trata apenas da
89

preocupação com as formas de preparação corporal do ator para


torná-lo "veículo" adequado de comunicação. É o próprio teatro que
deve tornar-se o lugar em que se dá uma transformação orgânica do
homem. A cena deixa de ser, como proposto na tradição aristotélica,
apenas uma ação mimética, que representa uma narrativa mítica ou
ficcional, e passa a reivindicar um poder de atuação sobre o "corpo"
como forma de acesso a novas modalidades de ser. (QUILICI, 2004,
p.48)

Então, surge a necessidade de encontrar outro corpo que não seja


adaptado, moldado, funcional e dócil como este corpo cotidiano. Porém, ele não
seria o seu oposto, marginal ou indisciplinado (o que beiraria uma perda de
consciência de si). Poderíamos dizer que o caminho se dá através de um rigor, de
uma ciência e uma prudência ligada a um desejo contínuo do fazer artístico
Quando estamos num trabalho sobre si mesmo esse fazer artístico ganha
muitas vezes contornos específicos para cada ator. Tentei de todo modo até aqui
criar um arcabouço de ideias que explicitasse as noções gerais da bioenergética,
dando exemplos de exercícios e do funcionamento energético no corpo. Agora, na
Ação 3, evidencio os relatos e reflexões de meu trabalho de ator com a
bioenergética. A dificuldade aqui está em explicitar o que acontece dentro de uma
sala de trabalho e no próprio ator (no caso sou eu) dentro do processo de criação.
Tentei de todas as maneiras criar meios de aproximar o leitor desse processo.
90

Ação 3 - Entre o poder dos impulsos e o poder da razão


"O Arquiteto e o Imperador da Assíria" - Fernando Arrabal
91

Mas o homem não gosta de estar exposto; ele é alérgico ao lugar. E, enquanto
alérgico, converteu-se num animal blindado e, quando alguém aponta para o céu (como um
personagem de Bernhard) e diz: "Veja, ali está aberto, vejam, está aberto; a palavra a-ber-to
está redigida no firmamento", então, já não se percebe o que isso quer dizer, pois o homem
blindado gosta de viver no fechado e de medir a palmo. O homem blindado expulsou a
hospedagem: não está aberto à visitação dos afetos ou da palavra.

Trecho de “Certeza do agora", de Juliano Pessanha


92

1
Relato 1:

Entrar na sala de trabalho sozinho é sempre difícil. O espaço vazio


é enorme nesses momentos. Podem nascer/acontecer milhares de ações nele.
Observo a sala2 e aqueles desejos de ações, de movimentos, gestos, imagens,
vão surgindo aos poucos. Estou parado e minha visão percorre o chão, os
objetos que estão no canto: cadeiras de madeira, outras mais modernas com
estofado, mesas de tamanhos diferentes, uma corda, um guarda-chuva,
minha mochila, as lâmpadas acessas e algumas apagadas, as janelas, as
portas (há mais de uma), sinto o chão gelado pela planta de meus pés,
algumas pessoas conversam lá fora... Meus fantasmas e meus buracos
negros3 percorrem esse primeiro contato. Observo eles aparecerem e irem
embora. Sei que vão voltar. Eles voltam. E não dá pra evitar a ideia de que
alguém irá me ver, ler o que irei fazer, etc.
No primeiro dia, escrevi a palavra RAIVA no meu caderno. Escolhi
trabalhar com esse sentimento para a criação. Dentro da bioenergética, há
uma série de exercícios expressivos que trabalham com vários sentimentos e
emoções. Ao contrário dos exercícios padrões de contato com o corpo e
relaxamento das tensões, que não possuem o foco de liberar energia
emocional, os exercícios expressivos tendem a trabalhar com a expansão da
vitalidade dos sentimentos, que, na bioenergética, deveriam ser liberados
através de ações fortes e com gritos de ordem (LOWEN, 1985, p.131).
A grande questão para mim sempre foi: qual o caminho que devo
realizar entre a bioenergética e a cena? Como de fato construir essa ponte?
Claro que há uma disciplina de ator associada a um entendimento da
bioenergética. Realizada diariamente alguns dos exercícios da bioenergética
1
Os "relatos" são um compêndio de anotações, observações, partituras de ações físicas, reflexões
que eu realizei durante o processo criativo. O relato 1 não é necessariamente sobre um dia de
trabalho, assim como o caso dos outros relatos neste texto. Esses relatos foram escritos na tentativa
de aproximar o leitor do meu processo artístico, daquilo que eu fiz, do que eu pensei durante a cena,
depois da cena, etc.
2
A sala em específico é a AC 011 do Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes da
Unicamp. Grande parte de meu trabalho foi desenvolvido lá.
3
"O vetor de minha visão é sobreposto por outro vetor - o vetor de minha história, onde o espaço está
cheio de meus fantasmas ou buracos negros. Se eu estou me projetando em um espaço onde há um
lugar aberto, permitido por minha história, posso prosseguir, mas se minha história ali é um buraco
negro - um espaço que falta, ou não percebido - darei de encontro a uma parede. E frequentemente o
que estamos vivendo é um confronto entre expectativa, desejo e história." (GODARD, 2006, p.2)
93

para manter uma respiração mais livre e o corpo mais enraizado. Essa
disciplina particular já contribuía e muito para uma postura, para um estado
de disponibilidade dentro da sala de trabalho. Mas como trabalhar por
exemplo com um sentimento como a raiva?
Programei-me para iniciar um aquecimento. No entanto, ao deitar
no chão senti que aquilo me desmotivou, mudou meu foco de construir uma
cena a partir de Arrabal para uma atividade que levaria a uma
intelectualização daquilo tudo. Parti para a cena. Segui o impulso de querer
trabalhar com o sentimento da raiva e com o trecho que escolhi do texto
dramático. Este era o seguinte:

(Sai [o Arquiteto] furioso. Longo silêncio. Ouve-se o Imperador


murmurar orações. O murmúrio vai crescendo. A porta se abre.
O Imperador aparece nu ou vestido com uma minúscula tanga.)
IMPERADOR (em tom meditativo) - Construirei para mim uma
gaiola de madeira e me fecharei dentro. De lá perdoarei à
humanidade todo o ódio que ela demonstra por mim.
Perdoarei meu pai e minha mãe pelo dia em que seus ventres
se uniram para me engendrar. E perdoarei minha cidade, meus
amigos e meus vizinhos por não terem percebido meu valor e
ignorado quem sou, e perdoarei, e perdoarei... (Inquieto, olha
de um lado para o outro. Enquanto fala, fabrica um espantalho
que coloca sobre o trono) Ah! Acorrentado. Enfim, só! Ninguém
mais vai me contradizer, ninguém vai debochar de mim,
ninguém será testemunha de minhas fraquezas. Acorrentado!
Que felicidade. Vivan las cadenas! (ARRABAL, 1976, p.55)4

A primeira ação que fiz foi ler o texto que escolhi: um monólogo do
Imperador. Li até o trecho que havia memorizado antes do ensaio. Isso me
possibilitou já ter sido afetado pelo texto, por suas palavras, imagens e
situações. Mas, depois de lê-lo, fiquei em pé no fundo da sala e me perguntei:
"como começar a cena?"
Parti da situação em que o Imperador está acorrentado. Peguei uma
corda de uns oito metros de comprimento e amarrei-a no meu tornozelo, no
braço, na cabeça... Tentei movimentar-me amarrado pela corda e não

4
Esse é o início do trecho que utilizei para fazer a cena. A cena toda se utilizou do monólogo do
Imperador no final do Quadro II do Ato I, que vai da página 55 à 60 na obra (1976). Ao longo desta
AÇÃO 3 irei citando trechos que utilizei.
94

consegui. A imagem não me agradou5 e muito menos as movimentações.


Amarrei-me à janela e testei alguns movimentos. Os movimentos saíram
desengonçados de uma maneira que não tinha muito a ver com o tônus da
cena que eu "buscava" - falo buscar num sentido mais íntimo, daquela
sensação de que é por esse caminho ou por aquele, sabe? Parece que eu
queria ir para uma ação que não fosse tão "real" como daquela concretude de
me amarrar à janela.
Parei. Respirei. Olhei para a corda, para o espaço, para a porta que
estava aberta. Falei em voz alta para mim mesmo: "Estou aqui. Eu estou
trabalhando o personagem Imperador. Onde está o arquiteto?" Foi o que me
perguntei. Peguei uma cadeira e escrevi no encosto dela a palavra
"Arquiteto". Tomei distância da cadeira e a olhei. Havia agora um outro na
cena comigo. Desenhei um pênis no assento e meu Arquiteto agora estava nu
na minha frente. O Arquiteto é o impulso livre, a sexualidade saudável, o
homem exposto. Resolvi, assim, o problema de apresentar o Arquiteto sem
ter outro ator em cena e, ao mesmo tempo, achando uma síntese deste
personagem.6 Desenhei na parede do fundo da sala "Imperator" e uma coroa
em cima. Aquela imagem na parede pareceu ser muito óbvia. Mas no
momento eu deixei. Não queria perder aquele rascunho. "Madeira versus
concreto. Português versus inglês". Essas associações me ajudavam a chegar a
aquela dualidade que já falei antes.
Olhei para o espaço de novo. "Estou aqui com o Arquiteto, que me
ignora. Estamos numa ilha e ele pode ir embora". Pensei isso por causa de um
diálogo entre os dois que há na peça:

5
Quando digo que a imagem não me agradou estou me referindo a uma somatória de preceitos
artísticos nesse caso. Não é o agradar de satisfação, de gosto pessoal, etc. É o agradar relacionado
com o objetivo da cena como um todo. Esse objetivo pode fazer com que eu tenha que fazer algo do
qual eu não goste, não me sinta confortável, etc. A ação que estava experimentando nesse caso não
me agradou porque evidenciava uma confusão de gestos, muito ruído sonoro e uma certa
"incompatibilidade" com a cena textual. Tudo isso pode fazer parte da cena? Claro que pode. Mas
estava sozinho na sala e um processo de criação é feito de muitas escolhas. Nesse momento julguei
melhor por continuar improvisando outros modos de pudesse passar a imagem de que eu estava
acorrentado. Foi depois dessas improvisações que eu escolhi a ação que mais se conectasse com o
universo do texto e das minhas investigações.
6
A escolha da cadeira de madeira não é um mero fruto de uma inspiração. Escolher uma cadeira de
metal por exemplo, ou uma outra toda estofada, mais moderna, geraria outras interpretações. O fato
da cadeira ser rude e velha, contribuiu para eu ver nela o arquétipo de Arquiteto.
95

ARQUITETO - Construí uma canoa...


IMPERADOR - Você vai partir? Vai me deixar sozinho?
ARQUITETO - Vou remar até chegar a uma outra ilha.
IMPERADOR - Ò jovem afortunado, Homero se fez o pregoeiro
das suas virtudes! (ARRABAL, 1976, p.22-23)

"Há a possibilidade do Arquiteto me deixar. Mas onde está o mar?"


Desenhei uma pequena praia no chão, em formato de "c" e escrevi “ilha” na
parte aberta, voltada à área de jogo, e um barco infantil, como aqueles de
papel, na parte que correspondia ao mar. Coloquei a cadeira-arquiteto
metade na ilha e metade no mar. "Ele estaria fugindo? O que fazer para ele
não ir embora?"7
Havia, meses atrás, feito uma cena em que eu era o Arquiteto e
queria sair da ilha8. Usava inclusive o diálogo acima. Então, ali estava
novamente o Arquiteto querendo ir embora. Mas agora eu era o Imperador e
não poderia deixar o Arquiteto sair. Peguei a corda e tentei laçar a cadeira
várias vezes do fundo da sala. Sem sucesso. Essa impossibilidade de eu laçar
a cadeira com uma corda fraca, expunha uma falta técnica minha: não sei
laçar. O que na cena achei interessante9. Para seguir a cena, corri até a cadeira
e a amarrei. Voltei ao fundo da sala e puxei bem forte a corda. Fazendo a
cadeira cair para o lado de dentro da ilha.
Abri espaço assim para trabalhar com a RAIVA, a partir da
dramaturgia que havia criado. Açoitei a cadeira inúmeras vezes com a
própria corda. Como o exercício de "Espernear"10 da bioenergética, eu gritava
"Não! Eu te odeio! Seu filho da puta! Vou te matar!" As palavras ajudam o
sentimento a ficar mais forte. Virei a cadeira para a plateia onde era explícito
o desenho do pênis no assento. Ali que eu açoitava. Fiz isso durante uns dois

7
Tento de todo modo fazer perguntas para a cena, para o texto dramático, de modo que as possíveis
respostas ou a busca delas me façam agir diretamente no espaço de jogo. Essas perguntas podem
gerar tanto a composição do espaço cênico, a utilização de objetos, a feitura de figurinos e, claro, um
movimento, um ação.
8
Essa cena eu fiz na disciplina "Dramaturgias" do programa de pós-graduação da Unicamp. Naquele
momento trabalhei vários trechos da obra de Arrabal com outros colegas do programa.
9
Novamente sobre o que penso sobre a cena: eu, Elias, não sei laçar um cadeira com uma corda.
Essa impossibilidade real, que pode ser interpretada na cena como um movimento tosco, me fez
associar com o lado impotente do Imperador. Ao mesmo tempo que ele quer usar da força para
segurar o Arquiteto na ilha, o meio que ele se utiliza para isso mostra a sua inferioridade diante da
capacidade de ação que o Arquiteto possui.
10
LOWEN, 1985, p. 135.
96

minutos, sem perder o vigor, sem perder a força e a energia. Até a raiva vir à
tona.
Eu fazia esses exercícios de espernear, de socar, chutar, com uma
certa frequência. É necessário imaginar uma pessoa, ou uma situação que se
segurou a raiva, para depois descarregar esse sentimento junto com o
movimento. Unindo assim: movimento, pensamento e intenção. Nas
primeiras vezes que fiz esses exercícios a raiva acumulada me fazia chegar a
um ponto em que eu quase chorava. O corpo respira mais profundamente e
embora muscularmente estejamos mais ativos, a sensação de leveza que se
sente é maior do que antes de começar o exercício. Depois de um tempo
fazendo esse exercício é claro a facilidade que se tem em acessar uma
energia mais forte e pontual. Assim como a sensação que se deve
"descarregar" a raiva, a tensão, o estresse, em outros momentos.
Pensei depois de fazer a ação de chicotear a cadeira: "O Imperador
não descarrega toda a sua energia. Ele é impotente. Por mais que tente, ele
não vai se liberar." Então, a raiva era trabalhada na ação de açoitar.
Semelhante ao bater os pulsos, a chutar e espernear que está presente nos
exercícios expressivos da bioenergética. O que surgiria depois?11
Saí da sala assim que terminei de açoitar a cadeira furiosamente.
Como se o Imperador estivesse indo para a sua tenda. Havia me esquecido
que a corda estava amarrada no meu tornozelo. Assim que a corda toda
esticou, meu pé ficou e isso puxou a cadeira que estava lá dentro da sala. Era
impossível eu sair daquele lugar sem levar de arrasto o defunto-cadeira-
arquiteto. Eu estava preso. Melhor! Estava acorrentado! Volto correndo para a
sala e vejo a cadeira no chão. Como a peça de Arrabal é repleta de jogos
entre os personagens, a pergunta veio na hora: "É outro jogo do Arquiteto?"

11
É bom lembrar que não é necessário toda vez que você for fazer uma cena que precisa demonstrar
raiva, a ação de chicotear, espernear, etc, precisa estar na cena. Esses exercícios funcionam para
você entender como expressar esse sentimento, o que logicamente abrirá caminho para outros.
Assim, depois de um tempo a expressão desse como de outros sentimentos estarão mais claros e
mais sinceros. Podendo ser expressos desde um ação de bater uma porta porque você saiu de cena,
até a ação de olhar para o colega de cena. Se eu usei a ação de chicotear em cena não é com o
objetivo de transformar os exercícios da bioenergética numa nova gramática gestual. O intuito foi de
evidenciar esses impulsos, escancarando eles fisicamente. A aproximidade dos exercícios da
bioenergética com a cena aconteceu porque o texto do Arrabal permite essa abertura.
97

Sim! Tentei acordá-lo. Então percebi que o matei. Lambi o dedo e apaguei o
nome na cadeira, cerimonialmente.
Fui para a parede do fundo e fiz a cadeirinha12. Desolado, ali
comecei o texto que havia memorizado:
"Construirei para mim uma gaiola de madeira..."
Repeti toda a cena. Senti que criei um fio narrativo interessante.
Senti necessidade de criar uma postura inicial para o Imperador.
Uma espécie de apresentação daquela figura. Batendo os pés no chão e
puxando os testículos para cima, peito inflado como militar. Realizei a
sequência de movimentos que terminava numa postura bem específica: o
caráter rígido da teoria de Wilhelm Reich.

O TIPO RÍGIDO
1 - Distorções principais
- curva do corpo para trás;
- o pescoço e o ombro são rígidos e o peito é tirado para fora.
2 - A imagem que se ressente
- o corpo parece teso exprimindo uma espécie de desafio, uma
preparação à agressão.
3 - Experiência vivida pela pessoa com estas características
- ressente frustações, pois julga-se constantemente face a um
clima de hostilidade;
- deseja afirmar-se pelas suas opções, procurando ser
admirado;
- tem dificuldade em se relaxar. (RODRIGUES, 1982, p. 34-35)13

A cadeirinha é uma posição que tem como objetivo o crescimento


psíquico da pessoa. Firmar-se no chão, na bioenergética, é estar seguro de
onde se está e para onde se quer ir. Assim, o Imperador se aproxima da
12
É um exercício que trabalha o grounding: apoia-se as costas na parede e deixa as pernas na
posição de 90 graus, como se estivesse sentado, mas sem a cadeira. O objetivo desse exercício é
aumentar a circulação de energia nas pernas e aumentar a conexão da pelves com o chão. A postura
de estar em uma cadeira nessa cena surgiu porque não havia uma cadeira específica para o
Imperador. No entanto, como essa postura é muito difícil de se permanecer durante muito tempo,
resolvi deixar ela em cena como um desafio pessoal.
13
A análise de caráter reichiana permite que o terapeuta leia o corpo do paciente a partir de sua
couraça. Os segmentos ocular, oral, cervical, torácico, diafragmático, abdominal e pélvico são o
conjunto de órgãos e músculos que a partir de seus funcionamentos se interligam em uma dada
expressão. O tipo "rígido" que usei agora é apenas uma denominação primária, serve apenas como
ponto de partida. Não deve bloquear uma reflexão acerca do corpo de uma pessoa, nem muito
menos enrijecer-se em determinados tipos para todas as pessoas. Nada é mais anti-reichiano do que
uma rígida classificação das pessoas. No entanto, os tipos "rígido", "dependente", "pesado", "que
carrega um fardo" são alguns exemplos de tipos de linhas tendenciais. Servem muito mais como um
"auto-diagnóstico" do que uma análise em si. Aqui me utilizei dessas características do tipo rígido
para criar uma postura física para o personagem Imperador.
98

verdade dele aos poucos: está sozinho na ilha. "Firmar o pé é, para ele,
reconhecer que está ficando louco? Talvez. Não sei." Pensei em fazer essa
cena até cansar ou cair no chão. Isso poderia levar um bom tempo. Não sei.
Algo para se pensar. A cadeirinha cansa as pernas para mim também.
"Acorrentado. Enfim só!" Uma boa deixa textual para começar a
correr ainda amarrado pelo calcanhar na cadeira. Corri na volta dela.
Gritando de felicidade o texto do Arrabal. "Estou só, posso fazer o que
quiser, inclusive cantar uma música gaúcha14." Me deu vontade na hora. A
felicidade me fez cantar um refrão de uma música de Lisandro Amaral,
cantor tradicionalista gaúcho. Virei a cadeira, depois de repetir a cena, e a fiz
de cavalo. Assim, a cadeira que era uma cadeira, passava a ser o Arquiteto e
agora um cavalo. É difícil estar em cena sozinho e manter essas trocas de
imagens. Isso fazia me sentir que estava conquistando territórios na cena.
A cena seguinte da "circunferência do raio da prisão"15 não consegui
achar um modo de fazê-lo. O trecho é o seguinte:

Meu universo: uma circunferência que tem por raio o


comprimento da corrente. (Mede.) Digamos três metros. (Mede
outra vez.) Digamos dois metros e meio ou talvez três e meio.
Portanto, se o raio é de três metros, digamos quatro, eu não
quero roubar, a superfície terá πR2, isto é 3,1416, R igual a 3,
ao quadrado nove, multiplicado por π... dá doze metros
quadrados. Que mais poderiam querer os H.L.M.? (Choraminga,
se assoa. Começa a vestir o espantalho com suas roupas de
imperador, continuando seu monólogo. Procura subir numa
árvore, sem sucesso. Pula, procura ver ao longe. Por fim, grita)
Arquiteto! Arquiteto! Venha, não me deixe sozinho. Estou
sozinho. Arquiteto! Arqui... (ARRABAL, 1976, p.55-56)

Fiz mostrando a bunda para o lado onde estaria o público.


Levantando a corda. Tremendo os pés. Girando a cadeira pela sala. Correndo
de uma parede à outra. Nada. Pensei que aqui poderia haver uma ação feita a
partir de um objeto e retirar depois ele. Trabalhar com a sensação da pele

14
Aviso para o leitor que nasci em Pelotas no Rio Grande do Sul e fui criado numa cidade do interior
do estado. Frequentei durante muito tempo Centro de Tradições Gaúchas. Por isso não me soou
estranho essa memória ter surgido.
15
"Assim também deve guiar-se o ator, não por uma infinidade de detalhes, mas por aquelas
unidades importantes que, como sinais, demarcam o canal para ele e o conservam na linha criadora."
(STANISLAVSKI, 1979, p.140)
99

com um tecido. Uma relação de afeto, sensível. Acredito que aqui cabe. Mas o
que? Que objeto? Como compor com a cena toda? Segui trabalhando.
Falar com o "lá fora" da sala quando o Imperador chama o
Arquiteto me pareceu interessante: o círculo de atenção se ampliava. Há um
mundo lá fora. "O que tem lá? O que os agrada? Porque o Imperador sai pela
porta? Porque o Arquiteto estaria para aquele lado?" Essas possibilidades de
leitura me agradavam.
Na cena da "Rotina" resolvi trabalhar com o movimento da pelve.16

(Recobra-se.) Preciso me organizar. Nada de negligências.


Levantar às nove da manhã. Pequena toalete. Meditação. Pensar
na quadratura do círculo. Talvez escrever sonetos. A amanhã
passará sem que eu sinta. À uma hora, almoço, abluções,
depois pequena sesta, se masturbar uma vez, somente uma,
mas bem, que isso dure três quartos de hora. Para isso eu
penso nessa atriz, como é mesmo que ela se chama, estou com
o nome na ponta da língua, com pernas arqueadas tão
estranhas, tão sexy e esses cabelos louros e esse ventre tão
proeminente. . . Stop! Depois da sesta. . . (Cuida dos detalhes
para que o espantalho reproduza exatamente sua própria
silhueta.) Aí está, falando sozinho. Você ficou esquizofrênico.
Não pode fazer isso. Cuidado com a loucura. (Pausa.) De tarde,
uma hora para me lembrar da minha família, outra para
recordar o Arquiteto, ou meia hora, ou talvez ele mereça
apenas quinze minutos. Jantar. Abluções. Enfim, cama. . .
digamos, às dez horas. Três ou quatro horas para conseguir
dormir, e outro dia vai chegar. Quanta economia vou fazer:
nem cinema, nem jornais, nem coca-cola. (Sempre falando, tira
a corrente. Olha para todos os lados e grita tristemente)
Arquiteto! Arquiteto! Volte! (Imitando a voz do Arquiteto)
Ascensorista, ascensorista, ascensorista! (Humildemente, ao
espantalho) Não brigue comigo, sei que faz um ano que você
me ensina a falar e não consigo pronunciar o s certo. (Faz uma
profunda reverência.) (ARRABAL, 1976, p. 56-57)

16
Resolvi manter essa parte que fala sim de uma tentativa de pegar um movimento da bioenergética
e inserir ela na cena. Foi um fracasso obviamente. A cena é muito maior do que essa simplista
transposição. Mas fez parte do trajeto e foi importante para entender que nesse sentido a
bioenergética não serve para um processo de criação em teatro. Claro, há aquele dado que falei
antes de os exercícios da bioenergética nos fazem estar mais sensíveis aos processos energéticos e
de auto-expressão que vivemos. Isso auxilia na criação, mas só se o ator estiver conectado a esses
processos internos que se relacionam com o externo. Por isso que me inclino muito mais a pensar a
bioenergética como lugar de preparação para o ator, como investigação de si, do que como uma
manual para criação de partituras. A bioenergética abre as portas e as janelas da casa apenas. O
dono da casa que escolherá como será os móveis, a pintura das paredes, a disposição dos cômodos,
etc.
100

Reich e Lowen falam que a energia vem da pelve. Exagero na


expansão desse movimento. É cansativo. Admito que fica quase estranha essa
ação e a potência dela dentro da cena. O foco aqui é o movimento da pelve
como soltura de nossos impulsos. O do Imperador é sexual reprimido. Então
ele cai. Desaba no chão porque não consegue lidar com essa energia
acumulada17.
Ao cair no chão o Imperador vira Arquiteto, pois este sabe lidar
com essa situação. Vira outro jogo. No chão, parto do corpo contraído
(pensando em qualidade de movimento e no movimento plasmático),
ocupando o menor espaço possível, nessa posição difícil tento me locomover.
Além de estar no plano baixo, assumo o Arquiteto. A primeira fala de
arquiteto: "Não brigue comigo, Imperador" serviu em cheio ao meu ver.
O trecho sobre o estupro, mais pra frente do texto, me fez pensar
em falar ele apenas olhando para um ponto no chão da sala. Talvez.
Memorizarei esse texto para o próximo encontro. Não estou contente com
vários pontos da cena. Mas como início acho que está bom. Tem outros
trechos que quero trabalhar com a respiração. Talvez no do estupro mesmo.
Fico por aqui.

17
Aqui me questiono: até que ponto nós não ficamos presos a certos discursos? Será que em alguns
momentos eu me enrijeço por defender a bioenergética e por causa do Reich? Digo, o que aconteceu
aqui não foi forçar uma barra? Esses momentos de certas formas são importantes justamente por me
fazerem levantar essas perguntas e ter mais calma, mais atenção nos caminhos e escolhas que eu
faço.
101

Sobre os respeitáveis enganadores e sua sociedade18

Existe na justiça moderna e entre aqueles que a distribuem uma vergonha de punir, que
nem sempre exclui o zelo; ela aumenta constantemente: sobre esta chaga pululam os psicólogos e o
pequeno funcionário da ortopedia moral.
"Vigiar e Punir" de Michel Foucault

A quantidade de documentos e registros das atrocidades cometidas nos


homens e mulheres por instituições durante os séculos é enorme. Foucault (2014)
escreveu um livro que já é praticamente um clássico dentro das ciências humanas:
"Vigiar e Punir: Nascimento da prisão". O objetivo do livro é apresentar uma "história
correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar" (2014, p.26). As novas
diretrizes de julgamento e punição do complexo científico-judiciário instauram, na
nossa sociedade moderna, a legitimidade do poder da punição com direitos a
justificações e regras próprias de sua singularidade. Instaura-se uma tecnologia
política do corpo (relações de poder e de objeto), ou seja, táticas de poder, de
mecanismos penais e de disciplina (2014, p.27).
Foucault surgiu no decorrer de meu trajeto, em especial nos últimos
meses. Ele não fazia parte da minha leitura, no entanto, seus textos não me eram
totalmente desconhecidas. No campo teatral, os estudos de Foucault são muito
relacionados ao treinamento do ator quando pensamos, por exemplo, nas técnicas
que aprendemos durante nossas vidas e que devem ser desautomatizadas para
conseguirmos um corpo mais artístico.
Foucault entrou em meu trabalho a partir da escolha da dramaturgia deste
trabalho: "O Arquiteto e o Imperador da Assíria" de Fernando Arrabal. Um dos
colaboradores deste trabalho, o diretor teatral Marcelo Lazzaratto, fez o seguinte
comentário ao se deparar com o meu trabalho: o personagem Arquiteto seria o
poder dos impulsos, simbolizado na figura do Reich; e o Imperador da Assíria, o
poder pela razão, em Foucault. A relação foi fantástica por criar para mim uma
imagem mais clara dessa polaridade19. Dramaturgicamente eu tinha em minhas
mãos o choque que meu trabalho evidenciava.

18
Intercalo entre os relatos algumas reflexões que realizei durante este trabalho com a bioenergética.
19
Dentro dessa polaridade que estou trabalhando há inúmeras outras. Ao ponto de ser necessário
criar outras para minimizar esta. O texto dramático de Fernando Arrabal permite que olhemos para
esses dois personagens, essas duas polaridades, não como algo estático, mas que é maleável, que
se transforma, transita, se apaga.
102

ARQUITETO (falando com um pássaro que o espectador não vê)


Pássaro, traga-me um copo d'água. (Ligeira espera. O Arquiteto
acompanha seu vôo. Estende a mão e apanha o copo que o pássaro
trouxe.) Obrigado!
IMPERADOR (depois de ter bebido) Agora você fala com os
pássaros na minha língua?
ARQUITETO - Isso é o de menos. O importante é o que penso: entre
nós, há transmissão de pensamento. (ARRABAL, 1977, p.50)

Já o Imperador da Assíria se mostra como o homem do poder, civilizado,


de inúmeros conhecimentos adquiridos, articulador de linguagens, uma pessoa de
caráter neurótico: tem problemas em relação à sua esposa, à sua mãe e a si próprio;
ele faz um julgamento para si e se pune pelas consequências.
Os personagens são praticamente míticos e nos permitem pensar sobre
essa educação da punição, sobre as moralidades e disciplinas em cujas lógicas
estamos inseridos. Coloco aqui, novamente, uma fala já mencionada do Imperador:

IMPERADOR (em tom meditativo) Construirei para mim uma gaiola


de madeira e me fecharei dentro. De lá perdoarei à humanidade por
todo o ódio que ela demonstra por mim. Perdoarei meu pai e minha
mãe pelo dia em que seus ventres se uniram para me engendrar. E
perdoarei minha cidade, meus amigos e meus vizinhos por não terem
percebido meu valor e ignorado quem sou, e perdoarei, e perdoarei...
(Inquieto olha de um lado para o outro. Enquanto fala, fabrica um
espantalho que coloca sobre o trono) Ah! Acorrentado. Enfim, só!
Ninguém mais vai me contradizer, ninguém mais vai debochar de
mim, ninguém será testemunha de minhas fraquezas. Acorrentado!
Que felicidade. Vivan las cadenas! (ARRABAL, 1977, p.55)

Quanto se pode extrair e pensar a partir dessa única fala do Imperador! A


imagem da gaiola de madeira é praticamente uma nova maneira de falar sobre o
caráter neurótico em Reich. Nessa fala, o Imperador exalta-se de felicidade por estar
preso e por, finalmente, livrar-se da carga de viver com outras pessoas e ter que se
comportar através de padrões. Ele é um homem doente, está sujeito a ser O
Imperador da Assíria: deve comportar-se como um rei, sujeito a obrigações e
poderoso ao ponto de mandar em todos e castigar muitos homens; vive em
cerimônias e age através de sinais específicos, com roupas específicas, etc.
No entanto, é o Imperador que possui o poder. O Arquiteto é submisso a
ele, inclusive nos jogos sexuais e sádicos que acontecem durante a peça. O
Arquiteto é o corpo produtivo e submisso ao qual se refere Foucault (2014). O
Imperador utiliza-se de seu conhecimento em técnicas de violência (não só física,
103

mas de maneira sutil e psicológica) e de ideologia (novos saberes, novos quereres).


Ele conhece o mundo o qual o Arquiteto, preso naquela ilha, nunca presenciou.
O Imperador, indo em outra direção, pretende acessar o arquetípico, o
arcaico - que vive e se manifesta no Arquiteto -, mas ele é a personificação do
homem moderno, por isso não consegue. "El hombre moderno permanece aislado,
aferrado al mezquino poder que le promete la sociedad, divorciado de lo real, la
fuente eterna de poder que da sentido a la vida. Como Adán, el Emperador,
expulsado del paraíso, continúa en el exilio" (TAYLOR, 1984, p.55). O que ele busca
é uma integração original: um desencouraçamento (que pode ser lido como
psicológico, mítico, religioso, etc.). Me pergunto: essa busca, do Imperador, se
consegue através da ausência ou pela aceitação do outro?
Os jogos que o Arquiteto e o Imperador fazem durante a peça são, para o
Imperador, como ensaios para a sua vida: situações as quais ele nunca conseguiu
enfrentar. Apesar de ter medo da solidão, de que um dia o Arquiteto realmente
embarque em sua canoa e vá embora da ilha, o Imperador demonstra capacidade
para estabelecer jogos para si mesmo. No entanto, ele necessita de ação, de reação
e interação. O pânico do Imperador resulta na imagem de ficar só na ilha. Ter o
Arquiteto ressalta a transcendência dos jogos que os dois estabelecem para si:
brincando de mãe e filho; de noivo e noiva; de guerra atômica; de crucificação; de
morte; etc.
A peça possui uma estrutura que coloca o ator em situação de jogo
ininterrupto. A dificuldade é enorme devido à grande quantidade de jogos em que os
personagens se colocam, às emoções, às situações e interações, aos objetos, ao
despojamento que o ator deve ter, etc. Há, ao mesmo tempo, um refinamento
poético e um jogo infantil expostos. Sagrado e mundano. Impulso e couraça20.
Com Foucault, percebemos que os processos de encouraçamento se
tornam institucionais e sociais. Desse modo, faz parte do homem moderno a
disciplina que fabrica corpos submissos e dóceis:

20
Fernando Arrabal não é o único a apresentar esses jogos e potencialidades em sua dramaturgia.
Jean Genet com suas peças como "O Balcão" e "As Criadas" também evidencia esses jogos das
máscaras sociais e a busca de uma inquietude de si, digamos. Na peça "As Criadas" de Genet, por
exemplo, as personagens Clara e Solange não conseguem decidir se matam ou não a Madame,
justamente por saberem que se matarem a sua patroa, elas deixaram de serem criadas. O que elas
abominam, mas que ao mesmo tempo são o que elas são.
104

A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de


utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de
obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele
por um lado uma "aptidão", uma "capacidade" que ela procura
aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia
resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a
exploração econômica separa a força e o produto de trabalho,
digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo
coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação
acentuada. (FOUCAULT, 2014, p.136)

A peça de Arrabal nos faz perceber o Imperador que há em nós e nos


incentiva a ir em direção ao nosso Arquiteto. Somos os dois. Ir em direção ao
Arquiteto é se flexibilizar aos outros polos que existem entre essas dois vetores. A
atenção de Foucault está voltada às instituições e a de Reich ao homem que sofre,
que procura ajuda e que, de alguma forma, preocupa-se com sua potência. Reich
acredita que o homem adulto é capaz de ter condições de se afastar de verdadeiras
situações de perigo e de incômodo.
A preocupação aqui não é saber em que situações estamos em perigo,
mas quais nos impedem de entrar em contato e usufruir do encontro de
experiências: como o encontro com a dramaturgia de Arrabal. A criação teatral
estaria na ordenação dessas experiências, sensações e relações estabelecidas. Isso
vai para outra direção, diferente das nossas formas de ser no cotidiano.
Chegamos a um ponto importante: não há a identificação do ator com o
personagem, mas sim o vai e vem nessa relação: não é o Elias que fala, é o
Arquiteto que fala. Assim, essa separação é base para sair de automatismos, para
sair do desejo de permanecer confortável, de fixar, de enquadrar, de encouraçar a
própria atuação.
A investigação encontra-se no trabalho sobre o arquétipo do Arquiteto e
do Imperador, pois suas formas de lidar e ser no mundo possibilita com que lidemos
com nossa couraça. Uma fala de Artaud expõe essa dificuldade, esse caminho atroz
não só para o ator como para o espectador, visto que o teatro que cumpre essa
função de desencouraçamento. Através do teatro somos impulsionados a procurar o
nosso lugar dentro de uma nova ordem, de uma nova atmosfera, de uma estrutura
artística, de um impulso criativo:

Um desastre social tão completo, uma tal desordem orgânica, esse


extravazar de vícios, esta espécie de exorcismo total que pressiona a
105

alma e a põe fora de si, indicam a presença de um estado que por


outro lado é uma força extrema e no qual se encontram ao vivo todos
os poderes da natureza, no instante que ela vai consumar qualquer
coisa essencial. (ARTAUD, 1988, p.35-36)

Artaud, como já dito antes, coloca o que vimos em cheque, em dúvida.


Aquilo que era inquestionável, aquele caminho para se trabalhar o corpo-couraça,
modifica-se. Pensávamos que tal caminho levaria ao nosso “pote de ouro”: a ação
síntese e forte. Mas o impulso acabou parando em outro lugar. O que, até então, me
mantinha de pé, um certo percurso dentro da bioenergética, fez com que eu caísse.
Não estamos no lugar das fórmulas prontas, do caminho certo, do “bê-á-bá”.
Devemos sempre ter em mente que certas coisas levam um tempo para se ajustar.
O trabalho sobre si visa não um olhar para si somente, mas um olhar da pessoa em
relação ao mundo. Dessa forma, que o trabalho no teatro, um processo de criação,
pode nos levar a lugares que não saberemos ao certo o que iremos colher e como
iremos colher.
106

Relato 2:

Comecei com a leitura do texto que eu havia memorizado, lendo em


voz alta andando pelo espaço. Levei para o ensaio uma canga como um
adereço a ser trabalhado.
Primeiramente, fiz um aquecimento energético-respiratório: 15
minutos de respiração forte. Deitado no chão com as solas dos pés apoiadas
no solo (LOWEN, 1985, p.41). Respirando com vigor. Inspirando com o intuito
de inflar a barriga e o peito (nessa ordem). A respiração era sempre
diafragmática: inspirar tentando obter o máximo de expansão e soltar o ar
realizando um som com o objetivo de tomar conta de todo o ambiente.
Energia para fora.
Ao terminar, estava sentindo um formigamento na pele do rosto e
nas mãos. Assim que fiquei em pé, percebi que uma corrente elétrica ia desde
os ombros, passava pelo cotovelo e terminava nas mãos. Isso era mais forte
quando eu sacudia os braços. Parecia que chicoteava o meu braço
internamente.
Após isso, organizei o espaço da sala para passar a cena. Coloquei
uma cadeira em pé e os objetos ficaram atrás de uma mesa que resolvi usar.
Escrevi no chão "ISLA", desenhei uma linha curva e um barquinho para
representar o espaço de jogo.
Fui passando a estrutura da cena e, durante as repetições e
experimentações físicas - uma livre improvisação, defini o seguinte para o
começo da cena:
Primeiro momento
- Em pé, na frente da mesa olhando para a beira da praia da ilha.
Começo mexendo o corpo na sequência dos segmentos corporais definidos
por Reich (1975). Forma-se, assim, uma sucessão de caretas e posturas
diferentes. Descobrir as posições e movimentações possíveis (fazer esse
exercício como aquecimento).
Segundo momento
- Quando o corpo fica numa posição de cócoras ou agachada,
levantar ao máximo e expandir o movimento corporal. Movimento
107

plasmático. Da expansão máxima, começar a tensionar os músculos do corpo


e chutar o ar (exercício de raiva da bioenergética). Isso é feito até o corpo-voz
ser tocado pela reverberação da energia produzida e lançada no espaço.
Terceiro momento
- Perceber a energia criada circulando pelo corpo. Suspender,
flutuar, ocupando o mínimo de espaço. O movimento deve ser calmo e
prazeroso.
- Enraizar: baixar a cabeça até a altura da cintura, abrindo a base
das pernas e as mãos vão em direção ao solo.
- Subir rapidamente o corpo, na ponta dos pés, segurando os
genitais.
- Bater os pés no chão, inflar o peito, fechar o rosto. Assumir a
postura de uma pessoa do tipo rígido.
- Fazer isso para os quatro cantos cardeais.
Leves variações vão sendo feitas. As formas não se estabelecem por
completo. A energia gerada no início dá o fluxo dessas movimentações.
Quarto momento
- De frente, postura do Imperador, bater as mãos e chamar o
Arquiteto.21

Quando vou aquecer sempre me pergunto: o que devo aquecer?


Para o que? Sempre penso que a atenção e a energia devem ser geradas para
poderem ser colocadas em um lugar que está vinculado com o fazer teatral.
Um estado de disposição, de interesse. Está certo que há dias que algumas
partes do corpo parecem meio "presas". Então, rebolo um pouco, dou uma
corrida, dou uma dançada para ir afrouxando os músculos, deixando o ar
entrar entre alguns órgãos. O alongamento às vezes me ajuda a isso. Mas

21
Ressalto que o movimento plasmático, o trabalho de espernear, de enraizar, não é seguido na cena
como uma transferência de movimentos e posturas da bioenergética para a cena, já falei sobre isso.
Aqui é uma tentativa de se utilizar da lógica desses exercícios e se utilizar como mote para
exploração de movimentos para a cena. Criar uma movimentação que aqueça o corpo, que faça
circular muita energia por uma movimentação forte e depois suspender o corpo, deixando a energia
tomar conta do espaço, é pensar numa dramaturgia voltada a questões energéticas.
108

esses movimentos mais circulares, mais elétricos e expansivos sempre me


fizeram "acordar" as energias melhor.22
Assim, aos poucos, parece que surge uma vontade de executar
algum movimento. Preciso abrir os braços ao máximo, estico-os e imaginando
que atravessam a parede. Faço o mesmo movimento usando o mínimo de
esforço dos braços para ver o que acontece. A sensação é outra. As pernas e
o quadril vão em direção ao solo. A cabeça vira para o outro lado. Minha
postura corporal me faz sentir pronto para uma briga. Imagino sendo
alvejado por uma flecha no peito e lentamente uma tensão se localiza no
lado esquerdo do tórax. "Fui atingindo por uma flecha." Como seria ser
atingido por uma flecha? Se eu fosse atingido o que eu faria?23 Procuro
tensionar aqueles músculos lá dentro, como se, por algum motivo, eu
pudesse controlar os batimentos cardíacos. O rosto se abre de surpresa e
caio. Morro alvejado por alguém que não vi. A brincadeira me diverte e a
repito. Em tempos diferentes para ser alvejado, em abrir o rosto, em cair, em
levantar.
Tem dias que está frio. Entro na sala de trabalho e preciso correr,
aquecer o corpo, abrir a boca porque o maxilar está tenso. Tenho o maxilar
muito tenso, então abrir a boca, emitir alguns sons, botar a língua pra fora,
fazer caretas me faz acordar. Depois o olho já vê de maneira mais viva. Os
ouvidos também acordam. Percebo melhor a altura que estou e minha ligação
com o horizonte. Mas para o que estou aquecendo? Quando irá acontecer
alguma coisa? Abro os dedos dos pés em cada passo. O chão também está
gelado. Cada pisada é como se o chão me empurrasse para cima. Os pés
estão pesados, os olhos estão ligados. Abro o maxilar de novo e solto o ar.
Ele sai forte. Repito o movimento todo. Agora eu ajudo o som a sair com uma
vogal. Parei. Fiz força com os braços e o peito. Mas, e o resto? Corro

22
Isso não é uma regra de trabalho. Durante minha trajetória realizei vários tipos de procedimentos
de aquecimento e de trabalho atoral. Desde aqueles onde a estrutura e o tempo de alongamento
eram seguidos rigidamente, até mesmo trabalhos em que se entrava diretamente na cena. O que
prezo dentro de meu trabalho, ainda mais quando estou sozinho numa sala, é como ativar as
energias necessárias para uma criação artística. Não é uma atividade para alongar as costas
primeiramente, embora isso possa ser necessário, mas é criar essa disposição atoral que está além
de um dia ruim de cansaço, de estresse, de preguiça, de desmotivação, etc. Trabalhar sozinho é
vencer alguns inimigos invisíveis e certas formas de auto sabotagem.
23
STANISLAVSKI, 1979, p.73-75.
109

novamente. Percorro o espaço por um tempo. O jogo agora é o chão


empurrando meus pés. Já não faz tanto frio. Abro a boca de novo e solto a
língua e o ar. Faço força com o corpo inteiro.
Isso é aquecimento? Estou criando alguma coisa? O movimento do
peito aberto e da flecha me agradou. Posso usar na cena. Mas espera aí... Se
alguém me perguntar como criei a cena, eu vou falar que eu fui fazendo
movimentos que ora eu tinha intenção de fazer, ora eles surgiam como uma
necessidade24. De onde isso vem? De abrir os braços, o peito? Alvejado por
uma flecha? Sim, o Imperador descreve um dia que estava apaixonado e
desenha um coração trespassado por uma flecha. Mas só depois eu penso
que aquela imagem surgiu por causa da leitura do texto, do trabalho de
memorização. No entanto, eu não faço isso na cena. Eu estou em outra
postura, fazendo outra coisa. "Ah, mas como é bonito ser atingido por uma
flecha e ver o coração sendo tomado pelo cupido." Se não houver brincadeira
dentro do trabalho, da exploração, da pesquisa, a trabalho pode ficar sisudo.
A brincadeira permite que eu me abra também, que eu me jogue para a
ação.25
Mas isso era um aquecimento, eu não comecei a fazer nada. Às
vezes me pergunto se esta estrutura a que nos acostumamos: chegar no
espaço, alongar, dar uma aquecida no corpo, falar alguma coisa e começar a
ensaiar depois, etc, já não cria uma aura de expectativa? Talvez não seja essa
a pergunta. Será que fazemos isso para preparar uma atenção mais fina para
aquilo que poderá surgir? Concentrar-me para aquilo que virá? Não deixar
escapar os impulsos, as inspirações? Está bem, são apenas indagações.
Sabemos que muitos atores trazem coisas de fora do trabalho e do teatro
para a hora do ensaio. Mas estar poroso é o quê?

24
Lembro aqui de algumas práticas somáticas cujos exercícios partem de uma escuta corporal. O
objetivo deles é deixar-se levar pelas vontades do corpo e não impor formas ou expectativas de
movimentação. Esses tipos de exercícios nos aproximam dos impulsos de movimentos e das
correntes energéticas do corpo. O caminho aqui é de uma escuta já dita antes no texto.
25
Mantenho essa parte no texto para evidenciar essas partituras que surgem no trabalho corporal,
mas que não fazem parte da estruturação final da cena, pelo menos não diretamente. Esse caso é
um exemplo desses materiais que surgem durante processo e do qual os espectadores não tem
acesso. Novamente, essa pequena partitura de movimento não foi utilizada diretamente na cena, no
entanto ela não só foi importante para o trabalho como demonstra essas experimentações que vão
fazendo o ator se aprofundando nos caminhos que surgem no processo criativo.
110

Lembrei-me de Artaud (1993), que descrevia os seus sentimentos,


as suas emoções, não com o intuito de se curar, mas de pesquisar, de ir mais
ao fundo das questões humanas. Ele se mantinha atento, poroso para aquilo
que acontecia à sua volta e com ele próprio, direcionando isso para uma
criação, fosse teatral ou literária. Seria loucura pensar que o ator deveria
estar sempre observando os acontecimentos ao seu redor? Observando as
pessoas? A maneira como andam, falam, bebem, dançam? Como expressam
ou escondem as suas emoções? E por que não observar-se a si também?
Stanislavski já falava isso (1979). O ator deveria viver o máximo
possível de experiências novas; colocar-se em situações diferentes lhe
permitiria agir de maneiras distintas, de aprender novas técnicas e conhecer
outras pessoas, outros modos de ver o mundo. A sala de trabalho é outro
mundo. Estou sendo o Imperador da Assíria agora, mas poderia ser Fausto
neste espaço. Estaria em meu escritório em vez de estar em uma ilha. Um
cachorro poderia entrar no recinto e bagunçar todos os meus livros enquanto
eu tento de todas as formas traduzir um trecho importante da Bíblia.
Imaginar isso já faz com que eu olhe o espaço de outra maneira, que eu me
comporte de distinta ao olhar para a porta ou a parede do fundo, por
exemplo.
Então, aproveito a brincadeira. Crio o jogo de que o Arquiteto não
vem até mim, tenho que o seduzir, fazer algo de que ele goste. Assim, ele
virá. Pego uma canga que está no espaço e a coloco no quadril. Desamarro-a e
a prendo na altura do peito, vira um “tomara que caia”. Tento ver as minhas
pernas e acabo revelando-as. "Sim! O Arquiteto gosta disso." Começo a
dançar mostrando as pernas em alguns movimentos. Chamo o Arquiteto.
Nada. Ele não vem. Pego uma cadeira e com um giz escrevo "Arquiteto" em
seu encosto. Desenho um pênis no acento. Coloco a cadeira na margem da
praia com a água. "Ele vai fugir, a não ser que eu dance para ele." Então, eu
danço. Procuro encontrar posições e torções que mostrem partes de minhas
pernas. "O Arquiteto não se mexe. Ele é uma cadeira, claro. Se ele fosse o
Arquiteto eu bateria muito nele."
Eu interrogo a cadeira-arquiteto porque não me respondeu.
Desengonçadamente eu pego uma corda e o açoito. Machuco a mão. A corda
111

bate nas minhas costas. Bato na cadeira e a corda bate em mim. Fico mais
furioso por causa disso. Paro. Meu corpo está suando. O desenho do pênis na
cadeira, onde eu bati sem parar, está praticamente apagado.
Decido manter essa cena pelo grau de violência que há no uso de
poder contra o impulso sexual (analogias que vou criando). É a moralidade
versus o impulso orgástico. Cuspo na cadeira, piso nela. Acredito que isso
seja demais, mas não paro a ação, pois não posso ficar nessa categoria do
que é demais26. Talvez isso me leve a algo interessante. Aliás, se estou
sozinho na sala de trabalho, o que seria demais? Porque penso que uma ação
é demais, sendo que estou pesquisando? Porque trancamos os fluxos com
nossos pensamentos?
Paro o relato para abrir uma reflexão. Claro que alguns fluxos
também não se seguem por causa de músculos tensos, no entanto, como
criar com liberdade? Sinto que algumas noções que aprendi na minha
formação como a da atenção e da presença me fazem ficar, às vezes,
prisioneiro de certas formas de pensar/agir. Há um modo certo de atuar?
Que expectativa é esse que crio?
Estou tentando não cair num lugar de adestramento de novo, que
eu não me subordine por tentar escapar de uma outra questão. A noção de
escuta por exemplo: até que ponto esse abrir-se para o outro não pode ser o
medo de uma instabilidade, de uma inadequação? Penso que ao ler Reich
aprendo que as estruturas são importantes, mas que podem pender apenas
para as suas funções. Nos levando a uma certa rigidez. O trabalho do ator
guiado por essas abordagens reichianas tendem a nos pensar no fluxo, na
dinâmica, no movimento e não no estático, no fixo. O teatro por si só
apresenta essas duas facetas, obviamente. Mas essa investigação inicial, esse
processo de criação, deve ter o impulso da vida: preservando o movimento
espontâneo.

26
A minha dificuldade aqui é desvelar o processo criativo, por isso que quando digo "na categoria do
que é demais" estou explicitando uma necessidade de não criar barreiras tão rapidamente num
processo de investigação. Claro que a fronteira de se machucar seriamente ou de ferir alguém tem
que ser clara. No entanto, gosto de pensar que é mais fácil fazer cortes e diminuir intensidades do
que o inverso. Deixar-se ir sem preconceitos e moralismos pessoais numa criação de cena pode ser
muito enriquecedor.
112

Aquilo que me interessa, o meu desejo, talvez seja um caminho


para uma resposta. De certa forma, descrevi acima um caminho que pode
nos dar pistas do que seguir. Penso que, quando realizo uma ação e ela
resulta numa outra ação diferente, não planejada, não pensada, pode ser um
bom caminho. É a surpresa! O ator se surpreende com o movimento que
nasceu, com a ação que construiu. Muitas vezes isso acontece em
improvisação, depois de um período de tempo ou rapidamente. Na verdade,
não tem como saber, é realmente uma surpresa.
Quando faço uma ação em que o corpo parece já saber como se
portar, que a energia já sabia qual intensidade era necessária, em que o
pensamento se direcionou certo e que a intenção encaixou, enfim, são ações
que nascem com um poder de afeto muito grande e são exemplos que nos
fazem acreditar no trabalho.
Na cena que construí do Imperador, deixei-me levar pelo universo
da peça: tudo aquilo que lia, pelas imagens que surgiam, por toda a pesquisa
e pela energia que reverberava dentro de mim27.
Ao ver que a cadeira-arquiteto estava morta, peguei a canga que
estava usando e virei a viúva do Arquiteto. Fiz ação inicial de flutuar, agachar
e joguei a canga para cima, suavemente colocando-a na cabeça, parecendo
aquelas figuras que lembram a Virgem Maria. Chorei pela cadeira. Depois
deixei ela em pé. Chorei de novo. Enfiei o dedo na boca e apaguei o nome
Arquiteto que estava escrito na cadeira.
Indo em direção à parede do fundo da sala, fiz a cadeirinha. Ainda
como "Virgem Maria" comecei a falar o texto: "Construirei para mim uma
gaiola de madeira..." Na hora do texto que falava sobre "os ventres que se
uniram", juntei as palmas das minhas mãos e fiz uma sucção entre elas,
fazendo um barulho como se fosse um ato sexual. Cuspi entre as mãos. Vi-
me fazendo aquela ação. Imaginei meus verdadeiros pais olhando eu fazer
aquilo e dizendo aquelas palavras. Quando cheguei à parte do texto que fala

27
Essas imagens advém de uma pesquisa individual sobre a obra de Fernando Arrabal: leitura do
texto dramático "O Arquiteto e o Imperador da Assíria"; de outras obras do movimento pânico; de
filmes de Arrabal e de seus colaboradores, como o Jodorowski; de imagens de outras montagens
teatrais das peças do "O Arquiteto e o Imperador da Assíria", etc.
113

do perdão à cidade, aos amigos e vizinhos, peguei a canga que estava na


cabeça e coloquei nos ombros. Virei Jesus Cristo sendo crucificando.

Observações:
Pensei, no ensaio hoje, que os exercícios de bioenergética são um
modo de abrir os poros no corpo. É como se abrisse uma porta para um lugar
em que você quer usar tudo o que tem ali. Claro que há limites de contato e
de contágio. No entanto, os exercícios da bioenergética, que coloquei em
algumas cenas e fui transformando, me impulsionam para uma qualidade de
energia, uma necessidade de agir. Mas não acredito que essa transposição de
exercícios direto pra cena seja o caminho certo. É até mesmo limitador. Foi
apenas uma tentativa de pesquisa.
A bioenergética serve muito como preparação do ator, como
exercício de si, de propriocepção e aprofundamento da respiração. Ao
realizar esses exercícios a energia do corpo se modificava e a do espaço
também. Está num outro lugar o trabalho com a bioenergética. Porque sinto
que esta postura, essa ação, essa energia, essa maneira de se portar é ridícula
ou desconfortável? Quanto de moralidade, de preceitos, ideologias do ator
interfere na cena? Porque é estranho falar desse modo e estar agindo assim?
Como sentir, ao mesmo tempo, que isso tudo vive em mim?
O ridículo, por exemplo, pode ser um desses lugares de acesso, de
estar num lugar que não é meu. Talvez deva acrescentar “em outros lugares”.
Como no começo da cena, em que poderia haver uma dança inicial. Eu
dançando como uma bailarina de forró, de cabaré. Que distância isso tem de
mim? Essa diferença de movimento, de tônus, de contexto, permitirá que eu
me coloque em outro? Mais um ponto: quando grito "Arquiteto!" tenho que
realmente sentir que o Arquiteto é a última pessoa da terra além de mim!
Ficarei sozinho se ele se for. Como falar isso? Como passar essa sensação de
medo de ficar sozinho, de ser esquecido, de enlouquecer, de deixar de existir
pela falta de outro? Mas isso é teatro e não bioenergética!
114

O prazer e a criação

Se queremos descobrir o homem, é preciso tomar consciência da tendência de


todo homem encouraçado: o ódio ao Vivo.
Wilhelm Reich

Para se chegar a uma forma, a uma postura "x", a uma ação, a um tom de
voz em uma construção de cena, o ator precisa gastar ou chegar a outros níveis de
energia. Apresentei, durante uma temporada na cidade de São Paulo, uma obra em
um espaço alternativo muito grande28. Quando estamos em um espaço amplo, até
em momentos em que o personagem tem que sussurrar ou está triste,
inconformado, etc. mesmo quando as ações parecem ser mais contidas, o
movimento corporal e a voz devem estar ampliados; e adequando-se às
necessidades espaciais. Foi o caso nesta temporada: as ações, os movimentos e as
energias que eram trabalhadas não tinham nada de cotidianos.
O teatro, para mim, é um acontecimento que deve ter uma centelha de
29
vida . Mas ela não é a vida. É uma expressão artística dela. Com poder de síntese
de uma ideia, de uma situação, de uma imagem. Para essa criação é preciso ter um
norte, um mote para trabalhar. No meu caso, é a ideia de perigo que se apresenta
como um dos caminhos. Penso que em uma peça teatral, alguém deve sair ferido.
Não fisicamente, mas é preciso haver um enunciado de vida e de morte no espaço,
para que essa arte gere desconforto30. Isso me lembrou uma pintura de Magritte
chamada "A tumba dos lutadores".

28
A obra a qual me refiro é "Diásporas" com direção de Marcelo Lazzaratto. Ela ficou em cartaz no
Sesc Pompéia durante os meses de maio e junho de 2017. O espaço em questão tinha capacidade
para 600 pessoas e o palco ficava no meio do teatro, como se fosse uma passarela.
29
Essa ideia está muito presente no livro "A porta aberta" (2010) de Peter Brook, que usei como
referência ao longo desse texto.
30
Essa é uma das tantas possibilidades de se fazer ou de se apreciar uma obra de arte. A gama de
produções de teatro contemporâneo é enorme. Seria muita pretensão minha diminuir todas essas
criações em apenas um fator ou vetor de concepção teatral. Novamente, o que exponho aqui é uma
visão particular que não abrangerá todos os pensamentos a cerca do fazer teatral.
115

Figura 9 - A tumba dos lutadores - Rene Magritte - 1961

Essa pintura me instiga a pensar que o prazer está ligado ao ato de criar.
Pensando no quadro acima: de que adianta ter uma grande rosa dentro de seu
quarto, se o mesmo está prendendo-a? Se nem a janela está aberta, não há sequer
uma corrente de ar e as cortinas estão paradas; quanto tempo essa flor tem de vida?
O teatro é um lugar de onde alguém deve sair ferido, visto que, para realizar o meu
desejo, eu preciso me movimentar e lutar por ele. Isso me expande ao ponto de
quebrar janelas, portas e paredes que me prendam. Essa sensação é prazerosa e
não quer dizer que todo o processo de criação é uma dor ou que tenha que passar
por uma crise profunda.
Se tivesse que dar nome a essa sensação de criação chamaria de
erotismo. O perigo do qual falei inicialmente se nutre disso. "Do erotismo é possível
dizer que ele é a aprovação da vida até na morte" (1987, p.11), diria Bataille na sua
obra "O Erotismo". Não estamos no campo da experiência ligada à vida e à paixão.
Estamos falando de uma ação que é violenta porque viola o nosso íntimo e nos toma
de consciência.

Sem uma violação do ser constituído - que se constitui na


descontinuidade - não podemos imaginar a passagem de um estado
a um outro essencialmente distinto. [...] O que significa o erotismo
dos corpos senão uma violação do ser dos parceiros, uma violação
que confina a morte, que confina com o assassínio? Toda
concretização do erotismo tem por fim atingir o mais íntimo do ser, no
ponto em que o coração nos falta. (BATAILLE, 1987, p.16)
116

Uma ação que desnuda o ator e, assim, o espectador. Utilizo essa


imagem do desnudamento (GROTOWSKI, 1987)31 como potencialidade para a
atuação. Na pintura que mostrei de Magritte podemos refletir sobre essa ideia.
Imagine ver uma casa com uma única janela e ela está fechada. O resto são
paredes altas e um telhado que impede qualquer outro tipo de entrada. No entanto,
não é em toda casa fechada que há imensas rosas vermelhas, como no quadro.
Para cada casa há os seus tipos de flores e talvez em outras casas podem haver
diferentes formas de vida. Com isso, chegamos a um lugar de mistério e curiosidade.
Isso gera uma certa vontade de descobrir o que há lá dentro. O nosso
trabalho até pode ser de destruir certas paredes, mas isso se torna difícil: qual a
espessura da parede? Qual o material? E assim por diante. Como artista, penso que
devemos trabalhar para mostrar o que há de vida dentro de nossa casa, nosso
corpo. Esse corpo-couraça se desvela para o outro em um ato que é erótico,
prazeroso. Mas o não desvelar também. Devemos pensar sempre dessa
possibilidade em cena. Às vezes o corpo-couraça ou essa casa fechada pode ser
tão misteriosa ao ponto de que só a sua presença no palco já seja significativo o
bastante.
O orgasmo reichiano (REICH, 1975) faz pensar sobre os caminhos que
podemos trilhar em direção a um ato criativo vivo. Não podemos somente ficar no
nosso "euzinho", nos nossos problemas pessoais, isso, em termos artísticos, é
confortável32. Isso é possível se o artista conseguir ter aprofundamento necessário
para abarcar questões universais ou coletivas em sua obra. Aqui me respaldo
totalmente nos textos de Artaud nos quais ele fala sobre o papel do teatro na
sociedade. Mesmo levando em conta os nossos contextos históricos e sociais que

31
"Se eu tivesse que expressar tudo isso numa frase só, diria que se trata de um problema de dar-se.
Devemos nos dar totalmente, em nossa mais profunda intimidade, com confiança, como nos damos
no amor. Aí está a chave. A autopenetração, o transe, o excesso, a disciplina formal - tudo isso pode
ser realizado, desde que nos tenhamos entre totalmente, humildemente, sem defesas.Este ato
culmina num clímax. Traz alívio. Nenhum desses exercícios nos vários campos do treinamento de
ator deve ser de superfície. Deve desenvolver um sistema de alusões que conduzam a um ilusivo e
indescritível processo de autodoação." (GROTOWSKI, 1987, p. 33).
32
"A pessoa enraizada pensa com o corpo todo, seus sentimentos e sensações participam
fortemente de todos os pensamentos. O termo understanding [entender] é uma expressão linda, pois
denota que o pensamento do indivíduo se baseia em seus sentimentos e sensações, assim como
advém deles, de sua sensação de conexão com a Terra e suas criaturas. Não é uma maneira egoísta
de pensar, focalizada basicamente no eu, mas sim no nós. É o que temos em comum com nossos
semelhantes que nos torna verdadeiramente humanos. Enfatizar a diferença resulta em perder a
sensação de vinculação, que é um atributo do enraizamento na realidade" (LOWEN, 2007, p.164)
117

nos diferenciam da época de Artaud, as formas de expressão não podem ser


limitadoras. Falo de um lugar onde o espírito é tocado e não apenas as nossas
individualidades, as nossas personalidades.

Mas o verdadeiro teatro, porque se mexe e porque se serve de


instrumentos vivos, continua a agitar sombras nas quais a vida nunca
deixou de fremir. O ator que não refaz duas vezes o mesmo gesto,
mas que faz gestos, se mexe, e sem dúvida brutaliza formas, mas
por trás dessas formas, e através de sua destruição, ele alcança o
que sobrevive às formas e produz a continuação delas. (ARTAUD,
2006, p. 7)

Esse "abalar as estruturas" é importantíssimo no teatro, pois, retornando


ao quadro de Magritte, é como se movimentássemos essas paredes, essas
máscaras que nos definem ou que nos prendem. Isso não é matemático: “faça isso e
tal máscara sairá”. É preciso lembrar que há um mistério, uma surpresa. Nunca
sabemos o que acontecerá e quando. No entanto, algo nos atrai o olhar. Por isso é
um ato obsceno fazer teatro. "A obscenidade significa a desordem que perturba um
estado dos corpos que estão conformes à posse de si, à posse da individualidade
durável e afirmada" (BATAILLE, 1987, p17).
Não só estando em contato com o outro, o trabalho do ator tem como
maior desafio encarar o medo. Estar em um palco é lidar com um estado corporal
que não é normal, pois sabemos que tem alguém nos olhando, que estamos
fazendo algo que não é o mesmo de estar sozinho em casa: estamos num momento
extracotidiano. O ator precisa lidar com muitas informações ao mesmo tempo e com
uma incerteza permanente sobre o que irá acontecer. Ensaie e repita as ações
quantas vezes quiser: não sabemos o que, de fato, irá acontecer no momento da
apresentação. Devemos atuar com essa disponibilidade e doação de energia para
esse ato obsceno, erótico, que tem como impulso interior dissolver as formas já
conhecidas e apresentar a finitude de nossas ações e do mundo.

A crueldade é antes demais nada lúcida, é uma espécie de direção


rígida, submissão à necessidade. Não há crueldade sem
consciência, sem uma espécie de consciência aplicada. É a
consciência que dá ao exercício de todo ator da vida sua cor de
sangue, sua nuance cruel, pois está claro que a vida é sempre a
morte de alguém. (ARTAUD, 2006, p.118)
118

Enquanto criava as cenas do "Arquiteto", isso ficava em minha mente: a


necessidade de abrir-se criando, ao mesmo tempo, um espaço fora de mim, que
estivesse além de minhas referências. Uma ação potente. Porque trabalhei com o
sentimento de RAIVA durante a criação? Porque é a maneira como respondemos ao
mundo quando algo nos atinge intimamente. Socialmente, ela não é bem vinda, por
isso a guardamos dentro de nós. No entanto, a raiva é uma das emoções de acesso
a esse lugar de potencialidade do ator, ou melhor, de abertura de afetividade.
Porque além de ela abrir espaço dentro de nós, ela também transforma o ambiente.
O corpo-couraça é aquilo que construímos para não ferir os nossos
desejos e que serve para não agredir o que está fora de nós. Podemos pensar da
seguinte maneira: o homem criou a sociedade para "lidar com" e "estratificar" a sua
raiva, escondê-la. Quanto mais raiva “seguramos”, mais encouraçados ficamos.
Lidar com a raiva (pode ser por poucos minutos por dia) é necessário para
atravessá-la. Aprendi que os exercícios expressivos da bioenergética possibilitam
entrar em contato com os meus sentimentos - mesmo que mecanicamente
conduzidos num primeiro momento33. A importância disso é avançar na questão
energética e expansão de si. A imagem que nos guia é o do prazer orgástico: do
entregar-se ao prazer, à vida. O caminho, no entanto, é tortuoso, cheio de curvas e
contracurvas. Os obstáculos normalmente são quatro: o medo da dor, o medo do
desconhecido, o medo da morte e o medo de abandonar-se ao desconhecido.
Nos exercícios devemos pensar em três etapas:
- Conduzir a ação: a partir de uma movimentação mecânica do corpo,
estimular uma sensação, uma atividade que poderá gerar outras possibilidades de
ações. Na respiração, eu conduzo a entrada e saída do ar, por exemplo, de maneira
forte, pelo diafragma, durante cinco minutos, etc. A partir dessa movimentação
mecânica a ação vai mudando;
- Fazer um movimento ou estar em uma postura que ajude a ação: se
antes era mecânico todo o movimento, agora a atenção está em manter o estado a
que se chegou ou a qualidade de ação que nasceu. Usando a respiração como
exemplo: eu não conduzo mais o ar, mas fico em uma posição corporal ou em uma

33
Alguns dos exercícios eu realizo desde os anos que estive em Pelotas/RS. Quando ingressei no
mestrado me deparei com outros escritos de Lowen e dos estudos somáticos. Ainda hoje realizo
esses exercícios diariamente e antes de ensaios no meu grupo Os Barulhentos (SP).
119

movimentação que facilite a pesquisa que estou realizando. O estado de


concentração que contribui para o exercício é importante;
- Deixar-se: que é simplesmente seguir um fluxo, um impulso, um doar-se,
acreditar numa sensação, num desejo, entregar-se. A dificuldade aqui está em não
usar o fluxo para benefício próprio. Pode ser muito gostoso, divertido e encantador
encontrar esses impulsos, mas não se pode usá-los no sentido de "prendê-los"
apenas porque a sensação é boa. Permita que o fluxo passe. “Desapegar” é um
verbo bom para esses momentos, inclusive no caso de muita dor, não a retenha,
deixe-a ir.
Por esse viés, podemos entender algumas práticas teatrais da segunda
metade do século XX para cá. Grotowski (1987) levou a prática do treinamento como
parte importante do trabalho de ator. O diretor polonês influenciou muito o teatro
ocidental contemporâneo criando conceitos como 'ator santo', 'autorrevelação',
'autopenetração', para indicar o que ele pensava sobre a atuação e o teatro34. Seus
pensamentos também fazem parte de meu imaginário sobre o teatro. Estudei muitos
os seus escritos e considero como uma das minhas principais influências. Por uma
questão metodológica não o trago de maneira mais profunda aqui. Contudo, foi a
partir de uma prática influenciada por Stanislavksi e Grotowski que me deparei com
os textos da bioenergética na minha busca de aprofundar o trabalho corporal no
teatro.
O encontro que tive com os textos de Reich, Lowen e Bertherat fizeram
com que eu lesse as práticas de treinamento de outra maneira. Se tivesse lido
Grotowski depois desses três autores, minha interpretação de seu teatro seria
diferente. Na época, eu realizava treinamento teatral: fazia a prática de exercícios
que exigiam de mim muita entrega. Essas práticas criavam certo fascínio pelas
capacidades que vamos descobrindo em nós mesmos e como isso vai criando
intensidade para a cena.

34
"Não me entendam mal. Falo de "santidade" como um descrente. Quero dizer: uma "santidade
secular". Se o ator, estabelecendo para si próprio um desafio, desafia publicamente os outros, e,
através da profanação e do sacrilégio ultrajante, se revela, tirando a máscara do cotidiano, torna
possível ao espectador empreender um processo idêntico de autopenetração. Se não exibe seu
corpo, mas anula-o, queima-o, liberta-o de toda resistência a qualquer impulso psíquico, então, ele
não vende mais o seu corpo, mas o oferece em sacrifício. Repete a redenção: está próximo da
santidade." (GROTOWSKI, 1987, p.29)
120

Entendo que tais práticas criam certa tensão dentro do trabalho atoral ou
do grupo. Fiz uma peça que tinha em cena 10 atores35 e nunca houve um sentimento
de união nesse coletivo. Havia rupturas entre nós, distanciamentos que apareciam e
se evidenciavam em cena. Em um dia de apresentação um dos atores machucou a
perna em cena aberta, tendo que sair carregado. A apresentação continuou e foi a
primeira vez que o coletivo se uniu, que havia uma força interna surgida daquele
acontecimento de tensão e ausência, que fez todos estarem juntos. Parece que a
situação fez com que os atores percebessem que o "euzinho" de cada um era bem
menor do que a peça teatral e o próprio fazer artístico.
Claro que esse é um ponto de vista sobre o trabalho atoral, mas me
aproximo dessas práticas, que não são só um processo de subjetivação, e sim uma
dessubjetivação também (QUILICI, 2015). Falei durante o texto sobre a dicotomia
corpo/mente e afirmo agora que a sua conexão deve ser construída, porque ela não
é dada. Nós somos culturalmente ensinados que há essa "diferença", uma distância
entre essas duas instâncias.
Lowen afirma que o passado é o nosso corpo e é nele que está a nossa
alma36. O corpo é a materialidade que nos liga à vida e à natureza. Durante a nossa
formação, passamos por inúmeras etapas de desenvolvimento que estão
conectados à própria vida da Terra. O corpo está sujeito às leis da natureza e a
morte seria o máximo dessa ligação. No entanto, em nossa cultura ocidental o corpo
natural é praticamente depreciado. O que é valorizado são padrões de beleza
vigentes, de formas de se portar, etc. A mente consciente do homem pode ser a
principal diferença entre nós e os outros mamíferos. Dominamos os outros animais,
os tratamos com desprezo e estupidez, ao ponto de, em uma parte da história da
civilização, negarmos o nosso corpo porque justamente era a nossa parte "animal",
"instintiva"; ao contrário da mente. Seguindo essa tradição de pensamento, Lowen
fala:

O corpo é físico; cresce e decai. A mente, parece, é etérea, pura e


incorruptível. O corpo é pesado e sujeito à lei da gravidade. A mente
é leve e seus pensamentos transcendem tempo e espaço. O corpo é
vulnerável; pode ser machucado e destruído. Ao contrário, a mente
parece invencível. As crianças têm uma fórmula que ilustra essa
ideia. Ao serem provocadas pelos companheiros, respondem: "Paus

35
Pelo teor de tensão entre os atores prefiro não mencionar o nome do trabalho.
36
Olhar a definição nas páginas 69-70 desta dissertação.
121

e pedras podem quebrar meus ossos, mas palavras não me


machucam." Comparado com os animais predadores do início da
história, o corpo humano era frágil e relativamente indefeso. A mente,
contudo, era poderosa. O homem capaz de dominar os animais e, no
fim, acabou vencendo-os. (LOWEN, 1970, p.114-115)

Lowen, no entanto, arrebata que o corpo possui sensibilidade, que é ele


que expressa a alegria, o prazer e o êxtase. Ao falarmos em graça e beleza, por
exemplo, ao tentarmos definir essas palavras, precisamos nos referir ao corpo, pois
eles estão conectados. "Se disser que beleza é algo que agrada aos olhos, terá
incluído duas referências físicas, prazer e olhos, em sua definição" (1970, p.115). É
nosso corpo que aprecia o mundo à nossa volta: que sente a água do mar tocando
nossos pés e subindo pelo corpo; a visão do céu estrelado e sua amplidão; o cheiro
de um bolo recém pronto; o canto de um pássaro; etc.
As práticas teatrais que enfatizam essa construção da conexão entre
corpo-mente estão preocupadas com esse identificar-se com o corpo, com a vida,
com a natureza e com os processos de criação. O DESENCADEAR A
AFETIVIDADE POTENCIAL DO ATOR tem o objetivo claro de entrar em contato
com essas nascentes dentro do ator, seja de seus desejos como de seus temores.
Esse desencadear está ligado a aquilo que é da natureza humana.
Quilici, ao estudar o pesquisador japonês Yasuo Yuasa, deparou-se com
o conceito de shugyo, um conceito que está ligado a diversas artes tradicionais do
Japão. Quilici usa-o para pensar o trabalho atoral. O conceito japonês de "cultivo" é
o que considero mais interessante:

Em primeiro lugar, o cultivo refere-se aqui a uma prática multifacetada que


visa a fazer florescer certas qualidades humanas latentes. Estas se
manifestariam numa experiência mais profunda e penetrante dos
fenômenos e de sua radical insubstancialidade, tendo uma repercussão
transformadora no próprio sujeito e nas suas relações com o mundo. As
proposições e técnicas desse cultivo são inseparáveis de uma determinada
visão do homem e das possibilidades da consciência, que seriam testadas
na relação direta dos praticantes. (QUILICI, 2015, p.191)

Volto à imagem da "A tumba dos lutadores" de Magritte, para pensar


sobre essa fala de Quilici, quando ele traz esse conceito de cultivo, penso
diretamente no cuidado de uma planta: nesse trabalho de cultivar, cuidar, arar, dar
água, nutrir, enfim, criar um ambiente propício para que esta flor, que esta
manifestação de vida que brotará ou jorrará do ator, possa virar linguagem. Por isso
122

que, ao mesmo tempo em que trago essa ideia de corpo-couraça, tenho consciência
de não basta desmembrar-se das máscaras e da couraça, mas prestar atenção às
qualidades de relação com o mundo que essas experiências vão criar 37.
O corpo-palimpsesto, para mim, é uma imagem muito cara, pois acredito
piamente que é possível adentrar às nossas escrituras e "encontrar" lá as sementes
que estão sendo cultivadas. Por isso esse "refazer" o corpo pode ser lido como
evidenciar o movimento espontâneo da vida ou flagrar seus momentos de
dificuldades (como a estase). Não é um refazer no sentido de que o que havia antes
era ruim ou não servia, mas falo sim ligado à necessidade de encontrar um novo
vigor ou buscar recupera-lo em si, e dar uma nova organização às ações, aos
movimentos e à energia. E porque não um tornar a fazer? Estou falando tendo
sempre em mente um processo de criação. É necessário rigor e repetição das
nossas ações, justamente para poder manter a organicidade, a vivacidade da
cena38.
É na obscenidade (BATAILLE, 1987) que a arte corre os riscos
necessários e não os desnecessários. Enfrentar as nossas máscaras que nos
constituem é um risco necessário. Vamos pensar isso a partir da obra do "Arquiteto
e Imperador da Assíria".

IMPERADOR - Como? Você não é batizado? Está perdido. Durante


toda a eternidade vai assar dia e noite e as mais belas diabinhas
serão escolhidas para excitá-lo, mas elas lhe enfiarão ferros em
brasa no cu.
ARQUITETO - Você disse que eu ia para o céu.
IMPERADOR - Ah, meu filho! Como conhece mal a vida! (ARRABAL,
1976, p.32-33)

Ao ler o texto de "O Arquiteto e o Imperador da Assíria" de Fernando


Arrabal, a primeira interrogação que me surgiu foi: por que o Imperador se apossa

37
Ou mesmo que já criaram. Como venho afirmando ao longo do texto não podemos negar aquilo
que somos, o nosso passado, nossas experiências, a formação na qual passamos, o lugar em que
fomos criados, etc. Tudo isso nos compõem de uma maneira muito forte e que não podemos negá-
las. O jogo de afirmar, de negar, de evidenciar, de proteger, de revelar, de reler, etc, é o que torna
esse trabalho rico e profícuo.
38
Antes afirmei que a estrutura, dentro da visão reichiana (1975), poderia fazer com que pensemos
ela como limitadora ou que evidencie uma função específica. No entanto, Reich também afirma que
são essas estruturas, de caráter por exemplo, que fazem com que nos identifiquemos e que os outros
nos identifiquem. Devemos ler essas formas de leitura sobre forma e conteúdo, sobre prisão e
liberdade de si, de uma maneira que não torne raso o estudo. Manter-se conectado com a cena
teatral e as infinitas possibilidades que há nas nossas capacidades de criação artística é um ótimo
exercício para não se endurecer discursivamente.
123

tão confortavelmente de mim? Parece que ele foi criado dentro de mim ou à minha
volta, seja pelo vício da projeção, seja pela ideia de que a mudança se inicia "lá"
(externo) para depois chegar "aqui" (interno), ou por inúmeros objetivos,
incalculáveis artifícios, etc. numa cultura que tenta a todo custo manipular o tempo,
modificar o espaço, agir para impor algo ou para que algo aconteça.
A reflexão segue porque o Imperador que há em mim, mesmo agindo de
forma que altere o exterior, afeta mais fortemente o “eu”.

E vou dizer-te quem és, Zé Ninguém, porque acredito na grandeza


de teu futuro, que sem dúvida te pertencerá. Por isso mesmo, antes
de tudo o mais, olha pra ti. Vê-te como realmente és. Ouve o que
nenhum dos teus chefes ou representantes se atrevem a dizer-te: És
o <homem médio>, o <homem comum>. Repara bem no significado
destas palavras: <médio> e <comum>. Tens medo de olhar para ti
próprio, tens medo da crítica, tal como tens medo do poder que te
prometem e que não saberias usar. (REICH, 1982, p.22)

Esse Imperador que age em mim me possibilitou viver e me adaptar


dentro da couraça. Permitiu-me ter medo e achar estranho expressar os meus
pensamentos e minhas emoções. Deu-me a grande oportunidade de aprisionar
sentimentos, emoções e energias dentro do meu corpo ao ponto de criar tensões
musculares (macro) e tensões celulares (micro). Tensões estas que se alastraram
para os meus pensamentos e para o modo como olho para o outro. O Outro. Quem
é este? Imperador? Arquiteto? Em que situação estou inserido agora? Opressor,
oprimido, ele, eu, nós: nada disso é sólido numa discussão como esta, porque
somos moventes, somos dinâmicos. Nossos comportamentos mudam de acordo
com as situações, os lugares em que estamos, e com as pessoas que nos
relacionamos.
Hoje, revendo minha trajetória no teatro, penso que sou um imenso
palimpsesto: formado por milhares de páginas, milhares de escritos, com milhares
de memórias - minhas, da minha família, do meu país, do continente, do mundo -,
lembranças, cheiros, decepções, modos de me mover que são meus, que são de
outros, maneiras de falar peculiares de minha pessoa, mas com características de
outros, e assim por diante. Ao mesmo tempo que me descobri profundo e sozinho,
me descobri aberto e com o outro. O teatro me permitiu desde sempre lidar com
estas e outras fronteiras.
124

Em termos teatrais, questiono-me: até que ponto pensar em criar uma


cena, ter o objetivo de apresentar algo, não pode ser agressivo com aquilo que será
criado? Melhor: necessitamos a todo momento ser ativos? Seria a passividade,
lembrando de textos de Grotowski e outros artistas, o "desistir de não fazer"39, não
querer nada, não esperar nada, um lugar de fecundidade cênica? O filósofo romeno
Emil Cioran ajuda a pensar sobre isso:

Querer, no sentido pleno da palavra, é ignorar que se quer, é se


recusar a deter-se no fenômeno da vontade. O homem da ação não
mede impulsos nem seus motivos, nem muito menos consulta seus
reflexos: obedece a eles sem refletir, e sem entravá-los. Não é o ato
em si mesmo que lhe interessa, mas o fim, a intenção do ato; da
mesma maneira, é o objeto que o reterá e não o mecanismo da
vontade. (CIORAN 2011, P.115)

A dificuldade se encontra aí: na relação sexual você não pode pensar no


orgasmo a que chegará no final, senão você não o tem. Se você se preocupa mais
com a perfomance que desempenhará, estará mais interessando nos meios de
comunicação do que na transmissão das informações e conteúdos. O mesmo
acontece no teatro e no trabalho do ator: devemos nos deixar levar “ação por ação”,
tensão por tensão, porque não estamos sozinhos, estamos sempre em relação com
o outro. Isso faz com que eu não tenha controle sobre a situação, como o Imperador
precisa do Arquiteto.

Arquiteto (tirando os óculos de natação e o guarda-chuva que o


definem como juiz. Sentado, extremamente casual, cotidianamente
ele fala.) - Imperador, está falando sério?
Imperador (sentado, estático) - Muito sério.
Arquiteto - Seu julgamento, seu processo, era apenas mais uma
brincadeira... mas parece que você levou a sério. Imperador, você
sabe que eu gosto de você.
Imperador (emocionado) - Você está falando sério?
Arquiteto - Muito sério.
Imperador (mudando de tom) - Mas hoje não estávamos brincando.
(Tira uma flor de dentro do seu casaco e a observa com grande
seriedade)
Arquiteto - Mas morrer não é uma brincadeira como as outras: é
irreparável.
Imperador - Eu exijo. (oferece a flor ao Arquiteto) É meu castigo...
são esses os meus últimos desejos!
Arquiteto (pegando a flor) - Fale.

39
GROTOWSKI, 1987, p.15.
125

Imperador - Desejo... desejo... que você me coma, que me coma.


Que seja ao mesmo tempo eu e você. Você deve me comer inteiro,
Arquiteto, entendeu?
(Arquiteto sai de cena e volta com uma saia preta com uma armação
gigantesca. Ele se aproxima da boca de cena com a flor na mão.
Num ato solene ele destrói a flor a marteladas. O Imperador sorri.)
(CADERNO DE ANOTAÇÕES, 2016)40

Logo depois o Arquiteto come o Imperador. E então eles trocam de


posição: o Imperador vira Arquiteto e vice-versa. A peça termina dessa maneira.
Essa relação que se estabelece entre os dois me faz levantar as seguintes
perguntas: porque antes disso o Imperador se acusa? Porque ele arma o seu próprio
julgamento? Porque ele exige que seja morto?

A liberdade, eu dizia, exige o vazio para manifestar-se; o exige e


sucumbe a ele. A condição que a determina é a mesma que a anula.
Ele carece de bases: quanto mais completo for, mais vacilará, pois
tudo o ameaça, até o princípio do qual emana. O homem é tão pouco
feito para suportar a liberdade, ou para merecê-la, que mesmo os
benefícios que recebe dela o esmagam, e ela acaba lhe sendo tão
penosa que aos excessos que suscita ele prefere os de terror.
(CIORAN, 2011, P. 22)

É isso que o Imperador faz prevalecer no jogo de Arrabal: o terror, o


medo. O pânico, vindo do deus Pã (TAYLOR, 1984), tem o objetivo de
desestabilizar. O interessante é que é justamente esse terror, essa habilidade que
temos para nos maltratar e abalar o outro, que nos faz criar a imagem da liberdade.
Talvez seja esse jogo que os dois fazem em cena invertendo os papéis no final da
peça e iniciando de novo o jogo, uma das questões chave da peça. Há poucos
momentos em que os personagens não estão jogando. Um deles é quando a
possibilidade de um ir embora fica clara e outro sente o perigo de ficar sozinho. A
solidão os une. "As solidões reúnem aquilo que a sociedade separa", dizia Camus
em "O Avesso e o Direito" (2007, p.27). Podemos ler: quando não há mais o jogo de
hierarquia entre Imperador e o Arquiteto, quando estes não interpretam mais, é a
solidão que prevalece e “dá o tom” para a peça.
O Arquiteto invoca os terrores do Imperador. Seria a fronteira entre o fim
da representação o início do terror? Seria o terror um dos irmãos do teatro? Eu

40
O trecho aqui é composto pelas falas da peça e as rubricas são minhas anotações da cena criada
na disciplina de "DramaturgiaS" do programa de Pós-Graduação da Unicamp. O recorte da peça
inserido aqui se refere à cena final do Quadro I do Ato II (ARRABAL, 1976, p. 121-123).
126

acredito que sim. E o prazer seria um modo de transgredi-lo (BATAILLE, 1987):


avançar diante do medo, do perigo que já falei, avançar diante daquilo que não nos
foi permitido, que foi proibido e banido. Podemos avançar diante disso como o mar
sobre as regiões litorâneas: seja pela maré alta, seja pelo afundamento da terra.
Uma fala de Gaiarsa é excepcional para selar estes elos:

A alma do prazer contínuo e derretido é a contínua VARIAÇÃO da


frequência, da profundidade, do ritmo, da direção e da atenção!
Quando todas estas grandezas variam, NÃO HÁ ESTRUTURA no
ato - nada se repete - e assim e por isso e então ele se faz CRIAÇÃO
CONTÍNUA - PRAZER o tempo todo. [...]É importante notar: para
ser capaz de dançar esta dança divina é preciso uma extrema
mobilidade de corpo - e de cadeiras. (As cadeiras são a mão que
movem os genitais.) O que nos reenvia aos anéis de COURAÇA e a
necessidade de desfazê-los. (GAIARSA, 1985, p.100-101)

Essa sensação de derretimento (REICH, 1975) acontece quando as


vísceras acompanham o movimento, quando temos grounding, quando o centro de
nosso corpo está ativado e as emoções e os sentimentos fluem. Claro que o ator
deve ter controle do que está fazendo em cena. Essa sensação de derretimento
acontece antes e durante as improvisações e construções da cena. Pode acontecer
também em dias em que não esperamos nada, mas que estamos ali presentes,
atuando no aqui/agora. São aqueles “presentinhos” que ganhamos durante a nossa
vida. Pode acontecer a qualquer momento para além do teatro (aqueles que têm
filhos, os que se apaixonam, aqueles que sabem contemplar os movimentos de um
animal ou das estrelas, sabem do que eu estou falando).
Pensando no teatro, a grande potencialidade desse trabalho é a
aproximação daquilo que podemos chamar de intimidade, de pensamento, de
subtexto, com a movimentação corporal, com aquilo que se faz e se vê. De novo: só
existimos quando estamos em movimento, fluídos. E fluídos nós nos misturamos
(como na relação sexual, como na relação com o espectador). Por isso que a
ESTRUTURA em meu trabalho não está ligada a uma mera repetição do que foi
feito, mas sim ao sentido da CONSERVAÇÃO. Por cauda disso o trabalho do ator é
tão difícil e assemelha-se a outros trabalhos artesanais. Temos que ser capazes de
reproduzir sensações, sentimentos, contradições, com grande sensibilidade e
precisão. Como já falava o mestre Stanislavski:
127

Nossa experiência levou-nos a crer firmemente que só o nosso tipo


de arte, embebido que é nas experiências vivas dos seres humanos,
pode reproduzir artisticamente as impalpáveis nuanças e
profundezas da vida. Só uma arte assim pode absorver inteiramente
o espectador, fazendo-o, a um só tempo, entender e experimentar
intimamente os acontecimentos do palco, enriquecendo a sua vida
interior e deixando impressões que não se desvanecerão com o
tempo. (STANISLAVSKI, 1979, p.45)

É a atitude ligada à necessidade de criação que funda o trabalho. A


percepção e atenção são também faculdades que podem ser desenvolvidas para o
fim artístico. Devemos pensá-las como capacidades plásticas e não como mera
matéria neurológica ou coisa parecida. Faz parte do trabalho do ator.
128

Relato 3:

Precisava brincar com o ritmo e o fluxo contínuo. Eu sentia a


necessidade de não ficar o tempo todo nesse vetor da força, de movimentos
fortes e rápidos. Comecei com um pequeno alongamento e com o acordar da
musculatura com posições da bioenergética1. Depois caminhei pelo espaço
prestando atenção às tensões corporais que eu apresentava naquele
momento e ao modo como eu respirava. Imediatamente tive que levantar o
olhar que estava muito voltado para o chão. Isso me fez aumentar a
velocidade do andar. Dobrei o joelho para trabalhar em outro nível. Cuidando
o modo de pisar, prestando atenção na maneira como os dedos dos pés se
abriam, caminhava pelo espaço e olhava para ele.
"Enraizar o pé, o corpo, trabalhar o grounding na movimentação".
Pensava e seguia: "Corpo leve, Elias. Enraizar não é sinônimo de peso." Seguia
brincando com mudanças de direções, mantendo um ritmo que não se
alterava muito, mas que se mantinha num fluxo contínuo e levemente rápido.
Coluna mais leve, maleável, quadril também. "Sempre estou com a lombar
tensa. Consigo relaxá-la? Parece que não consigo diminuir a tensão. Mínimo
de esforço nessa região. É... Melhor. Os braços ficaram mais leves também."
Estabelecia jogos comigo. Com o espaço: movia meu quadril como se
esfregasse ou jogasse tinta nas paredes. Dançava mexendo o quadril, as
mãos, os cotovelos. Imaginava pessoas com que eu poderia trombar, em que
eu poderia bater e as driblava. Comecei a dançar mais fluidamente. "Levantar
o olhar!" Reparei na visão em direção ao chão de novo. O olhar para o chão é
ruim, porque a cabeça pode ficar voltada para o chão e então a coluna segue
o movimento. Devemos ter uma qualidade de controle do movimento mais
apurada sempre. Se eu repetir um movimento ele deve ser melhor executado
e com mais qualidade - aqui sinônimo dos detalhes (posição do corpo,
energia empregada, ritmo, etc). A qualidade do olhar é muito importante
para o ator. Então, no meio do exercício, veio a imagem de que o topo da
minha cabeça estava tocando o teto. Assim ganhava mais eixo. Desviava das

1
Alguns dos exercícios já foram descritos em outros momentos de meu texto. Outros podem ser
encontrados nas próprias referências que menciono neste trabalho.
129

lâmpadas, abaixava nos pilares, o quadril entrava na dança. Eu estava ligado


ao espaço a todo o momento.
Fui acrescentando pequenos pulos que surgiam do empurrar o
chão com as solas dos pés. Isso dava outra dinâmica. Parava em algumas
posturas. Voltava o movimento a partir do quadril, dos ombros, dos braços.
Diminuía o ritmo e fazia uma dança interna: era como se a energia passasse
por partes de meu corpo, de tensões internas, de imagens que eu projetava
para fora de meu corpo, etc. Fazia, então, movimentos que estava afim de
fazer com aquela energia produzida. O corpo pulsava. Repetia a dança como
se o chão empurrasse os meus pés. Era mais difícil imaginar o chão me
empurrando e não o contrário.
Peguei o tecido, a canga que usava em cena, e dançava com ela2.
Seguindo o ritmo da dança. Dançava com o tecido, criando imagens com ele:
açoitava pessoas imaginárias, me protegia da chuva, jogava o pano na
parede, etc. Depois me lembrei que poderia ter trabalhado com o "tecido
imaginário", sem a fisicalidade dele3. Os sentidos seriam ativados de outra
maneira e eu teria que ter mais precisão nos meus movimentos, dando
contornos a eles. Teria que suprir as lacunas que existiriam sem o tecido,
como a figura do Arquiteto que nunca esteve presente na sala. Eu deveria
imaginar ele, preencher o espaço e as minhas ações como se a presença dele
tivesse passado ali, como se dividisse comigo as situações todas, como se ele
pudesse chegar a qualquer momento. Assim como a ilha. O Sol. O mar. O que
eu deveria preencher na verdade? O que seria necessário para a cena?
Eu tenho que ter, em cada segundo no espaço teatral, ideia das
circunstâncias da peça, do material à minha disposição (cadeira, corda, tanga,
luz, portas, janelas, tipo de piso, etc.) e das imagens que vou criando para a

2
Não usei durante o processo músicas. Sempre que realizava exercícios e pesquisas desse tipo me
mantinha no silêncio da sala. A opção aqui foi ampliar a escuta do movimento e que a atenção
ficasse voltada à relação do que eu fazia com os objetos, com o espaço, etc. No entanto, acredito que
a música pode ser um elemento muito potente na criação. Ela pode determinar qualidades de
movimentos, de imaginário, de intenções, e oferecer desafios ao ator. Assim como pode estimular a
escuta. Não só a auditiva, mas essa escuta integral em relação aos movimentos, aos gestos, ao jogo
com o ritmo da música - seja a favor ou contra -, etc.
3
Durante a escrita fui percebendo que não realizava algumas possibilidades de trabalho com os
materiais. Às vezes estamos em um fluxo de trabalho no qual não conseguimos fazer uma pausa
para pensar melhor sobre as ações feitas. A distância é um ótimo amigo da pesquisa em certas
ocasiões.
130

peça, seja da distância do horizonte quando chego na beira da ilha, seja o


formato da canoa que o Arquiteto fez, etc. Preencho com aquilo que eu acho
melhor e de que preciso. Lembrei de Stanislavski de novo e fui reler o
capítulo "Imaginação", de "A preparação do ator" (1979), separei esse trecho:

Nossa arte requer que a natureza inteira do ator esteja


envolvida, que ele se entregue ao papel, tanto de corpo como
de espírito. Deve sentir o desafio à ação, tanto física quanto
intelectualmente, porque a imaginação, carecendo de
substância ou corpo, é capaz de afetar, por reflexo, a nossa
natureza física, fazendo-a agir. Esta faculdade é de maior
importância em nossa técnica de emoção. Portanto: cada
movimento que vocês fazem em cena, cada palavra que dizem,
é resultado da vida certa das suas imaginações. (STANISLAVSKI,
1979, p. 96)

Novamente: isso é totalmente oposto que agir mecanicamente. Não


devemos agir como autômatos. Seja em exercícios de aquecimento ou
alongamento. Sempre temos que trabalhar com as imagens. Perguntas como:
quem sou, de onde vim, por que vim, o que quero, para onde vou e o que
farei quando chegar lá, são algumas ajudas para iniciar uma criação, para
compreender o que se está fazendo (1979, p.96).
Assim, na cena, senti a necessidade de delimitar melhor o espaço
da ilha, aonde ficaria o trono do Imperador, o local em que ficaria o "armário"
com os objetos a serem usados em cena. Uma configuração espacial simples,
mas importante para as ações que iria fazer. A delimitação do espaço nesse
sentido foi fundamental.
Enquanto seguia no jogo com o tecido, lembrei de ações que eu
realizei no experimento poético "Pós-Fausto"4. Imaginei-me carregando um
corpo que poderia ser eu. Amarrei o tecido no calcanhar e imaginei ficar
preso ao pano. Protegi o tecido e o agredi. Jogava-o para cima e dançava

4
Experimento poético realizado no Núcleo de Teatro da UFPel em Pelotas-RS no período de 2011 a
2014, com direção de Adriano Moraes de Oliveira. O interessante aqui não é falar sobre o
experimento em si, mas de como as memórias daquele processo, das apresentações que realizei,
das imagens que construí e que estudei retornam em certos momentos. Foi uma surpresa boa que
aconteceu no dia em que essa memória me tomou. Brinquei um pouco com ela e pude relembrar toda
a minha trajetória até aqui. Não devemos esquecer o nosso passado e nossos esforços para estar
aqui.
131

entre o pano e o chão, entre a queda e a recuperação dele. A mão se tornava


mais ágil, o olhar se dilatava.
Acabei com essa parte de aquecimento5 e de pesquisa de
movimento.
Repassei, então, a cena que vinha fazendo e estruturei melhor o
começo, mexendo de maneira mais precisa os segmentos do corpo no início
da cena de apresentação da figura, e adicionando as ações de espernear no
final da sequência. A pose do Imperador, no final, ficou mais definida. Decidi
comer uma flor no início da cena, uma rosa. Recordei-me dos materiais de
Arrabal que pesquisei. Programei de tacar fogo nela também. Sentia que fazia
sentido dentro do contexto do Imperador. Parecia que ele destruía algo puro
que havia nele ou que destruiria qualquer coisa semelhante que se
aproximasse dele.
Infelizmente, faço sozinho a cena e isso me causa muitas
dificuldades. Tudo parte de mim. A energia usada acaba indo para todos os
lados. O cansaço é aparente.
Tenho que me manter sempre em alerta. "Como vou saber se isso
está me enrijecendo? Como vou saber se estou me tornando um militar de
mim mesmo?" Perguntas que me surgiam o tempo durante o processo.
"Olha para o espaço! Aja em relação ao solo, ao céu. O corpo todo
em todas as extremidades do espaço. Construa o espaço cênico! Oriente-se
por ele, pelos movimentos que o seguirão. Para aonde você olha? O que está
ali? O que quer? O que está fazendo? Isso é coerente com a cena? E sua
pesquisa? O que isso tem a ver com a sua pesquisa? Com seu trabalho de
ator? Para aonde foi o seu pensamento agora? Corra, Elias, corra! Pense na
respiração que agora está ofegante e veja o corpo como está. Fale o texto de
Arrabal! Mude de nível! De ritmo! Não crie expectativa! Olhe para o espaço.
Pare de se movimentar e olhe para o espaço. Perceba quantas coisas você fez.
Olha a bagunça que isso está. O espaço está cheio. São tantos movimentos.
Uma sequência atrás da outra. Esqueça a sua expectativa e a do espectador.
Que aprendamos todos a não querer que o sobrenatural seja o objetivo

5
Sempre que vou me "aquecer" ou conduzir um aquecimento para uma prática teatral, me pergunto:
"O que devo aquecer? E para o que?" Isso sempre me ajudou a rever minhas atividades pré-ensaio.
132

principal da cena. Que deixemos de lado esse peso de ir atrás da


espontaneidade. Não seja cruel com você mesmo. Seja sincero. Ser sincero é
mais fácil e ético. Talvez assim a coisa fique espontânea. Não pense em jogo
de cena agora, pense na sua formulação. Faça a próxima ação parado, sem
sair do lugar: colocar-se obstáculos pode ser uma boa saída para criar uma
cena. Você ficou surpreso com a própria ação? Que cena é essa?"

IMPERADOR - Quem lhe disse? Quando entrei, eles estavam


nus sobre o leito. Ele disse "venha ver como violo essa mulher".
(Tempo.) Ela resistia com todas as forças e me pareceu que
chorava. Suplicava: "Não, não." Depois parou de debater-se e
respirou regularmente, beijando-lhe o ombro; via-se apenas o
branco de seus olhos. Quando tudo terminou, ela recomeçou a
chorar e ele a rir às gargalhadas. (Tempo.) A mesma cena
repetiu-se várias vezes. Finalmente ele se levantou rindo e
disse: "Aí está a sua mulher". Então aproximei-me dela que
chorava, acariciei-lhe as costas e de repente ela começou a
gritar. (Senta-se no chão. Chora.) Mas nós nos amávamos, ela
era muito boa para mim, quando eu apanhava o menor
resfriado, ela imediatamente me aplicava cataplasmas.
(Tempo.) Meus chefes também gostavam muito de mim e certo
dia disseram que iam me nomear... (Tempo. Ele chora.) Minha
mãe? ... (Pausa.) Nós passávamos às vezes as tardes inteiras
discutindo. (Pausa.) Ela não gostava mais de mim como quando
eu era pequeno; ela me odiava mortalmente. Não, minha
mulher, essa me amava para valer. (Pausa.) Amigos...Sim, eu
tive, mas é claro, eles tinham inveja. Morriam de ciúmes de
mim! (Tenta subir numa árvore, sem sucesso. Pula para ver ao
longe. Grita.) Arquiteto! Arquiteto! Volte. Não me deixe
sozinho. Não me deixe sozinho. Sinto-me muito só. Arquiteto!
Arqui... Eu devia chamá-lo de Arqui... É mais chique... (Domina-
se.) (ARRABAL, 1976, p. 57-58)

Na primeira vez eu fiz o texto gritando. Na outra vez entrando no


espaço e criando uma casa imaginária com um quarto onde eu e minha
mulher morávamos. Na outra vez eu falei olhando para frente, estático. Refiz
mexendo a cabeça horizontalmente, olhando para o Arquiteto imaginário,
como se ele estivesse me obrigando a falar mais uma vez sobre isso.
Resolvi então ficar parado em pé. Fiz um gesto com os braços,
como se estivesse sendo assaltado, e me esqueci do texto. Aquela pose me
chamou a atenção. "Porque não fazer esse trecho todo em poses?" Uma pose
levava à outra. Me mantinha em uma por mais tempo. Mãos para cima, como
se tivesse reagindo a um assalto. Toda vez que puxava as mãos para baixo,
133

voltava à posição de antes. Uma mão desce, passando pelo corpo: peito,
estômago, umbigo, entra pela calça, toca o sexo... Sobe rapidamente até o
nariz e inalo o cheiro da mão: "Aí está sua mulher." Fecho os olhos. Tampo a
boca com as mãos para não falar. O texto segue.
Repito tudo, desde o começo. O início da cena toda não me agrada.
Sinto uns momentos de galope na cena. A imagem inicial de apresentação do
Imperador está legal, os movimentos do corpo para os quatro lados, acho
que fica interessante. Tira de um lugar da espera do texto do arquiteto etc.
Criar surpresas, sabotar expectativas, isso é um bom caminho para criar
ações. Gostei de usar a ação de arrumar o cabelo como se eu fosse o Reich,
que tem a cara do Imperador, para mim. Essa ação pode aparecer em outros
momentos da cena. Arrumar os cabelos: estirar o cabelo para cima, quanto
mais faço isso, mais o rosto se abre e o olhar também. Dar uma lambida nas
mãos que formam o cabelo. Como se montasse os cabelos com as mãos, em
vez de usar uma peruca.
Segundo ponto: bater as mãos antes de chamar o Arquiteto. A
referência aqui são as batidas de palmas antes de uma sequência de
movimentos da biomecânica do Meyerhold. Amarrei o pano na altura dos
mamilos, isso me deu uma sensação de estar usando um vestido, que me foi
bem visto, já que dá um ar de "sensualidade" ao Imperador. De novo: lembrar
de fazer os cabelos da mulher antes de dançar, como na cabeleira de Reich.
Depois fazer a ação de pegar a cadeira, desenhar na cadeira,
amarrar ela, puxar e bater na mesma. Não sei até que ponto isso me
interessa. As ações em si me parecem um pouco forçadas, no entanto, a
agressividade gerada, a violência explícita, o bater no desenho do pênis na
cadeira me agrada muito como síntese de uma repressão do poder da razão
sobre o poder os impulsos. A energia produzida e a intenção são fortes, a
ação que não me agrada. Como proceder em momentos assim?
Acho que o tom da cena do acorrentado, do raio e da circunferência
e o jeito de fazê-las me fazem ter a sensação de que estou forçando um jogo
que não funciona. "Vou seguir fazendo-a. Talvez não tenha achado o tônus
adequado. Até que ponto devemos abandonar uma ideia ou trabalhar para
que ela funcione?" A cena do estupro ficou melhor. A configuração dela em
134

poses cria um contraponto com outros momentos de movimentação com


outras cenas. Acredito que isso criou uma textura melhor nas falas e na
própria ação. O que tenho que ver agora é a sequência de estátuas, de rostos
de terror, de espanto, de raiva, etc. Preciso pesquisar isso. Preciso detalhar!
A transição para a parte que fala da mãe ainda me é estranha.
Acredito que poderia haver uma quebra brusca, mas queria trabalhar aqui
com a ideia da angústia, da ação interna, da tensão ao extremo, do esfregar,
do desconforto no espaço mínimo corporal. Pensei que poderia ser a imagem
do choque elétrico. Preciso pesquisar imagens de sessões de eletrochoque e
ver como os corpos se comportam. Isso me lembra Artaud. Trazer uma
espécie de convulsão à cena seria interessante também como uma outra
quebra. Brincar de ser eletrocutado.
A seguir, vem a parte dos sonhos. Gostei da imagem simples da
praia, do sonho de voar e do desfile de Imperador. "PODERIA TER UMA
OUTRA IMAGEM SINTÉTICA DO PÂNICO". Pesquisar sobre isso.6
Preocupa-me o fluxo de uma imagem para a outra. Não pode haver
uma suspensão que não seja pensada e que não tenha uma coerência interna.
É necessário achar um local de impulso seguido de impulso. Os gritos
chamando o Arquiteto devem ser explorados também. A bioenergética
poderia chegar como experimento de algumas dessas sensações.
A cena em que o Imperador fala sobre o sonho de ter uma amante
acredito que cria um contraponto muito forte de acordo com o que rolou
antes. Além disso, é um trecho de um sonho do Imperador ter um amor e etc.
Ele se abre e mostra como isso não acontece. É um trecho lindo. Muito
poético e que reúne elementos da obra de Arrabal e do movimento pânico.
Falá-lo como se fosse um sonho, narrando calmamente cada imagem que se
cria é fundamental. É como se eu declamasse esse trecho. Abro espaço para a
sua poesia. As pessoas devem escutar este trecho:

IMPERADOR - Sabe? Faltou pouco para eu ter uma amante.


Como teria sido chique: eu com uma amante. Ela, muito loura,
6
Quando estou num processo de criação surge inúmeras pesquisas. As fontes são várias. Para
pesquisar o Movimento Pânico me utilizei dos próprios textos dramáticos de Arrabal, como dos filmes
de Jodorowski. Mas o meu intuito não era o de copiar as imagens. O que eu queria era me aproximar
dessa maneira de produção, de estética, de pensamento artístico.
135

muito bela... Fomos muito felizes... Encontramo-nos num


parque e conversamos durante muito, muito tempo. E
marcamos encontro para o dia seguinte. Passei a noite
desenhando para ela um coração trespassado por uma flecha.
Um grande coração como aqueles das igrejas. E, para o
vermelho, usei meu próprio sangue. Picava o dedo muitas
vezes. Como doía. (Chora. Olha ao longe e grita desesperado.)
Arquiteto! (Acalma-se.) Está bem. Voltemos à vaca fria.
Continuando. Onde é que eu estava? (Pausa.) Pensava nela
noite e dia; ela era muito loura, muito bela, quando olhava para
o corpo dela me nasciam escamas e eu sentia que era um
enorme peixe que escorregava entre as suas pernas. Consegui
desenhar o coração... Talvez ele fosse um pouco redondo. Fiz
uma flecha e escrevi meu nome. Enquanto desenhava, pensava
que estava voando pelos ares com ela e nos perdíamos no céu
e seu corpo era apenas mãos e lábios... Enfim, era lindo: o
coração, as flechas, as gotas de sangue que pingavam. Era um
símbolo. O chato é que depois o sangue ficou preto... Ela era
tão bonita, tão loura, nós conversamos ao menos meia hora no
parque... banalidades, sobre o tempo, ela me perguntando onde
ficava tal e tal rua... mas sabia que atrás dessas palavras nós
falávamos do nosso amor... Sem dúvida alguma ela me amava e
quando dizia "faz menos frio que o ano passado", eu sabia que
ela queria dizer "nós partiremos juntos e comeremos juntos
ouriços enquanto cobrirei suas mãos e seu púbis de aparelhos
fotográficos"; e quando eu respondia "e no ano passado nessa
época não se podia passear no parque", era como se dissesse
"você se assemelha a todas as gaivotas do mundo na hora da
sesta, você dorme sobre mim como um passarinho numa
garrafa, sinto seu coração bater e o ritmo de sua respiração
sobre os poros da minha pele e do meu coração jorra um jato
de água cristalina para banhar seus pés brancos..." e pensava
ainda muitas outras coisas e passei toda a noite desenhando
para ela; como ignorava seu nome, decidi chamá-la de Lis. Na
manhã seguinte fui correndo para o encontro; como estava
emocionado! Trabalhei na escrivaninha, meus chefes me
acharam esquisito. Que dia, vivia pensando nela! Perguntei a
mim mesmo se falaria com minha mulher. Mas não lhe disse
nada. Quando cheguei ao parque... (Está quase chorando.) É, ela
deve ter se enganado, não compreendeu direito. Durante uma
semana fui ao parque, ao menos cinco horas cada tarde... Ela
deve ter sido atropelada por um carro. Não pode ser de outro
jeito... (Mudando de tom) Vou dançar para você. (Executa uma
dança grotesca.) (ARRABAL, 1976, p.59-60)
136

Entre o Arquiteto e o Imperador da Assíria

A peste é protegida pelas suas próprias vítimas.


Wilhelm Reich

O encontro com o Teatro do Pânico, com a arte de Arrabal e os filmes de


Jodorowski, desestabilizaram-me. Motivaram-me a conhecer melhor as suas obras e
vidas - já que em ambos essa dissociação é inconcebível. Acabei por buscar
compreender melhor movimentos políticos, como o anarquismo, e me deparei com
textos do filósofo Cioran. No livro "História e Utopia", de que me utilizo neste texto,
ele argumenta que a democracia, ao dar poder para todos, permite que tiranos
nasçam.
O que isso tem a ver com o fazer teatral? No momento em que escrevo
este texto, há inúmeros protestos pelo Brasil contra o governo de Michel Temer, que
foi empossado devido a um golpe de estado. Há também inúmeros protestos contra
o machismo, contra a cultura do estupro, contra a falta de moradia, contra a
evangelização dos índios, contra a repressão violenta e estúpida da polícia, entre
outros. Ao mesmo tempo em que a obra de Fernando Arrabal "O Arquiteto e o
Imperador da Assíria" é fantástica por poder ser lida através de vários pontos de
vista, é quase repugnante pensar que ela se mantenha contemporânea. Acredito
que estamos vivendo realmente em um estado de exceção, e isso data de séculos.
Arrabal surpreende na ferocidade da dramaturgia expondo o desejo ininterrupto pelo
terror e pela destruição. A violência é o néctar do erotismo, ela nos atrai, nos faz
morder os lábios. No contexto de "O arquiteto e o Imperador da Assíria" a única
coisa que une os personagens é o medo da solidão. Brincar de mamãe, de esposa e
marido, de guerra, de vaca, não importa o jogo eles estabeleçam, é a mistura
doentia entre a inocência infantil e a crueldade calculada que permeia grande parte
da cena. "Carne vai bem com carne."
Esta obra de Arrabal é uma foto que captura essa bestialidade que
produzimos: a civilização, base de torturas e de insatisfações.

Apesar de sua precariedade, estamos tão apegados a esse tempo


que, para afastar-nos dele, seria preciso mais do que uma alteração
de nossos hábitos: teria que ocorrer uma lesão no espírito, uma
rachadura no eu, por onde pudéssemos entrever o indestrutível e
alcançá-lo, graça concedida apenas a alguns condenados como
137

recompensa ao fato de haver consentido em sua própria ruína.


(CIORAN, 2011, P.113)

A bioenergética mostra que, ao trabalhar com o corpo, encontramos


estruturas que ou são fundantes em nós ou impossibilitam o nosso caminhar.
Perceberemos que nascem vontades e movimentos que surgirão de dentro de nós,
contrariamente ao que ocorre em nossa educação. "Instalar-se é a consequência
lógica da imobilização humana. Cada um se prepara desde cedo, na vida, para se
instalar tão confortavelmente quanto possível" (REICH, 1999, p.78). Não que isso
seja repreensível, mas esse instalar-se que Reich fala, está ligado à questão do
confortável.
A ação que criei em uma das cenas de Arrabal partiu do exercício de
espernear de Lowen. Esse movimento só tem sentindo se você unir a força do
movimento à força do pensamento e não achar que um minuto fazendo isso será
suficiente para modificar alguma coisa. No máximo você acelerou a sua respiração e
transpirou um pouco. O corpo leva um tempo para "entender" o que está
acontecendo, por isso, é preciso ficar um tempo maior fazendo o exercício. A
dificuldade se encontra em entender o limite, o momento de dizer: "É até aqui que
vou hoje." No entanto, entenda que o corpo vai fazer essa resistência e que a mente
- a divisão aqui é de novo pedagógica - fará mais resistência ainda.
Um exercício de bioenergética esclarece esse ponto de maneira muito
boa. O objetivo dele é entregar-se ao corpo. O movimento final é a queda do corpo
no chão, o que é muito difícil de se fazer, já que estamos acostumados a associar a
queda à noção de derrota. A tensão que muitos sentem na região da nuca e dos
ombros também está associada a esse medo de "perder a cabeça". Nesse exercício,
a pessoa fica de pé numa perna só diante de um colchonete (um colchonete mais
grosso, até mesmo um colchão pode ser usado). A perna de trás fica esticada,
tocando com a ponta dos dedos o chão apenas para não perder o equilíbrio, o peso
está todo na perna flexionada. Depois de um tempo, a perna de sustentação se
cansa e a pessoa cai (LOWEN, 2007, p. 217)
Nós temos medo de deixar o corpo cair, de nos entregarmos a ele. É
muito comum, nesse exercício, a pessoa se jogar no chão antes da perna cansar,
assim, ela acaba tendo controle da própria queda. Não há a surpresa da queda, do
138

choque com o chão, do sentimento que vem à tona. Se você fizer esse exercício,
saiba que é muito comum chorar pela descarga energética que ele propõe.
Temos medo de nos entregar a aquilo que é próprio do homem, aquilo
que nos é interno. Os movimentos sociais que a nossa sociedade promove

[...] sempre foram de ordem política, quer dizer, artificiais, impostos


pelo exterior, e não produtos de dentro do homem. Para que o
homem seja capaz de um movimento de sua própria decisão, ele
deverá primeiro despertar internamente, sem ser levado por
estímulos exteriores. O impulso para se mover, para modificar o que
o cerca, para acabar com seu eterno imobilismo, deveria ser
inculcado na estrutura do homem desde o início e deveria ser
habilidosamente desenvolvido como uma característica básica de
seu ser, como aconteceu, por necessidade, no caso dos pioneiros
americanos ou dos antigos povos nômades. (REICH, 1999, p.79-80)

A nossa vida, essa que vivemos hoje, nesse mundo, nessa sociedade que
construímos, impede que esse despertar seja vivido. Ele é perigoso. Quando o
Imperador chega à ilha, caindo de seu avião, é como se ele tivesse a oportunidade
de refazer o seu mundo em um novo lugar. É nesta ilha que vemos os dois
personagens representantes da humanidade: seja na psique fragmentada do
Imperador, até a leitura arquetípica do Arquiteto. Ele é o personagem que está
envolvido com o mundo, tornando-se uno. Vive com os animais em uma juventude
eterna, sendo que uma de suas primeiras ações, na peça, é esconder-se enfiando a
cabeça na areia. Ele possui uma espécie de conhecimento que lhe é próprio, uma
maneira peculiar de acessar saberes que foi adquirida pela vivência e pela relação
que tem com o mundo, incluindo o próprio Imperador. E isso, para o Imperador, é de
difícil compreensão.

IMPERADOR (fora de si) - Como? Você não colocou as esporas?


ARQUITETO - O que são esporas?
IMPERADOR - Como é que você quer chegar a...
ARQUITETO - A Babilônia.
IMPERADOR (aterrado) - Onde é que você aprendeu essa palavra?
Quem lhe ensinou? Quem vem visitá-lo enquanto estou dormindo?
(O Imperador se joga sobre ele e quase o estrangula.) (ARRABAL,
1976, p.17)

Assim é o Imperador, o homem de nossos tempos, produto de um mundo


tecnizado, mecânico, alienado e paranoico. Sua definição só existe por causa dos
139

outros e das relações que se estabelecem. No entanto, é este homem neurótico que
procura, de todos os modos, achar uma cura.

Ahíto de presunciones vanas, poses grandiosas y exclamaciones


vacías, se enseñorea literalmente del Arquitecto, quien, no sin ironía,
a su vez le sigue el juego. A medida que avanza la obra, el público
recompone la biografia fragmentaria del Emperador que, desprovisto
de sus prendas imperiales, se revela como un ser anónimo e
insignificante: con una mujer adúltera, una madre dominante y un
empleo tedioso. (TAYLOR, 1984, p. 38)

O Imperador não abre mão da referência que tem de mundo. Cria na ilha
um novo modo de lidar com as suas frustrações, com seus sonhos e fantasias. No
entanto, é o homem frustrado. Ele é incapaz de criar, de imaginar uma outra
situação para se viver. Utilizando referências que tinha no mundo civilizado da
Assíria, ele não só reconhece os crimes que cometeu, como impõe ao Arquiteto que
o julgue, que o condene e o execute.
Reich nos faz estar entre os dois personagens. Tendemos, em alguns
momentos de nossa vida, muito mais para o lado do Imperador do que do Arquiteto,
é verdade, mas há esse exercício diário de levar adiante o compromisso com a arte
e consigo próprio sem endurecer. Em meus relatos é possível notar uma certa
abertura para os erros, para as dúvidas, para o lidar com certos problemas de uma
maneira tranquila e ter consciência de que é necessário pesquisar e refletir sempre.
Ao mesmo tempo, deve-se deixar que as coisas aconteçam. Claro que cada
processo é um processo. Em certos casos devemos criar uma cena rapidamente e
nos utilizamos de nossa experiência para isso, mas, se temos tempo para pesquisar,
para processar, porque não deixar-se levar nessa cadência? A paciência e a
atenção são duas amigas do teatro e do trabalho em bioenergética. O corpo é como
um mosaico de sensações/emoções. Dependendo de como e onde somos tocados,
surgem as mais variadas ações ou respostas.
No entanto, nós não nos abrimos para isso. Estamos enclausurados na
figura do Zé Ninguém, uma figura que espera dos outros uma resposta, uma atitude
para mudar a sua vida, para criar. Entretanto, no teatro isso é muito complicado. O
ator deve entrar em cena e realizar a sua ação, não há como outro fazer isso por
ele. E se o ator não fizer isso com toda a sua vontade, com total doação de si,
estaremos diante de alguém que pode estar com a atenção voltada para outro lugar.
140

A bioenergética permite entender os mecanismos dos bloqueios que nos


impedem a nossa auto expressividade. Ou seja, nossa capacidade de agir
livremente, natural e espontaneamente. Isso desde as nossas atividades mais
normais como andar e comer, até as mais complexas como atuar e dançar, por
exemplo. A auto expressividade não se revela somente em ações e movimentos,
mas também nos contornos de nosso corpo e sua forma, no cheiro e nas cores dos
olhos, dos cabelos, na nossa voz e nos sons que emitimos. Tudo isso é parte de
nossa expressividade.
A nossa educação, aquilo que aprendemos durante nosso
desenvolvimento, é uma mistura entre elementos que são aprendidos e elementos
espontâneos. Um ligado a regras de comportamento, por exemplo, e outro à
expressão de algo natural e genuíno do indivíduo. Lowen explica melhor:

A verbalização é um bom exemplo. As palavras que usamos são


respostas aprendidas, mas o discurso é mais do que as palavras e
frases, pois inclui a inflexão, o tom, ritmo e a gesticulação, que são
em grande medida espontâneos e peculiares ao locutor. Estes
últimos elementos conferem o colorido à fala, acrescendo-a de
riqueza em sua expressão. Por outro lado, ninguém irá defender um
discurso que distorça o sentido comum das palavras e ignore as
regras da gramática por causa da espontaneidade. [...] Um equilíbrio
justo entre controle egóico e espontaneidade poderia permitir a
manifestação o mais eficiente possível de um impulso, sem deixar de
estar transmitindo intensamente a vida da pessoa. (LOWEN, 1982,
p.229-230)

Por esse motivo, não podemos inferir sempre que o impulso é importante
no ato criativo, que a espontaneidade é genuína. Por mais que o impulso venha do
interior da pessoa, uma manifestação direta, ele pode ser o reflexo de um padrão de
comportamento, um hábito. Então, não podemos confundi-lo com a expressão de
um bloqueio. Essa "falsa" espontaneidade seria a manifestação de uma energia
presa. A repetição de exercícios, de movimentos, de alongamentos no teatro tem
justamente esse objetivo: ultrapassar essa primeira camada de proteção de
sentimentos e manifestações mais ricas e sutis.
A imagem e a sensação do prazer são fundamentais porque são o
elemento-chave da autoexpressividade. A sensação agradável que temos no prazer,
independente do ambiente externo, é que nos faz perceber que a auto
expressividade está relacionada à ação que realizamos em si, não importando tanto
141

a reação dos outros ou se o prazer vai aumentar ou diminuir. Realizamos a ação


com a finalidade em si. Aqui retornamos à solidão em público de Stanislavski (1979).
O aumento da energia corporal permite que os movimentos que
realizamos sejam não só mais vivos, como possuidores da capacidade de
acompanhar esses fluxos. Quando eu faço o exercício do arco, por exemplo,
percebo que o fluxo de energia que passa pelo meu corpo é o da tensão da minha
lombar, região que tenho muito rígida. Claro que fazer esse exercício permite-me
liberar um pouco desse estresse muscular e conectar-me melhor ao chão.
Para Lowen (1970), há cinco passos para a atitude criativa:
- a sua identificação com o corpo: tornar-se consciente das tensões
musculares e suas respectivas influências nas atitudes e nos comportamentos de
nosso dia a dia;
- reconhecimento do prazer como base das atitudes conscientes:
motivação de todas nossas ações, buscar prazer e fugir da dor;
- aceitação dos próprios sentimentos: "não se pode alterar os
sentimentos, pois eles não estão sujeitos à vontade consciente" (1970, p.241).
Aceitar os sentimentos é aceitar a si;
- compreensão da interdependência de todas as funções da
personalidade: não o "penso, logo existo", mas o "porque existo, penso" (1970, p.
241);
- humildade:

A humildade é a característica da pessoa que se aceita. Ela não é


nem submissa nem arrogante. Também não é egotista, nem
acanhada. Embora compreenda que é um indivíduo uno, sabe
também que faz parte de uma ordem maior. Apesar de reconhecer
que sua existência e suas funções estão sujeitas a forças alheias à
sua personalidade, sente que essas forças, naturais e sociais,
também estão dentro dela mesma, integrando o seu ser. É assim,
concomitantemente, sujeito e objeto, ator e "objeto de ação" na
escola da vida. (LOWEN, 1970, p.241-242)

Penso na imagem de um jarro de metal cheio de água, mas que não


explode, sendo que a pressão aumenta a todo instante. Quando há espaço, a água
vaza, mas de maneira "conduzida" no primeiro momento e depois sendo abrupta.
Sem se ter controle dela acaba explodindo a energia ali dentro. Se torna violenta
tanto para o jarro como para o exterior. Afinal, que controle se tem dos estilhaços do
142

jarro,ou de qualquer outra forma? Que relação podemos pensar entre esses
conteúdos e formas?
O trajeto melhor seria desaguar a ÁGUA / ELEMENTOS / SENSAÇÕES
do jarro de maneira fluida, o que não quer dizer monótona ou linear, mas VIVA. É o
trajeto, o percurso, a prática e os encontros que estabelecem os conceitos. O
caminho, dessa forma, não fica preso a um conceito, mas ao contrário: o conceito se
torna uma parada, um "congelamento" momentâneo do trajeto. É o caso do corpo-
couraça. Isso é um “paradouro” para mim: um local onde estaciono um tempo para
me abastecer, confirmar onde estou e seguir viagem mais tranquilamente.
O corpo é em si o inesperado, pois ele vai contra todas as ideias
preconcebidas de um ideal que está vinculado, em nossos tempos, a uma imagem
externa. É pelo corpo que experienciamos o mundo por diversos matizes, sendo que
muitos deles são contraditórios. O corpo se relaciona com o espaço e este com a
experiência. As experiências acontecem quando a gente não espera, não temos
esse controle. Até aqui, fiz uma assimilação entre a literatura da bioenergética e a
literatura do teatro. Lowen usa palavras como graça, graciosidade, beleza,
harmonioso etc. para falar dos movimentos corporais, do modo da pessoa se
expressar. Quando entramos no campo da arte, sabemos que algumas expressões
são bem questionáveis, principalmente quando falamos sobre o que é belo, sobre
beleza, por exemplo. O corpo não é uma máquina, ele reage de maneira sensível ao
seu meio. As sensações que sentimos são movimentos e/ou fluxos de excitação,
que nascem dentro de nós. O caminho que elas percorrem é do interior do
organismo até a sua superfície (como o movimento plasmático).
Com a bioenergética, pouco a pouco vamos reconhecendo esses trajetos,
esses fluxos de energia que se manifestam ou que têm a sua passagem bloqueada.
Quando nada os obstrui e esses fluxos chegam à superfície do corpo, então não só
os expressamos, como tomamos consciência deles ao ponto de dar-lhes nomes:
alegria, raiva, medo, nojo, compaixão, tristeza, paixão, remorso, etc.

Certa vez quando estava trabalhando com o corpo, senti uma onda
de excitação subindo pelo meio das costas até o pescoço. Percebi os
pêlos do alto das costas se eriçarem e então a onda passou pelo alto
da cabeça e desceu até os caninos. Senti o som de um rosnado se
avolumando em mim. Era uma onda de raiva animal profunda, como
um cachorro que arreganha os dentes e cujo dorso se arredonda
numa corcova de ataque. (LOWEN, 2007, p.144)
143

O dar-se conta desse fluxo é o que permite a sua repetição. Ou, melhor,
refazer o trajeto que levou a essa expressão. À semelhança de Artaud, que partia de
suas emoções e suas dores para compreender melhor aquilo que era humano,
Lowen, na fala acima, nos mostra que é possível e importante estarmos atentos às
nossas manifestações. Uma sala de trabalho teatral torna-se mais propícia porque
você estará investigando a fundo os movimentos e os fluxos. Você pode conduzir os
movimentos primeiramente, mas nunca terá controle quando esses fluxos
acontecerem pela primeira vez.
Um exercício interessante de se fazer é deixar que o corpo faça os
movimentos que deseja. Pode ser feito sozinho, mas acredito que a presença de
outra pessoa é fundamental. Nas primeiras vezes, é interessante ficar de olhos
fechados, isso aguça a escuta teatral, aquela escuta integral, do corpo, dos poros,
etc., a que nos permite estarmos abertos para o outro e para o espaço e, então,
deixar o movimento acontecer. Perceba (não com o pensamento racional, mas com
o do corpo) se quer levantar os braços, mexer o quadril, acelerar a respiração,
correr, esfregar-se no chão, etc. Pense que você quer abrir espaço para esses
microfluxos que temos no dia a dia, como, por exemplo, quando você está numa fila
de banco e tem vontade de espreguiçar a coluna, mas não o faz por falta de espaço.
Esse exercício segue a mesma diretriz, mas com espaço para poder se expressar.
O olhar do outro pode nos proteger de eventuais choques (no caso de nos
movimentarmos muito rápido e batermos na parede, o que é mais propício de
acontecer se estivermos trabalhando sozinhos, sem um olhar de fora, por exemplo)
e também para perceber qualidades de movimento, modos de expressar, tônus,
intensidades, etc. Esse exercício e tantos outros que passaram por esse trabalho
devem ser feitos com a atenção sempre aos fluxos que podem acontecer. Nossas
perturbações diárias, nossos medos, etc. impedem que esses fluxos aconteçam. Os
exercícios devem nos ajudar a recuperar esses caminhos que foram sendo
obstruídos.

Cada músculo tenso é um músculo amedrontado. O medo é igual à


contração, deve ser entendido, sentido e liberado. O estado de
contração também é uma condição de muita tristeza. Para soltar a
contração, a tristeza precisa ser expressada. Também há raiva
reprimida no estado de contração - e ela precisa ser sentida, aceita e
144

descarregada. Bioenergética descreve como isso pode ser feito.


(LOWEN, 2007, p.145)

São por esses caminhos que chegamos a aquilo que é mais íntimo, não
de nós, mas do que é humano. O personagem do Arquiteto é essa figura que é o
eterno, o arquetípico, o inconsciente coletivo, um ser atemporal e o Imperador, com
sua psicologia individual, é vinculado ao tempo cronológico (TAYLOR, 1984, p.44-
47). O Arquiteto é a superação da cisão entre natureza e cultura, entre o simbólico e
as forças vitais, ele é o homem aberto, permeável, pois se permite entrar em contato
com forças cósmicas que também o constituem.

COSMOS E ÁTOMOS
não há mistério na dita
força universal e eterna.
é igual e é a mesma que
te habita entre as pernas. (GAIARSA, 1982, p.13)

O Arquiteto não se julga sozinho. Ele está em contato com a ilha, com as
plantas, com os animais, com o Sol, com a noite. É a vinda do Imperador e a relação
que eles estabelecem faz com que o Arquiteto construa uma canoa e pense em ir
embora. O personagem Arquiteto é muito rico para ser trabalhado porque temos que
entrar em contato com certas fronteiras do humano: podemos lê-lo como outros
modos de ser, acessíveis ao homem. E, ao mesmo tempo em que isso acontece, o
Arquiteto não é o centro dos acontecimentos, ele é um modo de respirar com o
mundo.
Artaud (1996) enfatiza, em vários de seus textos, como o homem está
separado do mundo, no sentido de estarmos presos à cultura que criamos e às
diretrizes que dela nasceram. A figura da peste, então, seria "uma entidade psíquica,
e que não seria veiculado por um vírus" (1996, p.13). O Imperador seria tudo aquilo
que Artaud combate: essa ““consciência separada” que está na base dos sistemas
de pensamento e linguagens hegemônicos no Ocidente, expressando o sentimento
de impotência e revolta diante da nossa incapacidade de estarmos juntos à "vida"
(QUILICI, 2004, p.59)”.
Em Artaud, a palavra 'vida' tem um significado especial. Ela estaria indo
em outra direção que o pensamento "claro" e "discriminativo" no qual nossa
sociedade se baseia, pois a vida é dinâmica, irregular, informe. A "vida" para Artaud
145

é esse universo de forças em conflitos no qual estamos inseridos, é essa crueldade


da qual ele fala.

Não compreender isso é não compreender as ideias metafísicas. E


não me venham dizer depois que meu título é limitado [Teatro da
Crueldade]. É com crueldade que se coagulam as coisas, que se
formam os planos do criado. O bem está sempre na face externa,
mas a face interna é um mal. Mal que será reduzido com o tempo,
mas no instante supremo em que tudo o que existiu estiver prestes a
retornar ao caos. (ARTAUD, 1996, p.121)

A crueldade está nesse trabalho com as couraças, nesse encontro que


temos diante de nossos Arquitetos e Imperadores que vivem dentro de nós. O mais
difícil de lidar aqui, de criar um diálogo é justamente o Arquiteto. Se pensarmos em
um dos significados da palavra arquiteto, "aquele que projeta, idealiza ou fantasia
qualquer coisa" (FERREIRA, 2009, p.192), nos conectaremos de novo aos nossos
impulsos dos sonhos e das nossas vontades mais íntimas. E então, não ficaremos
com angústia no peito, aquele peso sufocante, sem conseguir respirar, sem
conseguir criar, com medo, parado, petrificado diante de tantas suposições.
Percebamos o seguinte quadro de Magritte, "O Aniversário" de 1959, ou seria
melhor: "Nenhum ano de vida"?

Figura 10 - O aniversário - René Magritte - 1959


146

A obra de Arrabal expõe o nosso íntimo, a realidade na qual ele se


apresenta: sem críticas e sem escolhas. Uma obra genial que conseguiu criar,
mesmo sem ser esta intenção inicial, personagens que se estruturam e se
apresentam de maneira paralela com as regras de psicologia básica. O Imperador é
a corrente de consciência, ininterrupta, suas sensações internas buscam válvulas de
escape. Ele cria, como se fosse uma sessão de psicodrama, inúmeras situações
para ver como se comportaria nela e como sairia dessas prisões que ele cria para si
próprio.
Enquanto o Imperador pede para ser crucificado, se chicoteia, sonha em
arder no inferno e pede para ser morto e comido, ele percebe o Arquiteto. Então, ele
vê o Arquiteto sendo atuante no mundo, ao passo que ele é essa pedra, esse objeto
duro, preso, que não respira, que não tem corrente de ar. O Imperador ainda, de
certa forma, faz da ilha seu grande lugar de catarse pessoal. Penso: quantas
pessoas são como essa pedra dentro de um quarto fechado: sem lugar para o ar
entrar e sair. Cria-se a ilusão de vida olhando para esse quadro, mas nessa pedra
não há como segurar os sentimentos, não há repressão, já que não há vida.
Não somos pedras, essa imagem é um extremo, mas temos a tendência
de enrijecermo-nos. Como artistas, temos que ter cuidado com isso. Stanislavski
(1979) me ensinou que o ator deve estar em estudo, em movimento, tentando
aprofundar-se cada vez mais na sua arte. A centelha de vida, esse fogo que existe
dentro de nós e que tem por natureza a necessidade da criação, conta com a nossa
atenção sempre alerta para não ser apagada, abafada ou circunscrita por paredes,
por muros, por uma couraça que nos limita.
Essa chama na qual acredito é silenciosa, encontra-se no fundo de nós.
Está presente quando a mãe olha o seu filho recém-nascido, ou quando duas
pessoas esperam que seus corpos se fundam, em uma relação amorosa, por
exemplo.

Nada pode destruir essa força luminosa e silenciosa. Ela atravessa


cada objeto, regula cada célula do organismo vivo. Ela está em tudo,
enche o espaço que os homens vazios esvaziaram. Provoca o brilho
e o cintilar das estrelas. Essa chama, que o verdadeiro médico sente
na pele de todo ser humano, é para ele um sinal de saúde; sua
ausência indica a doença. Em caso de febre essa luz se intensifica,
pois ela combate a infecção mortal. (REICH, 1999, p.207)
147

O teatro, como profetizou Artaud (1996), é essa arte que demonstra a


identidade entre o concreto e o abstrato, essa arte que consegue ser extemporânea
e contemporânea ao mesmo tempo e que age como uma iluminadora das
escuridões em que vivemos7. Compreendo-me como alguém que está disposto e a
serviço de um teatro que seja vinculado à vida. Não às vidas individuais, a essas
repressões a que estamos habituados, mas à vida cuja proporção seja difícil de
assimilarmos, mas que a SENTIMOS e que nos reconecta a Vida. Um lugar
realmente onde possamos atravessar as fronteiras ou pelo menos percebê-las. É um
ato de provocação. Um ato sensível, que atravessa nossa respiração, nosso corpo,
esses fluxos internos.

7
Viver na contemporaneidade, ou melhor, ser contemporâneo é manter o olhar no seu tempo para
nele perceber, não as luzes, mas o seu escuro: "Todos os tempos são, para quem deles experimenta
contemporaneidade, obscuros" (AGAMBEN, 2009, p.62). O exercício de perceber esse escuro, que
abafa as luzes de nosso tempo, e interpretá-lo é um objetivo claro que proponho que realizemos nos
nossos cotidianos.
148

Últimas palavras: o ator em chamas

O corpo-couraça é uma imagem que me guia para pensar sobre o


corpo do ator. Quando digo “corpo” estou me referindo ao que há de latência
no homem que decidiu dedicar a sua vida ao fenômeno teatral. Podemos
dizer que o entusiasmo8, esse interesse que nos toma, esse intenso prazer
que ganha proporções, dedicação ardente e veemente, a paixão que ligamos à
imagem do fogo, é uma das características desse corpo-couraça. Que o
pensamento, a percepção, a atenção, o desejo e o sentimento fazem parte
dele. Aquelas palavras difíceis, como “alma” e “espírito”, também estão ali.
O ator e a atriz em cena são sempre dois: a pessoa em si, aquele
indivíduo que trafega pela vida cotidiana e que representará personagens ao
longo de toda a sua trajetória artística; e a "personagem", cênica que
desenvolveu – que conhece, sabe o que irá falar, o que irá fazer, cuja
memória foi criada e vive diante dos olhos do espectador. De antemão,
poderíamos dizer que há várias formas de se fazer teatro, que não
necessariamente há personagens, que não necessariamente é contada uma
história com início-meio-e-fim, que o indivíduo pode estar à frente do
personagem, da alegoria, do tipo, etc. Mas vamos nos concentrar na ideia de
que vou ao teatro para ver um outro.
As obras clássicas do teatro como "Prometeu Acorrentado" de
Ésquilo, "Macbeth" de Shakespeare, "Jardim das Cerejeiras" de Anton
Tchekov, "Eles não usam black-tie" de Guarnieri, entre tantas outras obras
dramáticas que poderiam ser citadas, fazem com que o ator e a atriz
necessitem criar caminhos para se aproximar das situações das peças, dos
personagens, de suas emoções, das palavras, das imagens que ali estão
contidas. Obras contemporâneas como "Café com queijo" do Lume Teatro,
criada a partir da mímese corpórea, "Luiz Antônio Gabriela" da Cia.
Mungunzá, a partir da história de uma travesti, são exemplos de que mesmo

8
"1.Na Antiguidade, exaltação ou arrebatamento extraordinário daqueles que estavam sob inspiração
divina, como as sibilas, etc.; transe, transporte. 2. Veemência, vigor, no falar ou no escrever; flama. 3.
Exaltação criadora; inspiração, estro" (FERREIRA, 2009, p.768).
149

que as técnicas de criação e produção teatral sejam distintas, híbridas,


performáticas, há o outro. Existe esse deslocamento para realizar a obra.
Corremos o risco de pensar que o ator é um mero informante? Mal
do nosso tempo: aprendemos a valorizar os meios de comunicação e não os
conteúdos por eles transmitidos. Como se um corpo atlético, pensando no
teatro, que segue padrões "x", se sobressaísse sobre um corpo afetivo. Nesse
ponto de vista, um corpo atlético ou aquele com poder discursivo no palco
não me interessa. Aqueles que foram arrebatados pelo teatro, sabem que no
fenômeno teatral acontece algo que não está ligado a um corpo "x", a uma
postura "y", a uma forma de dizer "w" e assim por diante. Os mestres do
teatro, Stanislavski, Meyerhold, Brecht, Grotowski, Brook e Antunes Filho,
entre tantos outros, indicaram caminhos, exercícios, práticas, que ajudassem
os atores na tarefa que aqui consideramos primordial: manter a centelha que
se acende no teatro intensamente viva.
Tarefa difícil. A estrutura teatral, por mais exigente que seja, ao
mesmo tempo, é frágil e delicada. Trabalhamos meses em uma cena, alguns
artistas trabalham anos em uma obra, para criar uma estrutura a qual
possibilite que essa centelha nasça, se mostre forte e vibrante, no momento
em que for encontrar o espectador. Isso não é indicativo de que, de fato, irá
acontecer o encontro. Não temos controle da relação que irá ou não se
estabelecer. Por isso que os mestres do teatro nos indicam alguns caminhos:
porque há o perigo sempre real de se perder o espectador.

É um esforço quase sobre-humano conseguir renovar


continuamente o interesse, encontrar a originalidade, o frescor,
a intensidade que cada novo instante requer. Por isso é que
existem tão poucas obras-primas no teatro universal, em
comparação com outras formas de arte. Como a centelha de
vida está sempre correndo o risco de desaparecer, temos que
analisar com precisão os motivos de sua frequente ausência.
(BROOK, 2010, p.10)

O corpo-couraça assume-se como instável. Ele é a imagem do


desequilíbrio. Ele está em conflito o tempo todo. Embora essa imagem
contenha a dura palavra “couraça”, seu estado é de dinâmica. O teatro lhe
proporciona ESTAR no momento por causa do seu desequilíbrio. Isso gera
150

uma atenção sempre presente. Por causa dessa condição, sua forma torna-se
delicada, sua resistência não é durável. Ela tende a ser contingente, mas não
prolixa. É determinada pelo aqui-agora. Suas ações não se fixam em uma
continuidade amorfa: a dramaticidade está no envolvimento com o presente,
com a vida. Esta dinâmica é envolvida por movimentos, rupturas, silêncios,
espasmos, etc. O tônus é dado pelo desequilíbrio.
O ator aqui é desfragmentado. Ele é o espelho desses homens
contemporâneos que

[...] seguem as transformações internas sem querer corrigi-las,


mas observando-as com curiosidade, tentando estar
absurdamente consciente dos pedaços, sem negá-los, sem
rejeitá-los e vendo aonde isto vai dar, se vai dar em algum
lugar (LIMA, 2009, p.28).

O corpo-couraça pode ser um grande palimpsesto com a sua


capacidade de reescritura e escritos das sensibilidades. Um corpo-
palimpsesto que cria histórias, refaz caminhos, delineia posturas, ações e
que descentraliza o olhar. Mas que não esquece o que aconteceu e o que
passou até chegar aqui: todas as quedas que os joelhos suportaram, todos os
solos com os quais as plantas dos pés se relacionaram. Palimpsesto da
escrita daquilo que está marcado, registrado. Aquilo que foi comido,
ingerido, oferecido, vomitado.
Camadas de máscaras, de diálogos, de corpos, de vazios, de
sonhos, de intimações, de desejos, de assaltos, de castigo, de vida e de morte.
Quando revelamos a camada da TRANSPARÊNCIA, aquilo que acontece e que
está acontecendo, junto com a camada da CENTELHA DE VIDA, aquilo que te
toca e que me toca, neste momento, o espaço passa a ser outro. O tempo é
controlado. Podemos sentir o teatro nascendo daqui.

Do mesmo modo, quando pronunciamos a palavra vida, deve-


se entender que não se trata da vida reconhecida pelo exterior
dos fatos, mas dessa espécie de centro frágil e turbulento que
as formas não alcançam. E, se é que ainda existe algo de
infernal e de verdadeiramente maldito nestes tempos, é deter-
se artisticamente em formas, em vez de ser como supliciados
que são queimados e fazem sinais sobre suas fogueiras.
(ARTAUD, 2006, p.8)
151

O ator age no palco como se estivesse pedindo para ser salvo. Ele está
se destruindo. Ele evidencia o terror que é não poder voltar no tempo. Cada
gesto feito é uma inscrição no espaço, seja qual for a sua potencialidade. E
como tem história esse gesto! O ator é uma pessoa que carrega os nossos
mortos e o nosso imaginário junto a si, no paradoxo de que nunca terá total
consciência do peso de sua ação e do alcance que ele tem: isto seria
impossível. No entanto, o engajamento, o envolvimento tem que ser sempre o
máximo. É preciso crer que as ações que realiza findam toda a história que
havia antes. A ação do ator é a concretude do finito.
Mas como falar de algo que é incontável? O ator tem a possibilidade
de experimentar o fato de que todos vamos morrer. Porque é no teatro que
operam essas imagens que fazem parte do grande reservatório da
humanidade9, que nos ligam a essa memória anterior a nós mesmos. Pela
história de meu corpo correm mortes e vitórias, longos anos de espera e uma
paixão incontrolável, o olhar abismado pelo condor que cruza o céu e esse
sangue que escorre pelo meu rosto após mais uma batalha pela liberdade...
As imagens surgem e eu vou me sentindo mais conectado à vida.
A bioenergética permite que eu me perceba com o outro. Que esses
sentimentos e essas emoções são constituintes do que me torna eu, que me
torna finito. Pois sou um eterno estrangeiro, no palco me encontro. É ali que
deixo de ser o eterno imigrante e emigrante de mim mesmo. É ali que passo a
acreditar que não vim ao mundo por acidente e nem que o deixarei a esmo.
Sou essa ressonância atemporal daquilo que nos trouxe até aqui.

Tens um medo mortal da tua própria profundidade, por isso


nem sequer a sentes. Se te abeiras dela, tens vertigens, como se
fora um abismo. Temes a queda e a perda da tua
<<individualidade>>, quando só terias a ganhar com o
abandono. (REICH, 1982, p.100)

Por isso a importância desse envolvimento com o teatro. Nenhuma


ação pode ser feita de qualquer maneira. Nenhum dia de trabalho pode ser
negligenciado. Estamos comprometidos com esse ato de criar uma fissura
9
OLIVEIRA, 2011, p.135.
152

poética dentro da rigidez que vive o nosso tempo. Essa abertura, que não
acontece só no ator como na revelação daquilo que é essencial10, que invade a
imaginação do espectador (a plateia, o colega de cena, o próprio ator),
apresenta novas formas de ser e de agir no mundo.
As novas categorias de ser, as quais já mencionei, não têm a ver
com apresentar novas maneiras éticas de lidar com o mundo e criar uma
cartilha de como devem ser o homem e a mulher do futuro. Elas implicam
nesta necessidade de instalar-se, de estruturar-se, de afirmar que nos
encontramos no território do ESTAR. Somos seres comprometidos com a
ação. Causa e efeito: operar na incerteza e na crença do que se faz.
O corpo-couraça é erótico porque evidencia esse desmembrar-se,
esse desejo de ir a fundo em uma emoção e procurar como ela nasce, qual a
sua força de ação, de violência, de amor com o outro. Não se fechar em si,
mas abrir-se. O desnudar nos faz encontrar a morte. "A morte abre para a
negação da duração individual" (BATAILLE, 1987, p.23).
Pelo fato de desvelar esse segredo que faço teatro e que aposto na
bioenergética. Ela coloca em nossas mãos aquilo que põe o nosso ser em
questão. No teatro evidenciamos isso. Não entregamos nada “na bandeja”
porque revelações desse tipo não podem ser dominadas e nem supor quando
irão acontecer.
Porém, posso dizer que, no teatro, isso pode acontecer através da
ação do ator, de seu trabalho de abrir-se e oferecer-se ao outro.
Compartilhando a morte, a crueldade, ao mesmo tempo que revela, em força
bruta de exercício de lapidação, a Vida.

10
GROTOWSKI, 1987.
153

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS11

11
Baseadas na norma NBR 6023, de 2002, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
154

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC:


Argos, 2009.
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ARTAUD, Antonin. A Arte e a Morte. Lisboa: Hiena Editora, 1993.
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