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um olhar psicanalítico.
&
Denise Maurano
2021
um corpo
escreve e é escrito,
atravessa e é atravessado,
muda.
Mudo não.
INTRODUÇÃO
Palavras finais
Referências Bibliográficas
(Ab)usos do corpo:
um olhar psicanalítico.
Introdução:
1
Os dois corpos do rei é um conceito analisado por Ernest Kantorowicz (1998)como nascido na
teologia, aplicado à Cristo - Deus e homem - e transposto para o campo do direito e da política na Idade
Média, servindo à sustentação da monarquia absolutista.
barroca tomou a cena no campo das artes. E o fez, via uma exacerbação da imagem do
corpo, servindo como instrumento de persuasão para diferentes “senhores”. Para o
catolicismo, o investimento massivo na imagem dos corpos dos santos, imagens
sobretudo sacrificiais, e de êxtase místico, fez face à luta dos luteranos contra o uso dos
ícones-retrato, constituindo-se como estratégia de persuasão para adesão ao catolicismo.
Para a monarquia absolutista e para a burguesia em ascensão, a exaltação do corpo
“royal” ou do corpo dos membros da família burguesa retratada, constituiu-se como um
signo de poder e afirmação.
Diferentemente da expressão clássica na arte, dada à contemplação, a arte
barroca comparece induzindo o olhar, buscando influenciar, podendo, a meu ver, ser
considerado como uma primeira expressão da arte interativa, ⎯ aquela que convoca e
provoca o observador a interagir com a obra. O Barroco se impôs como linguagem da
transição, complexa coordenação de valores sagrados e mundanos, conjugação tensa
entre o céu e a terra, o que traz consequências para a abordagem do corpo.
A exigência moral de ter um corpo traz uma inversão. O espírito é obsceno, o
fundo do espírito é sombrio, o que exige um corpo que nos pertença. Como afirma
Lacan (1972-1973), nessa mesma direção, “O barroco é a regulação da alma pela
escopia corporal” (Lacan, 1972-1973, p.158). Tendo já dito que “de tudo que se
desenrolou dos efeitos do cristianismo, principalmente na arte – é nisto que encontro o
barroquismo com o qual aceito ser vestido – tudo é exibição do corpo evocando gozo
...Quase chegando à cópula”(...) (Ibid, p.155). E acrescentado “em parte alguma como
no cristianismo, a obra de arte como tal se verifica de maneira mais patente como aquilo
que ela é desde sempre e por toda parte: obscenidade”. (Ibid, p.154-155)
A obscenidade é evocada para indicar um empuxo à revelação do que deveria
permanecer oculto, fora da cena. Na perspectiva do barroco, não há obscuro em nós por
termos corpo, mas devemos ter um corpo porque há inelutavelmente este obscuro em
nós. Nele se opera um jogo de revelação e encobrimento do lado sombrio e solar que
compõem a vida. Lacan diz ainda: “Quem não vê que a alma não é outra coisa que
senão a identidade suposta a esse corpo, com tudo o que se pensa para explica-lo?
(Ibid, p. 150)
A Renascença trouxe à tona os germes de uma crise entre os valores cristãos e o
pensamento herdado do mundo antigo. Evidencia-se a relação ao saber como uma
armadilha, dado que nela, a subjetividade encontra seu lugar ao preço do esvanecimento
do próprio sujeito.
Será esse esvanecimento que comparecerá em cheio nas obras barrocas. O
barroco será o período subsequente ao Renascimento, na história da arte, que coincide
com a Idade Moderna na história do pensamento. Parece que a expressão barroca dará
uma forma a esta tensão pela via de um tipo de exaltação, que coloca em cena a imagem
daquele que está fora de si; daquele que alheio à subjetividade está mergulhado num
gozo do Eterno, gozo de Deus, e que entretanto, paradoxalmente, exibe o corpo em uma
dimensão que tange ao obsceno, como Lacan o sublinha (Ibid, p. 155). Há aí a indicação
de uma conjunção entre a alma enquanto divina, e o corpo que se exibindo, deixa ver o
que não é visível, o que é “fora do si mesmo”.
Isso me fez supor que a busca de delimitação do “si mesmo”, desse algo que
viria singularizar o sujeito, encontra no estilo barroco a expressão de suas dificuldades e
impasses. A busca da exatidão e objetividade renascentista transforma-se em inexatidão
e subjetividade na expressão barroca. Como comenta Affonso Romano Sant’Anna
(2000), o espelho barroco torna-se lente, intervém nas imagens da realidade e não tem a
menor preocupação em reproduzi-la fidedignamente. Esta, a meu ver, é a dimensão
mais expressiva dos efeitos de ilusão de ótica promovidos pelo barroco, entendido como
uma expressão própria da inquietação humana conforme explorei mais detidamente
num trabalho anterior (Maurano, 2011).
Corroborando com esta ideia, Rodis-Lewis (1966), no prefácio da versão
francesa do Discurso do método, privilegia este aspecto do barroquismo de maquinarias
e de ilusões de ótica, como uma coisa relevante ao contexto de Descartes, o chamado
pai da modernidade e da apologia à razão. Comenta a intenção deste de edificar uma
“ciência dos milagres” sobre as “matemáticas”, o que implica uma problematização da
nossa adesão espontânea ao mundo que nos envolve e inclusive da própria experiência
de nosso corpo. Descartes quer estabelecer a questão do saber e da subjetividade, sobre
um terreno preciso. Ele coloca em suspeição a própria percepção do eu advinda da
corporeidade, atribuindo à possibilidade de um deus maligno confundir a percepção até
mesmo de nosso próprio corpo, e termina por fiar-se na certeza do eu, proveniente da
constatação de que se duvido, é porque penso, concluindo se penso, então eu sou. Mas
não seriam eles, o saber e a subjetividade, e inclusive o saber da subjetividade, ilusões
de ótica privilegiadas, onde o desejo desempenha um papel fundamental a respeito da
relação especular estabelecida entre esses dois elementos: pensar e ser?
O tema da loucura nas tragédias do período moderno é algo a ser remarcado
como contraponto à apologia da ordem, harmonia e objetividade que aparecem como
exigências da razão moderna em sua expressão renascentista. A subjetividade
“produzida” nesse período, e daí para frente, é investida da esperança de controle e de
afirmação da existência. O pensamento torna-se o fiador do sujeito. O que se apresenta
de maneira exemplar na oscilação entre o ‘ser ou não ser’, no contexto shakespeariano
de Hamlet. Nessa via, a encenação da loucura nas tragédias modernas, encontra uma
larga expressão exatamente para fazer contraponto à razão, ou à pretensão de que o
sujeito se reduza ao seu pensamento.
Foucault, na História da sexualidade — O uso dos prazeres(1984), ressalta o
trabalho de Burckhardt, por este sublinhar a importância de se estender às artes da
existência, as técnicas de si, à época da Renascença. Se a constituição do si mesmo
implica o questionamento que o ser humano empreende a respeito do que ele é e do que
ele faz, a exaltação burguesa liberal do indivíduo leigo, visará a dominação racional da
realidade como um projeto renascentista. Assim uma nova visão do homem, da cultura e
de suas relações recíprocas compareceu fundamentando as revoluções culturais e
estruturais dos séculos seguintes, até o século XIX. (Garzanti, 1986, p.856)
Ainda que na História da loucura Foucault (1972), reportando-se à Idade
Antiga, focalize a Philautia, o atrelamento a si mesmo, como a primeira miragem da
loucura.
a “Philautia” é a primeira das figuras que a loucura desencadeia
em sua dança; ... o atrelamento a si é o primeiro sinal de loucura,
mas é porque o homem é atrelado a ele mesmo que aceita como
verdade o erro, como realidade a mentira, como beleza e justiça a
violência e a feiúra ... Nessa adesão imaginária a si mesmo, o
homem faz nascer sua loucura como uma miragem. (Ibid, p.
35-36)
Certamente, a presença do corpo, a partir de sua imagem, vai imantar as
referências ao si mesmo, potencializando toda a loucura da relação ao corpo que
comparece na atualidade.
Mas afinal de contas, onde está o si mesmo? No pensamento que tenta cerni-lo,
recortando-o pela linguagem, no corpo que o configura como imagem, ou ainda na
experiência sensorial da corporeidade? E mais, será que não existe uma íntima conexão
entre esses diferentes planos supostamente antagônicos? As torções moebianas, aquelas
nas quais, por um reviramento na superfície, sem que haja mudança de borda, o que
estava do lado de dentro, passa a estar do lado de fora e vice-versa, evidenciando um
reviramento entre o que é exterior e o que é interior, são intensamente exploradas nas
obras barrocas.
Como mencionei acima, a íntima comunicação entre planos supostamente
antagônicos como o divino e o humano, o bem e o mal, a vida e a morte, o sagrado e o
profano, a essência e a aparência, a profundidade e a superfície, o dentro e o fora, o
sofrimento e a alegria, revelam-se na sua mais profunda paradoxalidade.
Corroborando com esse panorama, é bom lembrar que no século XVII, Leibnitz,
definiu um novo ramo da matemática, referido ao estudo do lugar, “analysis situs” , que
se encontra na origem da topologia. A topologia trata das transformações contínuas de
fronteiras e de superfícies, sem submissão rígida às distâncias métricas, e que opera
com arrazoamentos que extrapolam as significações concretas, indicando a existência de
uma geometria flexível no campo das matemáticas. Não à toa, Lacan se encantará com
a topologia, a partir de 1962, em seu seminário cujo tema é a Identificação, onde ele se
serve, por exemplo da banda de Möebius , antes mencionada por Freud.
Pelo visto, o barroco é um instrumento preciso do que Lacan veio a chamar de
“monstração”, revelação de algo que emergindo da obscuridade, traz à cena o que
deveria permanecer oculto. O barroco, com suas torções tanto plásticas quanto literárias,
e mesmo musical, dá a ver a tensão operante em todo esforço de delimitação subjetiva.
Nisto o corpo não está de fora, mas toda delimitação aparece sempre prestes a se
dissolver. Daí o funcionamento de paradoxo, essa conjugação afirmativa dos opostos,
sem que um polo, negue o outro, vir indicar que o barroco, para além e aquém de
designar um estilo de época, espraia-se como recurso expressivo em diferentes
contextos temporais, e mais do que isso, expressa um dos modos de orientação do
psiquismo.
A valorização da percepção sensorial da realidade afeta radicalmente a
obra barroca, que impregnada de cor, de perfume, de sensação tátil
refletem o mundo em sua dimensão sensorial, ou seja, refletem um
mundo impregnado de subjetividade, e da tensão que lhe é inerente.
Trata-se na obra barroca, de dar forma plástica, musical, arquitetônica,
literária, às operações metafóricas, metonímicas, antitéticas,
hiperbólicas, e sobretudo paradoxais, que operam no funcionamento do
sujeito, enquanto sujeito do inconsciente. (Maurano, 2001, p. 30)
O filósofo holandês do século VII, Benedictus de Spinoza, é contemporâneo da
difusão da expressão barroca e não por acaso, Deleuze (1991) relaciona sua filosofia a
essa arte seiscentista. Em sua filosofia o corpo ocupa lugar privilegiado. Contra a ideia
do dualismo corpo e alma, Spinoza sustenta a tese do “Paralelismo Psicofísico”
(Espinoza, 2015). O que afeta o corpo, afeta a alma e isso constitui o ser. A alma
coloca-se como o pensamento do corpo, e portanto, o modo como pensamos evidencia a
maneira como vivemos. De modo que pensamento e ação se encontram juntos.
Sua grande questão: – O que pode um corpo? Evidencia que não temos
conhecimento do que pode um corpo porque desconhecemos sua potência de agir, e da
mesma maneira, também não conhecemos a potência de pensar da alma, do espírito. É
essa potência que revela para ele, o que seria aquilo que torna único, cada um de nós.
Nessa perspectiva o corpo não é passivo, não é mero instrumento da alma, nem mero
objeto.
O fato é que ninguém determinou até agora, o que pode o corpo,
isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo
– exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada
apenas corporalmente, sem que seja determinada pela mente –
pode e o que não pode fazer. (Xavier, 2019)
As fantasias do desejo vêm abrigar-se no seio dessa imagem que, entretanto, não
responde com a estabilidade esperada. A imagem do corpo modula-se pelo espelho do
olhar do Outro referente, e esse varia suas inclinações criando um universo
caleidoscópico de ângulos possíveis de visão dessa imagem.
O corpo mesmo, o real do corpo, como tudo que tange a coisa em si, é
intangível. É também o lugar do Outro radical, da alteridade absoluta, dele resta-nos a
experiência do que o afeta, o mapeamento que a linguagem lhe concede, e o contorno
que sua imagem possibilita. A essa imagem nos apegamos e temos sorte quando com
ela, nos identificamos. Entretanto, ela não é fixa. Mas isso não impede que recorramos
a ela, na busca de um delineamento possível do ser. Daí toda a importância da função
do narcisismo, que diz respeito exatamente à nossa alienação nessa imagem convocada
a responder pelo nosso ser. O curioso é que, o brilho dessa imagem, no jogo
estabelecido entre sua consistência e sua evanescência, na transitoriedade aí implicada,
vem indicar simultaneamente, a relação do homem com o belo e com a morte e
justificar por que o belo nos interessa tanto, mostrando o quanto não tem nada de
supérfluo, mas sim de essencial.
A peculiaridade da abordagem da função do belo, aqui proposta, passa por Lacan
(1959-60) e Kant2 que convergem numa apreensão do belo como indicador da
pontualidade de transição da vida à morte, bem como do universal e do particular. Kant
diz que a imagem ideal do belo se situa em referência à forma singular do nosso corpo
em relação à forma universal da nossa espécie. Grosso modo, um exemplar da forma
humana, na experiência de comparação entre mil outros da mesma espécie, em suas
proporções de peso, altura, etc, é belo, se indica a média e por isso seria tomado como
ideal. Mas, o que podemos entender acerca do poder cativante dessa média?
É importante salientar que, em verdade, o corpo tomado como objeto não é belo
pelas qualidades que guarda em si mesmo, mas por relação a todos os outros. Nesse
sentido, o belo, ⎯ comparecendo como um véu que vela o vazio, a inconsistência do ser
⎯, apresenta-se como estratégia de defesa, indicando via a imagem do corpo, não
propriamente aquele exemplar, mas seu mais além, todos os outros, que aquele estaria
permitindo antever. Nesse sentido, o belo, no caso, o belo corpo, remetendo a todos os
outros corpos, funcionaria como uma rede de proteção, um véu de beleza que
transfigura a perecibilidade dos corpos, e assim, nos encorajaria para nos aproximar
desse nada, da morte, do não senso, ao mesmo tempo em que nos protegeria disso.
Para Lacan a forma do corpo humano é apontada como limite das possibilidades
do belo (Ibid, p. 357) Nessa perspectiva, a forma do corpo funciona como o envoltório
das fantasias do desejo. Miragem pela qual se, por um lado o desejo é tornado visível
pelo brilho do belo, o fato mesmo de ser uma miragem indica a relação do homem com
2
KANT, Emmanuel. A analítica do belo....
sua falta a ser, ao mesmo tempo que , por outro lado, esse mesmo brilho o impede de
ver esse lugar pelo efeito mesmo do ofuscamento (Ibid, 357).
Vênus de Willendorf
3
Isso foi o que abordei num trabalho escrito em co-autoria com Kamila Costa “Memórias do reviramento
da carne ao corpo: de Bernini à Varejão, apresentado em 2016 no VI Encontro Nacional e Colóquio
Internacional do Corpo Freudiano – Escola de Psicanálise.
modo realista, os medievais se amparavam no sagrado, os renascentistas, na anatomia,
..., tudo ao gosto da forma, da expressão estética, que melhor demonstrava as
inquietações relativas a cada um desses tempos e a cada uma dessas vertententes
culturais.
Como somos cativos da rede de sistemas simbólicos, o gozo a que temos acesso
tem sempre uma relação com o sentido, seja para afirmá-lo, seja para suspendê-lo.
Lacan usa o jogo de palavras “j’ouis-sens” (eu gozo do sentido) para evidenciar essa
dimensão inter-dita (“inter-dite”), na qual nosso gozo é intermediado pela relação à
linguagem, à palavra. Porém, o que ele avança no Seminário 20 (1972-73), é a questão
das diferentes posições que se pode ter na nossa relação ao Outro da linguagem, que não
tem outro que o assegure. O que, portanto, implica uma falta inexorável nesse campo,
que tem efeitos para a experiência do gozo. O gozo enquanto sexual, eminentemente
seccionado, é fálico. Ou seja, tem no falo um representante finito do hiato existente
entre o sujeito e o objeto, e joga com as diferentes estratégias de cernir esse hiato pelas
vias simbólico/imaginárias.
Assim, ressaltando o misterioso pelo termo revelação, ele menciona que Lacan
encontrou na Bejahung, “a condição primordial para que do real venha se oferecer a
revelação do ser.” (Ibid. p.14) Será esse termo: “revelação” que, segundo ressalta
Didier-Weill, ensejará a hipótese da existência de um gozo de ordem mística.
Didier-Weill redefine a proposta lacaniana da existência dos dois tipos de
experiência de gozo diferentes. Como mencionamos acima, pelo gozo fálico, o
inconsciente se desvela na ‘escuta’ do sentido (j’ouïe-sens) (Ibid, p. 15) – trata-se de
desvelamento. É a relação do inconsciente com a significação, na qual o jogo do
significante serve para representar um sujeito e possibilita que este se aproveite disso e
responda com isso à dimensão traumática da perda. Essa experiência de gozo do
significante se faz em dois tempos: sideração e luz. Ela não é imediata e indica um gozo
próprio ao inconsciente. Porém, há também a experiência de um “gozo Outro”. Via pela
qual “o real se revela como lugar de existência de um verdadeiro começo” (Ibid, p. 15).
Trata-se de uma experiência imediata, em um só tempo, afeita à revelação. Essa
experiência não é a de um significante que remete a outro significante, e sim ao que se
passa na produção artística, quando um significante se abre a um real vibratório de cuja
existência a arte nos faz suspeitar. “Um tal real é o inaudito, ao qual reenvia uma nota
musical; o invisível ao qual reenvia um toque pictural” (Ibid, p. 16).
Por essa via, pode-se ver como o campo dos mistérios vincula-se à relação com
as origens e, por consequência, ao mistério da criação, com todo o amplo sentido que
isso pode ter. Nesse sentido, é preciso que se acentue que não à toa Lacan, no
Seminário Mais ainda (1972-73) , propõe o gozo Outro, em relação ao gozo fálico,
como gozo feminino. Há portanto, uma íntima associação entre o feminino e a criação,
mesmo a criação artística. Desse modo, Didier-Weill inspira a pensar que, para além
de questionar a ideia do desejo inconsciente como o mestre da criação, o que limitaria a
criação ao circuito sexual da relação com o Outro – , permite pensá-la como um recuo
ao começo, para situá-la em sua relação a “ Um mistério mais longínquo que o
inconsciente”, parafraseando o título de sua obra de 2010.
Poderia prosseguir aqui apresentando uma leitura da lógica da sexuaçao tal como
proposta por Lacan, no seu seminário 20, Mais ainda (1972-73) e adentrando nos
avanços possibilitados por suas reflexões no Seminário 23, O Sinthoma (1975-76).
Porém isso estenderia por demais o escopo do que pretendi focalizar aqui, deixando
essa tarefa para um próximo momento.
Parte 2
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Foi no Seminário 2, “O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise” (1954-1955) que Lacan
introduziu pela primeira vez o termo ‘grande Outro’, distinguindo-o do ‘pequeno outro’. O Outro foi
utilizado por Lacan para definir um lugar simbólico, o campo da linguagem e o tesouro dos significantes.
Com essa noção, Lacan situa a questão da alteridade; o grande Outro não é o semelhante, distinguindo-se
do parceiro imaginário, o pequeno outro.
desenvolvimento da psicanálise. O que afeta o corpo sempre fez parte do material
analítico. As queixas das histéricas eram queixas que envolviam o corpo. Os sintomas
que despertaram o interesse de Freud, pela primeira vez, eram essencialmente o que ele
denominava de sintomas somáticos, as conversões.
Dentro da transmissão freudiana destacamos alguns pontos que nos remetem
forçosamente ao corpo: a ‘complacência somática’ - facilidade do corpo em aceitar uma
carga psíquica que se condensa em uma somatização (FREUD, 1910, p.227) -; a pulsão;
a satisfação auto-erótica, as zonas erógenas, o narcisismo, a definição do eu como uma
projeção de superfície (Id, 1923); o masoquismo primário, a inibição, o sintoma e a
angústia.
O inconsciente e a pulsão são as duas formas de alteridade radical que
constituem o sujeito como dividido e, ao mesmo tempo, permitem uma nova definição
do corpo. A pulsão sobretudo. Força localizada entre o psíquico e o somático que
procura e encontra satisfação através de objetos variados, a pulsão resulta do fato da
nossa relação com os objetos ser mediada pela linguagem, introduzindo assim uma
distância entre eu e o objeto através do qual se obtém satisfação.
Apesar de ter sofrido diversas alterações durante a obra freudiana, a pulsão
materializa o estranho que nos habita e nos faz agir em busca de uma satisfação que
nem sempre é prazerosa. O que Lacan anos depois veio nomear de gozo: pontos de
satisfação singular que servem de referência no modo como o sujeito se posiciona no
mundo, diante do Outro e dos objetos. Posições que se repetem e que imprimem uma
marca na relação particularizada entre o sujeito e o seu corpo.
A partir de Freud, a verdade do inconsciente começa a ser ouvida através do que
o corpo pulsional coloca em cena. Freud nos apresentou o corpo histérico como um
corpo erótico, que não obedece às leis da anatomia, corpo disputado, em um primeiro
momento, pela pulsão do eu e pela pulsão sexual.
Desde o início, Freud afirmou que o sintoma histérico encontra seu
determinante, não em uma lesão orgânica, mas em uma representação: a lembrança de
um trauma. Assim, os sintomas dos pacientes “histéricos baseiam-se em cenas de seu
passado que lhes causaram grande impressão, mas foram esquecidas (traumas)” (Id,
1914a, p.19) deixando porém uma marca no corpo. Ou seja, desde o início, o sintoma
aparece na psicanálise atrelado ao corpo e como resultado de algo insuportável.
O sintoma histérico demonstra que as leis que regem a histeria são as mesmas
que comandam a formação dos sonhos, ou seja, as que dirigem o inconsciente. Em seu
fascínio pela forma como o inconsciente toma o corpo, Freud destaca a histeria como
uma defesa contra a recordação (representação) de um evento traumático de natureza
sexual ocorrido na infância. Da crença em uma sedução real à formulação da realidade
psíquica, ou seja, da fantasia, delineia-se o mecanismo do recalque e a formação do
sintoma histérico. A representação é recalcada - retirada da consciência - e o afeto vai
para o corpo (Id, 1915b). É com a sexualidade, que anima o corpo e, ao mesmo tempo,
aponta para sua incompletude e desamparo, que damos continuidade ao nosso percurso.
O alvo (Goal) da pulsão é o seu trajeto (Aim), que tem como fonte e ponto de
retorno uma borda (Bord) corporal ou zona erógena. É nesse trajeto que ela se satisfaz,
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Apesar de não haver controle do movimento pulsional há a possibilidade de ação sobre o mesmo, o que
aponta para a responsabilidade do sujeito frente ao mesmo e vias diversas de trabalho sobre essa força.
sua satisfação ocorre através da repetição desse circuito. Ao mesmo tempo, essa
satisfação não é sem objeto (localizado no circuito na letra a). É o trajeto da pulsão que
articula seus elementos numa espécie de circuito de ida e vinda à borda corporal, através
do contorno do objeto.
Há então um caráter circular no trajeto da pulsão: “o alvo da pulsão não é outra
coisa senão esse retorno em circuito” (Ibid, p.170). Reconhecemos esse ponto em Freud
quando ele nos apresenta o auto-erotismo, definido como a boca que se beija a si
mesma. “A atividade da pulsão se concentra nesse se fazer, e é reportando-o ao campo
das outras pulsões que poderemos talvez ter alguma luz” (Ibid, p.184, grifo do autor). O
“se fazer” aparece em Lacan em referência ao terceiro tempo da pulsão, o tempo
reflexivo, estabelecido por Freud (1915), ao escrever a gramática da pulsão. Nesse
sentido, é impossível retirarmos o corpo do circuito da pulsão e de sua ação, ou seja, a
ação da pulsão fornece uma satisfação ao corpo.
A pulsão porta em si um fator traumático e, ao mesmo tempo, possibilitador: ela
nunca obtém uma satisfação (Befriedigen) total, permitindo que o movimento pulsional
nunca cesse. Há “algo da natureza da própria pulsão que nos nega satisfação completa e
nos incita a outros caminhos” (FREUD, 1930 [1929], p.111), ou seja, ao sintoma. O que
é a satisfação da pulsão? Esse é um enigma sustentado por Freud durante sua obra
(MILLER, 2005). Lacan, porém, é claro:
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A palavra emergiu no mundo “miticamente natural”, ou seja, onde não havia linguagem, como um signo
arbitrário, não-natural. A palavra significou e ressignificou o que denominamos de corpo, seus sentidos,
definições, faltas e gozo. Falamos então de uma desnaturalização do organismo com o surgimento de um
corpo.
escreve circuitos por onde o movimento pulsional irá percorrer. A pulsão comporta uma
dimensão histórica (LACAN, 1959-60, p.256), estando ligada às marcas e às imagens
que colhemos do Outro. É através delas, juntamente com a repetição e o gozo, que
conseguimos ter sinais do movimento pulsional que age no sujeito.
O corpo é desnaturalizado, habitado pela pulsão que exige satisfação a todo
tempo e aponta para além da representação. Quando falamos que a pulsão nunca se
satisfaz totalmente, que não há um objeto específico para ela, a justificativa não se
encontra no fato de haver um problema, uma deficiência na linguagem, e sim pela perda
da ordem natural que guia a relação entre o homem e o mundo. “Tendo perdido sua
suposta organização natural, o corpo, enquanto corpo natural, perdeu sua forma”
(GARCIA-ROZA, 1990, p.17).
Ao postular uma identidade entre o mecanismo do inconsciente, estruturado
como uma linguagem, e o da zona erógena, Lacan (1964) trabalhará mais
especificamente a relação entre o significante e o gozo da pulsão. Além de tomar o
inconsciente em sua relação com a linguagem, compara o mesmo com uma zona
erógena que abre e fecha, tal qual uma borda. É nesse sentido que destacamos a
importância das manifestações do corpo na sessão analítica. À abertura do inconsciente
pode corresponder alguma alteração no corpo, um adoecimento, uma alergia, o
surgimento de furúnculos, por exemplo. Nas palavras de Lacan: “é no que algo no
aparelho do corpo é estruturado da mesma maneira, é em razão da unidade topológica
das hiâncias em jogo, que a pulsão tem seu papel no funcionamento do inconsciente”
(LACAN, 1964, p.172). Freud também denominou o corpo de aparelho (FREUD,
1926[1925], p. 137). O termo ‘aparelho’ é definido como um utensílio que possui um
uso (FERREIRA, 2008, p.128). Na perspectiva da psicanálise, o corpo, como um
aparelho, possui uma função na materialização do desejo e na localização do gozo.
O corpo então pode ser definido como um aparelho, marcado pela ação do
inconsciente e da pulsão, que traz à cena outro ponto fundamental para clínica
psicanalítica: a angústia. A angústia se fez presente na clínica e na escrita de Freud,
fazendo com que ele afirmasse que a angústia aparece no corpo. Desde a histeria de
Dora e sua tosse que a identifica com o pai, passando pela fobia de Hans e sua angústia
de castração frente à diferença sexual, os escritos de Schreber que apresentam os
efeitos da angústia em seu corpo putrefato como consequência do delírio de ser
transformado na mulher de Deus, o dedo preso pela pele no retato da lembrança infantil
do Homem dos Lobos e o labirinto de pensamentos que circulam temor da tortura na
obsessão do Homem dos ratos, isso para citar rapidamente alguns dos exemplos
clínicos, vemos Freud estar atento à forma como a angústia pode se apresentar na fala
do paciente através do corpo.
“Não muito antes, quando ela não estava se sentindo bem, meu
amigo Otto lhe aplicara uma injeção de um preparado de
propil, propilos, ácido propiônico...trimetilamina (e eu via
diante de mim a fórmula desse preparado, impressa em grossos
caracteres). Injeções como essas não deveriam ser aplicadas de
forma tão impensada… E, provavelmente, a seringa não estava
limpa (Ibid, p. 142)”.
Vemos nesse relato o sujeito Freud diante do corpo de sua paciente que sinaliza a
presença de uma mancha na garganta, uma mancha de infecção, uma mancha que Freud
toma como materializando seu fracasso na escuta desse caso. Para além da mancha, há
ali um corpo de mulher. Freud busca, podemos ler, de forma aflita, uma explicação para
a doença de Irma que o absolva. Curiosamente pede a ela que abra a boca, ele quer ver o
que se passa com ela. Banhado pelo desejo de cura, pode ter deixado passar algo que
permaneceu incurável. Para além disso, sua angústia produz esse sonho, sua escrita e
sua publicação. Do lugar de paciente, coloca em cena sua vontade de saber diante da
boca aberta de uma paciente, sem porém escamotear a mancha que restou desse
processo. Uma metodologia, talvez possamos dizer assim, que iria se repetir ainda
tantas vezes nos textos de Freud: trazer à tona seus impasses no trabalho com os
pacientes como forma de avançar e questionar a teoria psicanalítica.
Retomando o sonho de Freud vemos que o sonhador se serve de uma fórmula -
seria o mesmo em relação a um sintoma ? -, como um modo de tratamento para esse
encontro com o real que lhe é insuportável. O sonho, como uma manifestação do
inconsciente, surge como uma tentativa de dar um contorno ao que é próprio do sujeito,
ao que lhe aparece como intratável. O próprio Freud nomeou de umbigo dos sonhos, um
resto ininterpretável presente nos sonhos. Um ponto vazio, que o significante não
recobre e que, curiosamente, ele chama de umbigo dos sonhos (Freud, 1900, p. 557,
v.5).
Finalizando essa primeira parada, destacamos aqui algumas cenas em que Freud
está diante do paciente e leva em consideração o que sinaliza seu corpo. As pernas de
Elizabeth que doem e paralisam, o cheiro de pudim queimado de Miss Lucy, a
encenação do parto de Ana O, o corpo alvo da Sra. K diante de Dora, o olhar raivoso do
pai da jovem homossexual, o gozo anal do homem dos ratos e sua compulsão pelo
emagrecimento, o corpo invadido e apodrecido de Schreber, sua desintegração e
transformação em mulher, o horror de Hans diante da diferença sexual e seu desamparo
frente às sensações sexuais em seu próprio corpo.
Seguimos inspirados pelo estilo freudiano. Nas próximas paradas destacamos a
importância da imagem e os diferentes usos do corpo na anorexia e na bulimia, na
neurose obsessiva e em pacientes trans. Para instigá-los um pouco mais, destacamos
abaixo algumas falas (clínicas mas não apenas) que mostram como o corpo pode ser
instrumento para a fala e o não-dito.
“Por corpo entendo tudo que pode ser limitado por alguma figura (...)”
(DESCARTES, 1641, p. 127). Se não soubéssemos quem é o autor dessa frase,
rapidamente faríamos referência às primeiras formulações lacanianas sobre a
importância do limite da imagem para a constituição de um corpo. Vemos que mesmo
para Descartes, que definiu o corpo apenas como extensão, ter um contorno é
fundamental para que possamos chamar ‘essa extensão’ de corpo.
“O estádio do espelho como formador da função do eu” (1949) é um dos
primeiros textos onde Lacan problematiza o processo de apropriação, pelo sujeito, da
imagem de si mesmo. Quais são os efeitos de se reconhecer em uma imagem? A
imagem é construída a partir de uma outra, a do semelhante. É o corpo despedaçado,
demarcado pela pulsão, que dá sinal de sua existência, em um momento anterior à
constituição de uma imagem. As formulações desse texto nos fazem indagar por que a
imagem seria tão valorizada pelo sujeito; sobretudo a imagem de si mesmo. “Existe na
imagem algo que transcende o movimento, o mutável da vida, no sentido em que a
imagem sobrevive ao vivo” (LACAN, 1960-61, p.340). Nós inclusive temos a
possibilidade de nos reconhecermos (ou não) em nossa imagem antes mesmo de
falarmos.
Começamos então a nos aproximar da ideia de um corpo enquanto imagem, que
traz uma unidade para o eu, uma referência que permite uma identificação. A
identificação implica um movimento de localização, um "eu sou….. ".
Lacan (1949) vem apontar a existência de uma hiância entre o organismo
biológico e a imagem do corpo; há aí uma abertura, um percurso a ser construído pelo
sujeito. O corpo é derivado do narcisismo, ou seja, da constituição de uma imagem
própria capaz de ser investida de libido. A função do investimento especular situa-se no
interior da dialética do narcisismo, tal como Freud (1914) a introduziu. O estádio do
espelho é tomado como um fenômeno de duplo valor: “valor histórico, porque marca
uma virada decisiva no desenvolvimento mental da criança. Em segundo lugar, ele
representa uma relação libidinal essencial com a imagem do corpo” (LACAN, 1951,
p.9).
O estádio do espelho não é simplesmente um momento do desenvolvimento do
sujeito como o título do texto poderia dar a entender. “Tem também uma função
exemplar, porque revela certas relações do sujeito à sua imagem, enquanto Urbild do
eu” (Id, 1953-54, p.91). Quando essa imagem é percebida pelo sujeito, ela já se
apresenta como uma Urbild ideal, algo que subsiste por si.
Ao localizar no estádio do espelho a constituição de uma imagem própria, via a
imagem de um outro, Lacan ressaltou que essa vivência resulta de uma alienação na
imagem do outro, o que pode possibilitar uma primeira identificação, mesmo que
imaginária, entre o eu e o outro. Como ele mesmo nos diz, o estádio do espelho
O espelho e o Outro
Lacan nos propõe um momento constitutivo para o eu: o estabelecimento de uma
imagem onde o sujeito se reconhece minimamente. A primeira elaboração do estádio do
espelho ocorreu em 1936, sendo publicado em 1949 o texto que encontramos hoje nos
Escritos (1998). Nesse momento inicial, a ênfase de todo esse processo foi dada aos
fatores imaginários, à função da imagem em si.
Lacan teve a oportunidade de exprimir seu ponto de vista sobre a aquisição da
própria imagem no homem, durante o “XIV Congresso Psicanalítico Internacional de
Marienbad”, realizado em 28 de agosto de 1936, cuja exposição foi interrompida por
Ernest Jones, após apenas dez minutos de apresentação. Apesar de o motivo alegado ter
sido a falta de tempo para as apresentações (JORGE & FERREIRA, 2005), localizamos
nesse fato a presença de uma resistência às inovações que o ensino lacaniano já
proporcionava à psicanálise.
No que tange especificamente a esse texto, destacamos a influência da imagem
do outro na constituição do eu, bem como a utilização da biologia e de autores da
psicologia do desenvolvimento para a formulação de sua teoria. Lacan retomou o texto
original para o “XVI Congresso Internacional de Psicanálise” em 17 de julho de 1949,
em Zurique (DOR, 1989, p. 78), ainda intitulado “Le stade du miroir. Theorie d’um
moment structurant et génétique de la constitution de la réalité, conçu em relation avec
l’expérience et la doctrine psychanalytique”7. A constituição que se destaca no título é a
da realidade, ou seja, ao constituir uma imagem de si, o sujeito tem acesso também à
realidade. O eu se torna modelar para o relacionamento do sujeito com o outro.
No início dos anos 30, Wallon, psicólogo do desenvolvimento, publicou um
artigo intitulado “Como se desenvolve na criança a noção de corpo próprio”, (apud
JORGE & FERREIRA, 2005, p.40), descrevendo uma etapa qualitativa realizada pela
criança quando a mesma passa do que ele denomina fase do imaginário para a
simbólica. Inspirado nesse processo, mas introduzindo o plano do inconsciente no
mesmo, Lacan o define como um momento constitutivo onde a criança descobre e se
apropria da imagem de seu corpo.
Ao retomar essa comunicação para o congresso de Zurique, Lacan fez uma
leitura mais estruturalista que desenvolvimentista do mesmo. Apesar de sua
comunicação conservar o substantivo estádio, o estádio do espelho deixa de ser pensado
como o momento de um processo genético para ser a matriz estruturante da
identificação. A partir dessa identificação imaginária, a criança cai, tal qual uma presa,
na armadilha do que acredita ser a sua identidade. “O estádio do espelho é uma
experiência que se organiza em torno de uma primeira captação pela imagem onde se
esboça o primeiro momento da dialética das identificações” (LACAN, 1948, p.115).
A identificação é definida aqui como a transformação produzida no sujeito
quando ele assume uma imagem (Id, 1949), ela permite ao homem situar a sua relação
imaginária e libidinal com o mundo em geral (Id, 1953-54). Há uma função particular
para a “imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade – ou,
como se costuma dizer, do Innenwelt com o Umwelt” (Id, 1949, p. 100, grifo do autor),
do mundo interno com o mundo externo. Assim, é a constituição de uma imagem
7
“O estádio do espelho. Teoria de um momento estruturante e genético da constituição da realidade,
concebido em relação com a experiência e a doutrina psicanalítica”.
própria o que permite a relação entre o sujeito e o mundo. Nesse sentido, justifica-se
porque ela é um recurso tão utilizado pelos sujeitos, para marcar uma identificação ou
localização de algum impasse subjetivo.
Essa experiência organiza-se em torno de três tempos fundamentais que não se
apresentam linearmente e, sim, concomitantemente. Primeiramente a criança percebe a
imagem de seu corpo como a de um outro ser de quem ela tenta se aproximar. É através
do outro que a criança vivencia suas experiências e se orienta, dando origem, inclusive,
a uma relação estereotipada. É isso o que Lacan (1948) define como transitivismo, ou
seja, a possibilidade de a criança responder, em espelho, ao que vê no outro.
Num segundo tempo desse estádio, ocorre algo decisivo para o processo de
identificação. A criança consegue distinguir a imagem que aparece no espelho do que
está fora do espelho e, num terceiro momento, a criança sabe que o reflexo do espelho é
uma imagem, não é nada mais que uma imagem, mas é a dela.
Essa fase simboliza o início da constituição do eu e pressupõe, em seu princípio
constitutivo, seu destino de alienação na imagem. Vemos então que surgimos no campo
da alienação: o eu se constitui a partir da imagem do outro. E ainda, “o eu é isso em que
o sujeito só pode se reconhecer inicialmente alienando-se” (Id, 1953a, p.30).
Lacan deu destaque aos efeitos do reconhecimento do sujeito em uma imagem.
Para isso, retirou algumas formulações da psicologia do desenvolvimento que estuda o
comportamento do bebê com o intuito de evidenciar a diferença entre a inteligência dos
humanos e a dos primatas. Partiu de uma minuciosa descrição comportamental de
Wallon, que demonstrou que o bebê, entre seis e dezoito meses, passa por várias etapas
através das quais chega a reconhecer, em determinado momento, a sua imagem no
espelho.
A partir dos seis meses, ainda sem ter o controle da marcha, mas estreitado por
algum suporte humano ou material, o bebê “supera, numa azáfama jubilatória, os
entraves desse apoio, para sustentar sua postura numa posição mais ou menos inclinada
e resgatar, para fixá-lo, um aspecto instantâneo da imagem” (Id, 1949, p. 97). Em
função do desenvolvimento neurológico, o ser humano é prematuro no domínio da
motricidade voluntária. A imaturidade neurológica predominante nos primeiros 6 meses
de vida do homem seria originária de uma falta de mielinização cerebral o que gera a
ausência da coordenação motora.
O chimpanzé, porém, segundo os trabalhos do psicólogo W. Köller, durante o
primeiro ano de idade, apesar de superar o filhote do homem em inteligência
instrumental, não se reconhece no espelho. Nas palavras de Lacan, “o filhote do
homem, numa idade em que, por um curto espaço de tempo, mas ainda assim por algum
tempo, é superado em inteligência instrumental pelo chimpanzé, já reconhece não
obstante como tal sua imagem no espelho” (Ibid, p. 96).
Reconhecer sua imagem no espelho é uma experiência acompanhada de um
intenso júbilo, júbilo que parece ter uma função em si mesmo, já que nele a criança se
detém e realiza, por identificação, a assunção da unidade de seu corpo, até então
indiferenciado em relação ao corpo da mãe, ao mundo exterior e vivido como
fragmentado. O estádio do espelho pode ser definido, então, como
10
O Outro é sobretudo um lugar (Lacan, 1954-55). O lugar da linguagem, da alteridade que vem nos
nomear antes mesmo de existirmos. A mãe costuma ocupar o lugar de primeiro grande Outro mas não só.
A cultura, o simbólico, a escola, as referências para o sujeito podem encarnar esse lugar para o sujeito.
Por um outro lado, existe em óptica uma série de fenômenos de
que se pode dizer que são inteiramente reais, porque também é
a experiência que nos guia nessa matéria, mas em que,
entretanto, a todo instante, a subjetividade está engajada.
Quando vocês vêem um arco-íris, vêem algo de inteiramente
subjetivo (...). Ele não está lá. (...) E, entretanto, graças a um
aparelho fotográfico vocês o registram (...) (Id, 1953-54, p.93).
Destacamos o uso da ótica em Lacan, pois é com ela que ele destaca o papel do
subjetivo na construção da imagem. O subjetivo intervém de maneira definitiva na
constituição do mundo objetivo, o qual serve de paradigma para a construção de nosso
eu, nosso corpo. É próprio da imagem o investimento da libido, energia da pulsão. “O
termo libido não faz senão exprimir a noção de reversibilidade que implica a de
equivalência de um certo metabolismo das imagens” (Id, 1953a, p.17).
● ● ●
Sujeito objeto nada
Parte 4
O que a anorexia e a bulimia nos ensinam sobre o lugar do corpo na clínica da
neurose?
4.2 - Anorexia-bulimia
Sabemos que o discurso social oferece ao sujeito a possibilidade de que ele se
identifique com os significantes “anorexia” e “bulimia”, mascarando, assim, a relação
particular que ele possui com seu sintoma. Não entraremos aqui na discussão levantada
por alguns autores, dentre eles Cacciali (2005) e Micheli-Rechtman (2003), de que esse
sintoma seria uma resposta à atualidade, um sintoma da contemporaneidade, efeito do
capitalismo e do estatuto que o Outro apresenta nos dias de hoje, representando ou uma
nova configuração do sintoma histérico ou um sintoma de uma sociedade utilitarista e
de consumo desenfreado. Mas para os que se interessarem, vale a leitura.
Lacan (1960a), uma única vez, colocou o nada na série de objetos que
representam o objeto a. O objeto a, tomada por Lacan como sua única invenção na
psicanálise, é o nome dado por ele ao objeto perdido de Freud. Ao retomar a definição
de zona erógena como “obra de um corte que se beneficia do traço anatômico de uma
margem ou borda: lábios, ‘cerca dos dentes’, borda do ânus, sulco peniano (...)” (Id,
1960 a, p.832), situou o nada entre os representantes do objeto a: “Lista impensável se
não lhe forem acrescentados, o fonema, o olhar, a voz – o nada” (Ibid).
O nada, como uma das vertentes do objeto a, se faz presente na anorexia de duas
maneiras que, apesar de distintas, se apresentam concomitantemente: como objeto
separador - objeto a como causa de desejo -, e como condensador de gozo - vertente na
qual o sujeito se mantém na posição limite entre a vida e a morte, ou seja, identificado
ao nada. Trata-se aqui, portanto, do objeto a, em sua relação com o mais-de-gozar. Essa
articulação do objeto a, em sua relação com o desejo e com o gozo, aparece de forma
clara quando Lacan afirma que “toda função de a refere-se apenas à lacuna central que
separa, no nível sexual, o desejo do lugar do gozo (...)” (Id, 1962-63, p.359).
Vale ressaltar que a raiz etimológica do termo nada, em francês rien, vem do
latim rem que significa justamente “a Coisa: objeto mítico – pois está perdido desde
sempre – de um gozo absoluto” (RECALCATI, 2004, p.55). Esse ponto será
fundamental para abordarmos, mais à frente, a relação da anorexia e da bulimia com o
gozo.
Nosso intuito não é fazer generalizações nem criar fórmulas que definam esse
sintoma e seu tratamento; já há um discurso que caminha nesse sentido. O DSM-IV -
Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais organizado pela Associação
Americana de Psiquiatria (2004) – guia da clínica médica e psicológica –, traz
classificações diferentes para anorexia nervosa e bulimia. Em relação à anorexia
nervosa, o manual afirma que suas características essenciais consistem no rechaço de
manter um peso corporal mínimo normal (IMC – índice de massa corporal entre 18 e
25), em um medo intenso de ganhar peso e em uma alteração significativa da percepção
da forma ou tamanho do corpo. Afirma ainda que há uma mortalidade de 10% em
pacientes hospitalizados cujas causas maiores são: suicídio, inanição e desequilíbrio
eletrolítico. A anorexia mata 15% dos jovens acometidos por essa sintomatologia, sendo
a doença compulsiva que mais mata no mundo (FUX, 2002). A compulsão aí presente é
emagrecer a qualquer custo, e, muitas vezes, ela parece não se constituir como uma
mensagem endereçada ao Outro, possuindo a mudez própria da pulsão de morte.
Já a bulimia se apresenta em 3% das mulheres e tem como características as
crises de “comilança” com a utilização de métodos compensatórios para evitar o ganho
de peso, como o uso de laxantes, vômitos, excesso de exercícios e restrição alimentar
severa. Para poder realizar o diagnóstico, segundo o DSM-IV, tais crises devem
produzir-se ao menos duas vezes na semana durante um período de três meses.
Apesar da classificação médica clássica abordar a anorexia de forma separada
da bulimia, Recalcati (2004) aponta que a lógica que inspira a anorexia e a bulimia é
uma só, adotando a fórmula “anorexia-bulimia” para designar esse sintoma e afirma que
elas dificilmente se apresentam em ‘estados puros’. Utilizaremos também essa
terminologia sem excluirmos a possibilidade da anorexia e da bulimia se apresentarem
isoladamente na clínica, nem nos furtaremos a explorar as mesmas separadamente na
teoria.
Segundo Recalcati (2004), haveria pontos centrais que são comuns à anorexia e
à bulimia. A ação da pulsão e do ideal são marcantes nesses sintomas e capazes de
esboçar o posicionamento do sujeito nos mesmos, como veremos mais adiante. Vale
adiantar que
Freud ressaltou que “a criança traz consigo ao mundo germes de atividade sexual
e que, já ao se alimentar, goza de uma satisfação sexual que então busca reiteradamente
proporcionar-se através do chuchar” (FREUD, 1905, p.210). Essas experiências podem
gravar-se tão profundamente “a ponto de produzirem uma repetição compulsiva e
poderem prescrever por toda a vida os caminhos da pulsão sexual” (Ibid, p.228).
A satisfação mais primitiva, apesar de ser auto-erótica, tem como objeto o seio.
Isso ocorre porque a criança não consegue diferenciar o seio como sendo dela ou do
outro. A separação, enquanto corte, não ocorre entre a criança e o seio, e sim entre a
mãe e o seio. Lacan indicou, então, “a função original da mama. Esta se apresenta como
algo intermediário entre o rebento e sua mãe (...) é, entre a mama e o próprio organismo
materno, que reside o corte” (LACAN, 1962-63, p.256). A perda do seio é efetivada
com a representação da imagem daquele que vem satisfazer a criança. O seio é perdido,
portanto, a partir da separação que ocorre com a diferenciação entre a imagem do eu e a
do outro, fazendo-nos relembrar do estádio do espelho.
Freud (1917[1916-17]) nos disse que a perda do seio, enquanto objeto de
satisfação, é fundamental para que outras zonas e outros objetos sejam investidos,
deixando marcas na relação do sujeito com o Outro através dos processos de
identificação, ambivalência e diferenciação. A partir daí, poderíamos afirmar que, desde
o início, é o seio, associado com a alimentação, que traz uma das primeiras marcas de
separação entre o sujeito e o Outro, e que, em um momento posterior, a cada ativação
dessa marca, a partir das perdas que o sujeito sofre em relação a seus objetos, entra em
jogo um movimento de separação que utiliza o alimento como instrumento.
Para a criança, a amamentação no seio materno torna-se modelar para todos os
relacionamentos amorosos. As futuras escolhas amorosas estão apoiadas nos modelos
infantis primitivos como tentativa de recuperar a suposta felicidade perdida, movimento
de reinvestimento no traço deixado pela primeira experiência de satisfação. O corpo,
sobretudo através do seio e da satisfação oral, está envolvido nesse processo de
encontro e desencontro com a satisfação que o objeto pode proporcionar.
O excesso, tanto do lado da criança, que se mostra insaciável em relação à
ternura parental, como também do lado dos pais, que exibem um cuidado desmedido em
relação ao filho, serve de prenúncio à instalação de uma neurose na vida adulta. Isso
porque há uma elevada adesividade das impressões deixadas pela vida sexual infantil.
Tais impressões podem agravar-se “a ponto de produzirem uma repetição compulsiva e
poderem prescrever por toda a vida os caminhos da pulsão oral” (FREUD, 1905, p.
228).
Freud, inventando a psicanálise, falou sobre a anorexia, sem que tenha escrito
um texto dedicado ao tema. Desde suas correspondências com Fliess, ele se interroga a
respeito desse sintoma, afirmando que “a neurose nutricional paralela à melancolia é a
anorexia. A famosa anorexia nervosa (...) é uma melancolia em que a sexualidade não se
desenvolveu. (...) Perda do apetite – em termos sexuais, perda de libido” (Id, 1950
[1892-1899], p. 247). Relacionando a perda de apetite e de libido com uma perda
objetal, encontramos o caminho pelo qual Freud articulou a anorexia com a melancolia.
Ambas seriam resultado de uma dificuldade do sujeito em lidar com a perda e a
separação do objeto. O processo anoréxico revela, já em Freud, uma dificuldade em
relação à perda, à realização de um luto. Em nenhum outro momento, porém, Freud fará
esse paralelo, passando a relacionar a anorexia com a histeria, e, conseqüentemente,
com um aumento da erotização na zona oral que perturba as atividades aí situadas.
Paralelo e não equivalência.
Vale destacar que na organização oral, a libido é narcísica, e a fixação nessa fase
está relacionada com uma dificuldade do sujeito em lidar com a perda do seio como
ideal de completude. Tal perda deixa uma marca, a qual é reativada sempre que o sujeito
se depara com a sexualidade ou algo do sexual que traga uma diferenciação (Ibid).
Tanto a anorexia como a bulimia geralmente aparecem no momento em que
surgem os primeiros caracteres sexuais secundários, ou seja, na adolescência, como
também no momento do encontro do sujeito com o sexo. As alterações no corpo, que se
destacam principalmente na menina, representam o afloramento da sexualidade; sendo
assim, emagrecer pode significar infantilizar o corpo, anular esses contornos que
passam a ser vistos como um excesso, numa tentativa de retorno ao momento anterior
onde o sexual não estava colocado de forma tão explícita. O frequente aparecimento
desse sintoma quando as meninas entram na puberdade estaria, então, ligado à
dificuldade do ‘tornar-se mulher’ que as mudanças corporais vêm materializar. O
sujeito, ao invés de falar sobre seu encontro traumático com o desejo do Outro, com o
enigma da sexualidade, mostra-o inscrito em seu próprio corpo, que é utilizado, assim,
como um instrumento que coloca seu desamparo em cena.
Qual o estatuto que o objeto oral adquire na anorexia e na bulimia? Lacan nos
diz que a relação do sujeito com o objeto deve ser lida freudianamente (LACAN,
1959-60, p.114). Ela emerge em uma relação narcísica imaginária, uma vez que o objeto
aparece de maneira intercambiável com o amor que o sujeito tem por sua própria
imagem. É nessa relação imaginária entre o eu e o objeto que o eu se faz de objeto para
o Outro.
Quando falamos de objeto temos que fazer uma diferenciação entre o objeto
imaginário – aquele que se constitui à imagem e semelhança do eu – e o objeto da
pulsão, que possui a característica de ser um objeto parcial. Entre o objeto estruturado
por uma relação narcísica e das Ding, que tem uma relação com o objeto da pulsão, há
uma diferença, um hiato, que permitirá surgir o objeto do desejo. Retomamos, assim, o
objeto perdido do desejo, (FREUD, 1950 [1985]), com o intuito de detalhar as
artimanhas presentes nesse sintoma para não se defrontar com a falta que o desejo
implica. Além disso, as contribuições de Lacan na diferenciação entre necessidade,
desejo e demanda foram fundamentais no entendimento da dinâmica desse sintoma.
É no “Projeto para uma psicologia científica” (1950 [1985]) que Freud fez um
primeiro esboço do que ele denomina desejo, ponto que será essencial retomar para
iniciarmos o estudo lacaniano da articulação entre a necessidade, a demanda e o desejo.
Comer implica então uma relação com o Outro. A maioria dos sujeitos com
anorexia e bulímia tendem a romper essa regra geral (RECALCATI, 2004). Recusam-se
a comer em público, não participam das refeições, comem sós, devorando quantidades
ínfimas ou exageradas de comida, sem critério e sem horário, seguindo apenas o ímpeto
de sua voracidade. Isso contradiz a lei da alienação significante: negam-se à mesa do
Outro.
O sujeito, em seu desamparo inicial, procura o Outro, aqui encarnado pela mãe,
não apenas para a satisfação de uma necessidade, mas também para que, através do
alimento, a mãe se mostre capaz de reconhecê-lo como sujeito. Retomando Freud (1950
[1895]), o desamparo do homem é a fonte da busca pelo amor e por uma resposta sobre
o desejo do Outro.
Freud nos coloca que “a mãe é o primeiro objeto de amor” (FREUD, 1917
[1916-17]b, p.385) tanto para a menina como para o menino. Aquela que cuida e nutre
nos mostra a ligação entre os primeiros investimentos objetais e a satisfação das
necessidades. Esse estágio preliminar de ligação com a mãe é muito rico, podendo
“deixar atrás de si muitas oportunidades para fixações e disposições” (FREUD,
1933-32b, p.120).
A hostilidade em relação à mãe, a reclamação de que ela lhe deu pouco leite, é
uma “censura que lhe é feita como falta de amor” (Ibid, p.122). Freud nos diz que essa
reclamação geralmente não se justifica, estando diretamente relacionada com a
insaciabilidade da criança e com a dificuldade de lidar com a perda do seio materno.
Podemos pensar a comida como uma espécie de objeto transicional falido
(RECALCATI, 2004, p. 83). O objeto transicional, como desenvolve Winnicott (1951),
tem a função de abrir um espaço potencial entre a criança e o Outro, permitindo a
separação através do objeto. A comida, ao invés de simbolizar a ausência do Outro, leva
o sujeito à espiral de uma repetição compulsiva de um reencontro do objeto na bulimia
e, na anoréxica, à repetição de sua ausência.
Nas palavras de Lacan “(...) muitas vezes, é um trauma psíquico cujos efeitos
individuais – as chamadas anorexias nervosas, as toxicomanias pela boca, as neuroses
gástricas – revelam suas causas à psicanálise (LACAN, 1938, p.37)”. Isso ocorre porque
o desmame ficou associado a uma separação ainda mais antiga e dolorosa: o próprio
nascimento; “separação prematura da qual provém um mal-estar que nenhum cuidado
materno é capaz de compensar” (Ibid, p.40). As sintomatologias citadas representam,
então, uma tendência psíquica para a morte, movimento que Lacan qualifica de
“suicídio não violento” (Ibid, p.41). “A análise desses casos mostra que, em seu
abandono à morte, o sujeito procura reencontrar a imago da mãe” (Ibid).
Há uma semelhança dessa afirmação de Lacan com o que Freud nos apresentou,
ainda em seus rascunhos, sobre a relação entre a anorexia e a melancolia, qual seja,
haveria uma tristeza pela perda do objeto e, ao mesmo tempo, uma paixão sacrifical,
uma identificação entre o sujeito e esse objeto perdido, que tem como última instância
das Ding.
A bulimia indica a presença do real no objeto oral, seu resto pulsional deixa à
mostra a cifra do gozo da pulsão oral. Gozo enlaçado não à realidade da substância –
porque a pulsão, como sustenta Lacan (1964), não se fecha sobre o objeto – e sim sobre
o vazio. O que o sujeito coloca em cena com seus ataques bulímicos é o vazio. Apesar
de buscar a Coisa, enfrenta a desilusão do mal encontro. Essa busca do ter, da
12
Segundo o Dicionário de Mitologia Grega e Romana (KURY, 1990), Narciso era um rapaz muito
bonito e indiferente ao amor. Quando nasceu, seus pais Céfiso e Lríope, perguntaram a Tirésias qual seria
o seu destino. A resposta foi que ele teria uma vida longa se não visse o próprio rosto. Muitas moças se
apaixonaram por Narciso, mas ele não se interessou por nenhuma. A ninfa Eco, inconformada com a
indiferença, afastou-se para um lugar deserto onde definhou até que restassem somente seus gemidos. As
moças desprezadas pediram vingança aos deuses. Com pena delas, o deus Nêmesis, induziu Narciso a
debruçar-se numa fonte de água depois de um dia de caça. Foi quando viu seu rosto e apaixonou-se pela
própria imagem. Permaneceu nessa posição até morrer de fome e sede.
aglomeração de objetos, encontra a inconsistência do ser, o vazio no lugar da plenitude
esperada.
Alguns autores, dentre eles Blanco (2000), Casté (2000), Cosenza (2000),
Recalcati (2002) e Silva & Bastos (2006) relacionam a anorexia e a bulimia com os
movimentos de alienação e separação entre o sujeito e o Outro. Miller, juntamente com
Laurent (2000, p.22), serve-se da alienação e da separação para ordenar o que eles
denominam ser as enfermidades mentais da moda.
Se por sua forma radical de apresentação, por seu “não” constante diante do
alimento que lhe é ofertado e, sobretudo, pela recusa renitente diante da demanda do
Outro, muitas vezes a anorexia é vista como separação, perguntamo-nos se realmente
podemos falar de uma separação? “Visto ser a anorexia um sintoma que definha o
corpo, podendo levar à morte, não seria ela uma separação mal sucedida ou em
impasse?” (SILVA & BASTOS, 2006, p.99). Por isso, optamos por falar de uma
pseudo-separação (COPPUS & MONTEIRO, 2009). Recalcati chega a classificar essa
pseudo-separação como um movimento de “separação contra alienação” (RECALCATI,
2001, p.29), uma vez que a anoréxica tenta negar a dependência, a alienação originária,
do sujeito em relação ao significante. É o que demonstra sua recusa radical a qualquer
objeto que a satisfaça, atitude que a coloca em um lugar de onipotência frente a todos e,
principalmente, frente ao Outro.
A anorexia retrata a posição daquele que quer saber até que ponto o Outro o
quer, qual o limite desse querer, sendo esta posição uma tentativa de tatear o desejo do
Outro.
Vemos, porém, que tanto a anorexia como a bulimia são sintomas que mantêm o
sujeito firmemente amarrado ao Outro. Isso aparece na clínica através da falta de
autonomia do sujeito em suas atividades corriqueiras, de sua complacência para com o
Outro. A dependência ao Outro materno é um traço fenomenologicamente recorrente da
experiência anoréxico-bulímica, a ponto da clínica da anorexia-bulimia ser considerada
uma “clínica do Outro materno” (RECALCATI, 2004, p. 82).
Lacan (1958) critica E. Kris que toma o ato do paciente como uma confirmação
de sua interpretação. Ele (1955-56) localiza aí um acting-out. O acting-out se produz
quando o analista simboliza algo prematuramente ao paciente, quando ele aborda
alguma coisa na ordem da realidade e não no interior do registro simbólico do paciente
(Id, 1955-56, p.96). Lacan, nesse mesmo texto, discorda da atuação do analista e aponta
a direção do trabalho.
Não é o fato de seu paciente não roubar que importa aqui (...) é
que ele rouba nada. E era isso que teria sido preciso fazê-lo
ouvir. (...) não é a defesa dele contra a idéia de roubar que o faz
crer que rouba. Que ele possa ter uma idéia própria é que não
lhe vem à idéia (Id, 1958, p.606).
14
14
HTTP://health.ninemsn.com.au/aricle.aspx?id=68961
menos – o corpo fragmentado – para um mais – unidade representada pela imagem –
ocorre de maneira peculiar na anorexia-bulimia. “O mais da Imago torna-se, na posição
do sujeito anoréxico-bulímico, um mais ao quadrado. Assume uma espécie de valor
absoluto.” (RECALCATI, 2004, p.113). Localizamos, então, como uma estratégia da
anorexia e da bulimia, a amplificação do valor libidinal do corpo para subtrair-se do
preço imposto pela castração. “Este é, efetivamente, um elemento central na clínica da
anorexia-bulimia: a existência de um gozo da imagem” (Ibid, p.114).
O sujeito goza com a imagem de seu corpo. Gozar da imagem nos faz retomar
o narcisismo que é definido por Freud como a possibilidade do corpo, enquanto
imagem, ser investido libidinalmente. Lacan (1974a) também nos disse que “o corpo, se
introduz na economia do gozo (foi daí que parti) pela imagem do corpo. A relação do
homem, do que se chama por seu nome, com seu corpo, se há algo que sublinha bem
que ela é imaginária, é o alcance que aí toma a imagem” (Id, 1974a, p.55).
Lacan diz que a estrutura narcísica possui um caráter irredutível para o sujeito
(1955, p.428). “Isto significa que existe um gozo que pertence à imagem e que está fora
do simbólico, fora da ordem da lei simbólica...” (RECALCATI, 2004, p.118). Esse resto
de libido que pertence à imagem e que não cede à lei simbólica indica a obstinação do
gozo narcísico e sua insistência não plenamente simbolizada.
Quando afirmamos que esse sintoma pode aparecer após o encontro traumático
do sujeito com o real – seja nos encontros com a sexualidade, com a morte ou com a
perda do amor –, sendo o corpo uma possibilidade de enquadrar o excesso de gozo
experienciado pelo sujeito, vamos na direção apontada por Lacan – vale repetir – de que
“toda formação humana tem, por essência, e não por acaso, de refrear o gozo” (Id,
1967a, p. 362). No Seminário 23 (1975-76), Lacan deixa isso ainda mais claro,
afirmando que o corpo serve para enquadrar o gozo através de sua imagem: “o
enquadramento tem sempre uma relação pelo menos homonímia com o que lhe é
suposto contar como imagem” (Id, 1975-76, p.144).
Parte 5
15
Analisado por Freud em 1909, o paciente ficou eternizado na história da psicanálise como uma das
cinco análises mais conhecidas e discutidas por Freud. Trata-se de um caso clássico de neurose obsessiva.
“La théorie, c’est bom, mas ça n’empêche pás d’exister”16
A partir da escuta clínica, a neurose obsessiva nos mostra que nenhuma estrutura
pode ser abordada na sua peculiaridade, se ficar restrita a um labirinto de conceitos
percorrido sempre da mesma forma em busca da saída. Além da singularidade que cada
16
“A teoria é boa, mas não impede as coisas de existirem”.
caso exige, a dinâmica inconsciente abre a possibilidade para que o analista e o
pesquisador possam se movimentar e abordar tanto a clínica como a teoria – que no
caso da psicanálise andam juntas – a partir de lugares que se alteram. Foi assim que
começamos a pesquisar o lugar do corpo na neurose obsessiva.
Antecipando uma discussão que abordaremos com mais detalhe logo a seguir,
perguntamos: em que cenário o corpo aparece nas queixas dos pacientes obsessivos?
Que papel possui? Será sempre um papel secundário? Como se a morte é o mestre do
obsessivo, ou seja, ele trabalha incessantemente para evitá-la colocando em cena
sintomas hipocondríacos e rituais de assepsia. O corpo se coloca da mesma maneira
com que aparece na dinâmica histérica, ou seja, no sintoma que metaforiza o corpo e
direciona uma mensagem ao Outro, ou haveria algo de diferente?
Passamos pelo seu surgimento, sua etiologia, seus casos mais comentados, seus
traços característicos. Tentamos abordar esses pontos chaves a partir do corpo, ou seja,
como o corpo se apresentava desde o surgimento da teoria da neurose obsessiva, em sua
etiologia e em seus traços. Mas, para além disso, era necessário escutarmos de que lugar
ou de quais lugares o corpo se inseria no discurso e na dinâmica da neurose obsessiva e,
para isso, foi necessário afinar os ouvidos nos acordes do desejo.
Assim, parafraseando o tempo lógico de Lacan (1945), com seus três tempos
característicos, chegamos, em nossos estudos sobre a neurose obsessiva, no tempo de
ver, à inibição, no tempo de compreender, à impossibilidade de relacionarmos a
totalidade das queixas em relação ao corpo na neurose obsessiva apenas com a inibição
e, no tempo de concluir, que o corpo pode se apresentar na neurose (obsessiva) como
inibição, sintoma e angústia. Nesse capítulo daremos mais ênfase à relação entre a
neurose obsessiva e a inibição, sem deixarmos de abordar como seus sintomas e
angústias se apresentam na mesma. Com isso, porém, não temos o intuito de afirmar
que a inibição só aparece na neurose obsessiva. Ela é uma forma de defesa que se
encontra presente em diversas estruturas e com diferentes funções, conforme pudemos
ver em relação à anorexia. A neurose utiliza-se do corpo como um instrumento capaz de
encarnar as diferentes possibilidades do sujeito responder ao desejo do Outro.
Lacan nos diz que “o real (...) é o mistério do corpo falante, é o mistério do
inconsciente” (LACAN, 1972-73, p.178). O real nunca deixa de nos surpreender: novos
rostos, novas arestas, novos ardis se apresentam à clínica psicanalítica. Com essa
afirmação, perguntamo-nos como o corpo coloca o mistério do real em cena na neurose
obsessiva, uma vez que, tradicionalmente, vemos a mesma ser abordada pela via do
pensamento. Dessa forma, caso fôssemos tomar a separação cartesiana como referência,
seus sintomas abarcam, sobretudo a esfera do cogito e, com isso, dúvidas, elisões,
racionalização e anulações jogam a todo o tempo com as representações e os afetos.
Outros impasses, que a princípio não estariam diretamente ligados ao pensamento, têm
como pano de fundo a implicação deste último, como a busca de controle, a verificação
das atividades, as hesitações. Tais características têm como base a própria definição da
neurose obsessiva, abordada por Freud como uma neurose que difere da histeria
justamente por ter seus sintomas expressos na esfera do pensamento e não na esfera
somática. De forma diversa, porém começou a chamar nossa atenção a freqüência com
que os impasses em relação ao corpo apareciam nas análises dos sujeitos obsessivos,
homens e mulheres. O corpo é o campo onde a sexualidade é vivida, onde o desejo se
expressa, onde a angústia é referida. De tal forma, as dificuldades que o sujeito traz em
relação a esses pontos necessariamente se expressam ali. São impotências, compulsões
sexuais, rituais de lavagem, hipocondria, frigidez, dores de cabeça indecifráveis,
problemas intestinais. O corpo é frágil. Conforme observamos antes, para que ele se
constitua, a castração deve estar nele representada. Talvez por isso, em sua fala, o
obsessivo se coloca com uma certa fragilidade em relação às questões do corpo. Como
disse um paciente, “o que se passa no meu corpo me escapa. Não tenho como
controlar”.
O campo de origem dos estudos sobre a obsessão foi a psiquiatria. Seu quadro
clínico começou sendo denominado com o termo genérico obsessão e situado bem
próximo da psicose. Em um segundo momento, chegamos às alterações realizadas por
Freud e pela psicanálise que fornece à mesma o estatuto de uma neurose.
De forma curiosa, obsessão (FALRET, 1886) vem do inglês obsession, cuja raiz
vem da expressão latina obsessus que significa sitiado, cercado (RIBEIRO, 2001, p.19).
Aquele que sofre de obsessões é um sujeito preso em seus pensamentos. A submissão
do sujeito aos mesmos é tão marcante que Pinel (1745-1820), em 1801, acaba por
definir o quadro por sua sintomatologia típica: a “mania sem delírio” (apud SAURÍ,
p.41). Apesar de localizá-la no campo da mania, ressaltou seu diferencial: não havia
nenhum comprometimento no entendimento do sujeito. Além dessa primeira
caracterização, Pinel destaca também outras particularidades do quadro como a
presença de um instinto de furor, fortes alterações de humor, ondas de calor e ardor
veemente nos intestinos (Ibid, p.42). Dessa forma, desde o primeiro momento, há uma
ligação entre o quadro da obsessão e um mal-estar no corpo, aqui delineado como um
incômodo intestinal. O termo idéia obsessiva apareceu pela primeira vez em 1867, em
um texto de Krafft-Ebing (apud FREUD, 1907, p.109). Foi com esse termo que Freud
deu início às suas formulações sobre a neurose obsessiva.
Falret (1886) será o primeiro a utilizar o termo “loucura racional” (FALRET,
1886, apud SAURÍ, p.42) para definir a obsessão. Psiquiatra francês, Falret fez uma boa
caracterização fenomênica da neurose obsessiva, destacando o “temor de contato” e a
“loucura da dúvida” como fundamentos principais (Ibid, p. 47-48), assim como, em
importância menor, a demora à mesa e no toilette17. Além disso, reconhece que esse
estado exige do paciente um desgaste excessivo de energia nervosa.
Destacamos, de uma maneira geral, a maneira como a obsessão era definida pela
psiquiatria no final do Séc. XIX, ou seja, como o “medo de contato (...) as obsessões, as
impulsões, as manias mentais, a loucura da dúvida, os tiques, as agitações” (SAURÍ,
1985, p.73).
17
Banheiro.
18
Loucura da dúvida.
Submetido à palavra do outro, escravo temeroso em relação ao desejo, o
neurótico obsessivo já é um conformista. Negar sua subjetividade e reduzir toda a
complexidade de seu sofrimento a uma sigla é confirmá-lo como morto-vivo, mantê-lo
para sempre escravizado à palavra do Outro (RIBEIRO, 2006).
Foi apenas em 1896 que Freud utilizou pela primeira vez o termo neurose
obsessiva. “Fui obrigado a começar meu trabalho por uma inovação nosográfica.
Julguei razoável dispor ao lado da histeria a neurose obsessiva, como distúrbio
auto-suficiente e independente (...)” (Id, 1896, p.146).
Surgia assim uma neurose singular, o tema, segundo Freud, “mais interessante e
compensador da pesquisa analítica” (Id, 1926[1925], p.115). A obsessão, à qual Freud
se referia, era uma neurose. E isso queria dizer o que? Houve uma aposta de que todos
aqueles sintomas derivavam da difícil relação do sujeito com o pai, das marcas deixadas
pelo complexo de Édipo. Com a universalidade da influência do Édipo no campo da
neurose (15/10/1897), é possível compreender como na neurose obsessiva o encontro
com o sexo retorna como culpa e desprazer. Se sua teoria sobre o complexo de Édipo
estava sendo formulada, a sexualidade enquanto uma experiência traumática se situava
no centro de suas atenções. Ao concentrar a questão da obsessão em torno do pai e da
experiência sexual traumática, Freud delimita o campo de uma nova neurose ao lado da
histeria.
Freud, então, cria um novo lugar para a obsessão ao discutir sua etiologia. Como
uma neurose, ela é regida pelo recalque dos eventos traumáticos da sexualidade. Da
correspondência com Fliess até o texto do Homem dos Ratos (1909), sua etiologia gira
em torno do prazer experimentado no encontro com o sexo ainda na infância. Haveria a
marca de um prazer excessivo ligado a uma experiência sexual que, quando recordada,
evoca a recriminação e o escrúpulo. Na neurose obsessiva haveria uma atividade sexual
precoce. E ela, mais do que a histeria, torna óbvio que os fatores que formarão uma
psiconeurose podem ser encontrados na vida sexual infantil (Id, 1909, p.148-9). Isso se
justifica pelo fato de que na histeria essas experiências caem na amnésia, enquanto na
neurose obsessiva elas ficam guardadas na memória.
Freud (1915b) fez uma diferenciação das neuroses a partir dos diferentes
destinos que são dados ao afeto do representante pulsional após o processo de recalque.
Se na histeria o afeto é inervado no corpo, produzindo os sintomas somáticos, na
19
“A sujeira está situada no lugar errado”.
neurose obsessiva ele é deslocado para outras idéias, ficando retido na esfera mental. O
que retorna do recalque é uma ansiedade social, moral e autocensuras ilimitadas.
Freud disse que a “melhor saída” para os conflitos inconscientes era aquela
elegida pela histeria. Isso porque o somático permite um certo distanciamento do sujeito
em relação aos seus sintomas e o pensamento não. O recalque, que gera os sintomas
obsessivos, obtém um êxito parcial, “estando constantemente sob a ameaça de um
fracasso. Podemos, pois, compará-lo com um conflito interminável” (FREUD, 1907,
p.114).
O conflito parece mesmo não ter fim. O sujeito cria determinadas leis e se
submete a elas, ritualiza sua existência e passa a seguir à risca seus escrúpulos. O
obsessivo crê no pai, crê na palavra, nos efeitos do pensamento. Tais características
fizeram com que Freud definisse a neurose obsessiva como uma caricatura cômica e
triste de uma religião particular (Ibid, p.111). No traço identificatório tomado do pai,
identifica-se imaginariamente a ele e elege o lugar do pai como um lugar que quer
ocupar. É a partir daí que a culpa cobra seu preço.
Em uma neurose que faz do desejo um tabu, ou seja, que situa o desejo no
campo do impossível, o processo analítico se apresenta particularmente árduo. Ao
afirmar que o desejo é indestrutível no aparelho psíquico, Freud (1900, p.583) aponta
para a dimensão ética da psicanálise que vê no desejo o cerne de seu trabalho. A
neurose obsessiva vivencia o desejo na dimensão do impossível, posição subjetiva
resultante da defesa contra o caráter indestrutível do desejo.
20
Loucura de tocar.
apaixonava: a relação entre um filho e um pai” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p.
463). O pai de Lanzer morre em 1898 e em 1901 ele entra na carreira militar. Começa
então a ter estranhas e mórbidas obsessões, como a de colocar o pênis para fora em um
corredor tarde da noite como desafio ao pai – que já estava morto. Em 1907, ouve do
capitão Nemeczek o suplício oriental com os ratos. Em tal suplício, o torturado era
amarrado nu a um balde cheio de ratos famintos. No mesmo dia, o paciente perde seu
pincenê, o que dará origem a um tormento em relação ao pagamento de uma dívida
relacionada à obtenção de um novo óculos. Fortes sentimentos de culpa marcavam o
caso.
Ao requisitar que um novo par de óculos fosse entregue pelo correio, Lanzer é
tomado por um comportamento delirante em torno da dívida, já que um dos
funcionários do correio faz o depósito para ele. Dívida e suplício se misturam. O relato
do castigo com os ratos despertou o erotismo anal de Lanzer, fazendo com que suas
características obsessivas se acentuassem a ponto de procurar pela ajuda de Freud em
Viena.
Ao ouvir o paciente, Freud destaca seu gozo diante do relato da tortura realizada
com os ratos em prisioneiros. Freud ressalta sua “face de horror ao prazer todo seu do
qual ele mesmo não estava ciente” (FREUD, 1909, p.151) e destaca a importância do
erotismo anal na constituição desta neurose.
Sua neurose tivera início ainda na infância. Desde os seis anos havia a idéia de
que seus pais conheciam seus pensamentos, demonstrando a crença na onipotência dos
mesmos. Freud fala que nessa idade já podíamos reconhecer uma neurose obsessiva.
O que fez o paciente adoecer? A narração do suplício dos ratos não desencadeia
sua neurose, provoca um horror fascinado que atualiza sua neurose e suscita angústia
(LACAN, 1953 a, p.52-53). Ela se desencadeou com o conflito entre a mulher rica e a
mulher pobre.
Freud diz que ele adoeceu com a tentação de casar-se com outra mulher, em vez
daquela a quem amava. Esse dilema não era um dilema propriamente seu. O paciente
repete a posição do pai na escolha amorosa entre a mulher pobre que amava e a de
melhores condições. Com esse exemplo, Freud ilustra a função da dúvida na neurose
obsessiva: retirar o sujeito da realidade e isolá-lo do mundo. Se não é possível escolher,
perder uma das opções, não é possível sair do lugar. Em resposta a esse dilema, o
paciente adoece, cai de cama. Esse é um dos momentos em que Freud utiliza a
expressão ‘fuga para a doença’, dizendo que, impossibilitado de decidir, o sujeito
adoece para adiar a decisão.
Com esse caso a questão da culpa ganha mais destaque nas formulações
freudianas: o sentimento pela morte do pai era “como a fonte principal da intensidade de
sua doença” (Ibid, p.164). Um pouco mais tarde Freud dirá que a culpa está sempre
fundada no desejo (Id, 1913[1912-13], p.97), sua base está situada na morte do pai, na
realização do complexo de Édipo e no crime de incesto (Ibid).
Essa análise permitiu que Freud desse continuidade aos seus estudos sobre a
neurose obsessiva. Em 1918[1914] colocou a importância de diferenciar atos obsessivos
– presente em qualquer estrutura – de estrutura obsessiva. Vale repetir que Freud
manteve a etiologia dessa última em relação à constituição anal, sendo esse o diferencial
em relação aos atos obsessivos que podem se apresentar em diferentes funções e
contextos não só na histeria como também na própria psicose.
Com seu interesse pela analidade, Freud aponta a equivalência entre as fezes e o
falo. A equação formada pelos termos pênis, bebê, dinheiro e fezes é escrita com o
intuito de localizar o lugar desses objetos na economia libidinal do sujeito (FREUD,
1917, p.136), ressaltando que todos eles ocupam um valor fálico para ele. A retenção
das fezes equivale a uma satisfação auto-erótica e é um meio de expressar a vontade do
sujeito (Ibid, p.139). A zona anal é particularmente propensa a excitações, contribuindo
para isso os distúrbios intestinais tão freqüentes na infância (Id, 1905, p. 175).
Perguntamos o que o conceito de pulsão de morte (1920) traz de novo para o eu,
instância tão valorizada na neurose obsessiva? O conceito de eu participa ativamente da
mudança da primeira para a segunda tópica nos ensinamentos freudianos, trazendo
consigo novas características: o eu agora é masoquista, dividido, subordinado ao
sadismo do supereu, ao isso e ao mundo externo. Reage com angústia diante das
cobranças do supereu (Id, 1924) e faz sintomas.
Ainda no início de seu ensino, Lacan nomeia o obsessivo como “um ator que
desempenha seu papel e assegura um certo número de atos como se estivesse morto”
(LACAN, 1956-57, p.26). Assim o sujeito tenta se colocar ao abrigo da morte,
mostrando-se invulnerável. Lacan possibilitou uma leitura frutífera da neurose
obsessiva em vários sentidos: a ferocidade do supereu, a articulação do objeto anal com
a demanda do Outro, a relação do obsessivo com o desejo e com o Outro, os efeitos da
inibição em sua economia libidinal e a inclusão da tríade freudiana - inibição, sintoma e
angústia - nos três registros. Abordaremos esses pontos, extraindo da leitura de Lacan o
que é fundamental para sustentar nossa pesquisa sobre o lugar do corpo na neurose
obsessiva.
O desejo insiste e diante do impasse que o mesmo coloca para o sujeito, este
último pode eleger como saída a oblatividade – tudo para o Outro – colocando-se em
total submissão às demandas do outro. Aparece aqui a dimensão do sacrifício pelo
Outro, o movimento de estar sempre o poupando, tentando assim garantir que o Outro
consista e exista.
Apesar de sua forte relação com a analidade, há uma subjacência oral nas
fantasias obsessivas (LACAN, 1957-58, p.424): a gulodice do supereu parece devorar o
sujeito. O que se apresenta de maneira mais aparente nos sintomas do obsessivo é, como
vimos, a voracidade do supereu (Ibid). Ele está sempre pedindo permissão,
colocando-se na mais extrema dependência do Outro. Sem medida, perde a noção do
excesso e se deixa devorar.
O obsessivo tenta escapar do gozo (Id, 1968-69, p.360), delegando o mesmo ao
campo do Outro. Sabemos, porém, que o gozo é difícil de ser evitado (GAZZOLA,
2005, p35). Lacan nos disse que o inconsciente trabalha em prol do gozo (LACAN,
1973, p.556). Ele desempenha um papel especial na economia do obsessivo em que a
intrusão desse gozo em seu próprio campo é experimentada como excessiva e
estrangeira. Vale lembrar a face do Homem dos Ratos ao relatar a Freud a tortura ouvida
em relação aos ratos. Seu gozo com os ratos e tudo mais que ele representava – florins,
merda – nomeou o caso. O obsessivo tenta tornar o gozo manejável pela via do falo,
elegendo determinados objetos que fornecem a ele essa idéia de poder e completude.
Skolidis (2008), em um artigo que trata do objeto anal, relata um caso de neurose
obsessiva que apresentava “crises de angústia, palpitação, tontura, dor na nuca, sensação
de desmaio” (SKOLIDIS, 2008, p.53) que conduzem o sujeito a comportamentos
agorafóbicos e hipocondríacos com a presença de inibições. Esses comportamentos
estavam relacionados à possibilidade de um encontro amoroso e, quando apareciam,
impediam o mesmo.
Nesse nível, o que o sujeito já tem para dar é o que ele é, uma
vez que o que ele é só pode entrar no mundo como resto, como
irredutível em relação ao que lhe é imposto pela marca
simbólica. É a esse objeto, como objeto causal, que se prende o
que identificará primordialmente o desejo como o desejo de
reter. A primeira forma evolutiva do desejo, portanto,
aparenta-se como tal com a ordem da inibição (Ibid, p.356).
O obsessivo não autoriza seu desejo a se manifestar como ato. Para que o
obsessivo possa desejar é preciso que haja um Outro que lhe demande. É preciso que o
Outro o autorize. Da autorização ao mandamento não resta muita distância.
Se o sujeito perde gozo com sua entrada no mundo simbólico, ele tenta
recuperá-lo pela via do objeto. O objeto aglutina o gozo que o significante não
conseguiu excluir totalmente. Com a entrada do sujeito no mundo da linguagem, o gozo
passa a ser sempre limitado (LACAN, 1960b, p.834), insuficiente. Daí a crueldade do
supereu que exige sempre um pouco mais. Como conseqüência desse empuxo ao gozo,
vemos surgir a culpa, já que a culpabilidade do sujeito não se deve ao fato de que ele
goza, mas sim por não alcançar o impossível. Essa via de recuperação do gozo,
dominada pelo objeto mais-de-gozar, fortalece o supereu ao fornecer a idéia de que esse
gozo primeiro pode ser recuperado.
Dentre tantas coisas que Freud nos ensinou, são suas formulações em relação ao
desejo que nos permitiram dar continuidade em nossa pesquisa acerca do corpo na
neurose e, em especial à neurose obsessiva. Ele é inconsciente, indestrutível e sempre dá
um jeitinho de aparecer. Diante do desejo, o sujeito na neurose tem algumas opções:
inibir-se, recalcá-lo e produzir sintoma ou se angustiar. Vejamos com mais detalhe como
a inibição se apresenta nesse campo.
Nosso interesse pela inibição surgiu com a clínica da neurose obsessiva. Trazer
as contribuições da clínica psicanalítica para nossas formulações teóricas faz com que
tenhamos como ponto de partida a singularidade daquele que fala, como fala, sobre o
que fala e a quem se dirige. Faremos um recorte que incide, em um primeiro momento,
sobre as inibições de uma forma geral e, posteriormente, sobre suas peculiaridades em
relação à neurose obsessiva. É fundamental renovar o estatuto da inibição na psicanálise
a partir do cotidiano da clínica. Apesar de ser silenciosa, a inibição coloca impasses ao
analista, convocando a construção de uma articulação sobre a mesma.
Além disso, a inibição pode ser fruto de um processo de luto ou algum outro
trabalho psíquico em que o eu fica absorvido pela exigência de um alto investimento de
libido.
Um pouco mais à frente, Lacan (1974-75) nos diz que inibição, sintoma e
angústia são o resultado da movimentação dos registros no nó borromeano. A inibição
passa a ser sempre referida ao corpo e a alguma função do eu. Ela é o resultado da
invasão do imaginário no campo do simbólico (LACAN, 1974-75, lição de 10/12/74).
Já o sintoma é a invasão do simbólico no real e a angústia a invasão do real no
imaginário, ou seja, no corpo (LACAN, 1974-75, lição de 21/01/75).
Tal formulação sobre a inibição nos faz recortar a forma como a mesma é
abordada por Lacan (1974-75): uma nomeação pelo imaginário. A inibição produz um
nome, que tem seu valor no nível do imaginário, tratando-se de uma significação. O
sujeito fica amalgamado a esses atributos, a essas significações, imobilizando seu
desejo. O vazio do objeto a é ocupado por uma significação que gera um ser de ficção,
produzindo um gozo que se sonha desligado do desejo do Outro (HANNA, 2005, p.74).
Mantendo a inibição, o sujeito experimenta um gozo narcísico que invade o eu do
sujeito (Ibid, p.76).
Lacan (1962-63) nos diz que toda ação do sujeito visa reencontrar o objeto
primordial perdido e é animada pela função do desejo. Nessa perspectiva, a inibição
configura-se como uma ação que contraria a função da qual se origina o ato. Sendo
assim, a inibição, juntamente com o acting out e a passagem ao ato, estão referidos ao
que Lacan denominou de clínica do ato. O ato é um posicionamento do sujeito onde se
manifesta o desejo, não estando necessariamente ligado à motricidade (LACAN,
1962-63, p.344-45).
Inventa outra cena dentro da cena, cria uma peça de teatro que será apresentada
ao rei atual e programa uma cena em que dará um fim ao mesmo. Hamlet introduz um
duplo de si, um duplo representado por i’(a) e utiliza-o como espelho. Mas Hamlet não
consegue matar o tio. Cai em estado de agitação. A hipercinesia, apesar de ser uma
tentativa muito comum do sujeito sair da inibição (RABINOVICH, 2005, p.53-54), não
é um ato, ou seja, algo através do que o desejo se sustenta.
Rabinovich (2005) aborda o impedimento de Hamlet a partir de sua relação com
o pai. O ponto de horror do qual Hamlet retrocede é o fato do pai ser um fracasso como
causa de desejo da mãe. Foi isso que fez com que Hamlet atentasse para a traição de sua
mãe com seu tio. Realizar o pedido do pai seria confirmar o fracasso, a castração do pai,
ponto do qual ele recua. A inibição se apresenta então como uma defesa diante da
possibilidade do sujeito se deparar com a castração.
O que permitiu que Freud desse ouvidos a esses traços, muitas das vezes, foi a
dimensão que os mesmos possuíam na fala do paciente e em seus sintomas. Apesar do
trabalho analítico histericizá-lo, seu posicionamento frente ao Outro e ao desejo são
marcantes. O objeto do seu desejo só se torna viável quando se encontra no estatuto do
impossível e o Outro é marcado pela falha, falha que ele mesmo quer preencher.
Ribeiro (2001 e 2006) é uma das autoras que questiona a afirmação de que a
clínica da neurose é sustentada pela histeria. Ela nos diz que a neurose obsessiva tem
aparecido cada vez mais na atualidade e em nossos consultórios, inclusive em mulheres.
No livro “Um certo tipo de mulher” (2001), a autora destaca as peculiaridades da
mulher obsessiva que, diante da inconsistência que a ausência de um significante que
defina o que é ser mulher traz, é menos enganada pelo falo que vela o furo no outro.
Sendo assim, a mulher obsessiva é ainda mais ‘religiosa do significante’, mais propensa
ao deslizamento metonímico (que não deve ser incentivado), à busca de um corpo que
funcione sem rateios e às compulsões. Drogadas compulsivas, as obsessivas, escravas,
consomem obedientemente as drogas que prometem um alívio que nunca chega
(RIBEIRO, 2001). Seja em busca de um sono tranqüilo, de um controle da ansiedade e
da tristeza, de um corpo perfeito, a medicação ocupa o lugar de um objeto a mais que
atue no que está fora do lugar, no que não funciona bem. Essa medida de perfeição é o
que deteriora o sujeito e o conduz a um Outro absoluto, típico de seu tipo clínico: a
morte (Ibid, p.119). Preso em seu labirinto, onde o desejo se esconde, ela trabalha
incessantemente para a morte.
A histeria está referida ao sexo e a neurose obsessiva à existência. Lacan nos diz
que a histeria e a neurose obsessiva são, respectivamente, uma espécie de resposta a
essas questões (LACAN, 1953). A morte é a figura limite a responder à pergunta sobre
a existência.
Não tendo no corpo o suporte imaginário do falo, a obsessiva faliciza o que bem
entende, ou melhor, o que acredita entender bem. Vale destacar que “as oscilações do
obsessivo entre o ouro e a merda, entre o tudo e o nada, ganham conotação particular no
caso de mulheres. A dor de existir característica da mulher aparece por vezes na neurose
obsessiva sob uma máscara extremamente trágica (...)” (RIBEIRO, 2001, p.63).
Outra queixa também comum se situa na privação sexual da qual reclamam essas
mulheres. Tal privação está diretamente ligada à sua modalidade clínica de evitação do
desejo, já que deixam a iniciativa ao outro, do qual dependem para pôr em jogo, a
contrabando, seu desejo (RIBEIRO, 2001, p. 96-7). Isso nos faz lembrar de Lacan que
(1954-55) diz que o obsessivo só consegue se colocar na cena através de um outro.
Há uma afirmação freudiana que desde o início nos chamou atenção quanto ao
lugar do corpo na neurose obsessiva: “em todos os meus casos de neurose obsessiva
descobri um substrato de sintomas histéricos” (FREUD, 1896, p. 168-9, grifo do autor).
Essa articulação se repete anos depois: ao afirmar que “toda neurose obsessiva parece
ter um substrato de sintomas histéricos que se formam em uma fase bem antiga” (Id,
1926[1925], p.115).
Esse substrato era justificado por uma cena sexual experimentada de maneira
passiva pelo sujeito, tal qual ocorre na histeria, e que teria precedido a ação prazerosa
que caracterizava a constituição da neurose obsessiva. Outra afirmação que aborda a
proximidade entre a obsessão e a histeria é feita por Freud (1909), quando o mesmo nos
diz que a linguagem utilizada pela neurose obsessiva é apenas um dialeto da histeria.
É importante deixar claro que nosso intuito não é catalogar as diferentes queixas
do sujeito nas categorias de inibição, sintoma e angústia. Sabemos que a mesma queixa,
dependendo do lugar que ela ocupa na vida do sujeito e do momento em que ela
aparece, ou seja, a quê ela responde, pode ser tomada como um sintoma, uma inibição
ou ser a expressão de angústia. Vale ilustrar, com exemplos que são clínicos, os
impasses que puderam chamar nossa atenção e proporcionar um questionamento
frutífero em relação aos mesmos. Sendo assim, rituais que materializam compulsões por
se lavar, por arrumar, por manter um corpo perfeito, ‘com tudo no lugar’, saudável,
imortal, despertam nosso interesse pela relação entre o corpo e a neurose obsessiva.
Tais compulsões são acompanhadas por uma tentativa incansável de controle e
prevenção por parte do sujeito.
Para que possamos ter uma visão mais apurada do lugar que o corpo possui na
clínica da neurose obsessiva, iniciaremos uma distinção mais detalhada entre sintoma,
inibição e angústia no obsessivo, que terá continuidade no próximo capítulo. Inibição,
sintoma e angústia são descrições de manifestações particulares, nem sempre de fácil
diferenciação (Id, 1926[1925], p. 91). A tríade, eternizada por Freud (1926[1925]), é o
título de um texto que detalha as duas neuroses: histeria e neurose obsessiva. Essas três
manifestações clínicas são reformuladas, inclusive em suas inter-relações. Inibição,
sintoma e angústia são três formas das dificuldades do sujeito em relação ao desejo e à
castração se manifestarem (SANTIAGO, 2005, p. 131). O sujeito traz em sua angústia,
inibição ou sintoma uma resposta possível para a falta do Outro (AMBERTÍN, 2006,
p.61).
Como jogar com alguém que torna inoperante o risco? A análise implica riscos.
O analista tem dificuldade de desalojar o obsessivo de sua jaula. Ambertín (2006) nos
chama atenção para o fato de que “quem não demanda obter um lugar no desejo do
Outro, não pode participar de nenhuma partida, quanto menos da analítica”
(AMBERTÍN, 2006, p. 104). Só o sofrimento e a angústia podem escrevê-lo nesse jogo.
O obsessivo faz do dever um enigma e é por essa via que ele pede socorro ao analista
(LACAN, 1959-60). Fica preso em suas defesas como em uma armadura de ferro,
“onde ele se detém e se enclausura, para se impedir de aceder ao que Freud chama a
certa altura de um horror por ele mesmo desconhecido” (Ibid, p.247-48).
Perguntamos que usos o sujeito pode fazer da castração, além da pura renúncia
que o supereu exige e da via de recuperação do gozo pelo objeto. O neurótico recua
diante da possibilidade de positivar a castração; de não fazer de sua castração o que falta
ao Outro (LACAN, 1962-63, p.56). A ética da psicanálise está ligada à inexistência de
um objeto que venha pôr fim aos anseios do sujeito, à impossibilidade de reviver a
primeira experiência de satisfação. Assim, ética e gozo se unem através do supereu. O
gozo é o que acompanha o desejo em sua insistência de realizar o impossível.
Faz parte da função do analista descobrir o desejo que reside atrás das ilusões
disfarçadas no que Lacan denominou de serviços de bens, ou seja, nas diversas
concepções de bem que se encontram presentes em nosso discurso, seja ele social,
moral, religioso ou capital.
Para a psicanálise o sujeito não é unívoco. Ali onde penso não me reconheço,
não sou – sou justamente onde não penso, subvertendo a afirmação de Descartes. “Ali
onde sou, é mais que evidente que me perco” (Id, 1969-70, p.96). Cabe à análise
retomar a inversão no cogito de Descartes – ‘penso onde não sou, sou onde não penso’,
marcando o lugar do sujeito desejante, do corpo pulsional e sua satisfação. “Desidero, é
o cogito freudiano”, desejo logo existo (Id, 1964, p.147).
O que fazer com esse corpo que só em parte nos pertence? A análise visa obter
uma relação com o corpo que seja nova. Não a da idolatria, não a da inibição e da
angústia, nem a do excesso e, sim, a da encarnação da castração, que permite a
variabilidade, o movimento dos objetos do desejo. Para isso, a morte, a dor, podem se
configurar como uma via de trabalho onde os impasses em relação ao desejo se
encarnam. O desejo é uma barreira ao gozo fundada na linguagem, ele é uma
perturbação do corpo. Almejar que a análise possibilite um bom entendimento do corpo
com o gozo é ilusório (MILLER, 2009).
O horror à morte e à doença sustenta a hipocondria que consome o sujeito em
formulações infindáveis de hipóteses que justifiquem qualquer alteração no corpo. O
obsessivo quer estar sempre são, palavra que vem de sanus e que significa intacto e
infalível (CANGUILHEM, 2005, p.38). Daí vem a expressão ‘são e salvo’. A análise
vai na direção oposta: a morte está na vida, o adoecimento é signo disto (Ibid). A forma
como o corpo vai aceder a sua relação com a morte será para nós uma questão ética.
A psicanálise opera. Com custos e no tempo singular de cada um, mas opera.
Permite que o sujeito aceite a dimensão do real e do impossível, fazendo-o operar com
sua própria perda (Id, 1964a, p.858). Ela aposta na possibilidade do desejo e de o sujeito
– se quiser – mudar seu destino. No que diz respeito à neurose obsessiva, a psicanálise
demonstra que autorizar-se no campo do desejo não é auto-ri-(tuali)-zar-se como nos diz
Lacan (Id, 1973a, p.312), bem ao contrário, é experimentar o novo.
o corpo.
“Nada mais familiar que a estranheza que sentimos em algum momento da vida,
psicanalítico gratuito para pessoas trans. Iniciado em 2018, surge com a proposta de
constituir um espaço de fala para aqueles que se identificam com o significante trans,
primando para que as diferenças nos processos de construção do corpo sejam ouvidas e
realizado nesse projeto, visto que ele: abre espaço para as singularidades da clínica com
a essa temática. Além disso, essa proposta é irremediavelmente politizada visto que
permite a inscrição da psicanálise na polis e problematiza os efeitos políticos do seu
pode nos transmitir no que tange às especificidades das relações dos sujeitos escutados
posição sexual de cada um. A partir da própria fala dos pacientes, fomos avançando
teoricamente, de modo que este artigo formaliza o que estamos construindo dentro deste
espaço.
articulação entre transexualidade e psicose, por outro, acenam com uma nova
2018). A transexualidade foi apresentada, em alguns textos, como uma forma da histeria
21
Dentre as referidas publicações, tanto as que afirmam a aproximação entre transexualidade e histeria
quanto as que abordam essa temática por outros vieses, destacamos: Quinet (2018), Ansermet (2018),
Bonnaud (2016), Rosa (2019), Fajnwaks & Leguil (2015), Mariotto (2018), Santiago et all (2017), Alberti
& Zenicola (2016), Preciado (2014).
as aproximações e divergências com as teorias Queer (Butler, 2013), a problematização
transformação.
relações dos sujeitos com o corpo, com a errância da pulsão, a importância e o limite do
Outro nos processos de identificação, os efeitos dos movimentos identitários bem como
da singularidade do sujeito, ela foge a toda categoria que visa generalizações e recolhe o
nosso ver centrais e talvez contraditórias de Freud (1912) e Lacan (1974) que fazem
análise, se mostra claro na tentativa do sujeito de habitar seu corpo. Pudemos observar
esse impacto a partir das novas inscrições significantes efetuadas sobre o corpo dos
permitem. E, por fim, houve um espaço para que os sujeitos abordassem seus impasses
clínica, a inventar uma via de acesso ao aluno capaz de, minimamente, instigá-lo
sorrisos pelos alunos. A via de transmissão da psicanálise, eleita por nós, foi
trazer a clínica com pessoas trans para dentro da universidade, trazer o caso
clínico para dentro da teoria, destacar o trans que nos habita mesmo sabendo das
diferenças em relação aos efeitos desse significante para cada um. Sustentamos,
Convocação iniciada por Freud que articula sexualidade, corpo e mal-estar desde
a fundação da psicanálise.
Miller (2010) em seu texto “A salvação pelos dejetos” nos lembra que ao
sustentar um tratamento para o sofrimento que traz para a cena analítica nossos
próprios dejetos, a psicanálise desvela que, até então, os seres falantes haviam
procurado a saída para seus mal-estares pela via do bem, ou seja, dos ideais.
religioso, humanitário, etc. Entretanto, operar sob uma lógica de trabalho que
não vise ao ideal, nesse contexto específico, ideal em relação a ser homem,
mulher ou trans, permite que a ideia de uma relação perfeita com o corpo caia.
Uma imagem e um nome são recursos importantes para balizar esses lugares,
mas vemos que não são suficientes. O que traz como consequência direta um
convite a que cada sujeito costure algo em relação ao seu corpo, à moda mais de
corpo, tomado aqui como veste (Lacan, 1972/1973), pode ser ou não habitado,
testemunham o uso desse espaço como invenção (Vieira, 2021) com o que resta,
como a relação do sujeito com o que se poderia formular como sendo o seu bem
tudo o que a civilização cria para encurtar o caminho do sujeito em direção a sua
tantos desvios aparecem no caminho. Ele precisa ser trilhado no um a um. Nesse
ouvimos. Falbo (2016) retoma uma reflexão sobre isso, proposta por Preciado
aquela que nos convoca a olharmos para o que exilamos em nós mesmos, sem o
intuito de eliminá-lo.
Para sustentarmos uma via de trabalho a partir dos traços que ficam,
precisamos tomá-los não “como lixo a ser descartado, mas como o resto
mas faz aparecer o estranho íntimo, a estranheza própria a cada um, em sua
função de manter vivo o desejo” (Barros, 2021, p. 87). Uma subversão pelos
dejetos (Lima, 2021). Positivar as perdas, a falta instituída na nossa relação com
o Outro e até com o nosso corpo é uma das marcas da psicanálise (Coppus,
2019). No caminho da responsabilização pelo o que nos afeta, o que nos causa, o
que nos marca, incluímos o que não soa bem na própria fala do sujeito, o que
mesmo com seu corpo. Algo valoroso, não no sentido imaginário do termo e sim
uma dignidade que faça referência a Das ding de Freud, a Coisa freudiana.
partir do qual possa se nomear. Trabalhamos então nesse espaço de escuta com a
recolhimento dos efeitos de vazio presentes naquilo que se diz. Essa dignidade
permitir circunscrever esse estranho em nós nas falas trazidas pelos analisandos.
Os sujeitos que chegam até nós, analistas, trazem notícias de seu mal estar, que é
singular, mas não sem o Outro. Por isso, o caso a caso nos permite tecer novas
costuras que convocam a própria teoria psicanalítica ao trânsito, para que assim
resto não eliminável entre aquilo que se vê e o que se sente no que tange a uma
autorização como homem ou mulher que se faz ouvir na clínica com pessoas
trans. Vejamos então algumas das coordenadas oferecidas por Freud e Lacan em
acentuada. Embora gênero não seja um conceito da psicanálise, não há como negar os
sintoma de nossa época, “um modo de lidar com o impossível da identidade e da relação
sexual” (Teixeira et all, 2021, p.20) a psicanálise pode contribuir e muito. O que nos
autoriza a entrar nesse debate sobre o gênero é o fato dos sujeitos virem até nós falar de
Judith Butler é um dos nomes mais importantes para os estudos atuais sobre o
gênero. Suas reflexões possibilitaram trazer para o campo social questões que estavam
(2015) interroga se o “sexo” seria uma estrutura dada ou se é algo que se constrói
historicamente. Deste modo, ela propõe dissolver a dicotomia entre sexo e gênero,
segundo a qual o gênero seria algo inscrito culturalmente em um sexo dito natural,
não determinadas por nenhuma verdade nem natural, nem ontológica (Butler, 2015).
Vemos aí um ponto em comum com a psicanálise que toma a biologia dos corpos
e suas funções através do campo da linguagem e da fala. É deste modo que as diferenças
biológicas dos corpos se destacam mais pelas marcas significantes, configurando algo
relação com o corpo próprio e com o do Outro, com a possibilidade de não se fixar
totalmente em um dos polos (Teixeira et all, 2021). À medida em que nos constituímos
sexualmente, sempre para alguém, estaríamos visando preencher o que supomos ser o
desejo inconsciente desse Outro. O gênero seria assim, uma resposta não natural do
ser sexual na psicanálise, aquela que diz que o ser sexual se autoriza de si mesmo e
alguns outros no que tange à posição sexual. Uma afirmação presente no final do ensino
por outro, o modo como cada sujeito vê sua anatomia comporta variantes,
inquietação quanto ao próprio sexo é uma regra que vale para todos. Afirmamos então
que não há identidade sexual: a sexualidade é o que perturba toda a identidade. (Alberti,
2019)
A frase dita uma única vez por Freud – a anatomia é o destino - , tomada de
forma isolada, parece indicar que a anatomia sustentaria uma diferença natural, original
e, portanto, intransponível entre homem e mulher. Tal frase vem ratificar a ideia de que
bebê antes mesmo dele ter um nome. Marca que não encerra o sentido do que é para
tempo, a partir do olhar do Outro, sendo, nesse sentido onde se chega, um destino. Nada
mais coerente com a ideia de que nos tornamos o que somos a partir do Outro, mas não
só.
Patrick Valas (2021) porém traz à cena psicanalítica que a frase, dita por
Napoleão anos antes de Freud, foi que “a geografia é o destino” e não a anatomia, o que
contribui bastante para o nosso trabalho. Isso porque tomar a anatomia , seja a de
origem ou a transformada, como único meio de autorizar-se enquanto homem ou mulher
é um equívoco. Talvez ela sirva para os pacientes mais como bússola na relação com o
corpo e o Outro.
Retomamos então a fala de Lacan no final de seu ensino “[...] o ser sexual só se
autoriza por si mesmo e por alguns outros” (Lacan 1974, p. 187). Tal afirmação explora
a relação entre os polos 'alguns outros' e 'si mesmo' por meio do resgate de
parte dessa afirmação - 'o ser sexual só se autoriza de si mesmo' destaca que o sujeito
tem 'escolha', posiciona-se diante da estranheza do sexo com o qual foi marcado
anatomicamente à revelia de qualquer sentido.. “Quero dizer que isto a que a gente 'se
limita', enfim, para 'classificar' como 'masculino' ou 'feminino' no registro civil... enfim,
isso não impede que haja escolha, sabemos disso”. (Lacan, 1974)
1974, por outro lado, é a partir dessa leitura da sexuação que Lacan retoma o que havia
colocado em sua proposição acerca da formação psicanalítica. Ele passa a incluir no ato
de se autorizar - seja como analista ou ser sexual- 'alguns outros' que valoriza o estatuto
sexuação, o que está em jogo não é o grande Outro, simbólico, mas o pequeno outro, o
para um sujeito se nomear em relação ao sexual, além das formas como o corpo
Napoleão. Talvez ela caiba mais nos tempos atuais. Geografia que diz da descrição de
um lugar, suas características, mas um lugar não apenas físico, uma geografia cultural,
Falatrans.
O corpo costuma ser comparado muitas vezes à nossa casa, essa morada íntima,
onde nem tudo é familiar. Freud (1919) em seu texto “Das Unheimliche”, publicado em
1919 ressalta a dimensão paradoxal da experiência que nos estranha, na qual o encontro
com o mais íntimo pode retornar enquanto “inquietante estranheza”, trazendo à cena o
desconhecido que nos habita. Se tomamos o dito de Freud (1923) de que o eu não é
senhor em sua própria casa, vemos configurado em nós uma geografia delimitada por
exílios, que também perpassa a relação dos sujeitos com o próprio corpo. Alguém
exilado saiu de seu lugar de origem, de forma imposta ou voluntária, sem perspectiva de
retorno. O exilado parte para o estrangeiro, depara-se com o estranho, outra língua,
outra cultura e mesmo que volte à pátria antiga, esse retorno não ocorre sem perdas.
“Pode um homem ter cintura fina?” Esse foi um dos questionamentos levantados
A pergunta eleita pelo paciente, gera reverberações em sua fala, fazendo com
que a questão da “passabilidade” entre em cena. Isso significa que era importante para
A.M “se passar” ou ser reconhecido, enquanto um homem, mais especificamente como
um homem cis. Para tanto, o incômodo gerado pela marcante presença das mamas e da
cintura fina, denunciavam um furo nessa construção que o remetia a um feminino que
não era bem vindo. O início do tratamento hormonal possibilitou que ele confirmasse
na imagem vista no espelho os caracteres masculinos. Houve uma grande euforia pelo
Com o espaço de fala nas sessões, A.M relata um diálogo em que reunidos com
um homem sem pinto”. A avó materna então responde: “mas quem disse que ele não
tem? É só você olhar no guarda roupa, está lá”. A.M diz... “eu tenho mesmo”, “eu posso
ter”. É interessante notar aqui, os impasses colocados em cena entre o que é da ordem
Falbo (2016):
A.M. retira as mamas, mas não gosta das cicatrizes. Em seu processo de análise,
menstruação, as cicatrizes, a cintura. Ele relata que há aproximadamente dois meses foi
à praia e ficou sem camisa, disse ter suportado os olhares, uns de espanto e outros de
reprovação sem se intimidar. A.M conclui: “Eu me permiti ser esse homem...” . Esse
homem, que passa a se relacionar com homens gays e precisa agora tomar providências
caso não queira engravidar. Diz então que apesar da sua vagina, e mesmo ela estando
presente nos jogos sexuais, isso não o impede de se colocar como um homem. Freud em
Fazer do resto o que pode sustentar uma imagem (Lacan, 1972-73, p. 18) é
subverter o lugar do que fica, do que fica como rastro seja do corpo anterior seja do
corpo sonhado que não vem. O movimento pulsional convoca o aparelho psíquico a se
rearranjar (Freud,1915) a partir do que poderá servir como novas balizas (imagem,
significante, o outro).
tem um corpo, mas não o é, que a dança singular acontece, onde movimentos e trajes
particulares vestem o um a um que reapropria o sujeito deste seu sítio tão íntimo quanto
sentido como exilado a uma invenção para além (Indursky & Conte, 2015). A questão é:
como dialogar a partir desse exílio? Talvez a relação de cada um com seu corpo possa
ser uma direção clínica importante. O que permitirá a cada sujeito fazer do corpo
instrumento para o sexual, sem se reduzir a ele? A.M. precisou tirar as mamas e fazer
uso dos hormônios, mas imprescindível foi lidar com as cicatrizes do que ficou.
Exilados de nós mesmos, estamos todos em trânsito nem que seja no percurso entre o
trânsito.
Parte 7
Carta à Preciado.
https://www.youtube.com/watch?v=UEkaKjUG7fY&ab_channel=CLINICAND
Começo essa comunicação agradecendo o estímulo que me foi dado pela conferência do
Sr. Paul Preciado ocorrida nas Jornadas da Escola da Causa Freudiana na França e
difundida na internet, para tecer esses comentários que partilho agora com vocês.
Sinto informar que somos todos Pedro Vermelho, ou somos todos descendentes diretos
desse macaco que como foi mencionado na conferência, é o personagem da história
criada por Franz Kafka em 1917 para explicar às autoridades científicas quais danos lhe
trouxeram sua captura e o consequente esquecimento de sua vida de animal, em prol de
sua humanização e aprendizagem da linguagem. É verdade que de modo algum isso nos
trouxe liberação, mas encarceramento, até porque a humanização realmente não é uma
história de liberação seja na Europa ou onde for. A subjetivação, com todas as
identificações que ela comporta, sejam bem-vindas ou mau-vindas, é um
enquadramento. E é num jogo de alienação e separação disso, que vamos cavando
espaço para respirar. Portanto, é dessa partir dessa condição de enjaulada que me dirijo a
vocês, já adiantando algumas considerações.
Creio que posso afirmar que o regime da diferença sexual com o qual trabalha a
psicanálise diz do modo como apreendemos simbolicamente o que vigora na natureza e
que em última instância nos é inapreensível. É a constatação de diferenças que nos
permite reconhecer o que há. Se algo jaz na mesmidade, nem o notamos, somos
indiferentes. Não causa ‘pathos’, espanto, não merecendo portanto, nossa atenção. É
pela comparação, inclusive dos corpos, que fazemos distinções e entramos no exercício
de tentarmos nos situar, buscando referências que malgrado nos enjaulem, nos permitem
ainda assim identificações protetivas, estratégias de invenção de sentido, onde no real
não há sentido algum. Se há aí algo que possamos chamar nesse regime da diferença
sexual de heteronormatividade, é importante que se saiba que esse hetero, caro sim à
psicanálise, deve ser remontado à sua origem grega. Ou seja, a psicanálise preserva o
exercício da diferença, preserva a idéia da alteridade, do desigual, no centro de nossas
reflexões e de nossa prática clínica. E isso não se dá, ou pelo menos, não deve se dar
para privilegiar uma prática sexual em detrimento das outras, ou para determinar
padrões de escolhas de objeto e muito menos para privilegiar um sexo em detrimento do
outro.
Não por acaso, Freud para tentar figurar o que resta de insondável na configuração
psíquica da diferença sexual, propõe metaforiza-la pelas posições relativas à atividade e
passividade, relacionando-as, respectivamente, ao masculino e feminino. Desse modo,
sendo todos nós homens e mulheres bissexuais potencialmente, podemos fruir da
masculinidade e da feminilidade na medida da assunção do que há de ativo ou passivo
em nós no campo da sexualidade.
Nesse ponto, dando uma passo além de Freud, Lacan aceita a provocação deste para
pensar o que há de misterioso e de peculiar ao feminino que na disputa fálica, no âmbito
imaginário poderia aparecer em desvantagem. É quando então, reconhecendo que o
campo sexual é fundamental mas insuficiente para cernir a existência, supõe que , para
além da dualidade do sexual que vigora em nós, há uma dualidade de gozos. Reconhece
o gozo sexual como gozo fálico, gozo da celebração da potência, prenhe de sentido, e ,
devido à insuficiência desse gozo, que eu diria seccionado, ele supõe um outro, não
fálico, ilimitado, alheio ao sentido. Um gozo suplementar que ele nomeia como
feminino, o avizinhando ao gozo místico, fora do sexual.
Percebe Sr. Preciado? O Sr. tem razão. Nem tudo é restrito à divisão sexual, binária ou
não. A insuficiência do sexual em cernir tudo o que há na existência, nos faz supor que
há uma dimensão de gozo, que transpõem em muito o que é da ordem da diferença. Mas
aí, estamos num campo no qual a designação de feminino proposta por Lacan, transpõe
a fronteira entre os sexos. E é aí que o feminino, se apresenta como um conceito a ser
melhor cernido em nosso campo, dado sua não obviedade. Por isso fazemos tantos
Congressos sobre o tema do feminino, que inclusive me parece bem mais próprio do
que o tema das mulheres. Mas é verdade, precisamos falar do masculino também, e das
inúmeras variáveis através das quais tentamos cernir a vasta dimensão da sexualidade
que extrapola em muito o binarismos sexual. E ainda é preciso que consideremos
também um mais além, mais além do sexual.
Mas, voltando a questão do regime da diferença sexual, é verdade que ele também foi
explorado em certos campos, e mesmo numa ampla perspectiva na cultura, como uma
epistemologia política do corpo que realmente enquanto histórica e mutável, foi e é
acompanhada de ideologias diversas com múltiplas consequências muitas vezes,
absolutamente nefastas e pervertidas. Uma abordagem do regime da diferença sexual
não anula a outra. Uma, diz respeito a um modo de pensar a organização psíquica
sobretudo a partir das “Consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos”,
dentro da lente oferecida pela psicanálise para se ver o mundo e pensar acerca do
conflito e do sofrimento humano, no exercício de fazer de si mesmo sua morada,
propiciando meios de investiga-lo de modo a produzir efeitos, na melhor das hipóteses,
terapêuticos.
Habitar esse estranho que é nosso corpo, não é tarefa fácil para ninguém. Não á toa o
corpo, por mais que seja também fonte de prazer é um dos fundamentos do mal-estar.
Não apenas porque é sexuado, mas também porque não o escolhemos, adoece,
envelhece e morre, a despeito do nosso controle. Nas estratégias para habitá-lo se
descortinam na atualidade, inúmeros recursos, dentre os quais cirúrgicos e
farmacológicos. Enquanto psicanalistas não somos juízes para absolver ou condenar as
opções tomadas pelo sujeito. E também nossas hipóteses diagnósticas como bem diz o
nome, são hipóteses, não sentenças. Referem-se à defesas privilegiadas por um sujeito e
não a degenerações ou doenças. E ainda, só podem ser levantadas no contexto de um
processo psicanalítico em curso, servindo para que o analista, no caso, se oriente
quanto ao seu modo de intervir. Isso serve a ele, não ao analisante. E é bom que se diga
que para que o analista possa se emprestar a essa difícil função clínica, é preciso que
ele pendure seu eu cheio de si, e de ‘”gênero”, na sala de espera, e compareça como
“trans”, ou seja, suporte mutante de todas as investidas que o desejo inconsciente pode
operar na contingência da trans-ferência.
Lidamos justamente com a dimensão traumática do sexual. Essa comparece para quem
quer que seja, homo, hetero, bi, trans, e todas combinatórias possíveis. Não há sexuação
que repouse sobre um jardim de rosas. Trata-se aí de secção, corte, ruptura com uma
natureza na qual a hamonia ficou perdida. Daí a pertinência do conceito de castração
que bem assume sua dimensão simbólica, encobrindo a dimensão radical da privação
que nos toca à todos de diferentes maneiras. Agora é claro que o amparo ou desamparo
social que um sujeito experimenta na singularidade de sua vida conta e muito, e daí a
militância é perfeitamente compreensível e desejável.
Defendo que é preciso que façamos uma diferença entre o que diz respeito à teoria e a
clinica psicanalítica e o que diz respeito à militância política na reivindicação de
reconhecimento social, jurídico, médico,...relativa à liberdade de escolher dentro do
possível o que cada um, “maior de idade”, pode fazer com seu corpo, com o seu modo
de habitá-lo e de fruir dele.
É verdade que talvez a grande maioria dos psicanalistas tenham ficado tempo demais
apartados da cena pública e da intervenção política. Porém, no momento que falamos
enquanto psicanalistas, creio que é preciso diferenciar o que vem a ser um discurso
psicanalítico imbuído de uma política própria que é afeita à singularidade da ética da
psicanálise, de um discurso de militância. O discurso psicanalítico destoando inclusive
de muitos ideais da cultura, é sobremaneira, prevenido quanto à fragilidade de todas as
certezas, por isso trabalhamos tanto com as representações e com o que resta de
irrepresentável. Um discurso de militância tem uma verdade própria a ser defendida e
difundida. Cada um desses discursos tem suas pertinências e contextos específicos.
Penso, sr. Preciado, que seu discurso tem toda pertinência do ponto de vista da
militância política, e reconheço nele seu valor, porém, na visão que constituí a partir de
minha longa formação psicanalítica, o que implica minha própria análise, minha prática
clinica de anos e meus estudos e escritos nesse campo, me permito dizer que sua
intervenção é uma violência à psicanálise e meus colegas ao convidá-lo e aplaudi-lo
fizeram um grande desserviço celebrando a resistência a ela. Parecem querer contribuir
para o suicídio da psicanálise. É injusto e equivocado que seja renegada a potência
revolucionária que ela tem desde sua invenção, até os dias de hoje, o que é fundamento
da sua razão de existir.
Cordialmente,
Denise Maurano
Psicanalista, escritora, membro do Corpo Freudiano – Escola de Psicanálise (RJ)
Correspondente da Association Insistance (Paris)
Integrante do Movimento da Articulação das Entidades Psicanalíticas do Brasil
Palavras Finais
O longo percurso realizado até aqui nos faz pensar o quanto a articulação entre
corpo e psicanálise é rica e cheia de aberturas teóricas. E olha que fizemos recortes
através do corpo.
colocamos em destaque a clínica com pessoas trans e como ela convoca o analista a
do sexual.
cenário clínico para que ele possa ser lido, trabalhado e até esvaziado em alguns
casos. Nós não somos nosso corpo, nós o temos ou acreditamos demais nisso.
possível.
Referências Bibliográficas:
ABRAHAM, K. (1921). “Complementos a la Teoria del character anal”. In: Las
obsesiones.
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