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(Ab)usos do corpo:

um olhar psicanalítico.

Por Alinne Nogueira Silva Coppus

&

Denise Maurano

2021
um corpo

vive, morre, escorre, marca,

escreve e é escrito,

atravessa e é atravessado,

muda.

Mudo não.

cai, silencia e adormece.


(Ab)usos do corpo:

um olhar a partir da psicanálise.

Denise Maurano e Alinne Nogueira


Índice

INTRODUÇÃO

1- Reviramentos do corpo na história e na psicanálise …………………………

2 - O surgimento da psicanálise a partir do que ecoa no corpo …………………

2.1- Um corpo habitado pelo inconsciente


…………………………………………...

2.2- A histeria descobriu a ação pulsional


…………………………………………….

2.3- A pulsão subversiva


……………………………………………………………..

2.4- Sentimos a angústia no corpo


…………………………………………………….

2.5-O sonho da injeção de Irma


………………………………………………………..

3 - A importância da imagem: eu sou uma imagem?


……………………………
3.1 - Com a imagem eu me defendo
……………………………………………..
3.2 - A imagem como consistência ………………………………………………..
4 - O que a anorexia e a bulimia nos ensinam sobre o lugar do corpo na clínica da
neurose?.........................................................................................................................
4.1 - Anorexia: o jejum sacrificante em busca da purificação ………………………...

4.2 - Anorexia-bulimia ………………………………………………………………..

4.3 - A satisfação oral em Freud…………………………………………………,,…..


4.4.- O objeto perdido entre necessidades, demandas e desejos………...…………....
4.5 - A Anorexia e a bulimia em Lacan ……………………………,,,………………..
4.6 - A anorexia e a inibição ………………………………………,,………………….
4.7 - A versão obsessiva da anorexia-bulimia ……………………...………………….

4.8 - A função da imagen: o excesso em evidência ………………..…………..……..

5 - O corpo (escravo) na neurose obsessiva………………………………………..

5.1 - A origem da obsessão ………………………………………………….

5.2- A neurose obsessiva em Freud ……………………………….

5.3 - A neurose obsessiva em Lacan ……………………………...

5.4 - A inibição na neurose obsessiva ……………………………..

5.5 - A neurose obsessiva na clínica ……………………………..

6 - A escuta psicanalítica de pessoas trans: do estranho a uma invenção possível


com o corpo.

6.1 - A eleição de um trabalho clínico com pessoas trans como um meio de

transmissão da psicanálise na Universidade: a política do um a um.

6.2 - Da anatomia ao autorizar-se.

6.3 - Do estranho a uma possível invenção.

7 - No campo sexual somos todos enjaulados, somos todos “Pedro vermelho”

Palavras finais
Referências Bibliográficas

(Ab)usos do corpo:
um olhar psicanalítico.

“ O analista, não basta que ele suporte a função de Tirésias.


É preciso ainda, como diz Apollinaire, que ele tenha mamas.”
( Lacan, Seminário 11, p. 255)

Introdução:

A escrita desse trabalho surge em um momento importante: quando fomos


forçados a parar, a nos retirar de nossas atividades cotidianas assolados pela notícia de
uma pandemia sem data para terminar. Falo de 2020 marcado pelo avanço do Covid-19.
Com a possibilidade da morte, da perda de pessoas, do trabalho e do próprio
movimento, muitos tiveram oportunidade de olhar para si, suas vidas, seus ritmos, seus
corpos. Fechados em casa, diante das estranhezas familiares, outra morada é notada: o
corpo. É nesse momento marcado por incertezas que retomo esse projeto.
Apesar de ter dedicado minhas pesquisas acadêmicas a essa temática - corpo e
psicanálise - destaco aqui uma escrita que retoma alguns pontos apresentados
anteriormente mas com outra roupagem. Uma retomada, a partir de um outro lugar.
Talvez uma reescrita necessária. Continuamos às voltas com as possíveis articulações
entre corpo e psicanálise, bem como as diferentes relações que o sujeito pode
estabelecer com o seu corpo. Notamos que é raro um sujeito que venha falar de si e não
inclua o corpo nisso.
Pensamos então em partir da escuta analítica e recortar impasses, conflitos,
angústias, que fazem referência, de forma singular, à forma como o corpo aparece nos
processos analíticos, destacando o que uma análise possibilita nessa relação. Trazemos à
tona o que nos instiga e nos convoca na clínica, com palavras, articulações, dúvidas e
espanto. Convido então Denise Maurano, que marcou minha história com a psicanálise,
apostando na sua escuta e escrita, para escrevermos esse texto, partilhando experiências
e questionamentos que nos fazem avançar na transmissão da psicanálise. Sua escrita e
sua escuta me convocam a escrever de outro lugar, um lugar que permita dialogar e
fazer laço com outros que não apenas os pares.
Esse convite talvez marque um estilo, um estilo na transmissão. Quando
tomamos a clínica na palavra ela se transforma em via de acesso. É o que experimento
no meu cotidiano no contato com alunos e profissionais, pessoas próximas e distantes.
Ao retomar a clínica, falamos do lugar de analisante e com isso criamos um laço que
costuma abrir caminhos na busca de saber, caminhos que estabelecem uma outra relação
com o saber que não a da mestria mas sim a do desejo. Lacan afirmou que “a teoria
analítica e a prática, sempre se disse, não podem se dissociar uma da outra” (Lacan,
1956/57, p.11). Aqui seguimos essa afirmação ao pé da letra.
Bom, espero que isso seja possível aqui. Por isso, não me deterei tanto às
citações e sim ao resto das falas ouvidas, as que deixam traços. Passaremos por pontos
que tocarão na teoria psicanalítica, nos alicerces de sua prática, voltando sempre porém
para os impasses que a clínica nos coloca.
A psicanálise é uma prática de escuta singular, sustentada por um sistema teórico
bem delimitado, uma ética que prima pelo desejo e pela ação do inconsciente que surgiu
a partir da experiência clínica de Freud. Sua escuta, seus sonhos, suas angústias e
descobertas sobre um sujeito marcado pelos efeitos de um outro saber para além da
consciência, um insabido, Unbewusst, capaz de não tornar racional nossa relação com
nosso corpo. O inconsciente não vai sem referência ao corpo (Lacan, 1975-76,,p. 135) .
A pergunta que nós nos fazemos é… de que formas esse laço pode se dar?
Voltamos então a uma questão antiga, porém fundamental: o que a psicanálise
tem a dizer sobre o corpo? Sua presença no setting analítico convoca os analistas a se
debruçarem sobre essa questão. Ele faz parte do dispositivo analítico? Desde sempre?
Da mesma forma?
Freud ressaltou a necessidade de estarmos atentos ao modo como o corpo se
apresenta durante a sessão. Ele deu ouvidos, por exemplo, à forma como as pernas de
Elizabeth Von R, uma das primeiras pacientes de Freud, participava das conversas entre
eles (FREUD, 1893-95, p.173). Elizabeth, marcada pelo conflito entre um desejo de
viver a juventude, se podemos dizer assim, e ter que cuidar do pai, apresenta uma dor
paralisante nas pernas, dor que a impede de caminhar.
Qual função teve o corpo diante desse conflito? Ele encarna o impasse vivido
por Elizabeth, a congela, gera uma paralisia, sem ser necessário dizer isso, encenando o
texto em seu próprio corpo . Mas não precisamos recorrer a tempos tão remotos para
atentarmos para a presença do corpo no setting analítico. A clínica nos mostra isso.
Ainda mais nos tempos atuais. Sentimos os impasses, as dúvidas, as questões, as
angústias através do corpo. Reflita sobre como seu corpo participou e participa das
cenas marcantes da sua história, do que ficou em sua memória. Nos atendimentos dos
pacientes, como o corpo aparece? Quais efeitos recolhemos da presença ou da ausência
do corpo do analista durante os atendimentos?
Freud não compreendia, como médico, o motivo de tantos mal-estares,
cegueiras, enxaquecas, vaginismo, rituais de limpeza que tomavam conta dos corpos
das pacientes. Quiz ouvir uma linguagem diferente da que os protocolos médicos
determinavam. Ele apostou em outra lógica – para além da biológica - para se
aproximar e tentar entender o que ouvia das pacientes. Uma lógica guiada por
parâmetros não racionais. Para isso, apresenta-nos a ideia de um outro corpo. Um corpo
marcado pelos impasses da sexualidade e do desejo. Um corpo adorado, maquiado,
tatuado, alterado, adoecido, inibido, esquecido, cortado, punido e, novamente, adorado.
Isso tudo com funções diferentes.
Como separar corpo e psiquismo? Se em alguns momentos vemos resquícios da
divisão efetuada por Descartes entre pensamento e extensão na obra de Freud,
deparamo-nos com uma subversão dessa separação. O conceito de pulsão permite a
interrogação dessa divisão, abrindo um campo de pesquisa sobre essa questão. É
possível separar o sujeito do seu modo de satisfação?
Lacan, psiquiatra e psicanalista francês, deu continuidade aos ensinamentos de
Freud, retomou os pontos fundamentais da psicanálise, resgata a importância da fala e
da linguagem, convocando o analista a pensar sobre sua responsabilidade e ética ao
colocar como questão norteadora do seu ensino “o que se faz quando se faz uma
análise?’ Inova a psicanálise com novos conceitos e releituras dos antigos que
implicam em alterações consistentes para a prática analítica .
Sem a teorização de Lacan seria difícil avançar em nosso questionamento sobre
o lugar do corpo na clínica psicanalítica. Como veremos, destacar o corpo como uma
vestimenta, ressalta o lugar ativo do sujeito nesse processo de costura: é preciso vestir
essa roupa que de alguma forma recebemos do outro. Alterá-la, mudar a cor, modelo, ou
até o corte, deixando-o mais próximo de um estilo próprio. Tomar o corpo como algo
que se constrói, que se tem e, portanto, que não se é, colocou em cena a possibilidade de
haver um descompasso entre o eu e o corpo, entre eu e meu corpo.
O trabalho analítico tem nos apresentado a presença do corpo na fala dos
pacientes, através de seus sintomas, inibições e angústias. Dentre eles destacamos o
excesso em relação ao próprio corpo, seja no cuidado, no desleixo, nos movimentos de
tomá-lo como máquina, uma máquina que garanta satisfação. Penso que a forma como o
corpo serve de suporte para a satisfação, é uma ferramenta clínica importante. Não
apenas na hipótese diagnóstica mas no próprio funcionamento do sujeito diante do
Outro. Dores, mal-estares, o aparecimento e o desaparecimento de doenças, cortes,
depressão, ansiedade, transtornos alimentares, os impasses em relação ao sexual
localizados em dificuldades com o corpo, com a imagem, são alguns dos exemplos que
retiramos das falas dos analisandos. Parece clara a satisfação que os sintomas trazem
para o sujeito, mas, para além disso, intriga-nos a forma como essas queixas aparecem
na fala dos pacientes e o destino que as mesmas possuem durante o processo analítico.
Em que momento particular de uma análise elas se tornam mais frequentes ou cessam?
O corpo também tem participado de forma bastante peculiar do desenvolvimento
teórico da psicanálise. Destacamos por exemplo as últimas discussões em relação ao
lugar que a sexualidade e a diferença sexual possuem na psicanálise. Mesmo em uma
época onde o sujeito é capaz de construir uma relação com seu corpo que seja
totalmente nova, como por exemplo mudando de sexo e /ou gênero, vemos ainda um
mal-estar que ronda o corpo. O corpo continua sendo uma roupa que nunca cai muito
bem. Muito criticada, a psicanálise é convocada a se posicionar em relação a esse ponto
espinhoso e talvez resgatar a articulação da sexualidade com o real, o desamparo, a
ausência de previsão e prevenção seja uma via possível.
A psicanálise não considera o corpo como um dado. Ele não é um conceito
psicanalítico, tanto que não se encontra nos dicionários mais importantes de psicanálise,
e sim um objeto a ser construído com os conceitos da psicanálise. Dentre eles
destacamos a pulsão, o narcisismo, o eu, o gozo, o real, o sintoma, a inibição e a
angústia. Falaremos então de uma concepção psicanalítica do corpo.
Apesar de o corpo fazer parte da história da psicanálise desde a sua origem, é
recente a retomada do mesmo como um campo fértil e fundamental de pesquisa. Vemos
hoje um número considerável de publicações abordarem o corpo a partir de diferentes
quadros clínicos, seu lugar no setting e os efeitos de uma análise sobre ele .
Respeitando a escrita de cada autora, optamos por manter para o leitor as partes
de cada uma delas. Uma escrita estritamente clínica que passa pelas reviravoltas do
lugar do corpo na história, o surgimento da psicanálise, a histeria e seu corpo teatral, a
radicalidade dos sintomas alimentares, o corpo escravo da neurose obsessiva e a
transexualidade. Denise finaliza com uma carta a Preciado, trazendo à cena da discussão
o lugar da sexualidade para a psicanálise.
Boa leitura!
Parte 1
Reviramentos do corpo na história e na psicanálise.
Por Denise Maurano

Diante dos Usos e abusos do corpo, resta-nos interrogar: ⎯ O que é um corpo? E


ainda: ⎯ O que pode um corpo? A temática do corpo, abordada primorosamente, nesse
volume pela perspectiva psicanalítica, na proposta de Alinne Nogueira, resta como uma
das maiores interrogações desde que o homem, para além de simplesmente viver, se
colocou a refletir. Assim, tomado a partir de diferentes campos como a Filosofia, a
Biologia, a Medicina, a Psicologia, a Sociologia, a Religião, e tantos outros, o corpo
vem sendo dissecado a partir de diversas concepções, nas quais cada campo o ilumina
ao seu modo e onde é sumamente importante, estarmos advertidos de que nenhuma das
abordagens conseguirá dizer a verdade última, e nem mesmo a reunião delas constituirá
um todo no universo múltiplo da questão do corpo.
Assim, convidada por Alinne Nogueira, a participar dessa publicação, optei
contribuir pelo caminho da transdisciplinariedade, esse método que conclama as
disciplinas a dialogarem entre si, de modo a que um campo, fecunde o outro gerando,
não respostas conclusivas, mas sobretudo questões que avancem nesse entendimento, e
que possam nos ajudar a lidar com o enigma do corpo.
É interessante observarmos que, advertido quanto à sua complexidade, Freud no
texto “O mal-estar na cultura” (1929) situa o corpo como uma das três fontes de
sofrimento. Segundo ele, enquanto humanos, somos sobremaneira acossados pelos
intemperes da natureza, vulcões, terremotos, tempestades e toda uma série de
fenômenos naturais; pelas relações com os outros, via tudo que se impõe em termos de
balizamentos institucionais de tais relações; e também pelo nosso próprio corpo. A
questão para ele é que sendo nosso corpo de certo modo estranho à nós mesmos, na
medida em que tanto não o escolhemos, quanto não controlamos seus desígnios, sua
degeneração, temos que nos haver com seus condicionantes.
Gostaria, portanto, de começar, partindo dessa condição de estranhamento . Sou
eu que habito um corpo, que tenho um corpo, ou eu sou meu corpo? O que é o eu? O
que é o corpo? O que é o si mesmo? Seu reconhecimento?
Obviamente estamos falando do corpo humano. Ao longo do tempo, desde a
influência filosófica greco-romana na Civilização Ocidental, as correntes idealistas e as
tendências materialistas atravessam as reflexões sobre a corporeidade. Estas
desembocam no mundo Contemporâneo, no qual muito se comenta sobre a super
valorização do corpo, valorização entretanto, extremamente duvidosa, pois se o toma,
por sua imagem. Imagem essa que, respondendo ao mundo globalizado do terceiro
milênio, faz do corpo um produto do mercado, dado a toda sorte de idealidades e
manipulações.
Na diferenciação entre tendências idealistas e materialistas, quem melhor ilustra
a abordagem idealista do corpo é a filosofia platônica. Platão (428-347 a.C.), partindo
de uma perspectiva que disjunta corpo e alma, propõe que esta última se origina no
mundo das ideias e se encarcera num corpo que é o mundo real. Esse mundo da
realidade seria o mundo das sombras, que nos levam a nos equivocarmos, produzindo
ideias confusas, e não ideias claras e verdadeiras. Dessa disjunção a filosofia
aristotélica já não participa. Para Aristóteles ( 384-322 a.C.) a alma tem a forma do
corpo, interagindo com o mundo a partir das percepções sensoriais, das intuições, e da
consciência. Com isso, ele sustenta uma posição bastante diferente da de seu mestre.
A Idade Média, com o advento do Cristianismo trouxe à cena uma revaloração
do pensamento platônico através de Santo Agostinho e com ela a condenação do corpo,
tomada via a teologia sobre o pecado original. O corpo comparece no mundo cristão
como instrumento do pecado, vocacionado a todos os males e onde o sexo, fonte de
tentação, deveria servir apenas à procriação. Daí o estímulo à ascese, esse exercício de
elevação espiritual no qual as mortificações do corpo, como jejum, abstinência,
auto-flagelo, penitência, serviam à sua negação. Negação um tanto paradoxal, já que a
visada do corpo se impõe, ainda que seja numa perspectiva sacrificial.
Apesar da extensão tomada pela prevalência da teologia católica na Idade Média,
as transformações do mundo impuseram a chegada da modernidade. Estas foram
favorecidas pelas grandes navegações propiciando a descoberta do Mundo Novo,
trazendo paisagens, cores e sabores antes inusitados; e também pela concepção
copernicana que revelou que a Terra não estava no centro do Universo e que, portanto, o
homem também não. Com a modernidade surge uma nova concepção de homem e
consequentemente, de seu corpo.
Rembrandt, é o artista que melhor ilustra essa passagem pintando “A lição de
anatomia”. Nele um médico disseca um corpo, um cadáver para descobri-lo em sua
intimidade. O que até então era um sacrilégio, dado que o olhar humano não deveria
violar o que Deus ocultou. Nessa perspectiva, o Renascimento se impôs trazendo o
imperativo de um novo olhar que ultrapassava as imposições do mundo medieval.

A lição de anatomia do Dr. Tulp (1634)

Com o catolicismo sendo questionado pela reforma luterana; o absolutismo


monárquico abalado pela queda do poder da igreja, dado que se atribuía ao rei, “um
duplo corpo”1, um natural e outro místico e imortal, afeito à deidade; e ainda, diante do
início da ascensão da burguesia com o desenvolvimento do mercantilismo, a expressão

1
Os dois corpos do rei é um conceito analisado por Ernest Kantorowicz (1998)como nascido na
teologia, aplicado à Cristo - Deus e homem - e transposto para o campo do direito e da política na Idade
Média, servindo à sustentação da monarquia absolutista.
barroca tomou a cena no campo das artes. E o fez, via uma exacerbação da imagem do
corpo, servindo como instrumento de persuasão para diferentes “senhores”. Para o
catolicismo, o investimento massivo na imagem dos corpos dos santos, imagens
sobretudo sacrificiais, e de êxtase místico, fez face à luta dos luteranos contra o uso dos
ícones-retrato, constituindo-se como estratégia de persuasão para adesão ao catolicismo.
Para a monarquia absolutista e para a burguesia em ascensão, a exaltação do corpo
“royal” ou do corpo dos membros da família burguesa retratada, constituiu-se como um
signo de poder e afirmação.
Diferentemente da expressão clássica na arte, dada à contemplação, a arte
barroca comparece induzindo o olhar, buscando influenciar, podendo, a meu ver, ser
considerado como uma primeira expressão da arte interativa, ⎯ aquela que convoca e
provoca o observador a interagir com a obra. O Barroco se impôs como linguagem da
transição, complexa coordenação de valores sagrados e mundanos, conjugação tensa
entre o céu e a terra, o que traz consequências para a abordagem do corpo.
A exigência moral de ter um corpo traz uma inversão. O espírito é obsceno, o
fundo do espírito é sombrio, o que exige um corpo que nos pertença. Como afirma
Lacan (1972-1973), nessa mesma direção, “O barroco é a regulação da alma pela
escopia corporal” (Lacan, 1972-1973, p.158). Tendo já dito que “de tudo que se
desenrolou dos efeitos do cristianismo, principalmente na arte – é nisto que encontro o
barroquismo com o qual aceito ser vestido – tudo é exibição do corpo evocando gozo
...Quase chegando à cópula”(...) (Ibid, p.155). E acrescentado “em parte alguma como
no cristianismo, a obra de arte como tal se verifica de maneira mais patente como aquilo
que ela é desde sempre e por toda parte: obscenidade”. (Ibid, p.154-155)
A obscenidade é evocada para indicar um empuxo à revelação do que deveria
permanecer oculto, fora da cena. Na perspectiva do barroco, não há obscuro em nós por
termos corpo, mas devemos ter um corpo porque há inelutavelmente este obscuro em
nós. Nele se opera um jogo de revelação e encobrimento do lado sombrio e solar que
compõem a vida. Lacan diz ainda: “Quem não vê que a alma não é outra coisa que
senão a identidade suposta a esse corpo, com tudo o que se pensa para explica-lo?
(Ibid, p. 150)
A Renascença trouxe à tona os germes de uma crise entre os valores cristãos e o
pensamento herdado do mundo antigo. Evidencia-se a relação ao saber como uma
armadilha, dado que nela, a subjetividade encontra seu lugar ao preço do esvanecimento
do próprio sujeito.
Será esse esvanecimento que comparecerá em cheio nas obras barrocas. O
barroco será o período subsequente ao Renascimento, na história da arte, que coincide
com a Idade Moderna na história do pensamento. Parece que a expressão barroca dará
uma forma a esta tensão pela via de um tipo de exaltação, que coloca em cena a imagem
daquele que está fora de si; daquele que alheio à subjetividade está mergulhado num
gozo do Eterno, gozo de Deus, e que entretanto, paradoxalmente, exibe o corpo em uma
dimensão que tange ao obsceno, como Lacan o sublinha (Ibid, p. 155). Há aí a indicação
de uma conjunção entre a alma enquanto divina, e o corpo que se exibindo, deixa ver o
que não é visível, o que é “fora do si mesmo”.
Isso me fez supor que a busca de delimitação do “si mesmo”, desse algo que
viria singularizar o sujeito, encontra no estilo barroco a expressão de suas dificuldades e
impasses. A busca da exatidão e objetividade renascentista transforma-se em inexatidão
e subjetividade na expressão barroca. Como comenta Affonso Romano Sant’Anna
(2000), o espelho barroco torna-se lente, intervém nas imagens da realidade e não tem a
menor preocupação em reproduzi-la fidedignamente. Esta, a meu ver, é a dimensão
mais expressiva dos efeitos de ilusão de ótica promovidos pelo barroco, entendido como
uma expressão própria da inquietação humana conforme explorei mais detidamente
num trabalho anterior (Maurano, 2011).
Corroborando com esta ideia, Rodis-Lewis (1966), no prefácio da versão
francesa do Discurso do método, privilegia este aspecto do barroquismo de maquinarias
e de ilusões de ótica, como uma coisa relevante ao contexto de Descartes, o chamado
pai da modernidade e da apologia à razão. Comenta a intenção deste de edificar uma
“ciência dos milagres” sobre as “matemáticas”, o que implica uma problematização da
nossa adesão espontânea ao mundo que nos envolve e inclusive da própria experiência
de nosso corpo. Descartes quer estabelecer a questão do saber e da subjetividade, sobre
um terreno preciso. Ele coloca em suspeição a própria percepção do eu advinda da
corporeidade, atribuindo à possibilidade de um deus maligno confundir a percepção até
mesmo de nosso próprio corpo, e termina por fiar-se na certeza do eu, proveniente da
constatação de que se duvido, é porque penso, concluindo se penso, então eu sou. Mas
não seriam eles, o saber e a subjetividade, e inclusive o saber da subjetividade, ilusões
de ótica privilegiadas, onde o desejo desempenha um papel fundamental a respeito da
relação especular estabelecida entre esses dois elementos: pensar e ser?
O tema da loucura nas tragédias do período moderno é algo a ser remarcado
como contraponto à apologia da ordem, harmonia e objetividade que aparecem como
exigências da razão moderna em sua expressão renascentista. A subjetividade
“produzida” nesse período, e daí para frente, é investida da esperança de controle e de
afirmação da existência. O pensamento torna-se o fiador do sujeito. O que se apresenta
de maneira exemplar na oscilação entre o ‘ser ou não ser’, no contexto shakespeariano
de Hamlet. Nessa via, a encenação da loucura nas tragédias modernas, encontra uma
larga expressão exatamente para fazer contraponto à razão, ou à pretensão de que o
sujeito se reduza ao seu pensamento.
Foucault, na História da sexualidade — O uso dos prazeres(1984), ressalta o
trabalho de Burckhardt, por este sublinhar a importância de se estender às artes da
existência, as técnicas de si, à época da Renascença. Se a constituição do si mesmo
implica o questionamento que o ser humano empreende a respeito do que ele é e do que
ele faz, a exaltação burguesa liberal do indivíduo leigo, visará a dominação racional da
realidade como um projeto renascentista. Assim uma nova visão do homem, da cultura e
de suas relações recíprocas compareceu fundamentando as revoluções culturais e
estruturais dos séculos seguintes, até o século XIX. (Garzanti, 1986, p.856)
Ainda que na História da loucura Foucault (1972), reportando-se à Idade
Antiga, focalize a Philautia, o atrelamento a si mesmo, como a primeira miragem da
loucura.
a “Philautia” é a primeira das figuras que a loucura desencadeia
em sua dança; ... o atrelamento a si é o primeiro sinal de loucura,
mas é porque o homem é atrelado a ele mesmo que aceita como
verdade o erro, como realidade a mentira, como beleza e justiça a
violência e a feiúra ... Nessa adesão imaginária a si mesmo, o
homem faz nascer sua loucura como uma miragem. (Ibid, p.
35-36)
Certamente, a presença do corpo, a partir de sua imagem, vai imantar as
referências ao si mesmo, potencializando toda a loucura da relação ao corpo que
comparece na atualidade.
Mas afinal de contas, onde está o si mesmo? No pensamento que tenta cerni-lo,
recortando-o pela linguagem, no corpo que o configura como imagem, ou ainda na
experiência sensorial da corporeidade? E mais, será que não existe uma íntima conexão
entre esses diferentes planos supostamente antagônicos? As torções moebianas, aquelas
nas quais, por um reviramento na superfície, sem que haja mudança de borda, o que
estava do lado de dentro, passa a estar do lado de fora e vice-versa, evidenciando um
reviramento entre o que é exterior e o que é interior, são intensamente exploradas nas
obras barrocas.
Como mencionei acima, a íntima comunicação entre planos supostamente
antagônicos como o divino e o humano, o bem e o mal, a vida e a morte, o sagrado e o
profano, a essência e a aparência, a profundidade e a superfície, o dentro e o fora, o
sofrimento e a alegria, revelam-se na sua mais profunda paradoxalidade.
Corroborando com esse panorama, é bom lembrar que no século XVII, Leibnitz,
definiu um novo ramo da matemática, referido ao estudo do lugar, “analysis situs” , que
se encontra na origem da topologia. A topologia trata das transformações contínuas de
fronteiras e de superfícies, sem submissão rígida às distâncias métricas, e que opera
com arrazoamentos que extrapolam as significações concretas, indicando a existência de
uma geometria flexível no campo das matemáticas. Não à toa, Lacan se encantará com
a topologia, a partir de 1962, em seu seminário cujo tema é a Identificação, onde ele se
serve, por exemplo da banda de Möebius , antes mencionada por Freud.
Pelo visto, o barroco é um instrumento preciso do que Lacan veio a chamar de
“monstração”, revelação de algo que emergindo da obscuridade, traz à cena o que
deveria permanecer oculto. O barroco, com suas torções tanto plásticas quanto literárias,
e mesmo musical, dá a ver a tensão operante em todo esforço de delimitação subjetiva.
Nisto o corpo não está de fora, mas toda delimitação aparece sempre prestes a se
dissolver. Daí o funcionamento de paradoxo, essa conjugação afirmativa dos opostos,
sem que um polo, negue o outro, vir indicar que o barroco, para além e aquém de
designar um estilo de época, espraia-se como recurso expressivo em diferentes
contextos temporais, e mais do que isso, expressa um dos modos de orientação do
psiquismo.
A valorização da percepção sensorial da realidade afeta radicalmente a
obra barroca, que impregnada de cor, de perfume, de sensação tátil
refletem o mundo em sua dimensão sensorial, ou seja, refletem um
mundo impregnado de subjetividade, e da tensão que lhe é inerente.
Trata-se na obra barroca, de dar forma plástica, musical, arquitetônica,
literária, às operações metafóricas, metonímicas, antitéticas,
hiperbólicas, e sobretudo paradoxais, que operam no funcionamento do
sujeito, enquanto sujeito do inconsciente. (Maurano, 2001, p. 30)
O filósofo holandês do século VII, Benedictus de Spinoza, é contemporâneo da
difusão da expressão barroca e não por acaso, Deleuze (1991) relaciona sua filosofia a
essa arte seiscentista. Em sua filosofia o corpo ocupa lugar privilegiado. Contra a ideia
do dualismo corpo e alma, Spinoza sustenta a tese do “Paralelismo Psicofísico”
(Espinoza, 2015). O que afeta o corpo, afeta a alma e isso constitui o ser. A alma
coloca-se como o pensamento do corpo, e portanto, o modo como pensamos evidencia a
maneira como vivemos. De modo que pensamento e ação se encontram juntos.
Sua grande questão: – O que pode um corpo? Evidencia que não temos
conhecimento do que pode um corpo porque desconhecemos sua potência de agir, e da
mesma maneira, também não conhecemos a potência de pensar da alma, do espírito. É
essa potência que revela para ele, o que seria aquilo que torna único, cada um de nós.
Nessa perspectiva o corpo não é passivo, não é mero instrumento da alma, nem mero
objeto.
O fato é que ninguém determinou até agora, o que pode o corpo,
isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo
– exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada
apenas corporalmente, sem que seja determinada pela mente –
pode e o que não pode fazer. (Xavier, 2019)

Para Espinoza o corpo é composto de essência, partes características, e de


relações características entre essas partes. Quando um corpo encontra outro corpo ele é
modificado por esse encontro. Assim, valorizar o corpo e suas relações é valorizar a
própria dinâmica da vida. E como ele está longe de ser uma unidade isolada, ele
depende das relações, depende dos encontros. Há uma intercorporeidade tanto entre
suas partes internas quanto com o que o afeta de fora. O que pode um corpo diz respeito
portanto, a natureza e os limites do seu poder de afetar e de ser afetado. Isso tanto pode
acontecer de modo a aumentar sua potência de agir, o que é o resultado de um bom
encontro, quanto de diminuí-la. O que revela um mau encontro. O corpo é desse modo,
sempre relacional. O que aumenta a potência traz como afeto a alegria e o que diminui,
traz a tristeza. Tudo gira em torno do que se passa na relação que gera bons ou maus
encontros, e também, depende da maneira como podemos nos situar quanto a isso.
Assim, somos constantemente modificados.
Se transpusermos, em certa medida, tais concepções para a psicanálise, onde o
corpo é também expressão das fantasias inconscientes, até onde o corpo aguenta? O que
suporta um corpo, tanto naquilo que ele suporta no sentido do que o afeta, como no seu
funcionamento como esteio da linguagem? É essa perspectiva que Alinne Nogueira
desenvolve nesse volume indicando minunciosamente as expressões que o corpo ganha
na clínica, tanto a partir das diferentes estruturas de defesa concebidas
psicanaliticamente, quanto a partir dos diversos fenômenos que tomam o corpo como
suporte.
Desde o início da teoria freudiana, a vivência do corpo inclui o Outro através da
intervenção, por uma ação específica, do adulto experiente que atende à criança no seu
desamparo, quando esta é invadida pelas necessidades da vida, resultando numa
experiência de satisfação ou, numa experiência de dor. Mais tarde, temos Lacan
reafirmando a presença desse Outro no circuito pulsional da criança, enfatizando sua
invocação que vai marcar no corpo, a entrada da linguagem. Constitui-se assim o "ser
falante", um corpo vivo atravessado pela linguagem. Ressalta a importância dos
objetos, iscas para capturar o ser, na relação com a fala. Tais objetos, chamados de
objeto a, por Lacan, instauram balizamentos no movimento libidinal, acentuando a
aproximação entre corpo e linguagem.
No Seminário 20, Mais, Ainda, Lacan, a partir de Spinoza, discorre sobre o
corpo, o ser e a alma. Sobre o corpo nos adverte: "O corpo, ele deveria deslumbrá-los
mais” (Lacan, 1972-73, p. 193). Acrescentando que ele é a contingência por onde se
inscreve o desejo. A contingência é a possibilidade de acontecer, é a eventualidade, é a
condição para o desejo... e, também para o gozo. É de uma experiência no corpo que se
determinam as modalidades de gozo. A inscrição no corpo do desejo e do gozo
mapeiam nossa vocação para a promoção de nossos bons e maus encontros.

Nessa perspectiva, digamos “borromeanamente” enlaçada das diversas maneiras


pelas quais o corpo se apresenta, temos muitas possibilidades de enfoques. Seja pelos
apelos do organismo vivo que em sua “maquinaria” ruidosa ou silenciosamente, se
impõe a nós, com seus mistérios, a despeito de nós mesmos, nos surpreendendo com
combinatórias que trazem doenças ou vocações insuspeitáveis. Seja o corpo, recortado
pela linguagem, mapeado pela cartografia significante, onde o sintoma serve para
fazê-lo falar, delineando um corpo cativo da linguagem. E, é interessante também
pensar, sobretudo em nossos tempos na maneira pela qual o corpo é tomado por sua
imagem. Nessa perspectiva a imagem do corpo é tornada “real” pelo poder cativante da
virtualidade, e desse modo, essa imagem é convocada a responder ao enigma do ser,
fazendo barreira ao que resta enigmático. É como se, nessa forma, se buscasse uma
dimensão de consistência que enfim, respondesse à questão: Quem sou eu?

As fantasias do desejo vêm abrigar-se no seio dessa imagem que, entretanto, não
responde com a estabilidade esperada. A imagem do corpo modula-se pelo espelho do
olhar do Outro referente, e esse varia suas inclinações criando um universo
caleidoscópico de ângulos possíveis de visão dessa imagem.

O corpo mesmo, o real do corpo, como tudo que tange a coisa em si, é
intangível. É também o lugar do Outro radical, da alteridade absoluta, dele resta-nos a
experiência do que o afeta, o mapeamento que a linguagem lhe concede, e o contorno
que sua imagem possibilita. A essa imagem nos apegamos e temos sorte quando com
ela, nos identificamos. Entretanto, ela não é fixa. Mas isso não impede que recorramos
a ela, na busca de um delineamento possível do ser. Daí toda a importância da função
do narcisismo, que diz respeito exatamente à nossa alienação nessa imagem convocada
a responder pelo nosso ser. O curioso é que, o brilho dessa imagem, no jogo
estabelecido entre sua consistência e sua evanescência, na transitoriedade aí implicada,
vem indicar simultaneamente, a relação do homem com o belo e com a morte e
justificar por que o belo nos interessa tanto, mostrando o quanto não tem nada de
supérfluo, mas sim de essencial.
A peculiaridade da abordagem da função do belo, aqui proposta, passa por Lacan
(1959-60) e Kant2 que convergem numa apreensão do belo como indicador da
pontualidade de transição da vida à morte, bem como do universal e do particular. Kant
diz que a imagem ideal do belo se situa em referência à forma singular do nosso corpo
em relação à forma universal da nossa espécie. Grosso modo, um exemplar da forma
humana, na experiência de comparação entre mil outros da mesma espécie, em suas
proporções de peso, altura, etc, é belo, se indica a média e por isso seria tomado como
ideal. Mas, o que podemos entender acerca do poder cativante dessa média?
É importante salientar que, em verdade, o corpo tomado como objeto não é belo
pelas qualidades que guarda em si mesmo, mas por relação a todos os outros. Nesse
sentido, o belo, ⎯ comparecendo como um véu que vela o vazio, a inconsistência do ser
⎯, apresenta-se como estratégia de defesa, indicando via a imagem do corpo, não
propriamente aquele exemplar, mas seu mais além, todos os outros, que aquele estaria
permitindo antever. Nesse sentido, o belo, no caso, o belo corpo, remetendo a todos os
outros corpos, funcionaria como uma rede de proteção, um véu de beleza que
transfigura a perecibilidade dos corpos, e assim, nos encorajaria para nos aproximar
desse nada, da morte, do não senso, ao mesmo tempo em que nos protegeria disso.

Assim, um corpo é efetivamente belo por excitar, encorajar uma aproximação à


dimensão mortal da carne, via essa estratégia de, pela beleza, indicar um mais além
dessa carne, numa relação com uma universalidade que relaciona aquele exemplar à
infinidade de sua espécie. Modo do singular mortal, corrompível, degenerável, galgar
uma via de acesso ao universal, e por que não dizer ao imortal. Isso, a nosso ver,
indicaria a razão do belo nos fascinar tanto.

Para Lacan a forma do corpo humano é apontada como limite das possibilidades
do belo (Ibid, p. 357) Nessa perspectiva, a forma do corpo funciona como o envoltório
das fantasias do desejo. Miragem pela qual se, por um lado o desejo é tornado visível
pelo brilho do belo, o fato mesmo de ser uma miragem indica a relação do homem com

2
KANT, Emmanuel. A analítica do belo....
sua falta a ser, ao mesmo tempo que , por outro lado, esse mesmo brilho o impede de
ver esse lugar pelo efeito mesmo do ofuscamento (Ibid, 357).

O belo é apresentado, portanto, como o que viabiliza o acesso à chamada


segunda morte, aquela que aponta a disrupção da vida na mais absoluta esterilidade,
para além de toda possibilidade de recuperação, de retorno, de metamorfose, na
completa fixidez do nada, ao mesmo tempo em que, pela fascinação que provoca, lhe
faz barragem. É, portanto, a esta outra coisa que está para além que o belo vem fazer
barragem e, de certa forma, fornecer contorno e propiciar encorajamento.
Essa perspectiva do belo, incidindo sobre a imagem do corpo, transforma-se
conforme o cenário político-cultural no qual ele está inserido. Desde a apresentação do
corpo conforme a Vênus de Willendorf invocando a fertilidade, exagerando os atributos
femininos, mais de 20.000 anos atrás, até os dias de hoje, muitas transformações
aconteceram.

Vênus de Willendorf

Tais transformações na representação estética do corpo, apresentam uma curiosa


relação entre a representação das formas e a vigência das ideias e inquietações, relativas
a cada tempo.3 Certamente não foi à-toa que os egípcios mumificavam o corpo do faraó,
buscando sua imortalidade, os gregos o figuravam de maneira ideal, os romanos de

3
Isso foi o que abordei num trabalho escrito em co-autoria com Kamila Costa “Memórias do reviramento
da carne ao corpo: de Bernini à Varejão, apresentado em 2016 no VI Encontro Nacional e Colóquio
Internacional do Corpo Freudiano – Escola de Psicanálise.
modo realista, os medievais se amparavam no sagrado, os renascentistas, na anatomia,
..., tudo ao gosto da forma, da expressão estética, que melhor demonstrava as
inquietações relativas a cada um desses tempos e a cada uma dessas vertententes
culturais.

Nessa perspectiva, voltando à expressão barroca, é interessante observar que no


período seiscentista, quando o Divino perde espaço, até a imagem do corpo de Cristo
humaniza-se, e apresenta-se em sua carnalidade sôfrega. Enfatizando uma certa
estratégia na qual nessa conjunção do corpo com a alma, encontra-se a indicação de um
suposto gozo puro, gozo ‘a mais', para além do sexual.

No barroco, a exuberância dos afetos, expresso pela via de uma exibição do


corpo dos anjos e santos expõe o ardor da alma tornado visível pela focalização do
corpo, dando a ver questões de difícil apreensão conceitual. É nessa perspectiva que o
barroco, muitas vezes identificado ao paraíso natural, à selvageria, articula-se ao que se
refere ao feminino e ao misterioso gozo que lhe é atribuído.
Em contrapartida, a abordagem neoclássica do corpo, no contexto da revolução
francesa, orientada prevalentemente, pela burguesia e pelo moralismo, veio privilegiar o
academicismo, a racionalidade, a frieza, fazendo pesar em muito o heroico e em nada o
erótico. No barroco o corpo ganha movimento, o erotismo aumenta, o que fica evidente,
sobretudo, nas esculturas carnais de Bernini.
A carne, se pudesse ser designada em si mesma, seria sempre morta, avaliada
em quilogramas. Sua animação é seu movimento e o risco que isso comporta, risco de
evadir-se, destino inelutável da carne que vira corpo. Investido pelo artifício da
linguagem que tece a trama da fantasia com a qual o corpo é vestido. Corpo que se
movimenta e morre. O movimento indica uma não negação da morte no seio da
dinâmica da vida. Ainda que essa vida implique em uma grande dimensão, a aspiração
de sua evasão. E isso Bernini, grande escultor italiano, o expressou de maneira
contundente nos trabalhos em que prima pela transformação da pedra em vento.
Trata-se, nesse artista, da mágica da evaporação do peso, da espiritualização da
matéria, onde a carne apresenta-se volatizada, enlevada pelo êxtase que contamina
quem quer que seja. O talento do artista traz carne ao mármore branco e o faz
estremecer com agonia e paixão. Que a figuração do corpo feminino seja privilegiada
nessa função, isso, certamente, não se dá por acaso. Parece trazer visibilidade ao que
Lacan tentou conceituar como gozo feminino, diferenciando-o do gozo fálico. O
feminino serve a essas funções: extrair da natureza o seu mistério, não para elucidá-lo
ao modo fálico, mas para trazer ressonância ao silêncio. Fazê-lo vibrar.

Bernini. Beata Ludovica Albertoni, 1674

Essa suposição da existência de uma modalidade de gozo que não se satisfaz


com a afirmação de si, presentificando uma revelação que que reverbera diretamente no
corpo, toca um modo paradoxal de fruição na qual o sujeito, pelo efeito mesmo da
dessubjetivação se entrega como objeto, numa experiência de evasão de si mesmo.
Experiência essa que pode ser jubilatória, se teve a aquiescência prévia do sujeito,
revelando-se como um gozo Outro em relação ao gozo fálico. Ou pode ser devastadora,
se comparece como invasiva, como gozo do Outro, pelo efeito, não de um processo de
dessubjetivação, mas de uma experiência de anulação subjetiva. Tal fruição suposta,
segundo Lacan como gozo feminino, difere sobremaneira do gozo relativo à referência
fálica.
A questão é que a insuficiência do gozo advindo da referência fálica para
abranger tudo que concerne o campo paradoxal de satisfações que um sujeito pode
obter, o que é revela segundo Lacan, a inexistência de um perfeito acoplamento entre os
sexos, abre caminho para a construção de uma suposição lógica acerca da existência de
um gozo Outro, não fálico, mais além do princípio de prazer. O gozo feminino é,
portanto, uma suposição lógica construída a partir do campo de pesquisa inaugurado
pela perspectiva do além do princípio de prazer, contemplado, não à toa, pela
complexidade da pulsão de morte.

O conceito de gozo em Lacan avança nas elaborações freudianas sobre a


Befriedigung, a satisfação, mas difere dela. Em termos etimológicos, pode ser de certo
modo esclarecido pelo joy medieval que designa nos poemas do amor cortês a satisfação
sexual realizada, mas guarda também um sentido jurídico relativo ao desfrute de um
bem. Essa elaboração conceitual busca nos munir de instrumentos para abordar nossa
relação com o gozo que não é evidentemente nada óbvia. Por essa via, no Seminário
17(1969-70), Lacan delineia seu campo pontuando que o campo de Freud é o campo do
desejo, e o seu, o campo do gozo. A questão é que gozamos de tudo nessa vida. Seja do
lado do prazer, da dor, o que se quer evidenciar com esse termo é a dimensão paradoxal
e complexa de nossa relação com a satisfação. Esta não se refere meramente a uma
relação quantitativa com a descarga de tensão e com os movimentos de prazer e
desprazer.

Como somos cativos da rede de sistemas simbólicos, o gozo a que temos acesso
tem sempre uma relação com o sentido, seja para afirmá-lo, seja para suspendê-lo.
Lacan usa o jogo de palavras “j’ouis-sens” (eu gozo do sentido) para evidenciar essa
dimensão inter-dita (“inter-dite”), na qual nosso gozo é intermediado pela relação à
linguagem, à palavra. Porém, o que ele avança no Seminário 20 (1972-73), é a questão
das diferentes posições que se pode ter na nossa relação ao Outro da linguagem, que não
tem outro que o assegure. O que, portanto, implica uma falta inexorável nesse campo,
que tem efeitos para a experiência do gozo. O gozo enquanto sexual, eminentemente
seccionado, é fálico. Ou seja, tem no falo um representante finito do hiato existente
entre o sujeito e o objeto, e joga com as diferentes estratégias de cernir esse hiato pelas
vias simbólico/imaginárias.

A suposição da existência enigmática de um gozo Outro, não fálico, dito


feminino, implica a relação à marca de um vão, um “gap”, uma falta de significante no
campo do Outro S(A/), da qual também se pode gozar, não positivamente, no sentido de
afirmar sua existência, mas experiencialmente, na perspectiva de sua “ex-sistência”,
para jogar com outro neologismo lacaniano, indicando isso que está fora da função de
referência, mas que nem por isso, deixa de trazer efeitos. Se a cadeia significante não
está fora das manifestações desse gozo Outro, certamente, não é na perspectiva de
cerni-lo com balizamentos finitos, ou representações. A hipótese do gozo Outro indica a
suposição de uma experiência que se dá para aquém e para além das determinações
subjetivas. Essa suposição indica que se a cadeia significante opera nele é em sua
infinitude, revelando a impossibilidade de qualquer significante que seja, vir a poder
cerni-lo. Daí a dimensão na qual esse revela-se para além da representação, implicando
afinidades com o que se afigura como gozo místico, embora não se reduza a ele. O
corpo comparece nessa modalidade de gozo na condição de alteridade radical, expressão
pulsional que se encontra para aquém e além do sujeito, não se restringindo às
determinações da cadeia significante que tece seu fantasma. Tal experiência não é se dá
propriamente na referência ao Outro da linguagem, mas conecta-se tanto ao que
fundamenta sua invenção, quanto ao que excede a esse campo, problematizando os
modos de incidência do real na experiência humana.

O texto freudiano “Mais além do princípio do prazer”(1920), como seu título o


indica, aponta isso que em nós não está limitado ao antagonismo das experiências de
prazer e dor, mas a dimensão paradoxal que nos liga simultaneamente à vida e a morte,
não propriamente numa perspectiva de contradição, mas de continuidade. Como se tal
continuidade afeita ao real, persistisse em nós, alheia aos ditames do campo do sentido.
E será sobre esse ponto acerca da inacessibilidade do real que jaz além do princípio de
prazer, que ficou para trás, velado pelo sim originário da afirmação primordial, àquela
que é dada na entrada na linguagem, que Alain Didier-Weill irá marcar uma
divergência nas concepções de Freud e de Lacan. “Para Freud, o encontro desse
inacessível é marcado pela dimensão traumática da perda, enquanto que para Lacan ele
é marcado por seu caráter misterioso requerendo à existência de gozo de ordem mística”
(Didier- Weill, 2010,p.117) .

É como se, para Lacan, estivesse indicada a possibilidade de um certo acesso ao


real que, embora seja inacessível ao desejo que encontra-se referido ao que é perdido,
não seria inacessível ao gozo. Sobretudo a um certo modo de gozo, referido a existência
de algo de outra ordem, uma ordem mística, diria eu, dessubjetivada.

Assim, ressaltando o misterioso pelo termo revelação, ele menciona que Lacan
encontrou na Bejahung, “a condição primordial para que do real venha se oferecer a
revelação do ser.” (Ibid. p.14) Será esse termo: “revelação” que, segundo ressalta
Didier-Weill, ensejará a hipótese da existência de um gozo de ordem mística.
Didier-Weill redefine a proposta lacaniana da existência dos dois tipos de
experiência de gozo diferentes. Como mencionamos acima, pelo gozo fálico, o
inconsciente se desvela na ‘escuta’ do sentido (j’ouïe-sens) (Ibid, p. 15) – trata-se de
desvelamento. É a relação do inconsciente com a significação, na qual o jogo do
significante serve para representar um sujeito e possibilita que este se aproveite disso e
responda com isso à dimensão traumática da perda. Essa experiência de gozo do
significante se faz em dois tempos: sideração e luz. Ela não é imediata e indica um gozo
próprio ao inconsciente. Porém, há também a experiência de um “gozo Outro”. Via pela
qual “o real se revela como lugar de existência de um verdadeiro começo” (Ibid, p. 15).
Trata-se de uma experiência imediata, em um só tempo, afeita à revelação. Essa
experiência não é a de um significante que remete a outro significante, e sim ao que se
passa na produção artística, quando um significante se abre a um real vibratório de cuja
existência a arte nos faz suspeitar. “Um tal real é o inaudito, ao qual reenvia uma nota
musical; o invisível ao qual reenvia um toque pictural” (Ibid, p. 16).

Por essa via, pode-se ver como o campo dos mistérios vincula-se à relação com
as origens e, por consequência, ao mistério da criação, com todo o amplo sentido que
isso pode ter. Nesse sentido, é preciso que se acentue que não à toa Lacan, no
Seminário Mais ainda (1972-73) , propõe o gozo Outro, em relação ao gozo fálico,
como gozo feminino. Há portanto, uma íntima associação entre o feminino e a criação,
mesmo a criação artística. Desse modo, Didier-Weill inspira a pensar que, para além
de questionar a ideia do desejo inconsciente como o mestre da criação, o que limitaria a
criação ao circuito sexual da relação com o Outro – , permite pensá-la como um recuo
ao começo, para situá-la em sua relação a “ Um mistério mais longínquo que o
inconsciente”, parafraseando o título de sua obra de 2010.

É portanto, a revelação que está em jogo, não a sideração. O gozo correlativo à


revelação é de uma experiência imediata, a qual podemos pressupor que indique uma
relação ao corpo, vivido possivelmente não como corpo próprio no sentido de aderido a
uma imagem conformadora de si mesmo, mas como corpo Outro, corpo que se entrega
à alteridade radical do pulsional, numa experiência paradoxal de imanência e
transcendência simultâneas. Experiência entretanto, não assegurado por nenhuma
vontade da consciência, e portanto nada garantida.
Na experiência de se emprestar à criação, nada garante que ela advirá. Há
sempre o risco de se ficar no vazio, ou no nada, como eu sugiro pensar. Esse nada não é
uma falta. Na falta o objeto está lá, ainda que indicado por sua ausência. A falta é falta
de algo. O risco de se entregar à experiência da criação é o risco de estar nela, em pura
perda, ou seja, há sempre o risco de ratear. Na proposição lacaniana de que a criação se
dê “ex-nihillo”, a partir do nada, encontra-se tanto sua afinidade com a força tanática,
como operadora desse pulo no abismo, quanto o resgate do poder combinatório de Eros,
evidenciando o embricamento pulsional presente no trabalho sublimatório ‘criacionista’.

No esteio do que Didier-Weill nos apresenta nessa obra de 2010, talvez


possamos pensar que a criação seja o nível máximo de dessexualização atribuído ao
trabalho sublimatório. Falo de níveis de dessexualização porque é verdade que, nas
atividades sublimatórias, existem diferentes níveis de afastamento do sexual, até se
tocar esse ponto verdadeiramente “hors-sexe”, “fora-do-sexo”, fora do sexual, no qual,
ainda que de modo um tanto mítico, há uma retomada do começo, onde não havia
secção, razão pela qual não havia também recalcamento. Que uma concepção de
feminino em psicanálise se associe a esse ponto da relação ao ‘gozo Outro’ e à criação,
me parece uma pérola inestimável. Mas aqui, é sempre bom lembrar que essa
designação do feminino não está balizada pela distinção de gêneros, ou pela oposição
masculino/feminino, mas sim é indicativa de uma relação a um começo, um ponto de
continuidade, fora da divisão sexual na qual o universo simbólico se apoiará.

Diferentemente do caminho sexual do desejo, no qual se avança buscando a


reedição do traço de memória do objeto perdido que supomos ter nos salvado do
desamparo, penso que o trajeto da criação parece ser aquele de recuar de tomar um
objeto como a “Coisa” ser perseguida, para se arriscar fora do circuito sexual,
entregando uma “libra de carne”, na aposta de que uma revelação pode advir. Talvez
esse seja um dos sentidos possíveis para a célebre frase atribuída à Picasso: “- Eu não
procuro, acho.” Então, se não se procura a “Coisa”, se pode encontrá-la pelo artifício da
criação e, com isso, atingir um nível paradoxal de satisfação, supondo-se nessa
experiência um “gozo Outro”. Eis então que um objeto, enquanto criado pode ter a
dignidade da “Coisa” perdida, dado que pode revelar-se em íntima conexão com o que
se deu no momento anterior à perda. Talvez aí esteja o fundamento da revelação que
interessa.
De um lado, apresenta-se a subjetividade no seu esforço de delimitação, de
separação, norteada pelas insígnias fálicas que lhe dão um contorno a partir da
afirmação desejante que inaugura o psiquismo e imprime em cada um de nós um projeto
heroico tecido nas tramas da fantasia, e apoiado num recorte corporal linguageiro e
imagético. De outro, essa subjetividade em evasão, ou dessubjetivação, indicando não a
separação, mas a revelação de uma continuidade que frui de uma relação ao infinito, ao
inaudível e ao imaterial, afeita ao mistério do feminino e de seu gozo, ainda que via, a
erotização da carne.
Aliás, se formos constituir uma memória das representações do corpo feminino
através dos tempos, talvez possamos localizar, basicamente, duas orientações bastante
distintas. Uma que enaltece o corpo feminino como figuração da potência fálica e outra,
que focaliza a carnalidade na perspectiva de sua evanescência. Proposta que, como
mencionamos acima, alinha-se à perspectiva barroca. E, é nesse sentido que
reconhecendo o barroquismo presente na obra da artista contemporânea Adriana
Varejão, eu e Kamila Costa, apresentamos um trabalho intitulado Memórias do
reviramento da carne ao corpo: de Bernini à Varejão (2016) como mencionado acima.
Enfatizamos como característicamente barroco aquilo que nos remete a incitação
de um gozo relativo à entrega de si, diferente de um corpo que se afirma falicamente. E
é desse modo que para além da dimensão em que o corpo pela cativação da imagem
serve de um lado para vestir as fantasias de desejo, tal como mencionamos
anteriormente, por outro, pela evidenciação da carne que pulsa borrando o contorno da
imagem, exacerbando o vigor do movimento e fazendo a “monstração” do pulsional,
evidencia para além do campo do desejo, o campo do gozo. Aquele com o qual Lacan
pretende ser identificado (Lacan, 1969-70)

Poderia prosseguir aqui apresentando uma leitura da lógica da sexuaçao tal como
proposta por Lacan, no seu seminário 20, Mais ainda (1972-73) e adentrando nos
avanços possibilitados por suas reflexões no Seminário 23, O Sinthoma (1975-76).
Porém isso estenderia por demais o escopo do que pretendi focalizar aqui, deixando
essa tarefa para um próximo momento.
Parte 2

O surgimento da psicanálise a partir do que ecoa no corpo.

"Meu suor me aliviava."

(Clarice Lispector, 1964)

“e quando a mão não alcança onde coça…?”

Começamos essa escrita traçando um percurso com alguns dos pontos


fundamentais da teoria psicanalítica para pensarmos a presença do corpo no setting
analítico. Eles permitirão uma aproximação e aprofundamento do leitor sobre a forma
como a psicanálise aborda, apresenta e trabalha o corpo. Como vimos, a clínica
psicanalítica tem nos mostrado a presença impetuosa do corpo em sua prática presente
tanto nos consultórios psicanalíticos, nos hospitais e nas instituições como nas
publicações acerca dos impasses que o mesmo coloca ao sujeito e ao analista na
atualidade (QUINET, 2004).
O aumento da inquietante presença do corpo no cenário clínico foi previsto por
Jacques Lacan (1966), que nos disse que o hiato entre o saber e o soma, provocado pelo
avanço da ciência sobre a abordagem médica do corpo, iria se expandir
proporcionalmente aos progressos da ciência, provocando o retorno do que esse campo
exclui. O saber científico nos apresenta um corpo fragmentado em números, tabelas,
gráficos e ressonâncias que acabam dando-nos a ilusão de que o corpo poderia ser
reduzido a uma máquina. Observamos com isso o retorno do que não tem lugar nesse
discurso. Ou seja, estamos falando aqui dos efeitos dos afetos, dos impasses diante de
um corpo marcado pelo desejo e por uma história.
Podemos afirmar que o protagonismo do corpo na expressão de questões
sociais, nos conflitos políticos, nas reivindicações identitárias e até mesmo como objeto
de consumo, são características da atualidade (LIPOVETSKY, 2005 e 2016,
AGAMBEN, 2017). Ético e político é o uso que o sujeito faz do seu corpo e dos
demais. Com Agamben (2017) afirmamos que o sujeito dá testemunho da relação que
estabelece com os corpos e que esse ato gera consequências sociais e pessoais.
Aprisionado no discurso da ciência e sofrendo os efeitos ferozes de um
capitalismo selvagem, o corpo faz sintoma, produz fenômenos, adoece, inibe-se e se
angustia. O avanço do capitalismo e das tecnologias não nos dispensa de refletir sobre
as formas de existir do sujeito bem como das possíveis consequências do avanço desses
discursos sobre o mesmo. Sobretudo no que se refere ao corpo.
Guilles Lipovetsky (2005) em seu livro “A era do vazio - ensaios sobre o
individualismo contemporâneo” aponta de forma bastante interessante a passagem de
uma idade moderna, marcada pela importância da produção e da resolução, para uma
idade pós-moderna, obcecada pela informação e pela expressão de si com a emergência
de um individualismo inédito. Se tínhamos na sociedade moderna a importância das
conquistas, a crença no futuro, na ciência e na técnica, na pós-modernidade temos
pessoas ávidas por uma identidade, por uma diferença que as localize, pela conservação
de si, pela diversão, pela realização pessoal imediata. Sendo assim, o corpo não aparece
mais como máquina (LIPOVETSKY, 2005, p. 13). Seu corpo é você e deve ser cuidado,
amado, exibido. O corpo aparece como instrumento de subjetivação nos tempos de hoje.
Vejam que essa afirmação data de 2005 e nos convoca a pensar nos efeitos desse
discurso nos sujeitos que ouvimos.
Se na Revolução Industrial víamos os emblemas mecânicos, a locomotiva, a
máquina a vapor, o relógio, “nas décadas mais recentes, porém, iniciou-se um processo
vertiginoso que continua até os dias de hoje: a transição do regime industrial para um
novo tipo de capitalismo, globalizado e pós-industrial” (SIBILIA, 2002, p.25). Esse é
um dos pontos que Sibilia trabalha no livro “O homem pós-orgânico: corpo,
subjetividade e tecnologias digitais”. A autora localiza nos últimos três séculos o
surgimento de diversas tecnologias para moldar os corpos. Na pós-modernidade, destaca
como tecnociências fundamentais que interferem na forma de pensar as pessoas e seu
mundo, a informática, as telecomunicações e a biotecnologia. Essas ciências vêm
permitindo a abolição das distâncias geográficas (internet), a cura e surgimento de
doenças, a crença na eliminação do envelhecimento e até da morte. Assim, “... a
tecnociência contemporânea almeja ultrapassar todas as limitações biológicas ligadas à
materialidade do corpo humano” (SIBILIA, 2002, p. 49).
A partir de 1955 quando o DNA - texto bioquímico que codifica as
especificações de cada indivíduo -, foi descoberto, a ciência ventila que o enigma da
vida foi decifrado. DNA é informação e o que vemos hoje é a passagem da metáfora do
homem-máquina para o modelo do homem-informação (SIBILIA, 2002). Se antes o que
se almejava era a compreensão das leis, do funcionamento desse corpo-máquina, hoje
podemos afirmar o sonho de um homem pós-orgânico, onde a seleção natural proposta
por Darwin é feita pelo próprio homem. Infelizmente, é o que vemos se materializar nos
tempos de hoje.
Agamben (2016) vai ainda mais longe. Em sua publicação “O usos dos corpos",
o filósofo italiano, reinventa, foucaultianamente, a problemática do cuidado de si e do
conhecimento de si, introduzindo um terceiro termo: o uso de si. Faz uma crítica ao uso
cego dos corpos, trazendo à cena a posição que os sujeitos têm ficado em relação ao
corpo, qual seja, o de escravo. Escravo como aquele cuja obra consiste unicamente no
uso do corpo.
O que caracteriza o discurso da atualidade no que tange ao corpo é a
possibilidade de domá-lo, modificá-lo e preservá-lo, gerando satisfação a qualquer
preço. Previna-se, adie a velhice e, alguns sonham!, evite a morte. Freud (1930 [1929],
porém, já havia dito que o corpo é uma das fontes do mal-estar do sujeito. Não há como
escamotear demais isso. E isso desde sempre..
Voltamos então ao início da psicanálise, marcado pelo corpo teatral da histeria e
seus ensinamentos clínicos reconstruindo a descoberta freudiana de um corpo erótico e
pulsional.

1.1 – Um corpo habitado pelo inconsciente.

“ah...isso que eu sinto...tem haver


com meu corpo”.

A existência no sujeito de um saber inconsciente, aproxima-se da falta de


explicação da medicina para alguns sintomas que colocam o corpo em destaque. Lacan
nos disse que a psicanálise “chega em um certo momento da história da medicina que
marca que ela não podia tratar de tudo, que ela tinha que fazer alguma coisa de novo”
(LACAN, 1975 a, p.18). Nos tempos atuais, da mesma forma, a psicanálise se reinventa
para acolher e trabalhar o que a clínica tem nos apresentado de novo.
Na análise, não temos de nos haver apenas com o simbólico, ou seja, com o que
conseguimos representar, mas também com o que está fora disso. O limite do dito tem
efeitos sobre o corpo. Freud ressaltava a importância do analista estar atento a como o
corpo se apresenta durante a sessão analítica. Lacan reforça esse ensinamento ao dizer
que “as dores que reaparecem, que se acentuam, que se tornam mais ou menos
intoleráveis durante a própria sessão, fazem parte do discurso do sujeito (...)” (LACAN,
1957-58, p. 337).
Há algum tempo, vem chamando nossa atenção o grande número de queixas em
relação ao corpo. São dores, mal-estares, lesões, manchas pelo corpo, diarréias,
desmaios, enxaquecas, anorexia, bulimia, cortes, impulsos para se arranhar e se morder
em situações limites, dentre muitos outros. Como escutar isso que optamos por chamar
aqui de fenômenos? Como a psicanálise trata o corpo que adentra as sessões?
O corpo é uma realidade para além da realidade bruta, visto que o inconsciente
nos mostra que a realidade não é um dado primário, ela é fantasmática. Vale lembrar
que o próprio uso do divã nos fez pensar que colocar o corpo em repouso permitiria ao
sujeito falar mais livremente… sem a interferência direta do corpo do analista, sua
imagem e expressões. Hoje estamos às voltas com os efeitos do atendimento on-line, de
como o analista pode se fazer presente ainda que remotamente e de como o próprio
sujeito coloca seu corpo nessa cena.
O sintoma se apresenta no corpo, tanto na medicina – sintoma como sinal de
uma disfunção –, quanto na psicanálise – sintoma como um modo particular de gozar. O
sentido que a psicanálise dá ao sintoma, porém, demarca seu campo de atuação: ele é
singular, a marca da existência de um sujeito e possui uma função para o mesmo. Os
sintomas são testemunhas do fato de que o desejo é estruturado em um impasse
(SOLER, 1998). O que significa isso? Relembramos um paciente marcado por uma
relação difícil com sua mãe. Uma mãe invasiva, agressiva, que colocava-o em um lugar
de resto, segundo o mesmo. Um dia ao comentar sobre uma tatuagem diz: “Tá vendo
essa cruz, tatuada nas minhas costas…é minha mãe”. Carregar a mãe nas costas, em
forma de cruz, sinalizava o peso dado por esse sujeito à própria mãe, mas também o
gozo de ser o mártir, aquele capaz de carregar esse Outro4 materno. O impasse,
desenhado no corpo, fez, dentre outras coisas, ele questionar e reelaborar parte dessa
relação conflituosa com a mãe, perguntando-se se isso tinha relação com suas
dificuldades em eleger uma mulher como sua.
O sintoma interroga cada um sobre aquilo que perturba seu corpo. E mais, Freud
nos disse em 1893 a no texto “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos:
uma conferência” que, nos fenômenos histéricos, há um uso específico do corpo, qual
seja, ele é veículo e expressão de um conflito inconsciente, resultado de um trauma, um
acontecimento que “deve ter uma relação especial com alguma parte do corpo” (Freud,
1893 a, p. 37/38). Ou seja, o corpo fala, ou melhor, permite que o sujeito fale. É como
“se houvesse a intenção de expressar o estado mental através de um estado físico; o uso
linguístico fornece uma ponte pela qual isso pode ser efetuado” (Freud, 1893 a, p.43)
Ao procurar responder à pergunta sobre a origem da histeria, Freud criou a
psicanálise. A histeria aparece como uma busca incansável de fazer falar aquilo que não
é possível dizer. O corpo participou, de forma bastante peculiar, da descoberta e do

4
Foi no Seminário 2, “O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise” (1954-1955) que Lacan
introduziu pela primeira vez o termo ‘grande Outro’, distinguindo-o do ‘pequeno outro’. O Outro foi
utilizado por Lacan para definir um lugar simbólico, o campo da linguagem e o tesouro dos significantes.
Com essa noção, Lacan situa a questão da alteridade; o grande Outro não é o semelhante, distinguindo-se
do parceiro imaginário, o pequeno outro.
desenvolvimento da psicanálise. O que afeta o corpo sempre fez parte do material
analítico. As queixas das histéricas eram queixas que envolviam o corpo. Os sintomas
que despertaram o interesse de Freud, pela primeira vez, eram essencialmente o que ele
denominava de sintomas somáticos, as conversões.
Dentro da transmissão freudiana destacamos alguns pontos que nos remetem
forçosamente ao corpo: a ‘complacência somática’ - facilidade do corpo em aceitar uma
carga psíquica que se condensa em uma somatização (FREUD, 1910, p.227) -; a pulsão;
a satisfação auto-erótica, as zonas erógenas, o narcisismo, a definição do eu como uma
projeção de superfície (Id, 1923); o masoquismo primário, a inibição, o sintoma e a
angústia.
O inconsciente e a pulsão são as duas formas de alteridade radical que
constituem o sujeito como dividido e, ao mesmo tempo, permitem uma nova definição
do corpo. A pulsão sobretudo. Força localizada entre o psíquico e o somático que
procura e encontra satisfação através de objetos variados, a pulsão resulta do fato da
nossa relação com os objetos ser mediada pela linguagem, introduzindo assim uma
distância entre eu e o objeto através do qual se obtém satisfação.
Apesar de ter sofrido diversas alterações durante a obra freudiana, a pulsão
materializa o estranho que nos habita e nos faz agir em busca de uma satisfação que
nem sempre é prazerosa. O que Lacan anos depois veio nomear de gozo: pontos de
satisfação singular que servem de referência no modo como o sujeito se posiciona no
mundo, diante do Outro e dos objetos. Posições que se repetem e que imprimem uma
marca na relação particularizada entre o sujeito e o seu corpo.
A partir de Freud, a verdade do inconsciente começa a ser ouvida através do que
o corpo pulsional coloca em cena. Freud nos apresentou o corpo histérico como um
corpo erótico, que não obedece às leis da anatomia, corpo disputado, em um primeiro
momento, pela pulsão do eu e pela pulsão sexual.
Desde o início, Freud afirmou que o sintoma histérico encontra seu
determinante, não em uma lesão orgânica, mas em uma representação: a lembrança de
um trauma. Assim, os sintomas dos pacientes “histéricos baseiam-se em cenas de seu
passado que lhes causaram grande impressão, mas foram esquecidas (traumas)” (Id,
1914a, p.19) deixando porém uma marca no corpo. Ou seja, desde o início, o sintoma
aparece na psicanálise atrelado ao corpo e como resultado de algo insuportável.
O sintoma histérico demonstra que as leis que regem a histeria são as mesmas
que comandam a formação dos sonhos, ou seja, as que dirigem o inconsciente. Em seu
fascínio pela forma como o inconsciente toma o corpo, Freud destaca a histeria como
uma defesa contra a recordação (representação) de um evento traumático de natureza
sexual ocorrido na infância. Da crença em uma sedução real à formulação da realidade
psíquica, ou seja, da fantasia, delineia-se o mecanismo do recalque e a formação do
sintoma histérico. A representação é recalcada - retirada da consciência - e o afeto vai
para o corpo (Id, 1915b). É com a sexualidade, que anima o corpo e, ao mesmo tempo,
aponta para sua incompletude e desamparo, que damos continuidade ao nosso percurso.

1.2 - A histeria descobriu a ação pulsional.

“A antiga noção de inconsciente, o Unerkannt,


apoiava-se precisamente na nossa ignorância
quanto ao que se passa em nosso corpo.
E isso as histéricas encenam bem” (Lacan, 1975-76, p. 145)

Antes de Freud e Charcot (1825-1893), a histeria foi definida a partir de


diferentes vieses. Na Antiguidade, foi relacionada ao útero - termo que está na origem
de seu nome - e à ausência de relações sexuais e filhos. Acreditava-se que a causa dos
sintomas era gerada pela falta de satisfação sexual. Engano originado na equivalência
entre sexualidade e ato sexual. Na idade média a histeria é definida como a ação do
diabo sobre o corpo. Um corpo que não se controla teria relação com o demônio.
Foram necessárias as formulações de Charcot, para que a histeria se retirasse do
campo do piti – o pitiatismo – e seus sintomas ganhassem um outro sentido, revelado
pelo sujeito em estado de hipnose. Freud, a partir de sua proximidade com Charcot,
deixou-se seduzir por esses mistérios que se apresentam no corpo, mas escutou nos
mesmos a presença de uma outra realidade em sua origem: a realidade inconsciente e
sua relação com o sexual.
Vemos que as noções de conflito psíquico e de defesa aparecem na psicanálise
na mesma época em que a sexualidade já se impunha, a partir da histeria, como algo de
que o sujeito não pode saber. O sintoma deriva de um conflito entre o eu – que em um
primeiro momento equivalia à consciência - e a pulsão sexual (FREUD, 1905, p.155).
Tal conflito ocorre quando uma representação de natureza sexual se mostra
incompatível com o restante da vida representativa, com o eu. É “precisamente a vida
sexual que traz em si as mais numerosas oportunidades para o surgimento de
representações incompatíveis” (Id, 1894, p.59).
O traumático possui então relação com o sexual. A sexualidade é sempre
infantil, parcial, insatisfeita, sem a existência de um saber constituído a priori sobre a
mesma. A descoberta da sexualidade infantil e sua relação com as neuroses recortaram
um campo essencial do funcionamento do corpo pois introduzem no mesmo as
dificuldades que a diferença pode trazer.
O sexual vem se apresentar para Freud através dos sintomas histéricos. “Os
sintomas mais comuns da histeria de conversão – paralisias motoras, contraturas, ações
ou descargas involuntárias, dores e alucinações – constituem processos catexiais que são
permanentemente mantidos” (Id, 1926[1925], p.113). Assim, o corpo que a psicanálise
nos apresenta difere de um corpo natural, de uma extensão inerte. Ele é um corpo
pulsional (Id, 1905).
A histeria vem mostrar que todas as partes do corpo e todos os órgãos internos
têm a possibilidade de serem erogeneizados (Ibid, p.173).

O sentido das zonas erógenas como aparelhos acessórios e


substitutos da genitália evidencia-se com maior clareza, dentre
as psiconeuroses, na histeria, mas isso não implica que ele deva
ser menos valorizado nas outras formas de doença (Ibid, p.160).

As zonas erógenas são como “um número limitado de bocas na superfície do


corpo, são os pontos de onde Eros terá de extrair sua fonte” (LACAN, 1959-60, p.118).
Um corpo cheio de bocas, furos, cortes, marcas oriundas da própria história do sujeito.
As pulsões parciais - oral, anal e genital -, possuem um papel importante na
formação dos sintomas das psiconeuroses (FREUD, 1905, p.158), que são marcados
também pela fixação do sujeito nessas respectivas fases. Foi a partir dos sintomas
neuróticos que Freud chegou à formulação da fantasia inconsciente, do complexo de
Édipo e da sexualidade infantil. A pulsão permeou todo esse desenvolvimento e, em
1905, Freud estabeleceu uma primeira definição para a mesma. O conceito de sintoma
permitiu o enlace entre a pulsão, o desejo, a sexualidade e a fantasia. O sintoma implica
uma satisfação pulsional, revela um desejo inconsciente, e origina-se das experiências
infantis às quais a libido se encontra fixada. A fantasia, por sua vez, aponta para uma
relação íntima entre a história do paciente e sua doença (Id, 1893-5, p. 184).
Temos na histeria a marca da plasticidade. Plasticidade dos sintomas, das
formas de questionar o saber estabelecido, de causar o desejo no Outro. Assim, ela elege
mestres para poder questioná-los, mas, como estes mudam, é esperado que a histeria
também altere sua maneira de colocar o desejo e o gozo em cena. Mantendo o que a
caracteriza enquanto estrutura – o desejo insatisfeito – ela altera a roupagem que coloca
seu corpo de gozo em cena, sempre em resposta ao Outro de sua época, seu
interpretante (Rosa, 2019).
Assim, a proximidade entre o sintoma e o corpo vai sendo cada vez maior. Freud
afirmou que “o núcleo do sintoma psiconeurótico – o grão de areia no centro da pérola –
é formado de uma manifestação sexual somática” (FREUD, 1912, p.266). Ou seja,
independente no sintoma que se apresenta no campo da neurose, há uma manifestação
somática, o envolvimento do corpo.
Se começamos essa leitura pela histeria logo chegamos à possibilidade de todo
sintoma, no campo da neurose, fazer referência ao corpo. Ao destacarmos a dimensão
pulsional do sintoma, introduzimos necessariamente o corpo em sua dinâmica. Como
excluir o corpo da satisfação pulsional se ele é a sua fonte? Ao definir o sintoma como o
retorno da representação recalcada que fornece uma satisfação pulsional ao sujeito,
Freud estabelece essa ligação como necessária.
Se distinguimos no sintoma sua dimensão significante, ou seja, sua frase, sua
vertente simbólica e sua dimensão pulsional, isso se faz justificado muito mais por um
intuito didático. Na prática esses dois elementos estão unidos. O que do sintoma se
apresenta como irredutível à decifração, não o faz senão como produto da própria
articulação significante. Voltaremos a isso mais adiante.
É precisamente naquilo que do corpo habitado pela linguagem não se faz
representar pelo significante e persiste enquanto dor, excesso, incapacidade e repetição
– que reconhecemos a vertente de gozo do sintoma. Ou seja, “a possibilidade de o
sintoma persistir mesmo depois de decifrada a articulação significante que faz adoecer o
corpo, denuncia que tal operação produz, ela própria, um excedente” (Miller, 2004,
p.73). Iremos nos deter um pouco mais nesse trio constituído por corpo - pulsão e
satisfação.
1.3 - A pulsão subversiva

“O Isso fala, emergido da teoria,


confluía com a mais cotidiana experiência clínica”
(LACAN, 1959-60, p.252).

A definição de pulsão, alça o corpo a uma posição central na determinação dos


caminhos psíquicos subvertendo, assim, o dualismo cartesiano mente-corpo. Como
vimos, o sintoma para a psicanálise não permite a exclusão da dimensão do corpo,
independentemente de seu aparecimento na histeria ou na neurose obsessiva, como
veremos adiante.
Com o ensino de Lacan, destacamos a relação entre a pulsão e o real, conceito
lacaniano que vem apontar para a impossibilidade de tudo representar. O sintoma coloca
em evidência a dimensão pulsional na cena analítica, convocando um posicionamento
ético do analista, bem como da psicanálise, frente à mesma. Tal discussão se faz
fundamental para direcionarmos as futuras formulações sobre o posicionamento do
analista frente ao corpo na clínica.
A psicanálise vem tratar do corpo pulsional. As pulsões constituem uma nova
realidade corporal, irredutível ao natural. Não há, portanto, um desvio do natural, do
que poderíamos chamar de instinto e sim a pura diferença. O corpo pulsional é
anárquico, visão contrária à da biologia e à da medicina que tomam o corpo em sua
materialidade como um corpo único, organizado e regido por leis específicas.
É a partir do campo da pulsão, sobretudo da ação da pulsão de morte, força que
nos move para além do princípio do prazer, que abordamos as paralisações, encenações,
dores, auto-punições, e angústias que o corpo nos apresenta na clínica. Freud nos disse
que a pulsão é o que há de mais árduo na constituição de uma neurose (FREUD, 1937).
Por que será?
Apostamos que a pulsão seja um dos operadores teóricos que circunscreve, de
forma bastante importante, a problemática do corpo na psicanálise. A partir da inserção
do homem na linguagem, suas funções orgânicas são elevadas ao campo erótico, assim,
o que é da ordem da necessidade é subvertido pelo registro do desejo. Mesmo sabendo
que o desejo não recobre todo o campo da necessidade.
A idéia de Freud (1910) é que nas zonas erógenas do corpo (oral, anal, genital)
se somam satisfações diferenciadas: uma de tipo biológico-natural que coincide com a
idéia da existência de uma função vital e outra pulsional. Contudo, a variabilidade de
objetos através dos quais a pulsão se satisfaz, juntamente com sua força constante,
impedem-nos de equivalê-la ao instinto, que exige objetos específicos e possui uma
temporalidade peculiar.
A pulsão é marcada por uma temporalidade própria, necessária para que ela
complete seu circuito (LACAN, 1964): ela parte da fonte, contorna um objeto e retorna
à borda corporal. Apesar de sua força ser constante - somos influenciados por sua busca
de satisfação a todo o momento - o tempo necessário para que ela parta da fonte e
contorne o objeto é variável. Conforme veremos, a pulsão oral, por exemplo,
apresenta-se em tempos diferenciados em um sujeito regido por uma compulsão
alimentar e em um sujeito que não apresenta esse sintoma. De forma diversa, o instinto
se caracteriza por ser pontual, aparecendo em tempos fixos e sem grande variação,
como ilustra o período da reprodução nos animais, o cio.
Além de estar metapsicologicamente localizada no corpo, Freud nos diz que a
excitação sexual também se localiza na tentativa de reviver uma satisfação corporal com
a estimulação da zona erógena (FREUD, 1905). Ou seja, a excitação está remetida a
uma primeira satisfação que se perdeu, havendo, portanto, uma defasagem nesse jogo.
Nosso intuito é demonstrar como, desde o início, as atividades que possuem uma
relação com a preservação da vida estão sob o efeito da pulsão, ou seja, elas não existem
de forma autônoma, puramente fisiológica.
As diversas organizações sexuais geram um prazer parcial e local, assim
denominado por não haver ainda a unificação das pulsões para a obtenção do prazer
genital. Isso não quer dizer que haja a possibilidade de um prazer pleno, quando o
sujeito é despertado para a pulsão genital. A era do “genitalismo” normativo
demonstrou o equívoco de alguns leitores de Freud, que enxergaram em sua obra a
possibilidade de se ascender a uma satisfação plena, com a conseqüente eliminação dos
problemas que o sujeito vive em relação ao sexo. Este equívoco foi discutido e
combatido por Lacan (1972-73) a partir da afirmação da não complementariedade entre
os sexos.
Quando esse prazer inicial, oriundo das zonas erógenas, é intenso, há o risco de
que o meio de obter prazer na excitação se transforme no alvo em si. Freud, ao falar da
possibilidade da fixação da satisfação pulsional em uma determinada zona - oral, anal,
dentre outras -, aponta para a implicação do corpo no gozo, para a localização do gozo
no corpo (SOLER, 1989, p.103).
A satisfação pulsional não coincide com a satisfação da necessidade porque a
pulsão não é um dado natural e se encontra entrelaçada desde a origem com o Outro.
Vemos isso também em Freud (1950[1895]) a partir do semelhante que vem em auxílio
do bebê na experiência de satisfação dando, com isso, um sentido ao seu choro. A
pulsão demanda outra satisfação, a satisfação libidinosa.
Freud afirmou que a pulsão resulta de estímulos constantes oriundos do corpo e
que, ao mesmo tempo, só temos acesso a ela através de um representante psíquico. A
pulsão aparece como um conceito que está entre o psíquico e o somático. Ela é “um dos
conceitos da delimitação entre o anímico e o físico” (FREUD, 1905, p.159). Ressaltou
(1915) sua importância ao classificá-la como um conceito básico da psicanálise, apesar
de ainda ser algo obscuro. Tão obscuro que Freud nos disse da necessidade de abordá-lo
de diferentes ângulos (Ibid, p. 123). Ela “é um estímulo aplicado à mente” (Ibid, p.
124); surge “de dentro do organismo” (Ibid, p. 124); é uma força que imprime um
impacto constante (Ibid, p. 124). Mantém “sua origem em fontes de estimulação dentro
do organismo” (Ibid p. 125), e – o que para nós é fundamental – “nenhuma ação de fuga
prevalece contra elas” (Ibid, p, 125), resultando daí seu caráter imperativo.
Além de ser um conceito básico para a psicanálise, ele é fundamental, sobretudo,
quando abordamos o corpo (LACAN, 1964). Vemos que “as pulsões (...) constituem as
verdadeiras forças motrizes por detrás dos progressos que conduziram o sistema
nervoso” (FREUD, 1915, p, 126). Ainda assim, a teoria das pulsões foi a “que mais
penosa e cautelosamente progrediu. Contudo, essa teoria era indispensável” (Id, 1930
[1929], p.121).
O conceito de pulsão aponta para um fato fundamental: o inconsciente possui
uma relação necessária com o corpo. Freud nos diz:

Se agora nos dedicarmos a considerar a vida mental de um


ponto de vista biológico, uma pulsão nos aparecerá como sendo
um conceito situado na fronteira entre o psíquico e o somático,
como o representante psíquico dos estímulos que se originam
dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da
exigência feita à mente no sentido de trabalhar em
conseqüência de sua ligação com o corpo (Id, 1915, p. 127,
grifo nosso).
Nesse sentido, a pulsão resulta da ligação do inconsciente com o corpo e impõe
um trabalho ao psiquismo na busca de satisfação. Ao atribuir uma relação particular
com o corpo, a pulsão, como um efeito do inconsciente sobre o organismo, estabelece
uma relação de estranheza entre o sujeito e seu corpo. Isso ocorre pelo fato do sujeito
não controlar5 a pulsão - ela é acéfala (LACAN, 1964) – em sua busca de satisfação.
Assim, ele não se reconhece nesse movimento pulsional, apesar de se localizar aí.
Freud afirmou que a doutrina das pulsões era sua mitologia (FREUD, 1932-33 a,
p.76). Em que sentido podemos abordar esse termo ‘mitologia’? Há o perigo de tomar a
mitologia por misticismo, colocando a pulsão como etérea. Garcia-Roza indica outro
caminho ao relacionar o termo mitologia com o que aponta para o limite, “conceito que
aponta para (...) os limites da própria teoria (...)” (GARCIA- ROZA, 1995, p.66), o
limite de querer diferenciar o psíquico do somático.
Apostamos, com Freud (1915), que o conceito de pulsão vem dizer das
possibilidades do sujeito se relacionar com seus objetos assim como da satisfação que
retira daí.. Ao localizar a fonte da pulsão no corpo e definir seu objeto como o mais
variado possível, Freud permite que, posteriormente, Lacan (1964) afirme a existência
de um circuito da pulsão (LACAN, 1964).

(Lacan, 1964, p. 169)

O alvo (Goal) da pulsão é o seu trajeto (Aim), que tem como fonte e ponto de
retorno uma borda (Bord) corporal ou zona erógena. É nesse trajeto que ela se satisfaz,

5
Apesar de não haver controle do movimento pulsional há a possibilidade de ação sobre o mesmo, o que
aponta para a responsabilidade do sujeito frente ao mesmo e vias diversas de trabalho sobre essa força.
sua satisfação ocorre através da repetição desse circuito. Ao mesmo tempo, essa
satisfação não é sem objeto (localizado no circuito na letra a). É o trajeto da pulsão que
articula seus elementos numa espécie de circuito de ida e vinda à borda corporal, através
do contorno do objeto.
Há então um caráter circular no trajeto da pulsão: “o alvo da pulsão não é outra
coisa senão esse retorno em circuito” (Ibid, p.170). Reconhecemos esse ponto em Freud
quando ele nos apresenta o auto-erotismo, definido como a boca que se beija a si
mesma. “A atividade da pulsão se concentra nesse se fazer, e é reportando-o ao campo
das outras pulsões que poderemos talvez ter alguma luz” (Ibid, p.184, grifo do autor). O
“se fazer” aparece em Lacan em referência ao terceiro tempo da pulsão, o tempo
reflexivo, estabelecido por Freud (1915), ao escrever a gramática da pulsão. Nesse
sentido, é impossível retirarmos o corpo do circuito da pulsão e de sua ação, ou seja, a
ação da pulsão fornece uma satisfação ao corpo.
A pulsão porta em si um fator traumático e, ao mesmo tempo, possibilitador: ela
nunca obtém uma satisfação (Befriedigen) total, permitindo que o movimento pulsional
nunca cesse. Há “algo da natureza da própria pulsão que nos nega satisfação completa e
nos incita a outros caminhos” (FREUD, 1930 [1929], p.111), ou seja, ao sintoma. O que
é a satisfação da pulsão? Esse é um enigma sustentado por Freud durante sua obra
(MILLER, 2005). Lacan, porém, é claro:

é no nível da pulsão que o estado de satisfação deve ser


retificado. Esta satisfação é paradoxal. Quando olhamos de
perto para ela, apercebemo-nos de que entra em jogo algo de
novo – a categoria do impossível. Ela é no fundamento das
concepções freudianas, absolutamente radical (LACAN, 1964,
p.158).

A pulsão manifesta o que há de desnaturado6 no organismo humano. É a prova


de que o simbólico não é uma superestrutura capaz de tudo representar. Há um resto da
inserção da linguagem no organismo. Resto no sentido de rastro e resto como espaço
vazio. Daí a frase de Lacan (1975-76), de que as pulsões são o eco da palavra no corpo,
eco de um dizer. Sendo assim, ela é efeito do simbólico que historiciza nosso corpo e

6
A palavra emergiu no mundo “miticamente natural”, ou seja, onde não havia linguagem, como um signo
arbitrário, não-natural. A palavra significou e ressignificou o que denominamos de corpo, seus sentidos,
definições, faltas e gozo. Falamos então de uma desnaturalização do organismo com o surgimento de um
corpo.
escreve circuitos por onde o movimento pulsional irá percorrer. A pulsão comporta uma
dimensão histórica (LACAN, 1959-60, p.256), estando ligada às marcas e às imagens
que colhemos do Outro. É através delas, juntamente com a repetição e o gozo, que
conseguimos ter sinais do movimento pulsional que age no sujeito.
O corpo é desnaturalizado, habitado pela pulsão que exige satisfação a todo
tempo e aponta para além da representação. Quando falamos que a pulsão nunca se
satisfaz totalmente, que não há um objeto específico para ela, a justificativa não se
encontra no fato de haver um problema, uma deficiência na linguagem, e sim pela perda
da ordem natural que guia a relação entre o homem e o mundo. “Tendo perdido sua
suposta organização natural, o corpo, enquanto corpo natural, perdeu sua forma”
(GARCIA-ROZA, 1990, p.17).
Ao postular uma identidade entre o mecanismo do inconsciente, estruturado
como uma linguagem, e o da zona erógena, Lacan (1964) trabalhará mais
especificamente a relação entre o significante e o gozo da pulsão. Além de tomar o
inconsciente em sua relação com a linguagem, compara o mesmo com uma zona
erógena que abre e fecha, tal qual uma borda. É nesse sentido que destacamos a
importância das manifestações do corpo na sessão analítica. À abertura do inconsciente
pode corresponder alguma alteração no corpo, um adoecimento, uma alergia, o
surgimento de furúnculos, por exemplo. Nas palavras de Lacan: “é no que algo no
aparelho do corpo é estruturado da mesma maneira, é em razão da unidade topológica
das hiâncias em jogo, que a pulsão tem seu papel no funcionamento do inconsciente”
(LACAN, 1964, p.172). Freud também denominou o corpo de aparelho (FREUD,
1926[1925], p. 137). O termo ‘aparelho’ é definido como um utensílio que possui um
uso (FERREIRA, 2008, p.128). Na perspectiva da psicanálise, o corpo, como um
aparelho, possui uma função na materialização do desejo e na localização do gozo.
O corpo então pode ser definido como um aparelho, marcado pela ação do
inconsciente e da pulsão, que traz à cena outro ponto fundamental para clínica
psicanalítica: a angústia. A angústia se fez presente na clínica e na escrita de Freud,
fazendo com que ele afirmasse que a angústia aparece no corpo. Desde a histeria de
Dora e sua tosse que a identifica com o pai, passando pela fobia de Hans e sua angústia
de castração frente à diferença sexual, os escritos de Schreber que apresentam os
efeitos da angústia em seu corpo putrefato como consequência do delírio de ser
transformado na mulher de Deus, o dedo preso pela pele no retato da lembrança infantil
do Homem dos Lobos e o labirinto de pensamentos que circulam temor da tortura na
obsessão do Homem dos ratos, isso para citar rapidamente alguns dos exemplos
clínicos, vemos Freud estar atento à forma como a angústia pode se apresentar na fala
do paciente através do corpo.

1.4 - Sentimos a angústia no corpo

O corpo é pulsional, auto-erótico, depende do narcisismo para se constituir, é


marcado pela fantasia e pela sexualidade infantil. Com esse corpo, o sujeito adoece e faz
sintoma. Não há sintoma que não envolva o corpo, pela própria satisfação pulsional que
o mesmo implica. Mas constituir um sintoma não necessariamente apazigua a pulsão. O
sujeito se angustia diante da exigência de satisfação da pulsão. Freud destacou a
proximidade entre angústia e sintoma. Para ele, a angústia se apresenta por trás de todo
sintoma (FREUD, 1930[1929]). O sintoma é tomado como uma tentativa do sujeito
fazer alguma coisa com a angústia, como Freud (1926[1925]) nos demonstrou com suas
formulações sobre a fobia – sintoma que localiza a angústia para o sujeito. Se o sintoma
pode ser uma resposta do sujeito à angústia, resposta à qual ele se apega e se identifica,
o questionamento do mesmo também gera angústia. Começa a se desenhar um enlace
entre o sintoma - que necessariamente envolve o corpo - e a angústia, - que como
veremos é corporal. Vejamos mais de perto essa relação.
Freud nos diz que a angústia é um tema inacabado, “nom liquet” (Id,
1926[1925], p.112) dentro da psicanálise. Ainda há muito a pesquisar e a nós resta,
particularmente, ver como a angústia se apresenta através do corpo na clínica da
neurose.
A primeira e mais originária das condições determinantes da angústia é a
exigência pulsional. Para Freud, tratava-se de uma perturbação econômica, um excesso
de libido inutilizado e era a ele que a angústia respondia. Um dos resultados mais
significativos da investigação psicanalítica “é a descoberta de que a angústia neurótica
nasce da libido” (Id, 1905, p.212), da “elevada adesividade ou fixabilidade dessas
impressões da vida sexual” (Ibid, p.228, grifo do autor).
Ao relacionar a angústia com um excesso de libido, Freud vai se aproximando da
idéia de que a sexualidade angustia. Suas palavras, ainda no início de sua obra,
dizem-nos que a angústia de seus pacientes neuróticos “tinha muito a ver com a
sexualidade” (Id, 1950[1982 – 1989], p. 235). Há algo na sexualidade que perturba.
A teoria de Freud sobre a angústia esteve presente desde o início de sua obra e
sofreu algumas alterações no decorrer de seu percurso. A mais importante delas faz
referência ao processo de recalque. A angústia derivava do recalque, era resultado de
um excesso de libido que, por se manter represado no aparelho psíquico e sofrer ação do
recalque, gerava angústia. Posteriormente, Freud (1915b) inverteu esse processo: o
sujeito se angustia com alguma coisa referida à castração, e então recalca o elemento
insuportável. A partir daí, a ligação entre a angústia e a castração se constitui de
maneira clara.
A articulação entre a angústia e a sexualidade sempre se manteve presente em
Freud. O coito interrompido e a masturbação estavam relacionados com o adoecimento
nas neuroses atuais: a angústia era resultado do excesso de libido que ficava retido no
aparelho psíquico, sendo a libido oriunda do próprio movimento pulsional (FREUD,
1905). Quando Freud estende o campo da sexualidade para além do ato sexual em si, a
angústia vai sendo, aos poucos, relacionada com o que o encontro sexual coloca em
cena: a castração.
Assim, desde o início da obra de Freud, a angústia interroga o estatuto da
satisfação da pulsão, apontando já para o que depois Freud nomeia com a pulsão de
morte. A dificuldade de ser colocada em palavras, seu tempo de urgência, o elevado
sofrimento que impõe ao sujeito, gerando inclusive situações de risco para o mesmo, faz
com que relacionemos a angústia à pulsão de morte, ao gozo que invade o sujeito.
Freud não falou de gozo de uma maneira conceitual e estruturada, cabendo a
Lacan essa tarefa. Podemos encontrar indicativos do conceito de gozo nas entrelinhas de
Freud: no ganho secundário do sintoma, onde encontramos uma satisfação que traz
consigo um sofrimento, na repetição, na resistência e, englobando tudo isso, na pulsão
de morte que coloca em cena o além do princípio do prazer.
Em “Inibição, sintoma e angústia” (1926[1925]) Freud não considera mais a
angústia como o efeito transformação da libido, e sim como uma reação sobre um
modelo específico a situações de perigo. O que causa angústia é o desamparo, a
ausência de referências, o medo de perder (Id, 1933[1932] c, p.91).
Ele formulou então que o eu é a sede real da angústia (Id, 1926[1925]). Apesar
de ter a função de um escudo protetor, não há como o eu se proteger contra os estímulos
internos, ou seja, contra a pulsão, daí seu caráter avassalador. A angústia deixa de ser
um processo que irrompe de maneira automática à consciência e surge como uma
liberação pelo eu, a partir do encontro do sujeito com a castração.
Com a segunda tópica do aparelho psíquico, Freud (1923) fez um novo desenho
do mesmo e o divide em três instâncias: eu, isso e supereu. O eu sofre algumas
alterações em sua conceituação, visto antes já aparecer nos escritos de Freud mas
sempre associado à consciência. Agora ele não equivale mais à consciência, pelo
contrário, há uma grande parte do eu que é inconsciente (Id, 1923, p.31), ele é
apresentado em suas relações com o isso (sede das pulsões) , com o supereu ( instância
que ao mesmo tempo legisla sobre o que seria o certo/errado, cobra e promete o alcance
do ideal) e, ao mesmo tempo, é definido como um eu corpóreo.
O eu é, “primeiro e acima de tudo, um eu corporal; não é simplesmente uma
entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície” (Ibid, p.39,
grifo nosso). Em uma nota de rodapé Freud (1923) complementa: “o eu em última
análise deriva das sensações corporais, principalmente das que se originam da superfície
do corpo” (Ibid, p.39). Nesse sentido, é através do corpo, enquanto uma projeção de
superfície, superfície passível de sofrer inscrições, que a angústia se faz ouvir.
Além de ser habitado pelo inconsciente, uma projeção de superfície e sede da
angústia, o eu possui grande proximidade com as pulsões. “O eu não se acha
nitidamente separado do isso; sua parte inferior funde-se com ele” (Ibid, p.37) ou de
forma mais clara, “o eu está sujeito também à influência das pulsões, tal como o isso, do
qual, como sabemos, é somente uma parte especialmente modificada” (Ibid, p.53).
Como sabemos da angústia? Tradicionalmente vemos a angústia ser apresentada
como algo que se sente, ela é um afeto que não engana (LACAN, 1962-63) e, ao mesmo
tempo, expressa a dificuldade de ser representada em palavras. “A angústia se faz
acompanhar de sensações físicas mais ou menos definidas que podem ser referidas a
órgãos específicos do corpo” (FREUD, (1926 [1925]), p.131). Temos notícias da
angústia pelos sinais que o corpo nos fornece. É no corpo que seus efeitos se
manifestam.
No final de sua obra, Freud mantém a definição da angústia como uma “reação a
uma perda, uma separação” (Ibid, p.129) que se faz acompanhar de sensações físicas
mais ou menos definidas (Ibid). Tais sensações seriam “provas de que as inervações
motoras – isto é, processos de descarga – desempenham seu papel no fenômeno geral da
angústia” (Ibid, p.131). Respiração ofegante, aperto no peito e frio na barriga ilustram
que a angústia é um estado especial de desprazer, com atos de descarga ao longo de
trilhas específicas que envolvem o corpo (Ibid, p.132).
O fato de a angústia ser, sobretudo corporal, estando na base da maioria dos
sintomas, faz dela um ponto de passagem obrigatório nessa escrita. Ao falarmos de um
frio na barriga, um nó na garganta, vemos que o corpo pode fornecer uma localização
para a expressão da angústia. O sujeito tenta colocar em palavras o mal-estar oriundo da
angústia, formular um saber sobre o mesmo e, quem sabe, transformá-lo em um
sintoma.
A angústia deixa claro que o significante não basta para representar o que se
passa com o corpo. Em alguns momentos, justamente por isso, sonhamos, com a
tentativa de tentar escrever parte do que nos assola. Retomamos aqui um sonho de
Freud que articula, saber, angústia, corpo e feminino a fim de materializarmos para o
leitor o que estamos trazendo aqui.

1.5 - O sonho da injeção de Irma


“O que repudio não só está em mim como também age em mim”.
(FREUD, 1925, p. 176 )

As cenas que antecedem o sonho de Freud.


Freud (1900) nutria uma amizade com Irma e sua família. Mesmo assim,
tomou-a em tratamento por algum tempo. Em seus relatos, Freud nos diz que o
tratamento teve êxito parcialmente: a paciente ficou livre de sua angústia histérica, mas
não perdera todos os sintomas somáticos. Finalizado o tratamento de Irma, Freud
encontra, um tempo depois, seu amigo Otto, e escuta dele que o mesmo esteve
recentemente com Irma. Pergunta, então, notícias de sua antiga paciente. Otto diz a
Freud que Irma está bem mas não inteiramente. Freud identifica nessas palavras uma
recriminação, como se houvesse prometido demais à paciente e falhado. Nessa mesma
noite, Freud, aflito, escreve o caso clínico de Irma com a ideia de entregá-lo a Breuer,
seu colega e também mentor. Freud adormece e sonha.
No sonho, Freud encontra Irma em um grande salão, puxa-a para o lado e a
repreende por ainda não ter aceitado a sua solução. “Disse-lhe: ‘se você ainda sente
dores é realmente apenas por culpa sua’!”. Respondeu ela: “ah, se o senhor pudesse
imaginar as dores que sinto agora na garganta, no estômago e no abdômen… - isto está
me sufocando “ (Freud, 1900 p. 141). Freud se preocupa e pensa que pode ter deixado
passar, em sua escuta, algo orgânico. Ele a leva até a janela e examina sua garganta. Ele
vê uma grande placa branca. Freud chama seus amigos para também examinarem a
garganta de Irma e eles confirmam o que Freud vê, dando um diagnóstico de infecção.

“Não muito antes, quando ela não estava se sentindo bem, meu
amigo Otto lhe aplicara uma injeção de um preparado de
propil, propilos, ácido propiônico...trimetilamina (e eu via
diante de mim a fórmula desse preparado, impressa em grossos
caracteres). Injeções como essas não deveriam ser aplicadas de
forma tão impensada… E, provavelmente, a seringa não estava
limpa (Ibid, p. 142)”.

Vemos nesse relato o sujeito Freud diante do corpo de sua paciente que sinaliza a
presença de uma mancha na garganta, uma mancha de infecção, uma mancha que Freud
toma como materializando seu fracasso na escuta desse caso. Para além da mancha, há
ali um corpo de mulher. Freud busca, podemos ler, de forma aflita, uma explicação para
a doença de Irma que o absolva. Curiosamente pede a ela que abra a boca, ele quer ver o
que se passa com ela. Banhado pelo desejo de cura, pode ter deixado passar algo que
permaneceu incurável. Para além disso, sua angústia produz esse sonho, sua escrita e
sua publicação. Do lugar de paciente, coloca em cena sua vontade de saber diante da
boca aberta de uma paciente, sem porém escamotear a mancha que restou desse
processo. Uma metodologia, talvez possamos dizer assim, que iria se repetir ainda
tantas vezes nos textos de Freud: trazer à tona seus impasses no trabalho com os
pacientes como forma de avançar e questionar a teoria psicanalítica.
Retomando o sonho de Freud vemos que o sonhador se serve de uma fórmula -
seria o mesmo em relação a um sintoma ? -, como um modo de tratamento para esse
encontro com o real que lhe é insuportável. O sonho, como uma manifestação do
inconsciente, surge como uma tentativa de dar um contorno ao que é próprio do sujeito,
ao que lhe aparece como intratável. O próprio Freud nomeou de umbigo dos sonhos, um
resto ininterpretável presente nos sonhos. Um ponto vazio, que o significante não
recobre e que, curiosamente, ele chama de umbigo dos sonhos (Freud, 1900, p. 557,
v.5).
Finalizando essa primeira parada, destacamos aqui algumas cenas em que Freud
está diante do paciente e leva em consideração o que sinaliza seu corpo. As pernas de
Elizabeth que doem e paralisam, o cheiro de pudim queimado de Miss Lucy, a
encenação do parto de Ana O, o corpo alvo da Sra. K diante de Dora, o olhar raivoso do
pai da jovem homossexual, o gozo anal do homem dos ratos e sua compulsão pelo
emagrecimento, o corpo invadido e apodrecido de Schreber, sua desintegração e
transformação em mulher, o horror de Hans diante da diferença sexual e seu desamparo
frente às sensações sexuais em seu próprio corpo.
Seguimos inspirados pelo estilo freudiano. Nas próximas paradas destacamos a
importância da imagem e os diferentes usos do corpo na anorexia e na bulimia, na
neurose obsessiva e em pacientes trans. Para instigá-los um pouco mais, destacamos
abaixo algumas falas (clínicas mas não apenas) que mostram como o corpo pode ser
instrumento para a fala e o não-dito.

“Tô Bege! Ui....tô é vermelha” .


“Engrossa a voz!, gritava meu pai.”
“Meu corpo estava endurecido pelo sofrimento, tinha uma trava, estava
travado.”
“O corpo pulsa... desejo bruto.” “O corpo me acordou.”
“Minha voz sumiu pouco antes da sessão.” “Sentia um olhar cego sobre mim.”
“Esse tema…. do corpo... é um deserto na minha fala.”
“Quando não suporto o silêncio, mexo com o corpo....faço algo”.
“Quando acordei do pesadelo fiquei colocando a mão em mim, me beliscando,
para ver se eu estava ali.”
“As palavras que me tecem... as palavras que me vestem. Cobrem, recobrem,
desvelam. As palavras que eu tranço, que eu modelo, que me cobre.”
“Estava presa… presa no corpo de menina, de uma menina de 4 anos”.
“Estou desligado do meu corpo.”
Parte 2
A importância da imagem: eu sou uma imagem?

“A imagem especular tem, certamente, uma face de investimento,


mas também uma face de defesa. É uma barragem contra o pacífico do amor materno”
(Lacan, 1960-1961/1992, p. 378).

“Por corpo entendo tudo que pode ser limitado por alguma figura (...)”
(DESCARTES, 1641, p. 127). Se não soubéssemos quem é o autor dessa frase,
rapidamente faríamos referência às primeiras formulações lacanianas sobre a
importância do limite da imagem para a constituição de um corpo. Vemos que mesmo
para Descartes, que definiu o corpo apenas como extensão, ter um contorno é
fundamental para que possamos chamar ‘essa extensão’ de corpo.
“O estádio do espelho como formador da função do eu” (1949) é um dos
primeiros textos onde Lacan problematiza o processo de apropriação, pelo sujeito, da
imagem de si mesmo. Quais são os efeitos de se reconhecer em uma imagem? A
imagem é construída a partir de uma outra, a do semelhante. É o corpo despedaçado,
demarcado pela pulsão, que dá sinal de sua existência, em um momento anterior à
constituição de uma imagem. As formulações desse texto nos fazem indagar por que a
imagem seria tão valorizada pelo sujeito; sobretudo a imagem de si mesmo. “Existe na
imagem algo que transcende o movimento, o mutável da vida, no sentido em que a
imagem sobrevive ao vivo” (LACAN, 1960-61, p.340). Nós inclusive temos a
possibilidade de nos reconhecermos (ou não) em nossa imagem antes mesmo de
falarmos.
Começamos então a nos aproximar da ideia de um corpo enquanto imagem, que
traz uma unidade para o eu, uma referência que permite uma identificação. A
identificação implica um movimento de localização, um "eu sou….. ".
Lacan (1949) vem apontar a existência de uma hiância entre o organismo
biológico e a imagem do corpo; há aí uma abertura, um percurso a ser construído pelo
sujeito. O corpo é derivado do narcisismo, ou seja, da constituição de uma imagem
própria capaz de ser investida de libido. A função do investimento especular situa-se no
interior da dialética do narcisismo, tal como Freud (1914) a introduziu. O estádio do
espelho é tomado como um fenômeno de duplo valor: “valor histórico, porque marca
uma virada decisiva no desenvolvimento mental da criança. Em segundo lugar, ele
representa uma relação libidinal essencial com a imagem do corpo” (LACAN, 1951,
p.9).
O estádio do espelho não é simplesmente um momento do desenvolvimento do
sujeito como o título do texto poderia dar a entender. “Tem também uma função
exemplar, porque revela certas relações do sujeito à sua imagem, enquanto Urbild do
eu” (Id, 1953-54, p.91). Quando essa imagem é percebida pelo sujeito, ela já se
apresenta como uma Urbild ideal, algo que subsiste por si.
Ao localizar no estádio do espelho a constituição de uma imagem própria, via a
imagem de um outro, Lacan ressaltou que essa vivência resulta de uma alienação na
imagem do outro, o que pode possibilitar uma primeira identificação, mesmo que
imaginária, entre o eu e o outro. Como ele mesmo nos diz, o estádio do espelho

É a aventura original através da qual, pela primeira vez, o


homem passa pela experiência de que se vê, se reflete, e se
concebe como outro que não ele mesmo (...) a imagem do corpo
dá ao sujeito a primeira forma que ele permite situar o que é e o
que não é eu (Ibid, p.96).

Destaca-se então que a materialidade do corpo é subjetivada a partir de um


processo de identificação com o semelhante no qual se produz um engano primordial e
estruturante: o eu. O que é estruturante é justamente esse engano. Qual seria? O sujeito
se engana ao apostar que se reduz à imagem que vê no espelho. O espelho coloca em
destaque a relação com a imagem do outro, a possibilidade de se tomar a imagem do
outro como própria, e mais, o fato do corpo surgir a partir de um processo de
libidinização da imagem, seu investimento e sua apropriação. Vale destacar, então, que
o eu, também em Lacan, é uma imagem que faz referência à ideia da apropriação de um
corpo.
Vemos que a imagem de si se torna o primeiro objeto de investimento libidinal e
o amor pela mesma é determinado pela função identitária que ela possui. Essa imagem
do Eu reflete um corpo com o qual travamos, no decorrer da vida, uma série de
modificações em busca de uma identidade e de uma certa “coerência” imaginária.
Porém, o que vemos é a assunção de uma imagem virtual, que de fato não representa
tudo. Alienado a essa função da imagem, o Eu percebe seu corpo como uma projeção
marcada pela sua história fantasmática, que não corresponde à totalidade de sua
experiência, gerando uma insatisfação constante com a imagem de si, uma estranheza
em relação a um Eu forjado por uma imagem. A imagem se torna assim um troféu
almejado ou um fardo a ser carregado e transformado. A imagem enquanto moldura nos
faz pensar em suas diversas funções: a que enquadra e também a que limita (Soler,
2021).
Tendo dito a importância da constituição de uma imagem própria, retomamos o
percurso realizado por Lacan em relação à construção do texto sobre o estádio do
espelho desde o início e seus reflexos no esquema óptico. Como ele surgiu no ensino de
Lacan?

O espelho e o Outro
Lacan nos propõe um momento constitutivo para o eu: o estabelecimento de uma
imagem onde o sujeito se reconhece minimamente. A primeira elaboração do estádio do
espelho ocorreu em 1936, sendo publicado em 1949 o texto que encontramos hoje nos
Escritos (1998). Nesse momento inicial, a ênfase de todo esse processo foi dada aos
fatores imaginários, à função da imagem em si.
Lacan teve a oportunidade de exprimir seu ponto de vista sobre a aquisição da
própria imagem no homem, durante o “XIV Congresso Psicanalítico Internacional de
Marienbad”, realizado em 28 de agosto de 1936, cuja exposição foi interrompida por
Ernest Jones, após apenas dez minutos de apresentação. Apesar de o motivo alegado ter
sido a falta de tempo para as apresentações (JORGE & FERREIRA, 2005), localizamos
nesse fato a presença de uma resistência às inovações que o ensino lacaniano já
proporcionava à psicanálise.
No que tange especificamente a esse texto, destacamos a influência da imagem
do outro na constituição do eu, bem como a utilização da biologia e de autores da
psicologia do desenvolvimento para a formulação de sua teoria. Lacan retomou o texto
original para o “XVI Congresso Internacional de Psicanálise” em 17 de julho de 1949,
em Zurique (DOR, 1989, p. 78), ainda intitulado “Le stade du miroir. Theorie d’um
moment structurant et génétique de la constitution de la réalité, conçu em relation avec
l’expérience et la doctrine psychanalytique”7. A constituição que se destaca no título é a
da realidade, ou seja, ao constituir uma imagem de si, o sujeito tem acesso também à
realidade. O eu se torna modelar para o relacionamento do sujeito com o outro.
No início dos anos 30, Wallon, psicólogo do desenvolvimento, publicou um
artigo intitulado “Como se desenvolve na criança a noção de corpo próprio”, (apud
JORGE & FERREIRA, 2005, p.40), descrevendo uma etapa qualitativa realizada pela
criança quando a mesma passa do que ele denomina fase do imaginário para a
simbólica. Inspirado nesse processo, mas introduzindo o plano do inconsciente no
mesmo, Lacan o define como um momento constitutivo onde a criança descobre e se
apropria da imagem de seu corpo.
Ao retomar essa comunicação para o congresso de Zurique, Lacan fez uma
leitura mais estruturalista que desenvolvimentista do mesmo. Apesar de sua
comunicação conservar o substantivo estádio, o estádio do espelho deixa de ser pensado
como o momento de um processo genético para ser a matriz estruturante da
identificação. A partir dessa identificação imaginária, a criança cai, tal qual uma presa,
na armadilha do que acredita ser a sua identidade. “O estádio do espelho é uma
experiência que se organiza em torno de uma primeira captação pela imagem onde se
esboça o primeiro momento da dialética das identificações” (LACAN, 1948, p.115).
A identificação é definida aqui como a transformação produzida no sujeito
quando ele assume uma imagem (Id, 1949), ela permite ao homem situar a sua relação
imaginária e libidinal com o mundo em geral (Id, 1953-54). Há uma função particular
para a “imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade – ou,
como se costuma dizer, do Innenwelt com o Umwelt” (Id, 1949, p. 100, grifo do autor),
do mundo interno com o mundo externo. Assim, é a constituição de uma imagem

7
“O estádio do espelho. Teoria de um momento estruturante e genético da constituição da realidade,
concebido em relação com a experiência e a doutrina psicanalítica”.
própria o que permite a relação entre o sujeito e o mundo. Nesse sentido, justifica-se
porque ela é um recurso tão utilizado pelos sujeitos, para marcar uma identificação ou
localização de algum impasse subjetivo.
Essa experiência organiza-se em torno de três tempos fundamentais que não se
apresentam linearmente e, sim, concomitantemente. Primeiramente a criança percebe a
imagem de seu corpo como a de um outro ser de quem ela tenta se aproximar. É através
do outro que a criança vivencia suas experiências e se orienta, dando origem, inclusive,
a uma relação estereotipada. É isso o que Lacan (1948) define como transitivismo, ou
seja, a possibilidade de a criança responder, em espelho, ao que vê no outro.
Num segundo tempo desse estádio, ocorre algo decisivo para o processo de
identificação. A criança consegue distinguir a imagem que aparece no espelho do que
está fora do espelho e, num terceiro momento, a criança sabe que o reflexo do espelho é
uma imagem, não é nada mais que uma imagem, mas é a dela.
Essa fase simboliza o início da constituição do eu e pressupõe, em seu princípio
constitutivo, seu destino de alienação na imagem. Vemos então que surgimos no campo
da alienação: o eu se constitui a partir da imagem do outro. E ainda, “o eu é isso em que
o sujeito só pode se reconhecer inicialmente alienando-se” (Id, 1953a, p.30).
Lacan deu destaque aos efeitos do reconhecimento do sujeito em uma imagem.
Para isso, retirou algumas formulações da psicologia do desenvolvimento que estuda o
comportamento do bebê com o intuito de evidenciar a diferença entre a inteligência dos
humanos e a dos primatas. Partiu de uma minuciosa descrição comportamental de
Wallon, que demonstrou que o bebê, entre seis e dezoito meses, passa por várias etapas
através das quais chega a reconhecer, em determinado momento, a sua imagem no
espelho.
A partir dos seis meses, ainda sem ter o controle da marcha, mas estreitado por
algum suporte humano ou material, o bebê “supera, numa azáfama jubilatória, os
entraves desse apoio, para sustentar sua postura numa posição mais ou menos inclinada
e resgatar, para fixá-lo, um aspecto instantâneo da imagem” (Id, 1949, p. 97). Em
função do desenvolvimento neurológico, o ser humano é prematuro no domínio da
motricidade voluntária. A imaturidade neurológica predominante nos primeiros 6 meses
de vida do homem seria originária de uma falta de mielinização cerebral o que gera a
ausência da coordenação motora.
O chimpanzé, porém, segundo os trabalhos do psicólogo W. Köller, durante o
primeiro ano de idade, apesar de superar o filhote do homem em inteligência
instrumental, não se reconhece no espelho. Nas palavras de Lacan, “o filhote do
homem, numa idade em que, por um curto espaço de tempo, mas ainda assim por algum
tempo, é superado em inteligência instrumental pelo chimpanzé, já reconhece não
obstante como tal sua imagem no espelho” (Ibid, p. 96).
Reconhecer sua imagem no espelho é uma experiência acompanhada de um
intenso júbilo, júbilo que parece ter uma função em si mesmo, já que nele a criança se
detém e realiza, por identificação, a assunção da unidade de seu corpo, até então
indiferenciado em relação ao corpo da mãe, ao mundo exterior e vivido como
fragmentado. O estádio do espelho pode ser definido, então, como

um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência


para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no
engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem
desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua
totalidade que chamaremos de ortopédica – e para a armadura
enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com
sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental (Ibid, p.
100).

Na unidade corporal, adquirida pela assunção da imagem, Lacan situará a


fundação do eu (Ibid, p. 98), reservando-lhe um estatuto de ficção - pois o que existe de
fato é o corpo despedaçado -, a imagem não passa de uma miragem, um destino de
alienação.
Destacamos, então, que a imagem possui uma articulação com o gozo, aqui
representado no júbilo, desde as formulações de Lacan sobre o estádio do espelho. Vale
repetir que o segredo da jubilação da imagem é o encobrimento da falta (Id, 1966a,
p.74). O júbilo aponta para uma satisfação e o gozo, presente no mesmo, é o da
totalidade e não o de um objeto parcial (MILLER, 2005).
A forma total do corpo pela qual “o sujeito antecipa numa miragem a maturação
de sua potência só lhe é dada como Gestalt...” (LACAN, 1949, p. 98). Uma Gestalt é
capaz de ter efeitos formadores sobre o organismo, como nos indicam os exemplos
citados por Lacan em relação ao mundo animal, como o desenvolvimento das gônadas
nas pombas após a visão de um animal da mesma espécie (Ibid, p. 99). Os “efeitos
formadores” sobre o organismo humano são efeitos estruturantes para o eu, que
fornecem a ele uma consistência imaginária.
A unidade corporal é uma organização complexa que sustenta e isola uma forma
num complexo de formas. Lacan ressaltou, porém, que a Gestalt do corpo próprio não é
apenas o contorno visual da forma do corpo sobre o fundo que a bordeja, ela depende de
uma nominação simbólica. Na assunção jubilatória de sua imagem especular, a criança
manifesta “a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa formação primordial,
antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem
lhe restitua, no universal, sua função de sujeito” (Ibid, p. 97).
A imagem do corpo próprio constitui uma matriz simbólica para o sujeito e não
uma matriz imaginária como se poderia esperar, caso mantivéssemos um olhar sobre
esse estádio exclusivamente em sua relação ao registro do imaginário8. O estádio do
espelho permite, de maneira sutil, a articulação do imaginário ao simbólico, ele fornece
a “regra de partilha entre o imaginário e o simbólico” (Id, 1966a, p.73) ao apontar a
importância da imagem e, ao mesmo tempo, fazer dela uma matriz simbólica. Pensamos
que a imagem que o sujeito vê no espelho deixa um registro, é acompanhada de
significantes que a costura, daí o surgimento de uma matriz simbólica. O papel do
simbólico9 no acesso à imagem especular ganhará cada vez mais destaque.
Por mais que a imagem tenha a função de velar o despedaçamento do corpo e a
divisão do sujeito, é através dela que esses pontos também aparecem. A imagem
presentifica a constante possibilidade do retorno do corpo despedaçado através de “um
auto-quebramento, de um auto-dilaceramento, de uma auto-mordida, diante daquilo que
é ao mesmo tempo ele e um outro” (Id, 1960-61, p.341). O corpo é, em sua origem,
desconexo devido à desordem do corpo pulsional. As imagens de castração,
emasculação, mutilação, desmembramento, desagregação, eventração, devoração e
explosão do corpo que a clínica nos fornece, retratam esse corpo despedaçado (Id, 1948,
p.107).
Se por um lado o estádio do espelho permite a ideia de um continente e um
conteúdo (Id, 1953-54), ao destacar a importância da delimitação de uma imagem, não
devemos pensar o corpo somente como extensão, mesmo nesse momento inicial. A
imagem do corpo é um objeto sobre o qual se modelam todos os objetos de
8
Lacan nomeou três registros diferentes que constituem a realidade psíquica para o sujeito. Imaginário,
simbólico e real estão presentes nos textos de Lacan desde o início, mas mudam de estatuto durante seu
ensino. Destacamos aqui o registro do imaginário como sendo aquele do sentido dado pela imagem do
outro, da não dialetização,onde o eu se forma em imagem ao outro. O registro do sentido único, do
significado marcado pelo narcisismo.
9
O simbólico é o registro da linguagem, que assinala a relação sempre faltosa entre as palavras e as
coisas.O registro da linguagem é o do mal- entendido, visto a palavra não recobrir toda a materialidade da
coisa. Marcado pelo duplo-sentido, atravessa e fura o imaginário, permitindo um novo uso das palavras.
investimento libidinal do sujeito em uma relação especular. Mas desde o estádio do
espelho existe algo que escapa a esse processo.
Perguntamos como o Outro participa da constituição da imagem do eu. Lacan
(1953-54) propõe então uma nova versão do estádio do espelho: o esquema óptico.
Através da construção de um modelo óptico composto de dois espelhos, destaca-se a
importância do significante para a constituição da imagem especular.
Para que essa imagem seja fundada e esta se abra a uma dialética, é preciso que
intervenha, mais além do imaginário, o simbólico, encarnado no grande Outro, tesouro
de significantes, alteridade por excelência. É na medida em que o terceiro, o
significante, intervém na relação do eu com o pequeno outro, que algo pode funcionar,
algo que acarreta a fecundidade da própria relação narcísica (Id, 1960-61, p.341-42).
Destacamos então que o esquema óptico trata do lugar do Outro10 na constituição
do sujeito – particularmente na constituição de uma imagem própria – assim como da
introdução da criança no universo da linguagem. Há “uma nominação a ser incorporada
pelo infans para que a este seja franqueada a identificação especular” (FERNANDES,
2000, p.98).
Ao utilizar-se da ótica para demonstrar o que se passa na constituição de uma
imagem, Lacan relembra Freud que desenhou um modelo do aparelho psíquico que não
possui uma “localização anatômica” (FREUD, 1900, p.567). Na carta 52, enviada a
Fliess, Freud comenta o aparelho que será dito, mais tarde, na “Interpretação dos
Sonhos” (1900, p. 567), ótico. Em suas palavras, “proponho simplesmente seguir a
sugestão de visualizarmos o instrumento que executa nossas funções anímicas como
semelhante a um microscópio composto, um aparelho fotográfico” (Ibid) – aparelhos
em que, de forma curiosa, o lugar onde as imagens se formam não corresponde a
nenhuma parte tangível do aparelho. “Este modelo representa um certo número de
camadas permeáveis a algo análogo à luz, cuja refração mudaria de camada para
camada” (LACAN, 1964, p.48).
Servindo-se do jogo das imagens reais e virtuais fornecido pela ótica, Lacan vai
salientar o lugar estruturante da imagem para o sujeito se colocar na realidade. Em suas
palavras:

10
O Outro é sobretudo um lugar (Lacan, 1954-55). O lugar da linguagem, da alteridade que vem nos
nomear antes mesmo de existirmos. A mãe costuma ocupar o lugar de primeiro grande Outro mas não só.
A cultura, o simbólico, a escola, as referências para o sujeito podem encarnar esse lugar para o sujeito.
Por um outro lado, existe em óptica uma série de fenômenos de
que se pode dizer que são inteiramente reais, porque também é
a experiência que nos guia nessa matéria, mas em que,
entretanto, a todo instante, a subjetividade está engajada.
Quando vocês vêem um arco-íris, vêem algo de inteiramente
subjetivo (...). Ele não está lá. (...) E, entretanto, graças a um
aparelho fotográfico vocês o registram (...) (Id, 1953-54, p.93).

Destacamos o uso da ótica em Lacan, pois é com ela que ele destaca o papel do
subjetivo na construção da imagem. O subjetivo intervém de maneira definitiva na
constituição do mundo objetivo, o qual serve de paradigma para a construção de nosso
eu, nosso corpo. É próprio da imagem o investimento da libido, energia da pulsão. “O
termo libido não faz senão exprimir a noção de reversibilidade que implica a de
equivalência de um certo metabolismo das imagens” (Id, 1953a, p.17).

Fonte: LACAN, [1953-1954] 1986, p. 147.

A imagem é uma via para a expressão e a localização das dores, satisfações,


angústias do sujeito. Lacan nos aponta isso ao situar o gozo em sua relação com a
imagem desde o início de seu ensino. Ao fazer referência à ‘jubilação do sujeito’, ainda
no estádio do espelho, é em relação à imagem especular que o gozo aparece, lembrando
que o gozo aqui faz referência à satisfação pulsional.. Apesar de raramente utilizar esse
termo nos Escritos (1998), Lacan se refere ao gozo de Schreber, justamente em relação
às alterações e às invasões que sofre na imagem de seu corpo. Por efeito dos milagres
divinos, os órgãos e membros do corpo de Schreber foram prejudicados, destruídos,
deformados (SCHREBER, 1903, p. 127 a 135).
Também encontramos na experiência analítica a presença frequente de imagens
inesquecíveis, difíceis de se apagarem. Essas imagens, que parecem conter o gozo do
sujeito, que o retêm, que o aprisionam, apontam para a ligação entre o imaginário e o
gozo, para a presença do gozo no imaginário (MILLER, 2008 a). A fixação do sujeito
em uma determinada imagem o paralisa, angustiando-o. O que estaria na base dessa
dinâmica?

3.1 Com a imagem eu me defendo.

“Se o eu é dito narcísico, é porque, em certo nível,


há alguma coisa que suporta o corpo como imagem”
(LACAN, 1975-76, p.146).

O sujeito da psicanálise é vazio. Tanto não tem um significante que o represente


integralmente, visto ser necessário ao menos dois para que isso ocorra, quanto não está
ligado de forma natural a um objeto específico que determine sua satisfação. O registro
do imaginário vem, então, muitas vezes, velar esse desamparo primordial com sentidos
genuínos: o que se oriunda do eu, do espelho e, em última instância, do corpo.
Quando nos referimos ao eu, falamos de superfície e de projeções, e assim,
colocamos em destaque sua dimensão topográfica. Com isso, tentamos mostrar que
tomar o eu na extensão de uma superfície responde às necessidades de explorar, tanto na
teoria como na clínica, esse lugar onde se expressam os conflitos inconscientes do
sujeito (FREUD, 1923).
O imaginário é o registro psíquico desenvolvido por Lacan em referência aos
apontamentos freudianos sobre o narcisismo e a libido, o eu e a agressividade (JORGE
& FERREIRA, 2005). A imagem é o ponto de convergência que serve à subjetivação e,
ao mesmo tempo, ponto de fixação da libido. A imagem do corpo se encontra
aprisionada no próprio lugar onde ressoa o apelo da totalidade. Lacan nos diz que a
idéia imaginária do todo tal “como é dada pelo corpo – como baseada na boa forma da
satisfação, naquilo que, indo aos extremos, faz esfera – foi sempre utilizada (...)”
(LACAN, 1969-70, p. 29).
Ao se perguntar como o corpo pode ser representado, o que do eu se reflete,
quais são seus limites e pontos cegos, Lacan destaca o que o analista também se
questiona diante das queixas do sujeito que se apresentam através do corpo. Ao ressaltar
o momento em que as imagens de despedaçamento aparecem no processo analítico, ele
nos diz que elas se apresentam quando o sujeito está às voltas com a elucidação dos
problemas mais precoces de seu eu (Id, 1951, p.8), ou seja, haveria uma ligação entre o
que se passa no eu, seus conflitos e impasses, e a forma como o sujeito se relaciona com
o corpo. Dificuldades mesmo de natureza pré-subjetiva. Há o que se expressa pelo eu
em sua corporeidade e o que frui no padecimento da falta desse contorno.
Entre as queixas mais frequentes que desde o início nos incitaram a realizar essa
pesquisa, a dor se destaca na fala dos pacientes. Vemos que a dor também intrigou a
Freud, sendo considerada o ponto clínico a partir do qual elaborou sua teoria (MILLER
ET AL, 2003, p.167). Que lugar a dor pode ocupar na dinâmica libidinal do sujeito?
Uma pessoa atormentada pela dor e mal-estar “deixa de se interessar pelas coisas
do mundo externo, (...) ela também retira o interesse libidinal de seus objetos amorosos”
(FREUD, 1914, p.89, grifo do autor) e coloca-o no corpo. É importante destacarmos
que a dor pode ser tomada como uma tentativa de relançar o sujeito em seu narcisismo,
ela reflete um apelo ao olhar e à busca de sentido. Freud nos disse que adoecer e sentir
dor permitem o acesso à verdade do sujeito. Por que um homem precisa adoecer para ter
acesso a sua verdade? (Id, 1917 [1915], p.252) Verdade inconsciente, verdade sobre
seus limites e impasses.
Perguntamos, então, se a dor não seria uma tentativa de localizar algo do
insuportável no corpo, de transformar o mal-estar geral, a angústia sentida em um
mal-estar do corpo. Se, por um lado, o padecimento do corpo serve de alerta para o
sujeito de que algo está acontecendo com ele, mesmo que ele não saiba sua procedência
e como fazer para eliminá-lo, por outro lado, as dores, inexplicáveis pela ciência e pelo
próprio sujeito, representam o não-senso encarnado.
Sentir dor é um dos sinais da consistência narcísica do corpo, na medida em que
nela o sujeito nos dá provas de que tem um corpo (LACAN, 1975-76). A dor aparece
justamente no momento em que o eu se depara com algo que exige a alteração de suas
coordenadas, como uma perda, uma separação ou uma mudança brusca. Ela é uma
possível resposta do sujeito frente ao real sem deixar de ser, ao mesmo tempo, um
direcionamento para ele.
Uma paciente fica tomada por enjôo, mal-estar e dores pelo corpo após os
encontros amorosos frustrantes. Freud dizia que “entre a premência da pulsão e o
antagonismo da renúncia ao sexual situa-se a saída para a doença (...)” (FREUD, 1905,
p.156). O sujeito se defende, é isso que nossa experiência nos mostra, com seu eu, com
sua doença.
3.2 - A imagem como consistência
Vimos que, desde o início do ensino de Lacan, o corpo se apresentou enquanto
imagem. Uma imagem na qual o eu se reconhece. Fazendo um rápido percurso pelo
ensino de Lacan, destacamos que o inconsciente ganhou cada vez mais destaque em sua
relação com a linguagem, fazendo com que Lacan se centrasse em como o simbólico
determina o imaginário, como o significante organiza a imagem corporal. O corpo como
consistência imaginária é determinado pela incidência de um suporte simbólico, pelo
valor dado pelo sujeito às palavras ouvidas, repetidas, silenciadas e mal-ditas.
A linguagem introduz a falta e aponta para a possibilidade de se operar com ela.
Ao falar que o significante é vazio de sentido, que em si ele nada significa, Lacan
(1969-70) utiliza como metáfora o vaso, ou seja, o que delimita a forma do vaso é o
vazio que o habita. Onde mais poderíamos localizar o vazio, além do significante?
A imagem começa a ser trabalhada como o que faz tela ao que não se pode ver
(MILLER, 2008 a, p.117). A imagem que mostra é, por sua vez, uma imagem que
esconde, que mostra para esconder (LACAN, 1956-57). Assim, o corpo também passa a
ser apresentado como o que é capaz de mostrar e velar o real. Tal qual o véu. Tal qual o
corpo em relação ao desejo, o véu que esconde faz existir o que não se pode ver.

● ● ●
Sujeito objeto nada

Fonte: LACAN,1956-57, p. 158.


Se não temos o véu da imagem, não há como fazermos frente ao nada. O véu
permite que esse nada se transforme em objeto e possa ser explorado. Da certa forma, o
corpo é como um véu que permite que o desejo, a rigor inconsciente, mostre suas
coordenadas.
Com o Seminário 10 (1962-63), a imagem passa a ser abordada não só como
aquela que fornece um contorno ao eu, mas como aquela que, para se constituir, requer
a presença do objeto a, ordenando o percurso pulsional. A imagem do corpo passa a ser
definida como o enquadre no qual se inscreve um vazio.
A angústia é abordada como aquilo que se sente justamente quando não nos
reconhecemos na nossa imagem, quando a mancha, presente em cada imagem - tal qual
o ponto cego do retrovisor - ganha lugar na imagem vista. O que chamamos de mancha
aqui é aquilo que não se encaixa bem, que não é reconhecido11.
Nos últimos seminários de Lacan, o registro do imaginário aparece de uma
forma diversa do apresentado nos primeiros. Em um primeiro momento temos o
imaginário como sendo uma forma de abordar a realidade que prioriza o sentido, o eu
definido em seu espelho, a rivalidade quando a diferença aparece, o sonho de ‘dois se
fazer um’, da imagem enganadora.
No final de seu ensino, o imaginário é definido como corpo, como consistência.
Consistência que não deriva de uma completude (ainda que imaginária) e sim de um
continente delimitado por seus furos. Não devemos reduzir, então, o imaginário,
presente nos desenvolvimentos dos nós, ao estádio do espelho, à imagem do corpo,
visto que o que está em destaque ali é a forma como superfície e furos convivem.
Consistência quer dizer ter uma materialidade, o que mantém junto, e é por isso que ela
é simbolizada por um continente.
O imaginário é o registro que permite o grude, o ajuntamento dos pedaços
desordenados do auto-erotismo, gerando uma consistência ao eu (LACAN, 1974-75).
Complementando a definição do corpo como um tecido – véu – que, ao ser esgarçado,
mostra seus furos, Lacan (1975-76), em alguns momentos, define o mesmo como um
saco de pele que abriga os órgãos. Um saco que, pelo seu contorno, fornece consistência
à desordem do auto-erotismo.
Ao mesmo tempo, como um registro não funciona sem o outro, a consistência
corporal decorre do próprio pensamento (simbólico) que torna o corpo uma unidade
narcísica (Id, 1975-76). Com Lacan afirmamos que é necessário que o sujeito acredite
que possui um corpo; esse engano é fundamental para que o mesmo possa habitá-lo. Na
verdade ele sai fora a todo instante (Ibid). A forma como podemos abordar o corpo na
teoria e na clínica, “um corpo tal como esse com que vocês se suportam, é muito
precisamente esse algo que, para vocês, tem o aspecto de ser o que resiste, o que
consiste antes de se dissolver” (Id, 1974-75, lição de 18/02/75).
Lacan estreita o laço entre o imaginário e o corpo e não representa mais esse
último como um vaso - o que ocorreu em seus desenvolvimentos do esquema óptico - e
sim como um saco: “é no saco do corpo que se encontra figurado o eu (...) alguma coisa
11
Trabalharemos essa dimensão da mancha na parte dedicada à escuta de pacientes Trans.
que justamente faria buraco aí, por deixar entrar o mundo por aí, por necessitar que esse
saco fosse, de alguma forma, fechado pela percepção” (Ibid, lição de 17/12/74).

Não o evoca em termos da forma, mas em termos de saco; o


corpo é um saco com orifícios, orifícios em que objetos vêm
desempenhar seu papel, eventualmente ‘tampões’, o que
permite entender que é um Imaginário relacionado com o
objeto a como consistência corporal (SOLER, 1998, p. 99).

Ao afirmar que o narcisismo se constitui como o nó fundamental do homem


(LACAN, 1975a, p.54), visto que o mundo é concebido a partir da concepção que o
homem tem de seu corpo, vemos a importância que o imaginário ganha com os nós. É o
narcisismo, como ponto fundamental, que faz com que o homem conceba o mundo
como uma unidade, pura forma, tal como o corpo é por ele representado. É pela
superfície do corpo que o homem adquire a ideia de uma forma privilegiada.
A ideia de si como um corpo tem um peso. É o que nos testemunha o
comentário de Lacan (1975-76) sobre Joyce. No livro “Retrato do artista quando
Jovem” (1916), Stephen Dedalus, personagem que representa o autor, foi surrado por
um grupo de amigos, relatando, logo após esse momento, uma sensação de que seu
corpo se desprendeu como uma casca. Não houve raiva nem revolta. Quando foi surrado
por seus companheiros a cólera se dissolveu com seu corpo, não se manteve, como seria
esperado por alguém que ama seu corpo como a si mesmo. Stephen “perguntava a si
mesmo por que não continuava com ódio, agora, desses que o haviam atormentado (...)
certa força o houvera despojado dessa súbita onda de raiva tão facilmente como um
fruto é despojado de sua mole casca madura” (JOYCE, 1914/2007, p.94).
Qual sentido dar ao que Joyce testemunha? Em Joyce, há alguma coisa que exige
sair, ser largada como uma casca.

Mas a forma de Joyce deixar cair a relação com o corpo


próprio é totalmente suspeita para um analista, pois a ideia de si
como um corpo tem um peso. É precisamente o que chamamos
de ego. Se o ego é dito narcísico, é porque, em certo nível, há
alguma coisa que suporta o corpo como imagem (LACAN,
1975-76, p.146, grifo do autor).

A forma como o corpo aparece em Joyce resulta da ausência de revestimento


narcísico em seu eu. Com o testemunho desse personagem, Joyce indicaria ter com o
corpo uma relação de estranheza, deixando cair a relação com o próprio corpo. Sabemos
que a relação que ele tinha com seu corpo, expressa em seu relato, foi um dos motivos
para Lacan apostar em um diagnóstico de psicose. Como solução para esse impasse, ele
constrói artesanalmente um ego que lhe faz consistir um corpo através de seu nome
como escritor (SILVA, 2008).
O que permitiria a construção de um corpo? O que influencia esse processo? E
que situações clínicas deixam claro os possíveis impasses do sujeito em relação ao seu
corpo? Destacamos aqui três situações que se apresentam na clínica em que esses
conflitos se fazem presentes: na anorexia - bulimia ( espelho espelho meu existe alguém
mais belo do que eu?), na neurose obsessiva (meu corpo meu escravo) e na
transexualidade ( eu não sou esse corpo).

Parte 4
O que a anorexia e a bulimia nos ensinam sobre o lugar do corpo na clínica da
neurose?

Dentre os vários sintomas que se apresentam na neurose e colocam em cena o


corpo do sujeito, destacamos, como possibilidade de trabalho, a anorexia e a bulimia
pela maneira evidente com que elas colocam em cena a presença no corpo do desejo e
do gozo. Elas nos servirão como um guia, extraído da clínica, para a demonstração dos
impasses e das questões teóricas que percorremos sobre a relação entre o sujeito e o
corpo. Qual função o corpo exerce no sintoma da anorexia e da bulimia?

Somente em uma sociedade onde o alimento já não pertence ao campo da pura


necessidade pode existir o fenômeno da anorexia-bulimia que requer uma outra
dimensão para o alimento, qual seja, a que ele possa estar ligado ao laço social, à
linguagem e às suas consequências para o humano, ao afeto (Lacan, 1972-73). Esse é
um dos pré-requisitos para que esse sintoma possa aparecer e perdurar, seja o sujeito
negando o poder de sedução da comida (rechaço anoréxico), seja o mesmo
abandonando-se em sua assimilação desenfreada (excesso bulímico) (Recalcati, 2004).
Conseguimos ouvir, nesses casos, um excesso do investimento libidinal do
sujeito em sua imagem. Além disso, veremos também a relação entre a anorexia e a
bulimia, bem como dessas com a feminilidade. Seria a anorexia e a bulimia respostas
defensivas singulares do sujeito frente ao real que a sexualidade coloca em cena?
Ressaltamos também que esses sintomas nos permite abordar o estranhamento do
sujeito em relação ao seu corpo próprio, o não reconhecimento de si na imagem e o
corpo como meio de gozo, ou seja, instrumento privilegiado no campo da satisfação.
Também abordaremos a versão obsessiva da anorexia-bulimia, detalhando a relação do
corpo com o supereu, seu controle e purgação. Temos um longo caminho pela frente.

4.1 - Anorexia: o jejum sacrificante em busca da purificação

A anorexia foi primeiramente definida por Naudeau, em 1789, como “uma


doença nervosa acompanhada de uma repulsa extraordinária pelos alimentos” (apud
BIDAUD, 1998, p.11). A invenção nosográfica do conceito de anorexia está referida à
segunda metade de 1800. Ernest Charles Lasègue, no artigo “ l’anorexie hystérique”
(1873), foi o primeiro que reconheceu o fenômeno anoréxico como clinicamente
específico. Ligando a anorexia à histeria, o autor afirmou que “a histérica, pouco a
pouco, reduz sua alimentação sob distintos pretextos – dor de cabeça, um desgosto, um
mal-estar posterior à comida – depois de algumas semanas já não é repugnância
passageira e sim rechaço...” (LASÈGUE, 1873/2000, p.184).

No mesmo período, o termo anorexia nervosa apareceu nas obras do inglês


William Gull, definida como privação do apetite (apud BIDAUD, 1988, p.11). É
interessante observarmos que o método utilizado como tratamento nesses casos era o
isolamento terapêutico. A paciente era retirada de casa e internada em um quarto onde
permanecia sozinha, só tendo contato com o médico. Lasègue também aconselhava o
médico a ficar em silêncio, indicando a necessidade de um cuidado por parte do mesmo
em relação a suas ações e palavras.
A anorexia , antes de estar associada à histeria, aparece em sua vertente
religiosa, como sacrifício em prol da purificação que visa o amor de Deus pai (COPPUS
& MONTEIRO, 2005). Sacrifício que deixa à mostra como a alimentação traz em si o
pecado da gula, representando a entrega possível ao prazer da ingesta. Jejum e gula,
nada e tudo, santidade e tentação são significantes que perpassam a escuta desses
pacientes até os dias de hoje.

Fazendo um percurso nas leituras psicanalíticas sobre essa temática, destacamos


que a anorexia e a bulimia, ao menos as que se apresentam dentro da estrutura
neurótica, articulam uma forma de encenar os movimentos de alienação e separação em
relação ao Outro, colocam em destaque a importância do objeto oral, do olhar e até do
nada na constituição de próprio corpo do sujeito.
A relação entre a anorexia e o nada foi retirada de algumas passagens do ensino
de Lacan. Dentre estas, citamos a seguinte definição, presente ainda no início do seu
ensino: “a anorexia mental não é um não comer, mas um comer nada” (LACAN,
1956-57, p.188, grifo do autor). O nada ganha forma de objeto e, investido como tal,
passa a ter um lugar prioritário na economia libidinal do sujeito. Especificamente em
relação à anorexia e à bulimia, o que se destaca é o movimento do sujeito de comer
nada ou comer tudo. Comendo nada ou devorando tudo o sujeito mantém uma posição
defensiva de nada querer saber sobre o seu limite e o do Outro, deixando à mostra sua
paixão pela ignorância, como destaca Lacan (1972-73, p.164).
Em resposta a um vínculo parasitário, tomado como excessivo com o Outro, o
sujeito elege o nada como um atalho, uma via que, mesmo podendo ser trágica, tenta
salvar o sujeito da sensação de total alienação no Outro, geralmente encarnado na figura
materna. “Graças a este nada, ela (a criança) faz a mãe depender dela” (Id, 1956-57,
p.189), em uma manobra que inverte a relação inicial de dependência do sujeito em
relação ao Outro materno. Vale destacar que essa referência de Lacan problematiza o
movimento da criança, uma manobra infantil para reter a atenção da mãe, comendo
nada. Em outros momentos do seu ensino, ele retomará essa questão dizendo que
mesmo no adulto, essa pode ser a estratégia utilizada pelo sujeito para criar um espaço
entre ele e o Outro, como veremos adiante.

4.2 - Anorexia-bulimia
Sabemos que o discurso social oferece ao sujeito a possibilidade de que ele se
identifique com os significantes “anorexia” e “bulimia”, mascarando, assim, a relação
particular que ele possui com seu sintoma. Não entraremos aqui na discussão levantada
por alguns autores, dentre eles Cacciali (2005) e Micheli-Rechtman (2003), de que esse
sintoma seria uma resposta à atualidade, um sintoma da contemporaneidade, efeito do
capitalismo e do estatuto que o Outro apresenta nos dias de hoje, representando ou uma
nova configuração do sintoma histérico ou um sintoma de uma sociedade utilitarista e
de consumo desenfreado. Mas para os que se interessarem, vale a leitura.

Iremos avançar na consideração da relação da anoréxica com o nada, através da


fantasia inconsciente, no que a mesma envolve o desejo e o posicionamento do sujeito
em relação ao Outro. O nada aparece geralmente associado à recusa; ou melhor, através
da recusa o sujeito coloca em ato a presença do nada. Assim, comer nada é uma
maneira encontrada pelo sujeito para barrar o Outro, introduzir um não, diante da
“papinha sufocante” que o Outro lhe oferece incessantemente (LACAN, 1958). Com
esse nada, o sujeito reduz a situação de onipotência em que o Outro se encontra a uma
total impotência. Entendida a princípio como um movimento de separação, a anorexia,
por sua radicalidade, se aproxima mais de uma pseudo-separação, conforme veremos.

Lacan (1960a), uma única vez, colocou o nada na série de objetos que
representam o objeto a. O objeto a, tomada por Lacan como sua única invenção na
psicanálise, é o nome dado por ele ao objeto perdido de Freud. Ao retomar a definição
de zona erógena como “obra de um corte que se beneficia do traço anatômico de uma
margem ou borda: lábios, ‘cerca dos dentes’, borda do ânus, sulco peniano (...)” (Id,
1960 a, p.832), situou o nada entre os representantes do objeto a: “Lista impensável se
não lhe forem acrescentados, o fonema, o olhar, a voz – o nada” (Ibid).
O nada, como uma das vertentes do objeto a, se faz presente na anorexia de duas
maneiras que, apesar de distintas, se apresentam concomitantemente: como objeto
separador - objeto a como causa de desejo -, e como condensador de gozo - vertente na
qual o sujeito se mantém na posição limite entre a vida e a morte, ou seja, identificado
ao nada. Trata-se aqui, portanto, do objeto a, em sua relação com o mais-de-gozar. Essa
articulação do objeto a, em sua relação com o desejo e com o gozo, aparece de forma
clara quando Lacan afirma que “toda função de a refere-se apenas à lacuna central que
separa, no nível sexual, o desejo do lugar do gozo (...)” (Id, 1962-63, p.359).
Vale ressaltar que a raiz etimológica do termo nada, em francês rien, vem do
latim rem que significa justamente “a Coisa: objeto mítico – pois está perdido desde
sempre – de um gozo absoluto” (RECALCATI, 2004, p.55). Esse ponto será
fundamental para abordarmos, mais à frente, a relação da anorexia e da bulimia com o
gozo.

Nosso intuito não é fazer generalizações nem criar fórmulas que definam esse
sintoma e seu tratamento; já há um discurso que caminha nesse sentido. O DSM-IV -
Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais organizado pela Associação
Americana de Psiquiatria (2004) – guia da clínica médica e psicológica –, traz
classificações diferentes para anorexia nervosa e bulimia. Em relação à anorexia
nervosa, o manual afirma que suas características essenciais consistem no rechaço de
manter um peso corporal mínimo normal (IMC – índice de massa corporal entre 18 e
25), em um medo intenso de ganhar peso e em uma alteração significativa da percepção
da forma ou tamanho do corpo. Afirma ainda que há uma mortalidade de 10% em
pacientes hospitalizados cujas causas maiores são: suicídio, inanição e desequilíbrio
eletrolítico. A anorexia mata 15% dos jovens acometidos por essa sintomatologia, sendo
a doença compulsiva que mais mata no mundo (FUX, 2002). A compulsão aí presente é
emagrecer a qualquer custo, e, muitas vezes, ela parece não se constituir como uma
mensagem endereçada ao Outro, possuindo a mudez própria da pulsão de morte.
Já a bulimia se apresenta em 3% das mulheres e tem como características as
crises de “comilança” com a utilização de métodos compensatórios para evitar o ganho
de peso, como o uso de laxantes, vômitos, excesso de exercícios e restrição alimentar
severa. Para poder realizar o diagnóstico, segundo o DSM-IV, tais crises devem
produzir-se ao menos duas vezes na semana durante um período de três meses.
Apesar da classificação médica clássica abordar a anorexia de forma separada
da bulimia, Recalcati (2004) aponta que a lógica que inspira a anorexia e a bulimia é
uma só, adotando a fórmula “anorexia-bulimia” para designar esse sintoma e afirma que
elas dificilmente se apresentam em ‘estados puros’. Utilizaremos também essa
terminologia sem excluirmos a possibilidade da anorexia e da bulimia se apresentarem
isoladamente na clínica, nem nos furtaremos a explorar as mesmas separadamente na
teoria.

Segundo Recalcati (2004), haveria pontos centrais que são comuns à anorexia e
à bulimia. A ação da pulsão e do ideal são marcantes nesses sintomas e capazes de
esboçar o posicionamento do sujeito nos mesmos, como veremos mais adiante. Vale
adiantar que

o polo bulímico e o polo anoréxico constituem os índices de


uma só oscilação ao invés de indicar duas posições subjetivas
diferenciadas.(...) o exercício bulímico do vômito tem como
objetivo preservar a imagem anoréxica do corpo magro. Neste
sentido pode-se dizer que a bulimia é um dialeto da anorexia...
(RECALCATI, 2004, p.35).

Destacamos que a anorexia e a bulimia podem se apresentar nas mais variadas


modalidades clínicas, como a melancolia, o autismo, os estados que antecedem o surto
na psicose ou nas psicoses declaradas (SILVA & BASTOS, 2006, p.98). A
anorexia-bulimia indica um fenômeno, que por algumas características específicas como
a serialidade, a monotonia discursiva, a rigidez identificatória e o narcisismo exaltado,
tende a ocultar mais do que destacar a estrutura do sujeito. Pensamos em abordar a
anorexia-bulimia, então, como uma posição subjetiva que aponta para a forma como o
sujeito se posiciona frente ao Outro e que traz consequências para o seu corpo. A partir
do lugar que esse sintoma possui para o sujeito - resposta à demanda do Outro na
neurose ou ao Outro como pura vontade de gozo na psicose (RECALCATI, 2004, p.90)
- localizamos um princípio importante para o diagnóstico diferencial.

Na psicose a anorexia e a bulimia funcionam como barreira a um Outro louco e


invasor que goza do sujeito. Elas “poderiam ser, como o demonstra a clínica, o refúgio
do sujeito contra o desencadeamento da psicose” (Ibid, p.184). A configuração da
anorexia-bulimia evita o surto por fornecer um nome ao sujeito, juntamente com um
método para o mesmo se manter afastado do Outro invasor. Vale destacar que na
anorexia que se apresenta na psicose, sobretudo na esquizofrenia, observam-se padrões
de alimentação bastante raros, mas sem o receio de ganhar peso. O emagrecimento
resulta das especificidades e rituais existentes entre o sujeito e a comida e não da
necessidade de manter o corpo magro.

Ao nos determos na anorexia e na bulimia para o detalhamento da investigação


dos impasses na relação do sujeito com o corpo no campo da neurose, passaremos por
alguns conceitos como a articulação que Lacan faz entre necessidade, demanda e desejo,
as operações de alienação e separação na constituição do sujeito e a função da imagem
para ele. Com Freud, veremos em detalhe a pulsão oral e a articulação entre anorexia e
histeria. Desejo sempre insatisfeito, que presentifica a falta, eis um ponto em comum
entre a histeria e a anorexia. Apesar de a anorexia e a bulimia se apresentarem
geralmente atreladas à estrutura histérica, a clínica nos impede de igualá-las. Nem toda
histérica se apresenta como anoréxica, vide as “formas fartas” da bela açougueira, além
da última poder se apresentar em outras estruturas. Para complementar, a afirmação de
que esse sintoma se apresentaria somente em mulheres exige cuidado, a clínica e a
bibliografia sobre o tema apontam para o contrário (LAURENT, 2000).

Mais interessante é ressaltarmos a inegável prevalência da anorexia e da bulimia


em mulheres jovens. Alguns autores (BASTOS & PENCAK, 2009) vão nessa direção e
encaminham suas pesquisas para a relação entre a anorexia e a feminilidade, apostando
na anorexia mental como uma resposta particular de alguns sujeitos aos problemas
colocados pelo desejo e pelo gozo femininos (Id). Seguindo as formulações de Lacan
(1972-73) sobre as fórmulas da sexuação, é possível abordar a anorexia, através de sua
recusa alimentar, como um movimento do sujeito onde o mesmo se sacrifica para
instituir uma universalidade no conjunto das mulheres, seja através da imago da mãe
onipotente – à qual ele precisa responder com uma constante recusa – ou com o próprio
corpo, tentando mantê-lo no lugar de perfeição, sem o registro da falta. Fazer existir a
exceção, nesse caso, a mulher fálica, traz conseqüências para o corpo. Sabemos que a
universalidade de um determinado conjunto só pode ser estabelecida com a existência
de uma exceção a seu campo. O lado homem apresenta essa exceção, que se faz
representar pelo pai da Horda – aquele que não está submetido à castração –, exceção
que originalmente se encontra ausente do campo mulher (LACAN, 1972-73). A
anorexia se apresenta assim como uma tentativa de instituir a exceção para fazer existir
o todo, tarefa que sabemos ser impossível ( BASTOS & PENCAK, 2009). A bulimia
também responderia necessariamente a essa dinâmica? Responder a esse
questionamento exigiria um desvio do nosso objetivo inicial. Optamos, então, por dar
prioridade à função que a imagem exerce nesse sintoma em sua relação com o enigma
da feminilidade, ponto que desenvolveremos no decorrer dessa escrita.

Tanto a anorexia como a bulimia colocam em cena a defasagem entre o que se


obtém e o que se deseja. Tal defasagem possui algo de estrutural, sendo constitutivo do
sujeito. É comum às crianças, num momento precoce, recusarem e vomitarem, senão
toda alimentação - esse seria o caso extremo de anorexia ou bulimia -, algum tipo de
alimento, traduzindo com suas predileções e aversões, um movimento de subjetivação.
São as anorexias leves e passageiras dos primeiros anos da infância, quando a criança se
mostra inapetente ou sujeita a acessos de vômitos que costumam marcar os relatos da
infância do paciente. Perguntamos, porém, o que há de peculiar no processo de
constituição do sujeito, quando ele mantém esse sintoma como resposta ao Outro
(SILVA & BASTOS, 2006).

Como o corpo se apresenta na anorexia-bulimia? A psicanálise nos diz que,


sobretudo nesses casos, houve uma fixação do sujeito na forma oral da satisfação
pulsional (FREUD, 1918-1914), cujo resultado é o estabelecimento de uma relação
especial entre a comida e a satisfação sexual. Outro ponto a ser destacado é a presença
de uma fixação também no campo escópico, tanto na busca por uma imagem perfeita,
que vela a castração, como na tentativa de fisgar o olhar do Outro com seu corpo
emagrecido ou adoecido pelos efeitos dos métodos purgatórios. A batalha desses
sintomas está centrada, em efeito, na satisfação pulsional (RECALCATI, 2004). Assim,
a pulsão oral e a escópica fazem parte da trama sutil da posição anoréxico-bulímica.
Esconder-se ou ser vista, devorar ou não determinados alimentos são estratégias que
geralmente se fazem presentes na fala do anoréxico-bulímico.
A anorexia é um sintoma que se deixa ver por sua alteração no corpo. Sabemos
que um sujeito está apresentando anorexia pela imagem extremamente emagrecida de
seu corpo e algumas alterações no seu funcionamento como amenorréia, perda ponderal,
hiperatividade, dores de cabeça e problemas gástricos. A partir de um olhar analítico
afirmamos que o aguçamento da fome, para além de suas conseqüências físicas, é uma
forma de auto-erotismo, de erogeneização do corpo. O corpo magro aparece, em um
primeiro momento, como ideal de beleza feminina, servindo como instrumento capaz de
fisgar o olhar do Outro e apresentando-se em seu valor fálico. Sem ter limites, a busca
pelo ideal da magreza descarna o corpo e o torna cadavérico, atraindo agora olhares de
horror e curiosidade. O corpo destaca-se no campo do visível por sua quase
invisibilidade. Tenta cavar, com sua ausência, um lugar diante do Outro. Esse
movimento de identificação e redução do sujeito ao corpo para que o Outro o veja, é
uma estratégia que nos faz lembrar da histeria (Ibid).
Os efeitos da bulimia não costumam ser tão aparentes, não geram uma alteração
considerável da imagem. Ela não altera o peso do paciente, deixando-se apreender
através dos vômitos e uso de laxantes, problemas gástricos. O ‘passar mal’, tão
característico desse sintoma, vai aos poucos tornando público os excessos do sujeito
com a comida e o corpo.

Porém, ficar centrado na anorexia e na bulimia enquanto manifestações que


seriam apenas alimentar é um modo restrito de ver o mal-estar subjetivo que se
apresenta na complexidade desse sintoma. Quando se trata de pulsão oral – seja na
compulsão ou na restrição – temos a presença de outros objetos, para além do alimento,
como o uso abusivo de medicação – muito presente na clínica atual – e o álcool. A
anorexia e a bulimia não são apenas patologias da alimentação “e sim uma problemática
que liga o desejo e o gozo” através da relação do sujeito com determinados objetos
(GORALI, 2000, p.8). Além disso, se fixamos nossa escuta na alimentação, deixamos
de lado pontos importantes como a função da imagem, a relação do sujeito com a
castração, o lugar do sintoma no jogo fantasmático com o Outro, dentre outros.

Façamos a retomada da dinâmica desse sintoma desde Freud.

4.3 - A satisfação oral em Freud

As peculiaridades do sujeito em relação à alimentação nos fazem lembrar que a


primeira expressão da sexualidade ocorre através da oralidade. Ela é experimentada no
ato da alimentação e traz consigo a marca de uma experiência prazerosa na qual os
lábios se comportam como uma zona erógena, área do corpo capaz de ser investida
libidinalmente. Em um primeiro momento, a satisfação da zona erógena fica associada
ao alimento, mostrando a relação entre o sexual e o comer. “A atividade sexual apóia-se
primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e só depois se torna
independente delas” (FREUD, 1905, p.171).

Freud afirmou ainda que os órgãos responsáveis pela alimentação e excreção


“têm particular facilidade de se tornarem veículos de excitação sexual” (Id, 1917
[1916-17]b, p.361). Retomamos aqui a afirmação freudiana de que “tanto as pulsões
sexuais como as pulsões do eu, têm, em geral, os mesmos órgãos e sistemas de órgãos à
sua disposição. O prazer sexual não está apenas ligado à função dos genitais. A boca
serve tanto para beijar como para comer e para falar” (Id, 1910, p.225). É uma zona
histerógena, ou seja, parte do corpo que possui uma aptidão para servir, antes a uma
função erótica, que à satisfação de uma necessidade. “As pulsões orais são a língua que
será falada entre os lábios – expresso na língua das mais antigas moções pulsionais
orais” (VIDAL, 1989, p. 25). Freud se afasta da possibilidade de abordar a pulsão,
mesmo as primárias, fora da estrutura da linguagem, tanto ao afirmar que só sabemos
dela quando a mesma se liga a um representante, bem como ao ilustrar a gramática da
pulsão - ativa, passiva e reflexiva - com esses três tempos verbais.

Freud ressaltou que “a criança traz consigo ao mundo germes de atividade sexual
e que, já ao se alimentar, goza de uma satisfação sexual que então busca reiteradamente
proporcionar-se através do chuchar” (FREUD, 1905, p.210). Essas experiências podem
gravar-se tão profundamente “a ponto de produzirem uma repetição compulsiva e
poderem prescrever por toda a vida os caminhos da pulsão sexual” (Ibid, p.228).
A satisfação mais primitiva, apesar de ser auto-erótica, tem como objeto o seio.
Isso ocorre porque a criança não consegue diferenciar o seio como sendo dela ou do
outro. A separação, enquanto corte, não ocorre entre a criança e o seio, e sim entre a
mãe e o seio. Lacan indicou, então, “a função original da mama. Esta se apresenta como
algo intermediário entre o rebento e sua mãe (...) é, entre a mama e o próprio organismo
materno, que reside o corte” (LACAN, 1962-63, p.256). A perda do seio é efetivada
com a representação da imagem daquele que vem satisfazer a criança. O seio é perdido,
portanto, a partir da separação que ocorre com a diferenciação entre a imagem do eu e a
do outro, fazendo-nos relembrar do estádio do espelho.
Freud (1917[1916-17]) nos disse que a perda do seio, enquanto objeto de
satisfação, é fundamental para que outras zonas e outros objetos sejam investidos,
deixando marcas na relação do sujeito com o Outro através dos processos de
identificação, ambivalência e diferenciação. A partir daí, poderíamos afirmar que, desde
o início, é o seio, associado com a alimentação, que traz uma das primeiras marcas de
separação entre o sujeito e o Outro, e que, em um momento posterior, a cada ativação
dessa marca, a partir das perdas que o sujeito sofre em relação a seus objetos, entra em
jogo um movimento de separação que utiliza o alimento como instrumento.
Para a criança, a amamentação no seio materno torna-se modelar para todos os
relacionamentos amorosos. As futuras escolhas amorosas estão apoiadas nos modelos
infantis primitivos como tentativa de recuperar a suposta felicidade perdida, movimento
de reinvestimento no traço deixado pela primeira experiência de satisfação. O corpo,
sobretudo através do seio e da satisfação oral, está envolvido nesse processo de
encontro e desencontro com a satisfação que o objeto pode proporcionar.
O excesso, tanto do lado da criança, que se mostra insaciável em relação à
ternura parental, como também do lado dos pais, que exibem um cuidado desmedido em
relação ao filho, serve de prenúncio à instalação de uma neurose na vida adulta. Isso
porque há uma elevada adesividade das impressões deixadas pela vida sexual infantil.
Tais impressões podem agravar-se “a ponto de produzirem uma repetição compulsiva e
poderem prescrever por toda a vida os caminhos da pulsão oral” (FREUD, 1905, p.
228).
Freud, inventando a psicanálise, falou sobre a anorexia, sem que tenha escrito
um texto dedicado ao tema. Desde suas correspondências com Fliess, ele se interroga a
respeito desse sintoma, afirmando que “a neurose nutricional paralela à melancolia é a
anorexia. A famosa anorexia nervosa (...) é uma melancolia em que a sexualidade não se
desenvolveu. (...) Perda do apetite – em termos sexuais, perda de libido” (Id, 1950
[1892-1899], p. 247). Relacionando a perda de apetite e de libido com uma perda
objetal, encontramos o caminho pelo qual Freud articulou a anorexia com a melancolia.
Ambas seriam resultado de uma dificuldade do sujeito em lidar com a perda e a
separação do objeto. O processo anoréxico revela, já em Freud, uma dificuldade em
relação à perda, à realização de um luto. Em nenhum outro momento, porém, Freud fará
esse paralelo, passando a relacionar a anorexia com a histeria, e, conseqüentemente,
com um aumento da erotização na zona oral que perturba as atividades aí situadas.
Paralelo e não equivalência.
Vale destacar que na organização oral, a libido é narcísica, e a fixação nessa fase
está relacionada com uma dificuldade do sujeito em lidar com a perda do seio como
ideal de completude. Tal perda deixa uma marca, a qual é reativada sempre que o sujeito
se depara com a sexualidade ou algo do sexual que traga uma diferenciação (Ibid).
Tanto a anorexia como a bulimia geralmente aparecem no momento em que
surgem os primeiros caracteres sexuais secundários, ou seja, na adolescência, como
também no momento do encontro do sujeito com o sexo. As alterações no corpo, que se
destacam principalmente na menina, representam o afloramento da sexualidade; sendo
assim, emagrecer pode significar infantilizar o corpo, anular esses contornos que
passam a ser vistos como um excesso, numa tentativa de retorno ao momento anterior
onde o sexual não estava colocado de forma tão explícita. O frequente aparecimento
desse sintoma quando as meninas entram na puberdade estaria, então, ligado à
dificuldade do ‘tornar-se mulher’ que as mudanças corporais vêm materializar. O
sujeito, ao invés de falar sobre seu encontro traumático com o desejo do Outro, com o
enigma da sexualidade, mostra-o inscrito em seu próprio corpo, que é utilizado, assim,
como um instrumento que coloca seu desamparo em cena.

Freud (1893-95) localiza os vômitos crônicos e a anorexia (que pode chegar ao


extremo da rejeição de todos os alimentos) entre os sintomas histéricos, resultando de
uma “emoção penosa” surgida durante a alimentação a qual foi deslocada pela ação do
“recalque” para outra representação, retornando através de náuseas (Id, 1893-95).

Dentre os casos de histeria apresentados por Freud, destacamos o de Emmy Von


N., que apresentou uma recusa de comer. Ao procurar o motivo dessa recusa, Emmy se
lembra das vezes em que, quando pequena, era obrigada a comer carne fria e dura, o que
gerava grande revolta na paciente. Nesse caso, “o ato de comer, desde os primeiros
tempos, se vinculara a lembranças de repulsa cuja soma de afeto jamais diminuíra em
qualquer grau; e é impossível comer com prazer e repulsa ao mesmo tempo” (Ibid,
p.118).
É importante destacarmos que Freud [(1904-1903) e (1905-1904)] abordou de
forma diferenciada a anorexia em relação aos sintomas que poderiam ser tratados pela
psicanálise, explicitando que “não se deve requerer à psicanálise quando se trata de
eliminar com rapidez fenômenos perigosos, como, por exemplo, na anorexia histérica”
(Id, 1905-1904, p. 250). Na clínica psicanalítica a ênfase se coloca na escuta do
sintoma, e não no ato de suprimi-lo. Sendo assim, todas as expressões somáticas da
histeria, que exijam o pronto atendimento do médico para o afastamento dos sintomas –
dentre elas, a anorexia – precisaria aguardar uma fase menos aguda para a intervenção
do psicanalista (Id, 1904-1903, p.240). Ao nos perguntarmos sobre a justificativa da
advertência freudiana, ressaltamos o quanto a psicanálise deve atentar para o sintoma da
anorexia em sua gravidade e urgência. Ao lado do tratamento analítico, às vezes se faz
necessário realizar um trabalho conjunto com outras práticas, como, por exemplo, a
medicina (sobretudo quando é necessária a internação do paciente) e a nutrição.

Qual o estatuto que o objeto oral adquire na anorexia e na bulimia? Lacan nos
diz que a relação do sujeito com o objeto deve ser lida freudianamente (LACAN,
1959-60, p.114). Ela emerge em uma relação narcísica imaginária, uma vez que o objeto
aparece de maneira intercambiável com o amor que o sujeito tem por sua própria
imagem. É nessa relação imaginária entre o eu e o objeto que o eu se faz de objeto para
o Outro.
Quando falamos de objeto temos que fazer uma diferenciação entre o objeto
imaginário – aquele que se constitui à imagem e semelhança do eu – e o objeto da
pulsão, que possui a característica de ser um objeto parcial. Entre o objeto estruturado
por uma relação narcísica e das Ding, que tem uma relação com o objeto da pulsão, há
uma diferença, um hiato, que permitirá surgir o objeto do desejo. Retomamos, assim, o
objeto perdido do desejo, (FREUD, 1950 [1985]), com o intuito de detalhar as
artimanhas presentes nesse sintoma para não se defrontar com a falta que o desejo
implica. Além disso, as contribuições de Lacan na diferenciação entre necessidade,
desejo e demanda foram fundamentais no entendimento da dinâmica desse sintoma.

4.4.- O objeto perdido entre necessidades, demandas e desejos

“O desejo não é, portanto, nem o apetite de satisfação,


nem a demanda de amor, mas a diferença que resulta da subtração
do primeiro à segunda, o próprio fenômeno de sua fenda (Spaltung)”
(LACAN, 1958b, p.698).

É no “Projeto para uma psicologia científica” (1950 [1985]) que Freud fez um
primeiro esboço do que ele denomina desejo, ponto que será essencial retomar para
iniciarmos o estudo lacaniano da articulação entre a necessidade, a demanda e o desejo.

A partir do complexo do próximo, registro da primeira experiência de satisfação,


Freud articulou em um só tempo o que é o ‘à parte’ e a similitude, como signo de
separação e identidade. Das Ding é justamente a parte desse complexo que é isolada
pelo sujeito como estranho – Fremde –, desconhecido. Das Ding constitui o primeiro
exterior, em torno do qual se orienta todo o encaminhamento do sujeito, sua referência
em relação ao mundo do desejo (LACAN, 1959-60, p.69). É o princípio de prazer que
guia a busca desse primeiro objeto de satisfação e, ao mesmo tempo, mantém uma certa
distância em relação a ele. Sendo assim, o elemento imaginário do objeto, ou seja, a
crença na possibilidade de encontrarmos o objeto de nosso desejo, diz de um engodo
vital para impulsionar o movimento em busca desse objeto. Não nos esqueçamos,
porém, que, por trás desse movimento em relação ao objeto do desejo, encontramos um
traço mnêmico deixado pela primeira experiência de satisfação, ou seja, a marca de um
objeto que não existe, objeto sonhado e perdido, conceito nodal de estatuto ético para a
teoria e a clínica psicanalítica, como poderemos ver mais adiante.

Freud (1900) ressaltou a existência de um hiato entre a saciedade após a


absorção do objeto da “necessidade” e o traço mnêmico que irá representar esse tempo
mítico. Esse primeiro objeto da “necessidade” é perdido no momento em que se torna
traço, havendo sempre um resto entre essa primeira satisfação e sua representação. A
partir da perda do objeto da necessidade, há a possibilidade de surgir, para além desse
campo, a demanda e o desejo.
Se a necessidade indica a dimensão fisiológica/biológica da urgência, um estado
que incita à própria resolução, o desejo, por sua vez, inscreve-se mais além da
necessidade, não estando dirigido para os objetos em si, e sim para o Outro. O desejo
altera o que é da ordem da necessidade, visto esta última ter que passar pela linguagem
para se expressar. É nesse sentido que afirmamos a não existência da necessidade pura.
“Todas as necessidades do ser falante estão contaminadas pelo fato de estarem
implicadas com uma outra satisfação” (Id, 1972-73, p.70).

O objeto serve para rechear um vazio “anatomizado” no corpo, como por


exemplo o alimento em relação à boca. O alimento aplaca a urgência da fome tanto no
homem como no animal. Mas o homem, à diferença do animal, inventa um discurso
alimentar, cria a gastronomia, enriquece o objeto da necessidade com adornos,
guarnições e especiarias. O sujeito goza ao comer. Ao manipular o alimento, dá-lhe um
nome, o desnaturaliza e o transfigura. Há, na fome de comida, a fome que nenhum
objeto pode acalmar porque é fome do seio, do seio como significante do primeiro
objeto de satisfação.

Comer implica então uma relação com o Outro. A maioria dos sujeitos com
anorexia e bulímia tendem a romper essa regra geral (RECALCATI, 2004). Recusam-se
a comer em público, não participam das refeições, comem sós, devorando quantidades
ínfimas ou exageradas de comida, sem critério e sem horário, seguindo apenas o ímpeto
de sua voracidade. Isso contradiz a lei da alienação significante: negam-se à mesa do
Outro.

O estudo da anorexia e da bulimia passa a ter um novo enfoque com a


diferenciação que Lacan estabelece entre a necessidade, a demanda e o desejo. Com a
perda da dimensão do natural e do instinto - efeitos da inserção do sujeito na
linguagem-, a pulsão e o desejo ganham espaço na relação do sujeito com seus objetos.
A boca não se satisfaz com a comida, e sim com o prazer da boca. Fazem série o beijar,
o falar, o comer, o devorar, o incorporar e o destruir.
A necessidade só aparece alienada na demanda, a qual, por sua vez, se articula
na cadeia de significantes. Sendo assim, podemos concluir que “qualquer coisa que se
dê para a necessidade será sempre interpretada em termos de demanda de amor”
(CLASTRES, 1990, p.51). Já que toda demanda é, antes de tudo, demanda de amor, o
objeto da necessidade – a comida – é sempre obtido como objeto signo de amor; o
alimento é tomado na relação do sujeito com o Outro como moeda amorosa. Comer ou
recusar o alimento é uma forma de se posicionar diante do Outro e das marcas amorosas
que permeiam o sujeito. Jogando com a necessidade, o sujeito coloca uma barra, uma
falta diante do excesso de cuidado que o Outro lhe oferece. Além disso, busca um olhar
que ateste a existência desse amor do Outro, colocando-se em risco.

Apesar de só termos notícias da necessidade por sua alienação na demanda, esta


não anula tudo da primeira, não a substitui completamente. O desejo surge dessa
impossibilidade. Lacan indica o caminho mostrando que o desejo, “se esboça na
margem em que a demanda se rasga da necessidade” (LACAN, 1960a, p.828). Há,
então, uma estrutura de falha entre a demanda e o desejo (Id, 1966). Existe o desejo
“porque existe algo de inconsciente, ou seja algo de linguagem que escapa ao sujeito em
sua estrutura e seus efeitos e que há sempre no nível da linguagem alguma coisa que
está além da consciência” (Ibid, p.12).

O sujeito, em seu desamparo inicial, procura o Outro, aqui encarnado pela mãe,
não apenas para a satisfação de uma necessidade, mas também para que, através do
alimento, a mãe se mostre capaz de reconhecê-lo como sujeito. Retomando Freud (1950
[1895]), o desamparo do homem é a fonte da busca pelo amor e por uma resposta sobre
o desejo do Outro.

É na demanda mais antiga que se produz a identificação


primária, aquela que se efetua pela onipotência materna, ou
seja, a que não apenas torna dependente do aparelho
significante a satisfação das necessidades, mas que as
fragmenta, as filtra e as molda nos desfilamentos da estrutura
do significante (LACAN, 1958, p.624).
O que aconteceria com a anorexia? Recusando o objeto da necessidade, o sujeito
demanda o amor, ou seja, reivindica que o objeto não traga consigo apenas a marca da
necessidade, mas que seja signo de amor. O amor aqui é definido como doação da falta,
como possibilidade de dar o que não se tem. Através do comer nada, o sujeito coloca
em cena essa falta.
Seguindo esse raciocínio, a anorexia se apresentaria como uma maneira que o
sujeito encontrou para mostrar ao Outro que o desejo só pode entrar na demanda
adulterando o que é da ordem da necessidade (POLLO, 2000). Se, por um lado, a
dimensão do desejo adultera, em um primeiro momento, a necessidade, por outro, a
recusa desse objeto mostra a tentativa do sujeito de inserir uma falta, uma diferença
nesse campo.

É fundamental destacarmos nessa relação entre o objeto da necessidade - o que é


apelado -, e o do amor - aquele que passa ao estatuto de dom a partir da frustração do
Outro -, a relação de compensação que existe entre eles.

Cada vez que há uma frustração de amor, esta é compensada


pela satisfação da necessidade. É na medida em que a mãe falta
à criança que a chama, que esta se agarra ao seio, e que este
seio se torna mais significativo que tudo. Enquanto o tem na
boca e se satisfaz com ele, por um lado a criança não pode ser
separada da mãe, por outro lado isso a deixa alimentada,
repousada e satisfeita (LACAN, 1956-57, p. 178).

Freud nos coloca que “a mãe é o primeiro objeto de amor” (FREUD, 1917
[1916-17]b, p.385) tanto para a menina como para o menino. Aquela que cuida e nutre
nos mostra a ligação entre os primeiros investimentos objetais e a satisfação das
necessidades. Esse estágio preliminar de ligação com a mãe é muito rico, podendo
“deixar atrás de si muitas oportunidades para fixações e disposições” (FREUD,
1933-32b, p.120).
A hostilidade em relação à mãe, a reclamação de que ela lhe deu pouco leite, é
uma “censura que lhe é feita como falta de amor” (Ibid, p.122). Freud nos diz que essa
reclamação geralmente não se justifica, estando diretamente relacionada com a
insaciabilidade da criança e com a dificuldade de lidar com a perda do seio materno.
Podemos pensar a comida como uma espécie de objeto transicional falido
(RECALCATI, 2004, p. 83). O objeto transicional, como desenvolve Winnicott (1951),
tem a função de abrir um espaço potencial entre a criança e o Outro, permitindo a
separação através do objeto. A comida, ao invés de simbolizar a ausência do Outro, leva
o sujeito à espiral de uma repetição compulsiva de um reencontro do objeto na bulimia
e, na anoréxica, à repetição de sua ausência.

O objeto não está totalmente perdido e sim guardado


constantemente ao alcance da boca, conservado na dispensa,
nos guarda-roupas, debaixo da cama, nos sapatos, em cada
canto da casa. Uma paciente guardava, durante vários dias seu
próprio vômito fechado em sacos plásticos, representando-se
assim como puro dejeto (...) (RECALCATI, 2000, p.146).

Vemos então que o vômito mantém a repetição contínua das comilanças,


esvaziando o corpo de gozo e preparando-o para um novo excesso. “O vômito não está
relacionado às exigências do comer, de satisfazer-se, e sim à mostração do gozo especial
do vazio, junto à inconsistência do objeto-comida” (Id, 2004, p.61). Comer nada versus
tudo devorar coloca em evidência a oscilação do fort-da aqui representado no par
formado pelo vazio e o pleno (Ibid). Os sujeitos anoréxicos que não conseguem vomitar,
após terem comido um pouco mais, mostram uma maior angústia persecutória em
relação à comida, pois uma vez incorporada, promove no sujeito violentos sentimentos
de indignidade e malignidade. O vômito, de forma ilusória, atenua esses efeitos. A
extenuante repetição do vômito, na realidade, não faz outra coisa que demonstrar a
inconsistência do objeto, o nada que está em sua raíz. Por mais que o sujeito tente
colocar esse nada no lugar de das Ding, ou seja, do objeto que seria capaz de preencher
o vazio primordial, esse vazio se mantém presentificado no encontro do sujeito com o
nada.

4.5 - A Anorexia e a bulimia em Lacan

Encontramos algumas referências no ensino de Lacan acerca do sintoma da


anorexia e da bulimia. Em um primeiro momento, Lacan (1938) relacionou a anorexia
com um “desejo de larva” (LACAN, 1938, p.39). Nesse contexto, a anorexia é
concebida como uma posição do sujeito que resulta de uma nostalgia do Outro materno,
gerando uma atração obscura para o abismo da morte. “O sujeito se acha implicado
numa forma de ‘canibalismo fusional’ (...) que encontra seu ponto de referência mais
puro no desejo de larva” (RECALCATI, 2004, p.69-70). A anorexia está, então, referida
a uma fixação do sujeito no complexo do desmame, aqui definido como a repetição
traumática de uma primeira separação entre o sujeito e o Outro.

Nas palavras de Lacan “(...) muitas vezes, é um trauma psíquico cujos efeitos
individuais – as chamadas anorexias nervosas, as toxicomanias pela boca, as neuroses
gástricas – revelam suas causas à psicanálise (LACAN, 1938, p.37)”. Isso ocorre porque
o desmame ficou associado a uma separação ainda mais antiga e dolorosa: o próprio
nascimento; “separação prematura da qual provém um mal-estar que nenhum cuidado
materno é capaz de compensar” (Ibid, p.40). As sintomatologias citadas representam,
então, uma tendência psíquica para a morte, movimento que Lacan qualifica de
“suicídio não violento” (Ibid, p.41). “A análise desses casos mostra que, em seu
abandono à morte, o sujeito procura reencontrar a imago da mãe” (Ibid).

Há uma semelhança dessa afirmação de Lacan com o que Freud nos apresentou,
ainda em seus rascunhos, sobre a relação entre a anorexia e a melancolia, qual seja,
haveria uma tristeza pela perda do objeto e, ao mesmo tempo, uma paixão sacrifical,
uma identificação entre o sujeito e esse objeto perdido, que tem como última instância
das Ding.

Lacan (1938) ressalta o lado mortífero da anorexia, como um ‘desejo de larva’,


vinte anos depois a estratégia de separação presente nesse sintoma ganha ainda mais
destaque. Não se trata de anorexias diferentes e sim de dois ângulos através dos quais a
anorexia pode ser abordada. O comer nada figura aqui, de forma mais clara, como uma
tentativa de separação do Outro (LACAN, 1958).

De forma curiosa, o amor do Outro e pelo Outro encontra-se presente nessas


duas referências: como paixão sacrificial no desejo de larva e como gatilho para uma
manobra (falida) de separação do sujeito. O amor resulta da esperança do sujeito de que
o Outro preencha sua falta. Ele está por trás de toda a demanda, mascarado no pedido da
satisfação de uma necessidade. Pode ocorrer que o Outro, no lugar disso que ele não
tem, que lhe falta, coloque justamente a comida, “confunde seus cuidados com o dom
de seu amor. É a criança alimentada com mais amor que recusa o alimento e usa a sua
recusa como desejo (anorexia mental)” (Ibid, p. 634). Nessa citação, Lacan se refere à
anorexia infantil. As anorexias pontuais, que se apresentam na infância do sujeito,
encontram-se dentro de uma dinâmica de separação. Assim, dizendo não à demanda da
mãe, a criança pede que ela olhe em outra direção que não ela própria. Destacando o
nada no ato de recusar o alimento, o sujeito presentifica a falta que não aparece em
outro lugar.

Poderíamos nos perguntar se essa configuração é a mesma apresentada pelas


anorexias que se apresentam na puberdade ou na idade adulta do sujeito. Muito embora
as anorexias que se apresentam em um momento posterior, também nos façam pensar
em uma tentativa de separação, temos que acrescentar como fatores relevantes para seu
aparecimento o encontro com o sexual, a perda do objeto de amor, as mudanças
corporais próprias da puberdade e, como foi dito anteriormente, o enigma sobre o
tornar-se mulher. Nesse sentido apostamos, juntamente com outros autores (BASTOS &
PENCAK, 2009), na possibilidade de uma descontinuidade lógica entre a anorexia que
se apresenta na infância e aquela da puberdade ou idade adulta, sobretudo pelo
importante papel que manter ou alcançar uma imagem ideal exerce na cristalização
desse sintoma.

A experiência clínica evidencia que o desencadeamento da anorexia e da bulimia


coincide muitas vezes com a perda de um objeto de amor. A perda de um objeto que
possuía uma função narcísica para o sujeito gera uma ruptura em sua identificação,
fazendo com que o corpo despedaçado, que o véu do amor permitia recobrir, apareça. A
fantasia mítica de Eros, potência unificante, é uma compensação do terror ligado a esse
fantasma do corpo fragmentado (LACAN, 1966-67, 10/05/67).

O amado fica recoberto de uma imagem que adorna o corpo.


Por isso, a perda do amor é uma perda narcísica, com
conseqüências dilacerantes sobre o eu e sobre o corpo. Na
rejeição ou no abandono, o sujeito fica despossuído da imagem
com a qual o outro o cobria, da imagem que o outro projetou
sobre ele (BASTOS, 2009, p. 140-41).
Em resposta a isso, o sujeito pode fazer um sintoma que afete justamente sua
imagem, na tentativa de reaver o que foi perdido. Coloca a imagem no lugar do Ideal
que o amor representava, agarrando-se a ela. Vale lembrar que Narciso12 morreu de
fome por amor à sua imagem. Lacan nos fala que “não há amor que não dependa dessa
dimensão narcísica” (LACAN, 1967-68, 10/1/1968) e retoma Freud (1914) ao colocar
que amamos para sermos amados.

Tanto a anorexia como a bulimia são respostas possíveis diante da perda


libidinal. Vale retomar Freud em seus primeiros escritos: “perda de apetite, em termos
sexuais perda de libido” (FREUD, (1950 [1892-1899]), p. 247). A aproximação que
Freud fez entre a anorexia e a melancolia originou-se da dificuldade do sujeito em
realizar o luto por uma perda. Na anorexia, o luto pelo objeto perdido “impossibilita a
intenção mesma de realizar um trabalho de luto. A anoréxica reage ao evento
agarrando-se ao objeto (...)” (RECALCATI, 2004, p.155). O trabalho de luto implica na
mobilização do simbólico diante do encontro irredutível com o real, na historicização
desse furo.

A bulímia, ao contrário da anorexia, tenta compensar a ausência do signo de


amor, através da perseguição contínua e voraz do objeto comida. Em ambos os
movimentos encontramos a paixão pelo signo do amor. Mais ainda, ainda mais, a
demanda insiste na repetição do ato no ataque bulímico mostrando, de forma extrema, a
interseção entre a demanda de amor e a satisfação que a comida proporciona. O excesso
que anima o sujeito diz respeito à satisfação possível oferecida pelo consumo do objeto.
Mas o amor não é uma mercadoria, não se pode consumí-lo.

A bulimia indica a presença do real no objeto oral, seu resto pulsional deixa à
mostra a cifra do gozo da pulsão oral. Gozo enlaçado não à realidade da substância –
porque a pulsão, como sustenta Lacan (1964), não se fecha sobre o objeto – e sim sobre
o vazio. O que o sujeito coloca em cena com seus ataques bulímicos é o vazio. Apesar
de buscar a Coisa, enfrenta a desilusão do mal encontro. Essa busca do ter, da

12
Segundo o Dicionário de Mitologia Grega e Romana (KURY, 1990), Narciso era um rapaz muito
bonito e indiferente ao amor. Quando nasceu, seus pais Céfiso e Lríope, perguntaram a Tirésias qual seria
o seu destino. A resposta foi que ele teria uma vida longa se não visse o próprio rosto. Muitas moças se
apaixonaram por Narciso, mas ele não se interessou por nenhuma. A ninfa Eco, inconformada com a
indiferença, afastou-se para um lugar deserto onde definhou até que restassem somente seus gemidos. As
moças desprezadas pediram vingança aos deuses. Com pena delas, o deus Nêmesis, induziu Narciso a
debruçar-se numa fonte de água depois de um dia de caça. Foi quando viu seu rosto e apaixonou-se pela
própria imagem. Permaneceu nessa posição até morrer de fome e sede.
aglomeração de objetos, encontra a inconsistência do ser, o vazio no lugar da plenitude
esperada.

A anorexia-bulimia é, em efeito, uma paixão do sujeito. Uma


paixão causada por um objeto-substância (a comida) que se
coloca como objeto-causa, nunca simbolizável em sua
totalidade, seja ali onde orienta o sujeito para seu rechaço
obstinado (anorexia), seja ali onde se lhe apropria um modo
demoníaco impondo-lhe uma assimilação tão voraz como
infinita (bulimia) (RECALCATI, 2004, p.37).

A anorexia-bulimia é uma paixão pelo vazio, e, ao mesmo tempo, pelo sonho de


eliminá-lo. O vazio passa a ser a condição para que o sujeito possa existir. Enquanto a
anorexia o mantém através da fome, a bulimia o encontra ao final de cada um de seus
ataques de comilança. Por que o sujeito marca, com seu posicionamento diante do
objeto-comida, o lugar do vazio em seu posicionamento diante do Outro?

Alguns autores, dentre eles Blanco (2000), Casté (2000), Cosenza (2000),
Recalcati (2002) e Silva & Bastos (2006) relacionam a anorexia e a bulimia com os
movimentos de alienação e separação entre o sujeito e o Outro. Miller, juntamente com
Laurent (2000, p.22), serve-se da alienação e da separação para ordenar o que eles
denominam ser as enfermidades mentais da moda.

A anorexia está sem nenhuma dúvida do lado do sujeito


barrado. Até se pode dizer que a anorexia é a estrutura de todo
desejo. Enquanto que a bulimia põe em primeiro plano a função
do objeto. Isso poderia conduzir a formular que a anorexia está
do lado da separação (MILLER & LAURENT, 2000, p.24).

Enquanto a bulimia revela uma dificuldade de dizer não, sendo um efeito da


alienação entre o sujeito e o Outro, a anorexia se aproxima do campo da separação.
Esses movimentos, porém, não ocorrem de maneira isolada: não há separação sem
alienação e localizamos aí a dificuldade de encontrarmos esses sintomas também
dissociados. É controlando o corpo – o que entra e sai, seu tamanho e pesagem – que se
controla uma “boa distância” em relação ao Outro.

Se por sua forma radical de apresentação, por seu “não” constante diante do
alimento que lhe é ofertado e, sobretudo, pela recusa renitente diante da demanda do
Outro, muitas vezes a anorexia é vista como separação, perguntamo-nos se realmente
podemos falar de uma separação? “Visto ser a anorexia um sintoma que definha o
corpo, podendo levar à morte, não seria ela uma separação mal sucedida ou em
impasse?” (SILVA & BASTOS, 2006, p.99). Por isso, optamos por falar de uma
pseudo-separação (COPPUS & MONTEIRO, 2009). Recalcati chega a classificar essa
pseudo-separação como um movimento de “separação contra alienação” (RECALCATI,
2001, p.29), uma vez que a anoréxica tenta negar a dependência, a alienação originária,
do sujeito em relação ao significante. É o que demonstra sua recusa radical a qualquer
objeto que a satisfaça, atitude que a coloca em um lugar de onipotência frente a todos e,
principalmente, frente ao Outro.

É através do sintoma, aqui representado na relação peculiar do sujeito com o


alimento ofertado pelo Outro e com o seu corpo, que o sujeito tenta dar um sentido ao
desejo do Outro, fazendo uma equivalência entre o alimento e esse desejo.

Diante da angústia gerada pelo desejo do Outro, o sujeito pode se fazer


representar, através de seu desaparecimento. “O primeiro objeto que ele propõe a esse
desejo parental cujo objeto é desconhecido, é sua própria perda. Pode ele me perder?”
(LACAN, 1964, p.203). Face à dificuldade ou à impossibilidade de saber sobre o desejo
Outro, o sujeito se refugia na fantasia de sua própria morte. Nesse momento, Lacan
coloca que

a fantasia de sua própria morte, de seu desaparecimento, é o


primeiro objeto que o sujeito tem a pôr em jogo nessa dialética,
e ele o põe, com efeito – sabemos disso por mil fatos, ainda que
fosse pela anorexia mental (Ibid).

A anorexia retrata a posição daquele que quer saber até que ponto o Outro o
quer, qual o limite desse querer, sendo esta posição uma tentativa de tatear o desejo do
Outro.

Vemos, porém, que tanto a anorexia como a bulimia são sintomas que mantêm o
sujeito firmemente amarrado ao Outro. Isso aparece na clínica através da falta de
autonomia do sujeito em suas atividades corriqueiras, de sua complacência para com o
Outro. A dependência ao Outro materno é um traço fenomenologicamente recorrente da
experiência anoréxico-bulímica, a ponto da clínica da anorexia-bulimia ser considerada
uma “clínica do Outro materno” (RECALCATI, 2004, p. 82).

Na singularidade de cada caso, o analista, às voltas com a anorexia e a bulimia,


terá que lidar com o fato de que nem bem sucedida, nem totalmente malograda, essa
tentativa de separação pode aspirar ao desejo do sujeito. É justamente pelo viés do
desejo, que a falta pode ser afirmada e que o trabalho analítico pode apostar em uma via
onde a separação entre o sujeito e o Outro ocorre de outra maneira, em prol do circuito
do desejo (SILVA & BASTOS, 2006). De qualquer modo, esses sintomas ilustram como
o corpo participa de maneira direta das tentativas do sujeito de se posicionar frente o
desejo do Outro.

4.6- A anorexia e a inibição

Alguns pontos costumam ser centrais quando se trata da abordagem da anorexia


como sua frequência maior em mulheres, a grande proximidade com a histeria, o
emagrecimento do corpo, a peculiar relação com o Outro materno. Com isso, acaba-se
deixando de lado a afirmação de Lacan de que a anorexia é mental e possui uma relação
muito próxima com o saber. De que saber se trata? Por que Lacan aproxima a anorexia
do saber? A anorexia vai pouco a pouco se apresentando como uma recusa do sujeito
em saber da falta, da castração, da não existência da relação sexual (LACAN, 1972-73)
apesar de, paradoxalmente, colocá-la em cena. Com a anorexia, o sujeito cria um
“modus operandi”, uma forma ilusória de obter uma resposta sobre o desejo do Outro,
sobre o que fazer em relação ao sexual e ao ser mulher.
Localizamos dois momentos no ensino de Lacan que possibilitam esse enfoque:
quando aborda, em seu ensino, a intervenção de E. Kris em seu conhecido caso “O
homem dos miolos frescos” e no Seminário 21 “Les non-dupes errent/Les noms du
Père” (1973-74) onde define a anorexia em relação ao saber. Vejamos em detalhe essas
passagens.
Lacan (1954 e 1958) qualifica de anorexia mental o sintoma do paciente de
Ernst Kris13. Este homem, um jovem cientista de trinta e poucos anos, apresentava uma
severa inibição intelectual e foi tratado primeiramente pela analista, “Melitta
13
Ernst Kris (1900-1957) era vienense e contemporâneo de Lacan. Representante da psicologia do ego,
foi criticado por Lacan algumas vezes.
Schmideberg (1904-1983), que publica seu caso em 1934. Esse paciente não podia
pensar por medo de roubar, como roubava coisas para comer quando criança”
(LAURENT, 2000, p.132). O paciente estava bloqueado em sua profissão por um
impedimento de publicar suas pesquisas: ele acreditava ser um plagiador (KRIS, 1951).
“É um belo dia, eis que ele chega à sessão com um ar de triunfo. Está feita a prova: ele
acaba de pôr as mãos num livro, na biblioteca, que contém todas as idéias do seu”
(LACAN, 1954, p.396). O analista tomou a liberdade de ler essa obra, e, percebendo
que não havia nada no trabalho do paciente que merecesse ser considerado plágio, relata
isso ao mesmo, considerando que tal intervenção faz parte da análise. Após um longo
silêncio, o paciente diz que “Ao meio-dia, quando saio da sessão antes do almoço, e
antes de voltar ao escritório, sempre dou uma volta pela rua (...) e espio os cardápios
atrás das vitrines da entrada. É num desses restaurantes que costumo encontrar meu
prato predileto: miolos frescos” (Ibid, p.399), o que traduzimos, tendo como base o
conteúdo do caso, por idéias frescas, originais.

Lacan (1958) critica E. Kris que toma o ato do paciente como uma confirmação
de sua interpretação. Ele (1955-56) localiza aí um acting-out. O acting-out se produz
quando o analista simboliza algo prematuramente ao paciente, quando ele aborda
alguma coisa na ordem da realidade e não no interior do registro simbólico do paciente
(Id, 1955-56, p.96). Lacan, nesse mesmo texto, discorda da atuação do analista e aponta
a direção do trabalho.

Não é o fato de seu paciente não roubar que importa aqui (...) é
que ele rouba nada. E era isso que teria sido preciso fazê-lo
ouvir. (...) não é a defesa dele contra a idéia de roubar que o faz
crer que rouba. Que ele possa ter uma idéia própria é que não
lhe vem à idéia (Id, 1958, p.606).

Há uma anorexia quanto ao mental, “quanto ao desejo do qual vive a idéia”


(Ibid, p.607). O acting-out se caracteriza por colocar o objeto a em cena através de uma
mensagem endereçada ao Outro. “O essencial do que é mostrado é esse resto, é sua
queda, é o que sobra nessa história” (Id, 1962-63, p. 137). Através do acting o sujeito
procura um lugar no desejo do Outro, colocando em destaque algo da causa do seu
desejo, “expõe o resto, o objeto a que pode arrastar o sujeito em sua queda se o outro
não lhe der uma mão e sustentá-lo outorgando-lhe um lugar em seu desejo”
(AMBERTÍN, 2006, 116). Nesse caso especificamente, o que ‘sobra’ é o nada em sua
vinculação com o objeto oral, que aparece na cena dos miolos frescos, contada ao
analista posteriormente. Comia os miolos frescos apenas com os olhos, procurando-os
nos cardápios. Comia nada assim como roubava nada.

Lacan (1973-74) fala do desejo de saber e do horror ao saber. De forma


inovadora, aponta que é o horror e não o desejo que preside o saber. Buscamos o saber
para não nos depararmos com o horror gerado pelo não-saber. Assim Lacan possibilita
um aprofundamento na abordagem da anorexia. Ele interpreta a anorexia mental mais
além de sua incidência oral e a estende ao campo do saber.

Segundo Lacan (1973-74), diante da impossibilidade da relação sexual, há duas


opções para o sujeito: ou a certeza delirante da psicose ou a fantasia neurótica marcada
pelo saber inconsciente. Pollo apresenta a anorexia como uma resposta sintomática ao
horror que representa o saber inconsciente, “sempre movido por um ponto de
ignorância” (POLLO, 2000, p.67). Saber da castração torna-se insuportável para o
sujeito e por isso ele se retira do campo das idéias, não assume seu próprio saber, ainda
que parcial, gerando uma inibição.

No Seminário 21(1973-74) Lacan coloca a seguinte questão:

Mas por que eu como nada? Isso não a perguntaram, mas se o


perguntam aos anoréxicos, ou melhor, se a deixam vir (...) eu
perguntei a ela porque já me encontrava no desejo de invenção
sobre o tema; e que me responderam? É muito claro: ela estava
tão preocupada em saber se comia e para alimentar esse saber,
esse desejo de saber, havia deixado desfazer-se de fome a
menina. É muito importante esta dimensão do saber (...)
(LACAN, 1973-74, lição de 9/04/1974, grifo nosso).

O sujeito anoréxico estava preocupado em saber se comia ou não... para o Outro,


se estava em contato com o alimento, com suas marcas, com seu gozo. Comer nada é
uma “maneira de saber” como se posicionar em relação ao Outro, recusando os traços
que o alimento comporta, bem como a falta que o corpo porta. Nesse sentido, comer
nada pode ser também uma maneira de saber nada, de ignorar a impossibilidade de, a
priori, sabermos sobre o Outro e seu desejo. Como sintoma, ele fornece um saber
ilusório, um manual capenga sobre si e o Outro e tem como efeito a inibição do sujeito.
De qualquer forma, vale destacar que é em relação ao nada que esse sintoma se
apresenta. A partir do encontro com o sexual, o sujeito se pergunta: o que posso saber
disso? Com a anorexia ele responde: “quero saber nada disso”.

Mantendo uma posição de saber nada – a anorexia é também mental – e comer


nada o sujeito constrói uma saída imaginariamente segura, visando ultrapassar a
ignorância sobre o sexual que assola o sujeito habitado pela linguagem. ‘Saber nada’ é
uma posição que aponta para a inibição do sujeito, não apenas no campo intelectual,
como também em seu meio social, em sua sexualidade. Se num primeiro momento tal
saída apazigua a angústia, já que retira o sujeito de um enfrentamento mais efetivo da
castração, deixa à mostra que também claudica, com o gozo que pode levar o sujeito à
morte.

4.7- A versão obsessiva da anorexia-bulimia

Recalcati (2004) destacou uma versão obsessiva da anorexia-bulimia. Nesse


versão, a anorexia-bulimia é marcada por fortes traços obsessivos e resulta de um
movimento do sujeito em se manter distante do desejo. Objetivando a destruição do
desejo do Outro, o sujeito não quer de nenhuma maneira que seu corpo seja tocado pelo
desejo, operando através do significante, uma espécie de limpeza, que visa eliminá-lo
do corpo.

Como vimos, a anorexia-bulimia que se apresenta na neurose é essencialmente


um desafio dirigido ao Outro. Um desafio do qual o sujeito faz uso de duas maneiras
possíveis: ou em uma versão histérica – que é a maneira como temos abordado até aqui,
ou seja, o sujeito faz de seu corpo o que pode faltar ao Outro –, como em uma obsessiva
(RECALCATI, 2004). Como se apresenta a versão obsessiva da anorexia-bulimia?
Aqui, o sujeito renuncia ao desejo de modo definitivo, aniquila-se na imagem,
“arriscando a vida antes de dar um sinal de seu próprio desejo ao Outro, de mostrar sua
própria falta, antes de ser pego na contingência do desejo (esta é a versão obsessiva da
anorexia-bulimia)” (Ibid, p.172).
Colocamos em destaque a rica fenomenologia que a anorexia-bulimia apresenta
em relação aos controles e rituais da alimentação. A preparação dos pratos, a divisão
dos alimentos em categorias, a limpeza dos mesmos, o próprio peso e o cálculo de
calorias são exemplos desse controle excessivo. Além disso, o sentimento de tentação
em relação ao alimento, a culpa inconsciente, a angústia de expectativa e os cerimoniais
também são frequentes. O controle do sujeito em relação a sua própria imagem, às
alterações do corpo, ao que entra e sai, representam a busca de uma distância ideal entre
o sujeito e o Outro.

Na neurose obsessiva, há um movimento do sujeito de excluir a surpresa, o


incerto, a contingência, o sexual. Tendência ao nada, nada que altere sua suposta
estabilidade. A anorexia pode se apresentar como um lugar seguro para o sujeito, função
própria do sintoma na neurose. O nada aqui aparece mais como equilíbrio do que como
vazio. O sujeito tenta fazer do corpo um deserto de desejo, uma ausência. O que é na
realidade o controle, “senão um modo de dar regras à contingência real do corpo
sexuado e de seus transtornos em relação ao desejo do Outro?” (Ibid, p.90). O valor
mágico que possui a contagem das calorias e das quantidades ingeridas deriva da idéia
de calcular, via significante, o desejo do Outro.

O exercício do controle nos mostra tanto a função de defesa do sujeito em


relação ao desejo do Outro, como também de autopunição, quando há a transgressão
dessa lei imposta pelo próprio sujeito. Vemos um corpo polido, limpo, lesionado e
sequelado pelo uso de laxantes e pela indução constante de vômitos. É como se o sujeito
fizesse uma operação sobre o corpo, visando reduzir, sem limite, sua face sexual, sua
economia, seu desejo.

A anorexia oscila entre a afirmação exaltada da imagem do corpo magro - via


estética que encontra satisfação na fascinação narcísica - e o rigor que o sujeito se
impõe na forma de uma renúncia progressiva à vida, ao desejo. O automatismo do
supereu, presente na clínica da anorexia-bulimia, oscila entre o “coma o nada!” e o
“coma tudo”. A anorexia e a bulimia vêm mostrar que o corpo sofre os efeitos dessa
tirania. A abordagem do supereu como o verdadeiro centro matapsicológico do discurso
anoréxico-bulímico (Ibid) possibilita um novo olhar sobre esse sintoma.

Se esse supereu hipersevero permite que o sujeito desafie a morte na anorexia,


na bulimia, o supereu se apresenta em sua dimensão de puro imperativo de gozo,
presente na compulsão à repetição dos ataques de comida que tenta obturar a falta-a-ser
do sujeito através do suporte do objeto-comida. Sendo assim, ao articulá-las ao supereu,
a anorexia/bulimia está pensada como uma das vicissitudes do Édipo. Diferente de
pensá-la tal como comparece em bebês ou crianças pequenas.

Seja na versão histérica ou na obsessiva da anorexia, assim como na bulimia, a


busca por uma imagem ideal encontra-se na base de suas sintomatologias. Perguntamos
então por que a imagem do corpo é um campo tão fértil para que os impasses do sujeito
apareçam através dela?

4.8 - A função da imagem: o excesso em evidência

14

A psicanálise leva em consideração para a constituição da imagem corporal tanto


a fantasia inconsciente, como seu valor libidinal, destacando o gozo que pertence à
relação do sujeito com a própria imagem investida narcisicamente. Retomando a
história científica da anorexia, o Simpósio de Gottingenn de 1965 (COBELO, s/d), de
forma pioneira, ressaltou a importância da imagem do corpo no que se refere à anorexia,
interpretada no mesmo como índice de uma dificuldade na construção dessa imagem.

Lacan trabalha profundamente a relação entre a causalidade psíquica e a imago


em sua teoria do estádio do espelho (1949), momento em que, como vimos na parte 3,
advém uma espécie de costura da imagem corporal do sujeito. A passagem de um

14
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menos – o corpo fragmentado – para um mais – unidade representada pela imagem –
ocorre de maneira peculiar na anorexia-bulimia. “O mais da Imago torna-se, na posição
do sujeito anoréxico-bulímico, um mais ao quadrado. Assume uma espécie de valor
absoluto.” (RECALCATI, 2004, p.113). Localizamos, então, como uma estratégia da
anorexia e da bulimia, a amplificação do valor libidinal do corpo para subtrair-se do
preço imposto pela castração. “Este é, efetivamente, um elemento central na clínica da
anorexia-bulimia: a existência de um gozo da imagem” (Ibid, p.114).

O sujeito goza com a imagem de seu corpo. Gozar da imagem nos faz retomar
o narcisismo que é definido por Freud como a possibilidade do corpo, enquanto
imagem, ser investido libidinalmente. Lacan (1974a) também nos disse que “o corpo, se
introduz na economia do gozo (foi daí que parti) pela imagem do corpo. A relação do
homem, do que se chama por seu nome, com seu corpo, se há algo que sublinha bem
que ela é imaginária, é o alcance que aí toma a imagem” (Id, 1974a, p.55).

Como a imagem possibilita um gozo ao sujeito (especificamente) nesse


sintoma? A imagem do corpo pode vir como um “substituto da falta de significante que
representaria o sujeito no Outro” (SORIA, 2001, p.41). A mulher comprova essa
substituição com a prevalência desses sintomas em seu campo. Uma modalidade pela
qual a histérica buscaria se nomear “como mulher será através da imagem de seu corpo,
procurando esgotar na imagem a pergunta sobre a feminilidade” (Ibid, p.42).

Tentativa que encontra o fracasso. A imagem que constitui o sujeito é ao mesmo


tempo uma imagem perdida para sempre, tal qual o objeto perdido da primeira
experiência de satisfação (LACAN, 1953, p. 249 a 251). A anoréxica-bulímica sonha
em controlar sua imagem e assim, recuperar, mediante uma identificação narcísica, o
que encontra-se ausente na imagem do espelho.

Lacan diz que a estrutura narcísica possui um caráter irredutível para o sujeito
(1955, p.428). “Isto significa que existe um gozo que pertence à imagem e que está fora
do simbólico, fora da ordem da lei simbólica...” (RECALCATI, 2004, p.118). Esse resto
de libido que pertence à imagem e que não cede à lei simbólica indica a obstinação do
gozo narcísico e sua insistência não plenamente simbolizada.

Assim, acreditamos que o que a medicina e a psicologia chamam de “percepção


distorcida” da imagem é efeito do excesso de gozo que o sujeito experimenta na busca
pelo controle e consistência de sua imagem. O ‘a mais’ que só ele enxerga no espelho e
tenta eliminar a qualquer custo, retorna através da deformação da imagem especular
(SORIA, 2001). É o que vem demonstrar a angústia que o sujeito sente diante do
espelho: algo a mais sempre permanece na imagem, indicando um ponto irredutível,
cego na cena. Por mais que o sujeito aspire a uma imagem ideal, não pode - por
questões lógicas - obtê-lo.

A anoréxica busca a coincidência entre seu eu e o ideal. Busca que aponta


para um fracasso, testemunhado pela percepção equivocada do próprio corpo: ainda que
seu corpo esteja reduzido a um esqueleto, existe sempre, em alguma parte, um excesso
de carne, um excesso de gordura. O sujeito que apresenta anorexia-bulimia reduz “a
imagem do corpo à loucura narcisista de um ideal descarnado” (RECALCATI, 2002, p.
51).

Verificamos, então, um aumento do controle do sujeito em relação a sua


imagem. O sujeito se agarra à imagem, ao sentido que a imagem fornece para ele
(LACAN, 1975-76). A anorexia coloca em ato a tentativa de fazer valer o poder e o
controle da imagem, tendo como objetivo apaziguar o sujeito. É possível situar aí a
aspiração anoréxica de existir como “pura imagem” (SORIA, 2001, 38). O sujeito tenta
“extrair do corpo o excesso próprio da carne, rechaçando o corpo em sua dimensão real
(..)” (Ibid). A imagem, porém, traduz sempre a relação do sujeito com a castração
(LACAN, 1962-63), por mais que ela também tenha a função de véu para a mesma.

Quando afirmamos que esse sintoma pode aparecer após o encontro traumático
do sujeito com o real – seja nos encontros com a sexualidade, com a morte ou com a
perda do amor –, sendo o corpo uma possibilidade de enquadrar o excesso de gozo
experienciado pelo sujeito, vamos na direção apontada por Lacan – vale repetir – de que
“toda formação humana tem, por essência, e não por acaso, de refrear o gozo” (Id,
1967a, p. 362). No Seminário 23 (1975-76), Lacan deixa isso ainda mais claro,
afirmando que o corpo serve para enquadrar o gozo através de sua imagem: “o
enquadramento tem sempre uma relação pelo menos homonímia com o que lhe é
suposto contar como imagem” (Id, 1975-76, p.144).

O corpo magro parece, à primeira vista, representar o esvaziamento do gozo do


corpo operado pelo significante, um corpo convertido em um deserto de gozo. Mas esta
aparência se dissolve diante do gozo puro da pulsão de morte que se faz presente com
esse corpo desfalecido. Sentir os ossos, ver as veias e os músculos marcarem a pele,
apalpar o corpo em renovadas inspeções, realizar contínuas operações de purificação,
deixam à vista a possibilidade de se fazer do corpo um instrumento de gozo.

Fazer do controle da imagem um meio de se aproximar do ideal é o que nos faz


aproximar a anorexia-bulimia da neurose obsessiva. Aproximação que é feita a partir de
traços. Não encontramos, em nossas pesquisas, muitos artigos que trabalhem o
desenvolvimento desse sintoma em neuróticos obsessivos. Quando se apresentam em
homens, costumam ser histéricos. Os neuróticos obsessivos estariam livres dessas
manifestações?

O homem dos ratos15, caso clássico para se estudar a neurose obsessiva,


desenvolveu um sintoma em relação ao emagrecimento. Começou a se sentir gordo e
adotou estratégias, consideradas por Freud (1909) exageradas, para perder peso
rapidadente, como caminhar ao meio-dia sob um sol quente. Onde poderíamos localizar
esse sintoma? Em busca de uma imagem ideal – um corpo mais magro – o sujeito
sacrifica sua satisfação oral. A aproximação do sintoma da anorexia-bulimia com os
traços obsessivos, juntamente com o que a clínica vinha nos erigindo, instigou-nos a
pesquisar as possíveis maneiras do corpo se apresentar na neurose obsessiva, o que
veremos logo a seguir.

Finalizando essa parte, perguntamo-nos o que uma análise proporciona ao


sujeito nesse contexto? Fazer cair a imagem ideal, questionar a possibilidade de existir
como pura imagem, permitir que os movimentos de alienação e separação passem pela
dimensão da palavra e se haver com as satisfações que animam o corpo do sujeito são
alguns dos direcionamentos clínicos que se fazem presentes nos tratamentos.

Parte 5

O corpo (escravo) na neurose obsessiva.

15
Analisado por Freud em 1909, o paciente ficou eternizado na história da psicanálise como uma das
cinco análises mais conhecidas e discutidas por Freud. Trata-se de um caso clássico de neurose obsessiva.
“La théorie, c’est bom, mas ça n’empêche pás d’exister”16

(Charcot apud FREUD, 1893).

Se hoje podemos falar em uma neurose que se nomeia obsessiva, é graças às


descobertas de Freud, influenciadas por suas observações clínicas. Ele toma para si a
‘paternidade’ dessa neurose que se faz bastante presente na clínica psicanalítica. A
partir da escuta das histéricas, Freud chegou à descoberta do inconsciente e estabeleceu
com suas leis os impasses que o desejo coloca para o sujeito. Com a neurose obsessiva,
Freud pode ver que a racionalidade não é a solução para esses impasses. Bem pelo
contrário. Deparou-se com uma neurose onde os pensamentos aprisionam o sujeito e as
cobranças sem mediação são capazes de paralisá-lo. Seja pela via da insatisfação ou do
impossível, a neurose nos mostra as dificuldades do sujeito em lidar tanto com a
castração, assim como com a dimensão de risco que o desejo envolve.

Se por um lado vemos nas últimas décadas discussões acerca da histeria –


sobretudo relacionadas aos sintomas que a mesma tem apresentado à clínica médica e
psicanalítica, tais como: anorexia, bulimia, fibromialgia, depressões, disfunções em
relação à imagem corporal, dentre outros –, chama a atenção o número restrito de
publicações em relação à neurose obsessiva. Talvez isso esteja relacionado com as
características de sua própria estrutura ou tenha sido absorvida pelas terapias
comportamentais via toc. É curioso observar que apesar da neurose obsessiva gerar
impasses ao analista, não encontramos muita coisa de novo em relação à teorização da
mesma já há algum tempo. Encontramos, com algumas exceções, a neurose obsessiva
sendo abordada a partir de temas como o forte investimento libidinal nos pensamentos,
o apreço pelo controle e pela racionalidade, a dúvida que retira o sujeito da realidade, a
menção do desejo no campo do impossível, a ação feroz do supereu, a analidade, o
Homem dos Ratos.

A partir da escuta clínica, a neurose obsessiva nos mostra que nenhuma estrutura
pode ser abordada na sua peculiaridade, se ficar restrita a um labirinto de conceitos
percorrido sempre da mesma forma em busca da saída. Além da singularidade que cada

16
“A teoria é boa, mas não impede as coisas de existirem”.
caso exige, a dinâmica inconsciente abre a possibilidade para que o analista e o
pesquisador possam se movimentar e abordar tanto a clínica como a teoria – que no
caso da psicanálise andam juntas – a partir de lugares que se alteram. Foi assim que
começamos a pesquisar o lugar do corpo na neurose obsessiva.

No início de nossa tese tínhamos como objetivo analisar a articulação entre


corpo e sintoma. Vimos que não era possível abordarmos um sintoma da neurose onde o
corpo não estivesse implicado, seja pela satisfação pulsional presente no sintoma, seja
pela exigência de que, estando no campo da neurose, da castração, o sujeito constrói e
se reconhece em um corpo enquanto simbólico, imaginário e real ou, por fim, pelas
formulações lacanianas em relação ao nó borromeano. Com essas últimas, não é
possível excluirmos um dos três registros do campo da realidade do sujeito, já que o
imaginário envolve o corpo. Sendo assim, se por um lado conseguimos localizar, de
forma mais precisa, o lugar do corpo na histeria, seria necessário investigarmos como o
corpo se apresenta na neurose obsessiva. A clínica da neurose obsessiva vinha nos
mostrando, com uma certa insistência, que não era possível continuar deixando o corpo
fora de sua dinâmica. Se a clínica analítica é anterior ao discurso analítico (LACAN,
1973, p.554), foi ela quem nos alertou e instigou para a pesquisa e construção de
algumas diretrizes que possam auxiliar a escuta analítica desses casos.

Nosso intuito, porém, não é fazer afirmações generalistas sobre a neurose


obsessiva, reduzindo-a, de maneira obsessiva, a determinadas características e sintomas.
Lacan fez questão de ressaltar que só existe análise do particular (Ibid, p.554),
lembrando a orientação freudiana de que o analista deveria tomar cada caso como se
fosse sempre o primeiro. Os sujeitos não respondem da mesma maneira à demanda do
Outro, nem elegem as mesmas estratégias para manter o desejo no campo do
impossível. O caso a caso é a única via de abordarmos o sujeito na neurose obsessiva e
foi a partir dessa singularidade que escrevemos.

Antecipando uma discussão que abordaremos com mais detalhe logo a seguir,
perguntamos: em que cenário o corpo aparece nas queixas dos pacientes obsessivos?
Que papel possui? Será sempre um papel secundário? Como se a morte é o mestre do
obsessivo, ou seja, ele trabalha incessantemente para evitá-la colocando em cena
sintomas hipocondríacos e rituais de assepsia. O corpo se coloca da mesma maneira
com que aparece na dinâmica histérica, ou seja, no sintoma que metaforiza o corpo e
direciona uma mensagem ao Outro, ou haveria algo de diferente?
Passamos pelo seu surgimento, sua etiologia, seus casos mais comentados, seus
traços característicos. Tentamos abordar esses pontos chaves a partir do corpo, ou seja,
como o corpo se apresentava desde o surgimento da teoria da neurose obsessiva, em sua
etiologia e em seus traços. Mas, para além disso, era necessário escutarmos de que lugar
ou de quais lugares o corpo se inseria no discurso e na dinâmica da neurose obsessiva e,
para isso, foi necessário afinar os ouvidos nos acordes do desejo.

Assim, parafraseando o tempo lógico de Lacan (1945), com seus três tempos
característicos, chegamos, em nossos estudos sobre a neurose obsessiva, no tempo de
ver, à inibição, no tempo de compreender, à impossibilidade de relacionarmos a
totalidade das queixas em relação ao corpo na neurose obsessiva apenas com a inibição
e, no tempo de concluir, que o corpo pode se apresentar na neurose (obsessiva) como
inibição, sintoma e angústia. Nesse capítulo daremos mais ênfase à relação entre a
neurose obsessiva e a inibição, sem deixarmos de abordar como seus sintomas e
angústias se apresentam na mesma. Com isso, porém, não temos o intuito de afirmar
que a inibição só aparece na neurose obsessiva. Ela é uma forma de defesa que se
encontra presente em diversas estruturas e com diferentes funções, conforme pudemos
ver em relação à anorexia. A neurose utiliza-se do corpo como um instrumento capaz de
encarnar as diferentes possibilidades do sujeito responder ao desejo do Outro.

Serão abordadas no próximo capítulo as articulações entre inibição, sintoma e


angústia com os três registros e com o corpo, bem como as conseqüências que a
introdução dessa tríade freudiana no nó borromeano tiveram para a clínica da neurose.

Além disso, o capítulo presente possui um pequeno histórico sobre o surgimento


e as primeiras formulações, tanto de Freud como de Lacan, acerca da neurose obsessiva,
percurso que enriquecerá nossa abordagem da inibição. Para isso, servirão de eixo os
textos de Freud que abordam a neurose obsessiva, “O eu e o isso” (1923), “Inibição,
sintoma e angústia” (1926 [1925]), bem como os de Lacan, o Seminário 10 (1962-63) e
o Seminário 22 (1974-75).

Lacan nos diz que “o real (...) é o mistério do corpo falante, é o mistério do
inconsciente” (LACAN, 1972-73, p.178). O real nunca deixa de nos surpreender: novos
rostos, novas arestas, novos ardis se apresentam à clínica psicanalítica. Com essa
afirmação, perguntamo-nos como o corpo coloca o mistério do real em cena na neurose
obsessiva, uma vez que, tradicionalmente, vemos a mesma ser abordada pela via do
pensamento. Dessa forma, caso fôssemos tomar a separação cartesiana como referência,
seus sintomas abarcam, sobretudo a esfera do cogito e, com isso, dúvidas, elisões,
racionalização e anulações jogam a todo o tempo com as representações e os afetos.
Outros impasses, que a princípio não estariam diretamente ligados ao pensamento, têm
como pano de fundo a implicação deste último, como a busca de controle, a verificação
das atividades, as hesitações. Tais características têm como base a própria definição da
neurose obsessiva, abordada por Freud como uma neurose que difere da histeria
justamente por ter seus sintomas expressos na esfera do pensamento e não na esfera
somática. De forma diversa, porém começou a chamar nossa atenção a freqüência com
que os impasses em relação ao corpo apareciam nas análises dos sujeitos obsessivos,
homens e mulheres. O corpo é o campo onde a sexualidade é vivida, onde o desejo se
expressa, onde a angústia é referida. De tal forma, as dificuldades que o sujeito traz em
relação a esses pontos necessariamente se expressam ali. São impotências, compulsões
sexuais, rituais de lavagem, hipocondria, frigidez, dores de cabeça indecifráveis,
problemas intestinais. O corpo é frágil. Conforme observamos antes, para que ele se
constitua, a castração deve estar nele representada. Talvez por isso, em sua fala, o
obsessivo se coloca com uma certa fragilidade em relação às questões do corpo. Como
disse um paciente, “o que se passa no meu corpo me escapa. Não tenho como
controlar”.

Como defesa a isso, o obsessivo muita das vezes parafraseia o personagem “o


cavaleiro inexistente” de Ítalo Calvino (2005). O autor (1923-85) escreve a história de
um cavaleiro que não tinha corpo, apenas a armadura. Uma armadura branca, sem
nenhum arranhão, apesar de se engajar nas lutas mais árduas. O livro nos alertou para a
relação que o autor estabelece entre o corpo e a vida. Sem um corpo, o cavaleiro que
trazia consigo fortes traços obsessivos não existia, era apenas armadura, ele não saía
nunca de dentro da armadura, “não há dentro nem fora. Tirar ou por a armadura não faz
sentido para mim” (CALVINO, 2005, p.22). O corpo no texto não faz referência apenas
à materialidade, mas ao que o anima: os afetos, a sexualidade, a dor. Ataulfo, o
cavaleiro inexistente, não conseguia o alívio de dormir por não ter um corpo, nem
pegaria sarna por não ter nariz (Ibid, p.18). Não ter um corpo livra o sujeito da dor, da
doença.

A comparação entre o obsessivo e o cavaleiro, o soldado, não é apenas nossa.


Uma paciente, ao se definir através de suas cobranças, seu ímpeto para o trabalho, sua
armadura de saber em relação aos sentimentos, com certo espanto e tristeza, diz que é
um soldado, um instrumento útil. Sempre fora um soldado dos mais bem mandados,
orgulhando-se de ser a melhor na profissão onde se destacava. Não queria mais ser
soldado, é tomada por uma doença grave e questiona o sentido da vida. É isso que a leva
ao processo de análise. Nunca ligou para o corpo e agora ele lhe apronta uma dessas. É
a partir do medo da morte que ela consegue questionar o valor e a função dessa
armadura que mais a aprisiona que a protege, seu lugar de mulher, seu corpo que passa a
não servir apenas para produzir. Não sendo soldado, que lugar restará a ela?

Comecemos do surgimento da neurose obsessiva.

5.1 - A origem da obsessão

O campo de origem dos estudos sobre a obsessão foi a psiquiatria. Seu quadro
clínico começou sendo denominado com o termo genérico obsessão e situado bem
próximo da psicose. Em um segundo momento, chegamos às alterações realizadas por
Freud e pela psicanálise que fornece à mesma o estatuto de uma neurose.

De forma curiosa, obsessão (FALRET, 1886) vem do inglês obsession, cuja raiz
vem da expressão latina obsessus que significa sitiado, cercado (RIBEIRO, 2001, p.19).
Aquele que sofre de obsessões é um sujeito preso em seus pensamentos. A submissão
do sujeito aos mesmos é tão marcante que Pinel (1745-1820), em 1801, acaba por
definir o quadro por sua sintomatologia típica: a “mania sem delírio” (apud SAURÍ,
p.41). Apesar de localizá-la no campo da mania, ressaltou seu diferencial: não havia
nenhum comprometimento no entendimento do sujeito. Além dessa primeira
caracterização, Pinel destaca também outras particularidades do quadro como a
presença de um instinto de furor, fortes alterações de humor, ondas de calor e ardor
veemente nos intestinos (Ibid, p.42). Dessa forma, desde o primeiro momento, há uma
ligação entre o quadro da obsessão e um mal-estar no corpo, aqui delineado como um
incômodo intestinal. O termo idéia obsessiva apareceu pela primeira vez em 1867, em
um texto de Krafft-Ebing (apud FREUD, 1907, p.109). Foi com esse termo que Freud
deu início às suas formulações sobre a neurose obsessiva.
Falret (1886) será o primeiro a utilizar o termo “loucura racional” (FALRET,
1886, apud SAURÍ, p.42) para definir a obsessão. Psiquiatra francês, Falret fez uma boa
caracterização fenomênica da neurose obsessiva, destacando o “temor de contato” e a
“loucura da dúvida” como fundamentos principais (Ibid, p. 47-48), assim como, em
importância menor, a demora à mesa e no toilette17. Além disso, reconhece que esse
estado exige do paciente um desgaste excessivo de energia nervosa.

A “loucura da dúvida” ganha destaque no texto de Saulle em 1875. O autor


caracterizou a relação entre o doente e sua doença como uma luta silenciosa onde “o
sitiado não se queixa do sitiador” (Saulle, 1875 apud SAURÍ, p.53). Além disso,
enfatizou a presença de escrúpulos exagerados, apreensões, angústias e instintos
anormais de limpeza. Saulle acreditava em uma causa hereditária. Freud, no início de
seus escritos, utilizou também essa expressão, chamando os atos obsessivos de ‘folie de
doute’18 (FREUD, 1950[1892-1899a], p.238).

Destacamos, de uma maneira geral, a maneira como a obsessão era definida pela
psiquiatria no final do Séc. XIX, ou seja, como o “medo de contato (...) as obsessões, as
impulsões, as manias mentais, a loucura da dúvida, os tiques, as agitações” (SAURÍ,
1985, p.73).

Kraepelin, em1905, escreve um artigo intitulado “Obsessões e Fobia”, mesmo


título utilizado por Freud (1895[1894]), onde aproxima as mesmas (apud SAURÍ, 1985,
p.73). No entanto, como veremos, uma das primeiras preocupações de Freud foi
exatamente diferenciá-las.

Vale a pena destacar que nesse momento inicial da entrada da obsessão na


psiquiatria, havia um lugar para os impasses daquele que portava esse sofrimento
psíquico, lugar representado nos próprios termos que eram utilizados para classificá-lo:
loucura da dúvida, sitiado e sitiador. Na atualidade, essa neurose foi reduzida nos
manuais de psiquiatrias a uma sigla. O TOC – transtorno obsessivo compulsivo – acaba
sendo o representante da dinâmica de uma neurose que foi reduzida, por essa
linguagem, a um de seus traços, a compulsão. Nesse sentido, a singularidade do sujeito
bem como a de sua estrutura, o que diferencia o lugar e a função daquele
comportamento, fica relegada ao segundo plano ou é ignorada.

17
Banheiro.
18
Loucura da dúvida.
Submetido à palavra do outro, escravo temeroso em relação ao desejo, o
neurótico obsessivo já é um conformista. Negar sua subjetividade e reduzir toda a
complexidade de seu sofrimento a uma sigla é confirmá-lo como morto-vivo, mantê-lo
para sempre escravizado à palavra do Outro (RIBEIRO, 2006).

Se o analista consegue ouvir aí o ‘não me toque’ do obsessivo ou o seu


categórico ‘não quero tocar nisso’, abre espaço para uma outra via de trabalho, aquela
em que o sujeito está implicado.

5.2- A neurose obsessiva em Freud

Em um primeiro momento, Freud (1894) destaca que as obsessões podem ser


uma patologia que, juntamente com a fobia, está relacionada ao afeto que, “livre, liga-se
a outras representações que não são incompatíveis em si mesmas, e graças a essa ‘falsa
ligação’, tais representações se transformam em representações obsessivas” (FREUD,
1894, p.59). Essa forma de defesa possui, porém, menos vantagens que a conversão,
pois o eu fica restrito, inibido, sofrendo os efeitos do afeto livre (Ibid, p.61, grifo nosso).

Freud (1895[1894]) fez uma diferenciação entre obsessão e fobia. Caracterizou a


última pela presença marcante e única de um determinado tipo de afeto: o medo. Já na
obsessão, outros afetos, para além do medo, estão presentes. Falava ainda em obsessão e
não em neurose obsessiva.

Foi apenas em 1896 que Freud utilizou pela primeira vez o termo neurose
obsessiva. “Fui obrigado a começar meu trabalho por uma inovação nosográfica.
Julguei razoável dispor ao lado da histeria a neurose obsessiva, como distúrbio
auto-suficiente e independente (...)” (Id, 1896, p.146).

Surgia assim uma neurose singular, o tema, segundo Freud, “mais interessante e
compensador da pesquisa analítica” (Id, 1926[1925], p.115). A obsessão, à qual Freud
se referia, era uma neurose. E isso queria dizer o que? Houve uma aposta de que todos
aqueles sintomas derivavam da difícil relação do sujeito com o pai, das marcas deixadas
pelo complexo de Édipo. Com a universalidade da influência do Édipo no campo da
neurose (15/10/1897), é possível compreender como na neurose obsessiva o encontro
com o sexo retorna como culpa e desprazer. Se sua teoria sobre o complexo de Édipo
estava sendo formulada, a sexualidade enquanto uma experiência traumática se situava
no centro de suas atenções. Ao concentrar a questão da obsessão em torno do pai e da
experiência sexual traumática, Freud delimita o campo de uma nova neurose ao lado da
histeria.

As idéias obsessivas são, sobretudo, auto-acusações. Geralmente são


acompanhadas de vergonha, angústia hipocondríaca, social e religiosa (Id, 1896, p.173).
Pensamentos e atos obsessivos, cerimoniais e auto–flagelação passam a constituir essa
entidade clínica especial (Id, 1907, p.109). Os cerimoniais neuróticos são definidos
como restrições ou arranjos de atos cotidianos. Todas essas características surgem no
cenário da psicanálise como atos de defesa do sujeito, medidas protetoras que visam
segurança (Ibid, p.114). O que está representado nesses atos deriva das experiências
mais íntimas do sujeito (Ibid, p.111).

Freud, então, cria um novo lugar para a obsessão ao discutir sua etiologia. Como
uma neurose, ela é regida pelo recalque dos eventos traumáticos da sexualidade. Da
correspondência com Fliess até o texto do Homem dos Ratos (1909), sua etiologia gira
em torno do prazer experimentado no encontro com o sexo ainda na infância. Haveria a
marca de um prazer excessivo ligado a uma experiência sexual que, quando recordada,
evoca a recriminação e o escrúpulo. Na neurose obsessiva haveria uma atividade sexual
precoce. E ela, mais do que a histeria, torna óbvio que os fatores que formarão uma
psiconeurose podem ser encontrados na vida sexual infantil (Id, 1909, p.148-9). Isso se
justifica pelo fato de que na histeria essas experiências caem na amnésia, enquanto na
neurose obsessiva elas ficam guardadas na memória.

A diferença em relação às neuroses está relacionada à forma como a experiência


sexual traumática foi vivenciada: de maneira ativa e prazerosa na neurose obsessiva e de
maneira passiva e desprazerosa na histeria. Soler (2004) nos dirá que na histeria o
traumatismo está relacionado com um a menos que faz furo, utilizando para
caracterizá-lo o neologismo francês troumatisme (trou = furo). De forma semelhante, na
neurose obsessiva observamos um tropmatisme, um excesso de gozo, um gozo a mais
(trop = excesso) (SOLLER, 2004, p.73).

Freud (1906[1905]) posteriormente modifica essa tese inicial que ligava a


escolha da neurose à forma como a experiência sexual era vivenciada. Seguindo seu
desenvolvimento, em “A disposição à neurose obsessiva” (1913) a organização anal
ganha destaque na etiologia da neurose obsessiva. Em suas palavras, “a neurose é
determinada pela forma com que o indivíduo atravessa o curso de desenvolvimento de
sua função sexual (...), pelas fixações a que sua libido se submeteu” (FREUD, 1917a,
p.148). A neurose obsessiva passa a ser definida como uma neurose em que houve a
fixação do sujeito em uma etapa no desenvolvimento libidinal do sujeito: a fase anal.

Dessa forma, é possível destacarmos que, em um primeiro momento, o corpo se


apresentou na etiologia da neurose obsessiva como o campo onde a experiência sexual é
vivida de maneira excessiva e prazerosa. Tais experiências deixaram marcas no corpo
do sujeito. Marcas que ele sonha apagar ou anular. Como nos disse Freud (1908): Dirt is
matter in the wrong place19. O corpo é o lugar onde a sexualidade se expressa e a pulsão
se satisfaz.

Posteriormente, com a influência da constituição anal nessa neurose, sua


etiologia passa a ser derivada de um ponto de ancoragem do sujeito no corpo.
Colocando em destaque essa articulação, Freud evidenciou a conexão entre a
constituição do caráter do sujeito e a fixação libidinal em determinada fase da
sexualidade (Ibid), marcada em determinada zona do corpo erógeno. Surge então o
caráter anal que possui como característica a ordem, a parcimônia/avareza e a
obstinação/rebeldia (Ibid, p. 159). Esses traços são resultados da sublimação e da
formação reativa do erotismo anal (Ibid, p. 161). Abraham foi um autor de grande
influência nas construções freudianas acerca desse tema. Foi ele quem apresentou a
derivação da fase anal em fase anal-sádica e, além disso, apontou a forte presença da
inibição na neurose obsessiva, relacionando-a também com a fase anal (Abraham, 1921,
apud SAURÍ 1985, p. 96).

“A limpeza, a ordem e a fidedignidade dão exatamente a impressão de uma


formação reativa contra um interesse pela imundice perturbadora que não deveria
pertencer ao corpo” (FREUD, 1908, p. 162). É desse texto a afirmação freudiana de que
“o diabo nada mais é do que a personificação da vida pulsional inconsciente recalcada”
(Ibid, p. 163).

Freud (1915b) fez uma diferenciação das neuroses a partir dos diferentes
destinos que são dados ao afeto do representante pulsional após o processo de recalque.
Se na histeria o afeto é inervado no corpo, produzindo os sintomas somáticos, na

19
“A sujeira está situada no lugar errado”.
neurose obsessiva ele é deslocado para outras idéias, ficando retido na esfera mental. O
que retorna do recalque é uma ansiedade social, moral e autocensuras ilimitadas.

É nessa divisão que localizamos a justificativa para a distinção equivocada


utilizada, de forma didática, por muitos anos no campo da psicanálise. Em alguns
momentos da obra de Freud é possível localizarmos relações estanques entre
determinados sintomas e os tipos de neuroses propostas pelo autor. Este fato pode ser
visto na afirmação de que a neurose obsessiva “prescinde quase que completamente dos
fenômenos somáticos e cria todos os sintomas da esfera mental” (Id, (1916-17
[1915-17]), p.306). Outros autores dão continuidade a essa idéia. Poucas vezes
encontramos um autor que faça objeção a isso. Miller (2003a) afirma que apesar dos
sintomas na neurose obsessiva serem por excelência sintomas do pensamento, eles
possuem um cortejo de sintomas corporais (MILLER, 2003a, p.320-1). Ribeiro (2001 e
2006) também irá questionar essa divisão ao retomar as articulações de Lacan entre o
pensamento e o afeto. O afeto é o efeito da afetação do significante no corpo. O
obsessivo possui uma relação particular com o significante, seu submetimento ao
mesmo faz com que esperemos seus efeitos no corpo.

Houve, então, uma separação entre os sintomas e as neuroses – a histeria


apresentaria sintomas no corpo e a neurose obsessiva, sintomas na esfera psíquica. Tal
separação, além de não levar em consideração a singularidade do sujeito e de seu
sintoma, proporciona uma diferenciação diagnóstica apressada e grosseira a partir de
determinada sintomatologia e não em relação ao posicionamento do sujeito frente a seu
desejo e ao Outro.

Freud disse que a “melhor saída” para os conflitos inconscientes era aquela
elegida pela histeria. Isso porque o somático permite um certo distanciamento do sujeito
em relação aos seus sintomas e o pensamento não. O recalque, que gera os sintomas
obsessivos, obtém um êxito parcial, “estando constantemente sob a ameaça de um
fracasso. Podemos, pois, compará-lo com um conflito interminável” (FREUD, 1907,
p.114).

O conflito parece mesmo não ter fim. O sujeito cria determinadas leis e se
submete a elas, ritualiza sua existência e passa a seguir à risca seus escrúpulos. O
obsessivo crê no pai, crê na palavra, nos efeitos do pensamento. Tais características
fizeram com que Freud definisse a neurose obsessiva como uma caricatura cômica e
triste de uma religião particular (Ibid, p.111). No traço identificatório tomado do pai,
identifica-se imaginariamente a ele e elege o lugar do pai como um lugar que quer
ocupar. É a partir daí que a culpa cobra seu preço.

As idéias obsessivas estão diretamente ligadas à onipotência de pensamentos. Os


efeitos dos mesmos são hiper-dimensionados nessa neurose. É daí que se origina seu
tormento diante do receio de que seus pensamentos ganhem vida, aconteçam, gerando
às vezes situações cômicas, como a do pagamento da dívida dos óculos pelo Homem
dos Ratos. Os atos obsessivos, em seus rituais, são tomados como defesas mágicas
contra desejos malignos (Id, 1913[1912-1913], p.98). É a crença na onipotência dos pais
que se espelha em seus rituais, provisões mágicas e profecias (RIBEIRO, 2006, p.36).

Em “Totem e tabu” a inibição começa a ser trabalhada em sua relação com a


neurose. Como Freud afirma “os neuróticos são, acima de tudo, inibidos em suas ações:
neles, o pensamento constitui um substituto completo do ato” (FREUD, 1913[1912-13],
p.162, grifo do autor). A relação entre a neurose e a inibição é tão próxima que Freud
denomina a neurose obsessiva de doença do tabu (Ibid, p.44). No núcleo da neurose
obsessiva estaria uma proibição de tocar – não querer entrar em contato com, uma folie
du toucher20. O tabu é apresentado nesse texto como uma manifestação de repulsa e
horror, que pode ser pessoal ou cultural, dirigida justo ao que se apresenta como
impossível (Ibid, p.45-6).

Em uma neurose que faz do desejo um tabu, ou seja, que situa o desejo no
campo do impossível, o processo analítico se apresenta particularmente árduo. Ao
afirmar que o desejo é indestrutível no aparelho psíquico, Freud (1900, p.583) aponta
para a dimensão ética da psicanálise que vê no desejo o cerne de seu trabalho. A
neurose obsessiva vivencia o desejo na dimensão do impossível, posição subjetiva
resultante da defesa contra o caráter indestrutível do desejo.

No percurso dessa construção retomamos o clássico caso do Homem dos Ratos


em busca das diretrizes que pudessem auxiliar nossa pesquisa acerca da neurose
obsessiva. A história clínica de Ernst Lanzer (1878 – 1914), que ficou conhecido como
o Homem dos Ratos, é a mais elaborada e mais bem estruturada dos casos trabalhados
por Freud. Seu tratamento durou nove meses. Na mesma época Freud ouvia os relados
do pai de Hans sobre a fobia do mesmo. “Em ambas as análises, lidou com aquilo que o

20
Loucura de tocar.
apaixonava: a relação entre um filho e um pai” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p.
463). O pai de Lanzer morre em 1898 e em 1901 ele entra na carreira militar. Começa
então a ter estranhas e mórbidas obsessões, como a de colocar o pênis para fora em um
corredor tarde da noite como desafio ao pai – que já estava morto. Em 1907, ouve do
capitão Nemeczek o suplício oriental com os ratos. Em tal suplício, o torturado era
amarrado nu a um balde cheio de ratos famintos. No mesmo dia, o paciente perde seu
pincenê, o que dará origem a um tormento em relação ao pagamento de uma dívida
relacionada à obtenção de um novo óculos. Fortes sentimentos de culpa marcavam o
caso.

Ao requisitar que um novo par de óculos fosse entregue pelo correio, Lanzer é
tomado por um comportamento delirante em torno da dívida, já que um dos
funcionários do correio faz o depósito para ele. Dívida e suplício se misturam. O relato
do castigo com os ratos despertou o erotismo anal de Lanzer, fazendo com que suas
características obsessivas se acentuassem a ponto de procurar pela ajuda de Freud em
Viena.

Ao ouvir o paciente, Freud destaca seu gozo diante do relato da tortura realizada
com os ratos em prisioneiros. Freud ressalta sua “face de horror ao prazer todo seu do
qual ele mesmo não estava ciente” (FREUD, 1909, p.151) e destaca a importância do
erotismo anal na constituição desta neurose.

Com esse tratamento Freud almejava compreender a gênese da neurose


obsessiva que, segundo ele, é mais ou menos fácil de compreender que a histeria (Ibid,
p. 140). A neurose obsessiva “não implica o salto de um processo mental a uma
inervação somática – conversão histérica – que jamais nos pode ser totalmente
compreensível” (Ibid, p.140). Além disso, na neurose obsessiva o afeto ligado à idéia
traumática é deslocado, mas não esquecido, já na histeria, como vimos, ele cai na
amnésia (Ibid, p.172).

O paciente era um jovem em formação universitária que apresentava obsessões


desde a infância. Suas principais queixas eram o medo de que algo ruim acontecesse ao
pai e a uma dama - por quem nutria um afeto especial -, impulsos compulsivos por
compreender e proteger, além de proibições. O paciente se sentia incapacitado para o
trabalho (Ibid, p.156) e adiou por anos a conclusão de sua educação. O ponto principal
sobre o qual o tratamento de Freud atuou nesse caso foi a inibição apresentada naquela
época pelo paciente (Ibid).

Sua neurose tivera início ainda na infância. Desde os seis anos havia a idéia de
que seus pais conheciam seus pensamentos, demonstrando a crença na onipotência dos
mesmos. Freud fala que nessa idade já podíamos reconhecer uma neurose obsessiva.

O que fez o paciente adoecer? A narração do suplício dos ratos não desencadeia
sua neurose, provoca um horror fascinado que atualiza sua neurose e suscita angústia
(LACAN, 1953 a, p.52-53). Ela se desencadeou com o conflito entre a mulher rica e a
mulher pobre.

Freud diz que ele adoeceu com a tentação de casar-se com outra mulher, em vez
daquela a quem amava. Esse dilema não era um dilema propriamente seu. O paciente
repete a posição do pai na escolha amorosa entre a mulher pobre que amava e a de
melhores condições. Com esse exemplo, Freud ilustra a função da dúvida na neurose
obsessiva: retirar o sujeito da realidade e isolá-lo do mundo. Se não é possível escolher,
perder uma das opções, não é possível sair do lugar. Em resposta a esse dilema, o
paciente adoece, cai de cama. Esse é um dos momentos em que Freud utiliza a
expressão ‘fuga para a doença’, dizendo que, impossibilitado de decidir, o sujeito
adoece para adiar a decisão.

Se por um lado esse é um caso cheio de riquezas em relação à descrição da


formação e do sofrimento presente nos sintomas obsessivos, no que tanga nossa
pesquisa em relação a essa neurose, destacamos como fundamental as seguintes
formulações de Freud acerca da estrutura obsessiva: o medo corresponde a um desejo
(Ibid, p.160), a satisfação no sofrimento (Ibid, p.163), a substituição do agir pelo pensar
(Ibid, p.211) e a sexualização desse último (Ibid, p.211).

Com esse caso a questão da culpa ganha mais destaque nas formulações
freudianas: o sentimento pela morte do pai era “como a fonte principal da intensidade de
sua doença” (Ibid, p.164). Um pouco mais tarde Freud dirá que a culpa está sempre
fundada no desejo (Id, 1913[1912-13], p.97), sua base está situada na morte do pai, na
realização do complexo de Édipo e no crime de incesto (Ibid).

Seguindo nossa pesquisa sobre o lugar do corpo na neurose obsessiva


deparamo-nos com a afirmação de Freud de que a doença pode se apresentar como uma
‘solução’ para os impasses do sujeito. Adoecido ele ‘não pode’ decidir; sendo assim,
essa saída contribui para a paralisação do sujeito, mantendo-o impedido. Além dessa
articulação, o relato de uma compulsão diretamente relacionada ao corpo no Homem
dos Ratos também nos chama atenção: como vimos, uma compulsão por emagrecer. O
paciente começou a levantar-se da mesa antes de servirem a sobremesa e apressar-se
pela rua, sem o chapéu, sob o calor ofuscante do sol de agosto (FREUD, 1909). Os
efeitos do supereu sobre o corpo do paciente que se sacrifica em prol de um corpo
magro, ideal, serão retomados logos a seguir. O paciente morre em 1914, prisioneiro dos
russos.

Essa análise permitiu que Freud desse continuidade aos seus estudos sobre a
neurose obsessiva. Em 1918[1914] colocou a importância de diferenciar atos obsessivos
– presente em qualquer estrutura – de estrutura obsessiva. Vale repetir que Freud
manteve a etiologia dessa última em relação à constituição anal, sendo esse o diferencial
em relação aos atos obsessivos que podem se apresentar em diferentes funções e
contextos não só na histeria como também na própria psicose.

Com seu interesse pela analidade, Freud aponta a equivalência entre as fezes e o
falo. A equação formada pelos termos pênis, bebê, dinheiro e fezes é escrita com o
intuito de localizar o lugar desses objetos na economia libidinal do sujeito (FREUD,
1917, p.136), ressaltando que todos eles ocupam um valor fálico para ele. A retenção
das fezes equivale a uma satisfação auto-erótica e é um meio de expressar a vontade do
sujeito (Ibid, p.139). A zona anal é particularmente propensa a excitações, contribuindo
para isso os distúrbios intestinais tão freqüentes na infância (Id, 1905, p. 175).

As fezes são a primeira dádiva da criança ao outro, um sacrifício com o qual a


criança consente ou não e que está diretamente relacionado com o corpo. Ceder as fezes
é o protótipo da castração (Id, 1918[1914], p. 92).

A partir de 1920, localizamos algumas alterações teóricas que influenciaram a


abordagem da neurose obsessiva. A pulsão de morte, com seu empuxo à destrutividade
e à agressão, passa a ocupar um lugar fundamental na justificativa da manutenção do
sintoma. A pulsão continua buscando satisfação, mas agora ela nem sempre é prazerosa.
Mesmo no sofrimento, na repetição do que claudica, é possível delinearmos uma
satisfação por trás do sintoma. Como nos disse Freud, “o princípio do prazer parece, na
realidade, servir à pulsão de morte” (Id, 1920, p. 85); sendo assim, o sofrimento e o
desprazer são visados pelo aparelho psíquico (Id, 1924).

Perguntamos o que o conceito de pulsão de morte (1920) traz de novo para o eu,
instância tão valorizada na neurose obsessiva? O conceito de eu participa ativamente da
mudança da primeira para a segunda tópica nos ensinamentos freudianos, trazendo
consigo novas características: o eu agora é masoquista, dividido, subordinado ao
sadismo do supereu, ao isso e ao mundo externo. Reage com angústia diante das
cobranças do supereu (Id, 1924) e faz sintomas.

Nesse momento de sua obra (1926[1925]), neurose obsessiva e histeria surgem


da necessidade de desviar as exigências libidinais do complexo edipiano. A força
motora da defesa é o complexo de castração. Nas neuroses obsessivas esses processos
de defesa são levados ainda mais longe. Freud chama de defesa os processos que
tenham como finalidade proteger o eu das exigências pulsionais (FREUD, 1926[1925],
p.159).

O texto “Inibição, sintoma e angústia” (1926[1925]) reformula a neurose


obsessiva à luz da segunda tópica e da pulsão de morte. O que passa a desencadear a
neurose obsessiva é o medo que o eu tem de ser punido pelo supereu. O eu sofre os
efeitos do supereu e das pulsões destrutivas do isso, desenvolvendo formações reativas
que assumem a fórmula de sentimentos de escrúpulo, ou de piedade, limpeza e culpa. O
mais importante nos sintomas obsessivos é a satisfação das moções pulsionais
masoquistas do eu. A neurose obsessiva coloca em destaque a afirmação de que o eu é
uma instância paranóica, pois uma vez que o sujeito almeja o ideal, tudo ameaça sua
integridade (RIBEIRO, 2001).

Em “O eu e o isso” (1923) a ação do supereu ganha visibilidade na teoria


psicanalítica. O supereu é definido como um representante do isso e do mundo externo.
Surgiu através da introjeção no eu dos primeiros objetos dos impulsos libidinais do isso
(FREUD, 1924, p.184) e é o responsável pela presença de sintomas, de inibições e de
angústia no sujeito. A mola na formação de sintomas na neurose obsessiva é o medo do
eu pelo supereu (Id, 1926[1925], p. 137).

Parte do eu coloca a agressividade em ação sobre a outra parte do eu. A razão


para se submeter ao supereu está calcada no desamparo e na dependência do sujeito em
relação ao outro (Id, 1930[1929]). Desde o “Projeto para uma psicologia científica”
(1959[1885], p.370), Freud estabeleceu uma relação entre os ‘motivos morais’ e o
desamparo em que nascem os seres humanos. Revolucionando a lógica racional,
“quanto mais um homem controla a sua agressividade para com o exterior, mais severo
– isto é, agressivo – ele se torna em seu ideal do eu” (Id, 1923, p.66). A renúncia não é a
saída diante de tamanho imperativo; resta saber se o sujeito conseguirá abdicar da
própria renúncia como via de gozo.

O fato dos pensamentos possuírem uma dimensão tão grande na neurose


obsessiva traz para o primeiro plano o lugar que a voz ocupa nessa neurose. Freud
falava de consciência moral e de ideal, antes de formular oficialmente o supereu,
ressaltando o seu caráter coercitivo e provocador. A consciência utiliza-se do ideal para
medir o eu, possuindo uma função crítica. Juntamente com ela, o Ideal do eu (1914) já
não é apresentado apenas como substituto do narcisismo e sim como instância de
julgamento. Um maior esclarecimento em relação a essas instâncias e suas funções se
dará com a formulação do Supereu. Ele abarcará o que Freud denominava de
consciência e será aos poucos diferenciado do Ideal do eu. Com Lacan, essa diferença se
torna ainda mais clara. Cabe ao Ideal do eu a função exultante do eu e ao supereu a
função coercitiva (LACAN, 1953-54, p.123).

O sentimento de culpa domina o quadro clínico da neurose obsessiva (FREUD,


1930[1929], p. 138). Ele é definido por Freud como uma variedade topográfica da
angústia (Ibid), encontra satisfação na doença e no sintoma do sujeito e se recusa a
abandonar a punição do mesmo através do sofrimento (Id, 1923, p.62). Apesar de não se
justificar para o eu e até justamente por isso, o sentimento de culpa é ruidoso na neurose
obsessiva (Ibid, p.64). Ele resulta da não correspondência entre o eu e o que o supereu
exige dele – o ideal.

Não há uma teoria unívoca em relação ao supereu em Freud e em Lacan


(AMBERTÍM, 2006, p.11). Com esse conceito Freud destaca que a necessidade de
punição corresponde à parcela de agressividade, fruto da pulsão de morte, que foi
assumida pelo supereu e dirigida ao eu. O supereu é apresentado como uma instância
alimentada pela cultura da pulsão de morte, tirânica para com o sujeito (FREUD, 1923,
p.66).

A grande proximidade entre o supereu e o isso permite que o primeiro utilize


toda violência coercitiva do campo pulsional que é própria do isso (1933[1932]). Os
sintomas na neurose obsessiva, de maneira particular, deixam clara essa proximidade ao
ligarem proibição e satisfação, proibição do gozo pulsional e satisfação com a própria
renúncia. Assim o sujeito faz “do mandato superegóico – que proíbe gozar -, o próprio
gozo” (AMBERTÍN, 2006, p.106), gerando dificuldade de abrir mão dele.

O supereu é paradoxal. Por um lado, é um índice clínico bastante importante por


apontar os pontos de gozo aos quais o sujeito está ancorado e, por outro, é também um
obstáculo por atormentar e coagir o sujeito.

Com Lacan, o supereu ganha novas formulações que permitirão compreendê-lo


de uma maneira ainda mais próxima da clínica. É com ele que fazemos o gancho para
suas contribuições acerca da neurose obsessiva.

5.3 - A neurose obsessiva em Lacan

A morte para o obsessivo é um ato falho


(LACAN, 1974-75, 14/2/74).

Ainda no início de seu ensino, Lacan nomeia o obsessivo como “um ator que
desempenha seu papel e assegura um certo número de atos como se estivesse morto”
(LACAN, 1956-57, p.26). Assim o sujeito tenta se colocar ao abrigo da morte,
mostrando-se invulnerável. Lacan possibilitou uma leitura frutífera da neurose
obsessiva em vários sentidos: a ferocidade do supereu, a articulação do objeto anal com
a demanda do Outro, a relação do obsessivo com o desejo e com o Outro, os efeitos da
inibição em sua economia libidinal e a inclusão da tríade freudiana - inibição, sintoma e
angústia - nos três registros. Abordaremos esses pontos, extraindo da leitura de Lacan o
que é fundamental para sustentar nossa pesquisa sobre o lugar do corpo na neurose
obsessiva.

Os mecanismos mais característicos da neurose obsessiva são: o isolamento de


uma representação que ponha em risco o eu, a anulação retroativa – através da qual o
sujeito procura apagar representações, palavras e ações recorrendo a outras –, a busca
eterna pelo porquê - e a inibição (Id, 1957-58, p.496). Encontramos aí alguém que fala e
nos fala do lugar de morto, de suas dificuldades e empecilhos, bloqueios, medos,
dúvidas e proibições (Ibid, p.423). O obsessivo tenta reencontrar a causa autêntica de
todo o processo mental, o objeto último (Id, 1962-63, p.347) e assim não sai do lugar,
preso no labirinto onde as indicações de saída se dão pela via do entendimento. É isso o
que justifica “seus tempos de suspensão, seus caminhos errados, suas pistas falsas (...)
que fazem com que essa busca gire indefinidamente” (Ibid, p.347). Assim, o desejo do
obsessivo se apresenta como uma tentativa de tornar possível o impossível e, de forma
curiosa, é justamente quando as coisas dão erradas, quando aquela situação tão esperada
já não é possível, que o sujeito consegue ter notícias do seu desejo em relação a ela e,
agora que não há mais tempo, dizer que era realmente aquilo que o causava (Ibid,
p.348).

Sua temporalidade específica é a postergação, o tarde demais. Não há tempo


suficiente para ele, o obsessivo anula os tempos. Estende o tempo de compreender em
detrimento do momento de concluir (Id, 1953a, p.258). Através da escolha objetal
adiada, o sujeito consegue que seu desejo esteja mesmo no impossível. Retido no tempo
remoto do ‘se’, defende-se do presente que espera dele um posicionamento. Aqui não se
trata de viver a vida – que implica movimento, mudanças – e sim de retê-la, de saber em
que direção ela caminha. Sempre com medo de não ter pago tudo o que tem para pagar e
de que não tenha sido pago de tudo o que lhe devem, a dívida alimenta o tempo que se
gasta confabulando alternativas diante desses impasses.

Assim, o obsessivo vive a eterna saga de ser o melhor (MELMAN, 2004) em


prol da manutenção do inchaço na sua imagem. No intuito de criar estratégias para lidar
com a falta, o obsessivo busca na imagem especular, em seu eu, uma referência que
venha contemporizar a relação com o Outro. A importância que a imagem possui nessa
neurose encontra-se diretamente ligada ao lugar ocupado pelo falo na mesma. O
obsessivo é mais apegado à forma que qualquer outro (LACAN, 1975-76, p.14). Ele é
como a rã que quer ser tão gorda quanto o boi (Ibid, p.19).

Essas características têm como pano de fundo a compulsão à repetição que


assinala para Freud um limite para a rememoração. Com ela Freud destaca o que terá
grande efeito na clínica psicanalítica: o que não pode ser dito (COSENTINO, 1987). Por
que a compulsão se faz tão presente na neurose obsessiva? Além de sua articulação
direta com a constante busca de um a mais na satisfação pulsional, de maneira
interessante Freud fez uma articulação entre a compulsão à repetição, a dúvida e a
inibição. Ela resulta de uma “tentativa para alguma compensação pela dúvida e para
uma correção das intoleráveis condições de inibição das quais a dúvida apresenta
testemunho” (FREUD, 1909, p.210). A compulsão pode ser uma resposta à dúvida e à
inibição, uma tentativa do sujeito sair desse estado de impedimento. Nas compulsões o
sujeito obsessivo não consegue conter-se, ele fica impedido de se ater a seu desejo de
reter (LACAN, 1962-63, p.3). Voltaremos a esse ponto ao abordarmos as formulações
de Lacan (1962-63) sobre a inibição.

O neurótico obsessivo alcançou o estágio fálico de seu desenvolvimento


libidinal, mas, por não conseguir satisfazer o nível desse estágio – efeito de seus
sintomas e inibições –, retorna à fase anterior, à anal, que deixou marcas de satisfação
para o sujeito. Com isso, o objeto a excrementício passa a ter um lugar fundamental em
sua constituição fantasmática, ou seja, o objeto a como causa do desejo irá se configurar
para o sujeito como um desejo de reter (Ibid, p.348).

O objeto anal ganha destaque na economia libidinal do sujeito mediante a


demanda do Outro. Como resposta à demanda do Outro, este objeto apresenta-se como
o primeiro suporte da subjetivação na relação do sujeito com o Outro (Ibid, p.322). Ter
alguma coisa que o Outro demanda, responder ou não a essa demanda, faz com que o
sujeito coloque seu desejo na dimensão da ação. A educação dos pais em prol da
limpeza e do controle das fezes produz um excesso nesse campo, podendo ter efeitos de
devastação para o sujeito (Ibid, p.327). A demanda do Outro presente na fase anal é
justamente a demanda de reter (Id, 1960-61, p.203-4). É nessa fase que o sujeito é, pela
primeira vez, solicitado pelo Outro a se manifestar como sujeito do direito, conseguindo
uma diferenciação do Outro. O sujeito se vê tomado pela demanda do Outro (de reter e
de soltar, de fazer ou não o que o Outro quer) e confunde seu desejo com o que lhe é
pedido. O neurótico identifica a falta do Outro com sua demanda.

É em torno da demanda que o obsessivo funciona, utilizando a mesma como um


recurso para encobrir o desejo. Isso ocorre pela proximidade entre o desejo e a
castração. Quando a hora do desejo soa, a castração aparece deixando o sujeito
vulnerável. O neurótico, porém, elege uma estratégia para lidar com isso: reduz o desejo
à demanda, esquivando-se da dimensão do risco e da castração que o desejo exige.
Incapaz de suportar a falta que o desejo do Outro presentifica, “recorre à picardia
de se oferecer como essa garantia impossível ao Outro...” (AMBERTÍN, 2006, p. 99).
Ao se colocar como o portador do objeto que o Outro demanda, o obsessivo sustenta a
fantasia de que é possível preencher a falta que há no outro e assim evitar o
aparecimento do desejo. O obsessivo constrói a fantasia de ser portador de um dom que
deve ser dado ao Outro. Além disso, outra estratégia muito utilizada pelo neurótico
obsessivo, com o mesmo objetivo, é recusar incessantemente a demanda do Outro,
como se assim pudesse anular o desejo.

O desejo insiste e diante do impasse que o mesmo coloca para o sujeito, este
último pode eleger como saída a oblatividade – tudo para o Outro – colocando-se em
total submissão às demandas do outro. Aparece aqui a dimensão do sacrifício pelo
Outro, o movimento de estar sempre o poupando, tentando assim garantir que o Outro
consista e exista.

Ao pretender excluir o não saber e a falta do Outro, oferece-se para preencher


seus furos, fornecendo seu eu como garantia. Por isso “deve fazer com que o Outro
saiba dele (...) conta, informa, atualiza, sempre tem a última (...) Enciclopédia de
saberes, faz de seu relato gozo” (Ibid, p. 99). No auge de sua onipotência, ninguém sabe
ou faz melhor do que ele. A neurose obsessiva põe em evidência a união entre
pensamento e gozo (MILLER, 2004). O exemplo de que a libido se liga ao significante
é a presença do pensamento erotizado na neurose obsessiva. O pensamento é gozo
(LACAN, 1972-3, p.96), como um dia nos disse uma paciente obsessiva ao comparar
um orgasmo a sua satisfação com os entendimentos a que chegava sobre si na análise.
Orgasmo este que não aparecia em seus encontros sexuais. O sujeito fica retido em suas
fórmulas, podendo nunca sair. Nesse sentido, se o processo de análise toma como
direção apenas a busca dos porquês e do entendimento dos sintomas do paciente, corre
um sério risco de também se tecer uma teia onde analista e paciente se encontram presos
nos fios do saber. Se, por um lado, o tratamento analítico trabalha com a vertente do
entendimento, da significação, por outro, trata-se de uma travessia fantasmática
constituída por frases e pontos de gozo aos quais o sujeito se agarra, o entendimento não
é seu objetivo último.

O saber do qual se trata na análise é de outra ordem. O saber inconsciente traz


em seu cerne o umbigo dos sonhos (FREUD, 1900), um vazio primordial que nos
aponta exatamente para a impossibilidade de se chegar à última interpretação, ao
sentido final, à resposta que libertará o sujeito de seus males e imperativos
superegóicos. O analista, atento ao desconcerto, ao fora do lugar, coloca em cena o
inesperado, o descompasso que faz o sujeito manter o passo na trilha do dever
superegóico. Diante da neurose obsessiva, isso mais do que nunca é fundamental.

Lacan (1960-61) desdobra a fórmula que elegeu para representar a fantasia ($ ◊


a) em uma versão histérica e outra obsessiva. Enquanto o essencial no fantasma
histérico é a outra mulher – seu desejo sempre aparece sobre o questionamento do sexo,
do Outro sexo e esse Outro sexo é sempre o feminino – o fantasma obsessivo tem como
questão central o desejo do Outro, a questão de sua existência no mundo, da vida e da
morte.

A fantasia fornece o enquadre à realidade (LACAN, 1967a, p.364). É então


fundamental que o analista balize a posição do sujeito na mesma, atento à posição que
prende o sujeito e o fixa numa relação lógica precisa com o objeto. A fórmula da
fantasia obsessiva, escrita como A/ <> φ (a’, a’’, a’’’,.......) (Id, 1960-61, p. 248), pode
ser lida como um posicionamento particular do sujeito frente o desejo do Outro, em que
o sujeito procura tamponar sua angústia com o falo imaginário ou com seu
desdobramento narcísico. O falo é introduzido no lugar do significante da falta do
Outro. Por conseguinte, na neurose obsessiva o sujeito é regido pela lógica fálica, ele é
o sujeito que precisa ter. E por estar bastante submetido a uma lógica fálica, podemos
dizer que a neurose obsessiva é uma estratégia masculina (RIBEIRO, 2006, p.29)
possível de se apresentar em homens e mulheres. Na fantasia obsessiva, o sujeito se
coloca como falo imaginário diante da falta do Outro, camuflando-se atrás do mesmo.
Por isso, o obsessivo fornece ao Outro tanta consistência, amarrando sua existência à
dele. O Outro é, portanto, seu sintoma, cuja permanência e defesa mantêm o sujeito
distante da angústia.

Apesar de sua forte relação com a analidade, há uma subjacência oral nas
fantasias obsessivas (LACAN, 1957-58, p.424): a gulodice do supereu parece devorar o
sujeito. O que se apresenta de maneira mais aparente nos sintomas do obsessivo é, como
vimos, a voracidade do supereu (Ibid). Ele está sempre pedindo permissão,
colocando-se na mais extrema dependência do Outro. Sem medida, perde a noção do
excesso e se deixa devorar.
O obsessivo tenta escapar do gozo (Id, 1968-69, p.360), delegando o mesmo ao
campo do Outro. Sabemos, porém, que o gozo é difícil de ser evitado (GAZZOLA,
2005, p35). Lacan nos disse que o inconsciente trabalha em prol do gozo (LACAN,
1973, p.556). Ele desempenha um papel especial na economia do obsessivo em que a
intrusão desse gozo em seu próprio campo é experimentada como excessiva e
estrangeira. Vale lembrar a face do Homem dos Ratos ao relatar a Freud a tortura ouvida
em relação aos ratos. Seu gozo com os ratos e tudo mais que ele representava – florins,
merda – nomeou o caso. O obsessivo tenta tornar o gozo manejável pela via do falo,
elegendo determinados objetos que fornecem a ele essa idéia de poder e completude.

Dando continuidade à articulação entre a neurose obsessiva e a analidade, Lacan


destaca que, além da fixação libidinal em uma determinada organização libidinal do
desenvolvimento, é fundamental o tipo de relação que o sujeito mantém com o objeto.
Há uma ligação entre o excremento, -φ, e o a (Id, 1962-63, p.328), ou seja, além de ser
fálico, o objeto a encarna o lugar de causa de desejo para o sujeito, ou seja, seu desejo
fica configurado em uma determinada cartilha regida pelo impossível e pela retenção.

O desejo anal por excelência é a retenção do movimento, da cólera, da


articulação verbal (SKOLIDIS, 2008, p.53). O excremento é aquele pedaço de si “que o
sujeito tem receio de perder, afinal, vê-se reconhecido por um instante a partir de então”
(LACAN, 1962-63, p.327). É nesse nível que o neurótico obsessivo se reconhece em
um objeto pela primeira vez (Ibid, p.328). O obsessivo sustenta a crença que seria
possível não perder a libra de carne, o pedaço de si para se constituir enquanto corpo,
enquanto sujeito. Apesar de trazer essa perda em si, sonha em reconstituí-la com seus
objetos fálicos.

Skolidis (2008), em um artigo que trata do objeto anal, relata um caso de neurose
obsessiva que apresentava “crises de angústia, palpitação, tontura, dor na nuca, sensação
de desmaio” (SKOLIDIS, 2008, p.53) que conduzem o sujeito a comportamentos
agorafóbicos e hipocondríacos com a presença de inibições. Esses comportamentos
estavam relacionados à possibilidade de um encontro amoroso e, quando apareciam,
impediam o mesmo.

O fundamental de nos determos na analidade é sua proximidade com a inibição.


O desejo de reter traz em si um caráter inibitório. O objeto a excrementício tem a
função de inibir o acesso do sujeito ao campo do desejo. O objeto a excrementício
funciona como rolha (LACAN, 1962-63, p.348), por isso, o neurótico obsessivo
consegue sustentar seu desejo nos níveis da impossibilidade (Ibid, p.351).

Nesse nível, o que o sujeito já tem para dar é o que ele é, uma
vez que o que ele é só pode entrar no mundo como resto, como
irredutível em relação ao que lhe é imposto pela marca
simbólica. É a esse objeto, como objeto causal, que se prende o
que identificará primordialmente o desejo como o desejo de
reter. A primeira forma evolutiva do desejo, portanto,
aparenta-se como tal com a ordem da inibição (Ibid, p.356).

O obsessivo não autoriza seu desejo a se manifestar como ato. Para que o
obsessivo possa desejar é preciso que haja um Outro que lhe demande. É preciso que o
Outro o autorize. Da autorização ao mandamento não resta muita distância.

Desde o primeiro Seminário, Lacan (1953-54) define o supereu como um


imperativo de caráter insensato, tirânico, cego. Seu diferencial em relação a Freud é
deixar clara sua ligação com o gozo. Lacan também aborda o supereu a partir da voz
que veicula um imperativo de gozo. Ao interrogar a voz, que não é aquela da realidade
fonatória, Lacan apresenta uma voz silenciosa, terrificante, a voz como uma das
vestimentas do objeto a (LACAN, 1962-63).

O comando da voz aparece em seu real. O supereu é o que há de mais


devastador, de mais fascinante, nas experiências primitivas do sujeito (Id, 1953-54,
p.123). Ele é a um só tempo a lei e a sua destruição. A gula do supereu (Id, 1973b, p.
528) carrega o peso da pulsão de morte e aparece como parceira do gozo. Ele exige o
acesso ao gozo perdido com a entrada do sujeito na linguagem, impossível de ser
alcançado. O supereu derruba o suposto domínio do eu, impele o gozo ao pior, sendo
tomado como um “corpo estranho e traumático que, enquistado no mais íntimo da
subjetividade, fustiga implacavelmente” (AMBERTÍN, 2006, p.17).

Se o sujeito perde gozo com sua entrada no mundo simbólico, ele tenta
recuperá-lo pela via do objeto. O objeto aglutina o gozo que o significante não
conseguiu excluir totalmente. Com a entrada do sujeito no mundo da linguagem, o gozo
passa a ser sempre limitado (LACAN, 1960b, p.834), insuficiente. Daí a crueldade do
supereu que exige sempre um pouco mais. Como conseqüência desse empuxo ao gozo,
vemos surgir a culpa, já que a culpabilidade do sujeito não se deve ao fato de que ele
goza, mas sim por não alcançar o impossível. Essa via de recuperação do gozo,
dominada pelo objeto mais-de-gozar, fortalece o supereu ao fornecer a idéia de que esse
gozo primeiro pode ser recuperado.

Dentre tantas coisas que Freud nos ensinou, são suas formulações em relação ao
desejo que nos permitiram dar continuidade em nossa pesquisa acerca do corpo na
neurose e, em especial à neurose obsessiva. Ele é inconsciente, indestrutível e sempre dá
um jeitinho de aparecer. Diante do desejo, o sujeito na neurose tem algumas opções:
inibir-se, recalcá-lo e produzir sintoma ou se angustiar. Vejamos com mais detalhe como
a inibição se apresenta nesse campo.

5.4 - A inibição na neurose obsessiva

Nosso interesse pela inibição surgiu com a clínica da neurose obsessiva. Trazer
as contribuições da clínica psicanalítica para nossas formulações teóricas faz com que
tenhamos como ponto de partida a singularidade daquele que fala, como fala, sobre o
que fala e a quem se dirige. Faremos um recorte que incide, em um primeiro momento,
sobre as inibições de uma forma geral e, posteriormente, sobre suas peculiaridades em
relação à neurose obsessiva. É fundamental renovar o estatuto da inibição na psicanálise
a partir do cotidiano da clínica. Apesar de ser silenciosa, a inibição coloca impasses ao
analista, convocando a construção de uma articulação sobre a mesma.

O termo inibição advém do campo da fisiologia, estando ligado a um


impedimento motor (SANTIAGO, 2005). Ele foi incorporado à neurologia em 1870
pelo médico e fisiologista francês Brown-Séquard (Ibid, p. 206), fazendo com que
Freud tivesse contato com o mesmo.

A inibição é um traço presente em diversas estruturas, significando a suspensão


de um processo em seu estado nascente (KAUFMANN, 1996, p.271). Ela traz consigo a
sensação de paralisia devido a um conflito de vontades. Curioso destacar como
geralmente as inibições aparecem na fala dos pacientes equivalentes a uma
incapacidade. Inibido difere de incapaz? Fazer de uma dificuldade, uma incapacidade
foi uma das primeiras coisas que nos chamou a atenção na fala dos obsessivos.

Freud (1892) fala de inibição (Hemmung) se questionando sobre a relação entre


a mesma e a angústia: “será a angústia das neuroses de angústia derivada da inibição da
função sexual (...) ?” (FREUD, 1892, p. 221). Desde o início, a inibição para a
psicanálise tem relação com o sexual. Conforme veremos, há uma afinidade entre a
função inibida e o surgimento da angústia. A inibição trabalha em prol da evitação, isto
é, de tentar impedir o desenvolvimento da angústia, de manter o sujeito na posição de
‘não ver’ (LACAN, 1962-63, p.361).

As elaborações freudianas indicam que o ponto central da problemática da


inibição é sua articulação com a angústia (HANNA, 2005). Para Freud (1926[1925]) a
angústia é um afeto que surge diante do perigo que a castração representa, e com Lacan,
esse perigo é encarnado no desejo.

Vale destacar as diferentes formas de abordarmos a inibição dentro da


psicanálise: como um processo de defesa que atua no aparelho psíquico e como
resultado da diminuição em uma função do eu. A inibição aparece na relação entre as
representações pré-conscientes, exercendo uma restrição em relação aos processos
inconscientes que buscam a realização do desejo. A inibição tem a função de parar o
desenvolvimento de um representante pulsional, produzindo sua fixação. Nesse sentido,
a inibição é abordada como uma função inerente à própria estrutura. Cada vez que a
sexualidade é vivenciada em sua dimensão de excesso, a inibição aparece como defesa
do aparelho psíquico. Ela interrompe a cadeia associativa de representações
(SANTIAGO, 2005, p. 115), sendo sua finalidade controlar qualquer excedente de
excitação.

Além disso, a inibição pode ser fruto de um processo de luto ou algum outro
trabalho psíquico em que o eu fica absorvido pela exigência de um alto investimento de
libido.

O eixo central da investigação clínica da inibição começa a ser desenvolvido por


Freud (1905) em seu texto clássico que trata da sexualidade infantil. A inibição sexual
se encontra presente no segundo ensaio, sendo definida como um dique que constitui
obstáculo para a pulsão (FREUD, 1905, p.167). Ela é uma renúncia ao gozo.
Em alguns quadros a inibição se apresenta como uma redução ou restrição de
uma função do eu (Id, 1926[1925], p. 93), o que não quer dizer necessariamente algo
patológico. A inibição pretende evitar a angústia sacrificando o eu. Já o sintoma faz
referência a uma alteração da função eu e é produto do mecanismo do recalque. O que
Freud denomina de ‘funções do eu’ são as funções sexual, a alimentação, a locomoção e
o trabalho. Afinal, sendo o eu uma projeção na superfície do corpo (Id, 1923), são
funções como essas que de alguma forma dependem do mesmo para se realizarem.

A ação da inibição se faz presente em diversos mecanismos de defesa tais como,


“a conversão somática na histeria; o isolamento, as formações reativas e a anulação
retroativa na neurose obsessiva (...)” (SANTIAGO, 2005, p. 119). Como forma de
exemplo, citamos o relato de Freud em que “O paciente, um neurótico obsessivo, era
dominado por uma fadiga paralisante que durava um ou mais dias” (FREUD,
1926[1925], p. 94). Sendo assim, fadiga e vertigem podem ser tomados como efeitos da
inibição. Além disso, a obsessão de pensar e a erotização do pensamento também são
formas da inibição se apresentar na neurose obsessiva, alimentando a posição defensiva
do obsessivo diante do desejo (LACAN, 1962-63, p.345).

As inibições estão relacionadas ao sexual. Elas representam o abandono de uma


função que, de alguma maneira, produziria angústia: “muitos atos obsessivos vêm a ser
medidas de precaução e de segurança contra exigências sexuais” (FREUD, 1926[1925],
p. 92). A inibição ocorre sobre determinados órgãos do corpo que se tornaram muito
erotizados (Ibid, p. 93). O que determina a inibição do eu é o supereu. Ela pode ser
destacada como resultado da autopunição (Ibid, p. 110). O eu renuncia a determinadas
funções a fim de não ter que adotar novas medidas de recalque. O eu abre mão de uma
função à sua disposição para evitar um conflito com o isso ou com o supereu.

A inibição é a introdução de um desejo diferente daquele que a função satisfaz


naturalmente. “A ocultação estrutural de desejo por trás da inibição é o que comumente
nos faz dizer que o Sr. Fulano está com cãibra de escrivão, é por erotizar a função de sua
mão” (LACAN, 1962-63, p.344). O desejo deve ser situado no nível da inibição
(LACAN, 1962-63, p.343). Nesse sentido, a inibição sinaliza ao analista onde se
localiza a dimensão do desejo para o sujeito.

As inibições que Freud aborda no texto são as que se apresentam em destaque na


clínica da neurose obsessiva: falta de ereção e outros impasses que impedem o sujeito
de se colocar de forma mais efetiva no campo sexual, timidez, falta de inclinação para
comer, vômitos, desmaios, indisposição, dores, fraqueza (FREUD, 1926[1925], p. 92),
perda da voz, diarréias, dores de cabeça, espirros incessantes durante o ato sexual,
dentre outros. Esses eventos, inibindo o sujeito em seu cotidiano, podem acabar
impedindo o mesmo de se colocar na vida.

Perder a voz, diminuição da função, é deixar o sujeito impedido de falar. Lacan


trabalhou a relação entre o impedimento e a inibição, dizendo que o impedimento é a
inibição posta no museu (LACAN, 1962-63). O que isso quer dizer? O impedimento é
uma duplicação da inibição. É no museu que encontramos as peças que estão em
desuso, elas fazem parte da história, mas não circulam no cotidiano.

As funções do eu estão articuladas às significações que o sujeito dá a elas e nos


situam no registro do imaginário. A imagem tem por função velar o desejo do Outro, ou
seja, aquilo que nos causa mas não sabemos ao certo o que é. Se por um lado, o
imaginário comporta uma dimensão especular, eu construo minha imagem a partir do
que eu vejo no outro em espelho, por outro, sabemos que o que permite que essa
imagem se constitua é o que não aparece na mesma. A representação do eu como i (a)
implica exatamente a ligação entre uma significação, um sentido, uma imagem que
recobre o a. A inibição evita a emergência do objeto a através de uma captura narcísica
do sujeito, isto é, imaginária do desejo. Para obturar a falha, a inconsistência do Outro
que suscita angústia (HANNA, 2005, p.73), o sujeito se agarra a um sentido que é dado
ao eu enquanto imagem. Um sentido depreciativo que impede o sujeito de se mover,
promovendo a estagnação do desejo.

Um pouco mais à frente, Lacan (1974-75) nos diz que inibição, sintoma e
angústia são o resultado da movimentação dos registros no nó borromeano. A inibição
passa a ser sempre referida ao corpo e a alguma função do eu. Ela é o resultado da
invasão do imaginário no campo do simbólico (LACAN, 1974-75, lição de 10/12/74).
Já o sintoma é a invasão do simbólico no real e a angústia a invasão do real no
imaginário, ou seja, no corpo (LACAN, 1974-75, lição de 21/01/75).

A inibição resulta da invasão do imaginário, ou seja, do sentido no simbólico. O


sentido está relacionado aqui às frases e sensações que invadem o sujeito no momento
que antecede uma ação. Na neurose obsessiva esse sentido costuma se apresentar
através de frases que possuem um caráter depreciativo para o sujeito como ‘a certeza de
que não vai dar certo’, o constante ‘não vou conseguir’, o ‘sou uma merda’, impedindo
o sujeito de se movimentar, mantendo-o inibido. A inibição resulta de cenas de
confrontação imaginária onde a impossibilidade se faz presente: o sujeito se vê na
incapacidade de responder a uma crítica ou agressão, por exemplo. Além disso, pode
aparecer o receio de um desmaio, de uma dor de barriga, da perda da voz logo nos
momentos em que é esperado que o sujeito assuma um lugar. O sujeito quer falar e não
consegue. Mas se o desejo permanece, leva o sujeito a pigarrear, a tossir. Também aqui
o corpo se manifesta como palco onde se inscreve a outra cena (ALBERTI & RIBEIRO,
2004).

Na inibição, o sujeito se encontra preso na posição de um objeto dejeto, daí sua


proximidade com a neurose obsessiva onde o sujeito se identifica ao objeto
excrementício. As falas mencionadas acima possuem grande fixação libidinal para os
pacientes, constituindo-se como verdadeiras barreiras que impedem sua movimentação.

Tal formulação sobre a inibição nos faz recortar a forma como a mesma é
abordada por Lacan (1974-75): uma nomeação pelo imaginário. A inibição produz um
nome, que tem seu valor no nível do imaginário, tratando-se de uma significação. O
sujeito fica amalgamado a esses atributos, a essas significações, imobilizando seu
desejo. O vazio do objeto a é ocupado por uma significação que gera um ser de ficção,
produzindo um gozo que se sonha desligado do desejo do Outro (HANNA, 2005, p.74).
Mantendo a inibição, o sujeito experimenta um gozo narcísico que invade o eu do
sujeito (Ibid, p.76).

As notícias que temos deste gozo são os afetos que tomam


conta do sujeito tais como a tristeza, o mal-humor, a
irritabilidade e algumas alterações que produzem um
movimento intenso do corpo, chegando ao ponto de não poder
ficar quieto (hiperatividade) (Ibid).

Qual o modo de satisfação pulsional que acompanha a inibição? O destino


pulsional presente na inibição é o segundo tempo gramatical estabelecido por Freud
(1915): a voz reflexiva do verbo onde o sujeito é, ao mesmo tempo, a fonte e o objeto
do movimento pulsional, o que Lacan (1964) posteriormente denominou ‘se fazer’.
Se o sujeito se encontra preso no ‘se fazer’ da pulsão, não há como tomarmos a
inibição como uma posição passiva do sujeito que se esforça para se manter no mesmo
lugar. O sujeito inibido tenta sustentar o desejo no lugar de morto, ficando preso a uma
satisfação pulsional promovida pela voz reflexiva do verbo. Como vimos, a inibição é
uma defesa que resiste ao desejo do Outro, à angústia de castração, daí a dificuldade
para o obsessivo entrar no dispositivo analítico (Ibid, p.77).

É interessante destacar que as queixas do neurótico obsessivo em relação ao


corpo não se apresentam ruidosas, trazendo consigo uma demanda de amor, como
vemos na maioria dos casos da histeria. A inibição costuma ser discreta, silenciosa. O
sujeito inibido não pede muito, não demanda, inibe-se ao falar de sua inibição.

Lacan (1962-63) nos diz que toda ação do sujeito visa reencontrar o objeto
primordial perdido e é animada pela função do desejo. Nessa perspectiva, a inibição
configura-se como uma ação que contraria a função da qual se origina o ato. Sendo
assim, a inibição, juntamente com o acting out e a passagem ao ato, estão referidos ao
que Lacan denominou de clínica do ato. O ato é um posicionamento do sujeito onde se
manifesta o desejo, não estando necessariamente ligado à motricidade (LACAN,
1962-63, p.344-45).

Como o sujeito abandona o lugar da inibição? Um personagem auxilia-nos na


compreensão desse ponto que estamos abordando. Hamlet (SHAKESPEARE, 1600-1) é
definido por Lacan como um sujeito inibido (LACAN, 1962-63). O personagem tem
uma missão que o espectro de seu pai lhe encomenda, mas Hamlet a posterga. O pai,
assassinado por seu irmão que é o atual marido da mãe de Hamlet, retorna da morte
como fantasma e faz ao filho o pedido de que ele o vingue. Tomado pela raiva que a
revelação causa a ele, Hamlet não consegue levar sua missão ao fim. Como Hamlet
tenta se desinibir?

Inventa outra cena dentro da cena, cria uma peça de teatro que será apresentada
ao rei atual e programa uma cena em que dará um fim ao mesmo. Hamlet introduz um
duplo de si, um duplo representado por i’(a) e utiliza-o como espelho. Mas Hamlet não
consegue matar o tio. Cai em estado de agitação. A hipercinesia, apesar de ser uma
tentativa muito comum do sujeito sair da inibição (RABINOVICH, 2005, p.53-54), não
é um ato, ou seja, algo através do que o desejo se sustenta.
Rabinovich (2005) aborda o impedimento de Hamlet a partir de sua relação com
o pai. O ponto de horror do qual Hamlet retrocede é o fato do pai ser um fracasso como
causa de desejo da mãe. Foi isso que fez com que Hamlet atentasse para a traição de sua
mãe com seu tio. Realizar o pedido do pai seria confirmar o fracasso, a castração do pai,
ponto do qual ele recua. A inibição se apresenta então como uma defesa diante da
possibilidade do sujeito se deparar com a castração.

Enquanto o sujeito se mantiver identificado ao falo, no caso de Hamlet, ao falo


do pai, não conseguirá sair da inibição (Ibid, p.56). Alguém só pode ocupar o lugar de
causa do desejo para outro uma vez que o Outro o perdeu (A/). Lacan nesse ponto é
bem freudiano ao afirmar que só na perda o objeto se constitui em sua relação com o
desejo.

Dando continuidade aos nossos estudos de como articular a inibição na clínica,


abordaremos alguns pontos em relação à forma como a neurose obsessiva se apresenta
no dispositivo analítico, bem como os impasses que traz para o analista.

5.5 - A neurose obsessiva na clínica

A neurose obsessiva mostrou a Freud o horror do sujeito à castração, a


ambivalência na relação transferencial, o valor do pagamento no processo de análise, a
relação sintomática do sujeito com o tempo, a defesa constante diante da morte. O
obsessivo é o paciente que quer se colocar como garantia do analista, seu avalista.
Nesse sentido, os impasses transferenciais exigem que o analista se movimente.

O que permitiu que Freud desse ouvidos a esses traços, muitas das vezes, foi a
dimensão que os mesmos possuíam na fala do paciente e em seus sintomas. Apesar do
trabalho analítico histericizá-lo, seu posicionamento frente ao Outro e ao desejo são
marcantes. O objeto do seu desejo só se torna viável quando se encontra no estatuto do
impossível e o Outro é marcado pela falha, falha que ele mesmo quer preencher.

Gazzola (2005) afirma que diante das inconsistências da atualidade, com a


falência dos ideais sociais e culturais, a inoperatividade da lei e os ditames do discurso
capitalista com seu empuxo ao consumo e ao gozo, a neurose obsessiva aparece como
uma resposta estratégica frente a essa desorganização. A inconsistência do Outro parece
tornar bastante adequadas as estratégias obsessivas (GAZZOLA, 2005, p.7).

Ribeiro (2001 e 2006) é uma das autoras que questiona a afirmação de que a
clínica da neurose é sustentada pela histeria. Ela nos diz que a neurose obsessiva tem
aparecido cada vez mais na atualidade e em nossos consultórios, inclusive em mulheres.
No livro “Um certo tipo de mulher” (2001), a autora destaca as peculiaridades da
mulher obsessiva que, diante da inconsistência que a ausência de um significante que
defina o que é ser mulher traz, é menos enganada pelo falo que vela o furo no outro.
Sendo assim, a mulher obsessiva é ainda mais ‘religiosa do significante’, mais propensa
ao deslizamento metonímico (que não deve ser incentivado), à busca de um corpo que
funcione sem rateios e às compulsões. Drogadas compulsivas, as obsessivas, escravas,
consomem obedientemente as drogas que prometem um alívio que nunca chega
(RIBEIRO, 2001). Seja em busca de um sono tranqüilo, de um controle da ansiedade e
da tristeza, de um corpo perfeito, a medicação ocupa o lugar de um objeto a mais que
atue no que está fora do lugar, no que não funciona bem. Essa medida de perfeição é o
que deteriora o sujeito e o conduz a um Outro absoluto, típico de seu tipo clínico: a
morte (Ibid, p.119). Preso em seu labirinto, onde o desejo se esconde, ela trabalha
incessantemente para a morte.

À diferença da histérica, que situa para além do homem o


Outro absoluto, a obsessiva, em conseqüência da degradação do
significante fálico, deixa nesse lugar o outro degradado.
Consequentemente não tem como adorar o mistério de sua
feminilidade, por meio da localização de uma mulher qualquer
no lugar de Outro absoluto, para aquela cuja equivalência
sintomática e fantasmática é de outra ordem: tantos ratos, tantos
florins, tantos relâmpagos, tantos escarros, tantos quilos (Ibid,
p.15).

A histeria está referida ao sexo e a neurose obsessiva à existência. Lacan nos diz
que a histeria e a neurose obsessiva são, respectivamente, uma espécie de resposta a
essas questões (LACAN, 1953). A morte é a figura limite a responder à pergunta sobre
a existência.
Não tendo no corpo o suporte imaginário do falo, a obsessiva faliciza o que bem
entende, ou melhor, o que acredita entender bem. Vale destacar que “as oscilações do
obsessivo entre o ouro e a merda, entre o tudo e o nada, ganham conotação particular no
caso de mulheres. A dor de existir característica da mulher aparece por vezes na neurose
obsessiva sob uma máscara extremamente trágica (...)” (RIBEIRO, 2001, p.63).

Destacamos duas queixas freqüentes na fala de pacientes obsessivas e que


envolvem diretamente o corpo. Uma é a frigidez, uma impossibilidade do sujeito
concretizar o ato sexual. Lacan (1958a) diz que a frigidez não é um sintoma, ainda que
tenha toda a estrutura inconsciente que determina a neurose (LACAN, 1958a, p, 740).
Ela é uma defesa em face do gozo. A mulher se fixa na máscara fálica, não
condescendendo à posição de objeto. Isso é verificado em falas que trazem o receio de
perder o controle no ato sexual e a equiparação da sensação do orgasmo com a de que o
corpo estaria se desfazendo.

Outra queixa também comum se situa na privação sexual da qual reclamam essas
mulheres. Tal privação está diretamente ligada à sua modalidade clínica de evitação do
desejo, já que deixam a iniciativa ao outro, do qual dependem para pôr em jogo, a
contrabando, seu desejo (RIBEIRO, 2001, p. 96-7). Isso nos faz lembrar de Lacan que
(1954-55) diz que o obsessivo só consegue se colocar na cena através de um outro.

Recorrentes nas comédias de Molière (1622-1673), os médicos são personagens


que encarnam uma crítica severa do autor à medicina e ilustram bem a dinâmica que
vemos desenhada na clínica do obsessivo. Esses médicos, de maneira peculiar, fazem
de tudo para que a morte apareça de acordo com determinadas regras e com medicações
constantes que não têm grande efeito nem utilização justificada. O médico era aquele
que queria que o paciente nunca morresse e, caso isso acontecesse, a morte deveria ser
programada (MOLIÈRE, 1656). Dessa forma, o importante para o médico de Molière
não é que ele fosse capaz de curar. Mesmo porque, na medicina do séc. XVII, a cura era
difícil de ser alcançada. O importante era deixar o paciente morrer dentro de
determinadas regras (Ibid). Assim também vemos o obsessivo. Freud destacava que o
medo tanto da morte como da vida são expressões do supereu. Desses medos se origina
a covardia da neurose obsessiva diante da vida, diante da sexualidade. As obsessões são
justamente uma modalidade de proteção contra as tentações sexuais que trazem
turbulência à vida. A estabilidade tão sonhada na neurose obsessiva nos faz lembrar da
própria definição de pulsão de morte cujo objetivo é “conduzir a inquietação da vida
para a estabilidade do estado inorgânico (...)” (FREUD, 1924, p.177).

As exigências do supereu aparecem de diversas maneiras no cenário obsessivo.


Os efeitos do supereu surgem nas tarefas desgastantes, no sentimento de culpa, nos
fracassos mantidos, nos adoecimentos, nas compulsões em busca de um gozo a mais,
nos rituais (LACAN, 1957-58, p.430). Pela possibilidade de sua desfusão pulsional,
como vimos, o supereu promove um empuxo à destruição (Ibid, p.478), que marca de
maneira peculiar a relação do sujeito com o desejo. Ser carrasco de si mesmo não é em
vão. A pena que se paga pelo submetimento a um supereu feroz sustenta a fantasia de
um Outro onde a falta poderia ser controlada.

Mesmo no início de sua obra, Freud trabalhou a presença de auto-lesões como


resultado de autopunições, castigos como resposta à culpa, ao poder da consciência
moral (FREUD, 1901, p. 183). Muitas das vezes, aquilo de que o sujeito se queixa,
apresenta-se como forma de punição, gerando sintomas, inibição ou crises de angústia.
Temos como exemplo dores, enxaquecas e diarréias que se manifestam curiosamente
quando o sujeito começa a fazer movimentos em direção ao desejo. O próprio sujeito,
rapidamente, fornece um sentido a esses eventos: são punições, um aviso de que as
coisas devem ficar como estão, que o melhor é mesmo, como ele previa, não se
movimentar.

O obsessivo empenha-se justamente em destruir o desejo do Outro. Mantém uma


relação agressiva com o outro, exemplificada na frase ‘tu és aquele que me mata’,
ficando preso no eixo imaginário do esquema L, a - a’ ou no primeiro patamar do grafo
do desejo, o eixo especular formado por m → i (a) (LACAN, 1957-58).

A culpa, uma das formas do supereu se materializar na clínica, é muitas vezes


tomada como injustificada e incompreensível pelo sujeito. No entanto, através da
função que a mesma possui para ele, esta pode ser trabalhada de maneira interessante
pelo analista. Com ela o sujeito se convence que pagou o preço da falta com o excesso
de sofrimento que experimenta. Está quite com a dívida impagável com o Outro. Soler
(2007) define a culpa como aquilo que acontece quando a causa assume a forma de uma
falha, um erro (SOLER, 2007, p.52). Pensada como uma defesa do sujeito diante da
impossibilidade de se chegar à causa, ela é um modo de dar sentido à infelicidade.
Como nos diz Lacan, “não existindo o Outro, só me resta imputar a culpa ao eu”
(LACAN, 1960a, p.834).

É importante não tomarmos as diversas queixas em relação ao corpo na neurose


obsessiva como equivalentes em relação ao lugar e função que as mesmas possuem para
o sujeito. Assim, a angústia difere da dúvida, a hesitação do jogo ambivalente do
obsessivo (Id, 1962-63), a angústia do sintoma e o sintoma da inibição. O fato de
diferirem entre si não quer dizer que eles não possam ter semelhanças, pontos que
veremos com mais detalhe a seguir. Detendo-nos por enquanto em apenas uma dessas
diferenciações, Lacan desenvolveu a relação e diferença entre a angústia e a dúvida: “a
angústia não é a dúvida, a angústia é a causa da dúvida” (Ibid, p.88). A dúvida serve
para combater a angústia que diz de uma certeza (Ibid).

A neurose obsessiva coloca o sacrifício em cena em busca do ideal: jejum,


arranhões, dores e penitências são exemplos da ação do supereu e do masoquismo do
eu. Dificilmente tais sacrifícios não envolvem o corpo; inclusive, é falando do sacrifício
que Lacan, mesmo que raramente, aborda o corpo na neurose obsessiva. Em suas
palavras: “O corpo, o corpo idealizado, reclama um sacrifício corporal. Esse é um ponto
importantíssimo para compreender (...) a estrutura do obsessivo” (Id, 1968-69, p.359).

Há uma afirmação freudiana que desde o início nos chamou atenção quanto ao
lugar do corpo na neurose obsessiva: “em todos os meus casos de neurose obsessiva
descobri um substrato de sintomas histéricos” (FREUD, 1896, p. 168-9, grifo do autor).
Essa articulação se repete anos depois: ao afirmar que “toda neurose obsessiva parece
ter um substrato de sintomas histéricos que se formam em uma fase bem antiga” (Id,
1926[1925], p.115).

Esse substrato era justificado por uma cena sexual experimentada de maneira
passiva pelo sujeito, tal qual ocorre na histeria, e que teria precedido a ação prazerosa
que caracterizava a constituição da neurose obsessiva. Outra afirmação que aborda a
proximidade entre a obsessão e a histeria é feita por Freud (1909), quando o mesmo nos
diz que a linguagem utilizada pela neurose obsessiva é apenas um dialeto da histeria.

Na neurose obsessiva, as queixas em relação ao corpo seriam então sinais desse


substrato, a concretização da afirmação de que a neurose obsessiva é um dialeto da
histeria? Ou seja, essas queixas seriam definidas tal qual ocorre com os sintomas
histéricos, onde o corpo se oferece como metáfora para os conflitos inconscientes? A
clínica, porém, dava-nos sinais de que havia diferenças, restava delimitá-las. Lacan
também dizia que o sintoma do obsessivo – mais voltado para o pensamento – difere do
sintoma da histeria – que toma o corpo como seu meio de expressão. Apostamos, então,
que quando Freud nos diz que a neurose obsessiva é um dialeto da histeria esteja se
referindo ao desejo. A impossibilidade é uma outra maneira de dizer a insatisfação que
caracteriza a histeria, ambos apontando para a dificuldade do neurótico em relação ao
desejo.

Localizamos o campo do sintoma como aquele onde há a presença de um


conflito, sendo uma forma singular de o sujeito responder aos impasses em relação à
castração, ou seja, à sexualidade. Os sintomas na neurose obsessiva são os dispositivos
que permitem ao sujeito manter o desejo como impossível. É para isso que o obsessivo
trabalha na posição de escravo e sustenta o mestre à espera de sua morte. A dúvida e a
procrastinação são justificados pela espera da morte do pai, do mestre. Com isso ele
tenta manobrar sua distância com respeito ao gozo, que fica situado no campo do mestre
que ele se recusa ser.

Na neurose obsessiva, o corpo aparece como instrumento que busca viabilizar


uma estratégia pela qual ele encontra uma saída para responder às questões sobre o seu
desejo (SANTIAGO, 1999). A via neurótica faz do corpo uma armadilha do desejo para
o sujeito histérico ou um instrumento de resposta à demanda do Outro na neurose
obsessiva (LAURENT, 2008a, p.46). O corpo na neurose obsessiva aparece como um
corpo fixado, um corpo que “não se gasta, na intensão de continuar preservado, fica
intacto, à espera do julgamento final” (GAZZOLA, 2005, p.155). É um corpo que deve
ser dominado e, para isso, o sujeito almeja um corpo esvaziado de gozo.

O obsessivo dedica-se a abolir a diferença entre os sexos, o que gera como


conseqüência algumas dificuldades no encontro sexual, conforme estamos vendo. O
obsessivo se pergunta como se desfazer de seu ‘pequeno instrumento’ (MELMAN,
2004, p. 20) enquanto objeto de gozo. A neurose obsessiva, de maneira clara, deixa à
mostra que o sexo pode ser uma dor de cabeça. A dor da existência, da ausência de algo
que define e delimita o sujeito, desloca-se para a existência da dor, para o impedimento.
“A dor é um encontro com o real, com o impossível de dizer” (Ibid, p.5). A dor na
neurose obsessiva pode ser um efeito da afetação do significante. Ela aparece quando o
sujeito se deixa afetar por algo, quando a dimensão do afeto não ganha disfarce.
Por outro lado, é justamente o corpo que faz com que a dimensão do vivo
apareça para a neurose obsessiva. Através da sexualidade, da angústia, das inibições,
das dores, o sujeito é confrontado com a impossibilidade de manter o desejo no plano
do impossível e de tudo controlar. Retomando o apontamento de Lacan, “o corpo foi
feito para gozar” (LACAN, 1972-73), de uma forma ou de outra ele alcança o gozo.

Outra manifestação bastante presente na neurose obsessiva é a mortificação, cuja


palavra em alemão é Kränkung e significa fazer adoecer (FREUD, 1893-5, p.44). Freud
(1916), ao falar daqueles que se arruínam pelo êxito, retoma a formulação dos que
adoecem ao se depararem com a realização de um desejo. A mortificação nos aproxima
da flagelação que é uma prática erótica onde o corpo é tomado como objeto de gozo
(LACAN, 1969-70, p.47). Expressões da angústia no corpo, auto-agressões, mordidas,
arranhões, bater a cabeça na parede, são uma forma de vermos a mortificação através da
introdução da flagelação no corpo.

Diante da falta, da castração, o sujeito na neurose tem como possibilidade o


recalcamento disso que é insuportável, gerando como conseqüência um sintoma, uma
forma particular do sujeito se colocar no mundo, inscrita na linguagem e, portanto,
passível de interpretação, uma forma que se mantém e à qual o eu tenta se adaptar.

É importante deixar claro que nosso intuito não é catalogar as diferentes queixas
do sujeito nas categorias de inibição, sintoma e angústia. Sabemos que a mesma queixa,
dependendo do lugar que ela ocupa na vida do sujeito e do momento em que ela
aparece, ou seja, a quê ela responde, pode ser tomada como um sintoma, uma inibição
ou ser a expressão de angústia. Vale ilustrar, com exemplos que são clínicos, os
impasses que puderam chamar nossa atenção e proporcionar um questionamento
frutífero em relação aos mesmos. Sendo assim, rituais que materializam compulsões por
se lavar, por arrumar, por manter um corpo perfeito, ‘com tudo no lugar’, saudável,
imortal, despertam nosso interesse pela relação entre o corpo e a neurose obsessiva.
Tais compulsões são acompanhadas por uma tentativa incansável de controle e
prevenção por parte do sujeito.

Os sintomas, na verdade, de acordo com a estrutura de uma


neurose obsessiva, servem predominantemente como defesa
contra esses desejos, ou expressam a luta entre a satisfação e a
defesa. A satisfação de tais desejos sádicos, contudo, (...) obtém
êxito, através de vias transversas, ao realizar-se na conduta dos
pacientes, e se volta preferencialmente contra eles mesmos
(FREUD, 1916-17 [1915-1917] , p.361).

Ao se deparar com o desejo, a angústia pode se apresentar de forma avassaladora


na neurose obsessiva. Enquanto o sujeito não faz um sintoma, nomeando e dando um
formato à mesma, pode aparecer o aperto na garganta, a perda da voz, os arranhões, a
necessidade de extrair alguma parte do corpo, a ausência ou o excesso de fome, a
agitação, a diarréia, o vômito, as crises de suor, a insônia. A constante vigilância da
neurose obsessiva se apresenta na dificuldade para dormir. A vigilância é um esforço
enraizado em seu ser.

O obsessivo tenta sitiar o Outro com artimanhas e estratégias que o enclausuram.


Sitiado na inibição e no sintoma, transbordado pela angústia, o obsessivo quer outorgar
consistência ao Outro. Máquina de pensar, calcula os riscos e se afoga em dúvidas.

Para que possamos ter uma visão mais apurada do lugar que o corpo possui na
clínica da neurose obsessiva, iniciaremos uma distinção mais detalhada entre sintoma,
inibição e angústia no obsessivo, que terá continuidade no próximo capítulo. Inibição,
sintoma e angústia são descrições de manifestações particulares, nem sempre de fácil
diferenciação (Id, 1926[1925], p. 91). A tríade, eternizada por Freud (1926[1925]), é o
título de um texto que detalha as duas neuroses: histeria e neurose obsessiva. Essas três
manifestações clínicas são reformuladas, inclusive em suas inter-relações. Inibição,
sintoma e angústia são três formas das dificuldades do sujeito em relação ao desejo e à
castração se manifestarem (SANTIAGO, 2005, p. 131). O sujeito traz em sua angústia,
inibição ou sintoma uma resposta possível para a falta do Outro (AMBERTÍN, 2006,
p.61).

Tanto o sintoma quanto a inibição têm a função de evitar a angústia, porém


utilizam mecanismos distintos para isso. O sintoma implica o recalque para proteger o
sujeito da angústia e opera a partir de uma substituição significante que, por sua vez,
tem como efeito a metáfora. É uma operação simbólica que permite a interpretação e o
deciframento. As inibições antecipam o perigo através do uso de mecanismos que
consistem em manter fora da ação a função erotizada. Evita-se o surgimento da angústia
e consequentemente um novo recalque. “Este fato elucida a ausência de associação de
idéias que a inibição provoca no sujeito, (...) uma verdadeira parada do pensamento que
pode ser articulado como um buraco no nível discursivo” (Ibid, p.70 -1).

As inibições se apresentam exclusivamente no eu e, por isso, não se confundem


com o sintoma, que exige a idéia de um conflito entre as instâncias. A inibição é da
ordem da renúncia, enquanto o sintoma envolve sempre um conflito, ela mascara para o
sujeito a angústia de seu desamparo.

A inibição exige do analista paciência e manobras que atuem sobre o gozo, ou


seja, que passe o mesmo para a fala. Essa alteração permitirá o desenrolar da associação
livre que suscitará angústia, um novo recalque e a possibilidade de interpretação. Tirar o
sintoma do museu, definição de Lacan (1962-63) para o impedimento, é fazê-lo circular
na cena analítica (Ibid, p.77). A saída para o analista diante da inibição é tentar
transformá-la em sintoma. Para isso, ele deve sustentar a transferência sem alimentá-la,
para permitir a entrada do desejo do Outro em cena, o que promoverá a divisão do
sujeito. Para tal, será fundamental o corte com perguntas que levem o sujeito a outra
direção e a interrupção da sessão que introduza algo enigmático (Ibid, p.78), algo que
faça vacilar as significações do sujeito às quais ele se encontra preso em seu gozo
narcísico. O analista fica atento, com sua atenção flutuante, ao aparecimento de um
significante que possa promover o sintoma analítico que dará início à associação livre e
à interpretação.

Após abordarmos algumas peculiaridades nas diferenças entre a inibição, o


sintoma e a angústia, destacamos seu ponto comum em Freud: o eu, o corpo. O eu tenta
incorporar o sintoma a si, ele é a sede da angústia (FREUD, 1926[1925], p. 97) e onde a
inibição se manifesta. O eu pode subtrair-se da angústia por uma evitação, um sintoma
ou uma inibição. Assim, mesmo em Freud, vemos a articulação entre inibição, sintoma
e angústia com o corpo e com o campo da neurose, não em relação a qualquer ponto do
corpo, mas, justamente, em sua questão central, à sexualidade. Inibição, sintoma e
angústia intervêm na manifestação sexual, estando referidos ao desejo. O sintoma é o
retorno do desejo recalcado; a inibição aparece quando o desejo se manifesta e, da
mesma forma, a angústia, como já desenvolvemos anteriormente.

Sendo assim, inibição, sintoma e angústia estão afinados com a relação do


sujeito com o Outro. Entre inibição, sintoma e angústia se constrói o mundo
fantasmático do sujeito (RABINOVICH, 2005, p.37), como será desenvolvido no
próximo capítulo. O grafo do desejo desenha a articulação entre a tríade freudiana e o
desejo do Outro.

Como jogar com alguém que torna inoperante o risco? A análise implica riscos.
O analista tem dificuldade de desalojar o obsessivo de sua jaula. Ambertín (2006) nos
chama atenção para o fato de que “quem não demanda obter um lugar no desejo do
Outro, não pode participar de nenhuma partida, quanto menos da analítica”
(AMBERTÍN, 2006, p. 104). Só o sofrimento e a angústia podem escrevê-lo nesse jogo.
O obsessivo faz do dever um enigma e é por essa via que ele pede socorro ao analista
(LACAN, 1959-60). Fica preso em suas defesas como em uma armadura de ferro,
“onde ele se detém e se enclausura, para se impedir de aceder ao que Freud chama a
certa altura de um horror por ele mesmo desconhecido” (Ibid, p.247-48).

No inconsciente impera a imortalidade. Freud, porém é taxativo: “se queres


suportar a vida, prepara-te para a morte” (FREUD, 1915c, p.309). Para sacudir o
obsessivo de suas defesas, é preciso que as inconsistências do Outro apareçam. Freud
em “Sobre a transitoriedade” (1916[1915]) nos diz que “não é possível sustentar um
tratamento com esse horror à transitoriedade” (Id, 1916[1915], p.192). A morte, a morte
da coisa com a entrada do sujeito na linguagem, permite que o desejo se eternize,
possibilitando a movimentação do sujeito na vida.

O que é transitório se transforma. De maneira curiosa, não é isso o que o


neurótico valoriza. Diante das incertezas que o não saber implica, opta pela constância
do mesmo (Ibid). Como não perder isso no processo de análise? Não há direção do
tratamento sem o risco do luto e nem vacinas contra as inconsistências da vida, risco
que cabe também ao analista sustentar. Não é possível sustentar um tratamento, sem
colocar a questão do valor da vida em cheque e sem enfrentar o horror à transitoriedade.
O horror à morte está ligado às inconsistências da vida, ao enfrentamento do luto. Como
nos disse Freud (1916 [1915]), o luto é um enigma do qual o sujeito prefere se afastar.

Um dos pontos fundamentais a ser necessariamente perpassado na análise do


obsessivo é seu submetimento ao supereu. O destino do supereu na clínica está
relacionado com uma perda de gozo, que não necessariamente é oriunda da renúncia. As
formulações de Freud (1930 [1929]) de que a renúncia pulsional serve de alimento ao
supereu, leva-nos a buscar uma outra direção do tratamento para o supereu e sua
exigência de gozo que não a renúncia. Tanto a realização da agressividade quanto a sua
renúncia trazem infelicidade. Freud, portanto, reconhece como impossível o
mandamento superegóico de renúncia pulsional que desconsidera a quem o eu também
serve: o isso.

Para que se possa responder à voz superegóica do lugar de sujeito e não do


objeto de injunção de gozo, é necessário a perda na crença de que o gozo pleno seria
possível, ou seja, que o sujeito se desse conta não apenas da castração, - disso ele já se
dá -, mas de seus efeitos, ou seja, do que ela poderia proporcionar. Para isso, é
fundamental que o sujeito consiga abrir mão do ideal. É a partir da clínica do desejo que
é possível negociar com a intrusão superegóica.

Ao trazer o objeto a para o lugar de agente, o discurso do analista propõe um


novo destino para a submissão do sujeito aos imperativos do supereu. Ao se colocar no
lugar de causa de desejo, o analista questiona e esvazia a dimensão da voz coercitiva do
supereu. Para isso, é fundamental distinguir o objeto na sua função de causa de desejo e
na função de supereu. Como causa de desejo, ele mantém o circuito pulsional aberto,
em movimento, mantendo viva a impossibilidade de gozo. Como voz, ele atormenta,
exigindo que se aceda a esse gozo perdido (CORDEIRO, 2007).

Perguntamos que usos o sujeito pode fazer da castração, além da pura renúncia
que o supereu exige e da via de recuperação do gozo pelo objeto. O neurótico recua
diante da possibilidade de positivar a castração; de não fazer de sua castração o que falta
ao Outro (LACAN, 1962-63, p.56). A ética da psicanálise está ligada à inexistência de
um objeto que venha pôr fim aos anseios do sujeito, à impossibilidade de reviver a
primeira experiência de satisfação. Assim, ética e gozo se unem através do supereu. O
gozo é o que acompanha o desejo em sua insistência de realizar o impossível.

Faz parte da função do analista descobrir o desejo que reside atrás das ilusões
disfarçadas no que Lacan denominou de serviços de bens, ou seja, nas diversas
concepções de bem que se encontram presentes em nosso discurso, seja ele social,
moral, religioso ou capital.

Para finalizar, retomamos que o neurótico obsessivo é um sujeito cartesiano.


Descartes inaugurou um método de reflexão filosófico inédito, que vai dar
independência ao campo da ciência: a dúvida metódica. Põe em suspensão todas as
certezas que advêm dos sentidos, para se concentrar nas evidências produzidas pelo
pensamento. Fica retido na dúvida em busca da certeza.
O tornar o inconsciente consciente, uma das fases do processo de análise,
enquanto está na via da recordação e da reconstituição atual do passado, torna a análise
fascinante, ainda mais para aquele que quer tanto saber, saber o que não sabe de si,
desenhá-lo em um mapa e ter suas coordenadas. Mas como o gozo insiste, o sujeito
cansa, desistindo de enfrentar toda semana a repetição do encontro com o que não
funciona. O paciente, em alguns momentos, consegue ver que enquanto mantiver a via
do entendimento e da busca obstinada do porquê, as coisas não irão mudar. Que bom
que ele cansa. Ensina ao analista a dificuldade que é também para ele sustentar até as
últimas conseqüências seu desejo de analista – o que prima pela pura diferença, por um
despertar que definitivamente não se alcança pela via do entendimento.

O ‘eu penso’ do obsessivo se apresenta profundamente investido em sua imagem


especular, o que faz com que ele resista ao confronto com o inconsciente. Vemos essa
resistência estampada na dificuldade de se entregar à associação livre, nos tempos
longos entre uma fala e outra, na busca eterna pelo porquê. Daí a necessidade do tempo
variável, da movimentação no tempo das sessões (Id, 1953, p. 313-7). Guardar uma
temporalidade fixa é se fingir de morto enquanto um dos objetivos do analista é tentar
fazer o sujeito sair da prisão temporal, do eterno adiamento.

Para a psicanálise o sujeito não é unívoco. Ali onde penso não me reconheço,
não sou – sou justamente onde não penso, subvertendo a afirmação de Descartes. “Ali
onde sou, é mais que evidente que me perco” (Id, 1969-70, p.96). Cabe à análise
retomar a inversão no cogito de Descartes – ‘penso onde não sou, sou onde não penso’,
marcando o lugar do sujeito desejante, do corpo pulsional e sua satisfação. “Desidero, é
o cogito freudiano”, desejo logo existo (Id, 1964, p.147).

O que fazer com esse corpo que só em parte nos pertence? A análise visa obter
uma relação com o corpo que seja nova. Não a da idolatria, não a da inibição e da
angústia, nem a do excesso e, sim, a da encarnação da castração, que permite a
variabilidade, o movimento dos objetos do desejo. Para isso, a morte, a dor, podem se
configurar como uma via de trabalho onde os impasses em relação ao desejo se
encarnam. O desejo é uma barreira ao gozo fundada na linguagem, ele é uma
perturbação do corpo. Almejar que a análise possibilite um bom entendimento do corpo
com o gozo é ilusório (MILLER, 2009).
O horror à morte e à doença sustenta a hipocondria que consome o sujeito em
formulações infindáveis de hipóteses que justifiquem qualquer alteração no corpo. O
obsessivo quer estar sempre são, palavra que vem de sanus e que significa intacto e
infalível (CANGUILHEM, 2005, p.38). Daí vem a expressão ‘são e salvo’. A análise
vai na direção oposta: a morte está na vida, o adoecimento é signo disto (Ibid). A forma
como o corpo vai aceder a sua relação com a morte será para nós uma questão ética.

Na fala do obsessivo, risco equivale à perda, perda da suposta certeza e


segurança que a imobilidade traz. A causa do desejo, porém, não se sustenta sem
perdas. Apostar no discurso analítico é apostar no furo no saber, na incompletude. Caso
o sujeito se disponha a pagar o preço de ir ao encontro de sua verdade, poderá talvez
desfrutar de um novo saber e um novo espaço para criação.

O tratamento analítico do neurótico opera a partir da distinção entre alienação e


separação (LACAN, 1964) do sujeito em relação ao outro, ao desejo do Outro. Quando
o sujeito procura o analista, faz um apelo de encontrar sentido para o que está rateando,
ao que a fantasia não conseguiu enquadrar. Mesmo que chegue nesse registro da
alienação, o lugar da análise apresentará a ele o enigma do desejo que aparece nos
buracos da fala, nos silêncios, na relação transferencial. É o desejo que aponta para o
movimento de separação.

A psicanálise opera. Com custos e no tempo singular de cada um, mas opera.
Permite que o sujeito aceite a dimensão do real e do impossível, fazendo-o operar com
sua própria perda (Id, 1964a, p.858). Ela aposta na possibilidade do desejo e de o sujeito
– se quiser – mudar seu destino. No que diz respeito à neurose obsessiva, a psicanálise
demonstra que autorizar-se no campo do desejo não é auto-ri-(tuali)-zar-se como nos diz
Lacan (Id, 1973a, p.312), bem ao contrário, é experimentar o novo.

Experimentamos esse novo na escuta da transexualidade. É com ela que


animamos nossa escrita e tomamos fôlego para aprofundar os possíveis descompassos
entre o eu e o corpo.
Parte 6

A escuta psicanalítica de pessoas trans: do estranho a uma invenção possível com

o corpo.

“Nada mais familiar que a estranheza que sentimos em algum momento da vida,

em relação ao nosso corpo e ao do outro.” (Lacan, 1971-72)

“Falatrans” é o nome de um projeto de extensão vinculado ao curso de

Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora, que oferece, atendimento

psicanalítico gratuito para pessoas trans. Iniciado em 2018, surge com a proposta de

constituir um espaço de fala para aqueles que se identificam com o significante trans,

primando para que as diferenças nos processos de construção do corpo sejam ouvidas e

trabalhadas. Dessa forma, denomina-se como “clínico-político” (Rosa, 2017) o trabalho

realizado nesse projeto, visto que ele: abre espaço para as singularidades da clínica com

pacientes trans, convoca os psicanalistas a atuarem em frentes que priorizam esse

público e permite refletir sobre as publicações que articulam os conceitos psicanalíticos

a essa temática. Além disso, essa proposta é irremediavelmente politizada visto que
permite a inscrição da psicanálise na polis e problematiza os efeitos políticos do seu

saber ( Ayouch, 2016).

A partir do trabalho desenvolvido no Falatrans questiona-se o que essa clínica

pode nos transmitir no que tange às especificidades das relações dos sujeitos escutados

com o próprio corpo, muitos em processo de transformação e remodelação, e, ao mesmo

tempo, verificar quais consequências são recolhidas dessas transformações em relação à

posição sexual de cada um. A partir da própria fala dos pacientes, fomos avançando

teoricamente, de modo que este artigo formaliza o que estamos construindo dentro deste

espaço.

Essa escrita surge em um contexto do cenário psicanalítico importante, marcado

por uma série de publicações que, se por um lado, problematizam a tradicional

articulação entre transexualidade e psicose, por outro, acenam com uma nova

articulação diagnóstica aproximando transexualidade e histeria (Jorge & Travassos,

2018). A transexualidade foi apresentada, em alguns textos, como uma forma da histeria

se fazer presente nos tempos atuais, uma defesa frente à homossexualidade, um

fenômeno social definido a partir de terminologias médicas, como por exemplo

epidemia trans (Jorge & Travassos, 2018; Miller 2021).

Vemos que muitos psicanalistas21 se colocaram em trabalho, movidos pelos

impasses que a escuta de pacientes trans apresenta a quem se disponibiliza a levar a

soberania da clínica ao pé da letra. Surgem então outras entradas teóricas nessa

temática, para além do diagnóstico e da epidemia. Temos discussões sobre o

posicionamento sexual do sujeito a partir das fórmulas da sexuação (Lacan, 1972-73),

21
Dentre as referidas publicações, tanto as que afirmam a aproximação entre transexualidade e histeria
quanto as que abordam essa temática por outros vieses, destacamos: Quinet (2018), Ansermet (2018),
Bonnaud (2016), Rosa (2019), Fajnwaks & Leguil (2015), Mariotto (2018), Santiago et all (2017), Alberti
& Zenicola (2016), Preciado (2014).
as aproximações e divergências com as teorias Queer (Butler, 2013), a problematização

do diagnóstico (ainda restrito à psicose ou à histeria), as articulações entre a sexualidade

e o real, e, sobretudo, a forma como o corpo participa de todo esse processo de

transformação.

Pensamos que é fundamental permitir uma certa “inversão da questão trans”

(Ayouch, 2016), ou seja, deixarmos de perguntar como a psicanálise toma a

transexualidade - sobretudo as leituras marcadas por generalizações diagnósticas e

pouco clínicas - e investigarmos o que essa clínica revela em relação às possíveis

relações dos sujeitos com o corpo, com a errância da pulsão, a importância e o limite do

Outro nos processos de identificação, os efeitos dos movimentos identitários bem como

a urgência em se questionar quais seriam os possíveis destinos ao lugar de dejeto que se

apresenta tão repetidamente na fala dos pacientes. Se a psicanálise pretende se ocupar

da singularidade do sujeito, ela foge a toda categoria que visa generalizações e recolhe o

que tem efeito singular na transexualidade de cada um.

Circunscrevemos, então, essa escrita a partir de três eixos temáticos, quais

sejam: a eleição de um trabalho clínico com pessoas trans como um meio de

transmissão da psicanálise na Universidade, a problematização de duas afirmações, a

nosso ver centrais e talvez contraditórias de Freud (1912) e Lacan (1974) que fazem

referência à anatomia e à sexualidade, e, por fim, os efeitos do acolhimento do que é

estranho no corpo e no sexual a partir da fala de um sujeito trans.

O impacto da linguagem no corpo, desde sua constituição até o processo de

análise, se mostra claro na tentativa do sujeito de habitar seu corpo. Pudemos observar

esse impacto a partir das novas inscrições significantes efetuadas sobre o corpo dos

pacientes, do acolhimento e da ressignificação do que fica do corpo/sexo anterior, do


questionamento da identidade como equivalente ao sujeito e da ascensão falaciosa ao

lugar (ideal) de homem ou de mulher (Lacan, 1972-73).

As mudanças efetuadas na própria imagem foram reapropriadas pelos próprios

sujeitos, não tendo consequências equivalentes para todos. Observa-se a importância de

‘tomar como seu’ ou colocar algo de si no que as terapias hormonais e as cirurgias

permitem. E, por fim, houve um espaço para que os sujeitos abordassem seus impasses

com a sexualidade para além da existência de um corpo.

6.1 - A eleição de um trabalho clínico com pessoas trans como um meio de

transmissão da psicanálise na Universidade: a política do um a um.

Ao dizer que o analista é aquele que atravessa o percurso de se analisar

para assim sustentar seu lugar de trabalho, Freud (1912a/1976) problematiza a

importância da análise pessoal na formação daquele que, transferido com a

teoria psicanalítica, ocupa o lugar de analista (Lacan, 1992). Quando a

psicanálise encontra-se em um curso de psicologia que envolve, portanto, outros

direcionamentos em relação à formação do aluno, deparamo-nos com uma série

de dificuldades que, não obstante, convocam aquele que aposta na Universidade

como um lugar possível para a transmissão da psicanálise enquanto prática

clínica, a inventar uma via de acesso ao aluno capaz de, minimamente, instigá-lo

na direção da teoria e da clínica psicanalítica.

Retomamos, então, a importância da experiência clínica como forma de

transmissão daquilo que é mais particular à psicanálise: a existência e os efeitos

do inconsciente, o trabalho sob transferência, a singularidade de cada caso, o

limite da teoria, a particularidade da escuta, a impossibilidade de ensinar alguém

a ouvir, a satisfação gozosa do sintoma, a necessidade de um desejo singular


para ocupar o lugar de analista. Assim, sem o intuito de formar psicanalistas, a

Universidade permite recolher efeitos de transmissão, servindo de ponte para

alguns que são despertados por essa experiência de escuta.

Decidimos então articular psicanálise e transexualidade. Colocamos em

xeque a afirmação freudiana de que a anatomia é o destino, recebida com poucos

sorrisos pelos alunos. A via de transmissão da psicanálise, eleita por nós, foi

trazer a clínica com pessoas trans para dentro da universidade, trazer o caso

clínico para dentro da teoria, destacar o trans que nos habita mesmo sabendo das

diferenças em relação aos efeitos desse significante para cada um. Sustentamos,

então, um lugar de acolhimento, através da escuta, onde somos convocados a

pensar o que de estranho/estrangeiro faz morada em cada um de nós.

Convocação iniciada por Freud que articula sexualidade, corpo e mal-estar desde

a fundação da psicanálise.

Convidamos os alunos e profissionais colaboradores do projeto a

iniciarem esse trabalho. Movidos pela transferência com a psicanálise e pelos

efeitos dos movimentos políticos identitários presentes no cenário universitário,

chegamos à radicalidade da singularidade através das diferentes formas com que

a realidade sexual e seus impasses aparecem nas falas dos pacientes. A

psicanálise resgata assim a positividade da clínica, os efeitos de se tomar a

palavra na atualidade, trazendo suas contribuições sobre o sofrimento mental

para lugares não tão esperados.

Esse tem sido então um movimento político que encontra resistência.

Desde os tempos de Freud, porém, testemunhar quem somos com nossas

palavras é um ato fundamental de resistência, e isso perdura no hoje. Justamente

pela psicanálise não se encontrar desavisada diante da busca de felicidade


daqueles que nos procuram, e ser uma prática (Lacan, 1997) que permite incluir

o próprio sujeito nessa busca, responsabilizando-o frente ao seu mal-estar, gera

rupturas nos ideais vigentes.

Miller (2010) em seu texto “A salvação pelos dejetos” nos lembra que ao

sustentar um tratamento para o sofrimento que traz para a cena analítica nossos

próprios dejetos, a psicanálise desvela que, até então, os seres falantes haviam

procurado a saída para seus mal-estares pela via do bem, ou seja, dos ideais.

Podemos destacar: ideal de cientificidade, de produtividade, de eficiência, ideal

religioso, humanitário, etc. Entretanto, operar sob uma lógica de trabalho que

não vise ao ideal, nesse contexto específico, ideal em relação a ser homem,

mulher ou trans, permite que a ideia de uma relação perfeita com o corpo caia.

Uma imagem e um nome são recursos importantes para balizar esses lugares,

mas vemos que não são suficientes. O que traz como consequência direta um

convite a que cada sujeito costure algo em relação ao seu corpo, à moda mais de

uma bricolagem (Vieira, 2021) do que da roupa da produção em massa. O

corpo, tomado aqui como veste (Lacan, 1972/1973), pode ser ou não habitado,

reconhecido, cortado, costurado, reconstruído com as intervenções analíticas que

testemunham o uso desse espaço como invenção (Vieira, 2021) com o que resta,

com o que fica.

Freud trabalhou em dois textos clássicos - “Além do princípio de

prazer” (Freud, 1920/1996) e “O mal-estar na civilização” (Freud, 1930/1996),

como a relação do sujeito com o que se poderia formular como sendo o seu bem

ou sua felicidade é bastante problemática. De um lado, Freud demonstra que

tudo o que a civilização cria para encurtar o caminho do sujeito em direção a sua

felicidade, se não está diretamente fadado ao fracasso, é passível de gerar uma


quota irredutível de mal-estar. Por outro lado, o caminho que o sujeito percorre

na busca do prazer está marcado pela barreira do recalque, de maneira que

algumas condutas que buscam satisfazer os prazeres recalcados acabam por

gerar um profundo desprazer para a consciência (Bispo & Couto, 2011).

Assim, não há nada que garanta ao sujeito um bom caminho em direção

ao seu bem, muito menos em se posicionar como homem ou mulher, já que

tantos desvios aparecem no caminho. Ele precisa ser trilhado no um a um. Nesse

sentido, não recusamos parcerias com centros de referência que oferecem

atendimento médico, hormonização, retiradas das mamas e cirurgias de

redesignação, reconhecendo os efeitos dessas intervenções naqueles que

ouvimos. Falbo (2016) retoma uma reflexão sobre isso, proposta por Preciado

(2014) em seu Matifesto Contrasexual ao destacar que as transformações

relacionadas ao corpo, sejam elas físicas, sexuais ou políticas têm um efeito

evidente para os sujeitos em transição. A introdução de terapias hormonais, a

retirada dos seios, o implante de silicone, a presença ou ausência de pêlos no

corpo e a própria cirurgia de redesignação, fazem (muita) diferença. Escutar os

efeitos dessas intervenções no caso a caso aproxima-nos da ética psicanalítica,

aquela que nos convoca a olharmos para o que exilamos em nós mesmos, sem o

intuito de eliminá-lo.

Assim, transferidos com o significante Trans os sujeitos vão em busca

de um lugar de fala, onde possam expressar seus sofrimentos, seus conflitos em

relação ao seu corpo, à identidade, às dificuldades no campo do amor e do ódio e

em sua maioria, sustentam um espaço onde possam transformar o lugar

(equivocado e violento) de dejeto que muitos, infelizmente, ainda experimentam

a partir do que mostram em relação às intervenções e modificações que efetuam


sobre o próprio corpo e sobre a sexualidade. Como acolher o sujeito levando em

consideração o que insiste como rastro em seu corpo?

Para sustentarmos uma via de trabalho a partir dos traços que ficam,

precisamos tomá-los não “como lixo a ser descartado, mas como o resto

inevitável e inassimilável de uma operação de subjetivação, que não elimina,

mas faz aparecer o estranho íntimo, a estranheza própria a cada um, em sua

função de manter vivo o desejo” (Barros, 2021, p. 87). Uma subversão pelos

dejetos (Lima, 2021). Positivar as perdas, a falta instituída na nossa relação com

o Outro e até com o nosso corpo é uma das marcas da psicanálise (Coppus,

2019). No caminho da responsabilização pelo o que nos afeta, o que nos causa, o

que nos marca, incluímos o que não soa bem na própria fala do sujeito, o que

não se encaixa em seu corpo, o que não é socialmente aceito, convocando-o a

fazer alguma coisa com isso. Deslocando-se de um puro submetimento ao Outro,

de uma redução de si ao corpo - que por si só é impossível - apostamos que uma

análise pode trazer alguma dignidade ao sujeito no que tange a relação do

mesmo com seu corpo. Algo valoroso, não no sentido imaginário do termo e sim

uma dignidade que faça referência a Das ding de Freud, a Coisa freudiana.

Brincando um pouco com as palavras, uma Di(ng)gnidade que faz

referência ao vazio constitutivo do aparelho psíquico, capaz de gerar

movimento, colocando o sujeito em trânsito, em busca de um lugar para si, a

partir do qual possa se nomear. Trabalhamos então nesse espaço de escuta com a

dignidade em sua radicalidade, lugar de fala mas sobretudo de escuta e de

recolhimento dos efeitos de vazio presentes naquilo que se diz. Essa dignidade

então faz referência ao valor, ao genuíno, ao que se constrói, à moda de uma


bricolagem, com os nossos próprios dejetos, nossas peças soltas (Lima, 2021)

sem a intenção de encaixá-los em algum ideal.

Quando ouvimos os pacientes, aproximamo-nos do que há de estranho,

de estrangeiro, do Outro em nós. A clínica possui essa frutífera função de nos

permitir circunscrever esse estranho em nós nas falas trazidas pelos analisandos.

Os sujeitos que chegam até nós, analistas, trazem notícias de seu mal estar, que é

singular, mas não sem o Outro. Por isso, o caso a caso nos permite tecer novas

costuras que convocam a própria teoria psicanalítica ao trânsito, para que assim

possamos pensar sobre o sujeito e o social no que a contemporaneidade sugere.

A afirmação de Lacan (1972/1973) de que nós não somos nosso corpo, e

sim o temos, coloca em destaque a impossibilidade de equivalermos aquilo que é

da ordem da identidade, do lugar do qual nos reconhecemos enquanto eu, com o

nosso corpo. Mesmo sabendo da importância do reconhecimento de si na própria

imagem, dos efeitos psíquicos que as alterações na imagem permitem, há um

resto não eliminável entre aquilo que se vê e o que se sente no que tange a uma

autorização como homem ou mulher que se faz ouvir na clínica com pessoas

trans. Vejamos então algumas das coordenadas oferecidas por Freud e Lacan em

relação a esse ponto.

6.2 - Da anatomia ao autorizar-se

Vivemos hoje a possibilidade, quase infinita, de uma fluidez no que tange ao

gênero (Knudsen,2021). Estamos diante de uma catalogação instável e em proliferação

acentuada. Embora gênero não seja um conceito da psicanálise, não há como negar os

efeitos discursivos produzidos ao colocá-lo em questão dentro da própria psicanálise


(Falbo, 2016). Ou ainda, se pensarmos nessa expansão e questionamento como um

sintoma de nossa época, “um modo de lidar com o impossível da identidade e da relação

sexual” (Teixeira et all, 2021, p.20) a psicanálise pode contribuir e muito. O que nos

autoriza a entrar nesse debate sobre o gênero é o fato dos sujeitos virem até nós falar de

seus impasses em relação ao seu gênero e sexualidade (Teixeira et all, 2021)

Judith Butler é um dos nomes mais importantes para os estudos atuais sobre o

gênero. Suas reflexões possibilitaram trazer para o campo social questões que estavam

arraigadas na concepção de natureza, tais como o corpo, o sexo e as posições feminina e

masculina. Em Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, Butler

(2015) interroga se o “sexo” seria uma estrutura dada ou se é algo que se constrói

historicamente. Deste modo, ela propõe dissolver a dicotomia entre sexo e gênero,

segundo a qual o gênero seria algo inscrito culturalmente em um sexo dito natural,

afirma o gênero e o sexo como construções sociais, fabricações históricas e culturais

não determinadas por nenhuma verdade nem natural, nem ontológica (Butler, 2015).

Vemos aí um ponto em comum com a psicanálise que toma a biologia dos corpos

e suas funções através do campo da linguagem e da fala. É deste modo que as diferenças

anatômicas engendram consequências psíquicas. Em outras palavras, as características

biológicas dos corpos se destacam mais pelas marcas significantes, configurando algo

da ordem da aparência na abordagem da diferença sexual.

O gênero estaria articulado, então, a uma tentativa do sujeito dar conta da

relação com o corpo próprio e com o do Outro, com a possibilidade de não se fixar

totalmente em um dos polos (Teixeira et all, 2021). À medida em que nos constituímos

sexualmente, sempre para alguém, estaríamos visando preencher o que supomos ser o

desejo inconsciente desse Outro. O gênero seria assim, uma resposta não natural do

sujeito desejante, uma possível localização de estrutura moebiana: “trata-se de uma


resposta endógena a um desejo exógeno, mas que, nesse movimento, borra tal

fronteira.” (Ambra, 2018, p.49)

Trazemos em destaque a formulação lacaniana que nos convida a pensar sobre o

ser sexual na psicanálise, aquela que diz que o ser sexual se autoriza de si mesmo e

alguns outros no que tange à posição sexual. Uma afirmação presente no final do ensino

de Lacan (1974) que convoca o analista, em um primeiro momento, a repensar a

afirmação freudiana de que a anatomia é o destino. Se por um lado a anatomia é dada,

por outro, o modo como cada sujeito vê sua anatomia comporta variantes,

consequências subjetivas. Visto que não é a anatomia que necessariamente identifica os

sujeitos como homem ou mulher e nem mesmo esses significantes isoladamente, a

inquietação quanto ao próprio sexo é uma regra que vale para todos. Afirmamos então

que não há identidade sexual: a sexualidade é o que perturba toda a identidade. (Alberti,

2019)

A frase dita uma única vez por Freud – a anatomia é o destino - , tomada de

forma isolada, parece indicar que a anatomia sustentaria uma diferença natural, original

e, portanto, intransponível entre homem e mulher. Tal frase vem ratificar a ideia de que

a anatomia é decisiva no que sustenta a operação significante que marca o corpo do

bebê antes mesmo dele ter um nome. Marca que não encerra o sentido do que é para

cada um ser homem ou mulher. A anatomia só intervém, para a criança, em um segundo

tempo, a partir do olhar do Outro, sendo, nesse sentido onde se chega, um destino. Nada

mais coerente com a ideia de que nos tornamos o que somos a partir do Outro, mas não

só.

Patrick Valas (2021) porém traz à cena psicanalítica que a frase, dita por

Napoleão anos antes de Freud, foi que “a geografia é o destino” e não a anatomia, o que

contribui bastante para o nosso trabalho. Isso porque tomar a anatomia , seja a de
origem ou a transformada, como único meio de autorizar-se enquanto homem ou mulher

é um equívoco. Talvez ela sirva para os pacientes mais como bússola na relação com o

corpo e o Outro.

Retomamos então a fala de Lacan no final de seu ensino “[...] o ser sexual só se

autoriza por si mesmo e por alguns outros” (Lacan 1974, p. 187). Tal afirmação explora

a relação entre os polos 'alguns outros' e 'si mesmo' por meio do resgate de

desenvolvimentos lacanianos anteriores ao período de hegemonia estruturalista de sua

obra. Qual período? O que trabalha a constituição do eu a partir do outro semelhante, ou

seja, o estágio do espelho (Lacan, 1949) e o esquema L (Lacan 1954/1955). A primeira

parte dessa afirmação - 'o ser sexual só se autoriza de si mesmo' destaca que o sujeito

tem 'escolha', posiciona-se diante da estranheza do sexo com o qual foi marcado

anatomicamente à revelia de qualquer sentido.. “Quero dizer que isto a que a gente 'se

limita', enfim, para 'classificar' como 'masculino' ou 'feminino' no registro civil... enfim,

isso não impede que haja escolha, sabemos disso”. (Lacan, 1974)

Anos antes, em Proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan rompe

completamente com o quadro vertical da formação analítica didática a partir da proposta

segundo a qual “[...] o analista só se autoriza de si mesmo” (Lacan, 1967, p. 248). Em

1974, por outro lado, é a partir dessa leitura da sexuação que Lacan retoma o que havia

colocado em sua proposição acerca da formação psicanalítica. Ele passa a incluir no ato

de se autorizar - seja como analista ou ser sexual- 'alguns outros' que valoriza o estatuto

fundamental da comunidade em um processo de autorização. Notemos, ademais, que

Lacan é explícito ao pontuar que tanto no contexto da formação quanto naquele da

sexuação, o que está em jogo não é o grande Outro, simbólico, mas o pequeno outro, o

semelhante imaginário (Lacan, 1974). A sexuação é um processo que se dá entre o 'si

mesmo' e o 'alguns outros'.


Não sem efeitos, essa afirmação nos faz pensar nos limites e nas possibilidades

para um sujeito se nomear em relação ao sexual, além das formas como o corpo

participa desse processo. Se Lacan partiu do universal - por exemplo, o homem, a

mulher etc. ─ ele chega ao singular,─ um homem, uma mulher.

O alguns outros, presente na frase lacaniana, nos faz retomar a geografia de

Napoleão. Talvez ela caiba mais nos tempos atuais. Geografia que diz da descrição de

um lugar, suas características, mas um lugar não apenas físico, uma geografia cultural,

uma geografia política. Destacamos então uma vinheta clínica de um paciente do

Falatrans.

6.3 - Do estranho a uma possível invenção.

O corpo costuma ser comparado muitas vezes à nossa casa, essa morada íntima,

onde nem tudo é familiar. Freud (1919) em seu texto “Das Unheimliche”, publicado em

1919 ressalta a dimensão paradoxal da experiência que nos estranha, na qual o encontro

com o mais íntimo pode retornar enquanto “inquietante estranheza”, trazendo à cena o

desconhecido que nos habita. Se tomamos o dito de Freud (1923) de que o eu não é

senhor em sua própria casa, vemos configurado em nós uma geografia delimitada por

exílios, que também perpassa a relação dos sujeitos com o próprio corpo. Alguém

exilado saiu de seu lugar de origem, de forma imposta ou voluntária, sem perspectiva de

retorno. O exilado parte para o estrangeiro, depara-se com o estranho, outra língua,

outra cultura e mesmo que volte à pátria antiga, esse retorno não ocorre sem perdas.

“Pode um homem ter cintura fina?” Esse foi um dos questionamentos levantados

por um paciente do “Falatrans”. A.M é um homem trans de 26 anos às voltas com os

impasses de um corpo em transição. Com o início da terapia hormonal ao mesmo tempo


em que começava o atendimento psicanalítico, se questiona: “que corpo irei construir?”.

O que seria possível nesse processo?

A pergunta eleita pelo paciente, gera reverberações em sua fala, fazendo com

que a questão da “passabilidade” entre em cena. Isso significa que era importante para

A.M “se passar” ou ser reconhecido, enquanto um homem, mais especificamente como

um homem cis. Para tanto, o incômodo gerado pela marcante presença das mamas e da

cintura fina, denunciavam um furo nessa construção que o remetia a um feminino que

não era bem vindo. O início do tratamento hormonal possibilitou que ele confirmasse

na imagem vista no espelho os caracteres masculinos. Houve uma grande euforia pelo

aparecimento de um esboço de barba, bigode e principalmente pela mudança na voz.

Com o espaço de fala nas sessões, A.M relata um diálogo em que reunidos com

a família em um almoço de domingo, a irmã faz a seguinte colocação: “cruzes nunca vi

um homem sem pinto”. A avó materna então responde: “mas quem disse que ele não

tem? É só você olhar no guarda roupa, está lá”. A.M diz... “eu tenho mesmo”, “eu posso

ter”. É interessante notar aqui, os impasses colocados em cena entre o que é da ordem

da biologia dos corpos e o campo da linguagem, do que se apropria. Como ressalta

Falbo (2016):

“As características biológicas dos corpos se destacam pelas marcas

significantes e, por esta operação de linguagem, indicam e configuram algo da

ordem da aparência na abordagem da diferença sexual. No que concerne ao

sujeito, embora existam diferenças anatômicas, este não é o fator determinante.

A sexualidade humana opera com semblantes e estes concernem à aparência em

sua articulação com: o Imaginário, conferindo uma unidade ilusória ao corpo

despedaçado do autoerotismo; o Simbólico, ao representar um sujeito para outro


significante; e o Real, uma vez que esta imagem engendra efeitos de real, gozo.”

(Falbo, 2016, p.7)

A.M. retira as mamas, mas não gosta das cicatrizes. Em seu processo de análise,

coloca em cena a relação de estranheza e recusa ao que remetia à feminilidade: a

menstruação, as cicatrizes, a cintura. Ele relata que há aproximadamente dois meses foi

à praia e ficou sem camisa, disse ter suportado os olhares, uns de espanto e outros de

reprovação sem se intimidar. A.M conclui: “Eu me permiti ser esse homem...” . Esse

homem, que passa a se relacionar com homens gays e precisa agora tomar providências

caso não queira engravidar. Diz então que apesar da sua vagina, e mesmo ela estando

presente nos jogos sexuais, isso não o impede de se colocar como um homem. Freud em

sua XXXIII Conferência sobre feminilidade, já apontava para a impossibilidade de

generalizar qual seria “a natureza da feminilidade” ([1932-33], p. 140), e ainda: “[...]

aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica

desconhecida que foge do alcance da anatomia” ([1932-33], p. 141).

Fazer do resto o que pode sustentar uma imagem (Lacan, 1972-73, p. 18) é

subverter o lugar do que fica, do que fica como rastro seja do corpo anterior seja do

corpo sonhado que não vem. O movimento pulsional convoca o aparelho psíquico a se

rearranjar (Freud,1915) a partir do que poderá servir como novas balizas (imagem,

significante, o outro).

É através do acolhimento e da escuta das reverberações possíveis do sujeito que

tem um corpo, mas não o é, que a dança singular acontece, onde movimentos e trajes

particulares vestem o um a um que reapropria o sujeito deste seu sítio tão íntimo quanto

estranho. O significante "Trans", nos trás a condição de transformar e transpor o que é

sentido como exilado a uma invenção para além (Indursky & Conte, 2015). A questão é:
como dialogar a partir desse exílio? Talvez a relação de cada um com seu corpo possa

ser uma direção clínica importante. O que permitirá a cada sujeito fazer do corpo

instrumento para o sexual, sem se reduzir a ele? A.M. precisou tirar as mamas e fazer

uso dos hormônios, mas imprescindível foi lidar com as cicatrizes do que ficou.

Exilados de nós mesmos, estamos todos em trânsito nem que seja no percurso entre o

familiar e o estranho, a criança e o adulto, a mulher e a mãe, o homem e a mulher, em

trânsito.

Parte 7

No campo sexual somos todos enjaulados, somos todos “Pedro vermelho”.

Carta à Preciado.

Por Denise Maurano

Link da intervenção de Paul B. Preciado proferida em 17 de novembro de 2019 na


Jornadas n. 49 da Escola da Causa Freudiana na França intitulada “Mulheres em
psicanálise”

https://www.youtube.com/watch?v=UEkaKjUG7fY&ab_channel=CLINICAND

que motivou essa comunicação, publicada no periódico eletrônico Psicanálise e Barroco


(http://seer.unirio.br/psicanalise-barroco/announcement/view/145

Prezado Sr. Paul Preciado e seus aplaudidores,

Começo essa comunicação agradecendo o estímulo que me foi dado pela conferência do
Sr. Paul Preciado ocorrida nas Jornadas da Escola da Causa Freudiana na França e
difundida na internet, para tecer esses comentários que partilho agora com vocês.

Sinto informar que somos todos Pedro Vermelho, ou somos todos descendentes diretos
desse macaco que como foi mencionado na conferência, é o personagem da história
criada por Franz Kafka em 1917 para explicar às autoridades científicas quais danos lhe
trouxeram sua captura e o consequente esquecimento de sua vida de animal, em prol de
sua humanização e aprendizagem da linguagem. É verdade que de modo algum isso nos
trouxe liberação, mas encarceramento, até porque a humanização realmente não é uma
história de liberação seja na Europa ou onde for. A subjetivação, com todas as
identificações que ela comporta, sejam bem-vindas ou mau-vindas, é um
enquadramento. E é num jogo de alienação e separação disso, que vamos cavando
espaço para respirar. Portanto, é dessa partir dessa condição de enjaulada que me dirijo a
vocês, já adiantando algumas considerações.

Creio que posso afirmar que o regime da diferença sexual com o qual trabalha a
psicanálise diz do modo como apreendemos simbolicamente o que vigora na natureza e
que em última instância nos é inapreensível. É a constatação de diferenças que nos
permite reconhecer o que há. Se algo jaz na mesmidade, nem o notamos, somos
indiferentes. Não causa ‘pathos’, espanto, não merecendo portanto, nossa atenção. É
pela comparação, inclusive dos corpos, que fazemos distinções e entramos no exercício
de tentarmos nos situar, buscando referências que malgrado nos enjaulem, nos permitem
ainda assim identificações protetivas, estratégias de invenção de sentido, onde no real
não há sentido algum. Se há aí algo que possamos chamar nesse regime da diferença
sexual de heteronormatividade, é importante que se saiba que esse hetero, caro sim à
psicanálise, deve ser remontado à sua origem grega. Ou seja, a psicanálise preserva o
exercício da diferença, preserva a idéia da alteridade, do desigual, no centro de nossas
reflexões e de nossa prática clínica. E isso não se dá, ou pelo menos, não deve se dar
para privilegiar uma prática sexual em detrimento das outras, ou para determinar
padrões de escolhas de objeto e muito menos para privilegiar um sexo em detrimento do
outro.

Se acontece de fazerem isso, é porque se confundiu alhos com bugalhos. Ou porque se


colocou a pobre da psicanálise a serviço da caretice conservadora que a descaracteriza
completamente. E Isso não faz jus à Freud, Lacan, ou qualquer um dos grandes.

Se o binarismo que vigora na observação da presença ou ausência de pênis na


comparação dos corpos, põe desde cedo, o psiquismo para trabalhar, tentando dar um
sentido à diferença. E se diferentes culturas desde os seus primórdios relacionam a
plena fertilidade da natureza com a ereção fecundante, isso talvez justifique a fascinação
que faz com que o símbolo fálico, que enquanto tal não pertence a ninguém, funcione
psiquicamente de modo imaginário e simbólico, como unidade de medida de potência
de um sujeito. Todos, homens, mulheres, e quem mais for, estamos em falta para com
essa plena potência vital e cada um a ressignifica a seu modo e com o aparelhamento
que tem. Em nossa jaula humana somos desprovidos de falos, desaparelhados disso que
falta para sermos supostamente plenos.

Não por acaso, Freud para tentar figurar o que resta de insondável na configuração
psíquica da diferença sexual, propõe metaforiza-la pelas posições relativas à atividade e
passividade, relacionando-as, respectivamente, ao masculino e feminino. Desse modo,
sendo todos nós homens e mulheres bissexuais potencialmente, podemos fruir da
masculinidade e da feminilidade na medida da assunção do que há de ativo ou passivo
em nós no campo da sexualidade.

Nesse ponto, dando uma passo além de Freud, Lacan aceita a provocação deste para
pensar o que há de misterioso e de peculiar ao feminino que na disputa fálica, no âmbito
imaginário poderia aparecer em desvantagem. É quando então, reconhecendo que o
campo sexual é fundamental mas insuficiente para cernir a existência, supõe que , para
além da dualidade do sexual que vigora em nós, há uma dualidade de gozos. Reconhece
o gozo sexual como gozo fálico, gozo da celebração da potência, prenhe de sentido, e ,
devido à insuficiência desse gozo, que eu diria seccionado, ele supõe um outro, não
fálico, ilimitado, alheio ao sentido. Um gozo suplementar que ele nomeia como
feminino, o avizinhando ao gozo místico, fora do sexual.

Poderiamos dizer que em um se trata da afirmação de si, da fruição da subjetividade, e


diante do limite desta, advém a hipótese de um gozo Outro, gozo da entrega, gozo da
existência. Gozo não seccionado, que pode tomar diversas vertentes, tanto celebrativas
como podemos supor que compareça na experiência da criação, quanto devastadoras, se
apresentando como gozo do Outro invasivo e psicotizante.

Percebe Sr. Preciado? O Sr. tem razão. Nem tudo é restrito à divisão sexual, binária ou
não. A insuficiência do sexual em cernir tudo o que há na existência, nos faz supor que
há uma dimensão de gozo, que transpõem em muito o que é da ordem da diferença. Mas
aí, estamos num campo no qual a designação de feminino proposta por Lacan, transpõe
a fronteira entre os sexos. E é aí que o feminino, se apresenta como um conceito a ser
melhor cernido em nosso campo, dado sua não obviedade. Por isso fazemos tantos
Congressos sobre o tema do feminino, que inclusive me parece bem mais próprio do
que o tema das mulheres. Mas é verdade, precisamos falar do masculino também, e das
inúmeras variáveis através das quais tentamos cernir a vasta dimensão da sexualidade
que extrapola em muito o binarismos sexual. E ainda é preciso que consideremos
também um mais além, mais além do sexual.

Mas, voltando a questão do regime da diferença sexual, é verdade que ele também foi
explorado em certos campos, e mesmo numa ampla perspectiva na cultura, como uma
epistemologia política do corpo que realmente enquanto histórica e mutável, foi e é
acompanhada de ideologias diversas com múltiplas consequências muitas vezes,
absolutamente nefastas e pervertidas. Uma abordagem do regime da diferença sexual
não anula a outra. Uma, diz respeito a um modo de pensar a organização psíquica
sobretudo a partir das “Consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos”,
dentro da lente oferecida pela psicanálise para se ver o mundo e pensar acerca do
conflito e do sofrimento humano, no exercício de fazer de si mesmo sua morada,
propiciando meios de investiga-lo de modo a produzir efeitos, na melhor das hipóteses,
terapêuticos.

Habitar esse estranho que é nosso corpo, não é tarefa fácil para ninguém. Não á toa o
corpo, por mais que seja também fonte de prazer é um dos fundamentos do mal-estar.
Não apenas porque é sexuado, mas também porque não o escolhemos, adoece,
envelhece e morre, a despeito do nosso controle. Nas estratégias para habitá-lo se
descortinam na atualidade, inúmeros recursos, dentre os quais cirúrgicos e
farmacológicos. Enquanto psicanalistas não somos juízes para absolver ou condenar as
opções tomadas pelo sujeito. E também nossas hipóteses diagnósticas como bem diz o
nome, são hipóteses, não sentenças. Referem-se à defesas privilegiadas por um sujeito e
não a degenerações ou doenças. E ainda, só podem ser levantadas no contexto de um
processo psicanalítico em curso, servindo para que o analista, no caso, se oriente
quanto ao seu modo de intervir. Isso serve a ele, não ao analisante. E é bom que se diga
que para que o analista possa se emprestar a essa difícil função clínica, é preciso que
ele pendure seu eu cheio de si, e de ‘”gênero”, na sala de espera, e compareça como
“trans”, ou seja, suporte mutante de todas as investidas que o desejo inconsciente pode
operar na contingência da trans-ferência.

Lidamos justamente com a dimensão traumática do sexual. Essa comparece para quem
quer que seja, homo, hetero, bi, trans, e todas combinatórias possíveis. Não há sexuação
que repouse sobre um jardim de rosas. Trata-se aí de secção, corte, ruptura com uma
natureza na qual a hamonia ficou perdida. Daí a pertinência do conceito de castração
que bem assume sua dimensão simbólica, encobrindo a dimensão radical da privação
que nos toca à todos de diferentes maneiras. Agora é claro que o amparo ou desamparo
social que um sujeito experimenta na singularidade de sua vida conta e muito, e daí a
militância é perfeitamente compreensível e desejável.

O sr. denuncia a violência hétero-patriarcal colonialista, e é extremamente justo que o


faça, sobretudo no momento dessa onda de retrocesso mundial à um conservadorismo
nefasto que justamente pretende anular e penalizar as diferenças, as minorias, e
pasteurizar comportamentos. Assim, um discurso de militância, sobretudo agora é
extremamente bem-vindo. Por isso sua coragem, sua provocação são inspiradoras.
Ainda que caiba também a ressalva de que essa militância deve ser consciente o
suficiente para que não fomente irresponsavelmente a voracidade capitalista que na
ânsia de alimentar a indústria farmacológica e faturar cirurgias, promova um modismo
inadvertido induzindo certos sujeitos a danos terríveis com a apologia de manipulações
irreversíveis do corpo, prometendo uma felicidade que enquanto humanos só a
desfrutamos parcial e momentaneamente, seja qual for nossa posição na partilha dos
sexos. Quanto a isso, cabe lembrar ainda que se enquanto adultos, ainda assim, somos
mutantes na dinâmica das nossas identificações, imagine as crianças e adolescentes que
estão em franco processo de formação no exercício de experimentar a vida. Não por
acaso, eles são ainda mais vulneráveis aos modismos.

Defendo que é preciso que façamos uma diferença entre o que diz respeito à teoria e a
clinica psicanalítica e o que diz respeito à militância política na reivindicação de
reconhecimento social, jurídico, médico,...relativa à liberdade de escolher dentro do
possível o que cada um, “maior de idade”, pode fazer com seu corpo, com o seu modo
de habitá-lo e de fruir dele.

É verdade que talvez a grande maioria dos psicanalistas tenham ficado tempo demais
apartados da cena pública e da intervenção política. Porém, no momento que falamos
enquanto psicanalistas, creio que é preciso diferenciar o que vem a ser um discurso
psicanalítico imbuído de uma política própria que é afeita à singularidade da ética da
psicanálise, de um discurso de militância. O discurso psicanalítico destoando inclusive
de muitos ideais da cultura, é sobremaneira, prevenido quanto à fragilidade de todas as
certezas, por isso trabalhamos tanto com as representações e com o que resta de
irrepresentável. Um discurso de militância tem uma verdade própria a ser defendida e
difundida. Cada um desses discursos tem suas pertinências e contextos específicos.

Penso, sr. Preciado, que seu discurso tem toda pertinência do ponto de vista da
militância política, e reconheço nele seu valor, porém, na visão que constituí a partir de
minha longa formação psicanalítica, o que implica minha própria análise, minha prática
clinica de anos e meus estudos e escritos nesse campo, me permito dizer que sua
intervenção é uma violência à psicanálise e meus colegas ao convidá-lo e aplaudi-lo
fizeram um grande desserviço celebrando a resistência a ela. Parecem querer contribuir
para o suicídio da psicanálise. É injusto e equivocado que seja renegada a potência
revolucionária que ela tem desde sua invenção, até os dias de hoje, o que é fundamento
da sua razão de existir.

Cordialmente,

Denise Maurano
Psicanalista, escritora, membro do Corpo Freudiano – Escola de Psicanálise (RJ)
Correspondente da Association Insistance (Paris)
Integrante do Movimento da Articulação das Entidades Psicanalíticas do Brasil

Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 2019.

Palavras Finais

O longo percurso realizado até aqui nos faz pensar o quanto a articulação entre

corpo e psicanálise é rica e cheia de aberturas teóricas. E olha que fizemos recortes

bastante precisos. Detemo-nos em alguns dos conflitos ouvidos em nossa

experiência clínica em relação ao corpo. O imperativo pela aquisição ou requisição

de uma determinada imagem, a impotência do sujeito frente à satisfação pulsional

presente em seu sintoma ou em seus momentos de angústia, a sensação de

estranheza e não reconhecimento de si no corpo atual, as certezas enganosas que as

sensações corporais permitem ao sujeito, os limites da vida que se fazem presentes

através do corpo.

Optamos por colocar em destaque o lugar do corpo na história a partir do barroco,

o surgimento da psicanálise com os impasses que as histéricas encenaram para

Freud , a presença cada vez mais imperiosa do corpo no setting analítico, a

importância da imagem para o sujeitos, a ação da angústia, as dificuldades


alimentares e o corpo escravo na neurose obsessiva. Finalizando essa escrita,

colocamos em destaque a clínica com pessoas trans e como ela convoca o analista a

rever posicionamentos éticos e políticos no que tange às soluções criadas pelos

sujeitos diante do empuxo de habitar um outro corpo, dos questionamentos do que é

a identidade e da responsabilidade de cada um em se posicionar, se autorizar diante

do sexual.

Será desse ponto que daremos continuidade às nossas pesquisas e projetos.

As sensações que sentimos no e através do corpo, as intervenções que fazemos

nele, o uso do mesmo pelo inconsciente, possuem serventias singulares para os

sujeitos. A proposta dessa escrita foi destacar a presença do corpo no setting

analítico, sensibilizando o leitor para a presença tão instigante desse objeto no

cenário clínico para que ele possa ser lido, trabalhado e até esvaziado em alguns

casos. Nós não somos nosso corpo, nós o temos ou acreditamos demais nisso.

Agradeço aqui a aposta e a animação de Denise nessa escrita. Uma parceria

possível.

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