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Nós vamos partir de uma premissa nietzscheana, que, bem ou mal, Espinosa já

tinha introduzido, e que Freud vai consagrar. E qual é a premissa? aquilo que
passa pela sua cabeça, ou, se você preferir, a consciência, é a parte ínfima e
menos importante, e pior, da sua psique. Eu vou repetir: aquilo que passa pela
sua cabeça é a parte ínfima, de pior qualidade, e menos importante da sua
psique. Então, se você acha que o que você pensa é o que passa pela sua
cabeça, saiba que o que não passa pela sua cabeça é o que tem de melhor no
seu pensamento. O seu pensamento é muito mais amplo do que aquilo que
passa pela sua cabeça. Então nós podemos chamar isso com o nome que isso
ganhou: aquilo que você pensa e que não passa pela sua cabeça é
denominado de Inconsciente.

Então eu gosto de dar essa metáfora: imagine se todo o seu pensamento


pudesse estar no chão de uma sala... pois então a sua consciência é uma
lâmpada que ilumina, como se fosse um spot — um pequeno holofote, que
ilumina e transita pela sala. Então, isso é o que está passando pela sua
consciência agora, mas você continua pensando fora dali. Imagina... você pode
demonstrar isso mesmo nessas psicologias de botequim: você faz uma
pergunta para alguém, uma informação que a pessoa sabe mas não se lembra
na hora, e de repente ela diz 'Ah!'; então o que foi? Ela continuou pensando, e
de repente a pessoa põe o holofote lá e ela diz: 'lembrei'. A metáfora pode ser
também a da ponta do iceberg. É óbvio que o pensamento continua fora da sua
consciência. É óbvio que continua fora e, então, eis aí a ponta do iceberg.
Nietzsche diz em alemão: es denkt in mir, que significa algo pensa em mim.
Perceba que não é 'eu penso', e sim algo pensa em mim. Isso é fundamental.
Em outras palavras, o que acontece é que você não é senhor do próprio
pensamento. O pensamento é uma atividade do seu corpo que transcende o
seu controle consciente. Algo pensa em mim... portanto, existe uma força que
pensa em mim, e que obviamente escapa à minha decisão, ao meu controle, a
minha deliberação, e assim por diante. Ficou claro isso: 'Eu não sou
completamente responsável por aquilo que eu penso'? Algo pensa em mim,
isso é fundamental você entender.

Segundo Nietzsche, a consciência é a parte mais ínfima e a pior de tudo o que


o indivíduo pensa; portanto, o inconsciente é o essencial da vida psíquica. Não
existe um 'eu' arquitetando coisas, existe força que produz pensamento. Eu,
quando muito, assisto o que eu mesmo pensei, e consequentemente falei. É só
o seu corpo, é tudo o que é, é só a imanência do corpo, é só a força vital; é só
o corpo que, enquanto movido por uma energia, tem uma competência de
articulação de símbolos, é só isso. Então, não existe controle. É o que
Espinosa chamava de Deus. Só que o Deus de Espinosa sou eu mesmo, é o
Deus das causalidades materiais, é o Deus das coisas como elas são, é o
Deus das sinapses, é o Deus da energia vital, é o Deus que pensou no meu
lugar; mas não é que ele é outro em relação a mim, ele sou eu mesmo, eu
enquanto corpo pensante, algo que pensa em mim. O que você poderia
chamar de 'eu': a reunião de um corpo que pensa, que se movimenta, e que é
movido por uma energia que oscila, e que oscila em função dos choques e dos
encontros com outras energias. Não há nenhuma especificidade de você em
relação a animais, plantas ou mesmo minerais.

Nesse momento valeria uma comparação com os dois outros pensadores que
também são pensadores da desconfiança, da suspeita, por que pensadores da
suspeita? Porque suspeitam que a consciência não é senhora de si mesma,
que são Marx e Freud. Se você ler Marx, você dirá: aquilo que passa pela sua
cabeça é a ideologia, e essa ideologia não se explica por si só, existe um
inconsciente coletivo que é determinado pelas forças de produção e pelas
relações de produção. Se você ler Freud, você dirá: o que passa pela sua
cabeça é a ponta do iceberg, que é determinado por um inconsciente que você
não controla e do qual você obviamente não tem consciência porque senão
não seria inconsciente.

Pois muito bem: qual é a diferença de Freud, Marx e Nietzsche? Porque existe
uma diferença fundamental. Quando o analisando vai no divã psicanalítico e
começa a falar, o freudismo tem a pretensão de estabelecer sobre aquele
discurso uma espécie de verdade, é a verdade do inconsciente que emerge na
análise. O analista, portanto, constrói uma gramática que relaciona o que o
analisando diz com aquilo o que ele diz significa. E essa gramática é chamada
de interpretação dos sonhos, e tem um lindo livro do Freud sobre isso. Então, o
que é a psicanálise? é uma forma de construção de verdades sobre o
inconsciente daqueles que se submetem a esse tipo de análise. Ora... e o
marxismo? é a convicção de que a sociologia identificará verdades sobre o que
passa pela cabeça das pessoas enquanto ideologia. Eu não sei se você
percebeu, mas quando Marx e Freud analisam o discurso de alguém, eles
analisam na posição de cientista, na posição daquele que sabe o que o outro
não sabe, na posição daquele que sai da ilusão e chega até a verdade. No
caso de Marx, isso ainda é pior. Os marxistas, além de acreditarem na
verdade, são dogmáticos; não só eles sabem a verdade, como só aquela é a
verdade. Nesse ponto, Nietzsche é infinitamente mais sofisticado. Por quê?
porque quando você vai analisar o mundo, quando você vai analisar um
discurso, diz Nietzsche: a interpretação é por sua vez interpretável, e a
interpretação da interpretação também é interpretável, e assim por diante, e
haverá sempre uma caverna por detrás da caverna, haverá sempre um
submundo por detrás das fundações, haverá sempre interpretações ao infinito.
Então, para que isso fique mais claro: imagine você no divã; você deita e
começa a falar, aí vira o analista e diz: bom... eu vou interpretar o que você
falou; para Freud morreu ali, para Nietzsche não. Quando o analista interpreta
o que o outro falou, o que ele mesmo falou nada mais é do que o resultado das
suas próprias forças vitais e, portanto, pode ser interpretado por um outro, que
quando for interpretar vai falar das forças vitais dele, e quando mais um outro
for falar vai também falar das suas próprias forças vitais; em outras palavras:
só há interpretações ao infinito. É o que Nietzsche chama do Nosso Novo
Infinito. Ele simplesmente diz: esse é o nosso novo infinito. O novo infinito é
isso: é o fato de que quando nós falamos sobre o mundo, o que nós falamos
não é bem uma análise objetiva do mundo, mas é aquilo que as nossas forças
vitais e os nossos estados de psique determinaram. E, portanto,
evidentemente, quando Nietzsche escreve a sua obra, ele não diz: leia isso
aqui porque isso aqui é sobre o mundo. De jeito nenhum. Melhorar a
humanidade é a única coisa que você não deve esperar de mim, ele diz, isto
aqui é a minha produção, isto aqui são as minhas forças. Quando o
psicanalista fala do discurso do analisando, não há no discurso do psicanalista
nem uma vírgula de verdade a mais do que o próprio analisando falou. E se
outro analista analisar a análise desse analista, também não haverá nenhuma
vírgula a mais de verdade. Por quê? Porque todos estarão falando apenas o
que as suas forças vitais estiverem determinando. Por isso diz Nietzsche: toda
filosofia é uma fachada, toda palavra é uma máscara, tudo é uma ilusão, nada
mais é do que forças vitais em produção, em produção semiótica, em produção
psíquica, só isso, nada mais do que isso.

O inconsciente – tudo o quanto não passa pela tua cabeça, é o que tem de
melhor no teu pensamento. Ele é demasiadamente amplo quando comparado
com a tua consciência que, por sua vez, é a parte ínfima, de pior qualidade e
menos importante da tua psiqué. Imagine que todo o pensamento pudesse
estar no chão de uma sala, a tua consciência seria uma lâmpada que ilumina e
transita pela sala e isso é o que está passando pela tua consciência agora,
mas você continua pensando fora dali. Nietzsche afirma, em alemão: “Es denkt
in mir”. Ou seja, algo pensa em mim. Perceba que não é ‘eu penso’, mas sim,
algo pensa em mim. Isso é fundamental. Em outras palavras, você não é
senhor do próprio pensamento. O pensamento é uma atividade do seu corpo
que transcende ao teu controle consciente.

Portanto, existe uma força que pensa em mim e, que, obviamente, escapa à
minha decisão, ao meu controle e à minha deliberação. Eu não sou
completamente responsável por aquilo que penso, algo pensa em mim. A
consciência é a parte mais ínfima e pior de tudo o que o indivíduo pensa.
Portanto, o inconsciente é o essencial da vida psíquica. De onde veio o
pensamento que brotou em você? Quais são as forças que estão por trás
desse pensamento? A isso chamamos genealogia. Então vamos imaginar que
você deite em um divã e atrás de você tenha um psicanalista e o que você faz
é falar coisas que te vêm à cabeça; falar o que te vem à cabeça é o que a
psicanálise chama de livre associação de ideias. Falar coisas que te vem à
cabeça é passear com o holofote na tua psiqué. Mas quem segura o holofote
passeando na tua psiqué? Isso é o interessante, pois não é você.

Quando você entra em ônibus para determinado local, você não escolhe o que
pensará nos primeiros 30 minutos ou na segunda meia hora, o pensamento
vem ao sabor de uma lógica que não é controlada por você. Portanto, existe
uma força em você semelhante a do peristaltismo que faz que você pense o
que você pensa. No peristaltismo, neste momento, o nosso intestino está
espremendo seu conteúdo, mas nós não o controlamos, ele está fazendo por
conta dele. Da mesma maneira, há forças fabricando pensamentos em mim
que obviamente eu não controlo, eu apenas assisto o pensamento brotar em
mim. Então, às vezes dizemos: “Nossa, olha o que falei”. Daí alguém diz: mas
não foi você que falou? Sim e não, pois é evidente que o que me veio à
cabeça, veio à cabeça movido por forças que não têm um eu que articula.
Vamos imaginar que você vai ser entrevistado na televisão, você vai lá e senta
e teu interlocutor te faz uma pergunta. A coisa não funciona assim: penso,
transformo meu pensamento em palavras e depois falo. Assim não acabaria
nunca a entrevista. E o que acontece?

Alguma coisa vai pensando e vai elaborando coisas e a minha boca vai
enunciando aquilo que surge na minha mente. É isso. E eu? Não tem eu.
Porque do mesmo jeito que você não controla o peristaltismo, também não
controla o pensamento. Es denkt in mir, algo pensa em mim. O fato de concluir
que não tem eu fode com 95% do que você pensa, porque tudo que você
pensa começa com eu. Por exemplo, em uma aula, não sou eu que estou
dando aula? Claro que não. Estou apenas me assistindo dar a aula. É óbvio
que não tem um eu arquitetando coisas. Não existe eu, existe força que produz
pensamento, como existe força que peristalta, como existe força que faz
circular sangue, existe força que fabrica pensamento. Eu, quando muito,
assisto o que pensei e consequentemente falei. Então, é mais fácil pra você
perceber isso, quando você está em uma situação que tem que proferir um
discurso muito poderoso e você percebe que está ali falando, falando,
falando… Mas é óbvio que não tem um eu escolhendo o que você leu, ouviu,
estudou… Elas estão acontecendo e você fica espantado de ver o que você
produziu, porque não é você. É uma alma satânica? É o seu cérebro, só isso, é
tudo que é. É só o seu corpo, é só a imanência do seu corpo movido por forças
vitais. É o que Espinoza chamava de Deus. O deus de Espinoza sou eu
mesmo. É o deus das causalidades materiais. O que você poderia chamar de
eu? A reunião de um corpo que pensa, que corre, que peristalta e que é
movido por uma energia que oscila e que oscila em função dos choques dos
encontros com outras energias. Não há nenhuma especificidade de você em
relação às plantas ou aos animais. Es denkt in mir, ou melhor, algo pensa em
mim.

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