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FILOSOFIA DA MENTE

Aula de 22 de Fevereiro de 2023

SUMÁRIO
A.
(i.) Recapitulação breve dos conceitos da aula anterior: sujeito consciente, ter
experiências mentais, variedade de estados mentais, ser centro de experiências, eventuais
experiências mentais noutros seres (animais, máquinas sofisticadas, outros seres),
diferença entre estados mentais e estados físicos, natureza dos estados mentais, estrutura
dos estados mentais (alguém está no centro das experiências).
(ii.) Assuntos pendentes da folha de aula anterior: moinho de Leibniz, traços distintivos
dos estados mentais, classificações de estados mentais, o ponto de vista dos “mistéricos”
(mysterians), o catálogo da nossa ignorância sobre a mente (localização, tempo).
B.
(i.) Continuação do estudo do capítulo acerca do problema Mente-Corpo.
(ii.) Leitura de trechos: G. Leibniz, sobre o moinho.
(iii.). A questão do dualismo (Raymond Smullyan): temos razões para descartar?
(iv.) Preenchimento do questionário Times Higher Education Supplement (THES) sobre
o Congresso Tucson II.

CONCEITOS MAIS IMPORTANTES


Traços comuns aos estados mentais (Qualia, ser acerca de algo, conteúdo proposicional,
conteúdo fenoménico, intencionalidade, diafaneidade, incorrigibilidade, privacidade,
consciência, subjectividade, etc.) – Métodos (fenomenológico, thought experiments,
analítico, etc.) - Moinho de Leibniz – Dualismo
A.
1. O moinho de Leibniz: uma lição simples mas de alcance vasto
“A máquina que Leibniz tinha em mente era, certamente, o cérebro. O que
os cientistas modernos encontram quando investigam seu funcionamento são
eventos físicos electroquímicos, os equivalentes das “partes que empurram e
movem umas às outras” de Leibniz. Mas se a neurologia não pode ser
invocada para explicar a percepção e a consciência, o que pode?” (14)

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O MOINHO DE LEIBNIZ
“(…) temos de confessar que a percepção e o que dela depende é
inexplicável por razões mecânicas, isto é, pelas figuras e pelos movimentos.
E supondo que exista uma máquina cuja estrutura faça pensar, sentir, ter
percepção, poder-se-á concebê-la aumentada e conservando as mesmas
proporções, de modo que se possa entrar nela como num moinho. E posto
isto, não se encontrará nela, visitando-a por dentro, senão peças que se
impelem umas às outras, e nunca como explicar uma percepção”
(“Princípios de Filosofia ou Monadologia”, [1720] in Obras Escolhidas, org.
António Borges Coelho, Lisboa, Livros Horizonte, s. d., § 17, p. 162).

2. Algumas questões sobre os estados mentais


“Os tipos de questões que devem ser tratadas nesta secção, bem como nas próximas, são
os seguintes:
1. Quais são os traços distintivos dos estados mentais?
2. Todos os fenómenos mentais são semelhantes, ou há diferenças cruciais entre eles?
3. É possível detalhar os traços essenciais de vários tipos de estados mentais?” (16)

3. Algumas classificações de estados mentais


“Classifiquei os estados mentais sob seis categorias:
Sensações - dores, dores persistentes, cócegas, vibração, formigamento.
Cognições - acreditar, saber, compreender, conceber, pensar, raciocinar.
Emoções - medo, ciúme, inveja, raiva, pesar, indignação, desfrutar.
Percepções - ver, ouvir, degustar, cheirar, tocar.
Estados de quase-percepção - sonhar, imaginar, ver na imaginação, alucinar,
ver pós-imagens.
Estados conativos - agir, tentar, querer, intencionar, desejar.” (17)

ALGUMAS EXPLORAÇÕES ACERCA DESTA CLASSIFICAÇÃO:

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- É ela aberta e susceptível de alargamento? Qual é precisamente a lista completa
dos nossos estados mentais, e, em complemento, dos estados mentais possíveis (recordar
Curvelo)?
- A mesma linguagem pode descrevê-los a todos com o mesmo grau de precisão?
Uns sim e outros não?
- Sensações e ter consciência de algo (awareness): ocorrência, conteúdo
fenoménico, uma qualidade especial que acompanha uma experiência; ligação a um
centro subjectivo; eventual influência do contexto (dores, cores); surpresa pela existência.
- Estados de não-sensação e ter consciência de algo: estar à disposição e relação
com o sujeito

“Isto é a que me refiro ao dizer que crenças e conhecimento são disposicionais,


em vez de, como no caso das sensações, ocorrentes.” (19)

“dores e outras sensações existem somente quando você tem


realmente consciência delas. No caso de crenças e intenções, bem como de
outros estados de não-sensação, a imposição é mais fraca. Para que crenças
e intenções sejam verdadeiramente atribuídas a uma pessoa, é suficiente que
ela seja potencialmente objecto de consciência.” (19)

“facto de as emoções, à semelhança de crenças e intenções, serem de carácter


disposicional.” (19)

3. PERGUNTAS SIMPLES PARA SE TER UMA NOÇÃO DO QUÃO POUCO SE


SABE ACERCA DA MENTE

Perante isto, parece que sabendo pouco, sempre se sabe alguma coisa: pode-se classificar,
reflectir, propor teorias, etc. Tudo isto, contudo, pode ser problemático. Reparemos em
coisas tão fundamentais que, apesar de universais, temos dificuldade em saber alguma
coisa a seu respeito.

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4. Se a Filosofia da Mente tem um objecto no seu próprio nome, onde está, por
exemplo, esse objecto?
Continuação:
– “Onde é que eu estou?”, de Daniel C. Dennett.
- “O cérebro numa galáxia”, Arnold Zuboff.

5. O ponto de vista dos “mysterians” (v.g. Colin McGinn).

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B.
1. ENFATIZAR DE NOVO: depois da categorização dos estados mentais, a procura
de traços comuns aos estados mentais

QUALIA (pl.): qualidades secundárias da experiência


“No caso de sensações, há algo que se assemelha a experimentá-las. Pense na
sensação de comichão de um cobertor de lã, bruta, a sensação de picada produzida por
uma agulha, o frescor calmante de uma loção para queimadura solar, a sensação de
formigamento de alfinetes e agulhas, ou o latejar de um dente cariado. Os filósofos falam
da fenomenologia das sensações, isto é, a forma como as coisas parecem ao sujeito que
as experienciam, cada tipo de sensação sentida de um modo qualitativamente distinto.
Este segundo modo de caracterizar as sensações levou os filósofos a inventar uma
expressão técnica especial e a descrever as sensações como possuidoras de “qualia” ou
“sensações em estado bruto”.” (19)

SER ACERCA DE ALGUMA COISA (aboutness, “sobredade”):


“uma distinção de vital importância que se apresenta é aquela entre estados
mentais, que parecem ser “sobre” outros estados de coisas, ou a eles dirigidos, e aqueles
que não são. Sensações não são a respeito de outros estados de coisas, reais ou
imaginários, ou dirigidas a eles, que sejam externas a si mesmas. Em outras palavras,
sensações não representam outros estados de coisas possíveis. Ficaríamos atônitos se nos
perguntassem a respeito de que são as nossas dores ou cócegas, em oposição ao que as
estavam causando. Sensações, estaríamos inclinados a dizer, simplesmente são.” (20) ->
crenças, -> emoções, ->

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CONTEÚDO INTENCIONAL vs. REFERÊNCIA à realidade objectiva

“Seria tentador identificar o conteúdo intencional da experiência de ver um objeto


com o próprio objeto, mas isto seria um engano.” (22)

ASPECTO, ASPECTUALIDAE

“exemplo do pato/coelho ajuda a explicar o que se quer dizer ao descrever a


percepção visual como tendo um caráter de aspecto, e esclarece por que o conteúdo
intencional da percepção não pode simplesmente ser identificado com o objeto externo
percebido.” (22)

REPRESENTAÇÃO

“O conteúdo intencional de uma percepção é simplesmente o próprio objeto, que


parece ou aparece de certo modo para nós. Por esta razão, os filósofos têm recomendado
que o conteúdo intencional das percepções não deve ser pensado como uma representação
do mundo para nós, mas, sim, como uma apresentação dele de uma certa maneira.” (23)

INTENCIONALIDADE (segundo Brentano)


“Todo fenômeno mental é caracterizado pelo que os escolásticos da Idade Média
chamavam o Intencional (e também mental) inextensivo de um objeto, e que chamaríamos
embora em termos não inteiramente isentos de ambiguidade, a referência para um
conteúdo, uma direção sobre um objeto (pelo qual não devemos compreender uma
realidade neste caso) ou objetividade imanente. Todo fenômeno mental inclui algo como
objeto dentro de si mesmo, embora nem todos eles façam isso da mesma maneira. Na
apresentação, algo é apresentado, no julgamento, algo é afirmado ou negado, no amor,
amado, no ódio, odiado, no desejo, desejado, e assim por diante. Esta inexistência
intencional é característica exclusivamente dos fenômenos mentais. (23-24)

CONTEÚDO PROPOSICIONAL
“Oração-que encaixada ou infinitivo de um verbo especificando o conteúdo
proposicional (representacional) do estado intencional” (24)

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PERSPECTIVAS DE PRIMEIRA E TERCEIRA PESSOAS
E PRIVACIDADE DO MENTAL
“Indo um pouco além, como posso me assegurar de que seu comportamento não
é somente uma fachada, que encerra um gélido vazio mental? Você é, talvez, um zumbi
sem mente, ou uma marionete sem consciência controlada por Marte” (27)

PRIVACIDADE DO MENTAL:
TRANSLUCIDEZ (DIAFANEIDADE) e INCORRIGIBILIDADE
“a tese da translucidez, a afirmação de que uma pessoa não pode ser ignorante de
seus próprios estados mentais, ou errada quanto aos tipos de estados mentais que são. O
conhecimento que uma pessoa tem de seus' próprios estados mentais, em contraposição
ao seu conhecimento de outros assuntos, é não só completo, mas incorrigível ou infalível,
isto é, além da possibilidade do erro ou da correção.” (28)

ABORDAGEM UNITÁRIA: estudar a mente sem perder o mais importante


- recordar algumas falácias recorrentes de muitos autores

“O estado de consciência desempenha um papel vitalmente importante na


formação de um conjunto coerente de atitudes proposicionais. Com relação a essas
atitudes, o estado de consciência significa estritamente autoconsciência, a habilidade de
reconhecer que se tem determinadas crenças, juntamente com outras atitudes
proposicionais, tais como desejos.” (34)

2. A mais velha das respostas a estas questões: o DUALISMO

- Um início intuitivo com pequenos textos: o desespero e infelicidade do dualista


– “Um dualista desafortunado”, de Raymond M. Smullyan (tradução na
Antologia U. Porto, referências dadas abaixo).

A. ESTUDO DE TEXTO: UM DUALISTA DESAFORTUNADO

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(i.) Desafio: reflectir sobre as certezas aparentes das pessoas: mente e matéria
- parecem substâncias separadas;
- desconhece-se totalmente como interagem;
- tudo se resume a que parece que estamos perante “um dos ‘mistérios’ da vida”
(p. 19).

(ii.) As muitas razões do desespero do dualista angustiado na sua vida.

(iii.) O “medicamento milagroso”

“aniquilar completamente a alma ou a mente, mas deixar o corpo a funcionar tal e qual
como antes” (p. 19)

(iv.) A pedra angular do raciocínio: a intervenção do amigo que, sabedor da angústia


deste, administra-lhe o medicamento sem que ele o saiba:
- quando acorda de manhã, não repara que é diferente, e vai à farmácia comprar o
medicamento como tinha planeado;
- verificando que não há diferenças, fica irritado, e, em consequência, considera
que continua a ter uma alma ou uma mente.

REFLEXÕES

(v.) Alguns aspectos interessantes da proposta:


- As consequências imaginadas: “o corpo continuaria a agir como se ainda tivesse
uma alma”;
- A verificação impossível, assunto recorrente no debate (o velho e cansado tema
do teste decisivo para clarificar uma questão): o amigo, a esposa ou o observador mais
próximo não reparariam na alteração;
- O próprio Dualista saberia que tomou o medicamento, mas a questão é esta: o
que seria diferente ANTES e DEPOIS de o fazer?
- É fantasia mesmo ou, diferentemente, aproxima-se da realidade de casos que
conhecemos? Comparar, por exemplo, com Karen Ann Quinlan, zombis haitianos,
Blindsight.
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(vi.) Considerações de outra natureza: Seria imoral? Seria contra alguma religião
importante? Seria a mesma coisa que o suicídio? Deixaríamos de amar a pessoa que
amamos? Mais: seria a mesma coisa que cortar o cabelo ou as unhas, ou perder por dieta
muitos kilos? Haverá paralelos possíveis com situações concretas, seja naturais
(envelhecimento, Alzheimer), seja excepcionais (o caso de Karen Ann Quinlan)?
Generalização máxima: o que diríamos se uma propriedade de um sistema desaparecesse,
seja intrínseca, seja conceptual?

(vii.) Para Smullyan, tudo se limita a isto: “talvez haja algo de ligeiramente errado com
o dualismo”.

(viii.) Estrutura de pensamento do conto (reductio ad absurdum): tomar a sério uma


hipótese (há um medicamento milagroso) e retirar as consequências que se impõem
(ninguém repararia nos efeitos do medicamento, incluindo o próprio).

(ix.) Estranhamente representativo de nós próprios:


- como saberíamos se fomos ou não injectados?
- e os pacientes de Blindsight?
- e as acções que são apenas marginalmente conscientes?

3. QUESTÕES PARA RESUMO


1. Qual é o significado do termo “qualia”?

2. O que é intencionalidade? Qual é a diferença entre intencionalidade intrínseca e


derivada ou intencionalidade "como se”? Essa distinção pode ser mantida?

3. Os estados mentais são privados?

4. O que você entende por perspectivas de primeira e de terceira pessoa?

5. “Descreva três características de estados mentais que, diz-se, os distinguem de estados


físicos. Indique o ponto de vista de que as características de estados mentais fazem com
que seja impossível que tais estados se encontrem dentro do mundo físico”

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6. Porque se diz que o estado de autoconsciência é necessário para que a racionalidade
seja possível?

7. É possível oferecer uma definição sem problemas do mental que possa ser usada para
distingui-lo do físico?

4. SUGESTÃO DE ACTIVIDADES COMPLEMENTARES

- leitura dos 1.º e 2.º capítulos Maslin e do texto de Raymond Smullyan;

- preparação da leitura do texto de U.T. Place na Antologia;

- Relembrar o que se disse na aula passada sobre as intenções da Mãe Natureza no caso
das feromonas.

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