Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
SUMÁRIO
(i.) Uma filosofia do genitivo que dá que pensar: a Filosofia da Mente. Apresentação da
UC de Filosofia da Mente: objectivos da sua criação, edições anteriores, desafios
intelectuais que lhes estão associados.
(ii.) O objecto evanescente da Filosofia da Mente. De que falamos quando falamos da
mente? Qual é o referente da palavra?
(iii.) Agarrar a perplexidade do objecto mental: “Eles São Feitos de Carne”, de Terry
Bisson.
(iv.) A longa lista do que não sabemos sobre a mente: espaço, tempo, função, posição na
evolução, sentido.
(v.) As ferramentas de auxílio fundamental: manual introdutório (K. T. Maslin,
Introdução à Filosofia da Mente, 2.ª edição) e antologia (Miguens, Pinto & Couto, orgs.,
Filosofia da Mente: Uma Antologia).
(vi.) Marcação da primeira frequência (29 de Março) e da segunda (31 de Maio).
(vii.) Início do estudo do capítulo acerca do problema Mente-Corpo.
1. O facto óbvio
“Porque forneci a você esse pequeno fragmento de minha história de vida?
A razão é lembrar-lhe do facto muito óbvio de que na qualidade de um ser
humano eu sou um sujeito consciente que tem experiências, e sou possuidor
de uma variedade de estados mentais - ouvir, ver, sentir uma dor ou
desconforto, ver nos olhos da mente, lembrar, pensar e questionar para
mencionar alguns casos de estados mentais, seleccionados a partir de uma
longa lista de possibilidades. Eu sou o centro de um universo de experiências
1
- e você também é. Animais, pássaros, peixes, insectos e possivelmente até
moluscos têm vida mental, não obstante quão subdesenvolvidas e
rudimentares algumas dessas mentes possam ser.” (12)
“Em primeiro lugar, qual é a natureza da mente, dos estados mentais e dos
eventos em geral? Qual é, fazendo uma colocação mais imponente, o modo
de ser deles? Isso é o que os filósofos chamam de a questão ontológica a
respeito do status da mente. […] Ao perguntar qual é a ontologia dos estados
mentais, os filósofos querem saber do que eles consistem, o que realmente
os constitui. São eles em última instância de natureza física, à semelhança
dos processos envolvidos, por exemplo, na fotossíntese, ou são eles
totalmente de carácter imaterial, nada tendo em comum com o mundo físico,
como as almas e os espíritos são tradicionalmente concebidos? De modo
alternativo, deveria o dilema, físico ou não-físico, que parece se impor a nós
aqui, ser rejeitado em favor de outras abordagens da natureza da mente?” (13)
2
“Em segundo lugar, as experiências devem existir como sendo experiências
de alguém ou de algum ser. A ideia de que poderia haver experiências soltas
e separadas flutuando por aí, como se fossem sem ligação a algum ou outro
sujeito, não parece fazer sentido, embora essa questão seja controvertida”
(13)
O MOINHO DE LEIBNIZ
“(…) temos de confessar que a percepção e o que dela depende é
inexplicável por razões mecânicas, isto é, pelas figuras e pelos movimentos.
E supondo que exista uma máquina cuja estrutura faça pensar, sentir, ter
percepção, poder-se-á concebê-la aumentada e conservando as mesmas
proporções, de modo que se possa entrar nela como num moinho. E posto
isto, não se encontrará nela, visitando-a por dentro, senão peças que se
impelem umas às outras, e nunca como explicar uma percepção”
(“Princípios de Filosofia ou Monadologia”, [1720] in Obras Escolhidas, org.
António Borges Coelho, Lisboa, Livros Horizonte, s. d., § 17, p. 162).
3
(vii.) Algumas questões sobre os estados mentais
“Os tipos de questões que devem ser tratadas nesta seção, bem como nas próximas, são
os seguintes:
1. Quais são os traços distintivos dos estados mentais?
2. Todos os fenómenos mentais são semelhantes, ou há diferenças cruciais entre eles?
3. É possível detalhar os traços essenciais de vários tipos de estados mentais?” (16)
4
“dores e outras sensações existem somente quando você tem
realmente consciência delas. No caso de crenças e intenções, bem como de
outros estados de não-sensação, a imposição é mais fraca. Para que crenças
e intenções sejam verdadeiramente atribuídas a uma pessoa, é suficiente que
ela seja potencialmente objecto de consciência.” (19)
Perante isto, parece que sabendo pouco, sempre se sabe alguma coisa: pode-se classificar,
reflectir, propor teorias, etc. Tudo isto, contudo, pode ser problemático. Reparemos em
coisas tão fundamentais que, apesar de universais, temos dificuldade em saber alguma
coisa a seu respeito.
- Um início intuitivo com pequenos textos (a): uma fantasia literária que ajuda a
compreender intuitivamente o que está em causa – “Eles são feitos de carne”, de
Terry Bisson (ver abaixo).
(x.) Se a Filosofia da Mente tem um objecto no seu próprio nome, onde está, por
exemplo, esse objecto?
As questões de localização são as mais simples de todas. Questões sobre a relação,
sobre a natureza e sobre a razão última são, em comparação, muito complicadas. Saber
onde está o objecto que queremos estudar é o mais simples possível. Mas há surpresas!
A tradição da localização das funções cerebrais; o papel do coração e do fígado;
as vísceras; a glândula pineal cartesiana, a localização para os materialistas é, obviamente,
diferente para os espiritualistas ou dualistas.
5
– “Where Am I?”, de Daniel C. Dennett (reeditado, por exemplo, em The Mind’s
I: Phantasies and Reflections on the Self and Soul, referência dada abaixo).
(xi.) Indicação dos livros de estudo que são recomendados, e um breve comentário:
- Sofia Miguens; João Alberto Pinto; e Diana Couto, orgs., Filosofia da Mente:
Uma Antologia (Porto: U. Porto Press, 2019).
6
– Carne?
– NÃO HÁ NENHUMA DÚVIDA SOBRE ISSO. NÓS CAPTURÁMOS
VÁRIOS DELES EM DIFERENTES PARTES DO PLANETA, LEVÁMO-LOS A
BORDO DAS NOSSAS NAVES DE RECONHECIMENTO, E SONDÁMO-LOS ATÉ
AO TUTANO. ELES SÃO FEITOS TOTALMENTE DE CARNE.
– Isso é impossível. E o que dizer dos sinais de rádio? E as mensagens para as
estrelas?
– ELES USAM AS ONDAS DE RÁDIO PARA FALAR, MAS OS SINAIS
NÃO VÊM DELES. OS SINAIS VÊM DE MÁQUINAS.
– Então, quem fez as máquinas? São esses com quem nós queremos entrar em
contacto.
– ELES FIZERAM AS MÁQUINAS. ISSO É O QUE EU ESTOU A TENTAR
DIZER-TE. A CARNE FEZ AS MÁQUINAS.
– Isso é ridículo. Como pode a carne fazer uma máquina? Você está-me a pedir
para acreditar em carne senciente.
– EU NÃO LHE ESTOU A PEDIR NADA, EU ESTOU A DIZER-LHE. ESSAS
CRIATURAS SÃO A ÚNICA RAÇA SENCIENTE NESSE SECTOR E ELAS SÃO
FEITAS DE CARNE.
– Talvez eles sejam como os Orfolei. Você sabe, uma inteligência à base de
carbono que passa por um estágio de carne.
– NÃ. ELES NASCEM CARNE E MORREM CARNE. ESTUDÁMO-LOS
DURANTE MUITOS DOS SEUS CICLOS DE VIDA, O QUE NÃO DEMOROU
MUITO. VOCÊ TEM ALGUMA IDEIA DE QUAL É O CICLO DE VIDA DA
CARNE?
– Poupe-me. Ok, talvez eles sejam apenas carne em parte. Você sabe, como os
Weddilei. Uma cabeça de carne com um cérebro de plasma de electrões dentro.
– NÃO. NÓS PENSÁMOS NISSO, UMA VEZ QUE ELES TÊM CABEÇAS DE
CARNE, COMO OS WEDDILEI. MAS EU JÁ LHE DISSE, NÓS ENFIÁMOS-LHES
SONDAS. ELES SÃO CARNE ATÉ AO TUTANO.
– Sem cérebro?
– OH, É CLARO QUE TÊM CÉREBRO. TUDO SE RESUME A QUE O
CÉREBRO É FEITO DE CARNE! ISSO É O QUE EU TENHO ESTADO A TENTAR
DIZER-LHE.
– Então… o que é que faz o pensamento?
7
– VOCÊ NÃO ESTÁ A ENTENDER, POIS NÃO? VOCÊ ESTÁ A RECUSAR-
SE A ENFRENTAR O QUE EU ESTOU A DIZER-LHE. O CÉREBRO FAZ O
PENSAMENTO. A CARNE.
– Carne pensante! Você está a pedir-me que acredite em carne pensante!
– SIM, CARNE PENSANTE! CARNE CONSCIENTE! CARNE QUE AMA.
CARNE QUE SONHA. A CARNE É TUDO QUANTO EXISTE! VOCÊ ESTÁ
COMEÇANDO A TER UMA IDEIA OU TENHO QUE COMEÇAR TUDO DE
NOVO?
– Oh meu Deus. Você está então a falar a sério. Eles são feitos de carne.
– OBRIGADO. FINALMENTE. SIM. ELES SÃO REALMENTE FEITOS DE
CARNE. E ESTÃO A TENTAR ENTRAR EM CONTACTO COM A GENTE HÁ
QUASE UMA CENTENA DOS SEUS ANOS.
– Oh meu Deus. O que é que esta carne tem então em mente?
– EM PRIMEIRO LUGAR ELES QUEREM FALAR COM A GENTE. ENTÃO
EU IMAGINO QUE QUEREM EXPLORAR O UNIVERSO, CONTACTAR COM
OUTROS SERES SENCIENTES, TROCAR IDEIAS E INFORMAÇÕES. O
HABITUAL.
– É suposto que falemos então com a carne.
– ESSA É A IDEIA. ESSA É A MENSAGEM QUE ELES ESTÃO A MANDAR
POR RÁDIO. “OLÁ. ESTÁ AÍ ALGUÉM? ESTÁ ALGUÉM EM CASA?” ESSE TIPO
DE COISAS.
– Eles falam realmente, por conseguinte. Eles usam palavras, ideias, conceitos?
– OH, SIM. SÓ QUE ELES FAZEM ISSO COM CARNE.
– Pensei que você tivesse acabado de me dizer que eles usam o rádio.
– SIM, DE FACTO, MAS O QUE É QUE VOCÊ ACHA QUE ESTÁ NO
RÁDIO? SONS DA CARNE. RECORDA-SE DE QUE QUANDO BATE OU ABANA
A CARNE ELA FAZ UM BARULHO? ELES FALAM A BATER COM A SUA
CARNE UMA NA OUTRA. ELES PODEM ATÉ MESMO CANTAR SE
ESGUICHAREM AR ATRAVÉS DA SUA CARNE.
– Oh meu Deus. Carne que canta. Isto já é demais. Então, o que é que você
aconselha?
– OFICIALMENTE OU OFICIOSAMENTE?
– Ambos.
8
– OFICIALMENTE, É-NOS EXIGIDO QUE ENTREMOS EM CONTACTO,
QUE DÊMOS AS BOAS VINDAS E FAÇAMOS O REGISTO DE TODAS AS RAÇAS
SENCIENTES OU SERES MÚLTIPLOS NESTE QUADRANTE DO UNIVERSO,
SEM PRECONCEITO, MEDO OU FAVOR. OFICIOSAMENTE, ACONSELHO A
QUE SE APAGUEM OS REGISTOS E QUE SE ESQUEÇA TODO ESTE ASSUNTO.
– Estava à espera que você dissesse isso.
– PARECE EXCESSIVO, MAS HÁ LIMITES. SERÁ QUE NÓS REALMENTE
QUEREMOS ESTABELECER CONTACTO COM CARNE?
– Concordo a cem por cento. O que há para dizer? “Olá, carne. Como está?” Mas
será que isso funciona? De quantos planetas estamos a falar?
– APENAS UM. ELES PODEM VIAJAR PARA OUTROS PLANETAS EM
CONTENTORES ESPECIAIS PARA CARNE, MAS NÃO CONSEGUEM VIVER
DENTRO DELES. E, SENDO CARNE, SÓ CONSEGUEM VIAJAR ATRAVÉS DO
ESPAÇO C. O QUE OS LIMITA À VELOCIDADE DA LUZ E FAZ COM QUE A
POSSIBILIDADE DE ELES ALGUMA VEZ ESTABELECEREM CONTACTO SEJA
BASTANTE REDUZIDA. INFINITESIMAL, DE FACTO.
– Então, nós temos apenas de fingir que não está ninguém em casa no Universo.
– É PRECISAMENTE ISSO.
– É cruel. Mas você mesmo disse, quem é que quer conhecer carne? E o que dizer
dos que estiveram a bordo das nossas naves, os que foram sondados? Você tem a certeza
de que eles não se irão lembrar?
– ELES SERÃO CONSIDERADOS MALUCOS SE O FIZEREM. NÓS
ENTRÁMOS DENTRO DAS CABEÇAS DELES E SUAVIZÁMOS A CARNE DELES
DE MODO QUE NÓS SOMOS APENAS UM SONHO PARA ELES.
– Um sonho para a carne! Como é estranhamente apropriado que sejamos apenas
um sonho para a carne.
– E NÓS MARCÁMOS TODO ESSE SECTOR COMO DESOCUPADO.
– Excelente. De acordo, oficialmente e oficiosamente. Caso encerrado. Mais
algum outro? Há alguém interessante nesse lado da galáxia?
– SIM, UMA INTELIGÊNCIA DE AGREGADOS DE NÚCLEOS DE
HIDROGÉNIO QUE É BASTANTE TÍMIDA, MAS SIMPÁTICA, NUMA ESTRELA
DA CLASSE NOVE NA REGIÃO G445. ESTABELECEU CONTACTO HÁ DUAS
ROTAÇÕES GALÁCTICAS, E QUER REATAR A AMIZADE.
– Esse tipo de seres acaba sempre por voltar.
9
– E PORQUE NÃO? IMAGINE-SE O QUÃO INSUPORTÁVEL, O QUÃO
INCONCEBIVELMENTE FRIO SERIA O UNIVERSO SE SE ESTIVESSE
TOTALMENTE SÓ…
(Trad. de Manuel Curado)
- O primeiro embaraço: nós somos esses seres que causam perplexidades aos
extraterrestres do conto.
- Generalizar a perplexidade: está em causa a questão substantiva acerca da
natureza última da mente; mas não só: o problema das outras mentes em toda o seu
esplendor (as mentes dos humanos uns para os outros, as mentes dos extraterrestres, o
paladar a tentar compreender o ouvido e vice-versa, um homem a tentar compreender
uma mulher e vice-versa, um jovem a tentar compreender um velho e vice-versa, um
polvo a ser estudado por humanos, vice-versa neste caso?, uma parte do sistema humano
completo (a razão) a tentar compreender outra parte (estar acordado, sentir alguma coisa),
debates infindáveis sobre a alegada dor infligida aos animais, etc.).
O ponto de vista dos “mysterians” (v.g. Colin McGinn).
https://www.youtube.com/watch?v=7tScAyNaRdQ
e
https://www.youtube.com/watch?v=v-9t9BIBLKw
e
https://www.youtube.com/watch?v=X0yRsQK9vG0
e
https://www.youtube.com/watch?v=hduM0mFLBmQ
e
https://www.youtube.com/watch?v=qWCgI7a2ohk
10