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[T]
Mente e “mente”
[I]
Mind and “mind”
[A]
André Leclerc
[R]
Resumo
[B]
Abstract
Nossas perplexidades
É difícil imaginar algo mais íntimo do que nossa própria vida mental
ou nossa mente; ela é tão íntima na verdade que a tentação é grande de reduzir
o que somos a ela. Todo mundo lembra a famosa passagem de Descartes na
Segunda de suas Meditações Metafísicas: “Mas eu, que sou eu...? Sou uma
coisa que pensa...”, respondeu (DESCARTES, 1970, p. 43).1 Ele pensava
também (dele mesmo) que o pensamento é o único atributo “que não pode ser
separado de mim”. Como algo tão íntimo pode ser tão pouco conhecido e se
tornar fonte de tanta perplexidade?
A mente já foi objeto de uma coleção respeitável de afirmações contra-
ditórias. Nem sua própria existência é consensual, sendo negada por alguns
(Churchland, Davidson2) e considerada inegável por outros – na verdade, a
maioria dos filósofos da mente, por exemplo, Searle (1983, 1992) e Armstrong
(19993). Descartes acreditava que a mente não possui nenhuma das proprieda-
des das coisas extensas, em particular que ela não tem nenhuma localização
espacial; o pampsiquismo, pelo menos em algumas versões, afirma que a men-
te está em toda parte no mundo físico. Os fisicalistas, reducionistas ou não,
costumam aceitar que a mente está na cabeça, pois tudo o que qualificamos de
“mental”, para eles, é idêntico a algum evento neuronal, ou sobrevém direta-
mente da atividade eletroquímica do cérebro – é determinado por essa atividade
e fica na dependência da mesma; os externistas negam tudo isso (identidade
mente-cérebro bem como superveniência local mente-cérebro) e acreditam,
como Descartes – mas por razões totalmente diferentes –, que a mente não está
na cabeça. Como Dretske já disse, a mente e as experiências conscientes têm
essa curiosa “qualidade diáfana, a de estarem sempre presentes quando procu-
ramos por elas, mas nunca onde nós as procuramos” (DRETSKE, 1995, p. 13).
1
«Mais qu’est-ce donc que je suis? Une chose qui pense».
2
Ver o artigo “Donald Davidson” escrito pelo próprio Davidson, onde afirma: “There are
no such things as minds, but people have mental properties, which is to say that certain
psychological predicates are true of them.” GUTTENPLAN, S. (Org.). A companion to the
philosophy of mind. Oxford: Blackwell, 1994. p. 231. Esse dualismo das propriedades deve
ser entendido, portanto, como a afirmação de que mentes não são “coisas”, algo com o qual
concordamos. Ver também: CHURCHLAND, P. Matter and consciousness. Cambridge,
MA: MIT Press, 1988.
3
“My own position is Compatibilist. But if persuaded (say by an Eliminativist) that
Incompatibilism is true, I would then (reluctantly) turn Dualist, because the existence of the
mental seems to me to be pretty well undeniable.”
Todos nós temos uma noção de senso comum sem a qual nem
poderíamos entender o sentido da palavra “mente” e usá-la corretamente. Mas
o que entendemos por “mente”? Essa noção de senso comum reúne, sob o
mesmo guarda-chuva, coisas diversas, unidas por laços familiares nem sem-
pre muito fortes. Usamos regularmente expressões como “ter algo em mente”,
“ter a mente aberta”, ou outras expressões associadas ou derivadas como
“atividades mentais”, “imagens mentais”, “calcular mentalmente”, etc. O por-
tuguês também tem os verbos “mentalizar” e “mentar”.
Podemos apresentar pelo menos uma descrição inicial, a mais neutra
possível, do que se deve entender por “mente”, ou pelo menos listar o que
consideramos como “mental”. A seguinte lista pode certamente constituir um
bom ponto de partida para refletir sobre as coisas que classificamos sem
hesitação como mentais:
4
A ideia de núcleo de sentido (ou de significado) se encontra em Putnam, já em 1975, The
Meaning of ‘Meaning’, e mais tarde em Moravcsik (1998).
Nossa sugestão
5
Ver meu texto «Do Externismo ao Contextualismo», em SILVA FILHO, W. (Org.). Mente,
mundo, linguagem. São Paulo: Alameda, 2010.
6
Sobre isso, ver STALNAKER, R. On What’s in the Head, philosophical perspective, 3:
Philosophy of Mind and Action Theory. Atascadero: Ridgevew Publishing Company, 1989;
também em STALNAKER, R. Context and content: essays on intentionality in speech and
thought. Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 169-193; particularmente p. 169-170:
“In retrospect, it seems that we should not have been surprised by the conclusions of Putnam
and Burge. Isn’t it obvious that semantic properties, and intentional properties generally,
are relational properties: properties defined in terms of relations between a speaker or agent
and what he or she talks or thinks about. And isn’t it obvious that relations depend, in all but
degenerated cases, on more than the intrinsic properties of one of the things related. This,
it seems, is not just a consequence of some new and controversial theory of reference, but
should follow from any account of representation that holds that we can talk and think, not
just about our own inner states, but also about things and properties outside of ourselves.”
7
Ver PUTNAM, H. Reason, truth and history. Cambridge: C.U.P., 1981, p. 3: “[…] once
one realizes that a name only has a contextual, contingent, conventional connection with its
bearer, it is hard to see why knowledge of the name should have any mystical significance.”
“[…] mental representations no more have a necessary connection with what they represent
than physical representations do. The contrary supposition is a survival of magical thinking.”
ainda muito a aprender sobre o cérebro, mais seria absurdo negar que nosso
conhecimento não cresceu substancialmente nas últimas décadas. O vitalismo
não é mais considerado seriamente em filosofia da biologia simplesmente
porque nosso conhecimento das bases físicas da vida cresceu muito desde a
descoberta da estrutura do ADN (ácido desoxirribonucleico). Consideramos
que se trata de uma questão de tempo até poder identificar as propriedades dos
seres vivos com propriedades de nível inferior na ordem da complexidade. Por
que não adotar a mesma atitude em relação à mente, como fazem os fisica-
listas reducionistas? De outro modo, não estaríamos reintroduzindo em nossa
ontologia algo condenável para qualquer naturalista, algo irredutível que não
pode ser descrito de novo usando só os termos encontrados nas teorias das
ciências da natureza?
Na minha frente, vejo uma fotografia em preto e branco de minhas
crianças e de nossa cachorra. Reconheço facilmente todas elas sem dificul-
dade; posso afirmar com segurança que elas estão “na” fotografia, mas não
“realmente”. O que há realmente, na imagem, são pontos brancos e pretos
distribuídos sobre uma superfície lisa. Os eventos narrados num livro de
história não estão realmente no livro. No livro (o exemplar que tenho na
minha biblioteca) há marcas de tinta sobre folhas de papel. Os eventos narra-
dos não podem estar lá. E quando lembro o Parthenon que vi em 1980, ele
também, obviamente, não está (realmente) na minha cabeça. Da mesma
maneira, as imagens não estão “no” espelho, como se elas fossem presas lá
dentro. Dizer que “a mente é a face representacional do cérebro” é estabelecer,
por analogia, o mesmo tipo de relação.
Referências
ARMSTRONG, D. M. The mind-body problem: an opinionated introduction.
Boulder: Westview Press, 1999.
CHURCHLAND, P. Matter and consciousness. Cambridge, MA: MIT Press, 1988.
CRANE, T. Elements of mind. Oxford: Oxford, 2001.
DAVIDSON, D. Donald Davidson. In: GUTTENPLAN, S. (Org.). A companion to
the philosophy of mind. Oxford: Blackwell, 1994. p. 231-236.
DESCARTES, R. Méditations metaphysiques. Paris: Presses Universitaires de
France, 1970.
Recebido: 23/04/2010
Received: 04/23/2010
Aprovado: 12/05/2010
Approved: 05/12/2010