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opinião não é argumento


Um argumento busca a verdade. Uma opinião manifesta uma ideia que reflete a crença. O pior
ocorre quando crenças se materializam em opinião e são usadas para substituir argumentos

Walter Carnielli*

Aqui estÁ umA histÓriA que pode ser verdadeira suasão, em vez de força. Você tem o direito de avançar sua
no contexto atual do Brasil. Um jovem professor de filoso- crença na arena pública usando os mesmos métodos de
fia, instruindo seus alunos à filosofia da religião, introduz, que seus oponentes dispõem para dissuadi-lo.
à maneira que a filosofia opera há séculos, argumentos fa- O pior acontece quando crenças se materializam em
voráveis e contrários à existência de Deus. Um dos alunos opinião, e são usadas como substitutas de argumentos,
se queixa, para o diretor e também nas onipresentes redes quando o “Eu tenho direito às minhas crenças” se trans-
sociais, de que suas crenças religiosas estão sendo ataca- forma em “Eu tenho direito à minha opinião”. Crenças e
das. “Eu tenho direito às minhas crenças.” O diretor con- opiniões não são argumentos. Mais precisamente, crenças
corda com o aluno e força o professor a desistir de ensinar diferem de opiniões, que diferem de fatos, que diferem de
filosofia da religião. argumentos. Um fato é algo que pode ser provado verda-
Mas o que é exatamente um “direito às minhas cren- deiro. Por exemplo, é um fato que Júpiter é o maior planeta
ças”? O professor poderia, por exemplo, estar dando um do sistema solar tanto em diâmetro quanto em massa. Es-
curso sobre “O golpe de 2016”, e o ministro da Educação se fato pode ser provado pela observação ou pela consulta
poderia estar fazendo o papel do diretor, vetando o curso a uma fonte fidedigna.
para proteger os “ofendidos” por ele. O direito à crença, Uma crença é uma ideia ou convicção que alguém
nesse caso, poderia ser visto como o “direito evidencial”. aceita como verdadeira, como “passar debaixo de uma
Alguém tem um direito evidencial à sua crença se estiver escada dá azar”. Isso certamente não pode ser provado
disposto a fornecer evidências apropriadas em apoio a ela. (ou pelo menos nunca foi). Mas a pessoa ainda pode
Mas o que o estudante conservador, o diretor e o ministro manter sua crença, como vimos, se não pelo “direito evi-
da Educação estão reivindicando e promovendo não pare- dencial”, apelando para o “direito moral”. Ou ainda, pelo
ce ser esse direito, pois isso implicaria precisamente a ne- mesmo “direito moral”, deixar de acreditar no que ela
cessidade de pôr as evidências à prova. própria pensa serem evidências, como no caso do famoso
Parece que o estudante está reivindicando outra coisa, dito (atribuído a Sancho Pança) “Não creio em bruxas,
um certo “direito moral” à sua crença, como avaliado pelo ainda que existam”.
filósofo americano Joel Feinberg, que trabalhou temas da Já uma opinião é uma declaração ou manifestação de
ética, teoria da ação e filosofia política. O estudante está uma ideia que reflete a crença. A crença é de foro íntimo;
afirmando que ele tem o direito moral de acreditar no que a opinião manifesta a crença. Por fim, o mais importante:
quiser, mesmo em crenças falsas. um argumento não é uma luta ou um debate, nem um de-
Muitas pessoas acham que, se têm um direito moral a sacordo entre as pessoas. Um argumento é uma busca
uma crença, todo mundo tem o dever de não privá-las dessa pela verdade. A dificuldade surge por sempre haver uma
crença, o que envolve não criticá-la, não mostrar que é iló- tensão entre verdade e persuasão. Assim, se o argumento
gica ou que lhe falta apoio evidencial. O problema é que é o processo de persuadir uma audiência através da ver-
(sobretudo na atual conjuntura brasileira, às portas das dade, a retórica, no sentido contemporâneo, é o processo
eleições) essa é uma maneira cada vez mais comum de
pensar sobre o direito de acreditar. E as grandes perdedo-
ras são a liberdade de expressão e a democracia. Muitos acham que, pelo fato
Qualquer que seja sua crença, desde pensar que armar a
população vai resolver o problema da violência urbana, ou de terem o direito moral
que a terra é plana, você não pode exigir que outro sacrifi-
que a própria crença para salvaguardar o direito à sua. A a uma crença, o mundo
defesa de sua crença está restrita ao uso de métodos que
pertencem ao espaço das razões ó argumentação e per- não pode criticá-la
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de convencê-la. Ponto. A verdade aí é um elemento se-
cundário: a propaganda, o discurso político e sobretudo
as fake news estão nesse compartimento.
Mas, se crenças, ainda que verdadeiras e embasadas
em evidências, não se confundem com opiniões, com fa-
tos ou com argumentos, o que dizer de crenças falsas?
Como elas são engendradas? Entra em cena o já quase
famoso “viés de confirmação”, a tendência das pessoas
de acolher informações que apoiem suas crenças e rejei-
tar informações que as contradigam. Das muitas formas
de pensamento defeituoso já identificadas, o viés de con-
firmação está entre os mais bem catalogados. Mesmo
após a evidência de que suas crenças foram totalmente
refutadas, os indivíduos em geral não conseguem fazer
revisões apropriadas em certas crenças.
Um aliado perverso do viés de confirmação é a “ilusão
de profundidade explicativa”: as pessoas acreditam que
sabem muito mais do que realmente sabem, e o que lhes
permite persistir nessa crença é a ressonância em outras
pessoas ó dificilmente sabemos dizer onde o nosso enten-
dimento termina e o do outro começa. Essa confusão de
fronteiras, usada de forma positiva, parece ser crucial para
o que consideramos progresso. Mas, como regra geral,
de agostini/getty images

sentimentos fortes sobre questões candentes não surgem


de uma compreensão profunda, e mais se parecem com os
de uma torcida organizada.
Duas metáforas recentes tentam explicar mais meto-
dologicamente esses fenômenos: a ideia da “bolha epistê-
mica” e a da “câmara de eco”. Um estudo publicado na re- Diálogo entre o céu e a terra Platão e
vista Proceedings, da Academia Nacional de Ciências Aristóteles, no afresco Escola de Atenas, de Rafael
(“The spreading of misinformation online”, https://doi.
org/10.1073/pnas.1517441113), examinou dados sobre te- uma câmara de eco ó cujo nome nada tem a ver com o
mas discutidos em redes sociais entre 2010 e 2014. O estu- conhecido escritor italiano.
do constatou que os usuários tendem a se agregar em co- Não é necessariamente verdade, como disse Umberto
munidades de interesse, o que causa reforço e promove Eco, que “as redes sociais deram voz a uma legião de imbe-
vieses de confirmação, segregação e polarização. Uma cis”. Basta que milhões de pessoas instantaneamente co-
“bolha epistêmica” se forma em grupos (redes sociais, nectadas caiam vítimas do viés de confirmação e da ilusão
igrejas ou tendências políticas), nos quais vozes discor- de profundidade explicativa, e teremos o cenário pronto
dantes são excluídas por omissão, de maneira inadvertida para a agressividade e polarização nas redes, cujo efeito,
ou proposital, pelo mecanismo de viés cognitivo. Isso ou parte da causa, se vê no Judiciário, na imprensa e em
acontece quando redes construídas por motivos eminente- outras instituições.
mente sociais começam a ser usadas como fontes de in- O que o diretor e o ministro da Educação deveriam ter re-
formação. No segundo caso, uma “câmara de eco” é uma conhecido ao estudante e aos ofendidos com o curso “O gol-
estrutura social na qual vozes discordantes são ativamen- pe de 2016” é que, sim, eles têm um direito moral à sua cren-
te desacreditadas. Numa bolha epistêmica, vozes des- ça, e têm o direito moral de não ter essa crença arrancada à
toantes não são ouvidas; numa câmara de eco, essas vozes força. Mais nada. A filosofia da religião permanece no pro-
são sabotadas. A prisão de Lula pode ser vista como um grama, e o programa do curso permanece vigente. ƒ
episódio de perseguição judicial ou como um exemplo de
avanço no combate à corrupção no país. Mas quem já ten- * Walter Carnielli é matemático e professor titular de
tou discutir com qualquer dos lados, penetrando numa lógica e filosofia da ciência do Centro de Lógica e do
bolha epistêmica através das redes sociais, sentiu o que é Departamento de Filosofia da Unicamp, em Campinas

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