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A FAVOR DA CIÊNCIA, CONTRA O CIENTIFICISMO:

Os dilemas da produção contemporânea do saber.1

Immanuel M. Wallerstein

Na atualidade, a ciência está sob ataque. Já não goza do indiscutível


prestigio que teve durante dois séculos como a forma mais segura de verdade, que
para muitos constituía a única forma segura da verdade. Nós estávamos
acostumados a acreditar que em virtude de a teologia, a filosofia e a sabedoria
popular oferecerem verdades questionáveis, somente a ciência podia oferecer
certezas. Os cientistas declaram com modéstia que todas as afirmações científicas
estão sujeitas a revisões caso surjam novos dados, com o que parecem se
diferenciar das demais formas de asserção da verdade, as quais os cientistas
chamam de ideológicas ou especulativas ou tradicionais ou subjetivas – e,
portanto, menos (muito menos) confiáveis. Para muitos, o rótulo de “científico”
e de “moderno” se transformaram praticamente em sinônimos, e para quase
todos, esses rótulos eram meritórios.

Nos últimos vinte anos, entretanto, a ciência tem sido submetida a uma
forma de ataque muito semelhante à qual os cientistas haviam antes dirigido para
a teologia, a filosofia e a sabedoria popular. Hoje em dia se acusa a ciência de ser
ideológica, subjetiva e não confiável. Se afirma que é possível distinguir na
teorização da ciência muitas premissas apriorísticas que não refletem mais do que
as posturas culturais dominantes em cada época. Se argumenta que os cientistas
manipulam os dados e que, assim, manipulam a credibilidade do público. Na
medida em que essas acusações encontrem sustentação, elas certamente
submeteriam os cientistas ao mesmo tipo de julgamento crítico cultural a que
estes sujeitaram todos os outros.

Alguns críticos, entretanto, vão mais longe. Eles propõem que não existe
verdade universal e que todas as afirmações do conhecimento são
necessariamente subjetivas. A reação dos cientistas a esta crítica tão forte, a esta
expressão de total relativismo, consistiu em denunciar que esses ataques eram

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WALLERSTEIN, I. M. The uncertainties of knowledge. Philadelphia: Temple University Press, 2004,
(capitulo I). Texto traduzido para fins didáticos pelo prof. Conrado Pires de Castro. A tradução foi cotejada
também com a versão espanhola, publicada pela Gedisa editorial.

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produtos do retorno da irracionalidade. Alguns cientistas foram ainda mais além,
afirmando que mesmo as críticas moderadas à ciência, baseadas em uma análise
do contexto social na qual se desenvolve a atividade científica, têm sido nefastas,
porque foram a via de acesso à rota que conduz ao desastre do relativismo niilista.

Culturalmente, esta é a situação em que nos encontramos. Estamos


imersos em uma troca de insultos no meio da luta pelo controle dos recursos e
das instituições de produção do conhecimento. É o momento para que nos
coloquemos a refletir sobre as premissas filosóficas de nossa atividade científica
e o contexto político das estruturas do conhecimento.

Como nós sabemos que uma afirmação científica nova é válida ou ao


menos plausível? Em uma realidade na qual a especialização do conhecimento é
cada vez mais complexa, para cada enunciado científico existe um número muito
pequeno de pessoas que têm a capacidade de emitir juízos racionais sobre a
qualidade da evidência proporcionada ou sobre o rigor com que se aplica o
raciocínio teórico na análise dos dados. Quanto mais “dura” é a ciência, mais se
impõe o que acabo de dizer. Deste modo, se lemos em uma publicação científica
não especializada, Nature, por exemplo, ou em um sofisticado jornal, como o
Times of India, que o cientista X manifesta que realizou uma nova contribuição
ao conhecimento, como nos asseguramos de que seu aporte é valoroso?
Tendemos a usar o critério de validação comprobatória das autoridades
respeitadas. Observamos os lugares de publicação, a sua posição numa tabela ou
escala de confiabilidade. Nós fazemos o mesmo com as pessoas que comentam a
nova proposição. De onde saem essas tabelas de confiabilidade para atestar as
publicações especializadas ou os acadêmicos cujas citações se reproduzem? Tais
escalas raramente existem na forma de documentos escritos. De fato, obtemos as
escalas de confiabilidade de outras escalas de confiabilidade. Se outras pessoas
“sérias” que conhecemos asseguram que Nature é uma publicação prestigiosa e
confiável, em geral acreditamos que é assim. Não é difícil ver em que medida as
tábuas de confiabilidade se constroem umas sobre as outras.

O que as impedem de ruir como um castelo de cartas? Nós confiamos na


probabilidade de que um grande número de “experts” em um determinado
domínio específico do conhecimento estará atento ao que dizem seus colegas e
que se pronunciarão publicamente caso a qualidade dos dados é pobre ou a

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qualidade dos raciocínios são inadequadas, ou se evidências contrárias foram
negligenciadas, ou mesmo se houve realmente fraude. Por isso se considera que,
caso os especialistas não digam nada é porque dão seu consentimento, e esse
consenso nos transmite segurança e nos leva a incorporar as novas verdades ao
sistema em que armazenamos nossos conhecimentos. Em contrapartida, quando
os especialistas entram em desacordo, nos tornamos céticos a respeito da verdade
enunciada. Isto quer dizer que não confiamos em especialistas individualmente,
mas na comunidade autoconstruída de especialistas.

Mas o que nos faz pensar que uma comunidade de especialistas, que fala
mais ou menos com uma única voz, merece nosso respeito e crédito? Nós
respeitamos e confiamos fundamentalmente com base em duas suposições: eles
são bem treinados por instituições bem avaliadas e dignas de crédito, e, dentro
do possível, não respondem a interesses pessoais. Valorizamos simultaneamente
esses dois critérios. Supomos que o conhecimento especializado não é fácil de
adquirir, exigindo capacitação e aprendizagens prolongadas e rigorosas.
Confiamos nas instituições formais, que por sua vez são avaliadas segundo
escalas de confiabilidade. Supomos que instituições comparáveis exercem
controles umas sobre as outras, e que, dessa forma, as avaliações mútuas em nível
mundial asseguram a confiabilidade das escalas implícitas e explícitas. Em
resumo, confiamos que os profissionais têm a capacidade adequada e,
particularmente, a capacidade para avaliar novos enunciados de verdade em seu
campo de especialização. Damos crédito à reputação e aos antecedentes
acadêmicos.

Além de confiar nos antecedentes acadêmicos, nós acreditamos que os


cientistas são relativamente desinteressados. Confiamos que cientistas
(diferente, mais uma vez, de teólogos, filósofos e portadores da sabedoria
popular) são psicologicamente dispostos para aceitar qualquer verdade que surja
de uma interpretação inteligente dos dados, sem ter a necessidade de esconder
estas verdades, nem de distorcê-las ou negá-las.

É precisamente nas alegações sob essa combinação de boa capacitação e


de desinteresse que os céticos dos últimos vinte anos têm se concentrado. Por um
lado, eles têm argumentado que a capacitação profissional muitas vezes, ou talvez
sempre, se organizou de modo a omitir elementos importantes em suas análises

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ou a distorcê-los. Apenas em parte isto é uma função das bases sociais de
recrutamento dos cientistas. Certamente, na medida em que a maioria dos
cientistas são provenientes das camadas socialmente dominantes em todo
mundo, pode-se pensar que a seleção dos problemas pode sofrer distorções. Isto
parece bastante evidente para ciências sociais, mas também parece ser verdade
para as ciências naturais. Mais importante ainda tem sido a escolha das premissas
teóricas, o uso de determinadas metáforas. Aqui o viés científico tem sido menos
visível, mais profundamente camuflado. Isto tem levado os críticos para além do
exame da questão do viés deliberado (preconceito) e da questão do enviesamento
estrutural ou institucional (do qual o cientista pode não estar consciente). Se tudo
isso fosse verdadeiro, então o treinamento poderia ter sido inadequado, mesmo
possivelmente negativo.

É claro, isto não é apenas uma questão de treinamento, mas de normas. A


norma de desinteresse é central para a institucionalização da ciência moderna.
Mesmo se esta norma é violada por um ou outro cientista, presume-se que a
norma é suficientemente forte para restringir as tendências à sua violação.
Desinteresse presumivelmente significa que o cientista conduz a investigação
para onde a lógica de sua análise e os padrões de seus dados o levarem, e estará
pronto para tornar público os resultados mesmo que a publicação deles possa
prejudicar alguma política social apoiada pelo cientista ou a reputação de colegas
que ele admira. O próprio conceito de desinteresse pressupõe uma inabalável
escolha do cientista a favor da honestidade ao invés da desonestidade. Mas é claro
que no mundo real as coisas não são sempre assim. Cientistas estão sujeitos a
muitas pressões: algumas externas de governos, instituições e pessoas influentes,
pares; outras internas, do superego dele ou dela. Todos nós, sem exceção,
reagimos a tais pressões até certo ponto. Além do mais, o princípio de Heisenberg
está sempre presente: os processos de investigação, o procedimento com os quais
são feitas as observações, transformam o objeto de investigação. Sob certas
circunstâncias, ele o transforma tanto que os resultados obtidos não são muito
confiáveis.

Também deve-se notar que o próprio interesse da comunidade científica


pode interferir no programa de treinamento. O sistema de certificação
profissional de praticantes da ciência, assentado na preservação da
impessoalidade, permite à comunidade científica limitar o ingresso na profissão

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por motivos que são alheios, ou até mesmo contrários, ao princípio de atuação
desinteressada. No entanto, a intromissão da política no processo de certificação
(o oposto da autonomia da comunidade profissional) pode fazer a mesma coisa.
É como navegar entre Cila e Caríbdis.

Mas se o treinamento profissional e o desinteresse são esvaziados como


garantias quando examinados minuciosamente, como podemos confiar nos
pronunciamentos dos especialistas? E se não podemos confiar em seus
pronunciamentos, de que forma podemos aceitar a validade das afirmações
científicas, ao menos em todos aqueles domínios nos quais não reivindicamos
competência estrita?

Não existe nenhum argumento convincente que se contraponha a esse


ceticismo tão acentuado. Se não confiamos nos especialistas, como nós podemos
saber a respeito da maioria das coisas? De que outra fonte podemos obter juízos
mais confiáveis? Será que de fato faremos melhor se rejeitarmos todos
especialistas com base em suas pretensões de autoridade são ilusórias? Podemos
traduzir isto em uma grande questão prática que a maioria de nós enfrenta
regularmente: preservar nossa saúde. Por um lado, a ciência moderna nos diz que
organismos vivos podem funcionar mal, “ficar doentes”. Também nos diz que, em
muitas situações, intervenções médicas podem reparar o mal. Além disso, nos diz
que, em muitos casos, na ausência de tal intervenção, nós iremos “piorar”, ou até
mesmo morrer. Por outro lado, nós sabemos que os médicos contemporâneos
discordam em seus diagnósticos, prognósticos e tratamentos. Ademais, sabemos
que houve divergências no curso do tempo (as prescrições de hoje são bem
diferentes daquelas de cem anos atrás) e, em alguma medida, ao longo do espaço.
E sabemos que existem enfermidades iatrogênicas.

Quando temos uma febre alta, podemos buscar orientação e assistência. Se


não estivermos dispostos a recebê-las de um clínico, de quem estaríamos
dispostos a recebê-las? Com base em quais fundamentos? Obviamente, faz toda
diferença a seriedade do caso, para que uma intervenção clínica seja
recomendada. O tratamento com aspirina é frequentemente aceito como algo
casual. A recomendação de uma complicada cirurgia cerebral faz os pacientes
hesitarem, ou provoca algumas dúvidas. Cedo ou tarde, a maioria de nós segue a
recomendação da operação cerebral se não houver outra que nos satisfaça mais,

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porém de quem vem a recomendação? Nós hesitamos em concordar com a
recomendação médica, mas hesitamos ainda mais em nos deixar levar por nosso
próprio ceticismo.

Então, o que podemos fazer? Parece-me claro que não devemos jogar fora
o bebê junto com a água do banho. Por essa razão eu escolhi o título “A favor da
ciência, contra o cientificismo”. Por cientificismo eu me refiro a presunção de que
a ciência é desinteressada e extra-social, que suas alegações de verdades se
sustentam por si mesmas, sem referência a proposições filosóficas mais gerais, e
que a ciência representa a única forma legítima de conhecimento. Parece-me que
os céticos dos últimos anos, em muitos casos simplesmente revivendo antigas
críticas, têm demonstrado a fragilidade lógica do cientificismo. Na medida em
que os cientistas se ponham na defensiva para proteger o cientificismo, só
conseguirão destruir a legitimidade da ciência.

A Ciência, ao contrário, parece-me uma aventura humana essencial, talvez


mesmo a grande aventura humana. A ciência parece se configurar a partir de dois
enunciados relativamente modestos, mas absolutamente cruciais:

1) há um mundo fora e além, que transcende a percepção de qualquer


um de nós, que existiu e existe. Este mundo não é uma fantasia de
nossa mente. Com esta proposição, nós recusamos uma visão
solipsística2 do universo.
2) este mundo real pode ser conhecido parcialmente por métodos
empíricos, o que nos permite resumir o conhecimento assim obtido
em teorizações heurísticas. Embora seja intrinsecamente impossível
conhecer totalmente o mundo, e certamente sempre prever
corretamente o futuro (uma vez que o futuro é indeterminado), é
eminentemente útil procurar aprender o que estiver ao nosso alcance
para melhor interpretar a realidade e aperfeiçoar as condições de
nossa existência.
No entanto, dado que a realidade do mundo está sempre mudando, todas
essas interpretações são necessariamente transitórias, e faríamos bem em ser

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Segundo o dicionário Aurélio: “1.Filos. Doutrina segundo a qual a única realidade no mundo é o eu: ‘o
equivalente concreto do que os filósofos chamam de solipsismo, isto é, da atitude que consiste em sustentar
que o eu individual de que se tem consciência, com as suas modificações subjetivas, é que forma toda a
realidade’ (Temístocles Linhares, Introdução ao Mundo do Romance, p. 463). [Cf. idealismo subjetivo e
subjetivismo (2 e 3)]”.

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prudentes nas conclusões a que chegamos sobre questões práticas. A situação que
todos nós nos reconhecemos em relação às recomendações médicas pode ser a
eterna condição humana. Nunca podemos ter certeza sobre o que dizem os
especialistas, mas é improvável que façamos muito melhor caso os dispensemos.

Somos confrontados a todo tempo com toda a sorte de decisões, grandes e


pequenas. Melhorar a capacidade de desempenho de um computador, por
exemplo, é uma decisão pequena, por maiores que sejam as consequências disso.

Talvez seja relativamente seguro para todos nós, coletivamente, permitir


que os engenheiros tenham uma considerável autonomia neste processo de
aperfeiçoamento tecnológico e, em grande parte, confiar em sua experiência.
Mesmo aqui, é claro, devemos querer que suas decisões técnicas específicas se
ajustem às preocupações sociais mais amplas (a nova tecnologia afetará nossa
saúde, o meio ambiente ou a segurança pública?), questões que não são a
especialidade, ou talvez nem mesmo do interesse da engenharia da computação.
Construir uma ordem mundial, por outro lado, é uma decisão complexa,
gigantesca; e, para a maioria de nós, muito distante de nossa capacidade imediata
de ação. O nível de desinteresse dos supostos especialistas (políticos ou
acadêmicos) é sem dúvida bem baixo. A relevância de suas credenciais é
duvidosa. (Quantos bons conselhos a comunidade dos economistas nos deu
ultimamente sobre políticas públicas para a economia?) E ainda assim, esta pode
ser uma questão muito mais urgente e importante do que aprimorar as
capacidades de desempenho de um computador.

Acrescente-se que a maioria das pessoas são conscientes dessa realidade.


Diante da urgência da situação, muita gente mundo afora tem preferido seguir
recomendações fundamentadas em crenças teológicas, filosóficas ou na
sabedoria popular em lugar de se orientar por argumentos científicos. Temos
certeza de que tais argumentos alternativos são menos confiáveis? Em caso
afirmativo, baseado em que temos tanta certeza? Esse, de fato, é o desafio da
produção contemporânea do conhecimento.

Não é este o lugar adequado para analisar a conjuntura crítica do nosso


sistema-mundo contemporâneo, algo que já fiz muitas vezes em outros contextos.
Deixe-me apenas dizer que nos encontramos em uma conjuntura crítica. A
pergunta é se podemos oferecer análises científicas em bases não científicas a

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respeito das opções históricas que se abrem para a nossa escolha. Sem dúvida,
muita coisa deve ser removida se quisermos ter algum sucesso. A inflexibilidade
da mão pesada do cientificismo é parte daquilo que precisa ser removido. Nós
precisamos reconhecer que as escolhas científicas são informadas por valores e
intenções tanto quanto pelo conhecimento de causas eficientes. Precisamos
incorporar a quimera às ciências sociais. Precisamos passar de uma imagem do
cientista neutro para a do cientista como pessoas inteligentes, mas com
preocupações e interesses, conscientes de suas responsabilidades no exercício de
sua hybris – isto é, de sua atividade desmedida e muitas vezes desaforada.

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